Gilles Deleuze: uma vida filosófica (melhorizado)
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Eric Alliez (org.)

GILLES DELEUZ UMA VIDA

FILOSOFICA ./'

Coordenação da tradução dé Ana Lúcia de Oliveira

ag 192523

editoral 134

Evitar a dupla ignomínia do erudito e do

familiar. Conferir a um autor um pouco dessa alegria, dessa força, dessa vida amorosa e

política, que elesoube dedicar, inventar... A célebre frase de .Deleuze definindo o duplo requisito exigido para se escreversobre um autor pode servir de epígrafe a este livro coletivo, publicadona França em 1998, fruto do Colóquio Gilles Deleuze, que acon-

teceu no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo, 10 a 14 de junho de 1996) com o apoio do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares. Que esteColóquio tenha ocorrido no Brasil não é mero acaso. Porque a seu tempo ma nifesrou-se a extraordinária vitalidade do pen-

samento deleuzeanonestepaís; mas também, e sobretudo, nas intervenções e nas discussões

que se seguiram, este Colóquio testemunhou

uma compreensão bastantesingular das inserções rezzls da filosofia contemporânea

na-

quilo que constitui sua única tarefa: pensar o presente. É neste espírito que os 34 colaboradores nos fazem partilhar da profunda simpatia intelectual que os liga à z/ida#/osóPca de Gilles

Deleuze. Suas intervenções estão agrupadas em quatro seções: "Variações filosóficas", História

nica",

e devir

"Variedades

da filosofia ", "Política

estéticas" . Todos

e clí-

os gran-

des temas do pensamento deleuzeano serão retomados em ação: da filosofia como cr/anão de conceffos, introduzindo uma abordagem inédita na história da filosofia, à noção de uma /manência aliso/afa como "vertigem filosófica",

que equivale

à mobilização

de

uma nova inteligência política; das condições

c algas e c/!'Migas de uma filosofia do aconte-

cimento ("dizer o acontecimentoe não a essência") à necessáriaaproximação da filosofia com relação às ciências e às artes..

Pois, com Deleuze, trata-se sempre de ex-

perimentar as potênciasde uma nova política

coleção TRANS

Eric Alliez (org.)

GILLES DELEUZE:

UMA VIDA FILOSÓFICA Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira

editoraH34

GILLES DELEUZE:

UMA VIDA FILOSÓFICA 11

Apresentação Primeira Parte \r A D TA r-I3FÇ

V Z LX\ZAL\5J\-/DU

FTT Í)ÇÍ$FIÍ'

X XUVUVX



XVX XU

F{OÀ40 TANTUM. O IMPESSOAL: UMA POLÍTICA

René Schérer

21

DELEUZE E A ANOMALIA METAFÍSICA

Arnaud Villani ..........................................

LINHAS OE AÇÃO DA OIFERENÇA Luiz B. L. Orlandi UMA REVIRAVOLTA NO PENSAMENTODE DELEUZE José Gil ............. 0 TEMPO NÃ0-RECONCILIADO Peter Pál Pelbart

39

49 65 85

0 OLHO DO FORA

Jean-Clet Martin ...................... DOBRA DELEUZEANADO PENSAMENTO Jean-Luc Nancy 0 COPO DE DADOS DO SENTIDO

François Wahl DA VIDA COMO NOME DO SER Alain Badiou

99 111

119 159

A IMANÊNCIA ABSOLUTA 169

Giorgio Agamben Segunda Parte

HISTÓRIA E DEVIR DA FILOSOFIA DELEUZE SOBRE HUME

Déborah Danowski

195

0 TRANSCENDENTALE SUA IMAGEM Gérard Lebrun ......-.-''''''''''''''''''.

209

DELEUZE E SUA SOMBRA

235

Scarlett Marton SOBRE O BERGSONISMO DE DELEUZE

Éric Alliez ..................................................

245

DO CAMPO TRANSCENDENTAL AO NOMADISMO

OPERÁRIO

WILLIAM JAMES

David Lapoujade

A PERCEPÇÃO EM SARTRE E Dn.EUZE

Véronique Bergen A IDÉIA DE "PLANO DE IMANÊNCIA" Bento Prado Jr. ENTRE DELEUZE E WHITEHEAD

267 279 307 323

lsabelle Stengers

Terceira Parte

POLÍTICA E CLÍNICA DELEUZE E O POSSÍVEL (SOBRE O INVOLUNTARISMO

NA P01.ÍTICAI François

Zourabichvili

....

A SOCIEDADE MUNDIAL DE CONTRAI,E

Michael Hardt

OS DUALISMOSHOJE EM DIA Fredric Jameson ...............-......-...................... REVISITANDO

333 357 373

"OS INTELECTUAIS E O PODER"

Renato Jahine Ribeiro

385

EXISTE UMA INTELIGÊNCIA DO VIRTUAL? 397

John Rajchqan CÓDIGO PRIMITIVO -- CÓDIGO GENÉTICO:

A CONSISTÊNCIA DE UMA VIZINHANÇA

Laymert Garcia dos Santos......-.

415

OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIA Eduardo

Viveiros

de Castão ....

421

ESQUIZOANÁLISEE AI nROPOFAGIA Suely Rolnik 0

OS SIGNOS E SEUS EXCESSOS. A CLÍNICA EM DELEUZE

Joel Birman ........ HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN Eduardo A. Vidal ..............

451 463

479

Quarta Parte

VARIEDADES ESTÉTICAS A PROPÓSrro OE UM CURSO OO DIA 20 0E MARÇO OE 1984 0 RiTORNELO E O GALOPE Pascale Criton .......... EXISTE UMA ESTÉ'nCA OEI.EUZEANA?

Jacques Ranciêre MICHAUX, DELEUZE Raymond Bellour .......... BARROCOLÚDIO DELEUZEANO

Haroldo de Campos O CINEMA DO PENSAMENTO. PAISAGEM, CIDADE E CYBERCIDADE André Parente ..

CINEMA DELEUZE Julgo Bressane

Sobre os autores

495 505

517 525

535 545

549

A maior parte das contribuições que compõem esta obra coletiva foram apresentadas durante o Colóquio Gilles Deleuze, organizado no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em junho de 1996, pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares. Este Colóquio teve o apoio do Ministério de Assuntos Estrangei-

ros, da Embaixada da França em Brasília, do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro, da DelegaçãoGeral da Aliança Francesa no Brasil, do Colégio Internacional de Filosofia, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, da Fo/ba de S. Pau/o e da Editora 34.

À primeira coletânea de textos, acrescentamos as intervenções dos

autores que não puderam se deslocar ao Brasil, assim como alguns artigos redigidos tendo em vista esta publicação.*

* Trata-se das intervenções de Pascale Criton, Rena Schérer, Arnaud Villani,

Alain Badiou e François Wahl. Agradecemos a Jean-Clet Martin e François Proust a oportunidade de publicar o texto de François Wahl.

O texto enviado por Raymond Bellour foi extraído de sua Introdução às

Obr.zs como/elas de Henri Michaux, da coleção Pléiade, das Edições Gallimard.

APRESENTAÇÃO Éric Alliez

Meu ideal, quando escrevo sobre um autor, seria nada escrever que Ihe pudesse causar tristeza ou, caso es-

teja morto, que o fizessechorar emsua tumba: pensar no

autor sobre o qual se escreve. Nele pensar tão intensamen-

te que ele não possa mais ser um objeto, que tampouco seja possível identificar-se com ele. Evitar a dupla igno-

mínia do erudito e do familiar. Reconduzir a um autor um pouco dessaalegria, dessa força, dessa vida amorosa e política que ele soube dar, inventar [...] IGilles Deleuze)

No prolongamento dos Encontros Internacionais Gilles Deleuze organizados no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em junho de 1996, a publicação desta obra apresenta-secomo uma primeira homenagem coletiva prestada a um pensamento que não cessou de recolocar em jogo sua própria atualidade a partir da necessidadede pensar de outro modo". Ora, essa alteridade é antes de tudo a de um

movimento de pensamento que, se não basta dizê-lo para (re)fazê-lo jde outro modo...), por isso mesmo impedia de antemão qualquer veleidadecomemorativa que a pretexto do desaparecimentodo filósofo pudesse definir, em uma cerimónia ou reunião, as condições psicológicas de uma nova ortodoxia segundo o critério da proximidade imediata, da afinidade seletiva. .. Exilar a dup/a fgnomi'nia do er dffo e do Áami/laf', escreve Deleuze.

Pode-sedizer, então, que este livro não é um trabalho de luto, que se sabe que "o não-luto requer ainda mais trabalho. .." e que aqui não se encontrarão coligidas as aras de um colóquio reunindo o círculo dos intérpretesautorizados (ou supostamenteautorizados), mas um conjunto de contribuições emanando de campos disciplinares diversos, de contextos culturais e filosóficos contrastantes, de línguas diferentes, que talvez só tenham em comum -- afora, o que não é pou-

co, nesse"período muito fraco [...] de reação", uma profunda sim-

paria intelectual de seus autores pela ufda »/osó/zca de Gilles Deleuze haverem sido marcadas pelo sentimento de viva urgência desse pensamento dissidente.

Apesar da extraordinária diversidade dos itinerários de abordagem e dos meios de investigação aqui propostos, eu me arriicaria a declinar sua atualidade, a mínima, em três pontos -- como "cristalizações" ou "automovimentos" envolvendo a identidade contemporânea de uma certa ideia da filosofia. Primeiro pomo, de implicação da imagem deleuzeana do pen-

samento:

Se o pensamento não é nada sem as forças efetivas que agem so-

bre ele e as in-determinações afetivas que nos forçam a pensar, e nesse sentido o pensar se dá no infinitivo (e não na primeira pessoado indicativos, esse infinitivo é do presente. No campo da filosofia, pensar é, no mesmo movimento, afirmar a identidade constituinte da filosofia e da ontologia, e pâr essa ontologia como oncologia experimental do presente. Produzindo efetivamente esse movimento, revestimo-

nos do poder de pensar "de outro modo", sem fazer uso do conceito como heterogênesedo ser no "automovimento do pensamento". Pois o que pode significar pensar, para um filósofo, senão criar os novos conceitos requeridos pela eicpe7'fê?zela rea/, e não apenas possível (isto é, abstrata), para dar lugar a novas experimentações da vida? Que se possa, que se deva aqui evocar a idéia de um "Pensamento 68" e associar ao nome de Deleuze o de Foucault só desagradará àqueles que querem crer que os Acontecimentos se passam antes na cabeça dos intelectuais... Daí, também, o tema do "fim da filosofia" ter sempre provocado em Deleuze um risinho sarcástico, e sua alegada "ingenuidade" metafísica ser a de um materialismo superior (ou materialismo especulativo)l cuja modernidade repousa -- de maneira muito clássica -- sobre a questão da produção do novo. Em suma, nada menos pós-moderno do que a definição deleuzeana da filosofia como criação de conceitos. .. Segue-seuma concepção da história da filosofia como "reprodução da própria filosofia", concepção na qual "a força de uma filosofia é medida pelos conceitos que ela cria, ou cujo sentido renova, 1 0 Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick acaba de organizar um simpósio em torno dessa temática "materialista": DELEUZEGUATTARI & MIATTER j18-19 de outubro de 1997)-

e que impõem um novo recorte às coisas e às ações". Ela se opõe em todos os pontos ao prometode uma filosofia da história, por haver descoberto no devir a condição mesma da filosofia, que não conhece outro princípio além daquele de uma razão contingente, e no virtual, distinguido de suas formas de atualização, uma maneira de problematização do movimento infinito do Entre-Pensamento-- no "ponto singular em que o conceito e a criação se reportam um ao outro" para contra-efetuar o acontecimento (em que casos, onde e quando, como etc.).

Seguzzdoponto, ou segundaentrada: a questão da imanência como "vertigem filosófica" e como aquilo que está em jogo no trabalho filosófico enquanto tal. Será preciso lembrar o título do último texto publicado em vida por Deleuze, "A imanência: uma vida. .."? Ele constitui uma espéciede testamentofilosófico, como que um diagrama que concentra o primeiro e o último pensamentosde Deleuze sobre uma imanência que convoca o transcendental para opâ-lo ao transcendente e a toda forma dada no

campo da consciência, à transcendência do sujeito, assim como à do objeto. Uma imanência absoluta, ontológica, e não fenomenológica ou crítica, que impede de conceber o campo transcendental à imagem e se-

melhança do que se supõe que ele funda, e que, exprimindo sua determinabilidade como uma vida singular em que a indeterminação da pessoa supõe a determinação pré-individual do singular, exclui também toda transcendência do ser ainda que imanente a uma subjetividade transcendental. . . Eu não poderia garantir que essa tese, em sua exigente

radicalidade, seja compartilhada pelo conjunto dos participantes; mas

creio poder afirmar que todos reconheceriam que a questão da existência mesma de uma filosofia contemporânea é (re)colocada em jogo por esse

salto em relação a todo cartesianismo epistemológico ou existencial. Tampouco é indiferente ao nosso propósito que essa afirmação de uma imanência absoluta envolva uma nova inteligência do político, ou do biopolítico, irredutível à noção tradicional de filosofia política. Te coiro e ú/limo ponto: a filosofia deleuzeanafunciona como um operador de desencraz/ózmenfoda filosofia contemporânea diante de um

mundo filosófico que, decerto, por muito tempo se acomodou à sua divisão geo-histórica em dois blocos(fenomenológico e analítico), mas diz respeito igualmente às ciências e às artes, que recuperam sua plena

autonomia de pensamento desde o momento em que a filosofia não é mais concebida a partir dos efeitos do domínio de uma re/loção sobre.

Não sendo mais reflexivo, mas criador de verdades, dominando as potências do "fora" que ele se empenha em captar e em individuar na forma

de "idéias vitais" e de conceitos cuja função é a de "dizer o acontecimento (e não mais a essência)", o filósofo passa por toda uma série de operações, de processos e de variações que o levam a travar novas alian-

ças e a "fabricar seus intercessores" nos pontos de interferência ou de ressonância com certas linhagens científicas ou artísticas. Fazendo des-

filar o conjunto da história do cinema na tela escura de Malérla e memória, os dois livros sobre a Imagem-movimento e a Imagem-tempo são exemplares a esse respeito, tanto para a história da filosofia como para

a do cinema -- como uma prática filosófica transdisciplinarque não sepoderá aproximar de novos objetos, como o pensamento-cinema,senão impedindo-se de a eles aplicar de fora, por analogia ou metáfora, conceitos vindos de outro lugar. . . ( "Conceitos próprios ao cinema, mas que não podem ser formados senão filosoficamente." ) Mas é por certo com À4i/P/dós, escreve Félix Guattari(que

é igualmente, esquece-se com

demasiada frequência, co-autor de O qne é a Piloso/ia?), que Deleuze se coloca no ponto de encontro de todas as multiplicidades, de todas as formas concretas e de todos os modos de expressão possíveis para que a filosofia red#zlda [dé-ma/flp/íée] percorra uma "linha de fuga' que determine num mesmo movimento um novo P/ano de composição para o pensamento ("Faça rizoma. . . ") e uma feorla dos age/zclamenlos

para um mundo dramatizado, a partir de nossos devires mais atuais, pela "desterritorialização do homem".

Que seja o mapa de um novo mundo que possa fazer rimar pensamento da univocidade e teoria das multiplicidades, filosofia da vida e filosofia do conceito. Uma rima que eu diria onfoefo/(igica. Por diversas razões excepcionais, a recepção de Deleuze no Bra: sil, ultrapassando os muros da Universidade desde o início dos anos 80, deve muito a esse efeito de diagnóstico multipolar cuja potência performativa situa o autor decididamente fora dos campos de referência

tradicionais da história da filosofia e de sua prática do comentário. Ora, sua ação, a meu ver, apesar da onda de choque provocada pelo Anil-Édfpo, traduzido em 1976, se dá menos por meio de uma reapropriação "libertária" do político s[7fcfose/zszz2 do que pela re2 Associando microfísica do poder e revolução molecular, a reflexão políti-

ca dos movimentos contestadores era, com efeito, "marcada" pelos nomes de Michel

novação da questão da filosofia, na relação inédita que ela se ponha a estabelecer de modo constlfutlz/o com seus "outros" para formar "blo-

cos de devir" que deslocam suas territorialidades de origem, e para experimentar as potências de uma nova política do saber que poderia inverter a imagem dogmática do pensamento que toma as coisas pelo "meio". Com uma política do ser, mais do que uma metafísica, uma política das ciências, mais do que uma epistemologia, uma política da sensação,mais do que uma estética, uma política do inconsciente, mais do que uma psicologia, uma micropolítica do desejo, em vez de uma psicanálise, uma política da língua e uma pragmática, mais do que uma

linguística dos signos, uma ética dos devires, mais do que uma filosofia política... e, portanto, associada a uma ecologia espec /afina das práflms3, toda uma política da filosofia, para "resistir ao presente" e "inventar novas possibilidades de vida Prova da capacidade de intervenção desse construtivismo sistemático, assistimos em seus domínios "tropicais" à multiplicação de grupos de estudo e de cursos informais reunindo um público heterogêneo cuja formação filosófica não era necessariamentea característica principal. E o mais surpreendente,nessecontexto, é que a maior parte dessesgrupos tenha com mais frequência se afastado de toda facilidade "pop-filosófica" para se empenhar no estudo dos textos mais

"especulativos"(Dláe7'onçae repetição-- Ldglca do senfldo) e dos mais "históricos" (SPlnom, Nlelzscbe, Lefb?zlz...) da obra de Deleuze. Não que se trate de propor um estudo desses textos que reproduza de um modo derivado (e inevitavelmentecego) as regras mais acadêmicas da história "departamental" da filosofia, mas de fazê-los funcionar segun-

Foucault e de Félix Guattari, muito presentenestepaís até seu desaparecimento em 1992. Sua prática teórica do inconscientefundada numa ecologia social marcou profundamente os meios "psi" em ruptura com o lacanismo. Disso se poderá encontrar mais de um eco na presente publicação.

3 Segundo a expressão de lsabelle Stengers, em uma série de obras inteiramente tramada a partir de uma "perplicação" muito acertada de determinadas idéias-forças de Qn'esl-ce q e /a pbí/osopbie?: CosmopolífiqKes, Paria e Le PlessisRobinson, La Découverte/Les Empêcheurs de pender en rond, 1996-1997; sobre a

ecologiaenquanto "ciência das multiplicidades", ver em particular l,a guerra des scfelzces.CosmoPo/fflqzíes1. Essa temática ecológica havia sido trabalhada no sentido de uma problematização processual de seus componentes por Félix Guattari cm Les frols éco/ogies,Paria, Galilée, 1989, e sobretudo Cbaosmose, Paras, Galilée,

1992, onde aparece a noção de "ecologia do virtual"

do o regime-plural de suas intensidades, munindo-se, através de leituras conexas, e segundo um processo mais em espiral do que linear, das ferramentas conceituais indispensáveis à travessia. É nos anos 80 que a situação começa a mudar num grande número de departamentos de filosofia que haviam até então ignorado solenemente a inventividade dos conceitos deleuzeanos. em razão de sua irredutibilidade à história disciplinar da filosofia. Iniciada por alguns professores mais velhos, a irrupção de uma nova geração vai precipitar a transformação. Para alguns desses jovens, que romperam com os mais "estabelecidos", em quem será denunciada -- nem sempre sem razão -- a formação dogmática e/ou provinciana, a imagem do "pensamento

68 " (isto é, Deleuze-Guattari

mais Foucault -- cujo

seminário sobre "A verdade e as formas jurídicas", proferido em 1973 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e logo publicado, havia marcado os espíritos de maneira definitivas representaráalgo da ordem de uma a/fera.zl/z,ac /faraó que impõe uma prática decididamente pós-nietzscheana e transdisciplinar à filosofia contemporânea. Para outros, com uma formação mais clássica, a abertura da questão pós-heideggeriana de uma #lsfórla /í/osó/íca da P/osoPa, não podendo mais se satisfazer com uma identificação destinal com os temas obrigatórios do fim da filosofia e do esquecimentodo ser, era cada vez menos separável de uma interrogação sobre as condições de esgotamento aporético da fenomenologia e da filosofia analítica. MerleauPonty e Wittgenstein, portanto, que contam no Brasil com notáveis intérpretes; mas também o Foucault de As Pa/az/rase as coisas e de Arqaeo/og/a do saber -- e certamente Deleuze, na medida em que soube inventar um novo tom, uma nova prática nczhistória da filosofia: quando um trabalho sobre um "autor" apenas tem valor enquanto torna possíveluma nova produção de experiência. Na origem desse movimento, preparando-o e anunciando-o em

níveisdiversos, dois livros que nada predispunham a qualquer aproximação. O primeiro, publicado em 1990 por Roberto Machado, sob o título De/auge e a /i/oso/ia, propõe-se a produzir a gênese da filosofia

deleuzeana enquanto pensamento da repetição das diferenças que se desenvolve a partir de uma leitura quase-a/zfropoÁãgica dos filósofos.4 4 Cf R. Machado, De/augee a /i/oso/ia, Rio de Janeiro, Graal, 1990; ver em particular o último capítulo, onde a técnica deleuzeanada co/agem é "rea

(O qualificativo pode ser meu, mas sabe-secomo a Antropofagia -que "capta, adapta e rapta" -- foi investida pelo modernista Oswald de Andrade como diferença criadora de uma certa identidade brasi\eira: em luta se]etit/a, antropofágica...

).

O segundo, editado em 1989, reproduz uma tese defendida na Universidade de São Paulo cerca de 25 anos antes pelo futuro tradutor de Qu'esf-ce q e /a pbf/osopbie?, Bento Prado Jr., sob o título "Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de Bergson". Documento inevitavelmente "datado", como nos adverteo autor (a Presença"é piedosa demais", dirá Deleuze), mas que teve o inestimável mérito de apresentar a passagem vitalista da fenomenologia à ontologia sob o signo de um "campo transcendental sem sujeito".5 Esse campo transcendental sobre o qual se abrirá "A imanência: uma vida...", para exprimir pela última vez o que há de "selvagem e de potente" numa tal corrente de consciência que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito, imanência absoluta de UMA

VIDA: "Ela é potência, beatitude completas [...] feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades..." Virtualidades, acontecimentos, singularidades são assim mobilizados por todo novo pensamento, que "traça no cérebro sulcos desconhecidos" Vale dizer que não se trata de restaurar o Crystal Palace de algum

valiada" a partir da análise(críticasdo Foz/caule em razão da excessivadiferença da repetição deleuzeana em relação ao modelo foucaultiano. Mas talvez o autor tenha privilegiado em demasia essa imagem da colagem (que Deleuze opõe à prática dos "trechos selecionados" numa conversa com J.-N. Vuarnet, publica da em Les /effres Érançaises, 5 de março de 1968), para coloca-la a serviço do que é de todo modo o sentido de sua demonstração: a saber, que a filosofia de Deveu

ze, "Mais do que anunciar um novo pensamento,1...) é uma suma de pensamen tos que relaciona por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença" (p. 225).

S B. Prado ]t., Presença e campo transcendente!. Consciência e negatiuidade

lzcz #/oso/ia de Bergson, Prefácio de M. Chauí, São Paulo, EDUSP, 1989; ver em par-

ticular o capítulo IV para a referência ao artigo de Deleuzeintitulado "La conception dela différence chez Bergson" [1956] -- já que O bergso/zfsmonão será publicado

senãodez anos mais tarde, ou seja, em data largamenteposterior à conclusãodo

trabalho (19ó41. Em compensação, será observada em mais de um lugar a importância da referência, ainda que não desenvolvida, a Empa leme et s b/ecfft/ifé.

tipo de espiritualismo,6 e que o vitalismo transcendente de que essa nova

imagem materia]-materia]ista]ma]ér]e/le-matéria/fsfe]do pensamento (eu arriscada

dizer "maférla/e")

é portadora

"implica

relações de for-

ça extremamente complexas", dependendo "de certas coordenadas" Cabe-nos também "ir aos lugares extremos, às horas extremas, onde vivem e se erguem as verdades mais altas, mais profundas" E Deleuze conclui com a evocação de uma nova paidéla em que "os lugares do pensamento são as zonas tropicais, povoadas pelo homem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral, metódico ou moderado"

/.

Não se deve acreditar, contudo, que basta superpor a topologia

das forças "que fazem do pensamento algo de ativo e de afirmativo a uma geografia ainda humana, demasiado humana (ainda que a partir de um lugar tão supostamente "exótico" quanto o Brasil)... Pois é ao leitor que cabe projetar seus eixos Norte-Sul, assim como ele foi levado a concebê-los na infinitude dos regimes possíveis8, traçando suas

próprias /ínbas froPícúis a partir das entradas múltiplas de um Cole-

tivo aberto.

Em sua realidade essencialmenteheterogênea, este livro propõe um certo número de protocolos de experiência a pa#fr do agefzciamelzfo, do e6eifo-DeleKze (e Guatlarf). Que alguns sejam portadores de

mutaçõesque inspirem novos usos (crüicos e c/z'nacos),que nenhum faça chorar em sua tumba "o mais filósofo dos filósofos" . . .: então este volume não será indigno da atualidade de um pensamento que não parou de nos "atingir pelas costas", como "uma série de rajadas e de sacudidas

Tradução de Heloisa B. S. Rocha 6 Como o faz Philip Goodchild numa obra recenteque se propõe a restau-

rar à exaustão a Transcendência avivada Vida enquanto "auto-consciência"(sel/-

awarelzessl:cr Ph. Goodchild, De/euzeand f#e quesfÍono/'pbf/osopby,Londres, Associated University Press, 1996; com meu estudo crítico, "Deleuze, vitalisme pratique", Les Éludes pbl/osopblques,n' 2, 1998. 7 G. Deleuze, Níerzsc&e el Za pbi/osop#le, Paras, PUF, 1962, pp. 125-6.

8 Deleuze ensinou-nos que é preciso conceber os dualismos como "o móvel que não cessamos de deslocar:

Primeira Parte

VARIAÇÕES FILOSÓFICAS

HOMO 7HNTUM O IMPESSOAL:UMA POLÍTICA René Schérer

E eleé o olho louco da quarta pessoado singular da qual ninguém fala e ele é a voz da quarta pessoa do singular pela qual ninguém fala e que todavia existe.

ILawrence Ferlinghettit)

O ARTIGO DA MORTE É preciso sempre retornar a estemaravilhoso texto em que tudo é dito, o último publicado por Gilles Deleuze, sob o título "A imanência: uma vida...". Voltar a estas linhas inspiradas, quase místicas, mas de um misticismo ateu, nas quais, a propósito de Oar mz/f a/ Érfend INosso amigo comum], de Dickens, da solicitude e do amor que cercam um moribundo em si mesmo pouco estimável, escreve-se: "Há um momento no qual o que se tem é apenas uma vida jogando com a morte.

A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoale no entanto singular, que produz um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividadee da objetividade do que acontece. 'lÍomo /anf m', do qual todos se compadecem e que atinge uma espéciede beatitude"z. Tudo é dito aí, já que os temas principais do pensamento de Deleuze nele estão condensados e, de certo modo, nesse resumo expressivo, nessa contração última, levados à suprema potência. Esses temas,

nós os conhecemos: a dispersão ou a elusão do sujeito, o "ego dissolvido" e o "eu rachado"; uma substituição, dessesujeito e mesmo de uma individualidade ainda por demais maciça, por demais "molar", de uma pessoa artificial, ou mesmo puramente alegórica, por "singularidades" moleculares, moventes ou "nâmades", que se destacam de l L. Ferlinghetti, Un fegard szzr/emonde, trad. francesa M. Beach e C. Pélieu

Paras, Bourgeois, 1970, "11 llÍe)",

p. lll.

2 G. Deleuze, "L'immanence: une vie.-", Pbflosopbfe n' 47, 199{, p. 5.

um "campo transcendental" cuja descoberta e construção são o primeiro ato do filósofo; o encontro de um "empirismo transcendental" que dispensa o "Eu penso" da tradição cartesiana, e mesmo toda consciência; "um campo transcendental impessoal", também chamado plano de imanência", ao qual esse último texto dá acesso de maneira ao mesmo tempo existencial e teórica, fazendo tocar com o dedo, de algum modo, a junção do mais impessoale do mais singular; animando, enfim, outras formulações: "As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais: o que Ferlinghetti chama a 'quarta pessoa do singular'. Longe de serem individuais ou pessoais, essas singularidades presidem à gênesedos indivíduos e das pessoas."3 Sobre essa linha fronteiriça, sobre essa crista ou essa extremidade em que "uma vida" é disputada à morte, aparecem, talvez melhor que em qualquer outra parte, os traços originais do pensamento deleuziano e seus desafios. É uma culminação que se verá com prazer estar muito próxima da intuição bergsoniana, ou do conhecimento que Espinosa nomeia "do terceiro gênero", aquele que corresponde ao conhecimento adequado da essênciadas coisas: "A vida de tal individualidade se apaga em proveito da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhumoutro, Essência singular, uma vida"4. Por certo, essa revelação intuitiva bruscamente introduzida pela proximidade da morte não deve levar a supor que a filosofia deveria se converter numa meditação sobre a morte, uma vez que, ao contrário, a morte só obtém seu sentido por revelar a vida. A morte não é nem um destino nem um fim, nem o motivo incessante da deploração de nossa finitude. Ela não é, porém, uma simples "facticidade" -- lingua-

gem de Sartre -- que nos seria totalmente exterior, alheia. Ela é um ponto limite, um daqueles pontos singulares que Deleuze gosta de opor aos "ordinários", inflexões do movimento, detonadores de "devires' É claro que a morte é, em certo sentido, o limite absoluto de toda experiência e de todo pensamento. Ela é mesmo o impensável, o inexperimentável, o inominável. Assim como ao sol -- conforme sabemos pela célebre máxima de La Rochefoucauld --, não podemos olha-la 3 G. Deleuze, l.ogiqzie d sons, Paras, Minuit, 1969, p. 124.

4 Idem, fbfd. Cf. B. Espinosa, Elica, 11,tese40, escólio2.

fixamente. E essa exterioridade a toda experiência possível, essenada, faz-se também fonte de quietude na filosofia epicurista, em Lucrécio: NI/ zglfKrmora está. Essas máximas, no entanto, conjuração dos terrores e consolação, destinam-se ao sujeito individual, a um ego, a uma pessoa.

A morte deleuziana -- se tal expressão é adequada -- desvia-se do impensável e do insustentável, bem como de todo pafbos trágico, graças ao paradoxo do acontecimentoe do impessoal;ela escapa à apreensãointerna do indivíduo, sem corresponder tampouco a uma deploração intersubjetiva. É enquanto impessoal que a morte acontece, que ela se desliga do sujeito que ela afeta, embora sendo indubitavelmente e unicamente "sua". É enquanto impessoal que ela exprime, qualifica, exemplifica todo acontecimento do qual se torna como

que o paradigma, por conta, justamente, desse desligamento impessoal, do sentido expresso. O impossível "eu morro" desloca-separa um "ele" e nele se metamorfoseia. É nesse "ele", nesse "morre-se" da morte que o moribundo entra. O momento, passagem ou transe da morte -- que se diz muito precisamente seu "artigo" * -- é sempre, relativamente ao ego que aí desmorona, um impessoal, infinitivo, ou artigo ou pronome que designa o acontecimento em sua independência e pureza. O "um", o "ele", e o Olz' * são as denotações de uma singularidade que valoriza toda a vida -- uma vida --, pré-individual, pré-subjetiva. "Nela, não morro, sou despossuído do poder de morrer, nela se morre, não se cessa e não se acaba de morrer", escreve Maurice Blanchot, que Deleuze cita

e retoma por sua conta' C) Olz, desacreditado, sujeito indefinido do anónimo, do banal, da famosa "banalidade cotidiana" oposta por Heidegger à autenticidade da existência, esse "ozz" que aparentemente não deveria ser senão o signo da opinião, do lugar-comum, é convertido, em razão de sua própria impessoalidade, em índice da mais alta potência de vida. s Lucrécio, Da lzalurem, 111,v. 842. * Jogo de palavras com a expressão francesa à /'arrfc/e de b mora, que sig nifica "na hora da morte". (N. do T.) ' ' Pronome de indeterminação do sujeito, em francês, equivalente a "se'

ou "a gente" em português. (N. do T.) 6 G. Deleuze, Logiq

ed

seis, /oc. cit.

Ele ocorre nà extremidade em que o acontecimento eclode, abre a região do sentido. Na iminência da morte, em sua hora, ele nos desvia da angústia, cuja carga -- o potencial de forças que ela representa se transforma inteiramente em evidência da singularidade insubstituível

e não perecível de wma vida. A imanência absoluta de uma vida. Essas expressões impessoais, o "ofz", o "ele", o "um", têm, em sentido forte, nietzschiano, um valor que se opõe à incerteza das determinações do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. Valem por se' rem os veículos do acontecimento em si mesmo, esse incorporal distinto

das coisas corporais e de suas conexões causais, embora indissociável delas, e que permite ao mesmo tempo nomeá-las e orienta-las: "Morre-se [O# meart]. O quanto esse o/z", escreve Deleuze, "difere da ba-

nalidade cotidiana. É o ozzdas singularidades impessoais e pré-individuais, o o/z do acontecimentopuro em que morre é como cboue. O esplendor do ozzé o do acontecimento mesmo ou o da quarta pessoa" '

O "on" é o operador de acontecimento, o revelador, ao mesmo tempo que o criador de seu sentido, o ponto em que se juntam, sem se confundirem, seu aspecto privado e seu aspecto coletivo, sua face ideal

e sua face encarnada. O que não implica a fusão do individual na generalidade vaga que, fazendo-o entrar no conjunto estatístico, o edulcora. É somente pelo acontecimento,

tendo acesso a ele -- "como a

morte, dupla, e impessoal em seu duplo"8 --, que as singularidades se liberam dos limites em que a pessoa individual as mantinha. A liberação que o acontecimento opera é da mesma ordem que a do fantasma que a Lóglcíz do sentido situa além do passivo e do ativo, enquanto efeito de superfície ou acontecimento, como "o movimento pelo qual o eu se abre à superfície e libera as singularidades acósmicas, impessoais e pré-individuais que ele aprisionava. Literalmente, ele os solta como esporos e explode nessa descarga"P. Acósmico

designa aqui o que, não estando submetido às regras de organização do cosmos, do mundo e do eu, pertenceainda ao caos. O impessoal mergulha nessecaos, nesse abismo; é a partir das forças que daí retira que ele traça, na superfície, linhas disseminadas de pontos singulares.

7 Identz, ibid.

8 Idem, ibid. 9 Idem, p. 249.

LINHAS DA VIDA Incessante refrão: os impessoais da língua constituem e fazem subsistir por si mesmo o sentido do acontecimento, o "simples acontecimento", ez/efzfnmlanfz/m. Uma expressãoda mesma ordem que pomo fanfam, própria para evidenciarsua íntima afinidade. As duas têm a mesma natureza, a mesma essência, o mesmo sentido. O ez/efzfm Za [um é o acontecimento propriamente dito, aquilo que não é nada mais que acontecimento,cujo "sujeito" -- sujeito gramatical, entenda-se-- é sempre um impessoal, e do qual a morte é paradigma. Pois é preciso abolir a parte demasiado subjetiva, demasiado vivida do que chamamos correntemente acontecimento, assim como sua parte demasiado objetiva, de encadeamento material de cau-

sas e efeitos nos quais se dissolve, para simplesmente nomeá-lo, exprimi-lo e fazê-lo viver, para atingir o acontecimentopuro. Abolir o demasiado humano, que não suporta senão o impessoal. Espinosa costuma utilizar a palavra latina q afe/zuspara a expressão da substância lou Natureza) por seus modos. Estes são a subs-

tância mesma enquanto expressa. O Ser enquanto acontecimento, enquanto modo ou singularidade. O fanfzlm, o "simplesmente" do ez/mfwm, do "simples acontecimento", é esse quase/z s e, do mesmo modo, o lanf m do pomo: expres-

são própria do acontecimento, da Natureza enquanto homem. Ou ainda: o pomo [anfam é "uma Vida" enquanto expressa. Essa expressão requer a abolição da pessoa, o impessoal, ou, como escreveu poeticamente Lawrence Ferlinghetti, uma "quarta pessoa [.-] pe]a qua] ninguém fa]a, da qual ninguém fala, e que todavia existe". Ou melhor, em linguagem própria a Deleuze, insiste ou consiste, mais e diferentemente do que o ser -- um "extra-ser",

como o acontecimento do qual ela se faz o sujeito.lO

Percebe-seclaramente qual proximidade se estabeleceentre Deleuzee Blanchot, citado por seu "morre-se", e que poderia também ser lembrado por sua teoria da escrita, que deve abolir as coisas antes de -- para -- nomeá-las, pois ela as nomeia a partir de sua "retirada

de cena", de sua ausência, "da ausência de tudo, isto é, de nada", segundo as fórmulas clássicas em A parte do /ogol l io Quanto à relação dessela/zl#mcom o a/zíma/fa/zf m de Avicena e o esse

fanf m de Duns Suor,cf. Ahmed Alami, "DeleuzeetAvicenne", Cbímêresn' 31, 1997,PP. 73-87. ii M. Blanchot, La pa7'td# Áe#,Paras,Gallimard, 1949, pp. 320-1.

Mas é preciso talvez dizer mais. A quarta pessoa, ou o uso que dela faz Deleuze para se encarregar de todo o plano de desdobramento do impessoal, vem preenchero vazio, a ausência, o aspecto puramente negativo da análise de Blanchot, as ressonâncias da força do negativo hegeliano ou heideggeriano. O impessoal escapa à dialética da negatividade. Ele elude a lógica do contraditório, bem como a lógica da união dos contrários, para adotar a do paradoxo, ou da admissão desse "impossível", motor do sentido, que é a quarta pessoa. Salto de uma partícula fora de sua órbita, que desencadeia o mecanis-

mo da criação. Reconhecemosno escritor", dizia Blanchot, "esse movimento que vai continuamente, e quase sem intermediário, do nada ao tudo. Vemos nele essa negação que não se satisfaz com a irrealidade na qual se move, pois ela quer se realizar e só o consegue negando algo de real, de mais real que as palavras, de mais verdadeiro que o indivíduo isolado do qual ela dispõe; assim ela não cessade lança-lo à vida do mundo e à existência pública, para leva-loa concebercomo, escrevendo,ele pode se tornar essa existência mesma"12. E Deleuze, fazendo eco a Blanchot, vem completa-lo, citando-o e nele se inspirando em suas observações sobre o "ele" na escrita de Kafka: "A literatura só se afirma descobrindo sob as pessoas aparentes a força de um impessoal que não

é de modo algum uma generalidade,mas uma singularidadeno mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança. Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enun-

ciação literária, a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos despoja do poder de dizer 'eu'""'. No mesmo texto de Cr#lca e c/z'Mica,uma observação preciosa ja nota número 6) indica que a literatura desmenteaqui a lingüística quando esta faz das duas primeiras pessoas, qualificadas de embreantes,

as condições da enunciação, ou seja, da determinação do sentido.

Sobre esse ponto ainda, o acontecimento puro -- o "simplesmen-

te" ou o "enquanto" do acontecimento e do pomo la/zfum -- é o critério; é ele que marca o desvio com relação à linguística, à qual não se deixa subjugar, dando ao mesmo tempo às palavras da língua, a suas diferençasmais finas, o mais alto valor. lz Idem, ibid. i3 G. Deleuze, Criffqne ef clínfq e, Paria, Minuit, 1993, p. 13.

IMPESSOAL NÂO UNIPESSOAL

Deleuze não dissimula -- referindo-se explicitamente a isto -que, em sua concepção do acontecimento puro incorporal, análogo da

produção material ou encarnação, eledesigna o que numa outra linguagem, fenomenológica, Husserl chamou o "noema", ou o "sentido noemático": aquele forro, ou camada de sentido ou de significação IHusserl emprega indistintamente um ou outro) que se intercala entre a palavra e a coisa, camada tão impalpável quanto o incorporam,que forma a designaçãoda coisa "como tal", sem a qual o signo verbal seria simples sinal ou parte da coisa. A palavra nomeia o objeto por intermédio de sua significação, ou, para voltar à linguagem estóicodeleuziana, de seu sentido de acontecimento; ela Ihe confere sentido enquanto acontecimento. As proposições husserlianas das /fzz/esflgações/ógicas não valem apenas para as significações fixas, ditas objetivas, mas também para as significações fluentes, ditas "ocasionais", as que estão ligadas particularmente aos pronomes pessoais, assim como aos advérbios de tempo e de lugar e às locuções verbais que deles dependem, como 'chove" [i/ P/ewf]. Ou, mais exatamente, o sentido ou significação dessas locuções e expressões é distinto da.circunstância. É ele que será chamado "noemático" nas .fdéfaspara ma Óe/romeno/ogia,posteriores às /nuesflgações,

onde o vocabulário

próprio

à fenomenologia

contem-

porânea é definitivamente fixado.i4 Essa camada do meio, esse "entre", entre as palavras e as coisas, esse "neutro", sentido expresso ou noemático, é o lugar do impessoalou o plano que o impessoal desdobra. Lugar, tópico do que absolutamente não é nem exterior nem interior, nem subjetivo nem objetivo, onde coisas e palavras se trocam.

Lugar de criação, do universoda linguagemem todas as suas potências, liberado de sua dependência em relação ao sujeito pessoal que é enunciado com ele e, mais do que isso, por ele é penetrado, atravessado. Do eu ocasional, imobilizado em seusvividos psíquicos, ele salta, graças ao operador e/e, para o plano dos enunciados que dizem

i4 E. Husserl, Rec#ercbes /ogfqnes2, primeira parte, PUF, 1 991 Ireedição) Investigação 1, S 26: "As flutuações do significar"; e Idées dfrecfrlces tour u/zepbé

noméno/ogle, Paria, Gallimard, 1950, em especial S 90: "0 sentido noemático"

o acontecimento puro. O que "nem permanece nem desaparece, e dura sem possibilidade de durar", segundo as belas fórmulas de Blanchot15 Os enunciados correndo sobre suas pegadas independentemente

do sujeito da enunciação, eis a herança herética de uma análise noemática da linguagem que Michel Foucault ao mesmo tempo radicaliza e desvia. Deleuze expõe limpidamentea lição no livro que dedicou a seu amigo: "De modo que em primeiro lugar tem-seum Fala-se [On pízrle], murmúrio anónimo no qual são dispostos locais para sujeitos possíveis: 'um grande burburinho incessante e desordenado do discur-

so'. Em vários momentos, Foucault invoca essegrande murmúrio no qual ele próprio desejase colocar"16. "Tornar-se imperceptível", escreverá Deleuze: primeiro gesto do escritor, primeiro passo em direção ao Ofz, em direção ao pomo. É preciso saber ler na fenomenologia, mas sem restringe-la abusivamente a uma egologia, o prólogo desse procedimento que confere toda a sua força ao impessoal deleuziano. Que sobretudo assegura sua

independência em relação às teses linguísticas e seu horizonte limitado: que Ihe permite alçar vâo ou seu sobrevoo. Com efeito, como escapar, senão pelo recurso ao sentido noemático, aos "embreantes" de sentido que a linguística coloca nos pronomes pessoais? A escolha não é lingüística, seguramente. Do ponto de vista lingiiístico, duas teses, como sabemos, se confrontam: e A primeira é a que compreende numa mesma e única classe o eu, o fu e o e/e, e propõe para esse último a denominação de /zlPessoal,

estendida ao on, levando em conta suas possibilidades de substituição por todas as outras pessoas (on/se).

+ A segunda, mais antiga e clássica, a de Émile Benveniste, baseada numa distinção radical entre as duas únicas pessoas subjetivas, presentesna interlocução, o eu e o fzí, e a "não-pessoa" do e/ee do o/z, de significação objetiva.: ' Se é verdade que, aparentemente, Deleuze adora a tese da não-

pessoa, também não se pode recusar a seu ele aquela capacidade de 15M. Blanchot, La pari du /ê#, p. 30.

ló G. Deleuze, Foacízall, Paris, Minuit, 1986, p. 62. 17É. Benveniste, Proa/àmes de /ingalsffque généra/e, Paras, Gallimard, 1 966: Structure des relations de personnes dons les verbes" IEstrutura das relações de pessoas nos verbos] [1946], p. 230; G. Moinet, Le pro/zom penso/zne/#.zrzçais -- Essas

depsycbo-sysléniatlq e blsforfque, Paras,Klincksieck, 1965, em especialpp. ll 0-58.

substituição que o torna não um "unipessoal", mas uma "quarta pessoa". Ao evitar-se a pessoa nem por isso se entra no domínio das significações fixas da objetividade. Não, a escolha não é lingüística; ele pratica um desvio, uma distância. Entre as tesespropostas, segueexatamente uma "linha de fuga" em que vida e escrita, por intermédio do impessoal, se fazem indiscerníveis uma da outra. ESPLENDOR DO ON

Resumamos: e O primeiro ato, a primeira face apresentada pelo impessoal era seu aparecimento no artigo (ou pronome) da morte. O impessoal enquanto absoluto revelador do acontecimento, da acontecimentalidade do homem, pomo, on, no plano de imanência de uma vida, enquanto sua expressão. Nafwra síz/et'ila q ale/zz/spomo Zanf m. A primeira potência. e A segunda potência (potência que é, ao mesmo tempo, virtualidade e poder, aquela Pofenz que Hegel menciona com frequência em seus primeiros escritos) é o fluxo das palavras criadoras de universos inexistentes, mas insistentes, fatores integrantes da realidade humana. E essasduas potênciasimplicam uma lógica paradoxal: e a primeira é a revelaçãode "uma vida" pela morte; ' a segunda é que a mais original e autêntica expressão de "si", a mais singular, só se conquista pelo impessoal. A primeira potência conduz a um plano de imanência, a segunda constrói e desenvolve um plano de consistência que o povoa de personagens e de figuras. Que, precisamente, suscita "um povo" e se dirige a eleiõ

Fora do registro dos exemplos fornecidos pelo próprio Deleuze e que formam seu c07Pus, encontraremos uma justificação muito ilustrativa das propriedades da supressão do sujeito da enunciação no poeta alemão Georg Trakl, que pertence àquele expressionismo contemporâneo que Deleuze adotou como traço marcante de sua estética. Pois, assim como não há duas estéticas, a da sensação no conhecimento e a da sensibilidade na arte, tampouco há dois expressionismos, e a expressão que

é imanente à vida é aquela que dá à arte seu valor e seu estilo. Assim, o artista não se propõe outro objetivo, além de conquistar a expressão. i8 G. Deleuze, Crffiq e ef c/ilzlqzíe,p. 15

Tal é oassunto de uma carta de 191 1 em que Trakl, evocando as etapas do trabalho de um de seus poemas, "0 Crepúsculo de Tempestade", escreve: "Eis aqui o poema modificado. Ele é bem melhor do que

a primeira versão, na medida em que doravante é impessoal [u/ZPersónnlfcb] e completo a ponto de explodir de movimentos e de visões". Em sua introdução a esse texto, Georges Bloess, que chamou minha atenção para ele, encontra esta fórmula lapidar: "Eu suprimi o eu"19 Ela também poderia servir para resumir Deleuze, assim como ele próprio soube encontrar as fórmulas poéticasque resumem a filosofia de Kant. Basta aproximar das "visões" de Trakl, obtidas com a ajuda do impessoal, estas proposições deleuzianas: "A fabulação não consiste em imaginar nem em proletar um eu. Ela antes atinge essas visões. ela se eleva até esses devires nascentes"zu. O impessoal faz passar do relato subjetivo, da anedota, da lembrança, do "muito próximo", ao acontecimentosegundoseu sentido e seu brilho próprios: esplendor do ozz,do e/e. O poema de Trakl é consagrado ao acontecimentoatmosférico em seu esplendorcristalino, no qual ele se separa das circunstâncias e atinge o imperecível. "Ó horas rubras do crepúsculo... O espelhodo lago se rompe", inicia o "Crepúsculo de Tempestade'

Esse espelho que se rompe é também a fenda do "/ac dwr oaó/ié que ba/zfe sois /e g]z/re [...]" [lago duro esquecido que assombra sob o gelo] de Mallarmé; e esse crepúsculo, "/e ulerge, /e z/íuace ef le be/ au-

jourd'bzzí" [o virgem, o vivaz e o belohoje] levado à eternidadedo acontecimentopuro, euent m fanfam. Essa transformação alquímica operada pelo impessoal ou pelo abandono da subjetividade será ainda confirmada pela aproximação que se impõe entre o soneto de Mallarmé e "0 Cisne"

[],e Cygzze], de Baudelaire, do qual ele é a réplica: passa-

gem da lembrança repleta de subjetividade romântica à expressão da visão em sua pureza, em sua consistência quase mineral. Devir-mineral do Cisne, metamorfosedo "Sur /ese/ rabo e x fraífzait son bZanc p/umage" [No chão irregu]ar arrastava sua branca p]umagem] em "Les fransPcz7efzls g/aclers des z/oZsqui n 'onf pas Óai" [As transparentes ge[eiras dos vôos que não fugiram]. 19G. Trakl, Poàmes ma/ears, trad. francesa J. Legrand, apresentado por A. Finck, Paris, Aubier, 1993, p. ] 9. Cf. G. Bloess, "Voix et regard intérieurs", mémoire

d'habilitation, Universidade de Paria Vlll, inédito. zo G. Deleuze, Crfffqzfe ef cllfzique, p. 13.

Notação evidentementefurtiva, simples esboço que não interessa, para o presente propósito, levar adiante, como também não seria apropriado rejeitar, em nome do expressionismoimpessoalde Mallarmé, o igualmente admirável "Cisne" de Baudelaire; é suficiente indicar de que maneira o impessoal desdobra, em suas linhas, o que permanecia encoberto nas dobras secretas de uma experiência interior.

;Parascba/zge/ maisrfendonsma mé/anca/fe/ n'a bougé[...]" [Paris

muda! mas nada em minha melancolia/mudou], oposto a "l;anfõme q#'à ce /íeu son p 7 éc/af assigne" [Fantasma que nesse ]ugar seu puro

brilho designa].

O expressionismo estende a linha abstrata do acontecimento puro.

É ela que transmuta a lembrança em visão. Essa transmutação orienta toda escrita que não se contenta em comunicar uma experiência pessoal-- ou melhor, em informar sobre ela -- mas quer ser recebida, despertar emoções e imagens em outrem, dirigir-se àquela parte de outrem que repercute. Esplendor do on, já que a forma pessoal é incapaz de atingir por si mesma a singular experiência que ela busca e de comunica-la a outrem. Somenteo impessoal do on ou do e/e faz cair o muro das inferioridades, abre o repisar indefinido e monótono do "eu penso, eu sou" a outras formas de experiências que não são nem do sujeito solitário, nem de uma intersubjetividade da mesma ordem, já que dele procede.

O on é a marca da passagem, da entrada no movimento, o índice do agendamento coletivo; ele dá consistência ao que se passa entre dois (ou vários) e, contra o "eu penso", dá consistência a "um pas-

seio" como o de Mrs. Dalloway em Bond Street,descritopor Virginia Woolf em termos que denotam, justamente, o impessoal e a imperceptibilidade: "Tinha o sentimento muito bizarro de ser invisível: não vista, não conhecida; o problema agora não era mais se casar, ter filhos, estava-se lá, andando pela Bond Street, em meio aos transeuntes, numa espantosa procissão bastante solene, e era-se Mrs. Dalloway;

não mais Clarissa, nem isso, era-se Mrs. Richard Dalloway"21 Que o "on" da tradução francesa transponha tbls being, isso não altera em nada, pois esse último é igualmenteimpessoal em sua expressão e suprime o sujeito substituindo-o pela procissão dos transeun-

tes, essa entrada no "sujeito" moderno, o homem das multidões.

2i V. Woolf, Mrs. Da/loü,a)r, trad. francesa e notas de M .C. Pasquier, Pa

ris, Folio Gallimard, 1994, p. 71.

Mas, ie buscarmos o orz em todo o esplendor de sua sonoridade própria, em francês, eis então o de Rimbaud: "0/z n'est pas série x quand on a dix-set)t ansIEt qu' an a des tilleuls ueTts sur ta pTomenade" ,

que é evidentemente insubstituível pelo unipessoal. Não se trata nem de um eu nem de um nós, mas sim do impessoal do "qualquer", do simplesmente-- fafztum-- que faz erguer-se, triunfante, dirigindo-se a ele, o povo jovem, amoroso, na quarta pessoa, "da qual ninguém fala/ pela qual ninguém fala/ e que todavia existe". DO ON AO HUMANO

Não é fácil, porém,desembaraçar-se do Ofz/se ou do ozz/ezz, em outros termos, da generalização pronominal. Esta renasce a todo instante como uma objeção prévia ao emprego estritamente impessoal do

on, ao qual se prende toda a teoria deleuziana. O que é que permite estendero on para o lado do impessoal? A questão não é puramente linguística, ou linguística em sentido estrito. Ela ultrapassa a categoria do pronome para dizer respeitoao homem. Homo, om, on; ou À4anne man. Não setrata, no entanto, de etimologia, mas de sentido implicado. A que concerne ou a quem concerne o impessoal do on, a que homem, a que relações, a que sociedadehumana? E, nessedomínio, a objeção pronominal pode servir de critério, fazer de certo modo sobressaira confraria a originalidade de Deleuze, permitir precisar e orientar as implicações, à primeira vista despercebidas, do impessoal. Encontraremos a mais clara, a mais pertinente formulação da objeção em Fernand Deligny. Objeção tanto mais interessante na medida em que, em O crer e o temer [Le croire et le c7aí/zdre],ao fazer do On -- classificado na categoria da "ideologia" -- o veículo da ilusão subjetiva, ele o faz a partir de posições comuns a Deleuze e Guattari: crítica do sujeito, adoção do plano de consistência, liberação das singularidades próprias dos autistas com os quais ele vive, privados de Si, sem serem, no entanto, menos individuadoszz. A importância da prática e da teorização próprias de Deligny é, aliás, reconhecidapor Deleuze, que leva em consideração quando, a propósito de "0 que as crianças dizem" e para criticar a redução abu22F. Deligny, Le chofreef /ecrallzdre,com a colaboração de lsaac Joseph, Paria, Stock, 1978, em especial pp. 120 ss., e o texto de lsaac Joseph sobre Deligny,

p. 235 até o final.

siva da interpretação psicanalítica a uma "personologia" parental, ele retoma o solitário de Monoblet e a idéia de uma cartografia em que setraça com o próprio "meio"23 o processo de subjetivação do autista. A rejeição do On, tal como aparece em O crer e o temer, deve, portanto, ser tomada não como uma crítica negativa, mas antes como uma radicalização da tese deleuzianae guattariana. O autista -- que ele inclusive prefere não chamar de "criança" --, "o indivíduo Janmari, designado por esse simples vocábulo, sendo estranho a si, o é também

ao on. Ele suporta no entanto as designaçõesdo "ele" e do "comum", ou mesmo do "nós", quando se trata da relação que mantémcom o meio das coisas ou das pessoas entre as quais vive. Se seu plano de con-

sistênciaelimina o o/z/se,ele gravita em torno do e/e e do comum. A expressão que melhor Ihe convém é: esse garoto afZ4 Pontos de encontro, pontos de divergência, quando o on é rechaçado e o aítoma seu lugar. Não se poderá evitar evocar, mas sem razão, a oposição heideggeriana entre o ardo "ser-aí" e o on da banalidade. O arde Deligny não diz respeito a uma "diferença ontológica", é o aí das coisas, do meio das coisas. Se ele implica um "ser-com", não é à maneira

do À4if-sem heideggeriano,

seria antes como

alusão àque-

le plano de fundo de um "nós" primordial, uma Wfrbeíl que Binswanger introduziu em sua análise existencial.

Não, não se deve compreender Deligny de maneira heideggeriana.

Seuaíé, deleuzianamente, de superfície. Ele participa da crítica à psicanálise edipianizante que por toda parte aloja pessoas no coração da criança, mesmo daquela que é desprovida de sujeito e de pessoa: "Nin-

guém está aí quando essegaroto do Serret brinca com a louça: nem Édipo, nem Narciso; 'ecceidades', diria Deleuze, que apenas manifestam sua presença, e cuja presença é sempre manifesta. Sem segredo, ou, como se diz, a descoberto"u E eis por que o /zós, "do ponto de ver" dessa criança, passa também "aí", na superfície, substituindo a aliança remota e abstrata dos sujeitos unidos, no mundo, pelo o/z: "Resta um nós determinado do ponto de ver de indivíduos para os quais o Ozz não existe"26 23G. Deleuze, Criffqzíe ef c/i iqae, p. 81.

24F. Deligny, l,e chofreel /ecraf odre,pp. 118, 206. 25F. Deligny, l.e croíre el /eoral odreItexto de lsaac Joseph), p. 259 zó Idem, p. 122.

O paradoxo de Deligny: a personalização do on, a impersonalização do /zós. Esse paradoxo que parece contradizer literalmente o uso deleuziano do "on" permite também precisar seu sentido e leválo mais longe do que se percebe. Pois o impessoal do on é justamente o que o /zósde Deligny quer dizer, em sua impessoal aliança com o aí do garoto de puras ecceidades: o simplesmentehumano segundo uma natureza que se pode qualificar de primordial ou primeira; assim como um "Nós" dito "primordial para distingui-lo das pessoas conjugadas ou da consciência coletiva"Z/ Deligny se engana quando crê que o o/zé a pessoa (ou as pessoas) da ideologia e da opinião, mas tem razão quando vincula o impessoal à singularidade puramente humana de uma "natureza" da qual se afastam as filosofias da consciência e da linguagem: "Tudo é feito para ridicularizar esse termo /zafureza que se associa com os passarinhos. Tal é a crença reinante. Ora, vocês sabem que, descrente, procuro sê-lo [...] Ê quase uma posição política alinhar-se com as palavras denegridas"zB. Aquém da palavra, o autista, o que se recusa a falar, é -- raptemos uma expressãode O qzleé a P/osoP.z? -- "o caos que suscita a visão"29 do homem, do homem simplesmente.Não que ele mesmo seja

um caos. Ele só o é relativamenteà ordem da linguagem,mas, diz

Deligny, ele tem seus "referenciais", seu "ponto de ver" singular, estranhos aos pontos tanto do sujeito como do intersubjetivo e que permitem (reencontramos aqui Deleuzel descobrir nele "o indivíduo primordial" segundo a Natureza30. E difícil, é verdade, manejar a palavra, por implicar uma certa ordem preestabelecida segundo leis imutáveis e como que um capital substancialque seria "o homem", o homem por natureza, pomo na/ura. "Natureza humana" pode ser também a legitimaçãode todos os conservantismos morais e sociais. Mas é preciso pensar a natureza como dinamismo, potência, /zafzlranse não simplesmente/zafzzafa;

27Idem Itexto de lsaac Josephl, p. 260. 28 idem, p. 164. 29 G. Deleuze e F. Guattari,

1991,P. 192.

30 G. Deleuze, Criffq

Qa'esf-ce qHe /a pbí/osopbfe?,

e et c//lzíqzfe, p. 95.

Pauis

Minuit

devir e vida dos quais o homem é a expressão imanente. Nesse sentido, há de fato uma natureza humana, um pomo natural, lcznfum, quan-

do a linguagem falta ou quando um vazio se abre nele e a gente -- O/z -- se mantém no limite, à beira da fenda, do abismo. O que se recusa a falar, o que em sua ausência de fala revela a si mesmo o simplesmente humano, cumpre então exatamente a função que Deleuze reserva às variações extremas na língua e às experiências limites. Ê o que se pode ler no posfácio ao Ba fleby de Melville, esse escriturário ou "escritor" cuja fórmula espantosadeixa atordoado todo interlocutor, corta toda ligação humana: "Eu prefiro não"31 / prever nof fo suprime, em sentido próprio, aquele que a profere. Ela "devasta", escreveDeleuze, "a linguagem", ela "desatavaos aros de fala" e, assim, produz na linguagem "um vazio" que "arruína todos os seus pressupostos". Isto é, a comunicação a outrem. Bartleby, por certo, não é alguém que se recusa a falar. Ele se acha

no limite do autismo, mais além de sua borda, perto apenas o suficiente para situar o ponto em que se encontra. Suficientementena superfície para que seja mantida a passagem entre o mundo da comunicação humana normal, feito de boas intençõese de regras de conduta, e a escandalosa, humana, singularidade. Por qm lado, o homem do "demasiado humano", por outro, o singular, o original, com quem é impossívelconviver ou viver. E ele, porém, o pomo fanfum que torna visível o homem livre do peso das normas e das obrigações do comportamento social, bem como de tudo o que o "estrutura" enquanto pessoa -- a começar pela esmagadora paternidade (pérémêre [paiemãe], como escreve De]igny). Ponto de encontro cntre o homem da linguagem (Deleuze) e o do mutismo (Deligny-Janmari), entre o homem das velocidades e o da lentidão l"o imutável" de Delignyl, entre o do acontecimento leve/zfzím

[anfum) e o da natureza. Encontro em torno do homem desprovido de sujeito, "primordial" em razão da ausência nele de "propriedades", de "qualidades".

Convergência em torno daqueles "originais"

que

Deleuze chegará a qualificar de "seres da Natureza primeira", numa alusão muito espinosana3z

3i Idem, p. 95. 32IdeKr, p. 106

POLhiCA DA NÃ0-PESSOA Deleuze, com base na descoberta do homem fora das qualidades

e fora da pessoa, não propõe, porém, um "retorno à natureza". O guia, a bússola orientadora, é aqui o que ele escreveu a propósito de D. H. Lawrence, que, como se sabe, é para ele um dos grandes pensadores filosóficos de nosso tempo. "Não há retorno à natureza, há apenas um problema político da alma coletiva, as conexões de que uma sociedade é capaz, os fluxos que ela suporta, inventa, deixa ou faz passar."33 Assim a "natureza

primeira"

ou "o homem primordial"

adqui-

re sentido e valor por ser sobre sua base que se inventam as formas de

uma sociedadenova. Virtude do impessoalquc engendraa vida e a faz se mexer, precisamenteporque a vida, como é dito em Diá/egos, não é algo de pessoal"i4. O leitor familiarizado com Charles Fourier compreenderáfacilmente essas passagens paradoxais do mais singular ao coletivo, ou melhor, ao societário. Com efeito, é a partir da singularidade nos infini-

tesimais, uma vez disperso o sujeito, que o "uniteísmo" pode efetuar suas concordâncias. Reunidos em Crüíc.z e c/Mica, formando o cerne e dando o tom a essa obra, os artigos consagradosa Melville, a Walt Whitman, assim como aos dois Lawrence, precisam a função altamente"harmonizante" (em linguagem fourierianal do impessoal. Ela consiste, ao livrar-nos da sujeição paterna, em abrir o caminho a uma sociedade de irmãos, ou em favorecer no "aqui e agora" uma "camaradagem", ambas diferentes da caridade cristã e da filantropia humanista.35 Entre o homem comum, que parece reduzido a uma originalidade singular que poderia ser tomada como uma dobra na solidão, e a abertura, pelos laços fraternos, à alma coletiva, há uma corrente contínua. São dois pólos indispensáveisà criação e à circulação dos fluxos intensos. "Em um mesmo mundo", escreve Deleuze a propósito de Kleist ou de Melville, "alternam-se os processos estacionários e con-

gelados e os procedimentos de louca velocidade"36. 33 Idem, p. 70.

34G. Deleuzee C. Parnet, Dia/aguas, Paris, Flammarion, 1977 (nova edi ção aumentada 199ól, p. 12.

3s G. Deleuze, Críflque ef c/iníqua, caps. VI, Vlll, XI, XIIV. 3óIdem, p. 103.

Com efeito -- e é esse, certamente, o segredo "a descoberto" do

impessoal --, de um lado está a alma, a vida, enquanto a morte está do lado do eu: "Parar de se pensar como um eu para se viver como um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, fora de si e em si"3/

último paradoxo, enfim: se o pomo fanfz/m diz o homem, diz também, nesseacesso aberto aos fluxos da vida, quando não o humano, seguramenteo sobre-bumzzno.Não é ilícito encontrar a expressão disso, mesmo ao preço de uma contradição i/z ad7ecfo, no sobrehumano de Nietzsche, exaltação do que o homem contém de potências.

Georges-Arthur Goldschmidt assim pensou, em seu belo prefácio a Assim Áalaz,aZarafusfrzz: "Reencontrar, ou melhor, constituir esse estado ao mesmo tempo original e posterior (a natureza é o que nós fomos, é o que queremos voltar a ser), é isso que Nietzsche quis dizer por meio das idéias de sobre-humano e de eterno retorno". Ou, certamente mais de acordo com o que Deleuze expõe a propósito de Mel-

ville e de Lawrence: "0 sobre-humano é mais uma alegoria que um tipo: ele não é ninguém e ninguém jamais será ele. Ele representaa libertação de todas as coerções: eu sou por ser nada"38 Não é mais o "demasiado humano".que acumula em si e sobre si todas as estratificações alienantes, mas o ser aberto a todos os devires=

criança, mulher, animal, vegetal, mineral e assim, finalmente,Natureza, como se vê com Whitman. Uma "política do impessoal" é a que dá consistênciae impulso a essesdevircs. Para além, também do quadro personalista ou personalizante da PÓ/is, ela se dirige às "etnias" e, mais ainda, àquele "quinto

mundo nacionalitário" de que falava Félix Guattari, o dos sem-pátria, dos sem-moradia, dos sem existência cidadã39. Uma política que vem reforçar -- ou que vem animar -- o "sonho revolucionário" de fraternidade e camaradagem à Whitman, "essa camaradagem que implica

um encontrocom o Fora, um caminhar das almas ao ar livre, pela estrada aberta"qu

37Idem, p. 68.

38F. Nietzsche,Ainsi par/affZaralbouslra, trad., apres e com. por G. A Goldschmidt,Paras,Livre de Poche,1983,p. XI. 39C. Auzias, "Ethnie vs Polis", Cblmêres, n' 25, primavera de 1995, p. 75 40 G. Deleuze, Crlfiq

e ef cl/zzlqne, p. 80.

Uma política que não hesitaríamos em qualificar -- se a palavra não repugnasse a Deleuze -- de utópica, não para diminuir sua eficácia, mas, ao contrário, para aumentar seu valor. Pois ela designa exatamente esse lugar ainda não atualizado, o "aqui e agora" de um Erembo/z l/zom-berel4i do qual a escrita traça sempre um mapa e atravessa com suas linhas. Linhas de fuga pelas quais se escapa da "vergonha de ser um homem" para exprimir o homem simplesmente,pomo fanf

z: Ecce bon7zo.

Tradução de Paulo Nunes

41 G. Deleuze e F. Guattari, Qu'est-ce qz/e /czpbí/osopbiei, p. 96.

DELEUZE E A ANOMALIA METAFÍSICA Arnaud Villani

Procuramos determinar um campo transcendental

impessoal e pré-individual que não se assemelha aos campos empíricos correspondentes, nem se confunde com uma

profundidade indiferenciada. IGilles Deleuze, Lógica do semfido)

Pode-se dizer, em princípio, que a filosofia de Deleuze é uma metafísica cujos traços fundamentais, extraídos ao fim de uma leitura completa, necessariamentepaciente, e que se proíbe qualquer anexação prematura, não têm, de fato, ambiguidade alguma: é uma "metafísica das multiplicidades e das singularidades", que permite a emergência do novo e requer, entre outras coisas, uma univocidade do ser cujo sentido será necessárioprecisar; é uma "filosofia concreta", que não receia nada tanto quanto o conceito no sentido clássico do ter-

mo; é uma "filosofia da vida", que não receianada tanto quantoos

ressentimentos e os hinos à morte. Para prevenir contra-sensos a respeito dessas leituras, é necessárioentrar nos detalhes íntimos, ir até uma visão micrológica deleuzianaem que, através do delicado filete diáfano de uma empreitadatanto para acompanhar como para compreender, e à margem de qualquer ressurgimento da tradicional "imagem do pensamento", vem se assentar todo o real em seu pulular. Deleuze confessava: "Sinto-me puro metafísico". Difere/zça e re-

peflção, Á doba'a:Leibnfz e o Barroco, duas obras que enquadram, por assim dizer, a obra, o provam a todo momento. Mas essa metafísica é enigmática: ela evoca a univocidade do ser, o transcendente e o transcendental, porém, não pára de se reccntrar sobre uma imanência que permanece firme em seu princípio. Para o leitor, seja a leitura bem recente ou muito antiga, Deleuze é sempre um labirinto. A leitura muito recente o toma por uma "máquina de desnortear", em seguida é antes

concebido como "máquina de orientar". Ê com a condição de dispor segmentosnecessários para reconstruir por si mesmo o princípio desse labirinto, a fim de nele se orientar e orientar o leitor. Dois exemplos

simples: acreditar que a univocidade do ser excluiria a teoria das multiplicidades e das singularidades (bem mais central, de fato, na obra) é construir seu próprio circuito, o que é perfeitamente legítimo, mas não coincide, de modo algum, com o labirinto deleuziano. Este, na verdade, não apenas sabe manter juntas essas duas teses,como também não suporta que sejam dissociadas sem perder todo sentido, demonstrando assim na própria obra a potênciada segundasíntesedisjuntiva. O segundo exemplo concerne o jogo da profundidade e da superfície. Acre-

ditar que a superfície é apenas superficial, ou confundir as Idéias com a profundidade é, de imediato, ter perdido toda chance de encontrar em algum lugar um filósofo chamado Deleuze. Bem se vê, o maior risco que Deleuze faz correr cm sua própria interpretação (além das ingenui-

dades anarco-desejantes) diz respeito ao estatuto do liminar: estatuto do conceito, da univocidade, da superfície, dos simulacros, das sínteses.

Uma dificuldade suplementarvem da própria evolução do pensamento nessa obra. É verdade dizer, em certo sentido, que todo Deleuze já está em Difere zça e aferição, mas à maneira de um germe, de um ovo intenso. Aqui realizam-se dobras inconcebíveis, apropriadas para romper qualquer outra filosofia que não seja larvar, reversões de 180 graus que dão a essestextos uma feição típica, um pouco monstruosa lo monstro é o que vai além de suas determinações, movese em si incessantemente) "fresquinha", saída do ovo, como um embrião de tartaruga que acaba de conseguir a dobra em ângulo reto de suas vértebras cervicais. Mas é também verdadeiro dizer que, apesar dessa evolução interna, da qual salientaremos dois aspectos, toda a teoria já está inteiramentedesenvolvida em Difere?zçae rePeffção. Isso significaria que viragem do pensamento, progresso e aprofundamento são apenas aparentes?

Considere-se a viragem efetuada sobre a idéia do simulacro. Diferença e repef/çãofaz do simulacro um sistema no qual o diferente se relaciona com o diferente pela própria diferença IOR, 335) '. Tal siste-

ma junta o SPaflzzm,as séries disparatadas, o precursor sombrio, as ressonâncias e movimentos forçados, os sujeitos larvares: como dizer melhor seu lugar decisivo na obra? Continua-se a encontrar essa valorização do simulacro nos apêndicesda l.ógica do sezzfido.Todavia, o colorido é aqui nietzschiano, polêmico, voltado para a reversão do platonismo. O próprio texto de Lóg/cózdo sezzffdoé mais amt)íguo. Não * Di/7ére zce ef rí$éffríon,

Paria, PUF, 1 968, p. 335 (doravante

DR).

(N. do E.)

se poderia, em um primeiro momento, dissociar realmente superfície e simulacro. Mas no fim, e sobretudo na 34' série, as coisas parecem mudar. O simulacro torna-se o objeto profundo, o abismo corporal, a organização primária, totalmente distinta da superfície metafísica, dos acontecimentose do infinitivo incorporal li,S, 257)* . Nesse sentido, o simulacro não faz mais que imitar a fantasia, o primeiro representando o risco de uma queda descstruturante no corpo, o segundo, a chance

de uma construção da superfície metafísica. Entre essesdois extremos se sobrepõema altura lo ídolos e a superfícieparcial (a imagem) jtS, 2S21.Daí resulta que, no .4nf/-Édlpo, simulacro vai se tornar um termo raro, evanescente,sempre aproximado de seu sentido de simulação: simulacrosdas pessoasprivadas (AE, 3 15)* *, simulacro de Êdipo, no qual se vê que simulacro perdeu toda chance de figurar o essencial(AE, 319).

Antes de tentar compreender o que se passou, evoquemos rapé' damente um segundo deslocamento sintomático. Ele diz respeito à impor-

tância e ao lugar de Lewis Carroll. Fundamental no início de Lógica do senado, eleperde subitamente importância desde seu primeiro confronto com Artaud (l,S, 102-3). "Jabberwocky é obra de um aproveitador que quis saciar-se intelectualmente, ele, farto de uma refeição bem ser vida, saciar-se com a dor de outrem... É a obra de um homem que comia bem, e isso se sente em sua escritura." Deleuze comenta: Carroll é

o pequeno perverso da literatura. A reversão de situação será tal que no fim da 13' série, Deleuze poderá dizer: "para todo Carroll, não daríamos uma página de Antonin Artaud" . Mestre das superfícies e agrimensor da lógica do sentido, Carroll cederá terreno para a profundidade do corpo vital e enfermo e para a aventura nâmade de Artaud, de modo que o Alzfi-Édito poderá notar: "Carroll ou o covarde das Belas Letras!". Inversamente, Artaud ganha uma figura gloriosa e durável de personagem conceitual, incontornável, bastião de uma indissociabilidade

entre o real mais encarnado, e a aventura mais ideal, a que experimenta a virgindade de um deserto. Novamente, o que aconteceu? Acreditamos que não se trata nem de recuos, nem de renegações, tampouco de hesitação sobre o plano de conjunto. Se o simulacro ou Lewis Carroll, ligados evidentemente pela necessária emergência da su-

perfície, estão a princípio tão em vista, e terminam apagados, evanescentes, é porque a própria idéia de superfície, por demais ambígua, * Logíqz/ed sons, Paras,Minuit, 1969, p. 257 (doravante i.SI. (N. do E.l * * L'afzff-(Edlpe,

Pauis, Minuit,

1973, p. 315 (doravante

.4E).

(N. do E.)

sobredeterminada pela exigência de uma reversão do platonismo e pela

armadilha de uma concepção por demais estruturalista das séries,cede lugar, progressivamente, à idéia de plano de imanência ou de consistên-

cia. Carroll ou o simulacrosão a superfície,mas não lastreadacom aquilo que preserva essa superfície transcendental ou metafísica de fugir

para "Coucouville-les nuées": o lastro de seu fundo temeroso, as máquinas do desejo e seu reboliço, o passeio esquizofrênico em que se mo-

vem o enfermo e o maravilhoso do homem. Artaud faz a superfícievirar para o que ela realmente é: plano de imanência, pela intercessão do corPO sem órgãos. Poderíamos, portanto, reconstituir uma gêneseideal do deleuzianismo em seus três primeiros momentos. DIÁe7ençae repetição corresponde a uma etapa filosófica no sentido mais clássico, de uma densidade quase insustentável, considerada no momento em que a teoria, orgulhosa de suas idéias novas, "solta seus esporos". O momento determinante passa a ser aquele em que Deleuze descobre uma segunda síntese na qual, saltando o instante presente, o futuro c o passado se distendemindefinidamente,criando a "forma pura do tempo", chave da univocidade do ser, de seu "sobrevoo absoluto" indiferente, de sua diferencialidade.No segundomomento, l,ógica do se/zf/do(obra sobre a qual Deleuze mais tarde manifestou reticências, achando, notadamente, tal tentativa dependente demais do estruturalismo) consagra,

a um só tempo, o compartimento vazio e já desloca seu sentido para a "instância paradoxal" ou disparate. Comer-falar é ainda Carroll, mas vai conduzir rapidamente a Artaud. O compartimento vazio está prestes

a migrar do vazio ao pleno, a superfície não se determina mais contra a altura e a profundidade, mas leva consigo uma parte do profundo e introduz a anomalia metafísica de um incorporal que não fala a não ser dos corpos, simplesmenteporque, Idéia ou transcendental,ele o constitui. Em l,ógíczzdo selzlfdo,a teoria gíz?z#acorPO. Ela faz mudar a superfície e seu vicariante, o simulacro, para c07POsem órgãos e seus

gradientes, o que será mais tarde e logicamente planâmena ou platâ. No mesmo lance, a característica da segunda síntese transborda:

ela vem explicar sobre o quê se faz a "contração" típica da primeira sínteseconectiva, que lança toda a máquina do desejo; ela dá igualmente conta do efeito dc retorno da terceira síntese,que permitirá a um só tempo assinalar um ponto de encontro e desloca-lo incessantemente'sob o efeito do mouime/zfoforçado que segue a resso#ánczcz a partir desse ponto lsobre a evolução das sínteses,ver DR, 125, 271,

379; LS, 62, 262, AE, 79, 106; sobre a ressonância e movimento forçado, DR, 155, 374; LS, 279 e 280).

O Anfí-Édlpo é a consideração, até as últimas consequências, da potência de deslocamento do esquizofrênico. Esta obra é a um só tempo

a explicação da corporalização progressiva da Lógica do sefzfido e da inversão da relação entre Carroll e Artaud, e o verdadeiro nascimento das síntesestais como elas se manterão até o fim da obra. Com efeito, se certo estudo recente (A. Badiou, Deleuze, Paris, Hachette, 1997) dá

o papel principal nas síntesesà segunda, como se as outras não existissem. e como se cada uma não se desdobrasse,de modo que, sendo essa síntese a do tempo puro (aionl e portanto da indiferença unívo-

ca, a passagem inimaginável da filosofia deleuziana para uma ontologia do Um-Todo (que permite relegar multiplicidade,virtualidade e singularidadepara o mal-entendido,a ignorância ou, pior ainda, para o gracejo do mestre diante dc seus discípulos), torna-se passível de consideração -- uma leitura rápida demais proibiu de levar em conta a evolução tão significativa da classificação das sínteses. Em Diferença e repetição, as duas primeiras têm uma identidade, mas porque a terceira ainda é procurada, conclui-se o bloco das sínteses sobre a segunda,

com a seqüência:conectiva, conjuntiva, disjuntiva. Desde Lógica do senado, a ordem se modifica e torna-se definitiva: conectiva, disjuntiva, conjuntiva. Em quê tal modificação da sequência tem sentido? Concluir com a conjuntiva é entrar nas próprias coisas. Badiou fica no meio do caminho, suspenso. Depois do plano ideal de montagem

das máquinas é preciso ir à Áãbp'icada teoria do desejo,para a relação comer-falar, para os acontecimentos que concernem os corpos vivos e do qual Artaud é a infalível testemunha. Daí a escolha necessária, e que

a filosofia deleuzianaassina: Carroll é covarde porque a verdadeira metafísica entra nos corpos e sofre com eles. "A aventura das Idéias

jconforme o título de Whitehead) se inscreve nos ossos, na carne e no sangue, mas não se abole na armadilha de Tânatos: precisa, desde então,

traçar a fulguraçãode virtual a virtual, pois o jogo do corpo repousa inteiramente sobre o virtual, com a condição de Ihe deixar a latitude de

ir até o fim do que elepode. O conjuntivo é o momento, maravilhoso ou aterrorizante, do "retomo" da operação: "é, portanto, é então" . Fui então

eu, Edipo, o responsável por todo o estrago, foram então vocês, papaimamãe, que estavam no fundo de minha história; era então isso, o amor...

O transcendental acaba de encontrar seu lugar exato, indicando, ao mesmo tempo, o do transcendente.Embora DIÁerençcze repetição

tenha dado a entender que toda "imagem do pensamento", a coxa pró-

pria a toda filosofia continua, apesar de notáveis exceções, obcecada pela transcendência, é a terceira síntese, que aparece claramente em Lóg/ca do sentido, que, duplicando-se, duplica, por sua vez, cada síntese precedente e põe em evidência dois usos, imanente e transcenden-

te. O "e... e" de conexão imanente torna-se um "e isso... e mais aquilo" de cômputo transcendente, em vista de uma estocagem. O percurso dos fluxos livres sobre o corpo liso, a conexão das séries ou das linhas tornam-se inscrição sobre o corpo da terra, do déspota, do capital, a fim dc que nenhum fluxo corra que não seja "codificado". O "seja...

seja" de disfunção inclusiva imanente como circulação sobre cada linha nos dois sentidos, ou salto de uma linha a outra(com o sentido real da univocidade do ser como manutenção, pelo benefício do aios, de cada série em qualquer outra, em que uma "volta" à outras, torna-se um "ou... ou" de disjunção exclusiva transcendente, em que fazer isso é privar-se daquilo, ser isso é renunciar àquilo... A síntese conjuntiva é, assim, triunfo da iminência (então era esse o segredo, em Cézanne, da mão de Ambroise

Vollard, a cor mal-acabada do calçamento sujo em Véronêse, que permite, no entanto, tornar esplendorosa, como só elesabe fazer, uma carne

de mulherl, ou triunfo da transcendência, reino da culpa, do ressentimento, da neurose, dos cânticos à morte, em um "então é isso" já policial. O desejo recai sobre a falta, o nomadismo sobre uma triangulação

edipiana, as produções maquínicas sobre um teatro da representação, a riqueza do delírio schreberiano sobre uma pobre história freudiana, que não sabe sequer localizar o verdadeiro papel do pai do presidente, com sua ideologia ético-ginástica Inundada sobre a retidão e a interrupção

no desejo) à qual milhares de alemães aderiram sem esforço. O papel da transcendência no A/zli-Édlpo torna-se claríssimo. Ela distribui as síntesesem dois usos, faz aparecer o uso imanente no momento em que o conjura c o prende, constitui os aparelhos de captura do Estado, as máquinas de guerra do déspota, as territorializações ine rentes à desterritorialização calculada do capitalismo. A transcendência se faz concreta, pode ser tocada com o dedo em todos os domínios do cotidiano, mas ao mesmo tempo compreende-seque ela é o poder do abstrato e da morte quando priva as singularidades e as intensidades de produzir esse selztiendam, esse Imaginandum, esse cogffandzím que são o que há para sentir e o que é limite insensível, o que há para imaginar e permanece o inimaginável, o que há para pensar e persiste como impensável (consultar as páginas essenciaisdeDR, 182 e seguintes).

Tal elevação da sensibilidade, da imaginação e do pensamento à enésima potência, a esse /fmife onde o mais sensível e o que só pode ser sentido torna-se também o insensível, Deleuze a chama, conforme uma tradição kantiana, " uso transcendente das faculdades". O termo 'transcendente" significa, então, essa passagemao limite que revela todo o poder de uma faculdade, descobrindo uma idealidade. Tal uso é, portanto, congruentecom a pretensão metafísica da teoria deleuzeana. Mas ele não deve ocultar a liberação essencial de um uso transcendente das sínteses, em que, muito pelo contrário, o que pode é separado daquilo que pode jportanto, de seuspróprios encontros). E por isso que a metafísica será caracterizada em Deleuze pelo transcendental,

um transcendental, todavia, que não é condição de possibilidade dos conhecimentosou da experiência,e sim dos nascimentos. O empirismo transcendental é, pois, o que pode pregar uma peça no transcendente. A potência do transcendentepede ao transcendental uma potência segunda, própria a bloquear aquilo cuja potência é bloquear. Em si mesmo, com efeito, o transcendente barra qualquer novidade, produz a infinita repetição do mesmo, debita as pobrezas do Um-Todo ("0 ser, o Um e o Todo são o mito de uma falsa filosofia impregnada de teologia", insiste Deleuze, LS, 323). Bloqueando o efeito inclusivo do disjuntivo jreceando o deserto), o transcendentereduz as linhas infinitas a pontos centrados, o diferente, cuja qualidade é de "voltar" a reproduções -- o idêntico, o imprevisível --, a monofo/lias. Há o melhor Kant em Deleuze, o que descobre a ilusão necessária em que cai o espírito quando ele transforma a unidade distributiva em unidade coletiva, e quer chegar a qualquer preço a um objeto trans-

cendente, assinalado e fixo, ao invés de desenvolver a dinâmica das regressõesindefinidas nas causas, com o único fim de unificar o esforço do entendimento.O transcendentalnunca é objeto fixo, e sim virtualidade, em todos os níveis. Sua exigência de uma volta diferencial transforma a lógica das substânciase dos atributos em lógica do acontecimento, o próprio acontecimento é inassinalável, o ponto de encontro das linhas, localizáveis, com certeza, na origem (tal ponto do corpo do nadador e tais pontos da onda, tais elementosdo cavaleiro e tais de sua sela, prontos para agenciamenfos), em fluxo de pontos fractais dispersos em velocidade infinita pelos retornos do movimento forçado. Assim, nada existe senão objécteis, surperjatos lo sz/per7ecf, de Whitehead), neblina ou enxame. Ser sujeito larvar significa apenas

poder tomar, enquanto neblina, com outra neblina, por uma espécie

de tece-sexualidadeque lembra a relação da vespa e da orquídea. Não é a pré-individualidadeque é a morte, mas seu receio, que nos fixa e prende. E de todo modo, quem poderia se vangloriar de ser tão firme em si mesmo que nenhum Rosebud secreto, nenhuma noite de sonho, nenhum momento de ausência poderia ainda fazê-lo partir para o deserto e voltar inteiramente diferente, aparecendo, através da velha bruma que se levanta, como o sempre "recém-nascido" O que é então a anomalia metafísica da filosofia deleuziana? É, antes de tudo, essa estranha persistência em criar uma metafísica quando o interesse vai objetivamente para as multiplicidades virtuais e intensas,

para as singularidades, e nunca para as conceitualidades, nem para as individualidades. Mas essa metafísica é necessária, em primeiro lugar, como teoria das idealidades como limite das faculdades, em seguida como

caso de solução (nunca há caso de conceito em Deleuze, só casos de soluçãol do problema de uma metafísica inteiramente imanente je sobre esseponto Deleuze vai mais longe que seusguias: Bergson e Whitehead, depois Espinosa), enfim, como elaboração terminada do transcendente, em seus dois sentidos: o positivo afirmativo, o negativo ilusó-

rio, que ele mesmo opera duas vezes: bloqueando as síntesessobre um único uso, operando a separação da razão dos fenómenose dos próprios fenómenos.Separada do transcendente,a Idéia, outro nome do afon, não é nem inteligência nem inteligível, mas P/a?zode co/zcrescência. O segundo título ao qual se pode falar de anomalia metafísica em Deleuze é sua total insensibilidade para o tema lancinante do século XX:

o fim da metafísica, a superação da metafísica. Ela não deve ser aqui ultrapassada "como se ultrapassam suas lágrimas". Ela é o único instrumento para compreender o que há de real no real, sua dobradura sempre plena de novo. A dobra deleuziana é o infinito "ao alcance da mão", uma espécie de projeção à Desargues. E não porque um princípio transcendenteexplica esse infinito e se confunde com ele. O infinito é o apela'0sde um retorno dentro-fora, sobre o limite. Por que retorno, e do quê? Retorno do ponto limite onde o insensível torna-se sensívele inversamenteItudo secomunica, então, com tudo, atravésde uma contração de feição neoplatânica e romântica: nós nos enchemos de luz,

de árvores, de animais; primeiro esboço das sínteses, DR, 99). Que se pense nos nus da poesia, da pintura. Eles diferem, em primeiro lugar, das longas teorias de homens e mulheres nus, definitivamente separados daquilo que podem: miséria da Folgade morre ICelan). O nu poético e pictórico é o se/zliend m (o a-sentir insensível, ideal), que faz

fulgurar em todos sentidoscores, formas, olho, luz, imaginação, germinação da montanha e das maçãs, janelas violetas, desejos, em um nó flamejante que, em uma única vez, re-determina uma infinidade de linhas -- linhas de pintores e de poetas em nós, linhas de vida, para novas linhas de fulgurações de palavras, de sons, de construções... Esse intocável

insensíveldescoberto então, a nudez incorporal, o ser-nu, o "se des/zucür", são, compreendidos a fundo, o mais metafísico (nem conceptual, nem abstrato) e o mais concreto, o mais vivo. Anomalia metafísica. Em um terceiro sentido ainda, pode-se ver uma anomalia metafísica em Deleuze. Se há o risco de compreendê-lo como um filósofo do Um-Todo, da abstração ascética e da morte, é que essa metafísica deve ser apreendfdíz. Seu mundo, vibrante a cada linha, e que já causava nosso maravilhamento em Thoreau, Hopkins, Melville, Stifter, Friedrich, Lawrence, Powys, em todos aquelespara os quais a vida é grama /czrgee gra/zd /argwe, esse mundo deleuziano cintilante como uma

poesia filosófica enfim realizada, marmóreo singular de intensidades, mundo do movimento por excelência, deve ser, ao mesmo tempo, livre e apreendido. Não apreende-to significa que se tem medo, tattpez, do que ete traz consigo de " besteira", de fundo saio, de " lama, poTcarfa, pê/o ", de i/comi/z(íue/,expondo-se assim à insuportável abstração de uma filosofia dos "grandes significantes". O único problema da apreensão é o seguinte: não apreender o que já está em seu lugar, sob a jurisdição do Um e do Mesmo, mas apreender justamente o que não está no lugar, sem impedi-lo, no entanto, de continuar a criar saltando por cima de si mesmo, e mais longe. Tal apreensão é auto-apreensão. Ela admite, ao que parece, três tempos: 1) As próprias coisas sc tecem e entretecem e, por acontecimento repentino,por captação mais do que por captura, "prendem-se 2) Esse encontro encontra no fractal de um e no fractal do outro jsua dobra), a indefinida repetição das indefinidas angularidades que mudam, incessantemente, a direção geral (princípio de heterogeneidade e de indivisibilidade-sem-mudar-de-natureza, que define o virtual como

bloco de multiplicidade), mas, ao mesmo tempo, a tomada metamorfoseanteque, substituindo o compartimento vazio, recapitula com velocidade infinita dobras e redobram,e por toda parte onde uma singularidade

como ponto notável brilha na vizinhança de seus pontos regulares, faz surgir a luz de uma elevação na mais alta potência, ou seja, a potencialização pela passagemde todas as linhas em cada ponto. A preensão

metamorfoseante faz tomar em um ponto das linhas que não cessam em seguida de tornar-se uma a outra sem jamais tornar-se idênticas IDáfnis e Cloé). Uma linha apreende a outra e se deixa apreender por

ela. Dupla apreensão, nos dois sentidos, sobre a univocidade sem limite do aios indiferente. 31 Produz-se, portanto, no ponto de apreensão, que, ponto singu-

lar entre todos, atrai o "raio", uma anomalia. O ponto de preensão, como mostra

perfeitamente

Mi/ p/ízfõs("Devir

animal..."),

é o óz/zóma-

ro, a/z-boina/os,o desigual em si e para si mesmo, sempre deslocado, que DfÁere/zçzze repetição já procurava. O anómalo é berero-Éafb 'óe-

fero no ponto em que a Idéia platónica era [zufo Êzzlb'bazífo.E, por uma singular epidemia, toda a linha dos pontos singulares da neblina que somos em nossa realidade íntima ganha a cor da anomalia, torna-seapTeensíuel,não por uma inteligência,mas por uma sensibilidade, uma imaginação, um pensamento prontos para a apreensão, o que quer dizer metafísicas. O anómalo é o fundo da metafísica deleuziana, é o ponto de sobre-apreensão em que as linhas se apreendem uma a outra, e se apreendem a si mesmas como tinhas, desiguais para sem-

pre nelas mesmas, nessa simples borda que faz seu ser (extra-sev). Movimento indefinido contra a morte. Não há cântico à morte em Deleuze, antes o contrário: "não há nenhum de nós", declara ele retomando Miller, "que não seja culpado de um crime: aquele, enorme, de não viver plenamente a vida" (ÁE, 400). E se se objetasse o suicídio final, textos claros sobre Bousquet já o anunciam como co/z[ra-eÁefuação,último amor da vida pela vida, naquilo que ela pode ainda testemunharde vida. Mas, graças à metafísica, tal vitalidade é tangível, apreensível. E justamente inapreensível, insensível, de modo que se pode ainda nomeá-la metafísica. A univocidade já não é tanto a do ser como de todos seus equivalentes, mais claramente: corPO sem órgãos, espaço liso, deserto. Mas, como sabem os hebreus ou Hólderlin,

o desertoé momento da mais alta consciência. Traduzimos: o momento em que os falsos-problemas, os falsos-movimentos, as falsas-partidas, as falsas-leituras,os artifícios do conceito e da coxa, tão ocupados em mascarar o trabalho de assentamentodos fluxos pelo transcendente. se levantam como uma bruma ruim. E em um céu-inocência que Achab sempre encontra Moby Deck, que uma mão encontra um quadro, que um homem encontra uma mulher. E tudo recomeça.

Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro

T TNriJAÇ T)n Ar-Ãíl T\A r\TFFDENTT'A XZ U UX J \S/ \J X/ZL J./llX=lLL'Xl\3JZL Luiz B. L. Orlandi

Pode-se dizer que Gilles Deleuze elaborou uma filosofia da diferença oposta à primazia do idêntico. Os estudiosos ligam hoje seu nome

à idéia de uma filosofia da imanência oposta ao privilégio deste ou daqueletranscendente.Pode-sepensar tambémsua obra a partir dos termos que ele emprega em um dos seus últimos escritos para definir a própria filosofia como "teoria das multiplicidades"l Não se trata, obviamente, de contrariar essas fórmulas. Mas é preciso dizer o que elas, por força de sua própria concisão, deixam de certo modo em silêncio. Quando se procura algo mais através delas, vê-se que as obras de Deleuze implicam linhas de ação da diferença, que são não apenas praticadas como também tematizadas. Vê-se que essas linhas, enquanto fluxos intensivos e enquanto portadoras de potências expressivas e interrogativas, vivem num constante estado de

experimentação: vê-seque elas experimentam a si mesmas nos encontros por elas provocados ou nos encontros que lhes são impostos por outras linhas da diferença em ação, linhas constitutivas disto ou daquilo, constitutivas deste ou daquele signo, deste ou daquele acontecimento, ou até de um novo tipo de relação esportiva com as águas,

com o ar etc.

Os escritos que contaram com a participação de Deleuzepodem ser resumidamente pensados como variado lugar de encontros, como movediço lugar de articulações dessa dupla vertente de linhas. Nesse lugar, conceitos aí mesmo elaborados ou vindos de outras filosofias, de outros planâmenos, portanto, sofrem variações em função do melhor encontro, da melhor conexão possível com aquilo que se trata de dizer ou redizer segundo um modo filosófico de pensar. E aquilo que se impõe ao encontro, ainda que se apresente com seu aspecto de uni-

versal abstrato, com seu ar de dura generalidade, é, nesse lugar, ime-

l G. Deleuze e C. Parnet, "L'actuei et le virtuel

marion, nova ed., 1996, anexo, cap. V, pp. 179-81.

Dialogwes, Paras, Fiam

diatamente capturado como signo a ser decifrado, isto é, como coágulo provisório de linhas de ação da diferença, linhas a serem seletivamenteditas. Em outras palavras, a pressuposiçãoontológica desse lugar de encontros, o ser como imanente diferenciação, aplica-se aos dois lados que nele se encontram: aplica-se à própria coisa que se impõe ao lugar e às multiplicidades conceituais aí disponíveis, uma disponibilidade, aliás, pulsante, pois esse lugar de encontros não pára de circular por essa imensa tabela de múltiplas entradas que é, para Deleuze, a história. AÍ está uma das razões pelas quais é insuficiente circunscrever o pensamento de Deleuze como cruzada contrária ou favorável a esta ou àquela filosofia. Conforme aquilo que está em pauta nos encontros das linhas, armam-se alianças, algumas delas mais duradouras que

outras, mas aparecendo todas elas como que em fragmentos, conforme a oportunidade do momento. Sem dúvida, os comentadores fazem uma leitura correra ao observarem o quanto o pensamento de Deleuze se sente bem consigo mesmo em companhia de Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson,Whitehead, Foucault etc., mas tambémdo método platónico da divisão, de certa tese estóica sobre os incorporais, da univocidade do ser em Duns Scot, da terceira crítica kantiana, da dobra leibniziana, de certo aspecto da tese de Simondon sobre a individuação etc., etc. Eles têm ainda razão quando gritam a incidência da crítica deleuziana ao tratamento que Hegel, segundo ele, dispensa à diferença, quando assinalam sua crítica ao trajeto curto do arco intencional fenomenológico ou quando destacam a defesa que Deleuze e Guattari fazem da filosofia como "disciplina criadora" de conceitos, em oposição, portanto, à definição do conceitocomo proposição ou função científica, confusão praticada, segundo eles, por GillesGaston Granger, por exemplos. Embora essescomentários sejam formalmente correios, é preciso evitar, contudo, que eles se reduzam a uma de suas superficiais conseqijências,qual seja, a que consiste em se tentar ordenar a obra de Deleuze como um campo no qual filósofos propícios a uma filosofia da diferença são postos a combater filósofos da representação. Essa conseqüência acaba autorizando uma outra, igualmente superficial: a

2 G. Deleuze e F. Guattari, Qu'esr-ce qzlela p#í/osop#ie?, Pauis, Minuit, 1 991

PP. 36-7.

que consiste em valorizar os "erros" de leitura e interpretação que Deleuze estaria cometendo ao escrever livros propícios aos seus filósofos-aliados e observações contrárias aos seus filósofos-adversários. Os escritos de Deleuze, ou aqueles que contaram com sua participação, esse complexo dispositivo de escrita, em suma, não se reduz a um lugar sedentário em que certas filosofias são postas a atacar outras

ou a se defender contra as demais. Definindo-se esse lugar como o de afirmação positiva, como o da produtividade das linhas de ação da diferença, o destaque de aliados e adversários passa a ser insuficiente. O que importa, isto sim, é a captura de alianças e mesmo de desacordos pontuais que se fazem e se desfazem em função ou a propósito de algo vindo à tona ou posto em pauta. Em outras palavras, esselugar circula como que à procura dos encontros que sejam mais produtivos, mas essa produtividade não se define do ponto de vista desta ou daquela macroaliança e nem do estrito ponto de vista de um sujeitoDeleuze entregue a fazer decalques do seu próprio estado de coisas; essa produtividade se define, isto sim, do ponto de vista da momentânea modalidade de encontro das linhas pelas quais a diferença escorre suas potências.

Mas também não basta dizer essas coisas. Além de tentar entender como Deleuze conceitua essaslinhas, é preciso perguntar pela composição elementardos próprios encontros dessas linhas, isto é, pelos elementosque nelasatuam. Gostaria, aqui, de destacar algunsdesses elementos: a instância problemática que propicia esses encontros, certa

motivação liberadora que elescomportam, assim como algumas forças que, presentes no homem, estão implicadas na processualidade criativa dessas linhas. Primeiramente, como caracterização mais geral, pode-se dizer que esse lugar de encontros -- lugar anualmente perceptível como conjunto

de escritos que tiveram a participação de Deleuze -- propaga-se, de certo modo, enquanto vibração de um paradoxo. Esse paradoxo talvez seja o mesmo que ele enuncia ao compreender, à sua maneira, a ligação entre vários princípios espinosanos, por exemplo, o princípio que afirma uma só substância para uma infinidade de atributos, Deus sine Nafnra, e os princípios que afirmam uma só Natureza, sejapara todos os corpos, seja para todos os indivíduos etc. Deleuze compreende a ligação entre esses princípios como sendo o espraiar, o desenrolar, a exposição de um "plano comum de imanência", um plano, diz

ele nestecaso, "onde estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos" Pois bem, esse plano é irredutível a um "desígnio no espírito", a um "prometo" ou a um "programa". Ordenações desse tipo, supondo a transcendência do sujeito e do objeto e ganhando as mais variadas tonalidades, desde as acadêmicas e professorais até as burocráticopresidenciais, são uma redução que já se efetua nas escadarias de um plano de "transcendência" jseja teológico, evolucionista ou de poder político) ou num plano dc "organização" estrutural ou genética. Um plano de iminência espalha-se,erige-sede outro modo. Pode receber também o nome de plano de "consistência" por ser pensável, em "sentido geométrico", como "seção, interseção,diagrama". Para Deleuze, "instalar-se" nesseplano de iminência, erigir um lugar "no meio de Espinosa" (como ele diz a propósito de um dos seusmais belos encontros), manter com esse filósofo maior um "encontro e um amor", compor com eleesse lugar permeávelao "encontro do conceito e do abeto"3,tudo isso pressupõeum difícil agendamento, exige uma radicalidade notável, pois tudo isso "implica um modo de vida, uma maneira de viver"4.

Que há de radicalidade nisso? É que a vida, apesar dos transcendentes que a ocupam e apesar do seu suceder-se em meio a referenciais empíricos, é também ela uma potência capaz de imanência. Com efeito,

para que um "campo transcendental", não um plano, possa tornar-se um "verdadeiro plano de imanência", é preciso que ele preencha as condições que levam Deleuze a definir o próprio plano de imanência por "amíz vida". Uma vida, gritando-se o artigo indefinido como "índice" da imanência-transcendental, "é a imanência da iminência", diz Deleuze, a "imanência

absoluta".

É concebida como uma "singula-

rização" que, para além da "individuação", para além ou aquém da inserção do indivíduo no conjunto de suas "determinações empíricas", instala de tempos em tempos uma "vida impessoal", mas "singular", vida plena de "entre-tempos" e "entre-momentos", plena de trajetos transtópicos que se transpõem "no absoluto de uma consciência ime-

174.

3 G. Deleuze, SPílzoza. Pbf/osopbfe p7czfíqz/e, Paras, Minuif, 1981 , pp. 1 64 e 4 idem, p. 165.

diata". Essa "vida de pura imanência" é pensadacomo "puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior"5 Pois bem, os encontros que intensificamos escritos de Deleuze marcam sua obra como lugar de rastrosde entre-tempos,de transpassagens em que tantos conceitos acontecem. Se isso pode ocorrer, então, um plano de imanência em que acontecem conceitos, amzzvida filosófica, portanto, não é apenas um conjunto de entre-momentosnos quais seentra de quando em quando como quem entra numa atmosfera de consumo daquilo que faltaria à satisfação de um prazer. Em outras palavras, as fulgurações de ama vida implicam fiapos de centelhas que saltam de um lance de produtividade a outro. Ora, é impossível não ver justamente aí o paradoxo que perpassa esse lugar de encontros: esse lugar move-se num plano que é, diz Deleuze, "plenamente plano de iminência", mas que, "todavia, deve ser construído"Ó

Que fazer para que a atividade construtivista imersa nesse plano não acabe, diretamente ou por ricochete, sedimentando uma instância trans-

cendental? Atravessa a obra de Deleuze esse cuidado para não resolver a favor de transcendentes ou de instâncias transcendentais o paradoxo que consiste em deixar-se nomadizar construtivamentenum plano de imanência. Esse cuidado é extremamente agudo e dramático, justamente porque a motivação ontológica e ética (não moral), que parece também atravessar todos essesencontros e que vai ritmando a pergunta pelo surgimento do novo no m undo, é a da constante liberação de algo,

seja lá o que for, de tudo aquilo que esteja supostamente separando essealgo das linhas que fluem como sendo sua "diferença interna", essacomplexa "unidade da coisa e do conceito"7 Assim, por exemplo, libera-se pensar no pensamento, libera-se o pensamento dos pressupostos de sua imagem representativa. Diferença e questão são liberadas do ser e do ser do negativo. Libera-se a diferença de sua subordinação à "identidade do conceito", à "analogia do juízo", à "oposição dos predicados" e à "semelhançado per-

5G. Deleuze,"L'immanence: une vie-.", Pbl/osopbíe,n' 47, 1/9/95,pp. 3-7. 6 G. De\euze, Spitioza. Pbilosopbie pratique,

p. 16S

7 G. Deleuze, "La conception de la différencechez Bergson", l,es Éfudes bergsoPzíen?zes, vol. IV, Paris, Albin Michel, 1956, p. 81.

bebido", quatro "aspectos" ou "quádrupla raiz"8 de uma robusta arborificação metafísica. Do bom senso comum libera-se um para'senso. Libera-se, como substantiva, uma multiplicidade não mais circunscrita aos jogos do Uno e do Múltiplo. É liberado o tempo de suas amarras cronológicas. Liberam-se relações dos termos anuais relacionados. Libera-se o desejo de sua determinação pela falta. Libera-se uma pura consciência imediata sem objeto e sem eu"9. Nos encontros com

o cinema, libera-se a imagem-tempo dos parâmetros da imagem-movimento. Em muitos platâs, o c07POsem órgãos é liberado da organicidade do corpo biológico ou da intencionalidade do corpo próprio. Libera-se o inconsciente de sua reterritorialização familiar. Como o

sorriso que se libera do gato de Lewis Carroll, o "sentido", como "acontecimento", libera-se, por inspiração ancorada nos estóicos, de

suas reduções

à "proposição"

ou aos "termos

da proposição",

libe-

ra-se do "objeto" ou do "estado de coisas que ela designa", do "vivido", da "representação ou atividade mental daquele que se exprime

na proposição" e até dos "conceitos ou mesmodas essênciassignificados" 10. 0 acontecimento, ele próprio, é liberado do estado de coisas

em que se efetua. Libera-se o problemático das determinações que o circunscrevem às limitações do sujeito de conhecimento ou à sua esgotabilidade nas respostas e soluções. Com Le/bnlz e o Barroco a dobra libera-se e "vai ao infinito"l i. Línguas menores, como em Kafka, são

vistas liberando-se da gramaticalidade de uma língua maior etc, etc. Com as operações de liberação, os liberados são como que levados a variados reencontros de suas virtualidades. E o que acontece, por exem-

plo, quando Deleuze, lendo a fórmula shakespeariana "the time is out of joint"i2 como reconhecimentoda insubordinação do tempo e ex' plicitação da extrema dependência de Hamlet em relação a esse tem8G. Deleuze, Df/Xérenceef réPéfff/on,Paras,PUF, 1968, pp. 45 e 49. 9 G. Deleuze, "L'immanence:

une vie-.",

oP. cif., p. 3.

io G. Deleuze, Logiqz/e du sons, Paras, Minuit, 1969, pp. 45 e 31.

n G. Deleuze, Le Pli: l,eibniz ef /e Baroqzle, Paras,Minuit, 1988, p. 5. iz Shakespeare, Ham/e1, 1, 5. Aliás, Philippe Sollers expande essa fórmula, quando, assinalando a necessidadede liberar a obra de Shakespeare de certas traduções francesas, faz referência a "urna força que é a do mundo quando este sai dos seus gonzos, quando se dfs/ lzfa". ("Shakespeare en direct", Le molzde des /ipres, lO/1 1/95).

po fora dos gonzos, leva essa expressividadepoética ao encontro da noção kantiana que pensa o tempo como "forma autónoma", como forma "imutável da mudança e do movimento"13. E assim por diante. Iríamos muito longe se tivéssemos a pretensão de levantar a enorme série de liberações presentes nos escritos deleuzianos, série que por

si só mereceria cuidadosas pesquisas. O que vimos até agora basta para nos levar a constatar que há uma tensão entre um paradoxo, aquele que consiste em instalar-se construtivamente num plano de imanência, e uma motivação, aquela que consiste na tendência de liberar o próprio pensamento no sentido da liberação das diferenças internas daquilo que dá o que pensar. Como as operações de liberação levam os liberados a certo reencontro de suas

virtualidades, e como o plano de imanência é essencialmentevirtual, então, liberar conceitualmente algo vem a ser, portanto, um modo filosófico-deleuziano de vida, uma maneira de se instalar ou de surfar num devir de Idéias, uma maneira de viver entre-temposabertos no decurso de uma existência empírica, uma maneira de freqüentar construtivamente um plano que, apesar de imanente, deve ser construído.

Pois bem, essa tensão é que pareceanimar a explícita lematização das linhas de ação da diferença. Os conceitos que aí se elaboram dizem respeitoa uma "noção complexa", à noção de uma dupla articulação de operações que constituem por exemplo o "sistema" da "ldéia", entendida esta como "multiplicidade substantiva" comportan-

do "# dimensões", comportando, pois, o conjunto de "variáveis ou coordenadas das quais", diz Deleuze, "um fenómeno depende"14. Em sua inteireza, a Idéia é um sistema de diferenças determinado por uma complexa articulação de "diferençações" (dz/@renf/adio/zsl e "diferenciações" (dl/#re/zcfaf/onsl.Toda e qualquercoisa, sejanatural ou artificial, seja física ou social, seja uma cor ou um poema, até mesmo um conceito, comporta, no mínimo, essa dupla articulação própria da Idéia dita "inteira" i)

i3 G. Deleuze, "Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la phi

losophie kantienne" it 986), retomado em Críflq e ef cl/níque, Paria, Minuit, 1993

PP. 40-2.

i4 G. Deleuze, D1/7érepzce el répéfíflon, pp 236-7. ]5 /dem, p. 285.

As dlÁere/zçaçõesacontecem numa das metades da Idéia, no seu

lado "distinto-obscuro", diz Deleuze, subvertendo,com Leibniz, o legado cartesiano: distinto por causa de suas relações diferenciais e suas

singularidades e obscuro porque esseselementosnão estão ainda atualizados. Essa é a metade na qual a Idéia está "completa", mas não inteira16, a metade em que ela é considerada em seu estado puro, a "metade dialética" 17.Essa face da Idéia é também caracterizada como instância problemática", isto é, para além do que ainda resta de "empirismo" na Crítica kantiana, a instância pela qual a Idéia, sem qualquer "identificação ou confusão", é tida como "unidade objetiva pro blemática interna do indeterminado, do determinável e da determina ção"18. Além de dialética e problemática, essa metade, em que operam diÁerençações,é também chamada "virtual", uma virtualidade que,

enquanto tal, "possui plena realidade", podendo ser "definida como estrita parte do objeto real". Como os proustianos "estados de ressonância", essa metade virtual pode ser dita real sem ser anual e ideal sem ser abstratal 9. É importante e deve ser sempre lembrado que, para

Deleuze. a "realidade" do virtual é como a de uma "tarefa a ser cumprida", é como a de um "problema a ser resolvido"20. Seja qual for o nome escolhido para salientar a dialeticidade, a objetividade problemática ou a realidade virtual da Idéia, o que agora importa notar é o seguinte: as difere/zçózções implicam a mobilidade de "relações diferenciais", independentemente de termos relacionados, independência ou exterioridade que já levara o empirismo de

Hume a uma "potência superior", como diz e rediz Deleuze21.As álacre/zçações implicam também uma "distribuição de singularida-

des"22, singularidadesque são como que "neutras" punctualidades íó Idem, p. 276.

i7 Idem, p. 285. 18Idem, pp. 218 e 220. i9 Idem, p. 269. 20Idem, p. 274. zi G. Deleuze, EmPirfsme ef s b/ecfíuité, Paras, PUF, 1953, p. 113. Cf., De-

leuze, "Hume", François Châtelet jorg.), Hístofre de /a pbf/osopbie,vo1. 4, Les r míêres (le XVlll' siêcle), Paria, Hachette, 1972, p. 67. 2z G. Deleuze, Df/7érenceef fépéfiliolz, p. 285.

"essencialmentepré-individuais, não-pessoaise a-conceituais", pontos que "exprimem as condições" de um problema, determinando-o como tal, pontos que formam um "acontecimento ideal", sendo que o "modo do acontecimento" é justamente o "problemático". Mais precisamente, "o p7'0b/emaé determinado pelospontos singra/aresque correspondem às séries", ao passo que a "questão" é determinada "por um ponto a/eafórfo", ponto ou "elemento paradoxal" que, como "casa vazia" ou "elementomóvel", é justamenteaquilo que se agita na virtualidade, de modo que ele "percorre as séries, as faz ressoar, comunicar e ramificar", redistribuindo singularidadese, assim, forçando :metamorfoses"z:s No anexo do seu livro dedicado a Michel Foucault, Deleuze estabelece, como "princípio geral" do pensamento filosófico de seu ami-

go, a idéia segundo a qual "toda forma é um composto de relações de forças", de modo que a pergunta pela forma implica a pergunta pelas forças relacionadas, que se distribuem em dois grandes grupos O primeiro comporta as "forças no homem", como as de "imaginar, lembrar-se, conceber, querer" etc. O segundo comporta as "forças do fora", reagrupadas estas em três grandes configurações: as de "elevação

ao infinito", donde a "forma-Deus", característica da "formação histórica" dita "'clássica'"; as "forças de finitude" enraizadas na "vida", no "trabalho" e na "linguagem", de onde a "forma-Homem" dominante no nascimento da "biologia, da economia política e da lingüística", disciplinas que marcam a formação histórica do "século XIX"; as forças de "um finito-ilimitado", isto é, aquelas em que "um núme-

ro finito de componentes dá uma diversidade praticamente ilimitada de combinações", situação que caracterizaria nossa contemporaneidade em sua tensão de futuro, de onde a dificuldade de se dizer a "nova

forma" que estaríamos em vias de erigir.24 Pois bem, no presentecaso, trata-se de perguntar, portanto, pela força que, no homem, está mais diretamente implicada no dinamismo das relações diferenciais e das singularidades que caracterizam as diferençações. Essas relações e singularidades, diz Deleuze, são submetidas a uma "exploração", da qual deve resultar uma "exposição

ZSG. Deleuze, Logíg e dz se/zs,pp. 68-9 e 72. (Grifos meus). 24 G. De]euze,

Foucau/],

Paria, Minuit,

1986, pp. ]31-2,

134 e ]40-1

do virtual". Pensar é justamentea força que, no homem, explora e expõe o virtual "até o fundo de suas repetições"25. As dl/erenciações,por sua vez, acontecemcomo linhas de um processo de atualização". É essa a dinâmica pela qual a Idéia mostra sua metade chamada "estética", pela qual ela aparece como "atua-

lização estética". Também ela, como a metade ideal, é "duplamente determinada", mas em outros termos: nela, as diferenciaçõesvêm a ser "especificações"

e "composições".

As especificações processam a

atualização das relações diferenciais que podem ser exploradas no cam-

po virtual, enquanto as composições fazem isso com as singularidades. Em outras palavras, as especificaçõessão diferenciações atualizantes de relações diferenciais e as composições são diferenciações atualizantes que "encarnam" os pontos singulareszó.

Mas não se pode estabelecer mera semelhança entre os termos de uma face e os termos da outra. Com efeito, fazendo-se por "diferença, divergência ou diferenciação", a atualização, diz Deleuze, "rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade

como princípio". Não há semelhança,portanto, entre qualidadese espéciesatuais e os componentes do virtual que elas encarnam, as relações diferenciais; também as partes não se assemelham às singulari-

dades. Se o virtual se confundisse com o possível, se ele fosse mero conjunto de possibilidades, então as linhas de diferenciação seriam linhas de realização de certas possibilidades e se resumiriam a meras limitações. Porém, entendido o virtual como real "potencial", a diferença e a repetição é que "fundam" as diferenciações como verdadeiros movimentosde "criação", ao contrário da "limitação abstrata: resultante do "pseudomovimento" inspirado pela "identidade e a semelhança do possível". As diferenciações, desse modo -- e aqui Deleuze, mais uma vez, explicita seu encontro com Bergson -- são uma processualidadeem que se "criam linhas divergentes" que estão em correspondência, "sem semelhança" com o que acontece na multiplicidade virtual, assim como as "soluções" não se assemelham ao "problema" que as "orienta, condiciona e engendra"27. A força que, no homem, está ocupada na apreensão dos "pro' 25 G. Deleuze, Di/Hérelzce ef éPéfíffo/z, p. 284.

zóIdem, p. 285. 27 Idem, pp. 273-4.

gessosde atualização do ponto de vista de suas retomadas ou dos seus ecos" é o imaginar. Não é precisamente o pensamento, mas "é a imaginação", diz Deleuze, "que atravessa os domínios, as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, co-extensivaao mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e inversamente"28. Lembranças de Hume! Foi dito que diferença e repetição fundam o processo de atuali-

zaçãocomo linhasde "diferenciaçãocriadora"29. Então, não temos apenas diferençações no virtual e diferenciações do atual. Deleuze procura um "terceiro aspecto", que corresponde ao "elemento de potencialidade da Idéia", uma "dramatização", diz ele, "pré-quantitativa" e "pré-qualitativa", a qual tem o poder de "determinar ou desencadear, de diferenciar a diferenciação do atual em sua correspondência com a diferençação da Idéia". Eis sua pergunta: "de onde vem esse poder da dramatização?"30. A resposta, desenvolvida como "síntese assimétrica do sensível", não mais como "síntese recíproca da Idéia"31, determinaa "diferença de intensidade" como "razão do sensível", intensidade entendida como acoplamentos parciais em que cada elemento presente num acoplamento remete a acoplamentos de ordem distinta. Trata-se de uma 'disparidade", de uma "diferença infinitamente desdobrada, ressoando

ao infinito". É essa, para Deleuze, a razão do sensível, a "razão suficiente do fenómeno, a condição do que aparece", o "desigual em si", irredutível ao espaço e tempo kantiano32.Trata-se de uma "profundidade original" entendida como "disparação" jtermo de Simondon)33

A face de atualização da Idéia é chamada estética, justamente porque, como razão do sensível, a diferença de intensidade, "determinante nos processos de atualização", espalha-se como "estética das intensidades",

efetuandotrocas com a "dialética das idéias". Enquanto as idéias, em 28Idenr, p. 284 29 idem,

p. 274

30/dem, p. 285 31/denz, p. 315

s2 Idem, p. 287 33idem, p. 72.

sua metade dialética, são "multiplicidades virtuais, problemáticas", comportando "relações entre elementos diferenciais", as intensidades

são ditas "multiplicidades implicadas" constituídas de "relações entre elementos assimétricos" . As diferenças intensivas implicadas entram em processos de "explicação" ao mesmo tempo em que, com sua "po-

tência", dirigem as diferenciações, isto é, o "curso de atualização das Idéias e determinam os casos de solução para os problemas". O processo pelo qual as intensidadesdeterminam diferenciações e, assim, se explicam, sem, contudo, perderem sua própria "independência", recebe o nome de "individuação". Assim, diz-se que "toda individualidade é intensiva" justamente porque "a intensidade é individuante", isto é, as "quantidades intensivas são fatores individuantes". Em outras palavras, a individualidade "afirma em si a diferença nas intensi-

dades que a constituem"34. Se continuamos a perguntar pelas forças que, no homem, estão imediatamente implicadas nesse processo, chegamos a uma espéciede extremo rebelde e fugidio, pois encontramos as variações intensivas que constituem o próprio sensível. Conviria lembrar ainda que Deleuze procurou conccituar mais uma linha de trocas entre "imagem virtual" e "objeto atual": quando estesdois termos se "intercambiam" num curto circuito, quando se estabeleceuma "troca perpétua" entre eles, essa troca "define um cristal" . Trata-se, então, não mais de uma atualização, mas de uma "cristalização". Ê quando a "pura virtualidade" vem a ser "estritamente correlativa do anual". Entre esse anual e a pura virtualidade forma-se, diz Deleuze, "o menor circuito"35. Na cristalização, somos levados de um ao outro termo como que pela inconsciente e instantânea oscilação

de um corpo sem órgãos, este outro campo de fluência das variações intensivas. Como conclusão provisória deste percurso, gostaria de relembrar

o papel reservado à imaginação nesseconjunto de linhas. Enquanto o pensamento, como foi dito, pode praticar exposições do virtual ao explorar relações e elementos diferenciais que estão em dláe7'e/zçação

na virtualidade das Idéias, o "pensador", ele mesmo, "é o próprio indivíduo", isto é, aquilo que é reposto como resultado precário e

34 /dem,

pp. 315-7.

35G. Deleuze, "L'actuei et le virtuel-.", oP. cit., p. 184.

provisório de processos dc individuação investidos por diferenças de intensidadepré-individuais. Enquanto a Idéia, em sua virtualidade, deixava-se dizer como distinta-obscura, não é sem razão que o pensa-

dor, como "unidade intensivaindividuante", é qualificávelcomo "claro-confuso", pois, exprimindo claramente apenas algumas "relações e certos pontos" em função de um "limiar de consciência determina-

do" pelo seu "corpo", ele só "confusamente compreende o todo" de uma situação" Pois bem, entre o pensar, que se desloca nas dlÁere/zçações,e o intensivo indivíduo pensador reposto pela individuação, há o campo das diferenciaçõesque a imaginação, como foi dito, pode apreender ou insuflar, vagando ou vagabundeando como consciência em estado de larva, oscilando entre ciência e delírio. Apesar de oscilatória, a ima-

ginação tem aí reconhecido seu papel nas linhas de diferenciação que ligam virtual e anual, papel que o estruturalismo minimizava ao erigir,

dizia Deleuze, o reino do "simbólico" entre o "real e o imaginário"37 Em um dos estudos deleuzianosdedicados a Espinosa, é reconhecido o apoio da imaginação às "noções comuns". Esse apoio pode acontecer de duas maneiras: quando a imaginação "exprime o efeito sobre nós de um corpo que convém com f) nosso", conveniênciaque as noções comuns "compreendem de dentro e adequadamente" ou quando a própria imaginação "apreende como efeitos exterioresdos corpos uns sobre os outros aquilo que a noção comum explica por relações internas constitutivas"38. Um dos estudos deleuzianos dedicados a cume, por sua vez, salienta, primeiramente, o quanto a imaginação (essepoder de relacionar uma dada impressão ou uma dada idéia "à idéia de qualquer coisa não atualmentedada", poder que é também aquele de um dos princípios de associação que constituem a natureza do espírito humano, o da causalidade) pode servir-se desses mesmos princípios disciplinadores "para fazer passar suas ficções, suas

fantasias". Mas o mesmo estudo também salienta o quanto a imaginação, por força do seu próprio poder relacional, é capaz de "liberar" ou "refletir a paixão", de fazer com que a paixão entre em ressonân3óG. Deleuze, Df/7érelzceef répéfífíon, p. 327. 37G. Deleuze, "A quoi reconnaít-on le structuralisme?", ípzFrançois Châtelet

jorg.), oP. cif., vo1. 8, pp. 272-4.

s8 G. Deleuze, Spfnoza. Pbf/osopble praflque, p. 132.

cia e venha, assim, a "ultrapassar os limites de sua parcialidadee de sua atualidadenaturais", ultrapassagemque, para Hume, é imprescindível ao adequado convívio humano". Constituindo-se no exercício de relações associativas, a mente, segundo Hume, está sempre tendendo naturalmente a atribuir uma "relação adicional" (addifíoncz/ re/aflo/zl a dois objetos, mesmo quando

estes já se apresentam a ela numa estreita relação, como a de contingüidade ou a de semelhança. Com que objetivo deixa-se a mente tomar por um movimento desses? Ele diz que ela visa "completar" a re[ação, mas, como não ]he é fáci] saber se o conjunto re]aciona] está completo, como não é fácil "fixar.nossa escolha" (lo Px our cboícel, acaba sendo esse, diz ele, "um dos mais difíceis problemas em filoso-

fia": o de determinar a relação principal e determinante entre várias que se apresentam a um mesmo fenómeno. A cada instante, reabre-se um campo fértil para seremimaginadas novas relações.Segundo Hume, o esforço para disciplinar essa inevitável e imprescindível abertura implica, por necessidadeou por amor à ordem e à uniformidade, ordenar a tendência de se relacionar indefinidamente dois objetos, aproximando relações cujo elo satisfaça a mente ou que estejam em afini-

dade com "pontos de vista correspondentes"40. Liberada da referência subjetiva, essa "casuística das relações", como diz Deleuze41, não deve ser estranha ao lugar deleuziano de encontro das linhas de diferenciação. Porém, perguntamos, o que é que,

permanecendo equidistante de um racionalismo (que tudo liga a qualquer custo), mas também de um empirismo (que deixa tudo por demais separado), eqüidistância praticada por Difere/zça e repetição, aproxima ou distancia relações]á disponíveis ou criadas nesse lugar de encontros? O que procuramos mostrar nestetrabalho é que a resposta deve ser primeiramente procurada, parece-nos, no triângulo formado pelo paradoxo da ocupação construtiva do plano de imanên cia, pela motivação ontológica e ética de liberação e pelo campo pro'

blemático que se impõe ao encontro. Uma potência de inflexão agitase nos pontos desse triângulo, potência que é a do c//namenou do s9 G. Deleuze, "Hlume", oP. cff., pp. 67, 69, 74. 40David Hume, Á fre zflseo/'bz/manfzafwre,ed. Selby-Bigge,Oxford, Cla

rendon Press, 1955, 111,11,111,p. 504; 1, IV, V, p. 237. 4i G. Deleuze, "Hume", OP. cif., p. 76.

co/zulus, potência que é a de um Álo de metamorfose, um fio que é um vinco, um operador, um fervilhamento,uma linha de fuga da dobra, essa ambígua variabilidade que liga e desliga dentro e fora e que leva uma pergunta a reiterar-se em momentos privilegiados da filosofia: "em

que condições o mundo objetivo permite uma produção subjetiva de novidade, isto é, uma criação?"42. Pensar, imaginar e sentir são forças que, questionando-se, experimentando seus próprios limites e liderando-sede clausuras prévias, são variadamente acionadas nesse triângulo, predominando ora uma ora outra segundoas pulsaçõesdo problemático, segundo o lampejo do fio de metamorfose a ser perseguido, segundo a intempestividade de linhas de fuga num campo estirado entre um vasto inconsciente desejante-questionante e um problema

cuja punctualidade pode realinhar o exercício (delirante?) da imaginação filosófica.

4zG. Deleuze, Le P/l: Lefbnlz ef /eBaroque, p. 107

UMA REVIRAVOLTA NO PENSAMENTO DE DELEUZE José Gil

l A obra de Deleuze não se constitui como um bloco único desde o seu começo Em particular, se é verdade que Diferença e repetição e l,ógfca do se/zffdorepresentam momentos maiores no conjunto do seu pensamento, nem por isso estedeixou de mudar "radicalmente" (num sentido que se deve precisar) a partir do Anil-Éd/po. Segundo o próprio Deleuze há um período antes e um período depois do Anil-Édlpo: por maiores que sejam as remodelações conceituais das obras posteriores, inaugurou-se aí um certo regime de pensamento que caracterizará definitivamente "a filosofia de Deleuze-Guattari" Procuraremos aqui definir esse regime num ponto particular: a noção de corPO sem órfãos, que surge na Lógica do sentido com um estatuto ainda ambíguo, oscilante, quase apagado, tomará a importância que se sabe no Ánfi-Édlpo e em M// P/afãs. E seu abandono final

por Deleuze em O que é a /i/osoÁiai não é certamente tão decisivo quanto foi seu desenvolvimento naquelas duas obras: o que a noção tinha instaurado e permitido -- nomeadamente o pensamento da imanência -- estava adquirido. Outros conceitos se encarregariam em seguida de a substituir. Levantaremos pois a questão: o que é que na L(igica do sezzfldo permanece problemático e por resolver a tal ponto que Deleuze evoca

no fim do livro um certo insucesso de sua (e talvez de toda a) empresa filosófica? E de que o .Anlí-Édfpo e as obras seguintes representam pre-

cisamente a solução -- mas uma solução que desloca e transforma os dados do problema jem particular, a atitude para com a psicanálise)? 11

Nesse aspecto, a l,ógíca do self/do é uma obra-charneira. O autor leva ao extremo limite a dificuldade que a teoria das séries se propunha ultrapassar: a oposição entre o fundo e a superfície, entre o sentido (profundo

das "misturas

corporais")

e a linguagem,

entre o que

produz o sentido (a causalidadedos corpos) e o discurso do filósofo.

Deleuze sonda longamente a "profundidade" , interrogando de forma

minuciosa a psicanálise, comparando os seus resultados com a experiência de Artaud; por outro lado ele testa constantemente a eficácia da sua teoria das multiplicidades em face da experiência do psicótico. Nos dois casos, tanto a psicanálise como o pensamento do sentido mos-

tram-se incapazes de dar conta da psicose. Ê que esta exige mais do que uma "explicação

Que procura Deleuze na l,ógfca do se/zlido?Responder à questão: como pensar com a teoria do acontecimentoe das sériesa produção do sentido mais profundo, como o que irrompe na obra de Artaud e, em geral, na experiênciada loucura? Interrogaçãoque toma outra forma: como trazer o Unfersinzz,o infra-sentido que nasce no fundo do corpo psicótico, à superfície, em que o acontecimento faz sentido? Trazer à superfície" é um problema central da Z,ógica do se/zfido.Porque, já que "a pele é o que há de mais profundo", toda a questão se resume à construção de uma superfície que abra passagem e acolha o sem-fundo incompreensível dos corpos. SÓ assim o pensamento atingirá

o infra-sentido, fazendo-o circular jquer dizer, aconteceráà superfície. Numa palavra, trata-se de trabalhar o problema em dois planos: no de uma prática (clínica) e no do discurso (críticas. Enfim, a solução virá de um terceiro plano, resultadodo entrelaçamentodos dois primeiros: a elaboração concreta dessa superfície de acolhimento permitirá "captar" o sentido (mas de maneira diferente, não ao modo puramente teórico ou "conceptual" que é ainda o de Deleuze na época da l.ógica do se/zfídol.Ora, o fracasso da psicanálise acompanha o insucesso da filosofia que não consegue, apenas com a teoria das séries, pensar o Unfersfnm como acontecimento.

É que Deleuze adota ao longo da Lógica do sentido uma atitude ambígua para com a psicanálise: só Ihe é fiel quando consegue integrála no seu próprio pensamento. Nos pontos em que a psicanálise falha

curar e pensar a psicose--, Deleuze encontra uma linha de resistência à sua apropriação. Assim, a psicose je a arte de Artaud) tornase uma fronteira última que põe fim à conivência entre a psicanálise e a teoria do acontecimento: Deleuze faz sua essa resistência, pondo-se por assim dizer do lado da psicose contra a psicanálise e, num certo sentido, contra seu próprio regime de pensamento. Resulta disso que a crítica à psicanálise que se esboça na Lógica do sentido, preparando-se para se radicalizar no Ázzrí-Edfpo, anuncia já a mutação do pensamento de Deleuze.

111

A l,ógíca do senfldo desenvolve-secomo uma verdadeira máquina de produzir séries e multiplicidades. O comentário da obra de Lewis Carroll e da teoria estéticados incorporais conduz rapidamente Deleuze à definição do sentido como acontecimento. Este é um efeito incorporal de superfície, que advém num tempo ilimitado, num devir entre o passado e o futuro infinitamente divisíveis, esquivando sempre o presente, o aios como devir ilimitado. A árvore não é verde, verdeja; e o verdejar, que é o acontecimento que dá o sentido, é o resultado das ações e paixões dos corpos. O sentido não está no atributo, mas no verbo, não está na profundidade dos corpos como causas, mas na superfície do acontecimento, como quase-causa. O sentido como acontecimento difere radicalmente do estado de coisas em que se efetua: como incorporal, não é um ser, mas um "extra-ser", qualquer coisa que ocorre para além dos movimentos dos corpos, na sua fronteira, como também num tempo-fronteiraque reúne o futuro e o passado, nunca no presente do estado de coisas. O acontecimento é definido como o devir-ilimitado "do futuro e do passado, do ativo e do passi-

vo, da causa e do efeito. O futuro e o passado, o mais e o menos, o muito e o pouco, o demasiado e o insuficiente, o já e o ainda não:

porque o acontecimento, infinitamente divisível, é sempre os dois ao mesmo tempo, eternamenteo que acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa" ' Deleuze considera o surgimento da teoria estóica dos incorporais uma espéciede "regresso do recalcado" platónico, daquilo que não chegou a ser ou não foi completamente recalcado pela ação das Idéias

e que se escondeno fundo dos corpos, talvez do "pêlo, da imundície, da lama". O que escapouao recalcamentoda Idéia volta agora nos incorporais dos estóicos. "SÓ que em Platão esta 'alguma coisa' não fora nunca suficientemente enterrada, recalcada, empurrada para a pro-

fundidade dos corpos, afogada no oceano. [...] É o resultado da operação estóica: o ilimitado volta a subir. O devir-louco, o devir-ilimitado não é mais um fundo que brame, ele sobe à superfície das coisas, e torna-se impassível."z Toda a Lógica do se/zfidonão será mais do que uma longa ex1 Logiq e d se/zs, Paria, Minuit, 1969, p. 17 Idoravante i.SI 2 l,S, P. 17.

plicitação e complexificação dessas teses sobre o acontecimento. Em particular, é sempre como luta entre a profundidade e a superfície, como destituição da primeira e como "exposição dos acontecimentos à superfície"3 que serão analisados os múltiplos aspectos da teoria do sentido: a proposição e a linguagem, os paradoxos do sentido e o nonselzs,a estrutura e o problema, a síntese do heterogêneo na formação das séries eEc-E sempre, em regimes diversos, a diferença se dá entre o interior profundo dos corpos e a superfície do acontecimento-sentido. A questão essencial, a que Deleuze dá uma primeira resposta logo no início, segundo e seguindo os estóicos e Lewis Carroll, e que se manterá sempreno horizonte, ao longo do livro, é a seguinte:como fazer subir o fundo dos corpos até a tona, como passar da profundidade à superfície, como transforma r a dimensão vertical em movimento

horizontal ? " Profundo deixou de ser um cumprimento. SÓ os animais são profundos ]...]. Os acontecimentossão como cristais, não devêm nem crescem senão pelas beiras, nas beiras. Ê esse o primeiro segredo do gago ou do canhoto: não se enterrar, mas deslizar, de tal maneira que a antiga profundidade desapareça, reduzida ao sentido inverso da superfície. É por força de deslizar que se passará para o outro lado, já que o outro lado é apenas o sentido inverso."4 Ou ainda: "É seguindo a fronteira, ladeando a superfície, que se passa dos corpos ao incorporal"5 e isso "pela virtude de um anel" como o de Moebius. "A continuidade do direito e do avesso substitui todos os patamares de profundidade"6: o sentido é apenas "o duplo sentido da superfície"7. Tudo isso implica um programa: Deleuze será levado a elaborar uma extraordinária teoria das sériescujo movimento será esse "deslizar na fronteira" entre as duas facespara trazer o fundo ou o interior dos corpos à superfície ou ao exterior: séries duplas, sempre defasadas uma em relação à outra -- de designação e de expressão na linguagem, de significados e significantes na estrutura, da profundidade do corpo e dos jogos de linguagem em A/ice de Carroll --, que um elemento neu-

3 LS, P. 18. 4 l,S, P. 19. 5 l.S, P. 20

6LS, P. 21. 7LS, p. 20.

tro, o "espelho" ou o non-se/zs,articula, distribuindo o sentido pelas duas séries que se refletemuma na outra. E até o fim do livro é um dispositivo conceptualcompleto que Deleuze monta progressivamente, com o fim de dar conta dum movimento geral do sentido ou do acontecimento -- e cujos traços essenciais servirão de base a outras cons-

truções futuras (como a do plano de imanência e dos conceitos em O que é a filosofia!\.

lv Há um momento, no entanto, em que essa maravilhosa construção das séries de multiplicidades encontra um obstáculo aparentemente

intransponível. AÍ vacila, oscila; retoma, bifurcando-o, o movimento anterior. Esse instante é o do encontro entre Carroll e Artaud, entre Alice e o esquizofrénico. Seria necessáriocitar todo o início da ] 3' série, "do

esquizofrênicoe da menina": o tom da escritamuda, trata-seagora de uma potência maior que ameaça a superfície, uma potência de vida (ou da sua negação) -- a do caos da loucura. Contra ela, os jogos da superfície, do non-sons e das palavras-malas nada podem: "Percebemos agora que mudamos de elemento, que entramos numa tempestade. Julgávamos estar entre as meninas e as crianças, e estávamos já numa loucura irreversível. Julgávamos estar na vanguarda das pesquisas literárias, na mais alta invenção das linguagens e das palavras; e já estávamos nos debates de uma vida convulsiva, na noite de uma criação patológicaque diz respeitoaos corpos"8 Há que separar os diferentes "abismos do non-sons", não confundir o problema que envolve a criação de uma palavra-mala por uma menina e a de uma outra por um esquizofrênico. São problemas diferentes, de clínica e de crítica, e de suas fronteiras -- em que limite da

desorganização (dos corpos e do desejo) (clínica) pode haver criação, quer dizer, mudança de níveis em que a linguagem e o non-sons adquirem uma outra dimensão jcriativa) (crítica). Os jogos de palavras de Alice eram por assim dizer sem consequência, enquanto os de Artaud são "talhados na profundidade dos corpos"9. As séries de Carroll funcionam perfeitamente: "as duas séB LS, p. IOI 9 LS, p. 103

nes articu]am-se em superfície [série 'comer' e série 'falar']. Sobre essa

superfície, uma linha é como a fronteira das duas séries, proposições e coisas [-.]. Ao ]ongo dessa ]inha se elabora o sentido [...]. As duas

séries encontram-se articuladas por sua diferença, e o sentido percorre toda a superfície, se bem que permaneça sobre sua própria linha. Não há dúvida de que esse sentido imaterial é o resultado das coisas corporais, de suas misturas, de suas ações e paixões. Mas o resultado é de uma natureza totalmente diferente da causa corporal. Por isso, sempre à superfície, o sentido como efeito remetea uma quase-causa, ela própria incorporam:o mo/z-sonssempre móvel, expresso nas palavras esotéricas [por exemplo, Snark ou Jabberwocky] e nas palavrasmalas, e que distribui o sentido dos dois lados simultaneamente. E essa a organização de superfície em que opera a obra de Carroll como efeito

de espelho"'u. Toda essa organização vai ser destruída pelos jogos de palavras de Artaud. Deleuze confronta Carroll com Artaud, depois de este já se ter oposto àquele, manifestando todo um desprezo pelos "jogos de superfície" O que faz desabar a construção carroliana e, de certa maneira, tremer a do próprio Deleuze?A extraordinária potência esquizofrênica rebenta a fronteira entre as sériese faz das palavras corpos, e de seus movimentos de sentido, ações e paixões. Para o esquizofrênico, "toda palavra é física, afeta imediatamente

os corpos".

A palavra é

ação: "A palavra deixou de exprimir um atributo de estado de coisas, seus pedaços [sílabas, letras] confundem-se com qualidades sonoras insuportáveis, irrompem violentamente no corpo onde formam uma mistura, um novo estado de coisas, como se eles próprios fossem alimentos venenosos, ruidosos, e excrementos encaixados" ii; " [...] o cor-

po inteiro não é mais que profundidade e arrasta consigo, absorve todas as coisas nesta profundidade hiante [...]. Tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpos e, no corpo, encaixamento, penetração" iz. Nessas condições, não há mais séries separadas da profundidade e da superfície, da linguagem e de estados de coisas, de designação e de ex-

vo l,S, PP. 105-6.

ii l,S, P. 107. i2Z,S, P. 106.

pressão. Desapareceram as séries, levadas pela força de atração dos corpos fragmentados, dissociados, esburacados. Como descrever esse corpo intenso que desfaz toda e qualquer organização do sentido e da linguagem? Deleuze vai buscar o termo no /ugeme zf de DICA, de Artaud: c07POsem órgãos. Mas não cita ainda na Lógica do senado os versos que repetirá em tantas obras ulteriores: "0 corpo é o corpo/ Está só/ E não tem necessidade de órgãos/ O corpo não é nunca um organismo/ Os organismos são os inimigos do corpo" E: "Nem boca. Nem língua. Nem dentes. Nem laringe. Nem esófago.

Nem estomago.

Nem ventre. Nem ânus

Aqui, o corPO sem órgãos ainda aparece ligado unicamente à profundidade, uma "profundidade universal" de certo modo mais profunda que a dos corpos dos estóicos e das séries de Carroll, pois nela se precipitam o interior e o exterior, esses mesmos corpos e a superfície. No entanto, Deleuze concebe o corPO sem órgãos como uma

potência ambígua, por um lado improdutiva, destruidora, "representando uma involução fundamental"13; e, por outro, desenvolvendo

uma energiaextraordinária que vai percorrer e emanar do "corpo glorioso como nova dimensão do corpo esquizofrênico, um organismo sem partes"14. O que é esse corpo glorioso? Resulta da transformação dos órgãos num só órgão (a pele, por exemplo), e das palavras e da linguagem em ações de palavras-sopro, palavras-grito "em que todos

os valores literais, silábicos e fonéticos são substituídos por valores exclusivamente tónicos e não escritos". Esse corpo glorioso "faz tudo por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão fluídica"15 Há portanto uma ambigilidade no corpo sem órgãos, uma negatividade e uma positividade. Por exemplo, os fluidos que o percorrem são maléficos, corrompidos, levando consigo "parasitas, fragmentos de órgãos e de alimentos sólidos, restos de excrementos"; mas, por outro lado, é um elementopor si ativo, representandoum "estado de mistura perfeita": "Há, na esquizofrenia, uma maneira de viver a distinção estóica entre duas misturas corporais, a mistura parcial e que altera, a mistura total e líquida que deixa o corpo intato. Há, no ele-

i3 LS, p. 106 i4LS, p. 108 i5 LS, p. 108

mento fluido ou líquido insuflado, o segredo não escrito de tema mis-

tura aviva que é como 'princípio do Mar', por oposição às misturas passivas das partes encaixadas"iÓ. Assiste-se aqui ao despontar do que vai ser, noutros livros, o corPO

sem órgãos como p]ano de consistência. luas, por enquanto, [)e]euze não destaca nem define claramente o conceito de c07POsem órgãos. Pelo contrário, este parece definitivamente compatível com a teoria das series.

O problema é múltiplo, e desenvolve se em vários níveis: 1) Como restaurar a grande maquinaria de produção de sentido à superfície, quando esta foi engolida pela profundidade última do co/PO sem órgãos esquizofrênico?Como é que o esquizofrênicoproduz sentido? Como nelecompreendera "subida à superfície", se toda superfíciefoi destruída? Como conceber, pois, uma outra superfície, corno série complementar da profundidade esquizofrênica? E o que representa,relativamente à superfície e ao sentido, a linguagem-ação, não articulada, das palavras-sopro, das palavras-ações dos blocos fonéticos que o esquizofrênico constrói? 2) Tratar-se-á ainda de séries de acontecimen- .

tos de sentido que, no fundo, se oferecem apenas à decifração (ou à interpretação"), ou de qualquer coisa mais, que ultrapassa o sentido e que diz respeito ao agir, ao produzir? Quer dizer: não já uma hermenêutica ou mesmo uma lógica do sentido, que despreza afinal as ações e paixões dos corpos" em benefício da quase-causa do efeito incorporal do acontecimento,mas uma física ou uma antologia que dê conta da emergênciado sentido a partir das forças violentas, extremamentepoderosas, que percorrem a profundidade do corpo esquizofrénico? 3) Num plano mais geral, é o problema da clínica/crítica que se levanta, com uma agudeza derradeira: como fazer crítica sem encontrar necessariamente a clínica -- e esta encontra necessariamente

a vida (que Deleuze exprime ainda, às vezes, em termos fenomenológicos, o "vivido", a "experiência vivida" de um indivíduos --, sem esbarrar com aquilo mesmo com que esbarra o esquizofrênico quando joga com as palavras e a língua, terror, dor de órgãos para além do imaginável IDeleuze cita Artaud: "0 ânus é sempre terror, e não admito que se perca um excremento sem o dilaceramento de aí se perder

também a alma"; ou: "Temos no dorso as vértebrascheias, trespassadas pelo prego da dor" etc.)? ió l,S, P. 109.

Assim vê Deleuze o corPO sem órgãos, na Lógica do sentido: ainda como um corpo vivido, sem superfície, com órgãos disjuntos ou sem órgãos, mas sempre no informe da profundidade do corpo E, se o corpo glorioso, com dimensão positiva e ativa do c07POsem órgãos, como corpo tónico de forças vitais, esboça já o que será o conceito de corpo sem órgãos no Anui-Édlpo, é ainda como pólo de uma dualidade cujo oposto complementar é o corpo fragmentado e vazio, passivo. dos valores fonéticos. Deleuze tenta ainda criar duas séries: um infra-sentido,

um Unferslzzn, distinto, mas complementar

do /zon-sezzs

da superfície. Mas esta não passa do esboço de uma tentativa, logo malogra-

da: o fim do capítulo(13' série)afirma a diferençairredutívelentre Lewis Carroll e Antonin Artaud, entre as "séries de superfície" (comer-falar) do primeiro e os "pólos de profundidade" do segundo; entre as "figuras do no/z-sons"à superfície,que dão sentido, e os "mergulhos de nofz-sefzs"que arrastam e engolem o sentido num infra-sentido ( Unfersi#zn);nem o tempo do acontecimento, o aios ilimitado, tem alguma coisa a ver com "o presente físico dos corpos" em que os pólos se opõem.

Nessa irredutibilidade,Deleuzetoma partido: "Por todo Carroll, não daríamos uma página de Antonin Artaud; Artaud é o único a ter sido [sic] profundidade absoluta na literatura, e a ter descoberto um

corpo vital e a linguagem prodigiosa dessecorpo, à custa de sofrimento, como ele diz. Ele explorava o infra-sentido, hoje ainda desconhecido" i7

Como dar conta do infra-sentido, numa teoria do sentido como acontecimento de superfície? O seguimento da l,ógica do sezzffdotentará resolver esse problema. Mas, por ora, desenha-sejá uma crítica à psicanálise, incapaz de entender os jogos de corpo e de forças do esquizofrênico, sempre pronta a reduzi-los a significantesconhecidos da teoria, eu, fantasma, pulsão narcísica etc.: "Uma má psicanálise tem duas maneiras de se enganar, ao julgar descobrir matérias idênticas que

se encontram necessariamenteem toda parte, ou formas análogas que constituem falsas diferenças. Assim, ao mesmo tempo deixa-se escapar o aspecto clínico psiquiátrico e o aspecto crítico-literário" iõ Falha-se duplamente: rebate-se a clínica sobre a literatura, e re-

is l,S, P. 1 14

18LS, p. 113

duz-se um poema de Artaud a um caso patológico; rebate-se a literatura sobre o material clínico, e faz-seda história de Alice um "conto esquizofrênico". O que se deixa escapar, afinal, é o próprio sentido como camada independente-- mas imanente -- aos dois planos. É também o que falta ao comentador-filósofo -- pelo menos até este ponto de seu percurso na teoria do acontecimento-sentido:os dois mundos, o dos terrores da profundidade de Artaud e os dos jogos de superfícieda menina dc Lewis Carroll, não se encontram nunca, "só o comentador pode mudar de dimensão, e esta é a sua fraqueza, o sinal de que não habita nenhuma"lP.

V Habitar uma outra dimensão significa aqui habitar aquela fronteira que faz passar (e não rebater) a crítica para a clínica e reciprocamente: quer dizer, habitar um plano imanente aos corpos, à vida, e à linguagem, à superfície, ao sentido. E esse plano é o do pensar. Deleuze o chamará, na Lógica do sepzfido,"superfície metafísica" ou "campo transcendental"20.

Todo seu esforço será o de responder àquela série de problemas que evocamos acima; em particular, compreender na elaboração das séries o seu entrelaçamento (os capítulos "Da gênese estática lógica: e "Das singularidades", em particular, testemunham esse esforço). Toda uma teoria da superfície metafísica e da univocidade do sentido é elaborada -- e vai na direção do pensamento da imanência. Porque uma superfície metafísica ou a univocidade do sentido supõe a supressão da dualidade das séries: o fosso que as separa seria preenchido por um sentido único que atravessaria as duas séries. Como conceber um tal sentido, qual seria o seu suporte? No fundo Deleuze concebe a "superfície metafísica" do pensamento segundo o modelo da linguagem esquizo, que só comporta um nível, o dos abetos-açõesou das palavras-ações que se jogam no corpo. Linguagem

que integraas palavras na vida dos corpos, que não admite idéias acima da experiência vivida, nem tampouco corpos por baixo do sentido -- não há transcendência, tudo é imanente na linguagem esquizo.

i9 LS, P. 114. 20Cf. l.S, p. 150, p. ex.

Tal seria o pensamento filosófico na superfície metafísica; mas, ao contrário do esquizo, qualquer coisa como o corpo ou a ação jogando-se no pensamento. É certo que esse modelo foi determinante na viragem da l,ógica do sefzffdoàs obras seguintes; ele é também um objetivo pelo qual se medem o fracasso da empresa psicanalítica e as dificuldades, talvez inultrapassáveis, que encontra o pro)eto ontológico da univocidade do sentido ou "univocidade especulativa do ser e da linguagem"21 Já dissemos: no que respeita à psicanálise, ela não resolve de maneira nenhuma o problema da crítica/clínica. Da sublimação, como dessexualização,que forma a obra de arte, nada ou quase nada se sabe. E há que afirmar a autonomia da superfície metafísica, em face das reduções psicanalíticas. Mas nem por isso Deleuze consegue, com seu prometoontológico,

uma solução satisfatória ao problema da passagem do infra-sentido da profundidade dos corpos je do desejo) ao sentido da superfície. Citemos as últimas linhas do livro; nelas Deleuze evoca a "Univocidade

do sentido" e uma "poesia sem figuras", como imanência que resolveria, à maneira esquizo, mas positivamente, sem os mergulhos no sem-

fundo destrutivo dos corpos, a questão da passagem da profundidade dos órgãos ao sentido-açãodas palavras "físicas". Trata-se de fazer passar "a energia sexual ao assexual puro", "problema a que só uma obra de arte por fazer responderá". E responderá como? Construindo uma ordem, ou melhor, um ordenamentoterciário, que envolveria e "fecharia" a equivocidade das séries (primária, do desejo, e secundária, da linguagem) num "Unívoco desscxualizado" -- tal como o faz o humor. E Deleuze termina assim: "Considerando então o perpétuo entrelaçamento que constitui a lógica do sentido, constata-se que

esseordenamentofinal retoma a voz do alto do processo primário [a voz como expressão já do desejos, mas que a organização secundária em superfície retoma alguma coisa dos ruídos mais profundos, blocos e elementospara a Univocidade do sentido, breve instante para uma poesia sem figuras. E que pode a obra de arte, senão retomar sempre o caminho que vai dos ruídos à voz, da voz à fala, da fala ao verbo, construir essaÀÍ siê /ãr ein Naus, para aí reencontrarsemprea independênciados sons e aí fixar essa fulguração do unívoco, acontecimen-

zi l,S, P. 289

to recoberto demasiado depressa pela banalidade cotidiana ou, pelo contrário, pelos sofrimentos da loucura"22.

VI No Anff-Édípo a noção de corpo sem órgãos transforma-se e adquire uma precisão e uma consistência que não possuía na l,(igica do semfido.Digamos, para resumir uma passagem complexa, que a vertente do corPO sem órgãos intensivo, glorioso, vai sobrepor-se ao corpo psicótico fragmentado ou vazio: o "novo" corpo sem órgãos é pleno, cheio, intensivo. Mais: deixa de se situar na profundidade inominável do corpo para ocupar primordialmente um plano de superfície. Ele é superfície, essa superfície que a Z,óglcczdo sentido concebia como fronteira e entrelaçamentodas duas séries. E o desejo inteiro que nele se joga: sobretudo a tensão entre corpo improdutivo, estéril, que avaria e faz parar as máquinas desejantes, e um corpo abençoado ou milagroso, que atrai as máquinas do desejoe as faz de novo funcionar. O primeiro corpo é repulsivo, o segundo produz uma atração; Deleuze chama o primeiro paranóico, o segundo, esquizofrênico. Entre os dois, a "máquina celibatária" que faz funcionar diferentemente a máquina paranóica, produz um novo regime do corPO sem órgãos, o regime miraculante das quantidades intensivas. A passagemdo improdutivo ao produtivo, do corpo paranóico

ao corpo esquizofrênico, como produção de quantidades intensivas ou

intensidades, vem preencher o lugar deixado vazio, na l,ógica do sentido, pela articulação das duas séries, a da profundidade dos corpos e do desejo e a superfície de expressão, entre o U/zte sízzne o sentido. O c07Po sem órgãos é um ovo, atravessado por gradientes, latitudes, longitudes, eixos que marcam e situam os percursos das intensidades e dos devires23. Surge um conjunto de conceitos novos que descreve o funcionamento do corPO sem órgãos e que se desenvolverá

plenamente em M// P/afãs. Mas o corpo sem órgãos não vai ficar somente no centro de uma nova teoria do desejo. Deleuze irá transferi-la para o campo social e para a história. Atribui-lhe duas funçõesmaiores: 1) servir de suporte zz LS, P. 290. 23L'a/zlf-(Edfpe, Paras,Minuit, 1973, p. 26 (doravante .4E).

às síntesesdo desejo -- síntese conectiva, síntese disjuntiva, síntese conjuntiva. Em todos os casos é como superfície que o cor7losem órgãos é descrito. 2) Estabelecer um "paralelismo" entre a produção de desejo, sua inscrição e captação, e a produção capitalista, seu registro e seu consumo. O capital aparece primeiro como um c07Posem órgãos. Mas, num dado momento, ao analisar a extraordinária potência das intensidades desencadeadas pelo corPO sem órgãos na produ-

ção de desejo, Deleuze e Guattari perguntam: como foi possível dar do esquizofrênico esta imagem de um "farrapo autista, separado do real e cortado da vida?"24. E a resposta à questão inflecte o paralelis-

mo para uma convergência (das duas novas séries, da produção do desejo e da produção capitalista): o farrapo autista seria um produto da psiquiatria, e da produção social. Mais: não será pelo mesmo processo que a psicanálise reduz o neurótico a "uma pobre criatura que consome eternamente

um 'papai-mamãe'

e mais nada"z5

Essa inflexão do paralelismo para a convergência ou mesmo para a coincidência tem efeitos decisivos: não se trata de fazer do c07POsem órgãos uma metáfora do campo social (Deleuze tem horror das metáforas) mas, primeiro, criar um plano único de realidade, de modo que o desejo implique o soclzís, como este contém aquele. Não é por acaso que a psicanálise faz a mesma coisa que o capitalismo e a psiquiatria, é porque o capitalismo é também um produto do desejopsicótico. Esse plano único é um plano de imanência, imanência da produção do desejo, da produção capitalista e da produção das formações de poder nos "Selvagens", nos "Bárbarosre nos "Civilizados". A extraordinária imbricação de todos essesníveis num só plano testemunhao novo regime ao qual Deleuze-Guattari submetemos seusconceitos. O plano de imanência (ou c07POsem órgãos), não designa uma realidade fora dele: não é nem da ordem do simbólico, ncm do imaginário, mas só ele é real. E é o real (porque os novos conceitos participam, quer dizer agemsobre o real). Não há, pois, que perguntar se o corPO sem órgãos, como o "corpo da Terra" das sociedades primitivas, ou como "superfície de inscrição" do capital na sociedadecapitalista, é uma metáfora, ou se existem aplicações metafóricas da noção de corPO sem órgãos: pelo contrário, como este, na sua produção 24.4E, p. 26.

25AE, pp. 26-7

de intensidades, é o único real, aquelas são os seus modos, como planos dentro de um só plano, ou como acontecimentos de um só Acontecimento, por onde se comunicam todos os acontecimentos, como o concebia a Lógica do se?zlfdo.O "Êdipo" circula através de todos os planos (de desejo, de trabalho, de produção, de poder) desse único plano. O paralelismo entre a produção dose)antee a produção capitalista (e as respectivas formas de repressão) tornou-se inerência, l-erso e reverso de um mesmo plano. Um segundo efeito nasce da própria operação que faz surgir a coincidência: ao fazer convergir os conceitos críticos que trabalham nos dois planos Ido desejo e do campo social), Deleuze é levado a implica-los e a implicar-se ele mesmo num mesmo movimento de pen-

samento (da imanência). Primeiro, a coincidência dos planos ocorre ao mesmo tempo que a passagemdo corpo vazio ao corpo glorioso ou pleno: ao recusar ver no esquizo um farrapo autista, Deleuze e Guattari encaram-no como uma espéciede falsa realidade criada pelas instituições psiquiátricas, as quais por sua vez resultam de um poder social e económico; mas que, por seu turno, resultam de um certo regime de desejo. A crítica da idéia de "farrapo autista" implica portanto a crítica de todo o sistema de poder sobre o social; não somente da ideologia psicanalítica mas de sua prática e de sua teoria. Crítica que não se poderia exercer sem adotar o único ponto de vista oposto ao regimedo desejo reprimido (o do corpo esquizo vazio): tomar-se-á partido pelo regime pleno do c07Po sem órgãos. Isso equivale a quebrar com todas essasformações do desejo e do poder repressivo e entrar por si mesmo num devir-doido, num devir-esquizoglorioso -- e delirar a história inteira. Num certo sentido, é o que fazem Deleuze e Guattari no Anil-Edlpo: produzem-se a si mesmos enquanto sujeitos intensivos sobre um corpo sem órgãos de intensidade = 0, segundo a descrição de certas páginas admiráveiszÓ. Ao transformar o corpo vazio em corpo pleno, Deleuze e Guattari obtêm a convergência dos planos (em que se desenvolve a crítica da repressão) num só plano, que os contém todos. Assim eles criam o plano de imanência do co/PO sem órgãos em que eles próprios se en-

contram incluídos.

Se a operaçãocrítica da concepçãodo esquizocomo "farrapo zó Cf. AE, pp. 25-9.

autista" instaura ao mesmo tempo o plano de imanência, é porque o sujeitocrítico (autor do A?zli-Édito) se implica elemesmo na imanência: pertence ao plano e nele se produz. O que significa: 1) que o movimento da crítica será doravante um movimento de criação de conceitos. Com efeito, o movimento que traça o plano não segue uma lógica discursiva (de conceito a conceito, formalmente), mas uma lógica das potências. A imanência tFaz necessariamentea criação de conceitos, porque a crítica já não possui referentestranscendentes(essências, valores), não avaliando senão pelas intensidades que a levam e que ela cria. Está pois condenada à criação de conceitos, segundo uma lógica das intensidades. Disso Á/zfi-Édlpo, À4i/P/afãs e O que é a P/osoPa? constituem exemplos maiores. 2) Que a própria noção mesmo de conceito muda, assim como a imagemdo pensamento.Doravante o conceito não se definirá pelo seu regime discursivo, mas por seu poder de criação-ação. A propósito de sua obra e nomeadamente de sua crítica à psicanálise antes do ÁnfJ-Édlpo,

Deleuze diz: "Eu trabalhava

uni-

camente com conceitos, e de maneira ainda tímida"27. E Guattari, na mesma entrevista, falando do A/zfl-Édlpo: "Em nosso livro as operações lógicas são também operações físicas"28: tal como as palavras do esquizofrênico. Vai-se buscar o modelo de trabalho do conceito na idéia esquizo da ação das palavras; e a imanência, tal como é pensada no Golfo sem órgãos, dela deriva naturalmente. Claro que Deleuze-Guattari não pensam a ação do conceito à maneira dos esquizofrênicos (a enunciação como uma ação material e corporal do sentido: como uma ação mágica). Que significa então o pensamento como "operação física" ?

O pensamento deixa de evoluir em sua esfera própria, isolada, afastada de vida, e torna-se um fluxo no corpo sem órgãos (plano de consistência); desposa agora o movimento das intensidades que nele circulam: movimento, que ele descreve, do desejo ou do capital. Desposar o movimento, prolonga-lo ao extremo, descrever sua trajetória, adivinhar o que supõe, experimentar devires(-- mulher, -animal, -- mineral) sempre na superfície do corPO sem órgãos: eis o novo movimento de pensamento no .Anil-Edlpo e nas obras seguin27Pozflpar/ers,Paris, Minuit, 1990, p. 24 IdoravantePI

28P, P. 26.

tes. Deleuze encontra, no plano da escrita, o plano de iminência: ao mesmo tempo que descreve o funcionamento do corPO sem (irg'2os, faz

participar esta descrição nessefuncionamento (tal como em O que é a /;/osoÕa?, ele traça o plano de imanência enquanto o definem. Eis como seu pensamentose torna ação: não porque apelaria à ação que viria em seguidacomo seu prolongamentodireto, mas porque convoca uma lógica das potências. Pensar é uma potência: pensar-se-á pois no movimento e ao engendrar esse mesmo movimento que leva o pensamento -- sempre na imanência. De tal maneira que pensar se torna um movimento de vida. O pensamento da intensidade torna-se potência e intensidade do pensamento.

Vll Tudo parecia pronto, na Lógica do senado, para que surgisse esse

novo regime de pensamento.

De fato, tratava-sede traçar o plano de imanência. Na Lógica do se/zfído.Deleuze tinha tentado uma vez. sem sucesso. com a "superfície metafísica" e "a Univocidade do ser e do sentido"; consegueo na segunda vez com o coco sem órgãos, no Ánfi-Edipo Iremodelará o traçado uma última vez em O que é a /i/oso/;cz?:na verdade foiIhe sempre introduzindo modificaçõesl. Tudo estava preparado. los dispositivos, a maior parte dos concei-

tos: multiplicidades, diferença, singularidades nõmades, zonas de vizinhança e de indiscernibilidade, heterogênese), e no entanto a l,ógica do

sefzffdonão traça o plano de imanência. Como diz Deleuze da instauração do Cogflo cartesiano: "Tudo parecia pronto e, no entanto, algo faltava.

O conceito anterior remetia talvez a um outro problema, diferente da-

quele do Copito (é preciso uma mutação de problema para que o Copito cartesiano apareça), ou mesmo se desenrolava num outro plano"z'

Do mesmo modo, poder-se-ia dizer: o conceito de Univocidade do ser e do sentido remetia ainda a um outro problema e a um outro plano o de tornar o sentido imanente ao ser, num plano em que o pensamento seria imanente à vida; mas não se tratava ainda senão de um problemade pensamento,em que a vida era pensadaje não o pensamentovivido como vida): a l,ógicczdo sezzffdoapelava pata um pensamento imanente à vida num plano em que a vida seria imanente

29Qu'esf-ce que /a pbí/osopble?,Paria, Minuit, 1991, p. 3 1 Idoravante epal.

ao pensamento30. Completamente diferente é um pensamento que mergulha na vida, e se deixa por ela irrigar e animar. Tudo muda quando o pensamento, deixando de ser pensamento da vida, torna-se ele próprio vida, quando a imanência, deixando de ser o conceito de uma relação j"imanente 'a'") passa a ser ação do próprio pensamento, enquanto vida do e no pensamento. É dessa maneira que todo o dispositivo elaborado na Lógicczdo se/zf/dopara captar o nascimentodo sentido será retomado no Á/zfiÉdlpo, mas com uma modificação essencial: o movimento que anima os conceitos e as coisas que designam é o mesmo movimento de vida no c07POsem órgãos. As relações "lógicas" dos conceitos da l,ógica do sentidoencarnam-seagora nos movimentosreais do desejo:e isso muda tudo. Por exemplo, quando Deleuze se refere ao campo transcendental que quer constituir na Lógicczdo se zffdo ("impessoal e pré-individual, que não se assemelha aos campos empíricos correspondentes e que não se confunde com uma profundidade indiferenciada"3i), evoca as "emissões de singularidades, enquanto se produzem numa superfície inconsciente e enquanto gozam de um princípio móvel imanente de auto-unificação por distribuição nõmade, que se distingue ra-

dicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses da consciência. As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais"32.

No Ánfi-Édfpo

esse "princípio móvel de

auto-unificação" terá sua sede no corPO sem órgãos; e a "energia pç)tencial", como "energia do acontecimentopuro"33 que distribui as singularidades nâmades torna-se, no Anil-Édlpo, a energia das quantidades intensivas que percorrem o corPO sem órgãos e se distribuem

30Ver a respeito as belas páginas de "Porcelana e vulcão", sobre Fitzgerald

e Lowry: trata-se aí do "ridículo do pensador" que "brinca" e "fica à beira" da

vida. "Em verdade, como ficar na superfície sem permanecer à margem? Como salvar-se, salvando a superfície e toda a organização de superfície, inclusive a linguagem e a vida? Como atingir essa po/bica, essa gwerri/ba completa? IQuantas liçõesa receber ainda do estoicismo.-l " Questões que encontrarão resposta quando Deleuze cruzar com Marx, Maio de 68 e Fénix Guattari.

3i LS, P. 124. 3z LS, PP. 124-5.

LS, P. 125.

à volta de órgãos segundo limiares de intensidade. Toda a descrição do campo transcendental34é retomada no Abri-Édlpo, mas com o co/PO sem órgãos como "superfície", o desejo como princípio de uni-

ficação e de distribuição das singularidades, e os devires como princípio de sua diferenciação e movimento. Eis o que significa a expressão de Guattari, tratar as "operações lógicas como operações físicas' O que é que precipita essa mudança na filosofia de Deleuze? Se é verdade que o plano "implica uma espécie de experimentação tateante, e [que] seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e sensatos"35, seria vão procurar articulações lógicas que explicassem a passagem do regime de pensamento da l,ógíca do senado

ao do .A/zfl-Édlpo (seria necessário evocar Maio de 68 e o encontro com Guattari, no registro do que desencadeou sem dúvida o salto que constitui o plano de iminência). Mas é possível detectar um elemento determinante na transformação do pensamentoda l,óglca do se/zlido: a nova idéia do c07PO sem órgãos como superfície de intensidades. Ela forneceu a Deleuze a noção, essencial para sua filosofia, de uma "experiência" (termo que Deleuze não aprecia muito, por causa do seu uso fenomenológico) particular, sem medida, que ultrapassa todo sujeito e toda consciência, e que constituirá o solo e o alimento de seu pensamento (estético, filosófico, ético, políticos. Husserl dizia que o tipo de experiênciade cada filósofo definia sua filosofia. Deleuze construiu seu campo de experimentação" transcendental com os conceitos de devires intensos e intensidades que percorrem o corpo sem (órgãos (plano de consistência, plano de imanêncial. "Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas em estado puro, a um ponto quase insuportável [...]. O dado a]ucinatório (eu vejo, eu ouçol e o dado delirante(eu penso. .) pressupõem um 'eu sinto' mais profundo, que dá às alucinações e ao delírio do pensamentoseu conteúdo. Um 'eu sinto que me torno mulher', 'que me torno deus' etc."36. Ou ainda: "Os seios no torso nu do presidente [Schreberl não são nem de]irantes nem a]ucinatórios, eles designam primeiro uma faixa de intensidade, uma zona de intensidade em seu 34LS, PP. 125-6. 35QPb, p. 44. 3ó.4E, p. 25.

corPOsem órgãos. [...] Nada aqui é representativo,mas tudo é vida e vivido: a emoçãovivida dos seiosnão se assemelhaa seios, não os representa [...]. Nada senão bandas de intensidade, potenciais, limiares e gradientes. Experiência dilacerante, demasiado emocionante, pela

qual o esquizo é aquele que mais se aproxima da matéria, de um centro intenso e vivo da matéria"37. Nesse "movimento vital", "o estado vivido é primeiro relativamenteao sujeito que o vive"j6 Não se trata, portanto, nem de "experiência vivida" psicológica ou estética, nem de "experiência" do pensamento, mas do que, ultrapassando-as a todas (em intensidade e em "extensão": mergulhando no inconsciente), permite pensa-las como um campo transcendental39. Desmedida, ela dá, no entanto, a medida da avaliação crítica: é em seu nome que Deleuze recusa a fenomenologia da arte cuja Urdoxa

só seria capaz de fundar as opiniões e as emoções do senso comum, enquanto sua estética das sensações supõe "uma Potência mais profunda e quase invivível"40. É ela que permite a Deleuze pensar a articulação crítica/clínica, "a especificidade do artista, ao mesmo tempo como doente e médicoda civilização"4i, a "literatura como saúde", o delírio como "criação de saúde"42. Enfim, é ela que permite ao conceito de vida atravessar todo o campo transcendental do pensamento.

37AE, P, 26. s8AE, p. 27. s9 Cf. "L'immanence:

une vie.-",

in Pbf/osopbie,

n' 47.

40Francês Bacon. l,ogiqHe de /a se/zsafio/z,11,Paris, La Différence, 1981 P. 33. 4í l,S, P. 227.

42Crifiqz/eet c/i/ligue,Paris, Minuit, 1993, pp. 14-5

O TEMPO NÃO-RECONCILIADO Peter Pál Pelbart

Ts'ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres "da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetese ainda da erudição" a fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-

se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipótese a respeito: "Ts'ui Pen teria dito uma vez: 'Retiro-me para escrever

um livro'. E outra: 'Retiro-me para construir um labirinto'. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto"l. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts'ui Pen escrevia: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu

jardim de caminhosque se bifurcam". "Quase de imediato", refere Albert, "compreendi;o jardim dos caminhosque se bifurcam era o romance caótico; a frase 'vários futuros (não a todos)' sugeriu-mea imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts'ui Pen, opta -- simultaneamente -- por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos

tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance" . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts'ui Pen

não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda sua vida: o abismal problema do tempo. Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts'ui Pen: "0 jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts'ui Pen. l J. L. Borges, "0 jardim dos caminhos que se bifurcam", Ficções, trad. Carlos

Negar, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 78.

Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxi-

mam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos;

em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. [...] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num delessou seu inimigo: Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apresentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts'ui Pen é um precursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nossotempo. Num outro tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts'ui Pena. Peço indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas páginas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze3. Nelas consta

que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médico, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especialista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem

de Ateneu: a voz de Deleuzeera comparável a um ralador, ou a uma enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota

biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: "Houve uma multidão de outros Deleuzes". É grande a tentação de pedir ao doxógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimento: terá havido uma multidão de outros Deleuzesao mesmo tempo, ou em tempos diferentese sucessivos?Foram eles contraditórios entre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos

2 Paráfrase de nota de rodapé de José Gil, em seu Perna zdo Pessoa ou La méfapbysíqzle des sensafio?zs:"Tendo a leitura de Pessoa feito surgir, uns depois dos outros, os temas de]euzeanos [.-] uma convicção inabalável se formou: Fer nando Pessoa [eu De[euze! O inverso não se verificou [-.]". Paras, La Différence, 1988, P. 73. 3 Pbf/osopbie,

n' 47, 1995, pp. 8-9.

distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que espéciede mundo aberrante os terá acolhido a todos? DELEUZE TS'UI PEN DeleuzeTs'ui Pen trancafiou-se por anos no Pavilhão da Multitudinária Mestiçagem. Teria dito uma vez: "Retiro-me para escre-

ver um livro". E outra: "Retiro-me para construir um labirinto". O

pouco recuo de que dispomos ainda hoje nos leva a suspeitar, inspirados na perspicácia do sinólogo Albert, que o que o vulgo imagina seremduas obras diferentesconstitui, de fato, uma só. E, tal como no caso de Ts'ui Pen, a arquitetura labiríntica de alguns dos textos do filósofo pareceresponder não a um capricho de literato, ou a um experimento mundano, porém, a uma inquietação constante raramente explicitada, como se fosse por demais abismal para poder ser exposta numa forma outra que não a da charada, da alusão ou do anúncio.

Um pouco como Zaratustra, ao anunciarde forma tão alusivae enviesadasua idéia do eterno retorno, que o próprio Deleuze pretende ter explicitado. DeleuzeTs'ui Pen, diferentementede Newton e Schopenhauer, não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes,convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmentese ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas -- isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. O filósofo Deleuze Ts'ui Pen fez ressoarem e igualmente destoarem a multidão dos outros Deleuzescuja existência o lexicógrafo Suidas reporta. É preciso, dizia Deleuze,recusar a regra de Leibniz segundoa qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência caso sejam incompossíveis com aquele que Deus escolhe. Cabe afirmar os incompossíveis num mesmo mundo estilhaçados Não podemos deixar de ver aí, pressuposta e entrelaçada, uma curiosa tesesobre a multiplicidade temporal. Seu indício primeiro, em Deleuze, são os inúmeros tempos que operam em sua obra, nem sem4 G. Deleuze,A Dobra, trad. Luiz B. L. Orlandi, Campinas, Papirus, 1991 p. 105 [no original,

p. P01.

pre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura. Eis alguns dos fragmentos que compõem o bizarro mosaico deleu-

zeano do tempo, com suas respectivas colorações: o presente como síntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente (Plotino, Humej; o passado como Memória ontológica,Memória-mundo,

Cone Virtual IBergson); o futuro como retorno seletivoque rejeita Sujeito,Memória, Hábito (Nietzsche); a oposiçãoAion/Cronos (estóicosl; o tempo do Acontecimento IPéguy, Blanchotl; o Intempestivo INietzschej; o tempo como "defasagem" (Simondonj; a Cesura e urn tempo que já não "rima" IHõlderlinj; o tempo perplicado, o tempo puro ou reencontradoda arte (Plotino, Proustj; o tempo liberado de sua subordinação ao movimento IKant versus Aristóteles); o tempo como Diferença, ou como Outro (Platão contra Platão); o tempo como Potência, não como Finitude IBergson versus Heidegger); o tempo como

Fora (Blanchot, Foucaultl.

Desses poucos tempos ou conceitos de tempo que se desdobram em cascata vertiginosa ao longo dos livros de Deleuze, irrigando-os de

ponta a ponta, algumas incoerências saltam à vista e parecem estilhaçar a obra, que no entanto simultaneamente os afirma. As bifurcações maiores suscitam no leitor a pergunta: mas, afinal, Deléuze concebe o tempo como contração ou como cisão? como dobra ou desdobra? como um transcendental ou como o virtual? Trata-se de um tempo puro

e vazio, ou de um tempo ontológico, pleno de pontos singulares?Tempo reto ou rizomático? Tempo como interioridade ou como exterioridade? Tempo como Todo ou como Fora? Tempo como Forma ou como Potência?

A DRAMATIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA As teses maiores de Deleuze sobre o tempo reaparecem de maneira dramatizada em seus livros de cinema, onde conquistaram uma operacionalidadeestéticaque as ilumina em seu conjunto "encadeado". Tomemos a idéia mais enigmática que organiza esses livros, o terna

da emancipação do tempo. "The time is out of joint", exclama Hamlet. O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos eixos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberada? Ê um tempo liderado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno de seu eixo e encadeadoe direcionado conforme a sucessãode seuspresen-

tes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do presenteque antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina graças a um incessantecultivo, a um cuidado, a um controle, a uma correção dos seus excessos. "Privado dessaassistência, ele fica imediatamente propenso a transgressões, a uma aberração selvagem, a travessuras irresponsáveis, a uma palhaçada amorfa."S Schulz lembra que

carregamos uma carga extranumerária que não cabe no trem dos eventos e no tempo de dois trilhos que o suporta. Para essecontrabando precioso, chamado por ele de Acontecimento, existem as tais faixas laterais do tempo, desvios cegos, onde ficam "suspensos no ar, errantes, sem lar", num entremeado multilinear, sem "antes" nem "depois",

nem "simultaneamente", nem "por conseguinte", o mais remoto murmúrio e o mais longínquo futuro comunicando-se num início virginal. Assim, no seio do tempo contínuo dos presentes encadeados jcronosl insinua-seconstantemente o tempo amorfo do Acontecimento jaion), na sua lógica não dialética, impessoal, impassível, incorpórea: "a pura reserva", virtualidade pura que não pára de sobrevir. A esse propósito Deleuze salienta um procedimento cinematográfico que consiste em desvincular as pontas de presente de sua própria atualidade, subordinando esse presente a um acontecimento que o atravessa e o transborda, no qual justamente não há mais passado, presente, futuro, enrolados que estão no acontecimento "simultâneo, inex-

plicável". No Acontecimento coexistemas pontas de presentedesatualizadas. ou ainda um mesmo acontecimentose distribui em mundos distintos segundo tempos diferentes, de modo que, o que para um é passado,

para outro é presente,

para um terceiro

é futuro

-- mas é o

mesmo acontecimento (O ano passado em À4arle/zbadl.Tempo sideral ou sistema da relatividade, diz Deleuze, porque inclui uma cosmologia pluralista, no qual um mesmo acontecimento se distribui, em versões incompatíveis, em uma pluralidade de mundos. Eis não um deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis, mas um Processo que passa por todos eles,afirmando-os "simultaneamente". Ê um sistema de va

nação: dado um acontecimento, não rebatê-lo sobre um presente que o atualiza, mas fazê-lo variar em diversos presentes pertencentesa 5B. Schulz,O Sanézfórfo, trad. H. Siewierski,Rio deJaneiro, Imago, 1994

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mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles pertençam a um mesmo mundo estilhaçado. Ou, dado um presente, não esgota-lo nele mesmo, encontrar nele o acontecimento pelo qual ele se comunica com outros presentesem outros mundos, mergulhar a montante no acontecimentocomum em que estão implicados todos: o Emaranhado Virtual. Supõe-seaí uma gigantescaMemória ontológica, constituída por lençóis ou jazidas de passado, espéciesde estratos, que se comunicam entre si para afunilar-se, exercendo pressão sobre uma ponta de presente. Alguns personagens de Resnais, por exemplo, passando de um estrato a outro, passeando entre os níveis, atravessando idades do mundo, transversalizando o Tempo ou recriando a cada vez as distâncias e proximidades entre os diversos pontos singulares de suas vidas. Para ficar numa imagem cómoda, o tempo como um lenço: a cada vez que assoamos o nariz, nós o enfiamos no bolso, amarrotando-o de maneira distinta, de forma que dois pontos do lenço que antes estavam distantese não se tocavam (como dois momentos da vida, longínquos segundo uma linha do tempo) agora tornam-se contíguos, ou mesmo coincidem, ou, ao contrário, dois pontos em princípio vizinhos agora se afastam irremediavelmente. Como se o tempo fosse uma grande massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias en-

tre os pontos nela assinalados. Curiosa tipologia em quee assistimos a uma transformação incessante, modulação, que reinventa e faz variar as relações entre os vários lençóis e seus pontos cintilantes, cada rearranjo criando algo novo, memória plástica, sempre refeita, sempre por vir. Massa do tempo modelável,ou melhor, modulável, e sobre a qual Deleuze chega até a exclamar, como um Cristóvão Colombo:

é a Terra, meio vital lamacento! Quando o cinema se embrenha nessa ordem de coexistência virtual eleinventa seus lençóis paradoxais, hipnóticos, alucinatórios, indecidíveis.Nesse filão bergsoniano, a memória deixa dc ser uma faculdade interior ao homem, é o homem que habita o interior de uma vasta Memória, Memória-Mundo, gigantesco cone

invertido, multiplicidade virtual da qual somos um grau determinado de distensãoou contração. O filósofo e o porco, como numa metempsicose, retomam o mesmo cone, a mesma vida em níveis distintos, graceja Deleuze. O tempo passa então a ser concebido não mais como linha, mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim massa, não sucessão, porém coexistência, não um círculo, mas turbi-

lhão, não ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo a uma consciência -- a consciência do tempo --, mas à alucinação. Enlouquecimento dessetempo fora dos eixos, não sem relação com o tempo daquelesque, fora dos eixos, são ditos loucos. TEMPO E LOUCURA Sempre que fala do tempo, Deleuze evoca um desregramento: tempo descentrado, aberrante, selvagem, paradoxal, flutuante, ou mes-

mo afundado. Não parece abusivo considerar que o enlouquecimento do tempo tal como Deleuze o trabalha comunica-se diretamente com a temporalidade da loucura dita "clínica". Enquanto isso, em contrapartida, boa parte da literatura sobre as psicosesse vê inteiramente desarmada diante das múltiplas figuras temporais que proliferam a olhos vistos na clínica, e quc as teorias "psi" têm dificuldade em abarcar, tendo em vista uma normatividadetemporal da qual são necessariamente prisioneiras. É muito raro que se pensea temporalidade da psicose por um viés outro, não sob o modo privativo. Mesmo na abordagem fenomenológica ou existencial das psicoses, desde Minkowski até Maldiney, passando por Binswanger ou Jaspers, apesar do inegável interesse descritivo que ela apresenta, nela a multiplicidade constatada acaba sendo referida a uma modalidade pressuposta como ideal,

priorizando-se, por exemplo, certas estruturas de estar-no-mundo, a transcendência, a antecipação, o prometo,a partir de um presente originário etc. Mas também no interior da literatura estritamente psicanalítica, com raras exceções, a não-unicidade da experiência temporal psicótica é subsumida à sua futuração malograda, na forma das representações atemporaisÕ. De modo que há uma iminência caótica que é recusada em nome de um alhures significante precisamente não assumível pelo psicótico. Enfim, toda uma apologia da historicização, cujo ponto de apoio é o eu historiador, como diria Piera Aulagnier. Assim, de algum modo a temporalidade acaba sendo identificada à historicização. Com tudo o que essa perspectiva possa apresentar de interessante, ou útil, e até de necessária na clínica, ela tem o inconveniente de dificultar o acolhimento dos devires na psicose. A reflexão de Deleuze e Guattari, ao contrapor os deveresà história, poderia ajudar

6 Seria preciso citar uma exceção recente e notável, de Sylvie Le Poulichet L'oez/z/re d femPs e z psycbana/yse, Paris, Payot &: Rivages, 1994.

a repensar essa heterogeneidade temporal da psicose que tanto desa-

fia o tempo da razão, mesmo psicanalítica.

Deleuze o diz claramente: a História é um marcador temporal do

Poder/. As pessoas sonham em começar ou recomeçar do zero, e também temem aonde vão chegar, ou cair. Sempre buscamos a origem ou o desfecho de uma vida, num vício cartográfico, mas desdenhamos o meio, que é uma antimemória, que é onde se atinge a maior velocidade. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comunicam e se cruzam, onde está o movimento, a velocidade,o devir, o turbilhão, diz Deleuze literalmente8.E a pergunta que se impõe é simples: de que figura temporal dispomos para pensar esse meio turbiIhonar, ou a desterritorializaçãocomo primeira, ou a multiplicidade virtual? De qualquer modo, não deveria deixar de intrigar-nos o fato de que certos fenómenos de perturbação psíquica expõem, mais do que quaisquer outros, a virtualidade pura enquanto virtualidade, descolada

precisamente de qualquer atualização centrada ou orientada, abrindo-se para incongruências temporais diversas, que também o cinema, a seu modo, não cansou de explorar desde o seu início. IMAGENS DE TEMPO

O cinema teria servido a Deleuze, como sugerimosacima, para revelar determinadas condutas do tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares, espiraladas, declinantes, quebradas, sal-

vadoras, desembestadas,ilocalizadas,multivetoriais.Tempo como bifurcação, defasagem,jorramento, oscilação, cisão, modulação etc. E plausível presumir que o interesse que Deleuze Ihe dedicou venha de uma determinação mais radical que ele mesmo deixou entrever, ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento. O pensamento e o tempo estariam assim, desde logo, numa relação de co-pertinência indissolúvel. Com efeito, o quc se depreende dos textos de Deleuze a respeito do tempo é que o próprio pensamento não poderia permanecer alheio ao projeto de liberar-se de uma certa idéia de tempo que o formatou, bem como do eixo

que o encurva. Nesse sentido, a exclamação enigmática de Hamlet sobre o tempo que sai dos eixos vai de par com a exigência de um 7 G. Deleuze e C. Bene, Superposífions, Paras, Minuit, 1980, p. 103. 8 Idem, pp. 95-6.

pensamento fora dos eixos, isto é, de um pensamento que deixasse de girar em torno do Mesmo. Assim, como critica uma imagemdo pensamentodita dogmática, Deleuze fustiga uma imagem de tempo hegemónica. Ao reivindicar um pensamento sem imagem, para que possam advir outras imagens ao pensamento, Deleuze também reclama um tempo sem imagem, para que se liberemoutras imagensde tempo. A imagemdo pensamento dita dogmática é bem conhecida: ela é explorada desde Níefzscbe e a P/osoPa até O que é a P/oso8a?. Mas qual seria a imagem de tempo hegemónica recusada por Deleuze? Para irmos rápido, diremos: é a do tempo como círculo. Não se trata propriamente de um tempo circular, mas do círculo como uma estrutura profunda, em que o tempo se reconcilia consigo mesmo, em que começo e fim rimam, como diz Hõlderlin. O que caracteriza o círculo é sua monocentragem em torno do Presente, de seu Movimento encadeado e orientado, bem como sua totalização subjacente. O círculo, com seu centro, metáfora do Mesmo. E, ainda que o Presente se situe num passado remoto e nostálgico, ou num futuro escatológico, nem por isso deixa de continuar funcionando como eixo que encurva o tempo, em torno do qual elegira, redesenhandoo círculo do qual pensávamos ter escapado. Trata-se aí, em última instância, ainda e sempre, do tempo da Re-presentação. Ao tempo como Círculo, Deleuze contrapõe o tempo como Rizoma. Não mais Identidade reencontrada, mas Multiplicidade aberta. A lógica da multiplicidade foi exposta e trabalhada, entre outros textos, na descrição do rizoma em Mfl P/afãs. Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conectacom qualqueroutro, eleé feito de direções móveis, sem início ou fim, tendo apenas um meio, por

onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar, sem sujeito nem objeto. O que vem a ser o tempo, quando ele passa a ser pensado enquanto multiplicidade pura ou operando numa multiplicidade pura? O rizoma temporal não tcm um sentido (o sentido da flecha do tempo, o bom sentido, o sentidodo bom senso,que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado), nem reencontra uma totalidade prévia que, abolindo-se, ele se encarregaria de explicitar no Conceito. Ele não possui um sentido e é alheio a qualquer teleologia. Mas será esta a última palavra de Deleuze a respeito do tempo? Pois essa multiplicidade virtual é como que arada e remexidaem todos os seus pontos, em toda sua extensão, não mais por um Círculo,

que o autor recusa, mas pelo que se poderia chamar -- e a expressão

já está no Tlmewde Platão-- de um Círculo do Outro. Um círculo cujo centro é o Outro, este outro que jamais pode ser centro precisamente porque é sempre outro: círculo descentrado. É a figura que melhor convém à leitura original que Deleuze faz de Nietzsche: na repetição retorna apenas o não-Mesmo, o Desigual, o Outro -- Ser do Devir, Eterno Retorno da Diferença. Pode-se chamar esse Outro de Futuro ja repetição régia é a do

futuro, diz Diferença e repetição). Mas, se há em Deleuze, como em Heidegger, um privilégio do futuro, ele não é deduzível de uma problemática da Finitude, e sim da Obra, que rejeita seus andaimes, Hábito, Memória, Agente. O futuro não é, para o homem, uma antecipação de seu próprio fim, de sua própria morte, a possibilidade extrema de seu ser, nada que se aparente a um ser-para-a-morte, já que não é a partir da ipseidade que ele pode ser pensado, mas de um fluxo proto-ântico. Se na elaboração desse futuro por Deleuze o Aberto é uma referência importante, ela aí remete ao Fora, mais do que ao Ser. Digamos que o Aberto de Deleuze está mais para Blanchot do que para Heidegger. É sob o signo da Exterioridade, portanto, que o pensamento pode ganhar uma determinação de futuro. Mas seria preciso acolher todas as implicações de uma tal idéia. Poderíamos começar por onde elas aparecem do modo mais palpável, mais imagético, isto é, pelo cinema. Se desde a origem ele promove movimentos aberrantes que descentram a percepção, mudando a escala, a proporção, a aceleração, a direção, tirando o próprio movimento

de seu eixo, o cinema também compensa essas aberrações através da montagem, conjurando-as, reabsorvendo-as, amortecendo-as. Mas che-

ga um momento em que essa ordenação e essa normalidade do movimento entram em crise, de modo que o movimento perde seu eixo, seu ponto de gravidade, sua motricidade, e a relação orgânica entre os movimentos se desmancha, o encadeamentosensório-motor se desfaz. a crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mundo também desmoronou. O que significa essa crise, mais radicalmente? Não só que a organicidade da ação no mundo desfez-se, mas que o mundo como organicidade e totalidade foram abalados. Na esteira de um tal terremoto, surgem encadeamentos fracos entre as situações, elos frouxos entre os espaços, aumenta a função do acaso, emerge uma

realidade dispersiva, os personagensflutuam em meio às situações,

desfaz-se a intriga, a história, a ação. Já fica mais difícil dar uma imagem do Todo do tempo, orgânica, dialética, espiralada, porque o que se esboroou foi a representação indireta do tempo que a imagem-movimento fornecia. O movimento aberrante, em contrapartida, vai apresentar o tempo diretamente, diz Deleuze, do fundo da desproporção das escalas, como em Orson Welles, da dissipação dos centros, dos falsos raccords. O próprio interstício entre as imagens se libera, de modo que o cinema deixará de ser o cinema do Uno, que por associação de imagens jmontageml visa o Todo do Tempo, para instalar-se no interstício, entre

as imagens. O Tempo não mais como Ser, mas como Entre, não mais regido pela forma verbal É, mas pela conjunção E, escavação do Fora. O cinema moderno coloca em xeque constantemente, através de seu regime, o curso empírico do tempo. Na sua busca do transcendental, isto é, da forma do tempo, acaba sendo aspirado pela idéia de um Fora mais exterior que qualquer exterior, mais interior que qualquer interior, matéria-prima do tempo. A chave desse desenlacepode ser resumida pela frase que caracteriza a filosofia de Deleuze como um todo: "0 específico de uma pesquisa transcendental consiste em não podermos detê-laquando queremos. Como é que poderíamos determinar um fundamento, sem sermos precipitados para além, no semfundo de que ele emerge?"V IMAGEM DO TEMPO, IMAGEM DO PENSAMENTO Como já se disse, a crítica de Deleuze a uma imagem do pensamento dita dogmática é feita em nome de um pensamento sem imagem. Ora, isso significa que o pensamento, sem um Modelo prévio do que seja pensar (por exemplo: pensar é buscar a verdade), abre-se a outras aventuras(por exemplo:pensaré criar). Tudo muda de um para outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clás-

sico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da criação, por outro.lO E cada um deles é inseparável de um certo conceito de tempo que o preenche. Por exemplo, no plano de imanência clássico, do pensamento como busca da verdade, Deleuze assinala três mo9 G. Deleuze, Apresentação de Sacber-À4asocb, trad. José Martins Garcia,

como SzzcberM[asocb,Lisboa, Assírio & A]vim, 1973, p. 124 [p. 98].

10G. Deleuzee F. Guattari, O qne é a /i/osoÕa?,trad. BentoPrado Jr. e

A[berto A[onso Muõoz, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 55 [p. 73].

mentor distintos: tempo como interioridade (na reminiscência platónica, a verdade pressuposta corno imagem virtual de um já pensado que redobra todo conceito), tempo como instantaneidade (no inatismo cartesiano, o tempo é expulso do conceito: entre a ideia e a alma que a forma enquanto sujeito, toda distância temporal é anulada), tempo como forma da interioridade lo tempo reintroduzido por Kant no sujeito, e cindindo-o). Temos assim, em poucas linhas de O qz/eé a /ileso/}a?, uma nova história do tempo -- anterioridade, instantaneidade, interioridade, ou melhor, reminiscência,inatismo, a priori, três conceitos de tempo. O tempo posto no conceito, o tempo expulso do Cogifo, o tempo reintroduzido no sujeito, mas como fissura ou variação. No contexto em que são retomados, parecem indicar que a idéia de tempo de cada filósofo é índice do plano de imanência que eleerigiu, ou sobre o qual se instalou. Assim, se essestrês momentos correspondem ao plano de imanência clássico lo pensamento como busca da verdade), o plano de imanência moderno (o pensamento como

criação) pede um outro conceito de tempo, a determinar. Não seria o caso de supor que uma filosofia da diferença, tal como a de Deleuze, deu-sepor tarefa preencher esse plano de imanência moderno com um conceito de tempo próprio a um pensamento definido como criação, e não mais como vontade de verdade? O tempo, então -- não mais como anterioridade, instantaneidade,

interioridade, mas como exterioridadepura --, é a reversão inaudita a que nos convida Deleuze. O tempo como Fora sob a condição da dobra. E o gesto que Deleuze atribuiu com amizade a Foucault, muito embora deva ser considerado a aposta extrema de seu próprio pensamento: "Durante muito tempo, Foucault pensou o fora como uma última espacialidade mais profunda que o tempo; foram suas últimas obras que Ihe permitiram uma possibilidade de colocar o tempo no fora e de pensar o fora como tempo, sob a condição da dobra"ll. É apenas num tempo saído dos gonzos e assim devolvido ao Fora que as tantas imagens de tempo inassimiláveis, recorrentes ao longo da obra de Deleuze, podem ganhar seu verdadeiro alcance: elas correspondem

a outras tantas dobras, Acontecimentos novos e Subjetivações por vir. A teorização deleuzeanado tempo, apesar de suas inúmeras obscuridades, teria por função, então, pensar um tempo consentâneoà 11G. Deleuze,Foucízu/f,trad. Cláudia Sant'Anna Martins, São Pauta, Brasiliense,1988, p. 115 [p. 115].

força do novo. Se há aí uma fidelidadeprofunda ao prometobergsoniano, ela só pode ser levada a bom termo quando, com Nietzsche, o tempo for alçado à sua potência última, ao fazer retornar... a diferença. SÓ o eterno retorno seletivo, afetando o novo, igualando-se ao Desigual em si, só o Tempo como Diferença pode inaugurar com o Futuro, descontínuo e disruptivo, uma relação de excesso, a exemplo

da Obra ou do Além-do-homem,para o qual nemZaratustra está maduro e que no entanto ele anuncia. O futuro como o incondicionado que o instante afirma -- é o que Nietzsche teria chamado de Intempestivo e cuja importância Deleuze não cessa de ressaltar. Se Michel Serres tem razão em atribuir à filosofia a função de

"inventar as condições da invenção", é preciso acrescentar que, no contexto que nos ocupa, isso significaria também e sobretudo reinventar as condições da invenção de outros tempos que não os já consagrados pela história. Trata-se, no limite, de desfazer a solidariedade entre Tempo e História, com todas as implicações éticas, políticas

e estratégicas de uma tal ambição. Ao pensar as multiplicidades substantivas e os processos que nela operam, aí desentocando tempora' lidadades as mais inusitadas, no arco que vai do Intempestivoaté o Acontecimento, não terá Deleuze dado voz àqueles que, como diz ele num eco benjaminiano, "a História não leva em conta"]2? Não se trata, evidentemente,só dos oprimidos ou das minorias, embora semprese trate delestambém, mas dos devires-minoritáriosde todos e de cada um: não exatamente o povo, mas "o povo que falta", o povo por vir.

iz Deleuze, SaPerPosifíons, p. 127

O OLHO DO FORA Jean-Clet Martin

Cinemcz1: A Imagem-moplmenfo, um livro em que se é obrigado a saltar a fenda que descolao pensamento,a reencadearfragmentos de discurso, restos de imagens, pedaços de sentido e de não-sentido! E como uma szlper#cie,um plano em que, de folha em folha, erguem-se imagens do pensamento, um cartoon filosófico. O conceito de superfície não tem, filosoficamente, uma história muito carregada, ainda que freqüentementeo confundamos com determinaçõesque não Ihe convêm de forma alguma. Definiu-se, desse modo por demais insistente,a superfíciepor simplesoposição à profundidade. A superfície é então aparência que deve ser superada em direção a sua essência. Assim entendida, a superfícieinscreve-sena estrutura do desvelamento e prolonga-se nos pleitos, hermenêuticosou fenomenológicos, da própria coisa. Uma outra confusão, que correspondetalvez ao inverso da precedente, consiste, em vez de opâ-la à profundidade, em considerar a superfície à maneira de um fundo sobre o qual tudo se dispõe. Tratase da idéia de suporte, mesa ou quadro, condição de possibilidade de certas associações. Nessa perspectiva, a idéia de superfície funda uma epistemologia que procede por horizonte ou, como diz Heidegger, de uma razão suficiente ( Gra/zd). Mas uma superfícienão é nada disso. É o que vemos em Lewis Carroll, em que nada fica no lugar, em que tanto as coisas como as palavras se dispersam em todos os sentidos. O problema de Alice é o de produzir um ritmo, um gesfz/scapaz de se ajustar a essa linha em espelho habitada por cartas sem espessura. Como saltar de uma carta para outra sem perder o confl?zz/z/m, criando, a cada vez, uma continuidade de variação? É como para o viajante que segue os fragmentos de uma paisagem através das diferentes janelas do trem que o trans-

porta, em uma velocidadelouca, em direção a superfíciesnão-comunicantes.Todas as janelasdo trem são comparáveis a uma sucessão de clichês, a uma película cinematográfica para a qual se deve descobrir a velocidade de projeção. Então, todas as imagens se sucedem sobre

uma superfície contínua e as figuras desencadeadas se superpõem sem

muito choque, constituindo uma entidade muito especial, um evento que Deleuze chama de imagem-movimento... Uma superfície é portanto um plano extremamente povoado, um plano de buracos e de luz que se consolidam de maneira anónima. E, sob certos aspectos -- é preciso reconhecer --, um plano como esse nada dá a ver. Mas nada dar a ver não deve ser confundido com o nada ou, pior ainda, com a dissimulação. É como um campo de batalha: a batalha realiza um estado de agitação no qual não se discerne nenhu ma forma. Como indica Stendhal,em seu diário de Bautzen, "vemos muito bem, do meio-dia às três horas, tudo o que se pode ver de uma batalha, ou seja, nada". Nela discernir o que quer que seja é tão difícil quanto procurar uma agulha em um palheiro. Eis uma das mais importantes exigências da filosofia de Deleuze; com efeito, em uma superfície nada está escondido, mas nem tudo é visível. É por isso que a filosofia não deve interpretar em direção a uma essência escondida; ela não é desvelamento, mas construção de uma imagem movimentada. Ela é construtivismo. Uma imagem-movimentodeve se consolidar além do corte do clichê, da descontinuidadedos quadros que compõem uma película, em que a projeção da fita cinematográfica deixa tudo confuso. A cada imagem-movimento cabe uma dificuldade de ver, de discernir, de en contrar a velocidadecerta para os clichês, de construir a superfíciede sua superposição. Isso se assemelhamuito ao olho que Foucault arranca dos textos de Bataille, em seu PreÁãcío à frczrzsgressão:

"0 que vale a pena ser olhado", diz ele, "não é mais nenhum segredo interior, nenhum outro mundo mais no-

turno. Virado em direção a sua órbita, o olho só irradia agora sua luz em direção à caverna do osso:

O olho revirado se detém na fronteira do osso, na brancura vazia, na intermitência mortal da visibilidade que ele não cessa de transgredir, um pouco como se encontrasseem todo lugar uma borda intransponível que passa entre todas as imagens. Há uma interrupção da continuidade que é como seu fora. Essa brancura do fora de que fala Foucault corresponde muito bem ao rastro da baleia branca quc o capitão Achab persegue com seu olho arregalado. Ver a baleia branca

não é mais fácil do que ver o osso embranquecido para o qual a mor-

te nos conduz e que, no entanto, o plano de uma imagem-movimento deve afrontar, se ela quiser recolher sua luz. Como indica Melville, em um texto impressionante: "A espuma que ela levantava por enquanto cintilava e queimava os olhos de uma maneira intolerável como uma geleira... tirar as escamas de seus olhos para vê-la; homens, olho vivo, procuram a água branca; se virem ao menos uma só bolha, gritem!"

Esse olho de que se retiram as escamas, esse olho que ronda na proximidade de uma morte cuja pátina incorporamcada bolha branca consegue exprimir, esse olho sem véu não tem portanto nenhuma pos-

sibilidade de se fechar em um ponto de vista. Faltam-lhe escamas, as pálpebras, o ângulo de rebatimento que polarize a visão em uma visada: sensível ao todo, cada olho de que se arrancam as escamas cai nas fendas, nos limites que dilaceram as imagens. Falta-lhe a venda, o cadinho ocular. Sobre seu globo, nada se vela nem se desvela; tudo está presente sem que nada se retire para o ocultamento ocular. Tudo em sua superfície

escancarada reage a tudo, com um brilho anónimo que arrasta as perspectivas e as abre, além do limite que as separa umas das outras. Mas nessa passagem ao limite, esse olho, ao mesmo tempo, não pára de saltar, de tropeçar sobre a fenda, sobre os interstício e os compartimentos que

deslocam todas as imagens segundo uma distância irrespirável. Saltando por sobre a brancura vazia que fragmenta o pensamento e o discurso, a percepção e as imagens, o olho consolida seu plano entre perspectivas divergentes, heterogêneas, sem margem comum. O olho

que recorta as imagens e os movimentos incomensuráveis, o olho que atravessa os z/gaios,os intermundos, envesgando entre todas as perspectivas, é, de algum modo, o olho louco do capitão Achab que Moby Dick faz passar em sua própria brancura: "Onde está Moby Dick?",

pergunta Achab. "Nesse

mesmo instante ela deve estar diante de teus olhos. Meus olhos olham esse olho que, nessemesmo momento, vê igualmenteos objetos do outro lado desconhecido de teu globo."

Esse olho passou, portanto, para o outro lado, bifurca no exercício de sua própria divergência sem poder se isolar na generosidade

de um fundo cego. Ele é tomado ao todo do mar que o arrasta, de um oceano a outro, seguindo uma imbricação alucinante de perspectivas, uma imbricação que abre cada coisa a sua própria brancura, a seu próprio limite. Mas tal brancura que detrata o olho não é, por isso, a unidade de todas as perspectivas cuja futura comum, cujo intervalo vazio ela marca. O branco não é uma unidade orgânica ou lógica, mas um efeito de proximidade entre todas as perspectivas possíveis. É uma

linha de fragmentaçãoque arrasta a cor para seu fora, uma linha de desaparecimento que se deve atravessar em um revirar do olho -- revirar sincopado sincopante, como ao longo de uma película cinematográfica!

O branco começa somente onde se afirmam dois lados disse-

melhantes e distantes, como se o olho, por sobre o vazio, devesse se dividir em pontos de vista divergentes, incomunicáveis, para passar para

o outro lado desconhecido de seu globo. O branco de que falamos é o grande todo que Deleuze inscreve na dimensão do aberto, é o todo que não é um conjunto fechado, mas a passagemintersticial de um conjunto a outro conjunto, de uma margem a outra, seguindo um salto que pode durar minutos e eternidades, no ponto em que a imagemmovimento se torna imagem-tempo, permanência no limite, passagem interminável de um conjunto a outro, experiência da suspensão. E essa passagem suspensa que Deleuze chama de transversalidade.

Uma espéciede declinação infinita que, de um lado a outro da fenda, reencadeiatodas as imagens,todas as cores, abrindo-as umas às outras, segundo uma conexão transversal que afirma seus cortes e distâncias, uma conexão que vai romper os tons segundo o que Deleuze chama dc uma "fragmentação reencadeada: O branco é uma totalidade fragmentária. Não é uma totalidade

capaz de restaurara unidadedos fragmentosà maneirade um quebra-cabeças.E, ao contrário, o princípio que vem romper a unidade de cada tom, uma ruptura, um corte irracional que é abertura de cada

conjunto, nesse limite que o separa dos outros conjuntos. Na brancura, há portanto sempre algo de aberto que convida o olho a atravessar o abismo, arrastando as cores em uma proximidade comum. E o olho de Achab que envesga entre todos os pontos de vis-

ta possíveis. Esse estrabismotambém é a fórmula do perspectivismo neo-barroco de Deleuze, um olho transversal capaz de cavalgar, no mesmo instante, perspectivas bifurcadas, conjuntos fechados que ele pode romper em direção a uma brancura universal, para dela extrair novas superfíciese novas visões.

Para compreendê-los, basta tomar um torniquete sobre o qual se vão dispor, em fitas inclinadas, todas as cores. Basta girar rapidamente essa pequena máquina sobre seu eixo para que, no corte que separa as cores, o olho passe de um interstício a outro. É o fio da brancura que se torna, desse modo, palpável, o olho que cai nas fendas, de uma

a outra, na dobra unânime que entrecorta as cores. Esse devir branco da cor é, para o olho, uma maneira de deslizar sobre o limite que as separa, sobre interstícios que acedem, assim, a sua independência. É um devir que nos faz atravessar um muro, que nos faz cair no meio, no corte que divide as imagens com a rapidez de um arpão. O que o olho louco de Acham experimenta, na perseguição

de Moby Dick -- o deusdo mar--, é o meio,a distância,o branco rastro nas bordas do qual as cores se põem em deriva. Cores mantidas abertas; cores abertas umas às outras, remetidas ao limite que elas não cessam dc transgredir girando sobre si mesmas. E é tal transgressão, tal transversal capaz de cavalgar o limite das imagens, de se instalar no intervalo em que a imagem-tempose esquiva, uma tal transgressão suspensa no limiar do vazio que iremos encontrar em Michel Foucault, em um texto sobre Batailleque marca a experiência da morte a morte de Deus -- em relação ao revirar do olho: o abalo! Sabe-se que, por sua vez, a narrativa de Melville, seu tema central, gravita em torno da morte de Deus. É uma versão singular da morte de Deus. Permito-me simplesmente, para lembra-lo, citar uma conversa entre Melville e Hawthorne, datada aproximadamente de 1850 -- Imagina -- diz Melville -- alguém que finalmente tomaria a espadaou o arpão para começar um combate con tra o próprio Deus. Seria preciso não crer -- responde Hawthorne. -- Ao contrário,

-- replica Melville -- pois, assim,

onde estaria o mérito? Não, penso, ao contrário, em alguém que veria Deus tão diretamente como o nariz no meio da cara, tão claramente como a baleia branca sobre as águas e que, justamente, vendo-o em toda a sua glória, sabendo até

onde podem ir os delírios de sua força, se precipitada mesmo assim sobre ele e lançaria o arpão.

-- Creio que estásescrevendoum belo livro -- diz

Hawthorne, após um momento de silêncio [...].

Lendo Melville, Deus funciona como o nariz no meio do rosto que não cessade preenchero vazio que esperam, um do outro, os olhos plantados na órbita. O ponto em que Deus joga sua escama sobre a branca luz, em que ele interpõe seu crivo capaz de recobrir a fenda branca que fragmenta as imagens, dever-se-iapoder remontar em direção ao todo, reencontrar o limite que o nariz faz em um rosto, ou seja, como um estrabismo suscetívelde passar de um a outro lado desse cabo, dessa península-- mais ou menos como Proust fará com que a lado de Méseglise se comunique com o lado de Guermantes. O nariz no meio da cara é a escamaque torna impossívela heterogeneidadedas perspectivas. Ele é um fundo orgânico que homogeneiza o recobrimento dos campos perceptivos, uma ponta que dá a orientação, a direção da visão, um vedor quc desenha a escavação dos olhos no rosto: uma retração do abalos Se ele torna racional o recobrimento das regiões binoculares, a passagem de um a outro lado do cabo, nem por isso ele é visível. Ele é a ponta retirada do rosto, o fundo cego da visibilidade que, em sua retração essencial, pode dispensar a harmonia do campo binocular, a unidade, a identidade dos focos tornados comensuráveis. O nariz no meio da cara é o princípio da rostidade, princípio de uma harmonia preestabelecida entre dois setorestornados indiscerníveis. Ele é o fundo sem fundo onde a semiótica divina se interpõe. O que a morte de Deus desaloja de sua escavação é a grande fenda,

deixada livre, que vem rachar e abalar o campo perceptivo para novas visões. Creio que essa fenda atravessa toda a história da filosofia sob a forma de uma contestação -- acredita ela, dos universais -- ou, ainda mais perto de nós, a fenda que, em Descartes,tinha separadoa ordem do rafzo estendida ordem da raffo cogfzoscendlaté torna-las incomunicáveis. Desde que o mundo deixa de ser lido como um livro aberto na proximidade das palavras e das coisas, a dúvida cartesiana, agravando a crise da razão teológica que começa com o nominalismo, essa dúvida, com Descartes, mergulha no limite que separa a ordem das representações da ordem das coisas, levando essa diferença a seu ápice. SÓ Deus poderá colocar de novo ordem nesse ápice. Somente a

terceira meditação, dando a nossas representações seu valor objetivo, pode lançar uma ponte racional entre o pensamento e o ser. Nesse sentido, a descobertado infinito no pensamento nada mais é do que colocar em evidência uma harmonia, ou, antes, uma estreita passagem que leva a representação a seu objeto exterior. AÍ está a

passagem divina, a via de Deus capaz de transpor a distância inadmissívelque separa a ratio cog/zoscendf. A morte de Deus talvez anuncie a dramatização dessa praia de silêncio, vazia, que interrompe a comunicação da coisa com sua representação. Mas, para além de uma tal ruptura, ela se aloja no olho enlouquecido, no ponto em que Kart agravara a relação frágil e incerta, a relação irracional que pesa sobre a ordem de nossas representações -- refiro-me à hipótese do pesado cinábrio que introduz a de-

sordem no cerne do próprio pensamento. E é de fato em uma tal fissura que Deleuze vem alojar a morte de Deus, pelo menos a partir de D//crença e repetição.

Se a idéia de Deus deve ser compreendida como um antídoto contra o caos que ameaça por toda parte a unidade de nossasfaculdades, se essa idéia, enfim, na qualidade de princípio regulador, assume a passagem de nossas representações no âmago da unidade originária, o que a morte de Deus deve então levar a seu ápice é a descontinuidade abalada de nossas representações,a fenda intransponível que as entrelaça definitivamente no vazio de uma distância ilimitada, coisa que Nietzsche qualifica pela alegria, o riso e o espirro -- soluços de silêncio em uma vida aos trancos. Que Deus esteja morto, isso deixa o olho diante de um Saara, diante de um deserto que cresce pelo meio. O movimento do olho, que procura atravessa-lo, choca-se então com o tempo-morte, com uma imagem-tempo capaz de liberar os intervalos por eles mesmos, como verdadeiros cortes irracionais. Com a morte de Deus, são os interstícios que acendem a uma certa independência, abrindo um espaço independentedas margens que eles separam, uma multiplicidade de dimensoes sem margem comum.

Que Deus esteja morto, isso deixa o olho diante de um vazio cintilanteque força a saltar o limite, a transpor o cabo, de um lado a outro, em um perspectivismo estranho, um perspectivismo selvagem cujo brilho foi descoberto por Nietzsche ao mesmo tempo que pela pintura moderna e pelo cinema. Em todo caso, é essa transgressão de um olho transversal que Foucault e Deleuze conseguemarticular na experiênciada morte. A morte de um Deus é o ligar de uma esquiva do limite que aparece sob a forma de uma ruptura, de um duplo desvio das margens cuja distância se agrava incessantemente. A morte de Deus consiste portanto em experimentaro lugar que ele ocupava como um vazio. Ela desig-

na este local morto no lugar do qual a metafísica instalara a via de Deus

como suporte, origem e razão. Na proximidade de Deleuze e Foucault, a morte de Deus arrasta o pensamentoe a linguagem em uma linha mortal, em uma linha de desaparecimento que convoca a filosofia a criar alegremente novos conceitos. Esse riso do pensamento sacode, em todas as suas partes, um texto de Foucault que parece, nesse sentido, essencial: "A morte de Deus", escreve Foucault em seu Pre/vício à fra/zsgressão, "retirando de nossa existência o limite do ilimitado, a reconduz a uma experiênciaem que se descobre como que seu segredo e sua luz, sua própria finitude, o reino ilimitado do limite, o vazio dessa travessia em que ela falha e falta[...]. De fato, o que quer dizer a morte de Deus, senão uma estranha solidariedade entre sua inexistência que

explode e o gesto que o mata? Mas o que quer dizer matar Deus se ele não existe, matar o Deus que não existe? Talvez as duas coisas: matar Deus porque ele não existe e para que ele não exista: e eis o riso" Reencontramos nessetexto a mesma preocupação que a de Melville, uma preocupaçãoque impediráDeleuzeem direção a uma nova compreensãodo cérebro. Entre o riso de que fala Foucault e a brancura que o olho de Achab persegue abre-se a mesma intermitência, ruptura, o hiato que o Deus morto faz com que ressaltecomo um arpão no pensamento, um pensamentoque tropeça, gagueja, rachado por todos os lados pelo silêncio das fendas sinápticas, como dirá Deleuze em Cinema 2: Á imagem-temPO. Rir e envesgar compõem, de algum modo, o mesmo ritornelo, o mesmo salto, a necessidadede passar por cima desse limite de intermitência que Deleuze encontra, em Foucault, sob a forma do afrontamento. "A transgressão é um gesto que concerne o limite. A transgressão transpõe e não pára de recomeçar a transpor uma linha que, por detrás dela, imediatamentetorna a se fechar em uma onda de pouca memória, recuando assim de novo até o horizonte intransponível.' É exatamente essa linha que Achab não cessa de transgredir, essa

linha sulcada pelo rastro da baleia branca e que o arpão entrecruza, de uma extremidade a outra, até a morte final, até o horizonte intrans-

ponível, deixando despontar, por detrás do delírio das palavras, a imagem de um pensamento e de uma literatura cinemascópica. O rastro da baleia branca, em que se indica a morte próxima de toda a tripulação, e em que ressoamo riso de Achab e o canto dos marinheiros, essa fenda que entrecorta seu pensamento e o força a claudicar sobre uma noite de intermitências, esse rastro prateado que torna irregular o passo saltitante de Achab, esse limite no qual ele já deixou sua perna e que o torna gago de pensamento, é preciso de fato recosturá-los, reencadeá-los sob a conquista de novas superfícies animadas. E esse cartoon filosófico, essa fragmentação reencadeada(delírio) nada mais é do que o conceito tal como definido por Deleuze e Guattari em seu livro sobre a filosofia, O que é a /;/oso/ia?. Não há conceito no lugar em que essa linha não cessa de fustigar o pensamento,

em que o pensamentose recusa a saltar em plena tormenta, no conforto com o vazio que desloca. É por isso que Deleuze pode dizer que os conceitos são conjuntos fragmentários que não se ajustam uns aos outros, na medida em que suas bordas não coincidem. É como no caso do muro romano: não há argamassapara colmatar os vazios, para preencher os interstícios. Os conceitos de Deleuze não coincidem, e a argamassa divina, o Deus que preenchia os buracos do pensamento e assumia a passagem de uma representação a outra, tal Deus está morto.

O conceito, como todo fragmentário, como consolidação seca, ventilada pela dobra intercalar, é a única maneira de sair do caos mental em que nos lançou a morte de Deus, mesmo se ele se recusa a ocupar

o seu lugar. Assim, a filosofia é afetada por esse vazio, pelo rastro intermediário que Melville compara ao encantamento das sereias: De fato, -- diz Melville -- em harmonia com a onda dividida a cada um de seus lados, a baleia branca era toda charme e sedução. Não surpreende o fato de que certos pescadores inegavelmente encantados e atraídos por toda essa

serenidade, tenham se arriscado ao ataque, para descobrir, rápida e fatalmente, que essa paz não era senão o invólucro de um furacão... Calma, entretanto, com uma calma atraente, ó baleia, surges diante dos olhos daqueles que te vêem pela pri-

meira vez sobre as ondas, qualquer que seja o número de homens que já tenhas enganado e matado. Essa calma morta/ que seduz o olho de filósofo nâmade é a cintilação de um sudário branco do qual se extraem tanto abetoscomo perceptos e conceitos, segundo um todo antes diagramático do que diabético.

O que nos atrai para o passo não-invisível desse tecido, para o oco

desserastro que entrecorta cada clichê, é a força da dispersão do fora, a linha mediana sobre a qual todas as formas são estilhaçadas, não sem

convocar um lance de dados que as reencadeia parcialmente, um lan-

ce de dados em um mundo semDeus, lance de dados para um olho vesgo, bêbado, que vê necessariamenteduplo e que, no entanto, não nos impede de caminhar Grelos, de permanecer de pé em plena tormen-

ta. Essa linha branca que passa entre cada pensamento e sobre a qual Achab começa a claudicar, essa linha que abala sua fala, é a linha de desaparecimento,o espaço que abre os conjuntos fechados e os faz passar em sua própria mu/fíp/lcfdade, segundo um cinema de vanguarda ou uma ópera animada cuja velocidade por vezes se perde onde tudo

se abala, se desacelera, cai no delírio da calo/ogia fragmentada.

E essasmultiplicidadesàs quais reconduztal orla dilacerante

designam, exatamente, o centro fragmentado da filosofia deleuzeana uma filosofia das multiplicidadesque, afrontando a brancura do fora, tropeçando no barranco que a morte de Deus libera e torna irrespirável, afrontando a linha de dispersão, torna o pensamentonovamente possível, libera agenciamentos, dispositivos, regimes de signo segundo uma ventilação e uma colagem inéditas. E por isso que, quando Foucault declara "que uma fulguração se produziu, que levará o nome de Deleuze, e que um novo pensamento é possível", não se trata de uma simples frase de efeito. A obra de Deleuze,

em todos os lugares, marca essa dificuldade de pensar que reconduz a seu impensado; a sua impossível possibilidade, em direção à abertura de suas fibras fragmentadas e de seus neurónios agitados, no ponto em que a brancura explode com o apelo de um signo, de um evento dilacerando todas as coisas debaixo da correia de um chicote enfurecido. Que nos seja permitido, para concluir, deixar com que estale essa língua abalada em que nosso trabalho encalhoue que, no sopro das fórmulas que ela lança ao caos, nos força a pensar, com o risco de nos relançar em pleno mar:

'Quando se diz 'o todo e o fora', a questão não é mais a da associação ou da atração das imagens. O que conta é,

ao contrário, o interstício entre duas imagens:um espaçamentoque faz com que cada imagemseja arrancada ao vazio e nele recaia [...]. Dada uma imagem,trata-se de escolheruma outra imagem que induzirá a um interstício entre as duas. Não se

trata de uma operação de associação, mas de diferenciação, como dizem os matemáticos, ou de desaparecimento, como

dizemos físicos r...].

Em outras palavras, é o interstício que é primeiro em relação à associação, ou é a diferença irredutível que permite escalonar as semelhanças. A fissura tornou-se primeira, e com isso se alegra. Não se trata mais de seguir uma cadeia de imagens, mesmo por sobre os vazios, mas de sair da cadeia ou da associação [...]. Ê o método do e?zt7e,'entre duas imagens', que conjura todo cinema do Uno. É o método do e, 'isto e em seguida aquilo', que conjura todo cinema do Ser. Entre duas ações, entre duas afecções, entre duas percepções, entre duas imagens visuais, entre duas imagens sonoras, entre o sono

ro e o visual: dar a ver o indiscernível,ou seja, a fronteira. O Todo sofre uma mutação porque ele deixou de ser o Uno, para se tornar o 'e' constitutivo das coisas, o entre-doiscons titutivo das imagens.

O todo se confunde então com aquilo que Blanchot chama de a força de 'dispersão do fora' ou a 'vertigem do espaçamento' l-.J. P.S.: Este texto não traz nenhuma referênciabibliográfica, ten do a bibliografia dado lugar aos silênciose buracos de memória. Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz

DOBRA DELEUZEANA DO PENSAMENTO Jean-Luc Nancy

Mais do que uma filosofia de Deleuze, situada em algum lugar no panorama ou na epistemeda época, haveria uma dobra deleuzeana do pensamento:uma marca, um exercício,um bab f s (certamentenão um hábito) que não se evitaria de partilhar mais ou menos com esse pensamento, pelo menos desde que se pensa no presente (e não à maneira daqueles que ainda acreditam estar no Iluminismo, senão na Academia). Não se pensaria, hoje, sem se tomar algo dessadobra, o que não quer dizer que deveríamos nos dobrar a ela, o que tampouco significa que não haja diversas maneiras de tomar essa dobra, dobrála, desdobra-la ou redobra-la, por sua vez. O pensamento de Gilles Deleuze é de tal maneira afastado das proveniências, dos esquemas c das condutas que, a meu ver, caracterizam o trabalho filosófico, que eu gostaria de poder esboçar, ao menos, a estranha proximidade que me obriga, apesar de tudo, a tomar uma dobra de seu pensamento.Trata-se de uma proximidade que é da ordem da dobra, em primeiro lugar no sentido de uma inclinação, de uma simples tendência, mas também no sentido da dobradura, da marca de uma articulação leve, de um plissado, se preferirmos, de um amassado ou de um movimento do pensamento. Limito-me, aqui, a algumas notas, alguns toques descontínuos, seguindo essa estranha proximidade. Trata-se, em todo caso, de uma dessas proximidades necessárias pelas quais se marca um traço da época, ou se reconhece a contem-

poraneidade. Um contemporâneo nem sempre é alguém que vive ao mesmo tempo, tampouco alguém que fala de questões abertamente atuais". Mas é alguém cuja voz, ou o gesto, reconhecemos vir de um lugar até então desconhecido e imediatamente familiar, que descobrimos que esperávamos, ou que ele nos esperava, que estava ali, iminente.

Sabemos imediatamenteque é uma possibilidadeque faz a presença do presente e que deve fazê-la. Eu poderia estabelecer um paralelo com

o que representou para mim, antigamente, a descoberta do free jazz:

o jazz já fazia parte da história quando, de repente, em alguns compassos de Albert Ayler, reconheci que era necessário aquela voz, aquele

tom ou aquele gesto. Eles eram necessários, não por necessidade de destino ou de sentido da história, nem como um resultado, ou um pro-

grama, mas como a evidênciade um presente:esse momento, esse presente tinha aquele som e aquela voz, e devia tê-los.

Assim, ao término de meusestudos, quando ainda filosofava

como um contemporâneo de Sartre ou de Bergson, ou mesmo de Hegel ou de Kant, reconheci vozes, traços, dobras contemporâneas: Der-

rida, Deleuze,Lacan, Blanchot.Havia, diversamentemodulado, um tom do presentefilosófico. Essetom não é acrescentadoao presente, como um ornamento supérfluo, mas é o próprio presente, a apresentação dessepresentecomo tal. Não é moda, é a modernidade-- no sentidoem que o moderno é a absolutidadeirreversívele irrecusável do presente. Portanto, uma dobra deleuzeana. Para mim, os outros teciam, antes, a tela de fundo: eles se inseriam na proveniência germânica e metafísica de meu presente de pensamento. Mas Deleuze fazia com que

uma dobra singular, menos familiar, atravessasseessa tela. Ele não engatava em Hegel, não articulava a continuidade dialética cuja trama comportava, necessariamente,ao mesmo tempo a lógica de um processo -- de uma origem a um fim -- e a estrutura de um sujeito -de uma apropriação, uma intenção, um ser-a-siou falta-de-ser-a-si.Eu deveria descobrir, pouco a pouco, que era exatamente o longo desses

grandes traços que ele fazia uma dobra, como se ele erguesse ou abaixasse à unhada jas unhas de Deleuze...l uma outra dimensão, heterogênea, a de um plano ou de uma rede, sem ser nem processo, com pontos, distribuições, remissões, distâncias. A um pensamento que poderíamos chamar, também em sua maior generalidade, pensamento de gênese, ele opunha um pensamento que poderíamos chamar, também em sua maior generalidade, pensamento de disposição: mas ele não o opunha -- isso teria sido por demais dialético. (Aqui, objeção de Francois Zourabichvili, que conhece bem Deleuze: a gênese é, para ele, uma preocupação. Concordo. Mas a "gêne-

se" deleuzeaname parece ser, antes, um devir, que se move no meio das coisas, não em sua origem nem em seu fim, o que me parece mais propriamente implicar o conceito de gênese. Digamos, então, que não entendo a gêneseno uso deleuzeano da gênese. Há mal-entendido, o

que não significa desentendimento. Esse mal-entendido vai fazer com que eu inevitavelmente cometa contra-sensos. Mas é a esse preço que há sentido em se confrontar, em afrontar uma discordância íntima, no ponto em que somos dobrados um contra o outro, uns contra os outros.)

Jamais entendereicomo sc pode saltar para fora da gênese, quaisquer que sejam seus abismos ou impasses (ou precisamente devido a eles). Mas entendo que a disposição é uma dobra contemporânea da própria gênese,que esta, por sua vez, deve desdobrar. Entendo portanto que, com a dobra, trata-se também de um salto. Essa maneira muito geral e, conseqiientemente, muito vaga de se

falar recobre,de fato, para mim algo de muito precisoe até mesmo de muito agudo: a indicação de uma necessidadecontemporânea, de nossa necessidade de pensamento, que remeteria à própria dobra ou salto. A filosofia dobrada em duas, formando um ângulo recoconsigo mesma: de alguma forma, portanto, descontínua ou distendida nela mesma, em debate com seu próprio processo, com seu próprio tema. Na minha tradição, Heidegger chama isso de "fim da filosofia". Esse "fim" é a dobra de uma gêneseque atinge seu próprio fechamento que portanto deixa de gerar ou de se regenerar em um certo sentido, mas que também libera, no oco da dobra, possibilidadestotalmente inéditas, possibilidades de salto que entretanto não equivalem a lançar-sea outro lugar. Dobrar, saltar no mesmo lugar, e, assim, deformar, deslocar o solo (o fundamento, ou seu infundado). Há aí giro e quebra, mudança de época: não é à toa que saltamos no fim de um milênio, no início de outro, na borda'de Ocidente, em rransbordamento de mundo. Tal é a dobra contemporânea. Trata-se de um caso considerável. Não há demasiadas várias dobras nem vários saltos do pensamentopara Ihe dar a medida. No mais, é uma medida necessariamentedolorosa, no mínimo dura e difícil: o pensamentosó pode se chocar com ela. Não se trata de conciliar os lados da dobra. É preciso lidar com a dobra e lidar com o que, na dobra, forma uma simples, mas irrecusável incompatibilidade. A configuração contemporânea dá a medida, ou a desmedida, de uma incompatibilidade aberta do pensamento consigo mesmo (à diferença de outros momentos em que a atualidade estava na resolução, na síntese, na organicidade). Parece-

me que a estranheza por meio da dobra (não por negatividade, hostilidade, conflito) de pelo menos dois grandes veios do pensamento contemporâneo é uma marca estrutural absoluta das mais radicais, das mais

exigentes necessidades desse pensamento. Pensamento dobrado: pen-

samento que não mais está no desenrolar, no encadear, na subsunção representativa, na determinação ou na convocação dos fins. A filosofia de Gilles Deleuze é uma filosofia virtual, no sentido em que hoje se emprega esse termo, quando se fala, de uma maneira estranhamente indiferente, de imagem ou realidade virtual -- designando, com isso, um universo inteiramenteformado por imagens,e não apenas por imagens com alto teor de real, mas, antes, não deixando mais lugar para a oposição entre o real e a imagem. O mundo "virtual" (conforme ao uso inglêsdessetermo) é um universo da efetividade-imagem. Assim, Deleuze não propõe falar do real como de um referente exterior (a coisa, o homem, a história, o que existe). Ele efetua um real filosófico. A atividade filosófica é essa efetuação. Fazer um conceito, para ele, não é aspirar a empina sob uma categoria: é construir um

universopróprio, autónomo, um ordo et conPzexioque não imita o outro, que não o representa,que não o significa, mas que efetua em seu modo próprio. Seu interesse pelo cinema não é um apêndice a sua

obra: está no foco, no princípio da projeção dessepensamento. Trata-se de um pensamento-cinema, no sentido de uma ordem e de uma tela próprios, de um plano singular de apresentação, de construção, de deslocamentos e de dramatização dos conceitos (o próprio termo "conceito" quer dizer isso, para Deleuze, mlse-en-cf/zéma).Se quisermos prolongar aqui, e buscar a dobra, seria preciso nos perguntarmos como a outra veia do pensamentomostra-seteatral. O mundo assim efetuado é ao mesmo tempo totalmente semelhante ao nosso jcomo Descarnesdizia acerca de seu mundos e completamente diferente. Poder-se-ia dizer que as outras filosofias tratassem dos assuntos do mundo, de todo tipo de coisa, enquanto essa não trata, propriamente, de nada: ela não julga nem transforma o mundo, ela o efetua de outra maneira, como universo "virtual" dos conceitos. Tal pensamento

não tem por "objeto"

o "real",

ele não tem "objeto":

é

uma outra efetuaçãodo "real", admitindo-seque o real "em si" é o caos, uma espécie de efetividade sem efetuação. O pensamento consiste em combinar e em variar efetuações "virtuais". Em certo sentido, tal

pensamento não tem relação com o "real" . Inversamente, para a outra veia filosófica, o pensamento lida com o real, nele mergulha, podendo se perder nele. E por isso que a primeira se coloca sob o signo do jogo e da afirmação, e a segunda, sob o signo do cuidado e da espera.

O universo virtual possui uma geometria variável, durações complexas, estratificações e folheados, aparições e desaparecimentos. Não se trata de um mundo de percepção nem de significação. Trata-se de um mundo sem história, com seqüências; sem gênese, com forças. Eis também porque Deleuze não se opera no ser-no-mundo, mas na efetuação de um universo, ou de vários. No entanto, "efetuação" aqui não significa de maneira alguma demiurgia ou poiesls. Não se trata do grande debate íntimo da filosofia com a poesia, que ocupa tanto espaçoem minha tradição. Mas não é porque a filosofia se quereria estritamente "científica" ou "lógica": é, antes, porque ela se comporta naturalmente como uma outra poesia, que não se preocupa em rivalizar com a outra, nem em meditar sobre sua proximidade. É uma filosofia da nomeação, não do discurso. Trata-se de nomear as forças, os momentos, as configurações, não de desenrolar ou de enrolar

sentido. A própria nomeação não é uma operação semântica:não se trata de significar as coisas; trata-se, antes, de indexar com nomes próprios os elementosdo universovirtual. Talvez nenhuma filosofia faça tal uso dos nomes próprios: por um lado, ela imprime um "devir-conceito" a nomes próprios INietzsche, Leibniz, Bergson, Ai:iadne etc.); por outro, elaimprime um "devir-nome-próprio" a conceitos (platâ ou rizoma, ritornelo ou dobra). O nome próprio é o limite assemântico do gesto

semântico. A nomeação é, portanto, antes um gesto material: o movimento para deslocar uma massa, uma carga, um traçado, para indexar de outra maneira. "Levar à linguagem" não significa, aqui, traduzir a linguagem (pois se trataria de tradução, a própria coisa a ser traduzida já seria linguagem, pertenceria a uma outra língua, à de uma natureza, por exemplo), mas significa fazer com que a linguagemcarregue o peso do que não é ela. O incorporal carregado de corporal: não para Ihe dar ou manifestarum sentido, mas para efetuá-lode outra maneira. Filosofia da velocidade, oposta à lentidão inerente ao discurso.

Não o aparelho inquietoda prova, mas a flechado juízo (refiro-me ao juízo de existência, não ao juízo de valor, com o qual ele quer "acabar"). Daí também que qualquer escrita se concentre nos nomes, e não nos movimentos de frase. Ela não é uma questão de estilo (no sentido de uma volta sobre si da línguas, ela é uma questão de nomeação e de descrição: uma espéciede grande eépbrasis (era, para os gregos, o gênero específico da descrição de quadros).

Façamos um quadro e mostremo-lo: tal seria, aqui, o imperativo filosófico jem outro lugar, ao contrário: o que há para se ver? o que é ver? etc.). Filosofia do percurso, e não do solo, nem do território. O percurso: um deslocamento e um agrupamento, fugidio ou prolongado, mas sempre perfeito, concluído, o que não quer dizer preenchido. Sem programa, sem intenção, sem preenchimento -- sem interioridade, sem segredo. Nem paisagem, nem rosto, ou é rosto desdobrado, ou ainda um rosto segundo suas dobras, não o espelho de uma alma, mas o lugar

de uma verdade presente. Filosofia que não é do ser. Que não conhece o ser e que nada quer

com ele.

Dir-se-ia que ele quer pegar as coisas após a dobra do ser. Ele não quer nada anterior a essa dobra. De fato, não há nada antes. Em um certo sentido, a dobra é o próprio ser. Ele sabe muito bem que esse

após" é apenas uma referência ou uma deferência distraída, e talvez irónica, à ordem metafísica das prioridades e dos princípios. Mais uma vez, ele afasta a gênese, a origem e o fim. Sua filosofia concerne à criação continuada (sempre Descartes...). A cada instante, singularmente, compor ou recompor um universo, configurar e descrever configurações. Assim, atravessar o caos: não explica-lo ou interpreta-lo, mas atravessa-lo, por todos os lados, em uma travessia que ordena planos, paisagens, marcas, mas que deixa atrás de si o caos se fechar como o mar sobre o sulco. A outra veia, ao contrário, atesta o ser do caos -- o ser, quer dizer, a origem e o fim, mesmo que sem fundo ou forma, a vinda, o advento, uma destinação, mesmo que a nada mais que ao próprio ser puro e simples, o sentido, enfim, mesmo que a verdade do sentido devesse se resumir à tautologia do ser.

A dobra talvez passe por aí: entre o sentido como composição de percurso sob o fundo de caos e o sentido como tautologia tendencial do ser que há. Muito certamente,a incisão da dobra, a própria dobradura, na medida em que separa as duas veias filosóficas, relaciona-se à negatividade: ou o negativo tem a plenitude simples do caos, ou eleescava a falta-a-si do ser. Quanto a mim, não compreendo como se pode evitar tal escavação ja morte, o tempo, a gênese, o fiml. Isso não implica necessariamente a angústia e o trágico, com sua surda ten-

tação de chegar a se apropriar do negativo enquanto tal -- e, portan-

to, de dialetizá-lo e de supera-lo. Mas isso significa que, por trás do próprio caos, ou antes no oco do caos, e portanto igualmenteno oco do percurso, existe o ser: não uma substância, mas a transitividade que me transpassa.

Não posso ultrapassar nem descartar essa incompreensão. Isso constitui, irresistivelmente, como que dois maciços, dois continentes, duas placas tectónicas de filosofia. O ser ou o caos, a gênese ou a disposição, a morte ou a travessia. Uma deslizando sobre a outra ou contra

a outra, uma dobrada sobre a outra -- sem passagem de uma a outra, sem síntese de ambas.

De uma certa forma, o que nos é comum é precisamente aquilo que não é da ordem da síntese:é um motivo de distância, ou de espaçamento. Mas esse próprio motivo está subentendido em funções diferentes da relatividade. Para ele, o espaçamento é, antes de mais nada, uma distribuição; para mim, é sem dúvida indissociávelde um estilhaçamento, mesmo não havendo unidade primordial a que se sucede tal estilhaçamento.O que para eleé disposição, para mim é deslocamento: é a mesma coisa, não o mesmo negativo, mesmo se não entendo aí a negatividade-sujeito de uma dialética (eu diria, antes, que

tudo remete a Hegel: ou começamosdistantesdele, ou dele nos afastamos nele mesmo, o arrombamos).

Mas quanto à disposição, só podemos, sem dúvida, ser diversamente dispostos em relação a ela, nela ou sobre ela. Haveria filosofia se não houvessedissensão filosófica? (Eis por que uma filosofia que pretenda põr fim às dissensões, quer sob um modo dogmático ou sob um modo formalista, que pretenda propor regras gerais de validação dos enunciados e dos conceitos, se desqualifica, a si mesma, como filosofia.) Não existe a filosofia; existem filosofias -- o fato de haver filosofias, dessemelhantes e irredutíveis: é isso mesmo, a filosofia. Essa diferença irredutível determina também, se sua dobra, uma comum oposição a todo o resto: crença, religião, ideologia, solução, formalismo, tudo o que dissolve a liberdade. A liberdade se partilha, mas não se divide. Indivisa, ela se partilha segundoa dobra e a estranha proximidade das posturas filosóficas.

Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz

O COPO DE DADOS DO SENTIDO François Wahl

Produzir uma teoria do sentido é manter-se ao mesmo tempo na evidência e no opaco: na evidência porque é sabido que, não importa o que pensamos, tão logo pensamos, "estamos em casa"; no opaco porque, jamais estando "alhures", não dispomos de nenhuma distância -- ou, como se diz, nenhum observatório para examinar o sentido do que está fora. Esse obstáculo, l,ógica do se/zffdoo transpõe de um salto, sem buscar definição, armando-se de uma oposição. Por esseviés, mas somentepor esse viés, a chave do livro é o parágrafo jubiloso (89)Í que se abre em "Quando a noção de sentido tomou o lugar das Essências desfalecentes..." para se encerrar em "É, pois, agradável que ressoehoje a boa nova: o sentido nunca é princípio ou origem, eleé produzido". Tudo o que Deleuze pretende construir é dito aí de uma assentada, para além da dispensa dada às essências:não mais a eternidade das idéias, a transcedência numenal do sentido, ou seu enraizamento nas profundezas: nem Platão, nem o humanismo kantiano, nem a autoctonia nietzschiana. O sentido "não está por ser descoberto, restaurado ou reempregado,está por ser produzido por novas mczquinarlas"z. Digamos que o sentido é ele próprio a maquinaria que Deleuze emprega para fundar como produção contínua, jamais preposta e jamais imobilizada, tudo o que se dá como pensamento.S Maquinaria singular, que deve ser elaborada com novos esforços, ser descrita como adóxica, construída como serial com pelo menos três termos, sendo um deles paradoxal, produtora às voltas com o aleatório. Maquinaria que, do mesmo modo, é a aplicação prática de uma metafísica, de uma ponta à outra.

l Dou as chamadas de páginas(da edição francesa, Minuit) no texto para evitar

o excesso de notas, salvaguardando ao mesmo tempo a precisão das referências. 2 Grifos meus.

3 Ou, para dar a definição de Deleuze, que não a enuncia: o sentido é eqüipotente ao originário do pensamento para aquém de sua articulação em conceitos.

O que será tentado a seguir, para entendê-la,é uma leitura de Lógica do se/zfldocomo corpus independente, evitando projetar o quc a precedeu ou seguiu, e atendo-se estritamente ao que nessa obra é elaboração de uma teoria completa do sentido. Para, posteriormente, reencontrar, a cada momento, intacto o espanto.4 1.FENOMENOLOGIA No começo era o sair: extrair-se, pelo sentido, daquilo que fixa as idéias e associa os efeitos às causas. Ultrapassar as duas más figu ras dóxicas -- elas vão atravessar o livro todo -- do "bom senso" jcomo diriam: bom sentido ou boa direção) que classifica à maneira lógicatudo, do mais ao menosdiferenciado, em suma: que distribui c encadeia, e do "senso comum" jcomo diriam: o sentido ou faculdade) que identifica cada coisa relacionando o diverso dela a uma for ma individualizada subsistente (93). Ê por ordenar que sejam solapados bom senso e senso comum, que uma teoria do sentido-- do sentido em sua forma orfgfncírla-- se argumenta com o que eles consideram paradoxos. Vale dizer que os paradoxos têm mais a fazer do que inquietar a distribuição previsível e a identificação reconhecível: são os instrumentos de um novo método franscendenfíz/.Que fará o pensamento começar de outro modo. Passar "às costas" (98) da "distribuição

sedentária" (94) signi-

fica para Deleuze: não ir mais num sentido (direção) que no outro; a autêntica dimensão do sentido seria: "sempre as duas [direções] ao

mesmotempo". E remontaro curso da doira implicaconservarao

menos uma imagem que a rege, a da linha e de suas extremidades. Sendo que o próprio do sentido seria não privilegiar nenhuma e convocar constantemente a ambas. Daí que os (raros) exemplos de sentido dados sejam todos formados para flutuar entre contrários: mais ou menos (grande), simbólico ou carnal (a oralidade), causa e efeito, mas sobretudo antes ou depois: "os dois ao mesmo tempo num passadofuturo infinitamente subdividido e alongado" l95). Paradoxo entre todos os paradoxos, um "devir-louco"

que circula simultaneamente

em direção ao passado e ao futuro, esquivando o presente que decide 4 Questão de método. Ao partirmos armados dos conceitos maiores de leuzeanos, vemo-los naturalmente reaparecer, sem nos espantarmos de como eles surgem no sentido e pelo sentido. O método alternativo teria sido seguir o fio que conduz diretamente de Nlefzscbe e a/i/oso#a a Lógica do se/zffdo.

e fixa. O conceito do tempo a uma só vez conservado em sua linearidade e desconstruído para ser ilimitação bi-orientada.S Não duvidaremos que essa subversão na forma do dez,frseja por excelência, para Deleuze -- bergsoniano que vai além de Bergson --, o dispositivo genérico do sentido. Desde então constantemente móvel. mas de uma mobilidade particular, constantementepuxada pelas duas pontas, elaspróprias não determinadas.Tal é a primeira "redução Que é também a da uni-determinação, da qual a orientação irreversível

do tempo constituía, na experiênciacomum, a marca distintiva última. A matriz do sentido será que ele opera "nos dois sentidos" do tempo e assim se extrai do presente, a todo instante "duas vezes pro vetado, uma vez no futuro, uma vez no passado, [...] à maneira de um folículo que solta seus esporos" j195). O sentido será portanto esse plano anterior em que o pensamento é capaz de ter acesso ao dup/o orÍenfe: de nele se mover. Essa "região que precede" l97) é aquela, também, em que toda identificação -- isto é, a faculdade do Mesmo -- se vê subvertida. O senso comum subsume um diverso de qualidades sob o que será a forma

particular de um objeto; o paradoxo atesta, por sua vez, que um mesmo sentido (a oralidade) pode fazer-um do mesmo e do outro (a pala vra e a carnes: ou seja, para o sensocomum, o "não-senso da identidade perdida" (96), mas, na autenticidade do sentido, o índice de sua dup/lcidade; não cabe a seu (não-)ser ser somente isso ou somente aquilo. Pluralidade do sentido sob sua face "objetiva". Mas a subversão do "senso comum" é também a do sentido sob sua face "subjetiva": o Um do Ego que subsume um diverso de órgãos, de atos e dc faculdades, não pode ser eximido da -- digamos -- disseminação da individualidade. Todavia, o Ego não era apenas um dos objetos identificados: ele era o agente a "faculdade" IPÓ) de identificação. De modo que é preciso tratar simultaneamentea condição e os efeitos. No domínio dual do sentido, o Ego só pode se abrir a um campo indefinido de determinações dispersas Vale dizer que, responsável pela

forma do Mesmo, o Ego só pode pensar o movimento do sentido en tre o Mesmo e o Outro ao preço de pensar aquém de si mesmo; e a redução que produz o sentido não pode produzi-lo senão como "pré-

individual". Que estejaaí o mais difícil de circunscrever,o prefixo 5 Estabelece-seassim uma síntese entre a í/zfenlfodfsfenslo fenomenológica de Agostinho e a linearidade cronológica de Aristóteles.

referencial o atesta. Sentido de pessoa, em-si do sentido, que circula em seu campo de imanência. Reavê-lo implica uma ética do pensamento

no abandono do Ego, ética que comanda, nunca é demais repetir, todo o procedimento de Deleuze. O essencial não está dito ainda, pois bom senso e senso comum

constroem juntos um aparelho -- o que se diz racional -- do qual só podemos nos livrar solapando-os. A mobilidade e a duplicidade do sentido só podem ser entendidas como excetuando-se todos os pares de determinaçõescategoriais, o Mesmo e o Aqui ultrapassados, arrastando consigo o conjunto das articulações da razão: o sentido não será mais singular que plural, não mais afirmativo que negativo, não mais assertórico que hipotético; ou melhor, ele não será nem uma coisa /zem outra, apenas "impassível" e singularmente nem verdadeiro nem falso l44-7, 123). O sentido, que há pouco juntava os extremos, se excetua agora dos contrários. De onde uma nova figura, para um novo traço: gradualmente suspenso o terceiro excluído, um estatuto próprio do sentido deve ser pensado, o do neutro. Estatuto do anterior assim como estatuto de exceção. Não, e é o ponto em que a redução se detém, inorganizável desordem -- a indeterminação do sentido não chega

ao absurdo que o suprimida --; mas captura do sentido num registro originário em que sua singularidade se pretende redução feita de todas as categorias lógicas do singular. Dois é assim duas vezes o número do sentido: em sua circulação entre termos que o Um do senso comum e do bom senso separa, e na

suspensão dos pares categoriais, que ele ignora. O bá do sentido é o torvelinho de uma duplicidade sem outros limites que o percurso, balizado pelos paradoxos, entre todas as extremidades, no aquém de todos os contrários. E o Um de cada sentido-- pois, afinal, cada sentido é, em sua mobilidade e sua dualidade, o que ele é, e não um outro -- deve ser pensado como um (quase) Um neutro, no exílio pronunciado dos impassesdo Dois.' Ao mesmotempo, alguma coisa é dita, no método, que vale como

6 Há a tentação constante de ler Lógica do senado como conduzida por uma metafísica do in/znífo e do z/írf a/. É preciso resistir a isso, não por ser finalmente falso, mas porque aqui Deleuze se ocupa com o simples emprego de todos os pa

radoxos do Dois, hipótesefeita não da disjunção dos contrários, ou de sua conjunção, mas da circulação entre eles.

tese: se só temos acesso ao campo de imanência remontando em contracorrente a coxa do discursivo, temos acesso nessemesmo movimento

ao que precede, isto é, preexiste; e, se o sentido não é nem verdadeiro nem falso, a dupla orientação, a dupla negação das determinações, o impessoal são, no entanto, a verdade quanto ao sentido. De modo que o movimento crítico se transforma em posição afirmativa, sobre o que é, pelo menos, parte do sentido. Vale dizer que esse primeiro momento, muito fenomenológico,da análisese apóia numa cona/ersãoradical -- uma "contra-efetuação" 12091-- que supõe um origf za/. Há uma segunda via pela qual é preciso liberar o sentido do que elenão é, uma via que requer um novo ponto de partida. A coxa tematiza uma proáundfdade do sentido, cujo valor estaria no fato de ele ser penetração na substância das coisas, e se transportar ao cerne da realidade. Mas como sucederia assim, quando o sentido é uma "entidade não existente"(7), exatamente aquilo que escapa ao domínio dos

corpos e dos fatos? O sentido é os estóicos tinham razão em afirmálo -- um Indo/porízJ. Constatação que irá se efetuar, desta vez, pela autoridade de um texto histórico que evita (XVlll) tanto os prestígios da altura como as vertigens da profundidade, para.se consagrar à mensuração das superfícies/ A superfície, portanto, e não mais a linha: o sentido se desdobra sobre o plano de iminência que ele percorre. Nova imagem que se afirma sobretudo no que ela nega: não há espessura. Mas as imagens têm em Deleuze uma função semanalmuito particular, elas não deixam escapar o conceito que enquadram; e esta irá se revelar ambivalente: pode-semedir a superfíciecomo se ela não tivesseparte de baixo? O fato de Deleuze não argumentar aqui em primeira pessoa e se ater à leitura que faz do estoicismo vai ocasionar um deslocamento suplementar, em direção ao que se passa entre os incorporais e os corpos.

7 Seria um erro censurar l,óglca do sentido por fazer do estoicismo um cor-

re sob medida, transformando em teoria do impredicávelo que, no essencial,era uma teoria do atributo, e explorando a análise formal do tempo às avessas do que era o conceito estóico cardeal, o do presente do ato: nada menos pertinente a pedir a Deleuze que o estoicismo de Deleuze. Muito pelo contrário, seríamos levados a admirar o virtuosismo com que a transferência se efetua.

Pois o que vem à superfície é sempre -- novo conceitos -- um aconfecimenloque se articula entre o incorporal e o corpo. De um lado, os corpos que se misturam, agentes e pacientes de um determinismo disperso em estados de coisas e suscetível de se reunir num único presente cósmico; de outro, as "maneiras de ser" que são os efeitos deles

-- no duplo sentido da palavra: o efeito sempre de um estado de coisas, mas efeitos que não têm outra realidade senão "extra-ser"; impassíveis que insistem sem subsistir, entre os quais só existem relações

de sentido -- razão pela qual se dirá que uns são para os outros "quasecausas" (151 -- e que se traduzem em /ehfa no discurso. Vários fins se

vêem assegurados aí num mesmo movimento. De um lado, acha-se especificada o que poderíamos chamar a leveza do sentido -- "um vapor" (37) -- que escapa ao que é o núcleo

de toda espessura: o determinismo; e garantida a especificidade tanto dos termos que circulam na superfície como de suas relações: de sentido

a sentido. Ao preço, é verdade, de um dwa/esmo-- ordem dos corpos/ ordem do sentido -- que é tão constrangedor quanto liberador: pois, se o acontecimento é algo muito diferente do estado de coisas, o segun-

do não deixa de ser "causa" j13) do primeiro, e jamais será resolvida a questão do modo pelo qual um encadeamento de estados de fatos e um encadeamento de sentidos se correspondem, operando por vias que

diferem completamente: é no que já havia esbarrado a lógica estóica. De outro lado, o sentido é, por causa desse estatuto, ao mesmo tempo alheio e ligado ao presa/zredo fato: acontecimento, ele juntase de outro modo, mas junta-se ao que advém. E, no mesmo movimen

to, o dualismo completa o que havia iniciado a ruptura da unidirecionalidade quanto ao sentido, até provocar um desdobramento de estatutodo próprio tempo. Há, de um lado, cromos,o tempo do mundo, que é iterativamente o do presente limitado do estado de coisas, ao qual

passado e futuro são relativos;e há, de outro lado, czion,que jamais está contido no fechamento do presente, mas que não é tampouco um retorno qualquer da eternidade das essências, e para o qual não basta mais sequer a definição pela divisão ao infinito do presente em passa' do-futuro. Áíon, como reinado do acontecimento, só pode ser o reinado do i/zsfazzfesem espessura e "que distingue seu momento de todo 8 A palavra pode surpreender. Mas reconhecer-se á ao longo de todo o livro uma elaboração racional do que transcende a racionalidade, na qual seu título encontra a legitimidade.

presentedeterminável" j193), já que essa determinação seria do corpo; afon é a dupla divisão sem mais divisível a esquivar; vale dizer que o acontecimentoseproduz na e produz a -- "pura forma vazia do tempo", linha que percorre uma incessanteproJeção dupla e móvel no :sempre já passado e eternamente

ainda por vir" (194).

tJltima etapa da redução que provoca uma importante correção: o momento fenomenológico parecia ter concluído sobre o nem finito nem infinito do sentido; eis que, com a instantaneidade do acontecimento, a #nlfude se liga ao sentido, e a f/Iml anão -- do passado, do futuro é a qualificação que nela requer o tempo. Ê lícito pensar que esse último termo é o mais afim a Deleuze, a um pensamento do neutro que dispensaa prioridade assertiva do infinito sobre o finito. Resta -- terceiro ângulo de abordagem, terceiro desprendimen-

to a operar -- que o sentido não poderia insistir fora da linguageme da forma da proposição. "Cabe aos acontecimentos ser expressos ou exprimíveis [...] por proposições ao menos possíveis" (22). Mais: "o sentido é a mesma coisa que o acontecimento, mas [...] relacionado às proposições"

(195). Ora, a proposição

é por excelência a forma

que bom sensoe sensocomum ordenam.O último erro da coxa seria precipitar-se em dizer que o sentido e sua expressão se recobrem: seria anular tudo o que foi produzido de irredutibilidade do sentido até então.

Os ruídos do corpo não teriam se tornado os sons da língua se a linha do sentido já não passasse entre uns e outros, para "fundar a propriedade metafísica adquirida pelos sons de terem um sentido" j194). Assim também, do que faz a proposição uma referência ou relação-a -- que se articula em: "designação" do objeto, "manifestação" do sujeito e "significação"

conceptual --, nenhum dos termos é

por si só fundamento suficiente, e tampouco o conjunto deles que faz,

círculo: é precisoum s plemenfo,uma "quarta dimensão" (27): que não pode ser senão o próprio sentido. Sentido que convém desde logo distinguir da proposição, da qual ele é somente o expresso: irredutível a cada um dos termos precedentes-- por menos que se confunda o

sentidoque se atribui ao estadode coisas com o predicadoque, na proposição, se relaciona ao sujeito --; indiferenteà posição do verdadeiro ou do falso pela proposição -- há sentido tanto num como noutro --; e suscetível, por sua própria neutralidade estéril, de distribuir a cada uma das dimensões da proposição -- mas também à pro-

posição inteira -- o que as qualifica para significar. Essa possibilidade se traduz numa nova imagem: o sentido é como uma aresta, uma dupla borda, a Éronfeira j3S) entre as proposiçõese as coisas. O sentido "volta uma face para as coisas, uma face para as proposições' 1341;ele é ao mesmo tempo o expresso das segundas e o que por estas se atribui às primeiras. Ou seja, "a coexistência de duas faces sem

espessura,tal como se passade uma para a outra seguindoo comprimeRto" (33). É por não ser nem uma coisa nem outra, mas aresta de um biface, que o sentido torna possível a constituição da proposição tornando possível sua relação com o mundo -- ou o inverso. "Tal é a operação mais geral do sentido: é o sentido que faz existir aquilo que o exprime e, pura insistência,se faz desde então existir naquilo que o exprime" (194).

Há pouco tínhamos um dualismo dos corpos e do incorporal; desta vez temos três ordens: a linguagem, as coisas e, na articulação das duas, o sentido. Mas, em verdade, o sentido não é aqui senão o que assegura o funcionamento da dualidade, que se reduplica, ela própria, por sua projeção recorrente de cada lado do dupla-face:dualidade, na coisa, das qualidades físicas (estado de coisas) e dos atributos lógicos ideais (acontecimento); dualidade, na proposição, da designação do estado de coisas (nomes, adjetivosl e da expressão do acontecimento (verbos) (37): a mobilidade essencial do mundo do

sentido é garantida por um jogo de espelhos que repete no interior de cada instância, indefinidamente, sua diferença em relação à instância simétrica. e o terceiro sentido não faz senão articular a não menos essencial dualidade que atravessa todo o sistema desde aquela -- germinal -- do passado-futuro. Assim, a manipulação do Dois terá sido de ponta a ponta a matriz da exploração do sentido: transgressãodo Um pelo Dois, transgressãodo Dois pelo Neutro, conjunção do Dois por essastransgressões.9 Matriz que não cessará de investir o jogo ideal do sentido. Essa montagemem três seqüências-- de um montador exímio que faz deslizar as linhas, multiplica os planos e lhes aparafusa char9Por esseviés, o movimento de Lógica do se/zfido-- e primeiramentedos paradoxos nos quais se apóia é o da segunda hipótese do Parmê/lides, com eco da terceira hipótese para a definição do instante. Que a referência a isso não seja feita senão nesse último lugar, só se pode explicar pelo desafio antiplatõnico da teoria do sentido.

neiras, e ainda constrói uma maquinaria de percursos e ultrapassagens

-- teve por suporte a reelaboração de três terrenos: fenomenológico, metafísico, analítico do discurso. Reelaborações que devem ser interrogadas por elas mesmas. Ê surpreendente que, querendo despertar o que o sentido requer dc "produção", Deleuze invoque de bom grado (por exemplo, 97) a 'doação" de sentido. Isso se esclarece na discussão que ele conduz com Husserl. Ele aceita identificar o sentido ao noema como expresso da proposição, núcleo independente, separado -- neutralizado -pela redução: na "cor noemática [...] não intervêm nem a realidade do objeto nem a maneira pela qual se tem consciência dele" (1171. Mas ele censura a Husserl um "passe de prestidigitação" (118) pelo fato de, nele, o desenvolvimento último da estrutura do sentido visado implicar -- recuperar -- tanto a relação a um objeto qualquer como a intuição de um sujeito: em suma, o retorno do senso comum c do bom senso. "E assim, [...] se dá na noção de sentido tudo o que era preciso engendrarpor ela", quando "o fundamento jamais pode se assemelhar ao que ele funda" (120). Busca de uma Áenomeno/agia radica/,

de um transcendental

que "rompa"

(119) com o aparelho

formal da coxa. É isso precisamente que faz Deleuze se voltar para o sentido: que ele não envolveria originariamente nem forma de designação, nem forma de significação-- no sentidoem que a proposição faz dele predicado --, nem forma de manifestação de um sujeito. Uma gênese verdadeira seria aquela que constituísse tanto a forma objeto como a forma sujeito a partir destas simples doações desprovidas de qualquer outra especificação: as quase-causas imanentes (120). Em vez de examinar se tal gênese é possível, é preciso agora perguntar se a fenomenologia do sentido se ajusta à análise feita por Deleuze, e se também garante essa dedução radical que dela se espera. Nunca seria demais fazer justiça a Deleuze por seu esforço em separar o sentido do conceito; o sentido não é em absoluto o conceito, e sua mobilidade nos extremos, sua duplicidade (pelo menos), sua indiferença ao aparelho categorias são realmente traços daquilo que o torna irredutível. Mas há no enunciado de Deleuze um pressuposto que jamais é exposto: tudo nele implica que a apreensão do sentido é fmediafzz.Ora, a objeção fenomenológica é patente: existe um sentido que não seja sentido de e sentido que ewapreendo? Ou, melhor dizendo: sentido que eu apreendo sobre? O plano de imanência não poderia ser um céu -- mesmo movente e neutro -- dos sentidos. Muito

simplesmenteporque o sentido se /ê; porque ele não tem pertinência fora do fexfo de qualquer natureza que ele seja -- que o suporta, e só vale na medida do rigor com que inspeciono o escrito. Esse conceito essencial da leitura do sentido está, estranhamente, ausente da análise

de Deleuze. Ora, ele é constitutivo. O grande-e-pequeno só é comprovado na medida em que Alise crescee diminui de tamanho, e na medida em que me empenho em decifrar o que sucede a Alice; o próprio do sentido é que ele se afirma

na -- junto

à -- experiência,

só insiste

nas condições em que nela se inscreve, e só é apreendido por mim na medida em que, decifrando-a, eu o construo. Tal é a mediação que obriga a pensar o sentido ao mesmo temPO no registro do Neutro, no que se refere a si, e, no que se refere à sua apreensão, num registro de experiência que não tolera redução nem do objeto -- como objeto lido -- nem do sujeito -- como sujeito leitor. Por causa de sua constituição, ele se afirma -- retenhamos a fórmula -- em excesso, em relação

a todas as pautas do Dois; mas, por causa do terreno sobre o qual se eleva, ele não pode fazer exceção às pautas da decifração: tal é o primeiro de seus paradoxos. O que devia ser o transcendental radical se vê estritamente pinçado num exercício que faz funcionar uma prática que ele supostamente fundaria. Já observei, por outro lado, que a mefóz/Ricad a/iscaem que o acontecimento faz charneira entre o mundo determinado dos corpos e a superfície sobre a qual o sentido evolui em virtude de uma "quase-causalidade" incorporal, "lógica e dialética", colocava a questão do desenrolar paralelo dessa "dupla causalidade":

embaixo,

"ligação

das

causas entre si", em cima, "ligação dos efeitos entre si" l 115). O esco-

ramento de Lógica do senffdo no estoicismo tem um curioso efeito: percebe-seo que Deleuze retém dele, não se sabe -- ele não diz -- o que ele considera obsoleto, de modo que a questão do dualismo hoje não é realmente elaborada. Deleuze restringe o problemai0 à dualidade que ele ocasiona no efeito mesmo, o sentido: em relação à causalidade dos corpos que o produz, o sentido é perfeitamente "estéril", io Ele o evoca uma única vez, com a maior prudência: os incorporais são, em relação uns aos outros, quase-causas "segundo leis que exprimem t.alvez em cada caso a unidade relativa ou a mistura dos corpos de que eles dependem como de suas causas reais" (15). A alusão que segue, à relação destino-necessidade nos estóicos, não é promessa de uma solução. Deleuze parece (1 16 ss.l por outro lado esperar, da "génese /ógiccz" da proposição pelo sentido, ao menos uma dedução da lógica formal pela lógica transcendenta!.

nada acrescentando a ela; submetido à quase-causalidadedos complexos de sentidos do qual deriva e que o distribuem na superfície remetendo uns aos outros, ele tem uma relação de imanência, que o faz tanto

;produtor" como produzido j]S, ] ] 61. Ora, é aindao pressupostode imediatidadequecria o proble-

ma. Se o sentido não é das coisas mas daquilo que elas se dão como fexfo, é este último -- mesmo perceptivo que comanda o sentido, visto que ele o suporta. Deleuze gosta de tomar como exemplo o "verdejar" da árvore; dizendo assim, eleenuncia de fato, além da pregnância, no contexto, da cor sobre a forma, a dessa forma colorida sobre as outras, e o jogo de determinações próprio dessa cor em relação com

as outras cores, a luz, o volume, e também tudo o que constitui uma vista em paisagem, não se excetuandosua constituição como olhar. Nada aí que não estejainscr/fo nas "coisas": a primeira dualidade é, não a das coisas e do sentido -- posterior e que se deduz --, mas aquela

da qual o escrito e sua decifração constituem paradigma. Disso também resulta o que regula a produção "lógica" do sentido pelo sentido: ela é, pelo menos a princípio, a exploração do que se encadeiade sentidono nível do dado fexfaa/ que faz sentido. E que encontra seu valor no rigor desseencadeamento.De modo que seríamos tentados a objetar à apreensão do sentido em si e para si, que é implicitamente aqui a de Deleuze, o requisito do ade7'ff'ao fexfo que livra o sentido de toda descontinuidade em relação ao que ele faz significar: faríamos essa objeção se o próprio Deleuze não tivesse mostrado alhures -- que se pense, por exemplo, em Prousf e os signos -- que sabia melhor do

que ninguém o que faz parte da prática de leitor. Demonstrando pelo que escreveuque o sentido e as seqüênciasdo sentido se apóiam naquilo do qua/ eles são o sentido. Com isso também se esclarece e se precisa a pertença do sentido ao discurso, que é algo bem diferente que o modo de sua reintegração ao bom senso comum. Do fato de o sentido se ler resulta que, tomado

no universo do discurso, elese dfz: não é senão dito. Ler não é, não é em parte alguma, uma metáfora, mas uma estrutura, que mantemos com nosso ser na língua. Que a frase, portanto a forma sintática, seja consf/[afnfe para a leitura, é uma decorrência. Assim, se buscaria em vão uma leitura pré-frásicado sentido, que a proposição viria "exprimir" (111).É preciso afirmar ao mesmo tempo que o sentido não é um conceito e que sua posição não foge à regra comum da organização sintática. Distinguindo entre o sentidoe o predicado que elese torna

na proposição, Deleuze escreve: "0 sentido (verdejar) se atribui, mas

não é de modo algum atributo da proposição, ele é atributo da coisa [...].

O atributo

verde"

(33).

em seguida,

da proposição

Ê lícito objetar

é [...] um predicado que, se a proposição

é antes por ter "transformado"

qua]itativo

como

é "expressão"

logo

em "a árvore

é verde"

a

frase autêntica, da qual "verdejar" era o sujeito ao qual a árvore estava relacionada. Que o sentido estrutura sua frase -- distribui os termos de sua frase nas posições sintáticas -- numa ordem que não é a do discurso por conceitos, eis o que atesta a irredutibilidade de seu registro; que ele possa se afirmar sem se impor numa frase, a do dado textual do qual se extrai, é o que jamais acontecerá. Ou: o que "atribui" o sentido à coisa é a frase na qual o estado de coisas se lê como enunciado de sentido. É uma estranha entidade ideal o sentido. Deleuze foi quem soube se espantar com isso e indica-lo como ninguém o fizera antes. É realmente verdade que o sentido não tem os contornos fixos e ordenados do conceito -- como ele é classicamente definidoll

--, que

apreender o sentido se produz apenas na imanência da experiência concreta, e que interpretar a experiência não é de modo algum fundála no sentido de uma eplsteme. Mas as condições nas quais o sentido se lê, se encadeia e se enuncia, proíbem que se faça dele essa idealida-

de livre, nâmade em toda a superfície, que Deleuze busca com uma animação e uma inventividade jubilatórias. E que ele só encontra ao preço de uma desterritorialização contraditória com as condições de produção do sentido. Certamente ele teria respondido que, se o sentido não fosse o que abre o pensamento a si mesmo no originário, o que Ihe confere a leveza de uma circulação no ilimitado, e o que gera o discurso a partir do que para ele não é senão paradoxo, o sentido não Ihe interessava. Não é outra coisa que ele visava desdea extraordinária elaboração do Dois sobre a qual sua investigação se iniciava. Ora, essa máquina não co-

miComo se sabe, Deleuze não definirá finalmente o conceito (cf. O qz/eé a #/oso/ia?, cap. 1) de modo diferente do sentido. Não se afirma que a definição do conceito a "velocidade infinita", antes de sua "redução de marcha" pela colocação

em coordenadas, seja substancialmente diferente da bidirecionalidade-inindividuação do sentido. E, por esse viés, a qualificação do conceito como "em sobre vâo" torna a encontrar o ser em superfície do sentido.

aluiu seu ofício, não tendo ainda argumentadoa "boa nova" de que o sentido não está por descobrir, mas por produzir. Para o que -- para avaliar o efeito disso -- é preciso passar da descrição do sentido à sua constituição .

II. METAFÍSICA 1) 0 sentido foi considerado até aqui por Deleuze em sua relação com aquilo sem o qual ele não é (a separação dos extremos e a oposição dos contrários, os estados de coisas, a língua), mas aquém do qual -- um aquém transcendental -- seu ser, ou "extra-ser" -- se afirma. É preciso chegar às relações i/éterzas ao sentido. E, dessas relações, a mais simples, aquela que também jamais vem a faltar, é a "regressão indefinida": ao dizer o sentidode algumacoisa, "não digo jamais o sentido do que digo, mas em troca posso sempre tomar o sentido do que digo como o objeto de uma outra proposição da qual, por sua vez, não digo o sentido" j41 ). O sentido se constitui assim em série, onde cada ocorrência é designação da qual a precedente é o designado: o que implica de imediato a constituição de duas séries das designações, dos designados que uma "diferença de natureza" (50) distingue: o essencial não é mais então a dualidade, mas a bere70gepzeidadea ela ligada. Com isso, o esquema da co/oração em séries pode

ser proposto por Deleuze como o modelo para toda constituição do sentido pelo sentido.

Desdobremos. A) A colocação em séries institui por ela mesma as séries como heterogêneas,e essa heterogeneidadepode se preencher de todas as dualidades subsumidas pelo ou no sentido -- de estado de coisas/acontecimentoa significação/expresso--, mas sempre uma "apresenta em si mesmo" o sentido, enquanto a outra se define como sendo seu correlaffo (51)t2. Não é a natureza das séries heterogêneas, mas a natureza da heterogeneidade delas, que funda o sentido como tal. B) Dizer essa heterogeneidadeé dizer que a primeira série está em excesso em relação à segunda, a segunda em áa/ra em

relaçãoà primeira. Existeaí um "desequilíbrioorientado" (54): desequilíbrio porque as sériesnão estão fixas, mas em variação perpétua uma em relação à outra; orientado porque a todo momento uma de-

]2 Teria sido melhor evitar a designaçãodo primeiro como "significante" e do segundo como "significado", designação que Deleuze admite poder ocasionar mal-entendidos.

las desliza "sobre" a outra, porque excede. "Há sempre um excesso de significanteque se embaralha" (54)i3. C) Mas convém acrescentar -- e é "o ponto mais importante"

-- que essa distribuição das sé-

ries, que ao mesmo tempo se comunicam e são deslocadas uma em relação à outra, requer um terceiro termo que assegura entre elas tanto a convergência

como

a divergência:

ou seja, uma í/zsfáfzc/a /7ízrzzdo-

xaJ (54), "de dupla face", portanto presente nas duas séries ao mesmo tempo, e circulando nelas simultaneamente, portanto sempre desequilibrada em relação a ela mesma. "Em excesso numa série [...], em falta na outra [...]: desemparelhada", "e]a nunca está onde a buscamos, e[...] não a encontramosonde ela está"(55). Paradoxal, a instância o é striclo senso, por ser sempre "os dois ao mesmo tempo" -- a palavra e a coisa etc. --, subvertendoo bom senso por ser conjuntivamente o dito e o sentido desse dito, subvertendo o senso comum por ser disjuntivamente o dito de uma alternativa na qual ela própria entra (84). Por esseviés, pode-sedizer que o elemento paradoxal, que é condição do sentido, é ele próprio /zão-se/zso,

mas um não-sensomuito particular que "se opõe à ausência de sentido operando a doação do sentido" (89). A constituição do sentido abre, assim, o que sua descrição obtivera a uma sistemática do como/exo, pelo menos dupla -- não há sentido de elemento simples --, do complexo em deseqni/z'brio

não há

dois sem que um esteja em excessoem relação ao outro --, da áa/ra do áundamenlo não há sentido que não se apóie no não-senso. Construção de uma consistência impressionante -- que difere das preceden-

tes na medidaem que ao "os dois ao mesmotempo" e ao "nem.um nem outro" se substitui um par que oscila, equipando o sentido de um sfgni/;cante cm excesso em relação a um sfgniÁzcado(51 ), e lançando uma instância torta para fazê-losse comunicar: essa é a condição para montar o aparelho produtivo do sentido. Mas também construção em que a produção do sentido reconhece,no jogo de seu aparelho, a ausência de qualquer slsfema envolvente que o constrangeria. Nenhum encontro das séries está pré-ordenado -- é a "distância" delas que relaciona os acontecimentos uns aos outros "enquanto diferentes" (202) --, nenhuma série está programada para ocupar o lugar do significante, nem para conserva-lo. E, se o emprego dos termos signi-

i3 A exposição de Deleuze sobre esse ponto é inteiramente elíptica.

ficante-significado é impróprio, como Deleuze admite, mas sem sc deter

no porquê, eles são referência incongruente ao sistema semiótico que comandaria com sua articulação a distribuição do fazer-signo em suas duas faces. Nada disso ocorre aqui, em que é a instância paradoxal que assume, na imanência do aparelho local, a função de mediação e de repartição. Todas as produções de sentido esposam o mesmo esquema, mas nenhuma produção de sentido tem sistema antecedente. ;Produzir um fantasma no limite de uma experiência alongada, desdobrada" (32), e buscar construí-lo com o rigor de uma mafbesis, é um gesto tipicamente deleuzeano. Série e instância paradoxal, os instrumentos da construção do sentido se querem fiadores, ao menos paradigmaticamente, de tal rigor. Tanto mais necessário, no caso, quanto toda determinação própria à estrutura semiótica foi evacuada: é preciso de fato supri-la. O conceito de série não deixa, em verdade, de ser evolutivo. For-

mado sobre a teoria dos tipos (50) -- como chave do que é, em suma, uma ocorrência do ato reflexivo --, ele subsume a seguir a equivalência estrutural de duas distribuições de posições-- ou seja, em A carta roubada (S21, os dois trinâmios rei-rainha-ministro e polícia-ministroDupin --, e encontra finalmenteseu poder operatório como simples sucessãolinear de pontos virtuais, não muito qualificados, que a mobilidade da instância paradoxal põe sucessivamente em relação com outros pontos de uma série dua]: "uma estrutura comporta [-.] duas distribuições de pontos singulares que correspondem a séries de base...

Cada uma [...] é constituída de termos que só existem pelas relações que mantêm uns com os outros.. As singularidades junto a uma série determinam de uma maneira complexa os termos da outra série" j6S-

6). Ou seja, um duplo jogo de relaçõesdiferenciaispara explicartal valor pontual do verde, quando o verde muda de nuance associado a diferentes amarelos.

Disso seconcluirá, primeiro, que a sérieé uma #gura, ainda que dúctili4. de autoridade matemática15,chamada a transcrever num modelo de inteligibilidade pura o que permanece uma não menos pura

i4 A ponto de substituir a palavra "capítulo", certamente para marcar que aquilo do qual estes elaboram a exposição requer o mesmo modelo de constituição. i5 Cf. as referências -- com reserva -- ao cálculo diferencial(por exemplo, 65).

mudança qualitativa. Mas uma figura autoritária a ponto de se transformar em entidade conceílua/, suscetível de fornecer à sequência do

argumento um personagem racional: de investir o discurso filosófico pelo rigor paradigmático de seu aparelho referencial. E nada menos era preciso, certamente, visto que a instituição do sentido devia ser alheia a todo sistema, para fornecer o suporte de uma zfnidade arficw/áue/à transformação contínua da qual a colocação em séries consti-

tui o único momento substancial. Daí as propriedades da série. De um lado, ela existe, ao menos potencialmente, por si mesma, há o Um da série, é o verde, o riso, a grandeza...; de outro, ela é um Múltiplo -de pontos, de graus -- cujo esquema dinâmico no qual ela é tomada atualiza os momentos que vão constituir -- por sua diferença com aqueles da série dual -- o sentido: será, por exemplo, segundo a ocorrência e o excesso de uma ou outra série, a ironia (cínica) de quem opõe,

à idealidade das significações, a materialidade das designações, ou aquela jsocrática) de quem, ao absurdo material do designado, opõe a instância da significação (XIX). De modo que, finalmente, a umasérie não é nada, não "produz" nada -- sentido nenhum -- senão por aquilo que, da série dual, anima nela o múltiplo; mesmo assim ela é suficiente, como uma, para co-determinar de sua multiplicidade o senti-

do que se produz. A condição da série é não ter definição fora de uma produtividade que atualiza seu próprio aparelho, e cuja definição no entanto a requer. A introdução da instância paradoxal na constituição do sentido, introdução perfeitamente consequente, mas que até então nada anunciava, assinala, quanto a ela, uma espécie de lance teatral na estrutura de l,ógfca do self/do, que não mais cessará de explorar suas conseqiiências. Mas esse momento também é, na doutrina deleuzeana, o da esfra/z/I'a: estando entendido que, desta, o termo que garante todo o jogo é aquele que "nunca está onde [o] buscamos" e, inversamente, não encontramos onde [ele] está" (55), aque]e que se traduz numa série pelo excesso de um "significante flutuante" e na outra pela falta de um "significado flutuado" (64), aqui "casa vazia" e lá "ocupante

sem casa" (66). Outras tantas referências explícitas16: o sentido, como

ló Onde convergememprogressão:como dados, o "fonema zero" de Jakob-

son e "o valor simbólico zero" de Lévi-Strauss; como jogo alternativo, o lugar sem ocupante e o ocupante sem lugar de Carroll; como agente, o "significante ausente de seu lugar" de Lacan.

a coxa, não escapa à estrutura, a não ser no regime de sua maior produtividade, e o que garante isso é a mobilidade perpétua de um termo que a estrutura não sabe situar, que está na ausê/zelada estrutura. O estruturalismo de que se vale aqui Deleuze é despojado de todo meca-

nismo e de todo modelismo: seu princípio motor é "a circulação da casa vazia nas séries da estrutura" l88), seu recurso é a colocação em séries de elementos, sempre virtualmente possível mas jamais pré-ordenada, pelo perpétuo deslocamento de um termo que se excetua na estrutura. Resta que, por sua vez, o modelo estrutural fornece ao aparelho o que ele necessita de racionalidade e articula o que ele parece impedir de articular. Sua operatividade está, devido à indeterminação da instância, suspensa ao que exclui qualquer cálculo antecipando a produção; mas a instância revela-seo / gar mesmo do ccí/cw/ono instante de sua atualização: é ela quc induz o múltiplo despertado pela colocação em séries, que organiza o duplo heterogêneo para fazer dele uma estrutura nova, ela é o verdadeiro agente da produção do sentido, aquilo sobre cuja configuração tudo repousa e que tudo determina. Por natureza, ela falta à estrutura, faz exceção, mas essa falta "emite" tudo o que o sentido irá comportar de organização. Ela não tem definição própria, ela foi inventada -- invenção genial -- para cumprir o papel do fercelro que falta à constituição do sentido na ausência de uma instância do fazer-sentido, mas essa mesma necessidade acaba por identifica-la com o sentido, do qual configura o núcleo. Assim, a "maquinaria" que o amador de sentido reclamava no início está de fato inteiramente voltada para a ilustração de que o sentido não "é" mas é produzido, não é senão mobilidade que o produz; de que sua produção se entende por subtração tanto de uma atualidade prévia dos termos que ela liga como de uma possível exaustão das posições que ela prescreve. E ela está, pelo mesmo traço, destinada a produzir senfldo soba'eo sentido, diretamente sobre o sentido, exclusão feita de todo sistema ou pauta predeterminante. O que se poderia chamar a aura da malbesfstem precisamentepor fim a elaboraçãode uma série de substitutos tomados do cálculo que asseguram, de uma figura racional, a articulação do sentido sobre o sentido, ao princípio do sentido. 2) Da construção do sentido, isso não é senão o intervalo. O /ehfo/z,enquanto sentido de um acontecimento, é, como ele, s/ngular.

Da singularidade do sentido, o modelo inteligível deve prestar conta. E, de repente, o problema se volta: o que é que, na circulação incessante entre as séries, antecipa a singularidade de "um" sentido? E mais uma vez da estrutura que devemos partir, pois a estrutura que comporta a cada "instante" "duas distribuições de pontos singulares correspondendo a séries de base" e que "convergem para um elemento paradoxal, que é como o seu 'diferenciante'"

(66). Na mobilidade de

ma mesma esfr lura -- digamos: as posições sucessivas dos personagens de uma mesma história --, as repartições quc se sucedemdelineiam certas distribuições que fazem /zó, em torno e em função das quais as t,ariáz/els

que a estrutura autoriza se desdobram: dir-se-á que elas mesmas são acontecimentos muito particulares" -- ideais -- que constituem "si/zgu-

Za Idades designáveisna estrutura" (65). Em outros termos, a singularidade de sentido tem por condição um encontro da estrutura no devir de suas distribuições; mas ela não é menos, com isso, o desdobramento de implicações triz/i/egfadas inscritas na estrutura. Modelo que, em todo

caso, torna inteligível a subsunção dos encadeamentos de sentido sob o conceito de singularidade:

"cada singularidade é fonte de uma série

que se estende [.-] até a vizinhança de uma outra singu]aridade" (87); as repartições, ecoando, se redistribuem, há uma passagem que é transfe-

rência da singularidade; "se as singularidades são verdadeiros acontecimentos, elas se comunicam num único e mesmo Acontecimento"(68). Um primeiro ponto, homogêneoao que precede,é que a singularidade do sentido, a encontrar sua inteligibilidade no registro das séries, se transcreve nelas em repartição, conjunto de pontos que formam nós, arrepiamentos e condensações 167): tudo o que se inscreve sobre a instância. Há uma ex-plicação do próprio singular -- trata-se de um mzí/flP/o--, e por esse viés a singularidade de Deleuze não é a do nominalismo, que resistia a toda abertura, inexcedívelíndice de unidade do ente bruto. Para o nominalismo, a multiplicidade é que era o problema -- como dizer: há vários singulares que são "homem"? --, e sua teoria do signo era a decorrência disso; para Deleuze, a multiplicidade é dada com as séries, e é a singularidadeque resta/Za,que é produzida, inscrita que ela é nas características de uma repartição. Ela cessa com isso de resistir ao pensamento. E o esquema torna inteligível a dzzcff/idadedo singular, que se prolonga e se recupera em outras singularidades, formando eventualmente com elas a Uma-Singularidade que

nessa cadeia esboça o "ponto crítico" 1681de uma virada do sentido. Resta que nessesinstantesque não são quaisquer, nessesinstantes

'críticos", se estabeleceuma configuração que vai insistir, elevar-se no estatuto de uma Singularidade ana em sua idealidade. E essa promo-

ção não mais tolera o vaivém entre as séries e sua transcrição na mafóesls, mas só se faz sob condição -- desta vez manifesta -- de uma leitura da operação de dupla entrada. "Os dois momentos do sentido, impassibilidade e gênese, neutralidade e produtividade, não são tais cineum possa ser tomado pela aparência do outro" (122). Aqui, a sinHtilaridade de uma curva matemática, de um estado das relações de coisas, de uma organização "dos pontos de choro e de alegria" (67), singularidade que, devido a sua construção estrutural -- nela incluído o nomadismo da instância paradoxal --, é articulação co ce/tzfa/de um múltiplo. Ali, a uma-singularidade, essencialmenteaconceflua/, do expresso que conhecemos: nem afirmativo nem negativo, nem plural nem particular, impassível, não subsistindo, mas insistindo eternamente, sob qualquer categoriaque se queira observa-lo, "neutro". O dualismo ordem do fato/acontecimento se deslocou no acontecimento, que se diz duas vezes. A partir do modelo que poderíamos chamar: de produção de singularidades estáveis, sobre a base de multiplicidades em

evolução, a singularidade do sentido não é mais que um clarão: o "esplendor do acontecimento" (175). A partir da neutralidade do sentido -- "sem a qual o acontecimento não teria verdade eterna" (122) --, todo retorno à maquinaria de acontecimentosseria retorno àquelas categorias das quais é por estar livre que ele encontra sua (quase) definição. É portanto em sua pura idealidade que sua singularidade deve se manter para ser entendida. Mais: é enquanto singular que o sentido só pode ser entendido como ideal. Esse ponto é aquele em que os recursos construtivos da mafbesis estão esgotados. É também o ponto decisivo. Pois a existência de slngula7'ldczdes ideais é exatamente o que se precisava entender como a anunciada reversão do platonismo.

Seguindo-sea construção, podemos ser levados a supor que ela ree[abora O pensamento e o moz/ente[de Bergson] e propõe uma montagem do espírito no trabalho, na espontaneidade subterrânea desse trabalho. Mas não. A extrema originalidade do procedimento de Deleuzeé passar por essa elaboração para produzir novas e zldades, formas que circulam num campo pré-empírico-- o aios -- sem serem universais, e que são originárias sem estarem "aprisionadas" (129) na

atividadefundadorade um Eu constituinte.Não é precisoforçar as palavras para escrever: zzm Idecz/limo meia/bico do Si/zgzí/ar.

Entidades de substituição às Idéias platónicas: é o que podemos dizer com razão, a princípio. "Anónimas, nâmades" (125) e só anunciando seusvalores num descampado de terra; entidades,porém, indiferentes às determinações de suas efetuações dispersas (da batalha. por exemplo, 122), e "eternas" na medida em que sua "verdade" é a de uma "energia potencial" que as efetuações atualizam (125). Institui-seum sistema "meta-estável" em que "acontecimentostopológicos" sem direção "sobrevoam" as condições de sua atualização; são todos o efeito de um processo de "auto-unificação" movente como a instância

paradoxal que o percorre, e entram em ressonânciauns com os outros Estranhas idealidades, certamente, ao mesmo tempo sílzgu/ares, pofefzclalse em deulr; mas a ambição delas é recon/zgurarcompletamente aquilo mesmo que foi o céu das Idéias, do qual elas ocupam o lugar inteiro -- o todo da idealidade (69) -- e que se torna o do sentido. A lógica dos paradoxos e a montagem da maquinaria eram apenas preliminares de uma revolução metafísica. De uma refutação do platonismo em seu próprio terreno. Por todos os seus traços Outro da Idéia,

e substituindo-a,

e por st.

o senfldo

"não

é", mas "não

é" por ?zafzff'ez.z

Sem que haja aí contradição, é antes como o cumprimento que historicamente faltava à fenomenologia, que as idealidades singulares são metodicamente induzidas. E a irredutibilidade delas é exposta como

a da redução reconduzida ao mesmo campo em que a fenomenologia clássica encontrava sua fundação: o do Ego. "Buscamos determinar um campo framscendenfa/ ImPessoa/ e pré-i/zdíz/fd a/" i7 ( 124): impes-

soal e pré-individual porque a distribuição constitutiva das singularidades não se deixa absolutamenteclassificar sob as formas sedentárias e determinantes -- agora precisados: unidade analítica para o Ego,

sintéticapara o Eu -- da subjetividade.Originário, o sentido o é a ponto de expulsar, como "derivados", aquilo sobre o qual se construíram tanto o Indivíduo teológico como o Eu transcendental( 129). Não abordarei aqui essa derivação ou "gênese" do indivíduo pela convergência das séries, do sujeito por sua divergência: análises notáveis -- com seu plano de fundo leibniziano -- dos conceitos de indivíduo e de sujeito, mas empreendimento um tanto artificial no que se refere a gerálos a partir da singularidade -- como o são todos os empreendimentos desse gênero. O argumento crucial é que a singularidade ideal exclui n Grifos meus

do originário o Ego transcendental, ou sela, a forma-tipo contemporânea de um certo platonismo. Mas promove sua própria originaridade como constituindo "o campo transcendentalreal" (133). É a partir dessaoriginaridade absoluta do sentido que se esclarece o que havia surpreendido em sua descrição -- o desprendimento em relação ao texto e ao leitor -- assim como nas aporias evidentes de sua constituição -- dupla causalidade e dupla definição do singular --: o sentido é, certamente, efeito tanto em seu exterior como em seu interior -- dos estados de coisas, da estrutura serial e de sua instância -- mas sem nada mais dever a ninguém no expresso de sua idealidade. E é aqui que se compreende por que as singularidades, se são idealidades de um novo tipo, são também o quase-objeto de uma apreensãopura: pelo menos não se percebe como elas poderiam ser apreendidasde outro modo senão em si e por si, lá que nada do que precede essa apreensão, nada do que a segue, e nem mesmo nós que as apreendemos,é adequado ao que elas (não) são.

3) O gestopróprio de Deleuzeé isto: uma travessiada cenogra-

fia da argumentação -- identificações e classificações -- para encontrar, mais além, um reinado de formas e forças fluidas, de entidades potenciaisem devir ilimitado; atribuir essa passagema um novo empirismo e simultaneamentepropor, das entidadesvirtuais que incessantemente se atualizam, uma construção moldada sobre o que abre a malbesls a seu movimento auto-produtivo; voltar ao proscênio confiante no argumento de que o originário foi assim não só descoberto, mas articulado, e que uma figura nova de um em-si ideal é afirmada com ele. A sutileza com que é conduzido esse processo faz com que ele retome sempre, deslocando, o que ele nega, e que nele se reconheçam, mas transpostos, os requisitos da experiência que ele parece ter ultrapassado. Já observei que a articulação do sentido é assumida pela instância -- mas só o é a título de acontecimento, não de estrutura regente. O mesmo sucede com o que fixa o recorte de uma singularidade, inscrita na estrutura de uma colocação em séries, sobrevoando suas

efetuações-- mas não sem uma cisão na definição do sentido. São essas duas reservas que decidem sobre o que implica de problemático -- ou de refutável -- o esquema proposto por Deleuze para a constituição do sentido.

E, em primeiro lugar: o sentido não é.pontual, ele é sempre desde o início in/eira/ -- esse é exatamente o ponto essencial do texto de Lévi-Strauss que Deleuze citaiS -- e a história do sentido é a de seu recorte incessantementerepetido, a produção do sentido é a de novas integrações. O esquema da colocação em séries e dos quase-efeitos implica um percurso ilimitado de relações possíveis, mas não leva em conta o primado constante do todo sobre as partes, como se o sentido pudessese abrir noutra parte que não em seu interior. Não se considera aí que o sentido só se institui no interior de um todo organizado, ou melhor, constantemente em via de reorganização, cuja articulação -- o neutro é zízmbémo campo privilegiado da taxonomia -- precede toda produção. Ora, o que se produz no encontro de duas sériesnão se pode compreender fora da composição regrada do sentido em seu conjunto, que o atravessa, composição que cada série traz secretamente

inscrita na singularidade de seus "pontos". Deleuze não nega isso e, pensando bem, ele o implica; mas não o diz, e é o que Ihe permite manter-se no acontecimento /oca/ da colocação em séries. Em outras palavras, servir-se do Dois heterogêneopara constituir o sentido como multiplicidade, evitando aquilo que, por qualifica-la, a inscreve numa ordem que a ultrapassa. Tanto mais facilmente quanto se interpõe astúcia da ma besls -- a função reservada aos "pontos" que a instância

paradoxal acaba de despertar na série: como pontos, elessão fnqz/a/iÁzcados,ou melhor, só o são por seu lugar na série; mas elesnada são, no que se refere a fazer sentido, se não forem o índice de uma diferença qaa/l/içada: entram numa combinação de traços qualitativos que enforma o sentido -- não é outra casa que se diz sem se dizer quando eles são intitulados "pontos de silágularidade". Do fato de o sentido não ser nem universal nem particular deve-seinduzir, contra a evidência, que não Ihe convém possuir seus termos, sua "gramática" e mesmo seus universais19? Deleuze escreve, e o faz com maravilhosa ]8 "No momento em que o universo inteiro se tornou signf#caflz/o... uma passagem se efetuou, de um estágio em que nada tinha um sentido, a um outro em

que tudo o possuía" (XLVll).

]9 A cor é um conceito, certamente; mas ela é também, e em primeiro lugar,

um domüfo de sentido em que todo um reglstro de sentido se desdobra diferenciando-

se. Na imanência do sentido, nomear a cor é permanecer no jogo concreto dessas diferenças, mas também explorar as condições -- superfície, luz, matiz.- -- que o fazer-sentido implica enquanto-cor, e os problemas que delas resultam para o senfzdo.

fineza: "Ter uma cor não é mais geral que ser verde, pois somente essa cor que é o verde, e esse verde que é esse matiz, é que se relacionam ao sujeito individual" (136); o que ele não escreve, e que não é menos verdadeiro, é que esse matiz me toca pelo fato de fazer variar o verde que ocupa, ele próprio, um campo na paleta das cores, e que nesse campo giram em volta o amarelo esverdeado, o azul esverdeado, e o vermelhocomplementar, e que todas essascores juntas não existem sem a luz... O sentido é relativo ao sentido, Deleuze não diz outra coisa,

mas no quadro de um recorte regrado do sentido, e de condições que governam cada sentido, próprias ao sentido, que Deleuze não se dá os meios de explorar: que seu tratamento do sentido procura evacuar.

Mais uma vez, não é possível que a colocação em séries produza "emita" -- a singularidadecomo uma forma que Iransce/zdea diversidade das distribuições jquis-se dizer que ela a "sobrevoa") (127), sem que essa produção implique a distinção e a articulação desse sen-

tido ao sistemados sentidos de onde elese extrai e assegura,por essa mesma articulação, sua insistênciano retorno de suas ocorrências. Não é sequer possível que um sentido se imponha sem ter encontrado na articulação da língua o significante ao qual se fixar,20 que Pe/a ordem p7'óp7'í(z da /água não cessará de defini-lo. Em suma, a produção jamais é /oca/. Mas mesmo colocando-nos na construção local de Deleuze, surge uma outra dificuldade: uma singularidade não pode resultar, e o "ponto crítico" é introduzido por um ato de violência. O que diz, de fato, Deleuze?Que tal "distribuição nâmade" das séries "se organiza"

num sistema "meta-estável",

"provido de uma energia

potencial", dotado de um processo de czufo-unl#cação ao qual a singularidade "corresponde" (1251. Mas isso é dizer muito em muito poucas palavras: onde situar esse processo? Dir-se-ia -- e Deleuze o diz -- que a instância é justamenteo lugar onde se indica a unidade sintética de uma colocação em séries; seria preciso responder que, circulando de e/emenfo em e/emenlo, agindo pontualmente, ela produz uma distribuição sem recorrer a nenhuma figura que nela se busque e que a dirá/a.Todo o aparelho de Deleuze é construído para evitar a direção, contornar a "boa forma", impedir que o sentido faça outra zoAssim, em Commenf /e me sais dispKlé-., de Despléchin, é preciso que tenham sido encontrados a palavra "medo" e o sintagma "medo de não ser o mais

forte", para que os protagonistas fixem o que é para eles o sentido da relação entre os sexos.

coisa além de acontecer21. Dir-se-ia -- e Deleuze o diz -- que é a pró-

pria estrutura que está em processode auto-unificação(124); seria preciso responder que esse processo não é da estrutura do encontro em constante evolução, mas supõe que a suplemente um prl/zcz'Pfode raso/anão: para dizê-lo cruamente, que ela esteja em busca de seu ponto

de equilíbrio num equilíbrio que a excede. A solução, escreve Deleuze, não é qualquer uma: simplesmente,ela resulta "inteiramente como no campo diferencial, onde repartições de pontos singulares correspondem aos valores das relações diferenciais" ( 65122;mas isso é justamente

implicar que a estrutura se apresenta com a exigência de resolução de um sistema de equações. Em suma, a singularidade, no ponto crítico, no ponto de equilíbrio, requer um mecanismo de auto-regulação da colocação em séries, e que não poderia ser o de um par de séries isolado: um princípio que equivale a szlplemenfo, cuja chave é precisamente

a articulação desse sentido aos sentidos, ou seja, o requisito de um ponto de equilíbrio de cada sentido numa organização equilibrada do sistema do sentido. Esse ponto, não cego mas cegado, no processo de constituição das singularidades, se acha recoberto por uma das figuras do aco/zfecimenlo. Esse termo é um dos pivâs do livro, mas é um pivõ transformista, e o leitor não pode deixar de procurar o lugar em que Deleuze situa o ponto de convergência de acepções tão diversas: pontual como efeito do estado de coisas na superfície (13), estendido na exposição do "devir-ilimitado [...] com todas as reversões que ]he são próprias j17), ele mesmo "quase-causa" (1 171que se comunica potencialmen-

te com qualquer outra acontecimento(Vll, XXIV), mas tornando a se fechar para qualificar -:tõmç

outros tantos "acontecimentos ideais"

dotados de uma história (66) -- as distribuições de uma estrutura em

21Isso continuará sendo verdadeiro após o que teremos a dizer da inscrição

do sentido no problema, porque o próprio problema não faz senão acontecer.

2zA mesma idéia é desenvolvida, a propósito do problemático, e através de

uma referência a Lautman (127), como a relação entre curvas integrais e pontos singulares, a forma das primeiras sendo relativa às soluções da equação diferencial, a distribuição dos segundos relativa ao campo de vetores definido por essa

mesma equação, campo em que eles acontecemcomo acidentes aos quais não é

associada nenhuma direção. Vale dizer que: 1 ) a equação diferencial daqui, a estrutura) opera por si mesma todo o processo; 2) mesmo assim as singularidades são tanto aleatórias em sua existência quanto distintas em suas propriedades.

processo de auto-unificação, e confundindo-se enfim com a singulari-

dade mesma, "ou melhor [.-] um conjunto de singularidades, de pontos singulares que caracterizam uma curva matemática, um estado de coisas físico, uma pessoapsicológica e moral" (67), ou seja, "o verdadeiro acontecimento transcendental"( 125). Dir-se-á que a cada vez algo acontece, e algo que é ele próprio tecido de devir. Mas às vezes se trata de um Adro, outras vezes de um processo, outras ainda do tra-

l)alhode organizaçãointerior de uma forma. Ora, certamentenão haverá nenhuma dificuldade em convir que a constituição de uma forma é um acontecimento: mas é um acontecimento muito particular, jamais pontual, que excede a maquinaria. É inclusive o acontecimen-

to puro, em seu paradoxo: obrigada pela exigência do sistema do sentido a se efetuar de um modo consistente, a construção do sentido não

pode aí senão fazer cácwlo com o material (os "pontos") que ela reúne e organiza, material com que ela se define ao junta-lo. No momento em que é tomada a decisão, no campo da mundanidade, de que o esnobismo de Charlus não é o de madame Verdurin, esboça-se a partir de certos signos um esquema ainda vago que será preenchido e ordenado com tudo o que ele puder recolher sob "seu" signo, mas esse tudo só produz signo para ele a partir dele, que o determina. A nuança, forma que atravessa todos os tipos de sentidos, se diz toda vez que se efetua, mas ela só se efetua ao instituir no sentido os fazer-excesso do nuançar. O acontecimento, então, não mais resulta, nem mesmo "quase"-resulta: ele é processo de auto-co/zsfifalção -- ele só pode se verificar sob condição de si mesmo23--, como o emprego de um requisito que atravessa a ordem inteira do sentido. E certamente aí está o acon-

tecimento verdadeiro; mas esse é também o que se excetua ao "resultar" que o uso deleuzeano do termo fazia deslocar-segradativamente. Reservas que, obviamente, apenas prolongam a objeção feita a Deleuze de que o sentido é leitura, portanto mediato e propriamente discursivo. Reservas -- objeções -- que equivalem a precisar tanto o que é o sentido como texto desde o início total -- não há léxico a não ser global, nem sintaxe a não ser única -- quanto o que o especifica como texto cuja articulação não é pré-constituída mas deve se cona fruir por causa do simples requisito de uma discursividadea fazer advir.

23Retomo aqui, em seu esquema, a definição de Alain Badiou (L'érre et /'éz/énemenf, IV-V, Paris, Seuil, 1988).

Parece impossível não apontar no sentido uma organização totalizante se há um campo que não pode fazer exceção da idéia de totalidade, é esse e um processo de posição por uma intervençãocircular que suplemente a organização. Por um movimento inverso, a irredutibilidade do sentido se torna em Deleuze absoluta quando, ultrapassada toda construção, L(5giczzdo se/zffdoaborda o ser em si, puramente ideal, das singularidades. Ê verdade que, se o campo transcendental

"sobrevoa"

todas as

suas atualizações, Deleuze não o deixa levantar vâo: não enunciou ele a evanescência do sentido fora das duas faces de que este é a charneira,

e sua função própria não é relacionar a linguagemàs coisas? Os in-

corporais "só têm existência pura, singular, impessoal e pré-individual na linguagem que os exprime" e as próprias proposições "não seriam 'possíveis'" se o aio/z não traçasse "uma fronteira entre as coisas e as proposições"

que e]e "articu]a"

umas às outras

1] 941. Essa é a vanta-

gem da abordagem fenomenológica, remontar por "contra-efetuação" à idealidade originária sem subtrair sua existência às condições nas quais ela se efetua.

Resta que "o acontecimento se relaciona aos estados de coisas, mas como o atributo lógico desses estados, inteiramente diferente de suas qualidades físicas, embora se acrescente a eles. Resta que "o sentido se re]aciona às proposições como seu [.-] expresso, inteiramente distinto do que elas signifiêàm::J195). Resta que o sentido, aqui e ali, implica algo de excessivo" j19ó). E que, ao mundo, o campo transcendentalopõe seu "caosmos" l20ó) como o que excedetoda coxa. A diferença, claro está, é de /zafureza. Esse desvio não é outra coisa senão o do acontecimento ao senado. Deleuze cinde a operação em que o sentido se institui: a dualidade que justapunha determinação das relações de fatos e quase-relações

de sentido, se reproduz entre a redistribuição pela instância dos pontos sobre as séries e os "acontecimentos transcendentais" que são as singularidades: "meta-estáveis", certamente, e em ressonância contínua entre elas, mas mesmo assim constituindo entidades ideais, impes-

soais, eternas: convém pronunciar bem a palavra -- que Deleuze evita: ele prefere dizer "personagens" -- anídades, ainda que anónimas e nâmades, do sentido. No mais, o que designa "singularidade", senão esse Um que, na superfície, se distingue de qualquer outro Um? Como evitar, com isso, que a dinâmica do processo construtivo -- que,

na verdade, não tem outro abonador de legitimidade senão a coerência e a economia de sua armação -- só tenha sido uma reconstituição analítica, que ignora a singularidade que circula no céu do aio/z? E como

evitar que as singularidades não constituam, para terminar, o ouranos das idealidadespuras que não remetema outra coisa senão à incessante comunicação que o atravessa, e da qual a experiência cotidiana oferece apenas uma imagem desfigurada? Lógica do serzfidoé atravessadapor um dualismo preocupado, de um lado, em articular o sentido, primeiro às coisas e à linguagem, para depois construí-lo numa mafbesis, e, de outro, em afirmar a irredutibilidade, primeiro do registro do sentido e depois da singularidade na qual elese dá. E também um dualismo que oscila a todo momento para o lado do segundo registro -- o da "superfície metafísica" j2S7) --, em que se estendecomo originária uma idealidadeque só pode responder por si, contradita que ela é por toda a dota, mesmo que somente ela possa explicar a coxa. Eis por que se trata, finalmente, de um idealismo, se entendermos com isso que a forma mais pura do pensamento atinge uma ordem como/CiumentaOlllra, da qual a experiência comum não é senão a atualização dispersa pelo próprio fato de ser articulada. Ordem outra que apenas toca o real. A questão não pode ser contornada: não é por ter concebido a constituição do sentido apenas sob a figura do resultar que Deleuze deve

extrair dela a consistência do sentido e transporta-lo ao céu das idealidades? Por uma espéciede síncope, também ela característica de Deleuze, a construção do sentido evacua o momento sistemático da forma e a constituição do sentido faz dele, metafisicamente, uma Forma.

111.0NTOLOGiA Há, em Deleuze, um outro modo de ler a produção do sentido que, embora se apresentando como a mesma, adquire um tom filosófico diferente. Se "as singularidades sofrem um processo de auto-unificação" que permanece inexplicado, é por ele envolver "os pontos singulares correspondentesnum mesmoponto aleatório, e todas as emissões, todos os lances, num mesmo /andar"24 (125). Ou seja, no reverso da teoria do sentido, na face em que ele se diz ainda aconfecfmenlo, e

24 Grifos

meus

requerendo do termo uma nova análise25, uma doutrina do a/ealófio como modo -- aberto -- de defermilzação. O modo do acontecimento é o problemático" e "um problema tem sempre as soluções que ele merecesegundo as condições que o determinam enquanto problema" l69). Rearticulada nesses termos, a constituição nelesse reinterpreta. A repartição dos pontos que correspondem às séries determina um proa/emcz, fixa suas cozzdições; as sin-

gularidades geram a/gum.zsde suas se/rações.Elas recobrem o problema mas ele subsistenelas, que "o relacionam às suas condições": o sentido não é portanto outra coisa senão o expresso dessa relação. Resta

que uma solução está suspensa a uma questão: seu "lugar" é aqui a instância paradoxal, redistribuindo em seu percurso as condições do problema como pontos sobre as séries. Cumpre observar que, nesse ponto da exposição, a instância se torna claramentezÓ o agente -- o quase-agente -- do acontecimento:

o sentido deve ser relacionado à fnferz/unçãodo elemento paradoxal qae Opera como quase-ca sa imanente (1 16). Reencontramos aí o tipo de deslocamento que conhecemos. Mas com um novo alcance. Com efeito, poderíamos assinalar que, tudo considerado, o aleatório está em toda parte na produção do sentido, e em primeiro lugar no encontro das séries; que, se a instância é designadaagora como seu agente específico, isso tem uma razão; parece ser preciso entender, então, que

a colocação em séries pertence a uma figura de algum modo passiva do aleatório, enquanto a instância seria o a/eafório-agente, agente do qual o processo de auto-unificação seria apenas o efeito. Recomposição necessária para fazer aparecer a figura agente do Lançar.

25Notemos que, se acontecimento e sentido designam da mesma maneira a idealidade, e são com frequência tratados como sinónimos, mesmo assim eles designam -- como vimos aspectos diferentes; doravante eles irão adquirir, cada

um, suaautonomia.

zó Deslizamento já entrevisto e paralelo ao do acontecimento: no início (55),

a instância"asseguravaa comunicação"entre as séries,era "espelho" e nada a

caracterizava melhor do que "faltar" a ela mesma;na estrutura, ela era a "casa vazia" e o "ausente a seu lugar" cuja simples in-sistência lou como dizer?) é sufi-

cientepara provocar o reequilíbrio das séries-- mas entãoela já era dita "princí-

pio de emissão" das singularidades lóól --; agora, é ela que "faz" ressoar as séries e "comanda"

as redistribuições, ela que "produz"

o sentido l88).

Recomposição que irá induzir, por sua vez, o transbordamento do que tem de singular cada intervenção do termo aleatório, ausente a si, tomado num movimento perpétuo sem oriente. De um lado, os pontos sucessivos das séries que determinam o problema, de outro, o ponto a/eafório 172, 1 161que determina a questão. Uma questão que, devido a sua própria definição, as soluções que ela recebe não podem nem satisfazer nem suprimir, uma questão que pode, sob esse aspecto, ficar finalmentesem resposta-- uma não-respostaem que reencontramos o não-senso que suporta toda doação de sentido. Mas ama questão que permanece sempre a mesma: "cada repartição é um acontecimento; mas a instância paradoxal é o Acontecimento no qual todos os acontecimentosse comunicam e se distribuem, o único acontecimento do qual todos os outros são os fragmentos e os retalhos" (72). O único Acontecimento, agora, é o acaso. Não é outra coisa que o insólito capítulo IX) "do jogo ideal", jogo sem regras preexistentes, desenvolve, jogo no qual "o conjunto dos lancesafirma todo o acaso" ao mesmo tempo que o ramifica, no qual os lances são "as formas qualitativas" distintas "de um mesmo e único lançar, o?zfo/ogicamenfeuno" (75) que se desloca através de todos eles, "insuflando" por toda a extensão o acaso. Sob a e na -- distribuição nâmade das soluções, a única e mesma questão. "0 único /a/zoaré m caos, do qual cada lance é um fragmento"27. Parece, de fato, que o caos não é mais o efeito da circulação do ponto aleatório, mas que o Lance é o princípio -- no sentido pré-socrático -do caos. É claro que o tom mudou. De um !ado, esse jogo, se pode ser apenas pensado, "é a realidade do próprio pensamento" em que todos os pensamentosnâmades

27Grifos meus, nas duascitações.A referênciaa Mallarmé nesseponto {81l,

se esperada, não se desenvolve no plano em que tenderíamos a espera-la. Nenhu ma referência ao Z,a/zcede dados: convém lembrar que, em Niefzscbe e czP/oso#a

138),Deleuzecensurou a Mallarmé tomar como o êxito

ainda que impossível

do acaso sua abolição na necessidade,portanto perder a pura a/írmczçãodo acaso.

Em contrapartida, visto que o acaso "se joga sobre dias mesas" (grifos meus), se ramifica em estados de coisas e proposições para mencionar apenas essa dualidade , Deleuze lê o paradigma em todos os Dois de Mallarmé, e especialmente

na composição do Liz/ro. Onde se vê que o único acaso que percorre o ízlonnão deve ser pensado fora das dualidades de que o czloHé a charneira.

se comunicam num "longo pensamento" que "afirma todo o acaso: l7ó). Ao mesmo tempo, é o único pensamento que vale: "onde não há mais que vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é, afirmar e ramificar o acaso", e não buscar controla-lo. Sabe-seque o pensamento de Deleuze é afirmativo; ele o resume aqui: a#rmação do acaso. E isso é afirmar, ao mesmo tempo, a única coisa capaz de perturbar a dolo: pensamento sobre ou na História. De um outro lado, metafísico, o jogo ideal é o próprio ízíon j81 l, sobre cuja linha ilimitada cada acontecimento instantâneo -- sempre redividido em passado-futuro -- é um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo pensável, e -- sempre estendido aos ilimites da linha inteira, neles se comunicando com todos os outros -- um tempo mais longo que o máximo de tempo pensável. E é o ponto aleatório que jogador ideal -- traça com sua ocorrência obstinada a linha rega.Tudo o que foi dito do alon culminaria então no seguinte: "Acontecimento para todos os acontecimentos", verdadeiro eternamente,ele desenha uma nova figura, linear, do eterno retorno -- retorno do único acontecimento. Mas o passo mais decisivoé, terceiro lado, o movimento pelo qual Deleuze remonta de um conceito objetivo do problemático l70) ao serzzmdo lançar que nele constitui a questão. Até aqui, a investigação do sentido havia se mantido na oposição entre o ser dos estados de coisas a que a proposição se refere, e o estatuto inteiramente à parte de "não-entes" -- dos exprimíveis, ou entre o processo complexo da colocação em séries e a entidade-singularidade: oposições tais que foi preciso falar, a propósito delas, de idealismo fenomenológico e depois metafísico. Eis que agora, ao desdobrar a produção das idealidades, a instância paradoxal, tendo passado progressivamente do papel de intermediário necessário entre as séries ao de verdadeiro agente de sua redistribuição, adquire uma dimensão propriamente ontológica: ela é instância, em última análise, do acaso, que leva consigo o caos. E então não se deve mais dizer que o aios é a realidade do pensamento, mas que o acaso é o real dessa realidade (76). Então, é na superfície sem espessura, onde há somente "efeitos", "quase-causas", existen tes "apenas", que o ser, como o aleatório, retorna. Isso, evidentemente, só pode ser entendidose o próprio ser for tomado em dois sentidos, ou melhor, sob dois modos, segundo se trate das coisas ou das idealidades, de crorzos ou do afon: lá -- e reaparece a dicotomia estóica -- o reinado da necessidade, aqui, o do des-

tino28. Mas, ao menos do ponto de vista do pensamento, já que para ele a linha em que circula o sentido faz charneira entre as coisas e sua expressão, e já que dessas duas uma não existe sem a outra (81), ambas dizendo o ser segundo a necessidade, parece possível afirmar que a figura originária e a verdade eterna do ser é aquela pela qual ele va-

gueia sob o sentido, e que é o /andar. Da investigação fenomenológica, remontando até o sentido como idealidade originária, resultava tanto que ele difere completamenteda essência, como que ele é o lugar de uma produção sem fim. Da investigação metafísica que retomava o sentido em sua autoconstituição, concluía-se que, encontro de um múltiplo que resulta, ele tem no entanto a insistência eterna de uma Forma. Da passagem da produção do sentido ao aleatório do acontecimento, duplicando a constituição do sentido pela circulação do não-senso, resulta um retrato do fundamento: o universo do sentido está suspenso de toda segurança, exceto a do Acaso do qual eledeclina o jogo.

Última -- e admirável análisedo sem-fundo sobre o qual o sentido não se produz sem fundamento, e daquilo que, do real, se induz daí. Mas que, por causar o sentido pelo simplesjogo de um agente sem causas, carece daquilo a que não cessamos de fazer objeção: a leitura organizada do sentido -- a menos que seja dado, através do problema posto pela colocação em séries, um sentido /á organizado. Ora, no fim de contas, a contrapartida de tal análise é deixar-nos desarmados diante do sentido, quando sabemos bem que ele nos requer a ponto de não cessarmos de percorrê-lo, de nomeá-lo, e de reconstruí-lo, para nos reorientarmosnele. Ora, no fim de contas, não é sobre a singularidade de um lançar que nos cabe tomar a boa nova que Deleuze se alegrava de trazer: e que sempre implica inler-z/Irno dado do sentido para desdobra-lo, lê-lo e exigir que ele se organize. O único acaso é uma chave muito pouco qualificada para abrir tantas portas, e cada uma tão complexa. E a contingênciado mundo não é em parte alguma obstáculo a que se reconheça nela, não as resultantes de aleatórios locais dispersos, mas uma necessidade global, de concate28É ela que, evidentemente, governa o belíssimo desenvolvimento ético de XX e XXl: "tornar-se a quase-causa do que se produz em nós", "não ser indig-

no do que nos acontece" j174), "o esplendor do o/z [a gente] é o do acontecimento" 1178).

nação. Toda produção ou acontecimento de sentido, em sua prática concreta, só pode ser descoberta do que era o sentido no sentido: trabalho metódicodo que estavaenvolvido num estadoou numa figura dados do sentido, mesmo quando ela os excede. Uma intervenção que se apodera do encadeamento do sentido -- série de séries -- para fazêlo trabalhar com o duplo gesto ao qual ele se presta: cortar e /fiar. Recortar e reatar sem trair: velhos gestos e, cumpre admitir, gestos platónicos. Cortar, mas no sentido de des/luar, é afinal de contas o que fazem os paradoxos, dos quais Deleuze espera que libertem o sentido do bom senso. Porque "insistem na linguagem", eles forçam a suspen' der a coxa e a interrogar "o inconscientedo pensamento" (92). Não um desligamento qualquer, mas regulado por aquilo que os paradoxos dizem sobre o sentido argüindo como ele se diz. Eles iluminam a problemática do sentido ao remeterem o pensamento ao não-senso que

é sua "paixão"; mas justamente: esse remeter nasce do encontro do que é a princípio um acidente significativo da linguagem. É porque "ali a linguagematinge sua mais alta potência" que ali se pode captar "a potência do inconsciente" (97-8). Deleuze não confia ao aleatório a produção do paradoxo como chave da teoria do sentido. Resta que desligar, se libera o sentido e dá acesso a um estado neutro do sentido, não é cortar no sentido para produzir, segundoa ordem de necessidade própria do sentido, um outro sentido: aquele que

a estrutura do sentido dado comanda; e só há estrutura se inscrita na articulação do enn/zcladodo sentido. Daquilo que gera o corte na estrutura significante, Deleuze não tirou partido, não Ihe abriu seu lugar: não respondem por isso nem a redução transcendental que excetua o sentido, em sua esplêndida neutralidade, de toda determinação, as da própria racionalidade (31 ), nem -- ao contrário -- a impossibilidade de estruturar o sentido fora das determinações da língua -- fora

do discurso que o sustenta. Lógica do se/zfidoganhou assim aquela euforia do "tudo é possível,cabe a nós jogar", que a atravessa. Mas assim perdeu o único tratamento fecundo, porque o único regrado da produção de sentido: o corte no enunciado, que nele retém nãó mais a insistência mas a ex-sisrência de um sentido outro, mesmo se esse devesse ser, em última instância, reconhecer que um desdobramento ulterior do sentido sempre está por descobrir. O mecanpHO desse déficit se esclarece ao toma-lo em sua ocor-

rência mais notória, no ponto em que Deleuze encontra uma prática do sentido articulada sobre as wcswczs recusas que ele invoca -- nem essências, nem tradução hermenêutica, nem bramido das profundezas mas operando no dísc rso, ou seja, ao comparar o que é o corte, e seu lugar, e seu alcance, respectivamente em Deleuze, onde ele o nomeia, e em Lacan. E, para tanto, ao confrontar o uso que faz Deleuze

do anelde Moebiuscom o que faz Lacar.29Moebius comparecea

Lógica do senado toda vez que está em questão a aresta do sentido que faz, das duas faces sem espessura que são o expresso da proposição e o atributo do estado de coisas, uma só; explicitamente,a única figura evocada é a da fronteira; mas que outra coisa entender a não ser Moebius

quando

se lê: "Mas

será

que devemos

dizer

duas

z/fazes,

já que é sempreao mesmo temPO, já que são as duas faces simultâneas de uma mesma superfície cujo interior c o exterior [...] estão em continuidade sempre reversível?". Se, em duas oportunidades, é feita referência ao "anel de Moebius" (31, 149), é precisamente para nomear seu corte que, "rompendo" a tira proposições-coisaspezpendlc /armenfe,

"destorcendo"

sua bilateralidade,

faz aparecer

--

por

coloca-la à parte como o que foi o bordo único -- "a dimensão do sentido por ela mesma": o corte então desdobra, isola, mas não produz sentido. Lacan corta a tira do discurso não perpendicularmente, mas em lodo o seu comPffmenfo, e não para o retorno do anel de duas faces que esse corte faz reaparecer, mas para ver aparecer, em nome das propriedades topológicas dessecorte, a tira de Moebius como seu resto: de modo que ele poderá escrever que é o próPrIo corte que atesta

o real de Moebius30.A razão disso é que se trata, para ele, não de "inferir" a existência,o lugar e a dimensão do sentido, mas dc inferP alar o discurso, produzindo nele um sentido outro, inconsciente, a bem dizer, produzir o sentido em seu real, como inconsciente. E que a interpretação, recusada toda hermenêutica, não pode ser outra coisa 29Que a referência seja tomada de empréstimo à &ol/zelacaniana, é pouco

duvidoso. Aliás, Lógica do sentido situa certamenteo momento em que Deleuze se julgou o menos afastado de Lacan. Mas deixaremos isso à história das idéias. É a constituição de uma metafísica que nos interessa, o que sua construção retém e

o que ela deixa de fora.

30Tal é o sentido das operações topológicas desenvolvidas em "L'étourdit

Scf/lce14, pp. 26 ss. A continuação, com seu tratamentoda "asfera", diz respeito a uma outra questão, a do objeto.

senão o próprio corte que, ao mesmo tempo que separa do discurso as duas faces, se encarrega -- de quê? -- justamente da tira de uma só face: de modo que o sentido não é nem o rosto nem o verso, mas a fira de À4oebíusprecisamente31:onde o não-sensoem última instância retorna, mas não mais o da singularidade, o que subjaz à articulação da enunciaçãosob o enunciado. Seria preciso ainda acrescentar que, na enunciação, é o lugar do su/elmo(e, portanto, do objeto) que pela interpretação é designado no sentido, quando o próprio termo sujeito estava excluído para Deleuze, em nome da impessoalidade de singularidades tomadas aquém do discurso. Poderíamos retraduzir, o

mais próximo de Deleuze:cortando de um só golpe em todo o seu

comprimento o enunciado do sentido, fazer aparecer numa outra figura -- numa outra organização -- de discurso aqz/eleúnico lançar que o suporta; ou melhor: por aquilo que, ao longo dela, "insiste na linguagem", evidenciar o lato aleatório mas não mais qualquer um que equivale à marca do sujeito, com seu reverso de não-senso. Encontro de duas figuras e duas combinatórias de termos finalmente semelhantes, cujo tratamento em registros diferentes -- lá, as singularidades, aqui, o discurso -- permite à segunda fundar uma práffcíz do sentido, quando a primeira pretende apenas fornecer sua teoria. Resta que, ao proibir-se toda determinação da produção de sentido, a teoria confessa uma impotência onde o "tudo é possível", se transforma em "nada", do sentido, produz nele técnicado argumento. Ligar. O que é que faz a relação de um sentido a outro, e mesmo a comanda como necessária? Esse problema é o da z,'erdadequanto ao sentido. Deleuze ora escreve que a singularidade neutra não é verdadeira ou falsa nem tampouco geral ou particular, ora que a idealidade é sempre verdade eterna -- o que não é contraditório, os pontos de vista sentido versus conceito e sentido em si sendo diferentes. O que é talvez contraditório é que uma singularidade seja verdadeira -- enun-

ciado para onde retorna o idealismo metafísico da teoria deleuzeana do sentido. Da verdade, só há relação. E ela só pode pertencer aos sentidos se eles se ligam. É o que se caberia chamar Lógica dos sefzfidos.

Seria inexato escrever que Deleuze não leva em consideração as implicações de sentido. Ele trata disso a título "da gênese estática lógica" (XVll). Mas então não são mais as singularidades consideradas 3i Cf. ;Radiophonie", Sci/lce 2/3, p. 70.

em sua neutralidade; essemomento é o do desdobramento delas-- que é também sua queda dóxica -- na proposição. Ali, "os indivíduos são proposições analíticas infinitas: infinitas no que elas exprimem, mas finitas em sua expressãoclara, em sua zona de expressão corporal" j143): em se tratando dos "pontos de choro e de alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angústia; pontos ditos sensíveis" (67), em

suma, da experiência individual ou da existencial, dir-se-á que são outros tantos condicionados cuja condição -- de convergência -- é o indivíduo no que ele tem de mais concreto. Quanto ao que faz sentido de um sujeito, Deleuze tem um enunciado simétrico: "As pessoas são proposições sintéticas finitas: finitas em sua definição, mas indefinidas em sua aplicação"; por onde se deve entender que o sujeito, como poder de identificar o divergente, condiciona todo enunciado da

multiplicidade dos possíveis.Enunciado no qual as classes e as propriedades definem, por sua vez, "a condição de possibilidade da proposição lógica em geral" j143). Se acrescentarmos que cada manada individual "exprime o mundo" como compóssibilidade (134), compossibilidade que o sujeito "transcende" para pensar o que liga, como variantes, os incompossíveis, enfim, que as categorias são os predicados

do "objeto qualquer [...] do qua] todos os mundos são as variáveis" j140), tem-se a cadeia completa pela qual o sentido comanda o senti-

do. Se acrescentarmosque a individuação funda a designação, o ser sujeito a manifestação,e a forma lógica a significação, compreendese em seguida que os níveis de implicação, fazendo círculo, implicamse por sua vez uns aos outros. E preciso, todavia, insistir que essesdesdobramentos do sentido não são gerados e só se oferecem/orczdo campo fra/zscenden/a/:no campo das efetuações."Nenhuma dessas características pertenceàs singularidades como tais" (134). A manada individual "deriva fora do campo" das singularidades pré-individuais, de que ela exprime apenas aquelas na vizinhança das quais se constitui" (135); uizinba/zça designando no campo das singularidades o que se transpõe -- impropriamente -- como predicados analíticos no registro da proposição. E os mundos incompossíveis são somente a expressão sintética, e tornada contraditória, dessa zo#czde índefermi/cação (138) que toda singulari-

dade comporta enquanto relacionada a um problema do qual ela constitui uma das soluções, governada pelo aleatório de sua distribuição. Segue-sedaí uma tomada de posição fundamental: a proposição não é o lugar autêntico da verdade. As noções de verdadeiro e de fal-

se devemser "transferidas das proposições ao proa/ema32que essas proposições supostamente resolveriam, e mudam inteiramente de sentido nessa transferência" (145). Falso é um problema cujas condições são indeterminadas ou sobredeterminadas. E a todo problema é próprio autodeterminar-se -- preencher a falta e evitar o excesso de suas condições-- determinando com isso suas soluções. "E aí que o verdadeiro se torna sentido" (14ól. De modo que todo o aparelho que seguimos em detalhe culmina nestes dois enunciadosequivalentes: "o

verdadeiro e o fa]so qua]ificam [...] o problema" e "é a categoria do sentido qae substitui a de verdade" tt4S}. Enunciado característico do método deleuzeano: a verdade não é qualquer, ela está relacionada às condições do problema e à questão colocada pela instância, da qual é uma solução. Mas o surgimento do problema -- isto é, o encontro das séries--, este sim é aleatório, e a instância representa o "ponto aleatório" que comanda a solução. De modo que uma forma de racionalidade interna e o acaso último, global, são conciliados. Se apesar disso esse encadeamento de proposições genéticas não pode, como tampouco sua consequência, satisfazer, é, primeiro, por' que a "gênese lógica" -- gênesedo lógico -- faz apenas recuar o pro' blema: em virtude de qual /ógíca, a ela subjacente,a circulação aleatória das séries se polariza sobre o indivíduo e seu mundo, o sujeito e seus mundos, e o objeto qualquer? O sentido não poderia ser aleatório e depois necessário; ele só é pensável contingente em sua necessidade. A seguir, é porque da vizinhança ou da zona de indeterminação à analítica não há, de maneira óbvia, transição possível, salvo se recairmos nos mais ruinosos artifícios de uma dedução cujos resultados são pré-concebidos. Enfim, é porque o tratamento da verdade perma' nece -- mantido nos limites do problema -- local. Ora, não há muita pertinência -- exceto no quadro de um intuicionismo perfeitamente infecundo

-- em dizer que zzm sentido é "verdadeiro":

"verdejar"

ou

"sofrer" significam, isso é tudo, e basta. SÓ há verdade de um con/unto suficientementeconsistentepara que a dedução seja, em seu espa' ço, possível. A questão é, ou: como a decisão de sentido reúne os elementosque ela suscita para que ela própria se demonstreo elemento da necessidade recíproca deles? Ou: como este sentido e aquele senti-

do, igualmentedados, se encadeiampara produzir um novo sentido, s2 Grifos meus

que deles resulta com necessidade? Em suma: o que faz de uma multiplicidade de sentidos zlm sentido, que se induz ou se deduz do encadeamento dos primeiros e que é a verdade do conjunto? Verdade: produzida quando, e somente quando, uma doação de sentidos (no plural) produz sistema, de modo que elesse comandem mutuamente. Que de tal ordem de verdade -- mantida na iminência do sentido -- a experiência seja essencial ao sentido, e que uma teoria do sentido estabeleça aí seu campo cardeal, deveria ser evidente. Ê tornar a dizer que não há verdade do sentido que não seja dfsc; rsfua. Será isso, no entanto, perder a neutralidade do sentido, projetado no espaço da proposição? Certamente não. Deleuze escreve: " Verde/ar indica uma singularidade-acontecimento na vizinhança da qual a árvore se constitui" mas "ser z/ardeé o predicado analítico do sujeito constituído, a árvore". Ora, o que buscamos é algo muito diferente: a relação entre z,arde/ar e arbori/;car. Que eles façam sentido um pelo -- ou para o -- outro, define um modo de implicação interior ao plano de imanência. Que essa relação possa se ordenar num conjunto de outras que constituem uma "paisagem" e que essa paisagem -- será a prova de que é z/e7'dadelamenfe assim -- produza um sentido,

dedutível de todos os seus componentes, e ultrapassando-os, define o tipo de necessidade que pode reger uma cadeia de sentido33. "Maqui-

33Que a construção da dedução requer a articulação da Érczse,não é de modo algum objeção; não é verdade que a frase só convenha à implicação de conceitos 1241;o recurso -- e, se quiserem, o paradoxo fundador da língua está precisamente em que, se sua articulação categorial governa seu Áafzclo/zízmenfo, disso não se segue de maneira alguma que ela seja incapaz de se modelar segundo o oó/efo

especificadode seu tratamento. O que pode ser a frase do sentido é algo que se entente melhor se a sintaxe se deixa descrever sua /nfrodwcfíon

como o propõe J. C. Milner em

.à ne science da /a/zgage -- como um sistema

de "posições"

no

interior de "domínios" ligados por uma relação: uma vez que sua armação é geo-

métrica e se basta com o sítio que os termos vêm ocupar. Nada implica que um único tipo de termos possa ocupar essasposições e que só exista entre elas uma única semântica da relação. A relação de posição dominial, do sujeito com o ver

bo e os predicados, será sempre a mesma; mas não o que a relação contém em substância, e não, do mesmo modo, a semântica das posições. Seja como for, a frase

do sentido tem suas leis próprias, nós vimos por que, e Benveniste já havia assina

lado IProb/êles de/ingwzsfzqwe généra/e,11,p. 58), sobre o exemplodo pictórico, que seus termos são comandados -- não existem a não ser -- pelo sintagma, de

modo que ela faz círculo. Elaborar a teoria da dedução do sentido e a da formação de sua frase são um mesmo e único requisito.

nar" o sentido muda aí de nível e se torna co?z#ecimepzzo quando é levado a se produzir e a se dizer argumentando-se desde o e no sentido. Pode-se ainda precisar. Num primeiro nível, a verdade do discurso

é a de sua consistência... Quando Deleuze assinala no pintor Francis Bacon o isolamento da figura sobre a pista, quando escreve que o uso dos tons bruscamente alterados sobre o mesmo corpo redobra o desmembramento das formas para deixar a carne à mostra, quando também lê em tais tracejadasa intervençãodo acaso que "extrai a figura improvável do conjunto das possibilidades figurativas"34, ele homenageia a obra de Bacon por dispor o enunciado consistente de um sen-

tido da figura, no qual todos essestraços convergem e do qual se pode dizer que eleé induzido necessariamentedeles;Deleuze faz isso -- como nenhum outro comentador contemporâneo soube fazê-lo -- mantendo-se no plano de iminência, ou seja, aqui, na materialidade da pintura, tal como por si mesma, como ma fer o/Áacf, ela contém sentido; e é preciso dizer ainda que é pela justeza com que ele soube cortar e ligar que o sentido finalmente é, como irrefutável, pronunciado. Sua leitura, aderindo ao texto, reconheceu que ele produz em verdade. Num segundo nível, mais fundador, a verdade que cabe ao discurso produzir é a manifestação das aPorIas próprias ao sentido, desde que mantidas em sua constituição. Deleuze aponta em Bacon o encon-

tro de uma "profundidade magra" (háptica), de uma claridade puramente óptica, de uma interferência manual de sinais ("diagrama "I, de uma espacialização pelas relações de tonalidade (colorismo)35; é por todas essas vias, simultaneamente, que é dado a ver o sentido Bacon; mas,'de uma dessas vias a outra, que a rigor se excluem, como foi que

uma unidade discursiva se instituiu? O material do sentido não cessa de ser aporético, o espaço-quadro, tal como é dado a perceber, conjuga

várias línguas, e o fato de consegui-lo não permite, ao fazê-lo, que ele transponho uma série de esboços nos quais se apóia: onde, no material dü sentido -- na armação do sentido --, se revela a resistência do rea/.36 s4 Logig e de /a sensalíon, ParisS La Différence, 1981, p. 61. 3s Op. cif., cap XV.

3óO que vale para o quadro vale, obviamente,para a percepção "natural"

e devolve à sua cegueira a análise psicológica das "associações": por um lado, nada passa a fazer sentido daqui, do mundos senão por um texto; por outro, cada texto só significa por seu cruzamento com outro texto: sem que o intertexto seja, de algum modo, resolução.

Designação de real -- esta entre muitas outras -- que bem poderia atravessar todo o discurso do sentidocomo verdade, pelo que envolve de impossível em deduzir o sentido em seus próprios constituintes. Mas aqui a impotênciado discurso não remetea um outro estadodo sentido que, precedendo-o, o refuta; do discurso e do argumento, ela se revela como a última etapa na qual, longe de se negar, ele se cumpre.

Se Deleuze trata o sentido por um outro viés, excluindo que a verdade do sentido se arg mente, seria em favor do recurso e da li berdade que um poder de combinação infinito sem requisitos últimos oferece?Para privilegiar, e fazer critério do verdadeiro, a intuição à custa do encadeamento? Para manter o aleatório como última condição e recurso ontológico do sentido? Tudo isso ao mesmo tempo, certamente, mas o último argumento é, metafisicamente, determinante. E ele que arruína propriamente o platonismo: o sentido não é a essên cia se não há ordem do sentido. E Lógica do sezzfidoé, em última instância, a elaboração de uma filosofia do acaso. Pensável porque existe também uma racionalidade das condições

nas quais ele se atualiza: a singularidade é uma solução calculável -ao menos teoricamente -- do problema ao qual ela responde, o problema está inscrito na colocação em séries, e as séries são -- como uma

página (150) brevemente o indica -- uma primeira organização "em superfícies" do que não é senão "pulsação sem medida" dos corpos "tomados em sua profundeza indiferenciada". De modo que -- por uma inversão -- é desde o campo transcendental, na neutralidade do sentido, que a articulação se verifica, que ela desce e se distribui nas proposições e nos corpos.37 "0 senfjdo é um /oiro" (151), ou seja, aquilo cuja produção se junta de ponta a ponta com o Dois que ela subsume -- mas sempre se desembaraçando dele.

Resta que há somente uma única causa eficiente do sentido -um único agente de subversão --, que é o acaso: o lançar dos dados. Ou seja, um Um ele próprio subvertido, por ser substancialmentesemum. Por isso, Deleuze conjuga a asserção da cona/fz idade sem limite dos sentidos no aío/z-- o conjunto dos lances afirma através de cada um o acaso inteiro -- e a produção de sina /arfdades-- cada lance ramifica o acaso --, sem que essa conjugação ofereça à investigação 37Inversão que é também aquela pela qual a quase-causa torna-se prtmetra

da qual a "causa" material recebe a informação.

sobre o sentido qualquer procedimento de argumentação.38 Pode-se deve-se-- preferir reconhecer uma confí/zgêmclaglobal do sentido, que é a mesma da experiência que faz sentido -- na qual se lê o sentido --. e a busca de uma necessidade dos encadeamentos de sentido tais que, do bojo dessa globalidade, eles se deixem apreender, produ-

zindo nela o sentido do movimentoem que elese constrói. O reverso de uma ontologia do acaso é que ela não pode, apesar dos esforços que fizer -- e sabe lá se Deleuze os fez --, senão ver-se bloqueada, passada a altura de sua afirmação, por ter-se proibido deixar-se guiar por aquilo que a ordem constituinte de seus objetos comporta como processo produtivo da verdade. Tradução de Paulo Nunes

380 impasse surgido da dupla afirmação do contínuo e do singular é o mesmo, aliás, com que Leibniz havia se deparado. Mas é a remissão de ambos ao aleatório que torna, por acréscimo, a argumentação impossível, argumentação que a "razão suficiente",

em Leibniz, salvava.

DA VIDA COMO NOME DO SER Alain Badiou

Afirmamos que Deleuze está sempre em diagonal de suas próprias

distinções. Como todo grande filósofo, ele só monta a maquinaria das oposições categoriais para determinar o ponto que se subtrai a ela, a linha de fuga que absorve suas extremidades aparentes. Esse é o sentido

profundo de uma máxima metódica sobre a qual elenão deixa de insistir: tomar as coisas Pe/o meio; não tentar achar primeiro uma das

pontas, para depois ir até a outra. Não. Agarrar o meio, porque o

sentido do percurso não é fixado segundo um princípio de ordem, ou de sucessão; ele é fixado pela metamorfose movente que atualiza uma das extremidades na que é aparentemente a mais disjunta. É o que se poderia chamar o método anticartesiano. Há uma filosofia não cartesiana de Deleuze, assim como há um teatro não aristotélico de Brecht. No ponto em que Descarnes fixa negativa e reflexivamente a pri-

meira certeza de uma cadeia de razões, Deleuze agarra afirmativa e impessoalmente o meio de uma linha de fuga. No ponto em que Descarnes salta à garantia exterior de suas referências pela descontinuidade do grande Outro, Deleuze intui em velocidade infinita a continuidade das metamorfoses, a troca microeconómica do pequeno mesmo e de seu outro, ou a troca macroeconómica do pequeno outro e do grande Mesmo. Ê, em realidade, a diferencial contra a álgebra. Mas essa oposição metódica é uma oposição ontológica. Tratase de substituir à ordem categorial e reflexiva das certezas a topologia fina das inversões, das reversões e das comutações. É preciso que em cada ponto o ser distribua aos entes o mesmo sentido. Tal é a injunção da ontologia deleuziana: que o Ser não seja submetido a nenhuma categoria, a nenhuma disposição fixa de sua partilha imanente. O ser é unívoco na medida em que os entes jamais são repartidos e classificados por analogias equívocas. Perguntemos, por exemplo, o que é o ser sexuado, ou sexual. Impossível construir essa intuição se partimos da identificação do homem, ou do masculino; tampouco se partimos, mesmo como exceção

ou desfalque, do ser feminino, da suposta interioridade de uma feminilidade. O que é preciso é chegar ao ponto de inflexão onde se sobrepõem, numa topologia bifurcante, o devir-mulher do homem e a territorialidade masculina da mulher. O homem não é pensável senão como atualização de sua virtualidadefeminina. Mais ainda: não é pensável senão no ponto em que ele é indesignável à masculinidade; porque sua virtualidade feminina é, ela própria, linha de fuga de uma territorialidade masculina. De modo que pensamos o ser sexual quando estamos na indiscernibilidadeentre um movimento de feminização e uma suspensão de masculinização, que trocam suas energias no indiscernível. Dir-se-á também: o ser sexual, pensado segundo seu ser, segundo a ativação modal de seu ser, não é sexuada, não é sequer sexual, se entendermos por "sexual" um repertório de prioridades. Qualquer que seja esse repertório, e mesmo se o complicarmos ao infinito, o ser sexual não é intuível senão nesse meio indesignável e indiscernível de todas as propriedades que as metamorfoseia umas nas outras. Que o ser não tenha nenhuma propriedade, é uma velha tese. Mas a renovação dessa tese por Deleuze é que o ser é a neutralização aviva

das propriedades pela virtualização inseparada de sua separação anual. Quc o ser seja a im-propriedade é também uma velha tese; é exatamente o que Platão quer dizer quando afirma que o Bem, que é o nome do ser, não é uma idéia. Pois toda idéia é o ser-atual de uma propriedade, e o Bem não indica isso, sendo aquilo a partir do qual toda propriedade, toda idéia, atinge a potência da partilha que ela mstitui. Mas Deleuze transforma o tema da impropriedade do ser. Pois Deleuze pensa que, em Platão, a impropriedade trans-ideal do Bem permaneceainda uma propriedade, a qual é transcendentedo impróprio por excelência. Como pensar que o ser é impropriedade sem Ihe atribuir, com isso, uma espécie de sobre-propriedade transcendente? Como evitar que o impróprio seja, no final, apenas o próprio do ser? O caminho que eletoma é o que elechama a univocidade, ou a imanência. Trata-se da mesma coisa. Deleuze escreveu-me um dia, em letras

maiúsculas: "imanência = univocidade". Mas o que isso significa? Significa que a impropriedade do ser não é outra coisa senão a detecção das propriedades por sua virtualização; e, inversamente, que as propriedades do entenão são outra coisa a não ser o simulacro terminal de sua atualização. Assim, o ser é des-apropriação do próprio da pro-

priedade, mas também apropriação de sua própria impropriedade. Isso quer dizer que ele é o movimento de dois movimentos, ou melhor: o movimento neutro do Todo tal como nele mesmo advém a partilha dos entes segundo o impartilhável, ou o indiscernível, do movimento que os separa. Essa é a razão fundamental pela qual o ser merece o nome de z/Ida. Colocamos aí uma verdadeira questão. Por que o ser, como univocidade

ou iminência, deve chamar-se "vida"? Por que o ser como potência é 'poderosa z/idainorgânica que encerra o mundo"? O nome do ser é, em filosofia, uma decisão crucial. Ele recapitula o pensamento. Mesmo o nome "ser", se for escolhido como nome do ser, envolve uma decisãoque não é de modo algum tautológica,como vemos em Heidegger. E, evidentemente,todo nome do ser declina em seguida as nomeações que ele induz. Assim, para Heidegger, com o movimento giratório que envolve e desloca Sei/z, Da-seizz e, em última etapa, Erelg-

lzls[acontecimento].Ou, por minha própria conta, a série disjuntiva que passa do múltiplo ao vazio, do vazio ao infinito e, numa última etapa, do infinito ao acontecimento. O que liga, em Deleuze, o pensamento do ser a seu nome nietzscheano, a vida? Isto: que o ser deve se avaliar como potência, mas como potência impessoal, ou neutra. Ele é potência, já que é rigorosamente coextensivo à atualização do virtual e à virtualização do anual; ou, também, à impropriação do próprio e à propriação do impróprio. Ou ainda à disjunção separadora dos entes múltiplos e à relação, que define o Todo. E nesse "e", nessa

conjunção, cumpre pensar o desvio movente como movimento do próprio ser, o qual não é nem virtualização, nem atualização, mas, repetimos, o meio indiscernível dos dois, o movimento dos dois movimentos, a eternidade móvel na qual se enlaçam dois tempos que divergem. E essa é também a razão pela qual o ser é neutro. Pois sua potência é metamorfosear em eterno retorno do mesmo o que se apresenta como partilha categorial, é subtrair-se afirmativamente às disfunções que ele efetua sem descanso. O ser é modalização por meio daquilo que parece estar distribuído. Assim, ele não se deixa pensar em nenhuma distribuição. Esse é o sentido deleuziano profundo do enunciado de Nietzsche: para além do Bem e do Mal. O Bem e o Mal são aqui a projeção moral, ou genealógica,de qualquer partilha categorial. Poderia ser dito, e Deleuze diz: para além do Uno e do Múltiplo, para além da identida-

de e da diferença, para além do tempo e da eternidade. E, sobretudo:

para alémdo verdadeiroe do falso. Mas "para além" não significa, evidentemente. nem uma síntese, nem um terceiro termo transcendente.

"Para além" quer dizer: no meio; o ponto em que, no permutador em rede rizomática da virtualização e da atualização, é o ser que atava a essencial falsidade do verdadeiro e virtualiza a verdade do falso; o ser é o que faz vir a secreta bondade, a infernal bondade do Mal, e o que desdobra o malefício terrível do Bem. E será ainda pobre e inexato dizer que a neutralidade do Ser é não se identificar nem ao mal nem ao bem: nem ao falso nem ao ver-

dadeiro. Esse "nem... nem" não exprime o "e" da metamorfose.Pois o ser é o devir falso do verdadeiro, o devir verdadeiro do falso, e assim ele é neutro por ser verdadeiro e falso. Mas o próprio "e" ainda é muito pobre, ainda é excessivamente categorial. Deleuze, como sabemos, odiava a lógica; a virada da filosofia para

a linguagem e a lógica, no início deste século, era para ele uma grande infelicidade. O poderoso mundo anglo-saxão de Melville e de White-

head, mortificado pela ruminação analítica, era para Deleuze um espetáculo consternador. Desde Aristóteles, a lógica não tem sido senão a cifragem das categorias, o triunfo da propriedade contra a impropriedade. Seria preciso obter da univocidade deleuziana uma outra lógica; uma lógica na qual, em relação às distribuições categoriais, não podemos nos contentar com as conexões usuais. O "e", o "ou... ou", o "nem.- nem":

tudo isso extenua, dilapida a poderosa neutralidadedo ser. Seria preciso pensar uma sobreposição móvel do e, do ou e do nem, para que se pudesse dizer: o ser é neutro, porque toda conjunção é uma disfunção, porque toda negação é uma afirmação. Esse conector de neutralidade, esse "e-ou-nem", Deleuze o nomeou sí'nfesedlsjf /zfiz/a.E é preciso dizer: o ser, como potência neutra, merece o nome de vida porque ele é, enquanto relação, o "e-ounem", a síntese disjuntiva. Ou ainda, igualmente, a análise conjuntiva,

o "ou-e-nem". A vida, com efeito, é especificante e individuante, ela separa e desliga; mas ela também incorpora, virtualiza e junta. A vida é o nome do ser-neutro segundo sua lógica divergente, segundo o "eou-nem". Ela é a neutralidade criadora que se mantém no meio da síntese disjuntiva e da análise conjuntiva. Eis por que é Deleuze quem efetua o mais profundo pensamento

tlc uma idéia fundamental de Nietzsche. Nietzsche sublinha que a vida é produtora dos desvios de valor, ela é potência avaliadora e divergência

aviva. Mas, em si mesma, ela é inavaliável e neutra. O valor da vida, triz Nietzsche, não pode ser avaliado. O que significa igualmente: não h;í vida da vida; pois não é senão do ponto de uma vida que algum cure é avaliável. A univocidade é isto: não há ser do ser. E, se a pala-

vra "vida" convémcomo nome dessaunivocidade,é a partir da evitlência de que não poderia haver vida da vida. Há somente o movimento dela, ele próprio pensável como intervalo dos movimentos da atualização e da virtualização. Por isso a potência do ser, que é o ser mesmo, é neutra, impessoal, indesignável, indiscernível. E é a essas im})ropriedades

reunidas que convém

a palavra

"vida

Faz pouco tempo que foi publicado meu pequenoensaio sobre l)eleuze, mas já começam a me censurar, como um paradoxo insustentável e leviano, por ter dito que a filosofia de Deleuze implicava uma

concepção ascética do pensamento; que ela sc opunha à espontaneidade; que ela exigia uma firme ruptura com as injunções do Eu. Perguntemos então: que pensamento pode, na construção de suas

intuições, estar realmente à altura da neutralidade do ser? Como chegar ao ponto de troca e de desvio dos movimentos, ao ponto impessoal, indesignável, indiscernível? Como dissolver as pretensões fechadas de nosso ser-anualno grande circuito integral do virtual? Deleuze é pelo menos tão consequentequanto Nietzsche. Ora, Nietzsche sabe que é preciso afirmar tudo, que o meio-dia dionisíaco não deixa nenhuma parcela da Terra fora de sua ativação pensante. Para Nietzsche, todas as figuras da força, tão logo captadas no núcleo de potência que re-afirma sua vinda, são integráveis a Dionísio, que nelas se desmembra e nelas se recompõe naquele riso com que os deuses morreram. Nietzsche sabe que a palavra "vida" nomeia a igualdade integral do ser. E Deleuze afirma com ele que o ser é a igualdade mesma. Como poderia a neutralidade não-categorial ser desigual? Nietzsche conclui no entanto pelo aristocratismo no pensamento, pela sobreeminência dos fortes, o que pode parecer paradoxal. Contudo, quem ou o que é forte? Ê forte aquele que afirma integralmente a igual-

dade do ser, fraco aqueleque se mantém desigualmentenessa igualdade, aquele que mutila e abstrai a alegre neutralidade da vida. Mas, assim concebida, a força dc modo nenhum é espontânea, a força é concentração e esforço, despojamentode todas as categorias sob as quais construímos o abrigo opaco de nossa atualidade, de nossa indi-

vidualidade, de nosso eu. "Sobriedade, sobriedade!", é dito em À4i/ PI(zfõs. Sobriedade, porque a opulência espontânea, a derrisória con fiança naquilo que se é, nos categoriza numa região pobre e designada do ser. Sim, ascese, estoicismo, pois para pensar é preciso obter os meios

de ultrapassar nossos limites, de ir até o fim daquilo que podemos. Ascese, porque a vida nos constitui e nos julga "segundo uma hierarquia que considera as coisas e os seres do ponto de vista da potência' Ser digno da vida inorgânica é também não se deter demais na satisfação dos órgãos. O nâmade é aquele que sabe não beber quando tem sede, continuar sob o sol quando desejaria dormir, deitar solitário no

chão desértico quando sonha com abraços e tapetes. O pensamento nâmade se põe de acordo com a neutralidade da vida e com a metamor-

fose através do exercício resistente em que se abandona o que se é. O "torna-te quem és" de Nietzsche deve ser entendido: não és senão o que te tornas. Mas para chegar aí, onde a força impessoal do Fora atava esse devir, cumpre tratar-se a si mesmo como síntese dis-

juntiva, como análise conjuntiva, separar-se e dissolver-se. Os que o fazem são os fortes. Assim se esclarece que a grande saúde se conquiste

na doença, que faz da saúde uma afirmação e uma metamorfose, não um estado e uma satisfação; ou que o herói da fala flexível, aquele por quem fala a vida indiscernível, seja o herói de Beckett, esgotado, cortado em pedaços, cabeça a jorrar lágrimas plantada na serragem de um jarro. E recusariam dizer que o pensamento, o pensamento-vida, é uma ascese?

Há no pensamento de Deleuze, em verdade, uma terrível dor, que

é a condição antidialética da alegria, a diminuição de si para que o ser decline por nossa boca e nossas mãos seu único clamor. O nome do ser é a vida somente para aqueleque não toma a vida como um dom ou um tesouro. ou como uma sobrevivência. mas como um pensamento que retorna ao ponto em que toda categoria entra em pane. Toda vida é nua. Toda vida é desnudamento, abandono das vestes, dos códigos e dos órgãos; não que nos dirijamos ao buraco negro

niilista. Mas, ao contrário, para estarmos no ponto em que se trocam atualização e virtualização; para sermos um criador, isto é, o que Deleuzechama um "autómato purificado", uma superfície cada vez mais porosa à modalização impessoaldo ser. Onde, então, está a dificuldade? Direi que ela está, como em relação a Nietzsche, na teoria do signo, do que-faz-signo. O que faz sig-

no para o impessoal no pessoal, para o virtual no anual, para o nâmade no sedentário, para o eterno retorno no acaso, para a memória na matéria; sinteticamente: o que faz signo para o aberto no fechado. Seria eu fiel a Deleuze se não manifestasse aqui minha reticência, minha resistência? É que estou convencido de que nada faz signo, c de que, ao manter o estigma, mesmo no máximo de sua diminuição, de sua diferencial ínfima, Deleuze ainda concede demais a uma hermenêutica do visível.

Em Nietzsche, é notório que a teoria do signo é circular. Assim

Zaratustra deve se identificar como seu próprio precursor, aquele que

é, nas ruas, o galo cujo canto anuncia sua própria vinda. O que faz signo para o super-homem é o próprio super-homem, ou o super-ho[nem não é senão o signo no homem da vinda do super-homem; entre o acontecimento e seu anúncio, não se pode distinguir. Zaratustra é o signo de Zaratustra. A loucura de Nietzsche é chegar nesse ponto de indiscernibilidadeno qual, para partir em dois a história do mundo, segundo seu anúncio, é preciso romper-se a si mesmo, já que o único signo da "grande política", na qual o mundo se rompe, é essa pobre singularidade que, sob o nome de Nietzsche, vagando solitário e desconhecido pelas ruas de Turim, declara a iminência dela. Mas Deleuze, como Nietzsche, deve simultaneamente marcar nos entes atuais, fechados e disjuntos, sua co-pertença à grande totalidade virtual; e também anular essa marcação, dc tal modo que a neutralidade do ser não se veja distribuída em categorias. E preciso que o fechado contenha o signo para o aberto, produza nele mesmo signo para o aberto. Caso contrário, como explicar que pensamos?Como compreender que sejamos às vezes forçados a abrir nossa atualidade? O signo do aberto, ou da totalidade, é que nenhum fechamento é completo.Como o diz Deleuze, "o conjunto é sempremantido aberto em alguma parte, como por um tênue fio que o liga ao resto do universo". Esse fio, por mais tênue que seja, é um fio de Ariadne. Ele concentra o otimismo ontológico de Deleuze. Por mais disjuntos e fechados que possam ser os entes atuais, um pequeno estigma, neles, guia o pensamento para a vida total que os dispõe. Sem o que não teríamos, já que nada jamais pode absolutamente começar, nenhuma chance de pensar o fechado segundo o aberto, ou a partir de sua virtualidade. Mas é preciso também que não haja signo, que nada por si mesmo faça signo. Pois, caso contrário, o ser não seria mais unívoco. Ha-

veria o sentidodo ser segundo o ser, ou enquanto ser, e o sentido do ser segundo o signo do ser. É por isso que Deleuze, quando fala dos objetos, deve simultaneamente afirmar que eles têm uma parte real e uma parte virtual; mas que essasduas partes são indiscerníveis. De modo que a parte virtual do objeto, que é precisamente sua abertura, o que nele faz signo para a totalidade, não é verdadeiramente um signo, porque não se pode discernir sua função de signo daquilo a propósito do que ela faz signo. Em realidade, o ponto de abertura dos conjuntos fechados é menos ainda que um tênue fio. É um componente ao mesmo tempo preso por inteiro no fechamento, e no entanto inteiramente aberto, sem que o pensamento possa separar esses dois fatores, e portanto sem que jamais possa isolar o signo. Assim como Nietzsche, Deleuze, para manter o postulado de univocidade, que condiciona que o ser tenha por nome a vida, deve afirmar que toda coisa é, num sentido obscuro, como que um signo dela mesma; não dela mesma enquanto ela mesma, mas dela mesma enquanto simulacro provisório, ou modalidade precária, da potência do Todo. Mas se uma coisa é signo dela mesma, e sua dimlensão de signo é

indiscernível de seu ser, é indiferente dizer: tudo é vida, e dizer: tudo é signo

O nome do ser será a Vida, se o pensarmos do lado da unívoca potência do sentido. O nome do ser será Relação, se o pensarmos do lado da equívoca distribuição universal dos signos. Os próprios entes serão inteiramente disjuntos e sem relação, se forem relacionados ao ser como vida inorgânica. Eles serão inteiramen-

te unidos e consonantes, se os relacionarmos ao ser como relação. Creio que assim o equívoco é reinstalado no núcleo mesmo do ser. Talvez a distribuição categorial, expulsa das grandes classificações

macroscópicas, como o sensíve] e o inte]igíve], retorne no microscópico, quando a indiscernibilidade dos componentes do ente o orienta equivocamente, seja para a síntesedisjuntiva da vida, seja para a análise conjuntiva da relação. Pode-se dizer também: Deleuze monta uma aparelhagem fenomenológica imensa, brilhante, ramificada, para poder escrever a equação ontológica: ser = acontecimento.Mas, no ponto mais ínfimo do que esse aparelho captura, descobre-se, precisamente, que aquilo que do ser é seu ser não é jamais acontecimento, de modo que o ser permanece equívoco.

Por isso, instruindo-me junto a esse gênio, penseidever dizer que o múltiplo puro, forma genérica do ser, não acolhe jamais nele mesmo o acontecimentocomo seu componentevirtual; mas que, ao contrário, o acontecimento Ihe advém por uma suplementação rara e incalculável. Foi preciso para isso sacrificar o Todo, sacrificar a vida, sacrificar o grande animal cósmico do qual Deleuze encanta a superfície. A topologia geral do pensamento não é mais então, como ele declarava, 'carnal ou vital". Ela é pega nas redescruzadas da matemática severa, como dizia Lautréamont, e do poema estelar,como teria dito Mallarmé. No fundo, dos dois grandes lançadores de dados do fim do século XIX, Nietzsche e Mallarmé, cada um escolheuo seu. Resta que nos é universalmente comum a grande paixão filosófica do jogo. Sim, é exatamente isso, ele o disse de uma vez por todas: pensar é lançar os dados.

Tradução de Paulo Nunes

A IMANÊNCIA ABSOLUTA ( ;iorgio Agamben

1. A WDA Por uma coincidência singular, o último texto que Michel Foucault e Gilles Deleuze publicaram antes de morrer tem como ponto central, em ambos os casos, o conceito de vida. O significado desta coincidênciatestamentáriaItanto num caso como no outro, trata-se, com efeito, de algo da ordem de um testamentos vai além da solidariedade secreta entre dois amigos. Ele implica a enunciação de um legado que concerne inequivocamente à filosofia que vem" *. Esta, se o quiser acolher, deverá partir daquele conceito de vida em direção ao qual o gesto extremo dos dois filósofos Indicava. ITal é, pelo menos, n hipótese da qual parte a nossa investigação.) O texto de Foucault, publicado na Rez/aede À4éfapbys/q e ef de Mora/e de janeiro-março de 1985 Imãs entregue à revista no mês de abri[ de ] 984, o ú]timo texto a que o autor pede dar o /mPrimafur, mesmo retomando e modificando um escrito de 1978), traz o título La vie: I'expérience et la science" i. Aquilo que caracteriza essas pá-

ginas, concebidas por Foucault como uma homenagem derradeira ao seu mestre Canguilhem, é uma curiosa reviravolta de perspectiva justamenteem relação à ideia de vida. Ê como seFoucault, que em Nascimento da c/z'Mica começara inspirando-se no novo vitalismo de Bichas * As obras de Deleuze encontram-se citadas com as seguintes siglas: D (G. Deleuze e Clair Parnet, Dfa/ogues, Paras, Flammarion, 1977); CC (Criliq

e ef c/f-

nique, Paras, Minuit, 1993); 1V ("L'immanence: une vie-.", Pbí/osopbie, 47, 199Sj; LS ILogique da selas, Paria, 1973 1; S {Spi/zona ef /e proa/ême de /'expression, Pa-

uis,Minuit, 1968); Qpb IQz/'esf-cegzíe/a pbí/osopbíeP,Paria,M.inuit, 1991); F (Foa caz//f,Paris, Minuit, 1986); DP ( "Desiderio e piacere", Fufaro anferíore, 1, 1995). * * Aqui traduzo literalmentea expressão "che viene", que reaparecerá no pre-

sente texto, por ela ser característica do pensamento de Agamben, autor inclusive de

um livro intitulado Lzzcom nífà cbe z/íe/ze IEinaudi, Turim 1990), cujo incipif reza: L'espere che viene ê ]'essere qua]unque"]O

ser que vem é o ser qua]quer](N. do T.).

l Agora está disponível em Michel Foucault, Dias ef écrits, editado por Fran-

çois Ewald e Daniel Denfert, Gallimard, Paria, 1994, pp. 763-77.

e na sua definição de vida como "o conjunto das funções que resistem à morte", terminasse agora vendo nela, antes, o âmbito próprio ao erro. "À la limite", ele escreve,"la vie... c'est ce qui est capable d'erreur... La vie aboutit aves I'homme à un vivant qui ne se trouve jamais tour-à-faia

à sa plane, à un vivant

qui est voué à 'errer'

et à 'se

tromper'"2. Pode-se ver, nestedeslocamento, um testemunho ulterior daquela crise que, segundo Deleuze, Foucault atravessa depois de Vofzfade de saber. Mas o que aqui está em jogo é certamente algo mais do que decepção e pessimismo, algo como uma nova experiência que obriga a reformular as relações entre verdade e sujeito e que, portanto, diz respeito ao âmbito específico da busca de Foucault. Arrancando o sujeito do terreno do Cogllo e da consciência, ela o arraiga no da vida, mas de uma vida que, enquanto essencialmenteerrar, vai além das vivências e da intencionalidade da fenomenologia: "Est-ce que toute

la théorie du sujemne doit pas être reformulée, dês lors que la connaissance, plutõt de s'ouvrir à la vérité du monde, s'enracine dans les :erreurs' de la vie?"3. O que pode ser um conhecimento que não tem mais como correlato a abertura ao mundo e à verdade. mas só a vida e o seu errar? E como pensar um sujeito só a partir do erro? Badiou -- certamente um dos filósofos mais interessantes da geração que segue imediatamente a de Foucault e Deleuze -- também pensa o sujeito a partir do encontro contingente com uma verdade e deixa de lado o vivente como anima/ (&zespécie b mzznachamado a servir de suporte

a esteencontro. Ê evidenteque não se trata, em Foucault, de uma simples correção epistemológica, mas de um outro deslocamento da teoria do conhecimento, desta vez para um terreno absolutamente inexplorado. E é justamenteesteterreno, que coincidecom a aberturados trabalhos acerca da biopolítica, que poderia ter fornecido a Foucault aquele "terceiro eixo, distinto tanto do saber como do poder", de que ele, segundo Deleuze, tinha necessidade naquele momento, e que o texto

sobre Canguilhem define í/z /imunecomo uma outra maneira de abordar a noção de vida. 2. FILOSOFIA OA PON'rUAÇÃO

O texto de Deleuze do qual doravante nos ocuparemos traz o

título: "L'immanence: une vie..." e apareceu na revista Pbi/osopbie dois 2 Jdenz, p. 774. 3 /dela, p. 776.

mesesantes da morte do filósofo. Diferentementedo ensaio de Foucault, é um texto breve, que tem o dKclus corrente de um apontamento sumário. Já o título, apesar da aparência distraída e quase suspensa, [em uma estrutura insólita, que certamente foi meditada com atenção. Os dois conceitos-chavenão estão unidos, com efeito, num sintagma nem ligados pela partícula e Itão característica dos títulos deleuzianosl,

mas cada um deles está seguido por um sinal de pontuação (antes os dois pontos e depois as reticências). A escolha desta articulação absolutamentenão sintática unemhipotática nem paratática, mas, por assim dizer, atátical dos dois termos certamente não é casual. Os elementosde uma filosofia da pontuação, além das breves referências no ensaio de Adornos, inexistem quase completamente. Que

num texto filosófico não só os substantivos possam adquirir dignidade terminológica, mas também os advérbios, já foi observado -- Puder e Lówith notaram a função particular dos advérbios g/efcbmob/ e scbozzrespectivamenteem Kant e em Heidegger. Menos conhecido é o fato de os sinais de pontuação também (por exemplo, o hímenem expressõescomo l?z-der-We/f-Selfz)poderem assumir uma função técnica -- o hímené, aliás, neste sentido, o mais dialético dos sinais de pontuação, porque une só na medida em que distingue e vice-versa. O fato

de que também em Deleuze a pontuação tenha uma importância estratégica foi sugerido por ele mesmo. Em Dlá/ocos, após ter desenvolvido a sua teoria do significado particular da conjunção e, ele acrescenta: "Dommage à cet égard que beaucoup d'écrivains suppriment la ponctuation, qui vaut en français pour autant de ef"). Se nos lembrarmos do caráter destrutivo (o e substitui o é e desarticula a ontologia) e, juntamente, criador lo e "põe a língua nos eixos", introduz nela agenclamenfo e balbucio) que aquela teoria atribui à partícula em questão,isto implica que, no título, tanto a introdução dos dois pontos entre "a imanência" e "uma vida" como as reticências servem uma

intenção precisa. 3. DOIS PONTOS:IMANAÇÃO Nos tratados sobre a pontuação, a função dos dois pontos é, em geral, definida pela interseção de dois parâmetros: um valor de pausa amaisforte que o ponto e vírgula e menor que o ponto) e um valor 4T. W. Adorno, "lnterpunktion",A&zenfe,6, 1956 5D, p. 73.

semântico, que marca a relação indissolúvel entre dois sentidos, cada um dos quais é em si mesmo parcialmente completo. Na série que vai do sinal = (identidade de sentido) ao hímen(a dialética da unidade e da separação), aos dois pontos cabe, assim, uma função intermediária. Deleuze poderia ter escrito: "A iminência é uma vida", ou então, A imanência e uma vida" Ino sentido em que o e substitui o é para criar um agenciamentoj; ou ainda (segundo o princípio, realçado por Masmejan6, segundo o qual a vírgula pode utilmente substituir os dois pontos): "A imanência, uma vida". Se, em vez disso, usou os dois pontos, é porque evidentemente não mirava nem a uma simples identidade nem somente a uma conexão lógica. (Quando, no texto, Deleuze escreve"dir-se-á da pura imanênciaque ela é ama vida, e nada mais", basta lembrar dos dois pontos do título para excluir que ele entenda aqui uma identidade.) Entre a imanência e uma vida, os dois pontos introduzem algo menos que uma identidade e algo mais que um age/zcíamenfo, ou melhor, um age/zciczme/zfo de espécie particular, algo como um agendamento absoluto, que inclui também a "não-relação", ou a relação que deriva da não-relação, de que ele fala no ensaio sobre Foucault, a propósito da relação com o Fora. Se se retomar a metáfora de Adorno -- os dois pontos como o sinal verde no trânsito da linguagem que se reencontra,nos tratados sobre a pontuação, na classificação dos dois pontos entre os sinais "que abrem", entre a imanência e uma vida há então uma espécie de passagem sem distância nem identificação, algo como uma passagem sem mudança espacial. Neste sentido, os dois pontos representam o deslocamentoda imanência em si mesma, a abertura a um outro que, porém, permanece absolutamente imanente. Isto é, aquele movimento que Deleuze, jogando com a emanação neoplatânica, chama de emanação. 4. TRÊS PONTOS: VIRTUALIDADE

Considerações análogas podem-se fazer para as reticências que fecham (e, juntamente, deixam aberto) o título; em nenhum outro como

neste caso, aliás, o valor do termo técnico atribuído a um sinal de pontuação é tão evidente. Deleuze já notara, a propósito de Céline, o

poder de deposição de toda ligação sintática que cabe às reticências: " Gufgno/'s Band trouve le but ultime, phrases exclamatives et mises en suspension qui déposent toute syntaxe au profit d'une Fure dance 6 J. H. Masmejan, Traffé de /a poncrKalíon, Paria, J.-F. Bastien, 1781

tios mots"7. Que na pontuação esteja presente um elemento a-sintéti-

co e, mais em geral, a-semântico, está implícito na conexão constante com o respiro que aparece desde os primeiros tratados e que age necessariamente como uma interrupção do sentido ("o ponto médio", lê-sena Gramática de Dionísio Trácio, "indica onde se deve respirar"). Mas aqui as reticênciasnão servem tanto para suspendero sentido e fazer as palavras dançarem fora de toda hierarquia sintática quanto l)ara transformar o próprio estatuto da palavra, do qual se tornam inseparáveis. Se, como disse uma vez Deleuze, a terminologia é a poesia da filosofia, aqui o título de fermlnz/s[ecbnicus não cabe ao conceito "vida", nem ao sintagma "uma vida", mas unicamente ao nãosintagma "uma vida...". A incompletude -- que, segundo a tradição, caracteriza as reticências -- não remete aqui a um sentido ulterior omi-

tido ou que falta (Claudel: "um ponto é tudo; três pontos não são judo"l, mas a uma indefinição de espécie particular, que leva até o extremo o significado infinitivo do artigo n/ze. "L'indéfini comme tel", escreveDeleuze "ne marque pas une indétermination empirique, mais umedétermination d'immanence ou une détermination transcendentale.

L'article indéfini n'est pas I'indétermination de la personne sans être la détermination du singulier"8 O termo técnico zunez/ie... exprime essa determinabilidade transcendental da imanência como vida singular, sua natureza absolutamente

virtual e o seu definir-se somente através desta virtualidade ("Une vie ne contient que des virtuels. Elle estfaite de virtualités, événements, singu-

larités. Ce qu'on appellevirtuel n'est pas quelque chore qui manque de réalité..."l9. Os pontos, suspendendo todo nexo sintático, mantêm, todavia, o termo em relação com a sua pura determinabilidade e, ao mesmo tempo, arrastando-o para estecampo virtual, excluem que o artigo " um

possa transcender jcomo no neoplatonismo) o ser que o segue. 5. PARA ALÉM DO COGITO O título L'immazzence: une z,ie..., considerado como um bloco asintagmático e, no entanto, indivisível, é algo como um diagrama que condensa em si o pensamento derradeiro de Deleuze. Já a um simples

olhar, ele propõe o caráter fundamental da imanência deleuziana, isto 7 CC, P. 141

8 .IV, P. 6. ' Idem, ibid.

é, o seu "não remeter a um objeto" e o seu "não pertencer a um sujeito", em outras palavras, o seu ser imanente só a si mesmo e, todavia, em movimento. E neste sentido que a imanência é evocada, no início do texto, com o nome de "campo transcendental" . Transcendental opõe-

se aqui a transcendente, porque não implica uma consciência, mas se define como aquilo que "escapa a qualquer transcendênciatanto do sujeito quanto do objeto" 10. A gêneseda noção de campo transcendental está em LS, em referência ao ensaio de Sartre de 1 937 Á franscemdê/zela do Ego. Neste texto (que Deleuze julga "decisivo")

Sartre fala de

"um campo transcendental impessoal, não tendo a forma de uma consciência sintética ou de uma identidade subjetiva"]]. Forçando este con-

ceito, que Sartre não consegue liberar de todo do plano da consciência, trata-se, para Deleuze, de alcançar uma zona pré-individual e absolutamente impessoal, além lou aquéml de toda idéia de consciência. Não se entende o conceito deleuziano de campo transcendental, nem o -- a ele estreitamente relacionado -- de singularidade, se não se medir o passo sem retorno que eles dão para além da tradição sineidética ou

consciencial da filosofia moderna. Não só é impossível, segundo Deleuze, entender o transcendental como faz Kant, "na forma pessoal de um Eu", mas tampouco é possível daqui o alvo polêmico é a fenomenologia husserliana) "lui conserver la forme d'une consciente. même si I'on déficit cette consciente impersonnellc par des intentionnalités et

rétentions pures qui supposent encore des centres d'individuation. Le tort de toutes les déterminations du transcendental comme conscience. c'est de concevoir le transcendental à I'image et à la ressemblance de ce

qu'il est censéfonder" 12.O Cogifo, de Descartes a Husserl, tornara possível tratar o transcendental como um campo de consciência. Mas, se, em Kant, ele se apresenta como que uma consciência pura sem experiência alguma, com Deleuze, ao contrário, o transcendental separa-se nitidamente de toda idéia de consciência para se apresentar como uma experiência sem consciência nem sujeito: um empirismo transcendental,

como ele diz com uma fórmula propositalmente paradoxal. Liquidando deste modo os valores da consciência, Deleuze prossegue o gesto de um filósofo por elepouco amado, mas -- ao menos nisto -- certamenio idem, p. 4.

ii l,S, P. 132. i2 l,S, P. 143.

te dele mais próximo do que qualquer outro representante da fenomenologiadeste século: Heidegger, o Heidegger patafísico do genial artigo sobre Jarry, com o qual, através desta incomparável caricatura ul)ucsca, ele pode, enfim, reconciliar-se13.Visto que o nasci/z, com seu 1//-der-We/f-sem,não é decerto para ser entendido como a relação intlissolúvel entre um sujeito -- uma consciência -- e seu mundo, assim

co=o sua a/etbela, em cujo coração reinam obscuridade e /efbe,é o contrário de um objeto intencional ou de um mundo de idéias puras, um abismo separa tais conceitos da intencionalidade husserliana de onde

l)rovêm e, deportando-os ao longo da linha que vai de Nietzsche a Delcuze, faz dele as primeiras figu ras do novo campo transcendental pósconsciencial e pós-subletivo, impessoal e não-individual, que o pensa-

Enentode Deleuze deixa de herança ao "seu" século.

6. 0 PRINCÍPIO DE iMANÊNCiA Uma genealogia da idéia de imanência em Deleuze deve partir dos

capítulos 111e XI da grande monografia sobre Espinosa. Aqui, a ideia de imanência deriva da afirmação espinosana da univocidade do ser contra a teseescolástica da a/za/agiae/zffs,segundo a qual o ser não se diz do mesmo modo de Deus e das criaturas finitas. "Chez Spinoza, au contraire", escreve Deleuze, "l'Être univoque est parfaitement déterminé

dans son concept comme ce qui se dit en un seul et même sons de la substance qui est en soi, et des modes qui sont en autre chose... C'est donc I'idée de cause immanente qui, chez Spinoza, prend le relais de I'univocité, libérant celle-ci de I'indifférence et de la neutralité oü la maintenait la théorie d'une création divine. Et c'est dans í'immanence que I'univocité trouvera sa formule proprement spinoziste: Dieu est dit ca use de toute chose az{ se/zs mime (eo senso) oü il est dit cause de soi" i4. i3 A história das relações entre Heidegger e Deleuze -- inclusive via Blanchot,

intermediário de muito heideggerismo inconsciente na filosofia francesa contemporânea -- está por fazer. É certo, entretanto, que o Heidegger de Deleuze é outra coisa em relação ao de Lévinas e Derrida.

i4S, p. 58. [Em Espinosa, ao contrário, o Ser unívoco é perfeitamentedeter

minado em seu conceito como o que se diz em um único e mesmo sentido da substância em-sie dos modos, que são outra coisa... É portanto a ideia decausa imanente que, em Espinosa, torna-se o relê da univocidade, liderando-a da indiferença e da neutralidade em que a teoria da criação divina a mantinha. E na imanência que a univocidade encontrará sua fórmula plenamente espinosana: Deus é a causa de todas

as coisas, e 2 se sentido (eo sensz{),no qua] é dito ser causa de si.] (N. do E.)

O princípio de imanência aqui não é, assim, outra coisa senão uma generalização da antologia da univocidade, que exclui toda transcendência do ser. Mas, através da idéia espinosana de uma causa imanente, em que o agente é para si mesmo o seu próprio paciente, o ser liberta-se do risco de inércia e de imobilidade que a absolutização da univocidade, tornando-o em todo ponto igual a si mesmo, deixava pesar sobre ele. A causa imanente produz permanecendo em si mesma, exatamente como a causa emanativa dos neoplatânicos: todavia, diferentementedesta, os efeitos que produz não saem dela. Com uma aguda figura etimológica, que desloca a origem do termo imanência de manere a manare (escorrer, jorrar, derivará, Deleuze devolveu à ima-

nência mobilidade e vida: "Uma causa é imanente... quando o próprio efeito é 'imanado' na causa em.vez de emanar dela"15. A imanência flui, traz, por assim dizer, já sempre consigo os dois pontos; mas este jorrar não sai de si, e sim desagua incessante e vertiginosamente em si mesmo. Por isso Deleuze pode escrever aqui -- com uma expressão que mostra já uma plena consciência da importância que o conceito de imanência terá no seu pensamento: "a imanência é precisamente a vertigem filosófica"iÓ. QPó dá, por assim dizer, a teoria dessavertigem. O conceito de "imanação" foi levado às últimas consequências na idéia de que o plano

da imanência -- assim como o campo transcendental, de que a figura completa não tem sujeito -- não é imanente a algo, mas somente a si mesmo: "L'immanence ne I'est qu'à soi même, et dês lors prend tout, absorbe Tour-Un, et ne laisse rien subsister à quoi elle pourrait être immanente. En tout cas, chaque bois qu'on interprete I'immanence comme immanence à Quelque chose, on peut être sür que ce Quelque chore réintroduit le transcendant"17. O risco aqui é que o plano de imanência, que esgotaem si o ser e o pensamento,seja, ao invés disso, referido a "algo que seria como um dativo"18. O exemplo 111do capítulo 2 apresenta toda a história da filosofia, de Platão a Husserl, como a história desserisco. A absolutizaçãodo princípio de imanência ("a imanência só é a si mesma") serve estrategicamente a Deleuze i5 rdenz, p. 156. i6 Idenz, p. 164.

i7 Qpb, p. 47. 18 Idem.

ibid.

para recortar no interior da história da filosofia a linha da imanência jque culmina em Espinosa, definido, por isso, o príncipe dos filósofosl e, em particular, para precisar a própria situação em relação à tradição da fenomenologia do século XX. A partir de Husserl, com efeito, a imanência, tornada imanentea uma subjetividadetranscendental, faz surgir no seu próprio interior o sinal da transcendência: "C'est ce qui se passe avec Husserl et avec beaucoup de ses successeurs, qui découvrent dans I'Autre, ou dans la Chair, le travail de taupe du transcendant dans í'immanence elle-même... Dans ce moment moderne, on ne se contente plus de penderI'immanence à un transcendant, on z/eut pensei la transcendance à I'intérieur de I'immanent, et c'est de I'immanence q 'on affend ne rzíPfare... La parole judéo-chrétienne remplace le logos grec: on ne se contente plus d'attribuer I'immanence, on

lui fait partout dégorger letranscendant" 19. (A alusão a Merleau-Ponty e a Lévinas -- dois filósofos que Deleuze considera inclusive com extremo interesse -- é evidente.)

Mas a imanência não está ameaçada somente por essa ilusão da transcendência, que gostaria de obriga-la a sair de si e a vomitar o trans-

cendente;ou, antes, essa ilusão é algo como uma ilusão necessária no sentido de Kant, que a própria imanência gera do seu interior e na qual

todo filósofo cai quanto mais procura aderir intimamente ao plano de imanência. A exigência irrenunciável do pensamento é também a tarefa mais difícil, em que o filósofo a cada instante corre o risco de perder-se. Sendo o "movimento do infinito"20, para além do qual não há nada, a imanência é desprovida de qualquer ponto fixo e de todo ho rizonte que poderiam permitir a orientação: "o movimento capturou tudo" e o único oriente possível é a vertigemem que dentro e fora, imanência e transcendência incessantementese confundem. Que Deleuze se choque aqui contra algo como um ponto-limite está testemunhado pela passagem em que o plano de imanência se apresenta juni9 Idem, pp. 48-9. [É o que ocorre em Husserl e em muitos de seus sucessores,

que descobremno Outro, ou na Carne, o trabalho de toupeira do transcendente na própria imanência-. Nesse momento moderno, não há mais contentamento em pensar a imanência em relação a um transcendente, deseja-se pensar a transcendência no interior do imanente e é da imanência que se espera uma ruptura... A palavra judaico-cristã substitui o logos grego: não há contentamentoem Ihe atribuir iminência; faz-se com que ela vomite o transcendente por toda parte.] {N. do E.) ZOIdenr, p. 40.

temente com aquilo que deve ser pensado e com aquilo que não pode ser pensado: "Peut-être est-ce le geste suprême de la philosophie: non

pas tant penser /e plan d'immanence, mais montrer qu'il est là, non pensé dans chaque plan. Le penser de cette maniêre-là, comme le dehors

et le dedans de la pensée, le dehors non extérieur ou le dedans non intérieur

'' ' '

7. UMA VIDA A indicação contida no "testamento" de Deleuze adquire, nesta perspectiva, uma urgência particular. O gesto supremo do filósofo é entregar a iminência ao diagrama "L'immancnce: une vie...", isto é, pensar a imanência

como "uma vida...".

Mas o que significa

que a

imanência absoluta agora se apresenta como vida? E em que sentido o diagrama exprime o pensamento extremo de Deleuze? Ele começa precisando o que podíamos já esperar, isto é, que dizer

que a iminência é "uma vida..." não significa de modo algum atribuir

a iminênciaà vida comoa um sujeito.Ao contrário,"uma vida...: designa precisamente o ser imanente a si mesmo da imanência, a vertigem filosófica que já nos é familiar: "On dirá de la pure immanence qu'elle est l//zeu/e, et rien d'autre. Elle n'est pas immanence à la vie, mais I'immanence qui n'est en rien est elle-mêmeune vie. Une vie est I'immanence de I'immanence, I'immanence absolue"22. Neste ponto, Deleuze esboça um escorço genealógico sucinto através de uma remis-

são a uma passagem de Fichte e a Maine de Biran. Logo em seguida, como se se apercebesseda insuficiência das indicações fornecidas e temesseque o seu último conceito ficasse obscuro, ele recorre a um exemplo literário: "Nul mieux que Dickens n'a raconté ce qu'est u/ze vie, en tenant compte de I'article indéfini comme índice du transcendental. Une canaille, un mauvais sujemmépriséde tons est ramené mourant, et voilà que ceux qui le soignent manifestent une sorte d'empressement, de respect, d'amour pour le moindre signe de vie du mori-

zi Idem, p. 59. [Talvez este seja o gesto supremo da filosofia: não tanto pensar

o plano de imanência, mas mostrar que ele está lá, não pensado, em cada plano.

Pensa-lodessamaneira, como o fora e o dentro do pensamento,o fora não exterior ou o dentro não interior.] {N. do E.l 2z IV, p. 4.[Dir-se-á que a pura imanência é uma vida, e nada mais. Ela não é imanência à vida, mas imanência que em nada é uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta.] (N. do E.)

l)ond. Tout le monde s'affaire à le sauver, au point qu'au pausprofond tlc son coma le vilain homme sent lui-même quelque chose de doux le l)énétrer. Mais à mesure qu'il revient à la vie, ses sauvers se font plus froids, et il retrouvetoute sa grossiêreté,sa méchanceté.Entre sa vie Lt sa more, il y a un moment qui n'est plus que celui d'une z/lejouant llvcc sa mort. La vie de I'individu a fait place à une vie impersonelle, ct pourtant singuliêre, qui dégage un pur événement libéré des accidents

tlc la vie intérieure et extérieure, c'est-à-dirá de la subjectivité et de I'objectivité de ce qui arrive. Homo fa?zfumauquel tour le monde coml)atit et qui atteint à une sorte de béatitude"23 A referência é aqui ao episódio do quase afogamento de Riderhood em Our m f a/Ériend. Basta folhear essas páginas dickensianas para se aperceberdo que pode ter atraído com tanta força a atenção clcDeleuze. Antes de tudo, Dickens distingue o indivíduo Riderhood c a "centelha de vida dentro dele", que parece curiosamente separável do canalha em que mora: "No one has the least regard for the man:

with them all, he has been an object of avoidance, suspicion and aversion; but the spark of lidewithin him is curiously separable from himself now, and they have a deep interest in it, probably because it is /láe, and

they are living and must die"24. O lugar dessavida separávelnão está nem neste mundo nem no outro, mas entre os dois, numa espécie de feliz intermundo que ela parece abandonar só a contragosto. "See! A roken of lide!An indubitable token of lide! The spark may smoulder and go out, or it may glow and expand, but see!The tour rough fellows seeing,shed tears. Neither Riderhood in this world, nor Riderhood in rhe other, could draw tears from them; but a striving human soul bet23Idem, p. 5. INinguém melhor do que Dickens falou o que é umczvida,

assinalando o artigo indefinido como indício do transcendental. Um canalha, um sujeito ruim, desprezado por todos, é levado moribundo, e de repente aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de zelo, de respeito, de amor pelo menor si nal de vida do moribundo. Todos se empenham em salva-lo; no coma mais pro fundo, o malvado sente algo terno invadindo-o. Mas à medida que ele volta à vida seus salvadores setornam frios, e ele recupera toda sua grosseria e maldade. Entre

a vida e a morte há um momento em que não é mais o de zínzavida que brinca com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, portanto sin guiar, que resgata um acontecimento puro, liberto dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. Homo f.znfz/m, do qual todos se compadecem, que atinge uma espécie de beatitude.] IN. do E.l

24Charles Dickens, Ozlr m f a/ Arie/zd,Oxford, 1989, p. 443.

u,eenthe two can do it easily. He is strugglingto come back. Now he is almost here, now he is far away again. Now he is struggling harder to get back. And yet -- like us all, when we swoon -- like us all, every day of our life when we wake -- he is instinctively unwilling to be restored to the consciousness of the existence, and would be left dormant, if he could"ZS. Aquilo que torna tão interessante a "centelha de vida" é justamente esse estado de suspensão inatribuível para o qual Dickens sc serve

de maneira significativa do termo zzbeycznce, que provém do léxico jurídico e que indica o estar em suspenso de normas ou direitos entre a vigência e a abrogação ("the spark it got life was deeply interesting while it was in abeyance, but now that it got establishcd in Mr. Rider-

hood, there appears to be a general desire that circumstances had admitted of its beeingdeveloped in anybody else, rather than the gentleman"26). Por isso Deleuze pode falar em uma "vida impessoal", situada num limiar para além do bem e do mal, "porque apenas o sujeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má"z/. E é sob o signo desta vida impessoalque a referênciafugaz a Maine de Biran setorna plenamenteinteligível.Toda a obra de Maine de Biran, pelo menos a partir de À4emóriczsobre a decomposição do pezzsamenfo,

é percorrida pela tentativa infatigável de alcançar, aquém do eu e da vontade e em estreito diálogo com as pesquisas da fisiologia do seu tempo, um "modo de existência, por assim dizer, impessoal"28, que ele chama de afectibilidade e define como uma simples capacidade orgânica de afecção sem personalidade que, como a estátua de Condillac, se torna todas as modificaçõese que constitui, todavia, "uma maneira de existir positiva e completa em seu gênero"zv. Nem mesmo a exemplificação de Dickens parece, no entanto, satisfazer Deleuze. O fato é que a vida nua e crua que ela nos apresenta parece emergir à luz só no momento de sua luta com a morte j"não se deveria conter uma vida no simples momento em que a vida 25Idem, pp. 444-5. zó Idem, pp. 446-7.

27IV, P. 5. zs Maine de Biran, Àfémofre sar /a décomposifionde /a pefzsée,in(Ewz/res,

tomo 111,Paria,J. Vrin, 1988,p. 389. zp idem, p. 370.

individual confronta a universal morte"30). Mas o exemplo sucessivo cinedeveria exibir a vida impessoal enquanto co-existe com a do indivíduo, sem se confundir com ela, também se refere a um caso especial, situado, desta vez, em proximidade não da morte, mas do nascitnento: " [...] ]es tour-petits enfants se ressemb]ent tous et n'ont guêre tl'individualité; mais ils ont des singularités, un sourire, un geste, une Hrimace, événements qui ne sont pas des caracteres subjectifs. Les tout})ctits enfants sont traversés d'une vie immanente qui est pure puissance, ct même béatitude à travers les souffrances et les faiblesses"31 Dir-se-ia que a difícil tentativa de esclarecer através de " uma vida"

a vertigemda iminência nos conduza, ao Invés disso, a uma zona ainda mais incerta, em que o recém-nascido e o moribundo nos apresentam o sinal enigmático da vida biológica nua e crua como tal. 8. 0 ANIMAL DE DENTRO

Na história da filosofia ocidental, a identificação da vida nua e crua tem uma hora tópica. Ê o momento em que, no De anima, Aristótelesisola, dentreos vários modos em que o termo "viver" se diz, o mais geral e separável. "É através do viver que o animal se distingue do inanimado. Viver diz-se, porém, em vários modos e, mesmo que subsista um só destes, diremos que algo vive: o pensamento, a sensação, o movimento e o repouso segundo o lugar, o movimento segundo a nutrição, a destruição e o crescimento. Por isso todas as formas de vegetais também parecem viver. É evidente, com efeito, que eles têm

cm si um princípio e uma potênciatais que, através destes,crescem e se destroem em direções opostas [...]. Este princípio pode ser separado dos outros, mas os outros não podemsê-lo nos mortais. Isto é evidente nas plantas: nelas não há outra potência da alma. É então através deste princípio que o viver pertence aos viventes [..:]. Chamamos de potência nutritiva ([brepfféon) esta parte da alma de que os vegetais participam" j413a, 20 ss.). É importante observar que Aristóteles não define de modo algum 30 rl/

.

(

si Idem, p. 6. [...todas as criancinhas pequenas se parecem, pois quase não têm individualidade; entretanto elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são caracteres subjetivos. As criancinhas são perpassadas por uma vida imanente que é pura potência, e até beatitude, nas dores e fraquezas.] (N. do E.)

o que é a vida: ele limita-se a decompâ-la graças ao isolamento da função nutritiva, para, em seguida, rearticulá-la numa série de faculdades distintas e correlatas (nutrição, sensação, pensamentos. Vemos aqui

operando aquele princípio do fundamento que constitui o dispositivo por excelênciado pensamentode Aristóteles. Ele consisteem reformular toda pergunta sobre o "o que é?" como uma pergunta sobre "através do que (dlà [z0 algo pertence a algo?". O dlà fí, o "por quê?", lê-se em

Metafísica 1041a, l l, "deve-seprocurar deste modo: através do que algo pertencea algo?". Perguntar "por quê" um certo ser é dito vivente significa procurar o fundamento através do qual o viver pertence a este ser. É preciso, em outros termos, que entre os vários modos em que se diz viver um se separe dos outros e vá a fundo, para tornar-

se o princípio através do qual a vida pode ser atribuída a um certo ser. Este fundo indiferenciado, cuja pressuposição permite dizer dos viventes

particulares que eles vivem, é a vida nutritiva lou vegetativa, como será chamada já a partir dos comentadores antigos, com base no estatuto particular, obscuro e absolutamenteseparado do /aros, que as plantas têm constantemente no pensamento de Aristóteles). Na história da ciência ocidental, o isolamento desta vida nua e crua constitui um evento fundamental em todos os sentidos. Quando Bichat, nas suas célebres Imz/esfigações /!s/o/ógfcassobre a z/idae a morte, distingue da "vida animal", definida pela relação com um mundo exterior, uma "vida orgânica", que não é outra coisa senão uma "sucessão habitual de assimilação e excreção", é ainda a vida nutritiva de Aristótelesque traça o fundo obscuro sobre o qual se separa a vida dos animais superiores e o "animal vivente do lado de fora" pode opor-se ao "animal existente do lado de dentro". E quando, como mostrou Foucault, o Estado, a partir do século XVlll, começa a incluir entre suas tarefas essenciais o cuidado da vida da população, e a política se transforma, assim, em biopolítica, é antes de tudo através da progressiva generalização e redefinição do conceito de vida vegetativa ou orgânica (que coincide agora com o património biológico da nação) que ele realizará a sua nova vocação. E ainda hoje, nas discussões sobre

a definição ex /ege dos novos critérios de morte, é uma identificação ulterior desta vida nua e crua -- desligada de toda atividade Cerebral e de todo sujeito -- a decidir se um certo corpo pode ser considerado vivo ou se deve ser abandonado à extrema peripécia do transplante. Mas o que separa então essa pura vida vegetativa da "centelha de vida" em Riderhood e da "vida impessoal" de que fala Deleuze?

9. A VIDA INATRIBUÍVEI L)eslocando a imanência para a esfera da vida, Deleuze está ciente

tlc'estar penetrando num terreno perigoso. A vida de Riderhood molil)findo ou a do recém-nascido parecem, de fato, confinar com a /.ona obscura em que moram a vida nutritiva de Aristóteles e o "animal tlc dcntro" de Bichat. Como Foucault, Deleuze apercebe-se perfeitaiilcnte de que o pensamento que toma como objeto a vida compartilha desteobjeto com o poder e deve confrontar-se com suas estratégias. A cliagnosefoucaultiana sobre a transformação do poder em biopoder hão deixa dúvidas a propósito: "Centre ce pouvoir encore nouveau il u XIXe siêcle", conclui em Vonfczdede saber, "les forces qui résistent t)nt prós appui sur cela même qu'il investit -- c'est-à-dure sur la vie et

sur I'homme en tant qu'il est vivant ]...] la vie comme objet politique n été en quelque sorte prise au mot et retournée contre le systême qui cntreprenait de la contrâler"32. E Deleuze: "A vida torna-se resistência ao poder quando o poder assume como objeto a vida. Neste caso rnmbém as duas operações pertencem a um mesmo horizonte"33. No conceito de resistência será preciso entender aqui, mais do que uma me ráfora política, algo como um eco da definição de Bichat, segundo o qual

;l vida é "o conjunto das funções que resistemà morte". É lícito, todavia, perguntar-se se este conceito é realmente suficiente para vir a cabo

tla ambivalência do conflito biopolítico em curso, no qual a liberdade e a felicidade dos homens se jogam no mesmo terreno -- a vida nua e crua

que marca a submissão dos mesmos ao poder. Se uma clara definição do conceito de "vida" parece faltar tanto cm Foucault como em Deleuze, muito mais urgente será então captar a articulação que dele dá o "testamento". É decisivo aqui o fato de sua função se revelar exatamente contrária à que a vida nutritiva desempenhava no dispositivo aristotélico. Ao passo que esteagia como o princípio que permitia atribuir a vida a um sujeito ("é através deste princípio que o viver pertence aos viventes"l, "uma vida...", enquan-

to figura da imanênciaabsoluta,é aquilo que não pode em caso al32M. Foucault,La z/o/onfé desaz/olr,Paria,Gallimard,1976,pp. 190-1.

IContra essepoder ainda novo no séculoXIX, as forças que resistemapoiaram-se

exatamente naquilo que o investiu isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo 1...1a vida como objeto político fera de alguma maneira tomada ao pé da letra e

voltada contra o sistemaque pretendiacontro]á-]a.] IN. do E.l 33 F, p. 98

gum ser atribuído a um sujeito, matriz de de-subjetivação infinita. Em outras palavras, o princípio de imanência funciona em Deleuze como um princípio antitético à tesearistotélica sobre o fundamento. E mais: enquanto a prestação específica do isolamento da vida nua e crua era operar uma divisão do vivente, que permitia distinguir nele uma pluralidade de funções e articular uma série de oposições (vida vegetativa/vida de relação; animal exterior/animal interior; planta/homem e, eventualmente, zoe/pios, vida nua e crua e vida politicamente qualificada), "uma vida..." marca a impossibilidade radical de traçar hierar quias e separações. O plano de imanência funciona, em outros termos, como um princípio de indeterminaçãovirtual, em que o vegetale o animal, o dentro e o fora e, até mesmo, o orgânico e o inorgânico se neutralizam e transitam de um para o outro: " U/zevie est partout, dana touts les momento que traverse tel ou tel sujet vivant et que mesurent

reis objets vécus: vie immanente emporrant les événementsou les singularités qui ne font que s'actualiser dans les sujets et les objets. Cette vie indéfinie n'a pas elle-même de moments, si proches soient-ils les uns des autres, mais seulementdes entre-temps,des entre-momento. Elle ne survient ni ne succêde, mais présente I'immensité du temps vede

oü I'on voit I'événementencore à venir et déjà arrivé, dans I'absolu d'une conscience immédiate"34. No final de QPb, numa passagem que é um dos vértices da última filosofia de Deleuze, a vida como imediateza absoluta era definida como "pura contemplação sem conhecimento". Deleuze distinguia então dois modos possíveis de entender o vitalismo, o primeiro como ato sem essência e o segundo como potência sem ação: "Le vitalisme a toujours eu deux interprétations possibles: celle d'une Idée qui agit,

mais qui n'est pas, qui agit donc uniquementdu point de vue d'une connaissance cérébrale extérieure (de Kant à Claude Bernard); ou celle

d'une force qui est, mais qui n'ágil pas, donc qui est un pur Sentir interne lde Leibniz à Ruyer). Si la secondeinterprétation nous semble 34IV, p. 5. [Uma vida está em todos os lugares, em todos os momentos que passam por esse ou aquele sujeito vivo, e que medem tais objetos vividos: vida imanente que traz os acontecimentos ou as singularidades que tão-somente se atua-

lizam nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem propriamente momentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-movimentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio em que se vê o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absolu

to de uma consciênciaimediata.] (N. do E.)

s'impuser, c'est parce que la contraction qui conserve est toujours en décroché par rapport à I'action ou même au mouvement, et se présente comme une pure contemplation sans connaissance"35. Os dois exemplos que Deleuze dá dessa "contemplação sem conhecimento", força que conserva, mas não age, são a sensação ("a sensação é contemplação pura")

e o hábito

("mesmo

quando

se é um rato,

é por contem-

plação que se 'contrai' um hábito"3Ó). O importante é que esta contemplação sem conhecimento, que lembra, por um lado, a concepção grega da teoria como não conhecer, mas tocar (fbijggei/z),serveaqui, ao contrário, a definir a vida. Como imanênciaabsoluta, zunez/ie...é pura contemplação aquém de todo sujeito e de todo objeto do conhecimento, pura potência que conserva sem agir. Tendo chegado ao limite deste novo conceito de vida contemplativa -- ou, antes, de contemplação vivente -- não podemos então deixar sem indagação o outro

caráter que, no último texto, define a vida. Em que sentido Deleuze pode afirmar que "uma vida..." é "potência, beatitude completas"37? Para responder a esta pergunta antes deveremos, todavia, aprofundar ulteriormente a "vertigem" da imanência. 10. PASEARSE Nas obras de Espinosa que foram conservadas,há uma única passagem em que ele se serve da língua materna dos judeus sefarditas, o ladino. É uma passagem do Compend/z/m grammafíces /fnguae bebraeae38,em que o filósofo está explicando o significado do verbo reflexivo ativo como expressão de uma causa imanente, isto é, de uma ação em que agentee paciente são uma única e mesma pessoa. Para esclarecer o significado desta forma verbal (que em hebraico se forma

acrescentandoum prefixo não à forma normal, mas à intensiva,que 35QPb, p. 201. [0 vita]ismo sempreteve duas interpretaçõespossíveis: a de uma Idéia que age, mas que não é, que age, portanto, somente do ponto de vista de um conhecimento cerebral exterior Ide Kant a Claude Bernarda; ou de uma

força que é, mas não age, que é portanto um puro Sentir interno (de Leibniz a

Ruyer). Se a segundainterpretaçãoparecese impor é porque a conotação que conserva sempre é desligadaem relação à ação ou ao próprio movimento, e se apresentacomo pura contemplação,sem conhecimento.](N. do E.) 3' Idem, ibid. 37IV, P. 4 38Espinosa, Opera, Heidelberg, Gebhardt, 1925, vol. 111,p. 361

já tem de per sí um significado transitivo), o primeiro equivalente latino que Espinosa dá, se z/lsifaf-e, é manifestamenteinsuficiente;mas ele logo o especifica, assim, com a singular expressão se ufslfanfem coasüfuere, "constituir a si visitante". Seguemoutros dois exemplos, cujos equivalentes latinos (se síslere, se zmb Jarioni darei pare(lem a Espinosa tão insatisfatórios que ele é obrigado a recorrer à língua materna de sua gente. "Passear" diz-se em ladino listo é, no espanhol arcaico que os sefarditas falavam no momento de sua expulsão da dir-se-ia, Espanha)

pascal'se

("passear

a si"; no esp'nhol

moderno

antes, paseczrou dczrl ?zpasmo).Como equivalente de uma causa imanente, isto é, de uma ação referida ao mesmo agente, o termo ladino é

rticularmentefeliz. Ele apresenta,com.efeito, uma ação em que

agente e paciente entraram num limiar de absoluta indistinção: o pas' seio como "passear

a si

No capítulo Xll, Espinosa expõe o mesmo problema a propósito do significado da forma correspondente do nome infinitivo (o infi-

nitivo em hebraico declina-se como um nome): "Porque frequentemente

acontece", escreve ele, "que o agente e o paciente sejam uma mesma e idêntica pessoa, foi necessário para os judeus formar uma nova e sétima especie de infinitivo, com a qual eles exprimissem a ação referida

juntamente ao agente e ao paciente, isto é, que tivesse Juntamente a forma do ativo e do passivo [...]. Foi necessário então Inventar uma outra espéciede infinitvio, que exprimisse a ação referida ao agentecomo causa imanente [...], a qual, como dissemos, significa 'visitar a si mesmo', ou seja, 'constituir a si visitante' e, enfim, 'mostmr a si -lisi[antc' (constitaere se t.'isitantem, ueldebique praebere se uisitantem\" "

A causa imanente, em outros termos, chama em questão uma constelação semântica que o filósofo-gramático procura alcançar,.não sem dificuldade, através de uma pluralidade de exemplos ("constituir a si visitante", "mostrar a si visitante", pasearse) e cuja.importância para a compreensãodo problema da imanência não é de se subestimar. O pasearse é uma ação em que não somente é impossível distinguir o agente do paciente (quem passeia o quê?) -- e na qual, portan' to, as categorias gramaticais de ativo e passivo, sujeito e objeto, transitivo e intransitivo perdem seu significado --, mas uma ação em que também meio e fim, potência e ato, faculdade e exercício entram numa

zona de absoluta indeterminação. Por isso Espinosa utiliza as expres' 39Idem, p. 342.

\õc's"constituir a si visitante", "mostrar a si visitante", nas quais a l)otência coincide com o ato e a inoperosidade com a obra: a vertigem

tla iminência é que ela descreve o movimento infinito da autoconstirliição e auto-apresentação do ser: o ser como pasearse. Não é um acaso que os estóicos se sirvam justamente da imagem tlo passeio para mostrar que os modos e os eventos são imanentes à slll)stância(Cleante e Crisipo se perguntam: quem passeia, o corpo litovido pela parte hegemónica da alma ou a própria parte hegemânit;i?)40. Como Epíteto dirá mais tarde com uma invenção extraordiltiiria: os modos de ser "fazem ginástica" (gymnasai, em que também ú })reciso ouvir etimologicamente o adjetivo gym/zos, "nu") do ser. 11. BEAUTUDK As anotações sobre Foucault publicadas por F. Ewald com o tíru[o Desiderio e piacere [])esejo e prazer] contêm, nessa perspectiva, lllna definição importante. A vida, diz Deleuze, não é de modo algum Etatureza:ela é, antes, "o campo de imanência variável do desejo"4i I'clo que sabemos da imanência deleuziana, isto significa que o termo 'vida" designa aqui nada mais nada menos do que a imanência do Llcsejoa si mesmo. Que o desejo não implica, para Deleuze, nem falta liam alteridade, nem é preciso dizer: mas como pensar um desejo que, como tal, permaneça imanente a si mesmo (ou -- o que dá na mesma -- como pensar a imanência absoluta na forma do desejo)? Nos termos do Compend/ m espinosano:como pensarum movimentodo desclo que não saia de si -- isto é, somentecomo causa imanente, como /;'zsearse--, como constituir a si desejante do desejo? A teoria espinosana do co/zafuscomo desejo de perseverar no l)róprio ser, sobre cuja importância Deleuze insiste várias vezes, contém uma possível resposta a tais perguntas. Sejam quais forem as fonrcs antigas e menos antigas da fórmula espinosana (Wolfson enumera dez, dos estóicosa Dante), de qualquer forma, é certo que, em sua cntmciação paradoxal, ela exprime perfeitamente a idéia de um movimento imanente, de um esforço que permanece obstinadamente em si mesmo. Todo ser não só persevera no próprio ser (z,is fnerf/ae), mas dose/aperseverar nele (z,is immanenflae). Isto é, o movimento do con.z40Cf. Vector Goldschmidt, Le syslême sfoit;ien el /'idée de Temos, Paris, J Vrin, 1969, pp. 22-3. Deleuze cita esta passagem em l.S, p. 198.

4i DP, p. 7.

[us coincide com o da causa imanente, em que agente e paciente se indeterminam. E como o cozzafus se identifica com a essência da coisa, desejar perseverar no próprio ser significa desejar o próprio desejo, constituir a si desejante.Ou seja: no con.zfws,dose/oe ser coincidem, sem resíduos.

Nos Coglfafózmefízp&ysica,Espinosa define o co#czfHScomo vida l"a vida é a força pela qual uma coisa persevera no próprio ser" ) . Quando Deleuze escreve que a vida é o campo de imanência variável do desejo,

ele dá, portanto, uma definição rigorosamenteespinosana. Mas em que medida a vida, definida assim em termos de conafus e desejo, se distin-

gue da potência nutritiva de que fala Aristóteles e, em geral, da vida vegetativa da tradição médica? Ê singular que já Aristóteles, no De anima, no momento de definir as funçõespróprias da alma nutritiva (fbrepll&epsyÊbe), se sirva justamentede uma expressãoque lembra muito a determinação espinosana do conafus segacanse t,amai. "Ela (a fropbe)",

escreve

Aristóte]es,

"conserva

a essência

]sozei

fefz ous]czm) [...],

esteprincípio da alma é uma potência capaz de conservar tal qual é aquele

que a possui(dynam]s esf]/zbola sozeifz to deÊbomemon safe/z be]i] foio&ffozz)" (416b,

1 2). O caráter

mais íntimo

da vida nutritiva

não é

então simplesmente o crescimento, mas, antes de tudo, a autoconservação. Isto significa que, enquanto a tradição médico-filosófica procura distinguir com cuidado as várias potências da alma e regula a vida humana baseada no cânone alto da vida dianoética, Deleuze(como seu modelo espinosano) recua o seu paradigma para o esquema mais baixo da vida nutritiva. Mesmo recusando nitidamente a função que a vida

nutritiva tem em Aristóteles como fundamento de uma atribuição de subjetividade, Deleuze não quer, contudo, abandonar o terreno da vida e o identifica com o plano de imanência4z. Mas o que significa então, neste sentido, "nutrir-se"? Num ensaio importante, Benvenisteprocurou reconduzir a uma unidade os vários significados, não sempre facilmente conciliáveis entre si, do verbo

grego frepbeiz (nutrir, fazer crescer, coagular). " En réalité", escreve ele, "la traduction de Irepbo par 'nourrir', dais I'emploi qui est en effet 42Quando Aristóteles define o boas através de sua capacidade de pensar a si mesmo, é importante lembrar que um paradigma auto-referencial já aparecera,

como vimos, a propósito da vida nutritiva e do seu poder de autoconservação:o

pensar a si do pensamento tem, num certo sentido, o seu arquétipo no conservar a si mesma da vida nutritiva.

lc })lus usuel, ne convient pas à tour les exemples et n'est elle-même tltl'une acception d'un bensplus large et plus précis à la bois.Pour rendre

compte de I'ensemble des liaisons sémantiques de [repbo, on dois le tléfinir: 'favoriser jpar des soins appropriés) le développementde ce flui est soumis à la croissance'. C'est ici que s'insere un développement pnrticulier et 'technique', qui est justement le sens de 'cailler'. L'exprcssion grecque est frepbein ga/a loa., xl11, 410), qui doit maintenant

s'interpréter à la lettre comme 'favoriser la croissance naturelle du lait. lc laisser atteindre I'état auquel il tend'"43. Deixar que um ser alcance o estado a que tende, deixar-se ser: se é este o significado original de frepbo, então a potência que constitui a vida em sentido primordial lo nutrir a si) coincide com o desejo de conservar o próprio ser que tlcfine a potência da vida como imanência absoluta em Espinosa e em l)eleuze.

Entende-se, assim, como Deleuze possa escrever de uma vida que

cla é "potência, beatitude completas". A vida é "feita de virtualidades"44, é pura potência que coincide espinosanamente com o ser, e a potência, enquanto "não carece de nada"45, enquanto é o constituir ;l si desejante do desejo, é imediatamente beata. Todo nutrir-se, todo deixar ser é beato, goza de si. Em Espinosa, a idéia de beatitude coincide com a experiência de

si como causa imanente, que ele chama de zcqz/descefza in se Ipso e clcfinejustamente como laefifia, concomllanfe faca s i f'zmquam cawsíz46.Wolfson observou que em Espinosa o uso do termo .zcqulescenfia referido a menuou a a/zlm s pode refletir o uso, em Uriel da Costa, 43E. Benveniste,ProbZà zesde/]nglf]s]]q e généríz]e,vo1.] 3, Paria, Gallimard, 1966, pp. 292-3.[Na verdade a tradução de frepbo por "nutrir", no uso, com efeito,

maiscomum, não convém a todos os exemplose é em si apenasuma acepçãode

urn sentido ao mesmo tempo mais amplo e preciso. Para dar conta do conjunto de EclaÇÕessemânticas de Irepbo, devemos defini-lo: "favorecer apor meio de cuida tios apropriados) o desenvolvimento daquilo que está submetido ao crescimento Aqui se insere um desenvolvimento particular e "técnico", que é justamente o sen rido de "coagular". A expressão grega é frepbeflzga/a (Od., Xl11,410), que agora neve ser interpretada, literalmente, como "favorecer o crescimento natural do lei-

te, deixa-loatingir o estado natural para o qual tende".] {N. do E.)

44IV, P. 6 45Idem, p. 7

4óEfbjca, 111,LI, ss.

de ã/mcze espáifo com desccznsadalem português no textol47. Mas bem

mais decisivo é o fato de a expressão acq lescenfza/n se ipso ser uma invenção espinosana, que não está registrada em léxico latino nenhum.

Espinosa devia ter em mente um conceito correspondente ao do verbo reflexivo hebraico como expressão da causa imanente, mas se chocava contra a dificuldade de, em latim, tanto o verbo qufescocomo seu composto acqufesco serem intransitivos e não admitirem, portanto, uma forma do tipo qzzíescere(ou acq iescerel se, como o ladino Ihe sugerira, ao contrário, a forma pasearse, em que agente e paciente

se identificam, e Ihe oferecia agora o reflexivo descansarse. Por isso ele forma o deverbal acqwíescenfiae o constrói com o pronome reflexivo se precedido pela preposição l/z. O sintagma acquiescenfza fn se ipso, que denomina a beatitudemais alta que o homem pode alcançar, é um hebraísmo lou um ladinismol, formado para exprimir o ápice do movimento da causa imanente4õ. É exatamente nestesentido que Deleuze usa o termo "beatitude' como caráter essencialde "uma vida...": beózfífdo é o movimento da imanência absoluta. 12

Fica esclarecido agora em que sentido pudemos afirmar, no início, que o conceito "vida", como derradeiro legado testamentáriodo pensamento tanto de Foucault como de Deleuze, deva constituir o tema

da filosofia que vem. Tratar-se-á, antes de tudo, de tentar ler juntamente as últimas reflexões -- aparentemente tão sombrias -- de Fou-

cault sobre o biopoder e sobre os processosde subjetivação e as de Deleuze -- aparentemente tão serenas -- sobre "uma vida..."

como

imanência absoluta e beatitude. Ler juntamente não significa simplificar ou achatar; ao contrário, tal conjugação implicará que cada texto constitua para o outro um corretivo e uma pedra de tropeço, e que 47H. A. Wolfson, Tbe pbi/osopbyo/' Spf/zona,Harvard UniversityPress,

1958, P. 325.

480 termo acqaiescenfiíz não se encontra registrado nem no TBesaurzzsde Estienne nem no Tbesauras teubneriano. Quanto à construção de acqafescere com i# e ablativo {no sentido, precisa Estienne, de czcq íescerei/zI'e a/íqzza,azzfl zz/fqwo domine, cam qaadam animauotaptate, quietequeconsistereet oblectari in re aliqaa,

in q a prius i# dubfo ízuf se/ícif di e anima Áaissefl,ela é comum, mas nunca é usada com o pronome reflexivo.

\i ) ;\travésdesta complicação ulterior eles poderão alcançar aquilo que l)tl\cavam: o primeiro, uma outra maneira de abordar a noção de vida; 1) sc'fundo, uma vida que não consista somente no seu confronto com .i morte e uma imanência que não volte a produzir transcendência. Será lltt'liso conseguir ver no princípio que permite a atribuição de uma sub-

irtividade a própria matriz da de-subjetivação, e no próprio paradigrili\de uma possível beatitude o elemento que marca a submissão ao lho})oder .

Seé tal a riqueza e, ao mesmotempo, a ambigüidadecontida no tlingrama testamentário "L'immanence: une vie...", a assunção como lilf fa filosófica implicará retrospectivamentea reconstrução de um t'\cinemagenealógico que distinga claramente na filosofia moderna Llucé, num sentido novo, em grande parte uma filosofia da vida -llíila linha da imanência daquela da transcendência, segundo uma árvore aproximadamente do seguinte tipo:

TRANSCENDÊNCIA

IMANÊNCIA

Kant

Espinosa

Husserl

Nietzsche Heidegger

Lévinas, Derrida

Foucault, Deleuze

Será preciso, ademais, empenhar-se numa busca genealógicaso-

l)re o termo vida, em relação à qual podemosjá anteciparque ela

mostrará que não se trata de uma noção médico-científica, mas de um conceito filosófico-político-teológico e que, portanto, muitas categorias de nossa tradição filosófica deverão ser repensadas por consetlüência. Nesta nova dimensão, não terá mais muito sentido distinguir leão só entre vida orgânica e vida animal, mas até mesmo entre vida l)iológica e vida contemplativa, entre vida nua e crua e vida da mente.

À vida como contemplação sem conhecimento corresponderá pontualmente um pensamento que se soltou de toda cognitividade e de toda

intencionalidade. A fbeorfa e a vida contemplativa, nas quais a tradição filosófica identificou por séculos seu fim supremo, deverão ser tleslocadaspara um novo plano de imanência, no qual não está escri-

to que a filosofia política e a epistemologia poderão manter sua fisionomia atual e sua diferença em relação à oncologia. A vida beata jaz agora sobre o mesmo terreno em que se move o corpo biopolítico do Ocidente.

Tradução do italiano de Cláudio William Veloso

Segunda Parte

HISTÓRIA E DEVIR DA FILOSOFIA

DELEUZE SOBRE HUME Déborah Danowski

Em um pequeno artigo publicado em 1972 na coletânea de François Châtelet (História da FÍ/oso#a), Deleuze afirma que o empirismo de David Hume "é uma espécie de universo de ficção científica. Como

na ficção científica, tem-se a impressão de um mundo fictício, estranho, estrangeiro, visto por outras criaturas; mas também o pressentimento de que esse mundo já é o nosso e essasoutras criaturas, nós propnos Acredito que podemos dizer a mesma coisa do modo como Deleuze fazia história da filosofia, e particularmente de seu livro sobre cume (Empirismo e subjetiuidade: ensaio sobre a natureza humana sega/zdoHzzme). Se o texto de Hume é o "nosso mundo", o texto de Deleuze é a ficção científica dessemundo, sua leitura a partir de um ponto de vista estranho, o ponto de vista de Deleuze ou, se quisermos, o ponto de vista do filósofo; mas, ao mesmo tempo, percebemos que é ali que está Hume (ou o nosso Humej; e, conforme vamos nos familiarizando com o texto deleuziano, sua leitura se mostra altamente precisa, perspicaz e esclarecedora do sentido dessa filosofia. Deleuze apresentou uma interpretação singular e inovadora em relação à tradição da literatura sobre Hume; essa novidade foi até certo ponto absorvida, sobretudo por autores de língua ou tradição francesa; e, no entanto, nem sempre foi devidamente reconhecida. Em poucas palavras, Deleuzereconstruiu toda a filosofia de Hume em torno da questão da constituição do sujeito a partir do dado da experiência, e salientou a importância da ação de princípios da natureza humana nesseprocesso. Deleuze estabeleceinicialmente uma distinção entre o espírito e a naturezahumana. O espíritoé a origem, o dado, a mera coleção de idéias distintas; e, sob o efeito de princípios que o afetam jprincípios que são basicamente de duas ordens: de associação e da paixão, sendo que os de associação estão submetidos aos da paixão), esse espírito se torna um sistema, uma natureza, enfim, um sujeito. Partindo dessa

primeira distinção, Deleuze defende cume da crítica de que pretenderia

fazer uma falsa psicologia, isto é, uma psicologia do espírito. Ou, antes, poderíamos encontrar em Hume duas inspirações distintas: o atomismo

e o associacionismo. O atomismo subsiste como uma psicologia do espírito apenas enquanto as idéias, elementos simples e indivisíveis que o compõem, são o termo último a que se referem as afecções ou qualifi-

cações da natureza. Mas o espírito é ao mesmo tempo o objeto de uma crítica. A verdadeira psicologia é a do associacionismo, a ciência de uma

natureza humana objetiva, ciência prática das tendênciase afecçõesi. O associacionismo, portanto, e não o atomismo, seria, na visão de Deleuze, a verdadeira inspiração da filosofia humeana. Isso supõe ao mesmo tempo a atribuição de um papel fundamental aos princípios da natureza humana. Pois o espírito, sendo passivo, só pode se tornar um sujeito ao sofrer a ação de princípios transcendentes, princípios que ultrapassam e estendem o dado original. Ou melhor, o espírito é avivado, torna-se cada vez mais ativo, pela ação dos princípios.

Nesse sentido, quando Deleuze fala em princípios da natureza humana, devemos entender não tanto princípios da natureza humana, mas princípios que constituem essa natureza. A natureza humana em si mesma nao é constituinte'. A essência e o destino do empirismo", dirá Deleuze, "não estão

ligados ao átomo, mas à associação. O empirismo [e devemos entender aqui o empirismo humeano] essencialmentenão coloca o problema de uma origem do espírito, mas de uma constituição do sujeito. Além disso, ele vê essa constituição como o efeito de princípios transcendentes, não como o produto de uma gênese" IDeleuze, 1980, p. 15). Este ponto é fundamental. Esses princípios são transcendentes mas

não transcendentais, isto é, são somente princípios de nossa natureza, e "tornam possível uma experiência sem tornar ao mesmo tempo necessários objetos para essa experiência" (ou, dito de outro modo, não garantem a reprodução dos objetos na experiência)3. Deleuze vê, l Dito de outra forma: "0 atomismo é a teoria das idéias enquanto as rela

ções lhes são exteriores;o associacionismo, a teoria das relaçõesenquanto são exterioresàs idéias, quer dizer, enquanto dependemde outras causas" (Deleuze,

1980,P. 118).

2Cf. M. Malherbe, 1984, p. 286, nota 3. 3Idem, pp. 126 e 136. "A transcendênciaera o fato empírico; o transcen-

dental é o que torna a transcendência imanente a alguma coisa = x" (idem, p. 125).

l)ortanto, uma dualidade básica no empirismo de Hume: dualidade ciitre a mera coleção das idéias e a associação das idéias, entre a regra tla Natureza e a regra das representações, ou, em suma, entre os princípios da Natureza, os poderes ocultos da Natureza e os princípios da ttaturezahumana4. Ora, ocorre que essa dualidade não impede que llaja de fato um acordo entre os termos, acordo que tem no princípio

tlo hábito seu instrumento de efetivação. E, como Hume menciona esse

acordo como "uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a sucessão de nossas idéias" (Á/l enqufry concerning /?//ma/za/zdersrandifzg,vo1. 2, pp. S4-51, Deleuze crê poder encontrar aqui uma "verdadeira metafísica" do empirismo, a idéia (que pode ser pensada, mas não conhecida) de uma finalidade que impede que o acor-

do da natureza humana com a Natureza seja meramente acidental, indeterminado e contingente IDeleuze, idem, p. 126). Essa leitura de Deleuze foi criticada por Michel Malherbe, que cm seu excelentelivro l,íz pbf/osopbie emP rfsfe de Dauid J me tentou mostrar que não existe esse dualismo na base da concepção empirista de Hume e que, ao contrário, a constituição do sujeito deve ali

ser entendida como produto de uma gêneseinexplicável e contingente dos próprios princípios a partir de uma realidade original única IMa[herbe, ] 984, p. 140, nota 93), a experiênciaradica]. Sem transcendência e sem esse dualismo, não haveria mais a necessidadede um acordo, e muito menos do recurso a um finalismo. Não me estenderei, aqui, nem sobre a interpretação de Deleuze, nem sobre a crítica ou a interpretação de Malherbe. Apenas observarei que concordo inteiramente quando este último rejeita a idéia de que

haveria um lugar, no sistema humeano, para uma finalidade -- a crítica ao finalismo, explícita sobretudo nos DlííZogossobre a re/zgfão rzafur.z/,é tão aguda e completa em Hume que me parece um contrascnso não entender como irónica sua expressão "uma espécie de harmonia preestabelecida".Mas isso não nos impedede, como quer Deleuze, procurar o sentido por trás da ironia. Ou, antes, diremos que a 4 Ou ainda, como uma outra forma de definir o empirismo é a teoria segundo a qual as relações são exteriores aos termos (enquanto não-empirista seria "toda teoria segundo a qual, de um modo ou de outro, as relações decorrem da natureza das coisas"l, essa mesma dualidade se expressada como uma dualidade entre termos e relações, ou entre as causas das percepções e as çausas das relações (falem,pp. 122-3).

recusa de uma finalidade não exige necessariamenteo fim da dualidade e do acordo vistos por Deleuze, contacto que nos contentemos com um acordo também acidental, contingente e não inteligível, talvez uma espécie de harmonia pós-estabelecida, idéia que não está inteiramente ausente dos mesmos Diálogos soó e a re/fgião naf ra/.

Isso nos deixa com um outro problema: a dualidade encontrada por Deleuze no pensamento humeano decorre diretamente, como já vimos, de sua ênfase no associacionismo em detrimento do atomismo,

e de sua tesede que, para Hume, os princípiosda naturezahumana vêm agir sobre o dado do espírito para transforma-lo num sujeito. A leitura contrária de Malherbe, que privilegia o movimento em sentido oposto, de gênesedas idéias e dos princípios a partir das impressões, devo dizer, parece-me bastanteatraente, por nos apresentar a filosofia de Hume como um empirismo verdadeiramente radical (para usar uma expressãodo próprio Malherbel. No entanto, devo confessar também que a leitura de Deleuze me parece mais afinada com o sentido global que podemos efetivamente depreender do texto humeano. O que irei fazer aqui, em lugar de tentar provar essa minha afirmação (tarefa que seria longa em demasia), é ilustra-la através de um exemplo extraído das análises de Hume sobre a probabilidade e sobre a história: o exemplo de um lance de dadosS Sabemos que para Hume a idéia de causa e efeito não é senão uma maior facilidadeda imaginaçãoem passar de uma impressão presenteà idéia daquele objeto ou acontecimento que o hábito de uma conjunção constante na experiência passada nos faz esperar também no futuro. Essa facilidade da imaginação corresponde a uma dificuldade de percorrer um caminho diferente, isto é, de se associarem as idéias de outra maneira e, mais ainda, de se depositar uma crença em outro lugar. Por outro lado, a ausência de uma relação de causação constitui o que Hume, no Trai.zdo da #íz reza b mana, chama de acaso. O acaso não é em si mesmo uma coisa real, mas apenas a negação de uma causa. Ou seja, ele desfaz o que havia sido feito pela causa, ou melhor, pelo hábito e pela conjunção constante. O acaso deixa a imaginação "indiferente para considerar a existência ou a inexistência daquele objeto que é visto como contingente. Uma causa traça 5 0 que se segue é, em grande parte, extraído dos capítulos 111,VI e Vll de minha tese de doutoramento, "Natureza acaso: a contingência na filosofia de David

cume:

t ) caminho para nosso pensamento, e de algum modo nos força a con\iclcrar certos objetos, em certas relações. O acaso só pode destruir essa

tlc-terminaçãodo pensamento, e deixar o espírito em sua situação original de indiferença; aquela em que, na ausência de uma causa, cle é instantaneamente restabelecido" (A freaffse o/bamczn nafure, p. 125).

A indiferençaé, digamos assim, a situação não-marcada do esl)írito, sua situação de origem (fzafiz,esif afíon), na qual "ainda" não sc estabeleceram relações de causação. Na ausência de experiência, diante do sentido de uma conjunção constante, no passado, de obje[os ou ações semelhantese contíguos, a impressão presente não transmite sua força a idéias relacionadas, pois não há hábito, e não se formauma relação natural. Não são criadas facilitações, e a força e a vivacidade da impressão pode passar a qualquer idéia da imaginação. Por isso, a imaginação fica indiferente -- literalmente, sem diferenças,

isto é, sem facilitações e tendências-- e pode considerar esta ou aquela idéia. e crer nela.

Mas, quando diz que o acaso desfaz ou destrói a determinação do pensamento,Hume está, evidentemente,partindo de uma natureza humana já constituída, de tendências e caminhos já traçados. O que o acaso destrói é a inclinação, a tendência da natureza humana como um todo a crer num fato qualquer. A "ausência de causalidade" pareceser, assim, ao mesmo tempo, um fenómenolocalizado, uma exceção que ocorre no interior da experiência e um estado inicial da imaginação, estado real ou fictício, no qual o acaso (neste sentido negativo) ê a regra. O exemplo de Hume é um lance de dados, cujo resultado depende

exclusivamente do acaso, ou seja, é indeterminado e aleatório. Em um dado perfeitamente equilibrado, diz ele, todos os seis lados têm a mesma

chance; são, portanto, equivalentes, não-diferentes, e entre eles a imaginação permanece indiferente. Entretanto, aqui o acaso não é tudo; ele se encontra misturado a uma série de causas, como, por exemplo, a lei da gravidade, que nos asseguraque, ao soltarmos o dado, elecairá; sua solidez, e a certeza de que ele preservará sua forma cúbica ao cair etc. Sendo assim, ao ver um dado sendo lançado, o espírito não pode se impedir de formar na imaginação a imagem desse mesmo dado, com

a mesma forma e características, apresentando uma e apenas uma de suas faces voltada para cima ao cair. Mas, visto que as chances dos seislados são iguais, o pensamento "considera cada um deles, um após o outro, como igualmente provável e possível" (idem, p. 129); e, sen-

do incapaz de se fixar em apenas um dos lados, divide o impulso e a vivacidade originais das causas pelas seis partes iguais de chances ou acasos misturadas a essas causas.

Notemos que se as causas não limitassemo acaso, nem sequer pensaríamos na possibilidade igual de se obter qualquer um dos seis lados -- pois não haveria uma relação privilegiada entre a impressão presentedo lançamento do dado e as idéias desses lados. As causas são necessárias até para que haja algo como um fenómeno aleatório. Ou melhor: se não houvesse nenhuma causa, evidentemente só haveria o acaso, mas este estaria espalhado indistintamente por toda a experiência. Ao vermos um dado, poderíamos, por exemplo, formar a idéia de seu estilhaçamento, ou uma outra idéia completamente diferente. A força e a vivacidade da impressão presente se dividiriam não

em seis, mas em infinitas partes iguais, ou então nem sequer se dividiriam. Ê isso o que ocorre no estado original de indiferença do espírito: "Quando nada limita os acasos, todas as noções que a fantasia mais extravaganteé capaz de formar estão em pé de igualdade [.-]" (Idem, p. 126).

Em suma, a composição de causa e acaso permite, em primeiro lugar, que consideremos indeterminado um certo fenómeno que ocorre dentro de nossa experiência. O espírito cai numa situação de indiferença (limitada), sendo incapaz de esperar alguma coisa ou de prever o que irã acontecer.

Mas suponhamos agora um dado no qual quatro faces apresen-

tem um mesmonúmeroinscrito, e as outras duas, um númerodiferente. Nesse caso, os impulsos das quatro imagens semelhantes das faces

que têm o mesmo número inscrito se reunirão em uma só imagem, semelhantea cada uma delas, porém mais forte. Essa idéia terá sobre o espírito uma influência superior à da idéia formada pela reunião das imagens dos dois outros lados; e, já que os eventos em questão são con-

trários e incompatíveis, e como os contrários se destroem mutuamente na medida de suas forças, a imagem do primeiro irá se impor sobre a imaginação, com uma força apenas diminuída da força do impulso contrário. Ê dessa forma que uma composição de chances iguais e indiferentes é capaz de produzir uma diferença e conseqiientemente

uma probabilidade de chances (probabl/ífy o/ cóíznces): pois dessa diferença resultará uma crença, proporcional ao número de chances iguais, e decrescida do número de chances opostas. Mas a mistura de causas às chances não é necessária apenas para

que se possa extrair um raciocínio de probabilidades das chances anõesiguais. Até aqui Hume se referira ao "acaso" como um termo meramente negativo, expressão da ausência de causas -- e, portanto, como

só podendo gerar uma probabilidade de chances. Agora, entretanto, ele especificará que "os filósofos normalmente aceitam que aquilo que o vulgo chama de acaso não é senão uma causa secreta e escondida lidem, p. 130). O próprio termo chance ou acaso esconde, segundo Hume, uma referência à causa; e, por isso, sua análise da probabilidade

de chances só teria significado por servir como uma espécie de introdução à análise da probabilidade de causas (probab///fy o/causas). Um primeiro tipo de probabilidade de causas ocorre quando a experiência da conjunção constante e o hábito daí resultante, que são consolidados gradativa e insensivelmente com o tempo, ainda não estão

suficientemente fortes. Mas esse tipo de probabilidade não importa muito a Hume. Ele apenas acompanha a uniformidade da experiência, tal como ela é apreendida gradativamente pelo espírito. E essa mesma uniformidade permite que saltemos o estágio intermediário do hábito, através de regras gerais, estendendo ou corrigindo o número de casos

observados. Entretanto, é inegável que há uma incerteza na natureza, c que, embora esperemos sempre que o futuro repita o passado, somos muitas vezes decepcionados em nossa expectativa. Causas antes Lmidas a determinados efeitos subitamente parecem produzir efeitos diferentes e até contrários. E, "devido a essa incerteza, somos obriga-

dos a variar nosso raciocínio e a levar em consideração a contrariedade de eventos" lidem, ibid.). Teremos aqui o segundotipo de probabilidade de causas, que Hume considera sua forma mais importante. Não se trata mais da ausência de causas mencionada a propósito da probabilidade de chances, mas de uma incerteza nas próprias causas, ou seja, aquilo que os homens de senso comum costumam atribuir a uma suposta falha nas causas conhecidas, as quais, sem que

houvesse obstáculo algum, deixariam de produzir seu efeito habitual, provocando uma "contrariedade de eventos". Pela experiência, porém, os filósofos acabam formando a máxima de que "a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e [...] sua aparente incerte-

za em alguns casos procede da oposição secreta de causas contrárias" lidem , ibid. ).

De qualquer forma, mesmo que discordem em sua explicação sobre a contrariedade de acontecimentos, o que importa é que há incerteza, e as inferências que os filósofos e o vulgo estabelecema par-

tir dela são semelhantes.Quer sejacausada por uma "contingência: das próprias causas, quer seja resultado da ação necessária de causas secretas, a contrariedade tem como efeito "uma crença hesitante no futuro" (idem, p. 132), o que pode se dar de dois modos distintos: diretamente e sem qualquer reflexão, através de um hábito e de uma

transição imperfeitas da impressão à idéia relacionada; ou, o que é mais

comum, de maneira indireta ou oblíqua, por meio de uma reflexão consciente sobre a contrariedade na experiência passada. Este último mecanismo da probabilidade de causas é semelhante ao da probabilidade de chances. Hume diz que "cada experiência passada jque compõe a contrariedades pode ser considerada uma espécie de chance" (falem, p. 135). Todos os casos de causa e efeito considerados no passado são da mesma natureza e têm, portanto, de início, a mesma influência sobre o espírito: cada um representa uma possibilidade (e apenas isso) no que diz respeito ao futuro. A diferença surge quando a causa se apresentou mais vezes acompanhada de um efeito que de outro, produzindo mais imagens de um tipo. A soma dessas imagens (possibilidades) será maior que a das imagens contrárias. Nossa imaginaçãoserá levadacom uma determinaçãomaior à idéia desseefeito, que consideraremos não apenas possível, mas provável. "Cada nova experiência é como uma nova pincelada, que dá uma vivacidade adicional às cores, sem multiplicar ou aumentar a figura' lidem, p. 135). O mesmo vale para as chances na probabilidade de chances.

A maior parte dos autores que tratam desseproblema em Hume diferencia rapidamente os dois tipos de probabilidade, de chances e de causas, mas acaba por iguala-los. Essa atitude é compreensível, visto

que o próprio texto pareceseguir nessa direção. Mas não se deve esquecer que o exemplo do lance de dados tem, nesse momento, duas variantes. Na primeira, cada face apresenta um número diferente, e corresponde a uma chance, igual às outras cinco em sua "possibilidade" de ocorrer. Somos determinados a conceber a imagem de cada face

como voltada para cima, mas essasdiversasimagensnão se unem, porque os númerosrepresentadosem cada face são singularese as chances são incompatíveis entre si. É isso que caracteriza a indiferença da imaginação: a falta de relações e de tendências (resultante da falta

de repetição,ou melhor, de alternativassemelhantes).É certo que, mesmo quando os seislados são diferentes, podemos formar um raciocínio do tipo: o número "4" tem uma chance em seis de sair. Mas a

situação que interessa a Hume é aquela que prepara uma aposta: que rcmultadodevemos esperar em um lance futuro? Em que número apostar? Já na segunda variante do exemplo, quatro faces apresentam o lllcsmo número inscrito, e as duas outras, um número diferente. As imagens que o espírito forma se repetem nessa proporção. As chances

sc somam, os atou do espírito se fundem, e a indiferença é abolida. E esse segundocaso do lance de dados, portanto, que constitui l)ropriamentea "probabilidade de chances". E é ele que tem como função explicar a probabilidade de causas. No entanto, permanece, como com o primeiro caso, a especificidadede um fenómeno aleatório lc não apenas contingente). Ê por ter concebido a probabilidade de chances a partir da primeira forma do lance de dados que Hume exclui dela a dimensão do passado, isto é, da experiência. As diferen[cs chances não são ali tratadas como casos passados que definiriam uma contrariedade na experiência; elas são definidas inteiramente no presente. A variante aleatória -- chamemos assim -- do lance de dados produz uma diminuta amostra daquilo que seria a situação de bossa imaginação sem a orientação dos princípios de associação, situação em que a indiferença estaria espalhada por toda a experiência, mas em que, ao mesmo tempo, ao invés de não haver nenhuma associação, haveria qualquer associação. Este é, propriamente falando, o princípio da imaginação. Mas o exemplo do lance de dados reaparece em Hume, modificado, para ilustrar uma dimensão bem diferente:a história. Na lfzuesfigaçãosobre os princz'Piosda mora/, Hume afirma que, embora inúmeras "circunstâncias" e "acidentes" tornem singulares os costumes de cada cultura, estes não são senão diferentes respostas da imaginação aos mesmos princípios gerais de aprovação e de condenação, que permanecem sempre constantes e uniformes. A mesma natureza humana transparece sob as mais diversas transformações da história, e em todos os cantos do mundo. Entretanto, o que dizer das diferenças que constituem a própria história como tal? Podemos distribuir essesfavores em dois níveis distintos. O primeiro nível é o da cultura propriamente dita: o que Hume chama de visões, costumes e circunstâncias. Se a sociedade e a noção de justiça são invenções inevitáveis da natureza humana desde que haja

homens vivendo em conjunto, o modo como essa sociedade se organiza, sua forma de governo, as leis civis, a linguagem, os costumes e tudo o mais que caracteriza cada cultura assumeformas diferentes.Isso

é o que distingue o instinto da instituição, ou a natureza pura e simples do artifício (A/z enqzliry conter i/zg fbe prznclp/es o/' moróz/s,p. 2021. Nas palavras de Deleuze, "o fato de o homem ser uma espécie inventiva não impede que as invenções sejam invenções" (Deleuze, idem, p. 36, grifo meus.

Mesmo essas peculiaridades, entretanto, que se devem sobretudo aos princípios da imaginação, ainda são passíveis de serem explicadaspor regras gerais. Mas o historiador tem ainda que lidar com um outro nível de diferença, a saber, aquela decorrente dos acidentes e do acaso propriamente dito. [...] deve-se admitir que o acaso tem uma grande influência sobre as maneiras de cada nação; e muitos dos acontecimentos que se passam na sociedade não podem ser expli-

cados por regras gerais. Quem iria imaginar, por exemplo, que os romanos, que viviam livremente com suas mulheres, seriam indiferentes à música e considerariam infame dançar: enquanto os gregos, que quase nunca viam uma mulher fora

de suas próprias casas, estariam continuamente tocando flauta, cantando

e dançando?"

[Hume,

idem, p. 340].

Aqui não se pode mais reconheceruma "natureza humana". E, como o historiador para Hume é sempre também um filósofo, o limite da natureza humana é igualmente o limite de sua tarefa de investigação. Em um pequenoensaio intitulado "Do surgimentoe do progresso das artes e ciências", cume afirma que quando um autor diz que um acontecimento histórico deriva do acaso, ele está admitindo que não tem como explica-lo; ao contrário, quando supõe que o acontecimento procede de causas certas e estáveis, "então pode mostrar toda

sua engenhosidade, apontando essas causas" e observando aquilo que escapa aos homens comuns e ignorantes ("Of the rise and progress of the ans and sciences", p l l l).

E certo que Hume não menciona nada parecido com isso em seus textos sobre a probabilidade, no Tratado ou na Inuesfzgação. Atribuir

um acontecimento ao acaso caracterizava o comportamento do senso comum, ao passo que o filósofo devia sempre buscar as causas ou, em último caso, reconhecer que estas eram por demais complexas para sua

capacidade cognitiva. Mas agora estamos falando de história, não de experiência comum. E a história é uma espécie de experiência ampliada,

à qual apenas o historiador tem acesso. Isso comprovamos pela "regra geral" que Hume propõe para ajudar a sutil distinção entre os dois tipos de acontecimentos: "Aquilo que dependede um pequeno número de pessoas deve ser, em grande medida, atribuído ao acaso, ou a causas secretase desconhecidas: o que surge de um grande número pode frequentementeser explicado por causas determinadas e conhecidas lidem, p. 112). Essa regra inspira-seprovavelmenteno Teorema do Limite de .jacquesBernoulli, a famosa lei dos grandes números6:supondo que possamos dizer a pri07'i as chances de um determinado resultado em

um sistema aleatório, a probabilidade de essa previsão se confirmar

na experiência aumenta juntamente com o número de tentativas, apro-

ximando-secada vez mais de ] (ou seja, probabilidadede 100%). Assim, diante de uma urna contendo nove bolas pretas e três brancas,

sabemos que a probabilidade de tirarmos uma bola preta é de 3/4 jnove

chances em doze). Os primeiros resultados apor exemplo, as doze primeiras tentativasl dificilmente confirmarão tal probabilidade -- podemos retirar, digamos, sete ou onze bolas pretas, em vez de nove. Mas,

quanto mais tentarmos, mais a frequência de bolas pretas se aproximará de 3/4 do total de resultados.

Hume supõe um dado com uma inclinação (pias) qualquer, pequena ou grande, para um dos lados; e diz que, embora essa tendência talvez não apareça em alguns poucos lances, ela certamenteprevaleceráem um grande número deles.O resultado que se confirma cada vez mais, quanto maior for o número de tentativas, é o que exprime a inclinação do dado e, consequentemente,o que é determinado por uma causa. Os outros resultados possíveis, ao contrário, que aparecem já nas pequenas amostragens, serão cada vez menos predominantes em amostragens maiores. São, portanto, apenas casuais. A aplicação à dimensão histórica é imediata: "De maneira semelhante, quando, numa

certa época, e num certo povo, determinadascausas provocam uma inclinação ou paixão particular, embora muitos indivíduos possam escapar ao contágio e ser regidos por paixões peculiares a eles próprios,

a multidão certamenteserá tomada pela afecção comum, e será governada por ela em todas as suas ações" lidem, ibid.).

6 Ou melhor, segundo1.Hacking (1987, pp. 154-5), o que hoje se conhece como "a lei fraca dos grandes números" Ver também J. Cohen, 1989, p. 22.

Embora Hume tenha trocado, nesseensaio, o dado perfeitamente equilibrado de sua análise sobre a probabilidade de chances por um dado tendencioso("viciado", diríamos), e tenha introduzido uma causa no interior do acaso, o caráter aleatório não foi eliminado. Pois, assim como cada lance, sendo independente dos outros, pode apresentar qual-

quer resultado, assim também os acontecimentos não se diferenciam, quanto a sua necessidade ou casualidade, à medida que vão se sucedendo

e para aqueles que deles participam diretamente. A causa a que Hume se refere aqui -- esta espécie de clinâmen -- jamais aparece senão a distância, retrospectivamente /. Causas diversas podem ser e sâo conhecidas de todos os homens. Mas como diferenciar aquelas que são "mais sólidas e obstinadas, menos sujeitas a acidentes e menos influenciadas pelo capricho e pela fantasia particular" daquelas que são "tão delica-

das e sutis que o menor incidente na saúde, educação ou fortuna [...] basta para desviar seu curso e retardar sua operação" (idem, ibid.)? Como saber qual o curso original e qual o desvio? Em outras palavras, como saber o que se deve à "natureza" e o que se deve ao "acaso"? A natureza humana não é aquilo que determina previamenteo que é casual ou o que é necessário. Ela é apenas uma tendência, e como

tal não pode ser conhecida a Pr/orf, ou mesmo a cada momento (embora todo acontecimento, após a experiência, seja explicável). O filósofo-historiador observará que alguns fatos vêm influenciar umas poucas pessoas, e depois desaparecem, ao passo que outros contagiam um grande número delas, deixando uma marca indelével. E é somente assim, mediante essa visão ampliada e a distância, que se conhece a natureza humana. Em toda sua filosofia, Hume procura se manter afastado da idéia de um acaso absoluto (entendido como pura ausência de causas). Nos Diá/egos sobre a re/lglã0 7zafura/fica claro que o puro acaso significaria não somenteque no universo qualquer ordem poderia ter se formado no lugar da ordem real, mas também que qualquer uma delas poderia se sustentare permanecer.Do ponto de vista cético;-ou mesmo da ciência empírica, haveria aqui quase um retorno à arbitrariedade da teoria do desígnio divino, que Hume quer afastar. 7 Bento Prado Jr. (1985, p. 421, ao fazer uma comparação entre Hume, Freud e Skinner (inspirado na leitura deleuziana da psicanálise e do empirismo), utiliza a expressão "fixação retrospectiva do acaso", que emprego aqui de modo um tanto livre

Por outro lado, a filosofia de Hume tampouco pode ser entenditl.t se dela excluirmos a suposição de uma contingência irredutível. O 1;1toé que a contingência da ordem não implica uma negação das causas. Podemos perfeitamente deixar de lado essa dicotomia. Como diria o paleontólogo StephenJay Gould acerca da história da vida: "Eml)ora possamos compreender que o velho determinismo do progresso l)rcvisível não pode mais ser aceito, achamos que nossa única alternativa está no desespero da pura casualidade". Mas existe uma terceira alternativa, fora dessa dicotomia. A contingência pode significar que 'cl\daetapa tem sua razão de ser mas nenhum resultado final pode scr precisadono momento da largada [...]" j1990, p. 52). Vimos isso a propósito da história. Se Hume toma como exemplo de sua lei dos grandes números um dado tendencioso,é porque hão quer optar nem pelo determinismo nem pelo puro acaso ou ausência de causas. A inclinação do dado fará com que o "resultado" final (ou seja, a soma dos resultados de cada lance) apresente um predomínio de um dos lados sobre os outros. Isso é conseqüência da existência de uma "causa". Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o puro acaso, em um número infinito de lances, não seria revelado por uma grande disparidade de resultados, mas por sua equalização. Um "bom dado", um dado não viciado, é aquele em que cada lado tende a compor exatamente 1/6 do total de resultados num grande

número de lances. Um bom dado é o que gera uma indiferença no espírito. Mas a indiferença por si só não compõe uma natureza, assim como sem causas a matéria não compõe um mundo. Voltando a Deleuze, o que esses exemplos queriam ilustrar é que,

em Hume, para haver natureza humana, é preciso haver princípios, causas que imprimam uma tendência ao espírito. Deixado a si próprio,

o espírito não seria capaz de se afastar da indiferença de associações feitasao acaso. "Se o sujeito é o que ultrapassao dado, não emprestemos antes ao dado a faculdade de se ultrapassar a si mesmo" IDeleuze, 1980, p. 94). Por isso os princípios não podem ser produtos de uma gênese, resultados da mera repetição de lances indiferentes. A re-

petição dos lances de um dado carreto continua gerando apenas mais indiferença. Em uma palavra (para terminar com um trocadilho): se o espírito é o que é dado, os princípios da natureza humana são, então, não a virtude (no sentido de força ou poder intrínsecos), mas o vício do dado.

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/íferafa7'a,

ps/cana/ise.

São Paulo,

Max

O TRANSCENDENTAL E SUA IMAGEM Gérard Lebrun

Se a filosofia segundo Deleuze é criação de conceitos, ela o é na medida em que faz refluir "a imagem do pensamento": tanto em Deleu-

ze como em Bergson, a construção de conceitos se dá paralelamente com a desmontagem das ilusões que a tradição respaldava -- e ela merece ser examinada sob esse ângulo. E uma investigação dessetipo que gostaríamos de esboçar a propósito do reemprego da palavra "trans-

cendental", reemprego que uma alergia não disfarçada a Kant poderia, à primeira vista, tornar estranho... Todavia, Deleuze diz da história da filosofia que ela é "totalmente desinteressantese não se propõe a despertar um conceito adormecido, relança-lo numa nova cena, ainda

blueao preço de fazê-lo jogar contra ele mesmo"i. Não é esseo caso do "transcendental": em vez de destrua-lo, não será o caso de denunciar o encolhimentoque a Cr#fca Ihe havia imposto? De fato, os elogios que Deleuze concede a Kant são com freqüência acompanhados da mesma reserva: Kant não foi fiel ao que prometia.

Quando ele renuncia ao Eu substancial ou quando se dedica a analisar a ilusão em vez do "erro", ele parece "armado para reverter a imagem do pensamento". No entanto, ele "não queria renunciar aos pressupostos implícitos da representação". Ele descobre "o prodigioso domínio do transcendental;eleé o equivalentede um grandeexplorador [...]". No entanto, e]e se apressaem "deca]car" as estruturas ditas transcendentais sobre os aros empíricos de uma consciência psicológicas. Poder-se-ia alongar a lista desses enganos: o inventor da Cr#fca "traía-a no momento mesmo em que a concebia."3

P. 81

l G. Deleuzee F. Guattari, Qzl'esr-ceq e /a pbí/osopbfe?,Paras,Minuit, 1991, 2 G. De]euze, Di/7érenceef répéfffiolz, Paras, PUF, ] 968, pp. 178 e 176.

3 G. Deleuze, Nfefzscbe el /a pbl/osopóle, Paras, PUF, 1962, p. 59. Aristóteles ofereceoutro exemplo de um desvio preliminar devido à força da ilusão representativa. Embora designando à dialética sua tarefa efetiva, "a arte dos problemas e das questões", eleconcebe mal "a realização dessa tarefa", aceitando o balizamento dos

Essa fórmula nos dá uma primeira vista de olhos do que está em jogo no debate. Se o conceito de "transcendental" permanece vacante depois de Kant, é porque a Cr#ica não conseguiu cumprir sua tarefa de legitimação, como prova a fragilidade da "fundação" que ela propõe. Fundar o conhecimento a priori, segundo ela, é administrar a prova de que o emprego das categorias -- e somente ele -- justifica a pretensão à "objetividade" inclusa em nossos "juízos de experiência: Ora, como essa prova é operada?

"A prova não mostra que o conceito dado (aquele, por exemplo, do que aco/zfecelconduz diretamente a um outro conceito (o de uma causal, pois tal passagem seria um salto que não se poderia de maneira nenhuma justificar; mas ela mostra que a própria experiência, por conseguinte o objeto da experiência, seria impossível sem tal ligação."4 Tudo o que acontece fem uma czzwsa:não é a necessidadeintrínseca dessa proposição que será provada; é provado apenas que não haveria razão de falar de "conhecimento empírico" se essa comdíção já não estivesseaí. A dedução, "no sentido dos jurisconsultos", que Kant emprega, é um bom exemplo desse desvio. Deduzir é justificar a

pretensão a uma posse, que formulo, mostrando que as circunstâncias da aquisição satisfazem as condições requeridas para que uma posse seja dita lega/. Isto é, um caso de contestação que me obriga a provar a legitimidade de minha posse: devo remontar até as condições que as partes em litígio reconhecem como sendo as de uma posse legítima em

geral, e mostrar que as Circunstânciasda aquisição se encaixam exatamente nelas. A dedução provará que todas as percepções possíveis são estruturadas de tal modo que nossos juízos empíricos que pretendem a objetividade preenchem exatamente as condições, as quais, no predicáveis e dos "lugares" {G. Deleuze, Df/Hérenceef réPéfifio/z, pp 207-81. Como

não considera os problemas senão em função de sua possibilidade de solução, ele faz a dialética Inatimortal confundir-se com "um jogo de proposições opostas". Do

mesmo modo, a idéia fecunda de uma crítica imanente da razão permanece inexplorada, porque "faltava a Kart um método que permitissejulgar a razão por dentro, sem no entanto confiar-lhe o encargo de ser juiz dela mesma" IG. Deleuze, Nfelzscbe et !a pbilosopbie, p. 1,04\. 4 E. Kant, Cr riq e de /a rafson p re, trad. francesa Delamarre-Marty, Pa-

ria, Pléiade1, p. 1349/AkademieAusgabe111,p. 510.

caso, são estipuladas por essas regras da síntese que são as categorias. l)or esse motivo, estamos certos de ser detentores, num campo bem de-

rcrminado, de conceitos, zzpriori, ÁnPzcfonafs:nossa pretensão é assim justificada, e Kant não exige mais do que isso. Mas Deleuze, por sua vcz, recusa-se a reconhecer nessa prática de tabelião a dignidade de uma fundação filosófica. Fundar, nesse espírito, equivaleriasimplesmentea certificar em boa e devida forma que a pretensão de universalidade inscrita em minha proposição se mostra irrecusável, pelo fato tlc responder precisamente à condição que é a única apta a torna-la válida... Ora, qual é o teor dessas "condições" que surgemtão oporttmamente?Não foram elas forjadas ad boc, em vista dessa autenticação? Um dos textos mais esclarecedores sobre essa questão é a terceira série da Lógica do se/zffdo, quando Deleuze afirma a impossibilidade, a menos que se caia no sofisma, de assimilar o self/do lou "o expresso") de uma proposição em sua signo/;cação,e observa nessa ocasião que a fundação "condicional" é um procedimento que nos envolve num círculo estéril, numa oscilação entre condição e condicionado. A "condição" a que se recorre, não sendo mais que a forma de /)ossfbl/idadedo condicionado, é incapaz de engendraro que ela deveria supostamente "fundar". Em contrapartida, o condicionado não é de maneira alguma "afetado" pela condição, esse duplo abstrato dele mesmo ao qual é indiferente.

"Seja como for que se defina a forma, trata-sede um

estranho procedimento que consiste em elevarmo-nos do condicionado à condição para conceber a condição como simples

possibilidade do condicionado. Eis que nos elevámos a um fundamento; mas o fundado continua sendo o que era, independente da operação que o funda, não afetado por ela [...]."5

Que a "condição de possibilidade" seja um fundamento de empréstimo, há disso um sinal, sobre o qual Deleuze insiste com freqüência: ela é "demasiado ampla" para o real -- como é o caso para todos os conceitos represenlaflz/oso.Em troca, o primeiro traço que caracteriza os conceitos sub-representativos construídos pelo genealogista é que as s G. Deleuze, l.ogfque da se/zs,Paras, Minuit, 1969, p. 30. 6 Cf. G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbí/osopbfe, pp. 4, 97, 104, 107; DÍ/Hérence ef répéffffo/z,pp 236-9, 364-5.

condições que eles formulam "não são mais amplas que o condicionado", e são capazes de "aderir" à experiência real ao invés de normalizar

a pretensa "experiência possível". Devem essesconceitos ser chamados "transcendentais"? A diferençaé tão profunda com os Grz{/zdbegri#e kantianos que sucede a Deleuze renunciar à palavra "transcendental": é o que ele faz quando opõe, no Nfefzscbe, aos princípios kantianos, demasiado frouxos [...], simples condições para pretensos fatos", a Vontade de Potência, por eleapresentadacomo exemplode um pri#cáoíodigno desse nome, já que é alheia ao balizamento representativo anão é nem "una" nem "múltipla") e "inseparável" de cada caso no qual

se determina"7. Que os princípios kantianos não respondam a esses sinais, Kant o diz expressamente, quando confessa a discordância entre o P7i/zzipno sentido estrito (conhecimento sintético por conceitos, de que nosso entendimento é incapaz) e o Grzzndsafz, que certamente é "princípio", na medida em que não depende de conhecimentos mais elevados, mas que todavia tem necessidade de uma prova, isto é, de um controle de sua validade " principial" pela apresentação do papel indi!-

pensávelque ele desempenha na constituição da experiência possívelõ Ora, não é esse estatutoalheio a enunciadosaos quais se dá, mesmo !afo sefzsn,a dignidade de princípios? Em vista disso, Deleuze, nesse momento, julga dever renunciar ao caráter "transcendental" que inicialmente havia concedido à vontade de potência com a simples finalidade

de distingui-]a de uma instância psico]ógica: "[...] a verd?de é que os princípios em Nietzsche não são jamais transcendentais"' Em que, exatamente, a Vontade de Potência não pode ser dita ;transcendental"no se/zfídoaceno? É que ela se investe de uma determinada figura de forças, "variável em cada caso". Ela não será concebida portanto como uma c07zdiçãodo exercício das forças, mas como um elemento interno à força, e que está no princípio da diferença de quantidade das forças que se acham em relação, assim como da qualidade que cabe a cada uma delas. Nada a ver, portanto, com uma ins-

tância abstratamente "condicionante": "0 que a potência quer é la/ relação de forças, fa/ qualidade de forças"10. E se a Vontade de Po7 G. Deleuze, Nietzscbe ef /a pbi/osopbíe, pp. 93-4.

8E. Kant, Crlllqz/ede /a rczfsonFure, pp. 1018/892. 9 G. Deleuze, Nfefzscbe ef /czpbi/osopbfe, pp. 56-8. 10G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbílosopbíe, p. 97.

tência é dita, além disso, p/ásfica, é porque ela está infeframenfe concentrada em cada configuração na qual opera. Ela não é como um determinávelque permaneceria retirado, como à espera da determinação que o afetará. "0 elemento plástico se determina ao mesmo tempo que determina, e se qualifica ao mesmo tempo que qualifica." Todavia, convém mesmo recusar a designação de "transcendental" ao prf/zc@ioentendido nessenovo sentido? É certamenteo que faz Deleuze nessa página do Nfefzscbe. Mas, como ele próprio assinala em seguida, Nietzsche parece ter cumprido assim uma tarefa que já estava indicada pelos pós-kantianos -- por exemplo, num autor como Malmon, que era sensívelà incapacidade na qual se achava o "princípio transcendental" kantiano de fundar plenamenteas sínteses da experiência, ou ainda de superar o caráter irremediavelmente contingente

da "experiência

possível"tl.

Ora, por que se deveria re-

servar apenas a Kant o monopólio do "transcendental", se é verdade que o pensamento de Nietzsche pode assim ser re-situado em relação ao kantismo? Tudo se passa como se Nietzsche, em vez de se contentar, como Schopenhauer,em podar a Cr#ica, tivessede fato retomado o prometocrítico "sobre novas bases e com novos conceitos". Conivência ainda sutil, mas que deixa pressentir que a investigação frans-

cendenla/ é talvez mais do que uma estratégia "representativa". Por que não reutilizar o conceito, ainda que ao preço de uma metamorfose que o tornasse irreconhecível a muitos leitores da Cr#lca? E assim menos estranho que ele não pudesse parecer compreender a Vontade de Potência como se esta respondesse a uma exigência

que fora formuladaenquantoKant ainda vivia, em reação à "insuficiência" da filosofia transcendental. "Insuficiente" é exatamente a palavra que MaTmon emprega para caracterizar um sistema que ele, não il É ao longo de toda a primeira Cr#íca que Kant insistesobreo alcance reduzido da fundação transcendental, esboçando assim, mesmo antes do Apêndi-

ce, o tema cuja elaboraçãoconduzirá à Crítica da caca/dadade /a/gar. Cf., entre outros textos, o 26 da dedução transcendental (2' ed.), que sublinha que o entendimento puro não poderia fornecer leis senão à natureza enzgaa/ (áo?ma/fferspeclara),

e não aos fenómenosenquanto são "empiricamentedeterminados". As leis relati vas aos objetos particulares "não podem ser completamente derivadas das categorias, embora todas em seu conjunto estejam a elas submetidas" (E. Kant, Crilfqae de la falso/z piore, trad. Pléiade 1,p. 87PI. É no mesmo movimento que se mostra

que possuímos de fato um conhecimento a priori performativo e o quão exíguo é o campo operatório

deste.

obstante, julga tão irrefutável quanto os E/enzenfosde Euclides. E vale a pena voltar a esse autor, classificado entre os minores pela universi-

dade, mas não por Deleuze, que saúda seu "gênio filosófico" e Ihe dedica páginas particularmente esclarecedoras quanto à sua própria atitu-

de emrelaçãoa Kant. "Sou kantiano? Souantikantiano?", escreveMalmon ao final de seu ensaiode 1790, "isso cabe ao leitor decidir". Deleuze teria desaprovado essas linhas? Também ele não nutria hostilida-

de em relação a Kant; também ele sentia admiração pelo "envasamento", mesclada a uma imensa perplexidade diante do que "é construído em cima"12. Mas há mais do que uma similitude de reação. Lendo Malmon com Deleuze, percebemos que a vontade de dissipar as penum-

bras da Cr#ica conduz a questionar de novo a noção de representação. "0 que conta na representação", indica Deleuze ao comentar Kant, "é o prefixo: p'e-presentação implica uma retomada aviva do que

se apresenta, portanto uma atividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade próprias à sensibilidade como tal [...]. É a própria re-presentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta"iJ. Aqui tem origem a divisão kantiana: receptividade/espontaneidade. Ora, é ao valor dessadivisão que Marmon pretende voltar, e é nesse espírito que ele examina os pres-

supostos da Crítica. Kant admitia a representação como um gênero supremo cujo conteúdo devia permanecer indeterminado. E é precisamente isso que Reinhold queria retificar ao fazer do "princípio de representação" ou de consciência" o princfPiwm do sistema (no sentido forte de proposição originária, indedutível)i4. A consciência é a verdadeira razão última, o fundamento sobre o qual é construída a teoria da representação: a distinção e a relação da representação ao objeto e ao su-

jeito considerados como um fato que julgo universalmente válido, tal é a base de meu sistema." i2 Cf. G. Deleuze, in Abécédízlre, "Arte" jsobre Kant): "Há um envasamento

nele que me entusiasma;e o que é construído em cima não me diz nada is G. Deleuze, La pbf/osopbfe c7'íffqiíede Ka?zf, Paris, PUF, 1963, p. 15. \4 Re\íüioXd, Rapport de !a facalté de représentation à la Critique de !a raison

Fure, trad. F.-X. Chenet,Paria, Vrin, 1989, p. 147. Citado e comentadopor C. Piché (C. Piché, Kazzf ef ses l$1gones, Paria, Vrin, 1995, pp. 81 ss.).

A representação, tributária da relação sujeito/objeto e assimilatla à "consciência em geral", poderia de fato revelar um importante pressuposto do kantismo. Um pressuposto que, segundo Malmon, conduz diretamente a dificuldades insuperáveis, simplesmenteporque nos faz admitir um dado irredutível, uma coisa em si que, para Reinl)old, designaria o que o objeto possui de irrepresentável. Mas o retiianejamento operado por Reinhold não leva longe. A exemplo de Kant

c ainda mais manifestamente que ele, Reinhold eleva ao absoluto traços que são característicos apenas de uma faculdade de conhecer Ézmfla, i\ começar Justamente pela clivagem sensibilidade/intelecto15.Em troca,

se recusarmos centrar sobre nossa representação a análise do conhecer, e se concebermos a matéria do "dado" representadocomo uma soma -- imaginativa e inconsciente -- de elementos infinitesimais estabelecidospelo entendimento,não mais afirmaremos a presençade um "dado" praeler nos para um Faêr m irrecusável, como o faz notadamente Kant quando deve se defender de ser um idealista no senti-

do trivial. Longe de aceitar esse pretenso "fato", MaTmon vê nele o efeito de um eqwi'Foco,exatamente o mesmo do qual o «princípio de consciência" obtém seu crédito. Se tomarmos este por incontestável, é que nossa imaginação cometeuuma dupla sub-repção16.De um /ado, como ela não sintetiza

senão grosso modo e incompletamente, ela converte a soma das dife-

renciaisem um a/go cora de nós. l)e outro lado, arrastada por seu impulso, ela metamorfoseia essa "síntese completa", assim transportada para cora de /zós,em um objeto que declaramos irrepresentável. Desse modo é forjada sub-repticiamente a "coisa em si", fornecedor inteiramente inventado da "matéria" da intuição sensível: o sistema da represa/z/anãoestá bloqueado. Resulta dessa análise que Kant simplesmentedeixou-secair na armadilha. É a ignorância (na qual estamos naturalmente) da atividade imperfeita 4e nosso entendimento comparada à do entendimento infinito -- que o leva a descrever dessa maneira a finitude de nossa faculdadede conhecer. O índice da finitude verdadeira não é de maneira alguma o Gegen -- do Gegensfand --,

]5S. MaTmon, Estai swr /a pbf/osop#fefrazzscemdenfíz/e, trad. J.-B. Scherer

Paras,Vrin, 1989,p. 128.

16 M. Gueroult, l,a pbf/osopbfe fra/zscelzdenta/e de Sa/omo/z À4ailnon. Pa

ris, Alcan, 1929, pp. 66 ss.

mas antes o fato de que nossa imaginação forja um Gegensfand, e este nos apareceentão como um dado incontornável. E essa revolução maímoniana que faz Deleuze surpreender-se que

Kant tenha se julgado capaz de determinar o transcendental com tanta segurança. O que vale essa determinação se forem dissolvidos, como fez Maímon, os pressupostos do "dado" e da "doação"? '0 objeto físico e o espaço matemático remetem ambos a uma psicologia transcendental Idiferencial e genéti-

ca) da percepção.O espaço-tempodeixa de ser um dado puro para tornar-se o conjunto ou o negus das relações diferenciais no sujeito, e o próprio objeto deixa de ser um dado

empírico para tornar-seo produto dessas relaçõesna percepção consciente."

"'

A Cr#fcíz assegurava que nossa faculdade de pensar só produz conbecfmenfo com a condição de encontrar um dado. Ora, basta que a representação deixe de ser considerada como uma pedra angular para

que essa postulação suscite a desconfiança. Não nos figuramos mais "a consciência" como uma instância encarregada de comparar representações que Ihe pertenceriam, todas, de pleno direito. A consciência, na verdade, só emerge depois que a imaginação reuniu e/emenfos representativos homogêneos numa intuição. Ao fazer atuar a lei leibniziana de continuidade, MaTmon julgava perfeitamente concebível que

d entendimento produzisse elementosgenéticos que se fundem um no outro. "absolutamentecomo. num movimentoacelerado.a velocidade precedente não desaparece mas se junta sempre à seguinte", e isso até se atingir aquele limiar que chamamos "a consciência"18. Os ob-

)etos sensíveissão os produtos dessa soma das diferenciais (ou númenos). Estas são certamente como 0 relativamenteà intuição uma vez constituída Idy = 0, dz = Oj; mas suas relações, estas, não são como 0; "elas podem ser indicadas de maneira determinada nas intuições que delas provêm"19. Certamente, "o poder das intuições" não consegue i7 G. Deleuze, l,e Pli: Leíbniz ef le bczroqae, Paras, Minuit, 1988, p. 118. Cf.

S. MaTmon, Estai sur /a pbl/osopüfefransce/zdezfa/e,pp. 49-50. i8 G. Deleuze, Le P/ : l,eibfzlz ef /e baroque, p 1 17.

19S. Maimon, Essas sur /a pbflosopbie[ra/zscepzdepzra/e, cap. 1,pp. 50-1.

conceber a fluência dessas formações, pois ele é incapaz de proceder segundo uma regra (mesmo se pode ser s bmefido a uma regra), mas t) mesmo não se dá com o entendimentopuro, que, ao contrário, só constitui os objetos particulares fazendo efetuar-se uma regra genética. Lidamos portanto aqui com um princípio no sentido estrito, em t)utras palavras, com um princípio genético. E compreendemos taml)ém por que e de que maneira a operação efetuada por esse princípio escapa inevitavelmente a uma abordagem represeníafiz/a. Com efeito, os dois estratos que Malmon dissocia são igualmente tlttasafíf des, muito diferentes, do pensamento. Enquanto a consciência

comum pensa obletos/á formados na intuição e, por exemplo, se representa a linha como /á esfícada, extensivamentetraçada pézrfesextra parras, o pensamentopropriamente dito retraça a gênesedessas produções a partir de suas diferenciais. Ele remonta aquém da intuir ção já formada e dos fenómenos já conectados pelas categorias; e, fazendo isso, re-compreende estas como "a expressão das relações possíveis entre as idéias"20. Deleuze segue portanto Maímon quando declara que os conceitos sub-representativos que forma nada mais têm a ver com as categorias: estas não eram senão indicações sumárias, forjadas pela e para a representação, a qual usurpa o nome de pena.zlnefzfo. E verdade que a possibilidade mesma de tal atitude escapa totalmente

aos "representativos",

já que a "representação"

é precisa-

mente destinada a reslsf/r ao pensamento. Quer-se um exemplo da obstinação dessa resistência? Que se pense no juízo formulado por Kant

em 1790, quando está lendo o Essa/o de MaTmon. "No fundo", diz cle, "Malmon encarrega nosso entendimento 'de levar a uma consciên-

cia clara o diverso da intuição', que é obscurecido em razão dos 'limites de nossa natureza'". Ora, essaé uma tarefa inútil, pois uma análise da intuição jamais permitirá reencontrar "o conceito de um objeto em geral". Não há nenhum interesse em remontar, ou pretender re-

montar, mais acima dos objetos oferecidos na intuição, sem contar que tal demonstração genética ultrapassa de todo modo a capacidade de nossa faculdade de conhecer. O empreendimento de Malmon é guiado por uma vã curiosidade... Vale a pena citar estaslinhas. ;Quanto a saber de que maneira tal intuição sensível lo espaço c o tempos é a forma de nossa sensibilidade, ou 20M. Gueroult, l,a pbl/osopble transcendezzla/ede Sa/omon À4ailnon, p. 60

de que maneira funções do entendimento tais como as que a lógica desenvolve a partir dele são possíveis nelas mesmas,

é o que nos é absolutamente impossível de explicar então, porque, caso contrário, deveríamos ter ainda um outro tipo de intuição que a que nos é própria, e um outro entendimento ao qual poder comparar o nosso, um e outro apresentando. cada um e de forma determinada. as coisas em si: ora.

não podemos julgar qualquer entendimento a não ser pelo nosso entendimento, e também, por conseguinte, qualquer intuição a não ser pela nossa. Mas, afinal, não é em absoluto necessário responder a essa questão. Pois, se podemos provar que nosso conhecimento das coisas, que o conhecimento

mesmo da experiência só são possíveis sob essas condições, então não apenas todos os outros conceitos de coisas anão condicionadas dessa maneira) são vazios para nós e não podem servir ao menor conhecimento, mas também todos

os dafczdos sentidospara uma experiênciapossível, sem essas condições, não representariam jamais objetos [...]."2i É uma decisão de princípio que Kant exprime aqui: está entendido

que, sendo nossa faculdade de conhecer o que é, a análise transcendental que somos capazes de efetuar só pode concernir à objetividade constituída; portanto, jamais teremos de lidar senão com um diz/ergo tal que a unidade sintéticase aproprie dele integralmente.Com essa garantia, não se pode senão recusar o pro)eto de Malmon. Não há jliteralmente) lagar onde buscar uma resposta às questões que ele coloca:

isso seria, absurdamente, sair do único terreno de investigação de que dispomos. Como se poderia mostrar, por exemplo, que a coisa em si resulta de uma ilusão? Para tanto seria preciso adotar, em relação à natu-

reza de nosso conhecimento, um distanciamento que nada autorizazZ. zi E. Kant, "Carta a Marcus Herz", 18/05/1789,trad. francesaJ. Rivelaygue,

Pléiade11,pp. 840-1.

22Um distanciamentono qual o próprio Kant acabarápor se aventurar nos extraordinários 76 e 77 da Crãica da ánc /dadode / /gar. Ver sobre esseponto a Apresentação do assai por J.-B. Scherer: "A AKseln.zndersefzang[discussão] de MaTmon com a Cr íca da razão pz/ra não pode realmente se formular senão nos termos da meditação que Kant inicia na Crft/ca da Áacu/dczdede /u/gar. MaTmon se antecipa, por assim dizer, ao pensamento de Kant, percebendo de saída e com

uma segurança admirável o próprio nó da filosofia crítica [-.] o prob]ema da

( ) que permite, em suma, opor a MaTmon o inadmissível de sua exigência

são as condiçõesàs quais deve seconformar o "campo transcendental" para ser simplesmenteconcebível. Mas concebível pof' quem?, llcrgunta Marmon. Pelo "sujeito finito", ao qual se atribui assim o tlireito de julgar em última instância sobre a economia do conhecer. ora, por que haveríamos de tomar como infalível esse sujeito "represa'ntativo" finito? Por que o filósofo seria obrigado a assumir os dogillas da "finitude positiva", a inclinar-se diante dos "fatos" pretensa-

menteintransgressíveisque Ihe são assim designados? É por tomar esse partido que Kant se contenta com muito pouco, afinal, para afirmar cineestabeleceu a objetividade das sínteses. Assim, quando o matemá-

tico (kantiano) mostra por consf7'liçãodo conceito que é impossível pensar esse ser sem essíz propriedade, ele se satisfaz, pensando bem, com uma co/zsfafczçãoe deixa escapar a necessidadeintrínseca da relação. Não é que Maímon queira voltar ao "dogmatismo", como afirmam os kantianos, para passar mais facilmente por cima de suas objeçõesz's.Ele pensa apenas que a racionalidade própria ao sintéticoa /)riori está longe de ter sido determinada com suficiente cuidado na (:r#fca, e que sua validade objetiva não foi verdadeiramente legitimatla. Em suma, Hume não foi ainda reduzido ao silêncio. Não é a nostalgia do "dogmatismo" pré-kantiano que anima Malmon, mas a preocupação de estar rigorosamentede acordo com n exigência de legitimação. Rigorosamente, isto é, de modo que o princí-

pio esteja "situado exatamente no nível" do que deve ser fundado, e que se proíba, por conseguinte, o recurso a critérios exZrz'nsecos-- como

n construção em matemática, ou ainda a referência a este elemento contingente que é a exPeriê zcia posshe/. É o que sublinha Gueroult ao comentar um dos exemplos favoritos de Malmon -- que Deleuze, por sua vez, analisará24: "A linha reta é o caminho mais curto de um ponto a outro"

"A construção nos mostra que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos, não o que faz que ela seja mediação do universal e do particular" (S. Maímon, Essa/ s r /zpbf/osopbfe fralzsce/zdenrcz/e, Apresentação,

p. 20).

2aDeleuze se insurge contra essa acusação feita a MaTmon: Le p/i. Lefbniz ef /e baroqwe, p. 118; Di/fé7'ente ef 7'épéfifion,p. 249. 24G. Deleuze, Df/7ére/zceef réPéffffolz,p. 226.

o caminho mais curto. É preciso perguntar-se o que é isso que faz dela o caminho mais curto, como se chega a essa proposição, e de onde ela tira sua necessidadeintrínseca".25 No que concerne às proposições matemáticas, o fundamento a priori da síntese será o princípio de determinabilidade: "não há determi-

nação sem determinável, e não reciprocamente". Princípio verdadeiramente genético, acrescenta Gueroult, "já que ele nos permite apreen-

der a condição, e mesmo a razão da construção"z6. Se Deleuze julga adequado, finalmente, reempregar o conceito de f a zsce/zde?zfa/, o impulso maTmonianotem, por certo, muito a ver com isso. Eis aí uma investigação, de marca kantiana, que pretende menos como/alar a Cr#iccz (o que poderia em parte explicar o tom muito cortês da "resposta" de Kant) do que se mostrar, simplesmente, mais exigente

quanto aos operadores utilizados jas "condições de possibilidade"l e quanto às interdições "finitistas" com as quais o mestre se contentava sujeito a todos os riscos. MaTmon, do mesmo modo, também não se vangloriava de "subverter": ele começava, talvez, a "perverter' Quando Deleuze atribui à "filosofia transcendental" ter descoberto "a produção genéticado sentido"27, é o kantismo remodelado nesseespírito que ele tem em vista -- ou remanejado, se quiserem. Mas se trata de um "remajenamento fundamental"28, nem que seja porque nos livra das idéias antropológicas preconcebidas que parasitavam a Cr#lca e, em particular, da dualidade, inaugural, do conceito e da intuição. De fato, o que resta do "kantismo" que nos é familiar, uma vez que essa grande divisão é reduzida a uma aparência, que seria devida ao estilo próprio de nossa "finitude"29? Esse "remanejamento" é suficien-

25M. Gueroult, l.a pbí/osop#le franscendefzfa/ede Sa/Of7zonMailnon, p 39;

S. Maimon, Estai éter!a pbilosopbietranscendentale,pp. 67 e 69.

zóM. Gueroult, La pbi/osop#letrapzsce?rde/zfa/e de Sa/o»zonÀfa2}no?z,p. 44. 27G. Deleuze, Logfque du sons, p- 128. 28G. Deleuze, Di/7érence ef réPéffflolz, p. 224. 29 "Kant afirma que a sensibilidade e o entendimento são dois poderes totalmente distintos. Sustento, ao contrário, que, embora nos seja preciso concebê-los como dois poderes distintos, um ser pensante infinito deve pensa-los como uma mesma e única faculdadelKra#l , e que a sensibilidade é em nós um entendimento incompleto [-.]"(S. MaTmon, Essczisar la pbí/osopbie transcende/zfa/e,trad. J.-B. Scherer, p. 128).

te, por certo, para tornar irreconhecível o espírito de uma obra acima de tudo preocupada em identificar clivagens e traçar fronteiras. Entre a paixão kantiana da separação e a ambição genética, a divergência é manifesta. É tão manifesta que Malmon nos obriga a abordar de frente

a questão seguinte,que a Cr#lca mais eludedo que resolve: "Com efeito, como pode o entendimento submeter a seu poder (a suas regras) o que não está em seu poder (os objetos dados)? Se seguimos o sistema de Kant, segundo o qual sensibilidade e entendimento são duas fontes inteiramente distintas de nosso conhecimento, a questão, como já mostrei, é insolúvel".30

E MaTmon consegue põr os kantianos em dificuldade, toda vez que os intima a encontrar uma harmonia que não seja "exterior" entre termos afirmados como heterogêneos: é como se o "Deus ex machina

se vingasse de um sistema que não cessa de descobri-lo nos outros, quando teria necessidade dele antes de todos... O quanto Deleuze é sensível a esse questionamento da [(épica kantiana percebe-se, para dar

apenas um exemplo, na crítica a que ele submete o esquematismo das categorias. Ele concorda que um conceito em geral só pode ser especificado e dividido por "agentes de determinação" que exercen] aquela

"arte escondida nas profundezas da alma". "Sem eles, nos deveríamos sempre na questão que Aristóteles levantava contra a divisão platónica: e de onde vêm as metades[...]?"31 Mas e]eacrescenta: "SÓ que o esquema lkantiano) não justifica essa potência com a qma/ele age". É que o dispositivo do condicionamento Ihe proíbe desempenhar um papel atuante de prl/zcz@io."Exterior ao conceito, no entanto, não se percebe como ele pode garantir a harmonia do entendimento e da sen-

sibilidade, pois não tem ele mesmo um meio de garantir sua própria harmonia com o conceito do entendimento,sem apelo a um milagre."JZ Essa leitura é exemplar de um comentário, como sempre, tão

3QS. M.âimon, Essas sur !a pbiEosopbietranscendetitale,pp. 6S-6 si G. Deleuze, DI/7érenceef réPélitfofz, p. 281. 3z Idem, ibid.

rigoroso quanto desconcertante33.Eis que esteprecursor dos sistemas pós-kantianos, Salomon MaTmon, o primeiro a questionar a duvidosa humildade da "finitude" kantiana, é agora requisitado para uma tarefa bastante inesperada: abrir os arcanos do "sub-representativo" introduzindo "o inconscientediferencial", e mostrar, ao mesmo tem po, que "a instânciatranscendental" não devia fatalmenteser "reduzida a um simples condicionamento". Aprendamos a dissociar a investigação transcendental dos preconceitos que, mesmo em Kant lso bretudo em Kant), bloqueavam seu curso e a impediam de ser uma gênese. Leiamos Malmon. "0 gênio de Malmon é mostrar o quanto o ponto de vista do condicionamentoé insuficientepara uma filoso fia transcendental [...]."34 Perguntemo-nos agora, sempre guiados pela investigação de Deleuze, por que Kant confiava desse modo na figura do condfcionamenfo, e voltemos às acusações que os kantianos dirigem ao "neodog-

mático" Malmon. Ele restaurou,dizem eles,a dualidadedas condições de conhecimento e das condições de existência. E é verdade que o inconsciente maTmonianoarruína a assimilação -- solenementeproclamada na Crüíca -- das condições da experfêncfa possível e das con dições dos oblíefosda experiência. Mas o que há de tão repreensível nisso, pergunta Deleuze35?Que o "objeto" não sela mais algo inteiramente reconhecível e identificável pelo entendimento, eis aí, muito pelo contrário, uma conquista da gênesediferencial. O empreendimento

de Malmon deve portanto nos incitar a reexaminar essa pedra angular do kantismo que é a assimilação das condições das duas séries, isto é, o princípio supremo dos juízos sintéticos: "Todo objeto é submetido às condições necessárias da experiência possível"36. Tese seguramente central da primeira C7'#íca: graças a ela é legitimado o "fato" jcontestado enquanto tal por MaTmon) do "juízo de experiência", e 33Percebe-se ainda melhor ao mesmo tempo a audácia e o extremo rigor dessa leitura de MaTmon por Deleuze quando se lê con)untamente o belo estudo de Manual

Gueroult ILz pbf/osopbie fríz/zscendenfaZe de Sa/omon M.zíhonl, ao qual Deleuze se refere com frequência, e que é conduzido, não é preciso dizer, dentro de outro espírito.

34G. Deleuze, Di/7érenceef réPéfifion, p. 224. 35 Idem, p. 229.

3ó E. Kant, Crfrlgzíe de la rafsolz Fure, Pléiade 1, p. 898.

nos é dada uma garantia contra toda falha nesse encadeamento sistemático das percepções segundo regras, que constitui a experiê/zela

possüe/. Nos é dada a certezade que o diversocom que lidamossó pode depender da unidade da apercepção, de que a "objetividade" é talhada à medida de nosso saber. Não fosse assim, de que modo a palavra mesma co becfme/zfo conservaria um sentido37?

Vale dizer que seria inútil pretender legitimar o conhecimento a prforf se não supuséssemos uma serre/bzzzzçamz'Mimaentre a natureza

do objeto e a disposição do conhecer. Eis por que Kant observa, na analogia copernicana do segundo Prefácio, que o novo ajuste proposto (e imitado de Copérnico) tem já a vantagem, desde o início, de tornar pelo menos concebível o conhecimento a Pr/07'í: "[...] se, ao contrário, o objeto (como objeto dos sentidos) se regula pela natureza de nossa faculdade de intuição, então posso muito bem me representar a possibilidade (de um conhecimento a priori) [...]"38. Que se conceda uma concordância de funcionamento entre objeto e conhecer, condicionado e condição, e se compreenderá pelo menos que não há nada de arbitrário em interrogar-se sobre o mecanismo do conhecimento .z prforí. Em troca, o inconscientediferencialde MaTmon, justamente porque afasta essa cláusula de serre/bcz/zça,parece de fato nos deixar sem recursos para efetuar uma fundação transcendental. Todavia, tenhamoscuidado, aqui, com a palavra "semelhança O "ajuste" (ricófe sicb) de que fala Kant não evoca certamente uma semelhança como a da cópia ao modelo, mas uma afinidade de funcionamento dos dois lados, de modo que a representação se achará sempre com certeza... "entre amigos". Deleuzechama a atençãovárias vezespara essasignificação mais ampla da "semelhança"39 especialmente quando sublinha a originalidade da gênesedo percebido segundo 37Se a unidade da síntese com base em conceitos empíricos não se fundasse sobre um princípio transcendental da unidade, "seria possível que uma quantidade de fenómenos enchesse nossa alma sem que disso jamais pudesse resultar alga ma experiência. Mas então desapareceria também qualquer relação do conhecimento a objetos, já que a ligação com base em leis universais e necessárias Ihe fa-

ria falta [-.]" IE. Kant, Cr]ffque de /a raisonFure, P]éiade], p. 1414). 38E. Kant, Críffq e de la ralson pzrre, segundo Prefácio, p. 470. s9 Reportar-se à análise da ilusão que provém da subordinação da diferen-

ça à semelhança,e que não caracteriza mais o "senso comum", mas o "bom senso" (G. Deleuze, Df/Hyrenceef répéfifion, p. 342).

Leibniz. Mesmo se as qualidades sensíveisnão são mais para Leibniz, como para Descartes, simples signos arbitrários, não se deve tampouco pensar que haveria nelas como que um núcleo de semelhança com o ob/efo extenso. É a outra coisa que se assemelham uma cor ou uma dor: à matéria na extensão, a vibrações no movimento. Mas verificase sobretudo que o sentido da serre/banca, nesse lugar, dá um giro. "É sobretudo o sentido da semelhança que muda: a se-

melhança se julga pelo semelhante, não pelo semelhado. O fatode o percebido se assemelhar a uma matéria faz que a matéria seja necessariamente produzida conforme essa relação, e não que essa relação seja conforme um modelo pree-

xistente. Ou melhor, é a relação de semelhança, é o semelhante que é, ele mesmo, modelo, e que impõe à maneira de ser aquilo a que ele se assemelha."40 É exatamente aqui, graças a essa mutação de sentido da "semelhança", que tem início a idéia de condiclozzame/zfo ransce zde zza/que

a Cr#ica levará a seu pleno desdobramento. E essa conivência entre a fundação segundo o modo do condicionamento e a prioridade dada à exigência de "semelhança" é, segundo Deleuze, um traço decisivo para

a marcaçãodo "transcendental",do qual Kant adquiriu os direitos autorais. O privilégio dado à fundação-condicionamento vem do fato de que esta preserva infalivelmente a homogeneidade mínima do fundamento e do fundado. Ao contrário, MaTmon, pelo fato de abandonar o princípio supremo dos juízos sintéticos, abre o caminho a um empreendimento como/efamenfe dfÁe7'entede fundação, tal que as sínteses transcendentais não serão mais decíz/Gajas sobre as sínteses psi-

cológicas, não havendo mais, portanto, o risco de fazer passar por Óa/zdamenfo um híbrido de empírico e de transcendental41.

Notemos que não é absolutamentemais o caso, em tal abordagem, de censurar o "idealismo" ou o "intelectualismo" de Kart, mas apenas de determinar o mais exaustivamente possível a opção que ele /cíbízula captado sobre a operação de fundação. Assim, de nada serviria 40G. Deleuze, l,e p/l. Leibnlz el /e baroqife, p. 128.

41Em seu De/faze. Ulzé'pbí/osopb/ede /'éz/éneme7zf, F. Zoura bichvili mos-

tra a importância do doca/qae, como conceito deleuziano que será tematizado em

Mi! platâs.

colocar-se na posição de contes/apor da argumentação ou da tesekantiana, pois se trata apenas de mostrar o anca/bíme/zfoa que Kant submeteu

alguns conceitos-chavecujo sentido ele ia impor por muito tempo. E, para essefim, mais vale chamar a atenção para os microprocedimentos que Ihe serviram para fazer da transcrição representativa do transcen-

dental a forma canónica deste42."Re-compreender" Kant, sob esse ângulo, consistirá primeiro em auscultar seu texto de modo a não deixar passar nenhuma das "evidências" que consagram a prioridade dada permanentemente, e sub-repticiamente, à exigência de semelhança.

Ora, é extremamente difícil tirar do esconderijo todas as formas que esse primado sorrateiro da semelhançapode assumir. Pode-se ter uma idéia dessa dificuldade seguindo Deleuze nos verdadeiros "exercícios práticos" que Diferença e repetiçãopropõe, retraçando o declínio muito lento do modelo da semelhança em morfogênese e os golpes desferidos contra este pela leitura diferencial, em termos de intensidade43 'A espécie não se assume/bczàs relações diferenciais que

nela se atualizam; as partes orgânicas zzãose assume/bam aos pontos notáveis que correspondem a essas relações. A espécie e as partes não se assume/óam às intensidades que as determinam."++

Em vez de seguir a diferenciação especz'Xlca e a diferenciação em partes orgá/zlcas,opera-se agora num campo intensivo no qual é a induz,idwação que comanda o dinamismo organizador. Mas com isso a partida está ganha? Estaremos doravante ao abrigo do sortilégio da semelhança? Ainda não. 42Michel Foucault, em seu artigo "Theatrum Philosophicum", sublinha o caráter literalmente não sabe/ersit/oda leitura dos autores que é característica de

Deleuze: "Subverter o platonismo é toma-lo do alto (distânciavertical da ironias e recupera-lo em sua origem. Perverter o platonismo é segui-lo até em seu extre-

mo detalhe, [-.] é descobrir [-.] o descentramentoque ele operou para tornar a

centrar-se em torno do Modelo, da Idéia e do Mesmo; é descentrar-se em relação a ele para jogar (como em toda perversão) com as superfícies ao lado. A ironia se e[eva e subverte; o humor se deixa cair e perverte [-.]" IM. Foucau]t, Dias ef écrifs,

Paris, Gallimard, 1994, t. 11,p. 781.

43G. Deleuze,Di/7ére/zce ef réPéfifiozz, p. 319 ss. 44Idem, p. 323. Grifo nosso.

"[O campo de individuação assim compreendidos parece ser o mesmo para uma espécie dada, e variar em intensidade de uma espécie a outra. Ele parece depender, portan-

to, da espécie e da especificação, e nos remeter também a diferenças prodz/zldas pe/o indiuz'duo, não a diferenças fndiuidaais. "4s Um passo a mais é necessário para romper a grade que assegura sempre a preeminência da semelhança: pensar o campo de individuação

de tal modo que nada mais suscite, nele, a formação das idéias jespécies, gêneros, qualidades, extensões) ou repartições que salvaguardariam a prioridade da semelhança.A palavra "diferenciação" [no sentido de cálculo da diferencial de uma função] designa precisamente uma

operação criadora de diferençastais que não são mais transcritíveis nas imagens da representação. A presença de dfÁere/zcfaçõesé perfeitamente

conciliável com um estado que, representativamente falando, é de indiferenciação. É que então se conseguiu achar um ponto de vista compleramenfe dfáerenredaquele no qual a representação nos confinava. Mas como ter acesso a esse ponto de vista? Ou ainda, que espécie de radioscopia nos permitirá dissociar um conceito de suas aderências representativas?

Na falta, aqui, de um tratado do método, só podemos dar uma outra amostra desse procedimento deleuzeano: ele terá a vantagem de nos reconduzir diretamenteao "transcendental" kantiano. No campo de individuação assim modificado, não há mais senão diferenças individuais Inele, o princípio dos indiscerníveis é soberanos ou, ainda, "relações diferenciais" expostas por intensidades. Como conceber essas "relações diferenciais"?

Uma página -- inteiramente notável --

da Dobra nos parece bastanteesclarecedora a esse respeito: aquela em que Deleuze se arrisca a tomar o sentido diametralmente oposto aos comentadores que assinalaram uma incompatibilidade profunda entre o prlfzc@iodos indfscer/züefsja diferençaentre dois indivíduos deve ser interna e irredutível) e a /el de comi//z Idade (essa diferença deve desaparecere tender a 0). Essa pseudocontradição, responde Deveu ze, dwe-se apenas ao uso representativo que se faz dos conceitos. Em realidade, a continuidade leibniziana não faz desaparecer a diferença, pelo menos qualquer "diferença"; "[...] o que desaparece é apenas todo 4sIde/n, p. 324. Grifo nosso.

valor designáveldos termos de uma relação, em proveito de sua razão interna que constitui precisamente a diferença [...] a diferença não

está mais entre o movimentoe o repouso, mas na pura variabilidade da velocidade"46. Em suma, o que a continuidade faz desaparecer é a diferença tal como é normatizada pelos amigos da semelhança je não

tal como a concebe Leibniz, no presentecaso): "extrínseca e sensível"47 O que ela deixa subsistir, em troca, é a "diferença intrínseca, inteligível", aquela que não é necessariamentesinalizada por uma demarcação intuitiva -- aquela, precisamente, que está em jogo no princípio dos indiscerníveis. Mas o "representativo" não pensa em dissociar esses

planos: em regime de representação, está entendido que não poderia haver "diferença" senão articulável à semelhançae, por conseguinte, sempre figurável na intuição. E dentro desse espírito que Kant censura a Leibniz ter estendido ao sensível a jurisdição do princípio dos indiscerníveis, quando este só é (só seria) válido para as coisas em si. Ao que um leibniziano poderia responder que é precisamente a clíz/agem instaurada entre sensível e inteligível que engendra essa "contradição" entre continuidade e indiscerníveis. Desta vez é Leibniz que nos

inclina a sacudir o jugo da representaçãoe a nos evadir do "pensamento único" a que ela nos obriga. Suprimamos o corte kantiano entre

"os dois mundos": é ele que dava plena soberania ao pensamento orientado pela exigência de semelhança, como o mostra, )ustamente, a questão do estatuto dos indiscerníveis. Cessemos de "imaginar" uma

diferença que só tem sentido em relação a um diverso composto de elementosseparados. Teremos começado, então, a fazer a distinção 4óG. Deleuze, l,e pli. Leibnfz el /e baroqzíe, p. 88.

47Essa opção é manifestaem Kant -- e é ela, em particular, que comanda sua interpretação do "paradoxo dos objetos simétricos" e o impede de reconhecer sua origem intensiva. "Nos corpos enantiomorfos, Kant reconhecia exatamente uma álacre zça fn er a; mas, não sendo conceptual, ela só podia, segundo ele, se referir a uma re/anão exterior com a extensão inteira enquanto grandeza extensiva." Mas o espaço, como intuição pura, será realmente uma grandeza extensiva? ;Kart define todas as intuições como quantidades extensivas, isto é, de modo que a representação das partes torne possível e preceda necessariamentea representação do todo. Mas o espaço e o tempo não se apresentam como eles são represen' fados. Ao contrário, é a apresentação do todo que funda a possibilidade das partes, estas não sendo senão virtuais e se atualizando apenas nos valores determina-

dos da intuição empírica. O que é extensivoé a intuição empírica" (G. Deleuze,

Différenceet répétitton,p. 298\.

entre a investigação transcendental e a "imagem" com a qual a Cr#iccza confundia -- e suspeitaremos que a "revolução copernicana" não

tinha nada de um sismo, já que ela consolidava como nunca a prioridade dada à exigência de semelhança, a ponto de tornar inconcebível um pensamento que recusasse essa obediência. Sz/bz/ersãoda Cr/fica, então? O julgamento seria sumário, pois, se a abordagem deleuzeana é iconoclasta, é antes de tudo em relação a uma vulgata "kantiana" que assimila muito naturalmente o transcendental a um sistema de aferrolhamento, como se a vocação inques-

tionável do que deveria ser uma livre investigação sobre a formação do sentido fossegarantir a infalibilidade das regras a que estão submetidas nossas sínteses empíricas (já que são essas regras mesmas que são constitutivas do "fenómeno"). Com a "imagem do transcendental",

de fato, não há mais perigo de que sejam postas em xeque as constâncias com as quais se habituou nossa imaginaçãoempírica: como a legislação do fenómeno é feita para responder a essa demanda securitária,

somos convencidos de que "o cinábrio ora vermelho, ora escuro, ora pesado" é uma suPPosillo abs/ rdcz48.Lineu não precisava mais temer que vegetais e minerais pudessem em algum ponto se furtar à classificação: o princípio transcendental da faculdade de julgar garante que a natureza, de cima a baixo, está votada "à constituição de um sistema lógico de sua diversidade", e que nenhumgênio malignofrustrará essa siitemática49. Diante dessa tranquila certeza, vale a pena levantar a questão: não nos teriam enganado?Não terá havido substituição de conceitos? Trata-se do transcendental ou de sua imagem? Se houve "desnaturação", possuímos agora dois pontos de referência para julga-lo: ll o axioma sub-reptício da semelhança da condição ao condicionado; 2) a aceitação, que é uma seqüela disso, da figura do condicionamento (com seu corolário: a recusa da gênese). É a essesdois momentosque devemos nos apegar -- não à "finitude ou ao "sujeito" ou a qualquer outro dos macroconceitos sobre os quais o comentário é tentado a operar em primeiro lugar. Deleuze prefere remontar às "escolhas" que impuseram ao autor marcar originalmente essa espécie de conceitos: assim, é a análise do preconceito da seme-

48Cf. G. Deleuze e F. Guattari, Qzí'esl-ce q e /a pbi/osopbie?, p. 189.

49E. Kant, Critique de /a Áac /té c/e/wger, primeira Introdução, 5, trad.

Delamarre,Pléiade11,pp. 863-70.

lhança que deverá explicar o amálgama entre investigação transcen dental e filosofia da consciência. "Não se pode conceber a condição à imagem do condicionado; purgar o campo transcendentalde foda semerbzz/zçapermanece a tarefa de uma filosofia que não quer cair

nas armadilhas da consciência ou do cogito."50

Contudo, deve-se realmente falar de preconceito ? A palavra pode

sugerir que o autor simplesmentecareceu de vigilância crítica sobre esse ou aquele ponto, e tomar assim como um "erro" pontual o que é o efeitoda pertença à representação, a qual é compreendida por Deleuze, quando descrevesua formação, como um sistemacuja própria coerência destina ao fracasso qualquer programa de fundação. Para nos convencermos disso, basta tomar, no labirinto da Representação, um dos caminhos que conduzem a essa contratação de "fundação" quc é o "transcendental" kantiano.

Um dos traços dominantes da representação,como se sabe, é o total desconhecimentodo que seja o problemático: cego à diferença de natureza entre o problemático e o proposicional, o "representativo" só pode conceber o que ele chama "problema" a partir de sua resolubilidade, como se o rema problemático não fosse mais que a sombra que a fase (proposicionall já projeta, teseque em breve Ihe dará " resposta"51 . Na crítica deleuzeana, essa Êaff/fiação do proa/emóffco

operada pela representação é uma importante encruzilhada onde têm origem três temas, que se acham assim em ressonância: 1) A heterogeneidade,repetimos, do problemático e do proposicional: "0 problema jamais se assemelhaàs proposições que ele sub-

50G. Deleuze,Logíque du sons, p. 149. Grifos nossos. 51Sobre o papel central dessa futilização do problemático na crítica de-

leuzeana da filosofia, cf. G. Deleuze, DI/Hérelzceef réPéfifion, pp. 254-5. "Não é ilegítimo resumir o movimento da filosofia... de Platão a Fichte ou a Hegel passando por Descarnes" como uma passagem do hipotético ao apodítico. "Se disser-

mos: o movimento não vai do hipotético ao apodítico, mas do problemático à

questão, a diferença parece a princípio ser muito pequena [-.] No entanto, há um abismo entre essas fórmulas." Cf. as páginas de F. Zourabichvili sobre o proa/emáfico em Deleuze (F. Zourabichvili, De/faze. Urze pb{/osopbfe de J'ét/élzemenf,

Paria, PUF, 1994, pp. 25-33, 48-60).

fume, nem às relações que engendra na proposição: ele /zãoé proposicional, embora não exista fora das proposições que o exprimem"52 2) A rejeição de um método genético: se, desde o início, desnatura-

se o problema pensando-o à imagem das proposições que ele subsume, essa decisão, obviamente, torna inútil toda curiosidade relativa à maneira como ele engendrada essas proposições por um trabalho sobre si mesmo. A dedução kantiana não é de modo algum uma derivação. 3) A validade de princípio de uma semelhança entre o condicionado e a condição -- que está implicada na expressão mesma "condição de possibilidade". Pensa-seo problema como "a forma de possibilidade das proposições correspondentes". Ora, "enquanto se define o

problema por sua teso/ubf/idade, confunde-se o sentido e a significação, e não se concebe a condição senão à imagem do condicionado"53

Haveria, contudo, razão em falar de um "fracasso" da fundação em regime representativo? Nada parece nos dar ainda esse direito: apenas confrontamos até aqui os pressupostos de Kant aos problemas e aos conceitos que Deleuzeconstrói, deixando um e outro no isolamento que convém aos pensadores.

"Quando um filósofocritica um outro, é a partir de problemas e num plano que não eram os do outro, e que

fazem fundir os antigos conceitos como se pode fundir um canhão para dele obter novas armas. Não se está jamais no mesmo plano."54

Todavia, a refutação "diabética" permanecepossível entre esses não-beligerantes de princípio. E, nesse momento, a l,óglca do senado

fornece uma amostra que nos contentaremos, na falta de tempo, em sobrevoar. A metodologia de Deleuze Ihe proíbe tomar uma posição de contestador ou de cba//enter em relação à Cr#ica, mas não apontar os sinais de que houve de fato "traição" do transcendental.Dar "a forma pessoal de um Eu, de uma unidade sintética de apercepção" no campo transcendentalé restringir arbitrariamenteeste, como havia entrevisto Sartre na Transcendência do ego, mas sem chegar a aban52G. Deleuze, l.oglque d# sons, p. 147.

ss Idem, ibid. 54G. Deleuze e F. Guattari, Qu'esf-ce qKe /a p#f/osopbfe?, p. 32-3.

donar "a forma de uma consciência"55. Ora, enquanto não tivermos dado esse passo, permanecemos necessariamentepresos na armadilha da semelhançaentre o fundamento e o fundado. E essa armadilha está montada de duas formas -- segundo se admira uma génese, da qual a representação dá um jeito de conservar o controle (Husserl), ou segundo se recuse a génese para pâr no lugar o sistema do condicionamen-

to (Kant contra MaTmon). Detenhamo-nos neste segundo caso c no fracasso que Ihe parece pesar sob a forma de um cácu/o onde cai a argumentação. Por um lado, as categorias só são reconhecíveis como corcel\os a priori se a e)cperiê*'cia possível (em sua contingência) é pres-

snPosfcz-- e, nessa medida, elas só têm necessidadehipotética. Por outro lado, os princípios do entendimento, ainda que devam ser provados, não merecem menos o nome de "princípios", já que e/es lor/zampossüel essa /arma da eicperfêncza(sem a presençada qual não poderiam ser autenticados)56. Nessa pressuposição recíproca do fundamento e do fundado remetidos sem fim um ao outro, não está manifesto o bloqueio ao transcendental que a representação implica? 'Não é esse o caráter mais geral do fundamento, que esse círculo que ele organiza seja também o círculo vicioso da prol/a, em que a representação deve provar aquilo que a prova, assim como ainda em Kant a possibilidadeda experiência serve de prova à sua própria prova?")' Não é o lugar de entrarmos na análise que Deleuze faz da noção de "fundação" e na crítica que ele propõe da figura bypof#esís/ afzupotbefon. Esse tema, aqui, só nos interessa enquanto refutativo, e porque permite evocar a última linha possível de resistência que pode ainda

oferecer o pensamento representativo, mesmo depois que esse argumento o tenha perturbado. Suponhamos que haja -- excepcionalmente !

situação de "diálogo". Mesmo que o "representativo" tivesse sido abalado pelas análises sucessivas que evocamos e que submetem a uma nova luz SHa concepção do "transcendental",

ele ainda seria capaz de

55G. Deleuze, l,ogiqzfe d seus, p. 128. do

5óCf. E. Kant, Cririq e de /arafsonFure, "Teoria transcendentaldo Méto Pléiade 1, pp. 1315-6. 57G. Deleuze, Di/7érence ef répéfffíom,p. 351.

recusar entregar as armas. A exemplo de Kant em face de Maímon, ele tem ainda uma instância em reserva: a que consiste em empurrar seu adversário a uma posição "dogmática" ou, mais exatamente,em coloca-lo diante de uma alternativa que será, ele imagina, ruinosa para ele. Entre o discurso das condições de possibilidade e o retorno às essências e aos decretos de Deus, em suma, entre o "transcendental" e a metafísica da escola, não é preciso escolher? É um oz{ é outro... Mas essa escolha é realmente inelutável? Deleuze pensa que não.

Ou melhor, pensa que ela só parece inelutável aos olhos dos que confiam numa alternativa da qual tanto a "filosofia transcendental" como a metafísica garantem que não há meio de escapar. Qual é, portanto, essa escolha "decisiva"? "[...] ou um fundo indiferenciado, sem-fundo, não-ser informe -- ou um Ser soberanamente individuado, uma For-

ma fortemente personalizada. Fora desse Ser ou dessa Forma, não tereis senão o caos [...]"58

A advertência de Deleuze é aqui particularmente insistente:quem não contestar os termos dessa intimação terá seu destino inteiramente traçado. Uma vez que a aceitou, é pelo segundo termo que deverá optar (a menos que queira se entregar a uma provocação niilista), e assim não Ihe restará senão a escolha entre o indivíduo supremo completamentedeterminado (o Deus da metafísica tal como o representa, com razão, o Ideal transcendentall e a instância "transcendental" constitutiva da possibilidade da experiência, que terá sempre definitivamen-

te, quaisquer que sejam as precauçõestomadas, a forma de um Ego.

Ou um indivíduo"coextensivoao ser", ou um Eu "coexrensivoà representação"''.

Sendo o desafio desseporte, vale a pena examinar cuidadosamente

a pertinênciadessa alternativa. Corramos o risco da ênfasepara sermos breves: seria tão exagerado dizer que a obra de Deleuze é destinada a tornar essa alternativa inaceitável? Não é esse precisamente o objeto de sua investigação?

58G. Deleuze, Log/qz/ed# sefzs,p. 129. Sobre as formas diversas de "luta contra

o caos", cf. G. Deleuzee F. Guattari, Qa'esf-ce qiíe /a pb//osopb]e?,pp. ] 89 96.

59G. Deleuze,Logiqz/ed seis, p. 129.

;Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e pré-individual, que não se assemelha aos campos empíricos correspondentes e que não se confunde, porém, com uma profundidade indiferenciada."ÓO Agarrar-se a um "campo transcendental" individual ou pessoal é a/erro//?czrarbitrariamente sob pretexto de /egillmar. E só se adere a esse partido porque se respondeu sub-repticiamente pela afirmativa à questãocolocada por Deleuze Imãs retoricamente): " [um campo transcendental] nem individual nem pessoal... Isso significa que ele é um sem-fundo sem figura nem diferença, abismo esquizofrênico?". Nossos hábitos representativosnos levam a responder que sim. E desses hábitos foram ainda vítimas aqueles mesmos que fizeram ouvir "o bramido do sem-fundo", que remontaram até "o abismo indiferenciado", mas apresentando-o como impessoal e alheio à individuação, e tornando-se assim "cúmplices objetivos" dos que estigmatizavam seu "irracionalismo" Italvez com a secreta satisfação de reencontrar nele o perfeito negativo de seu "racionalismo")ÓI. Se nos refugiámos no transcendentalde tipo kantiano ou se não conseguimosnos evadir dele, é porque "não saímos da alternativa imposta tanto pela filosofia transcendental como pela metafísica: fora da pessoa ou do indivíduo, não d[sfingwirefs nada [...]"'z

Eis aí, portanto, um bom testepara medir a obediênciaà repre-

sentação: ser capaz de pensar a sl/zgularida e fora dos modelos do Ego

ou do Eu e, consequentemente,ser convencido de que para além do Ego ou do Eu começa o caos, a desordem absoluta. Muitos se satisfazem com essa posição. E, para esses, é um pouco como sc Bergson jamais tivesse feito se dissolver "a idéia de desordem", ou ainda como

se Nietzsche não tivesse acabado por exigir, contra Schopenhauer, pensar a individuação separando-a do princípio apolíneo que havia confiscado abusivamente seu sentido. -- O quê? Bergson e Nietzsche transformados em intercessores do transcendental autêntico? -- Sim, pelo menos na medida em que eles nos fazem suspeitar que o Ego e o Eu não são de modo algum as figuras insuperáveis da indiufdaação. úoIdem, p. 124. ói /dem, p. 130. Cf. DI/Xérenceel réPéfffiofz, pp. 332 e 340 62 G. Deleuze,

Loglqae

d# sons, /oc. czf.

"0 insuperável é a individuação mesma. Para além do ego e do eu, existe não o impessoal, mas o indivíduo e seus fatores, a individuação e seus campos, a individualidade e suas singularidades pré-individuais."63 Se não tomarmos esse caminho, continuaremos a fazer uma idéia apressada do que é a "desordem", e o transcendentallou melhor, sua "imagem"l terá, inevitavelmente, por função primeira remediar a ameaça fantasmática que assim deixamos se forjar. Inversamente, para Deleuze é a mesmacoisa romper com esse "transcendental" securitário e pensar o campo Iranscendenla/ no sítio mesmo dessa "de-

sordem" (de primeira aproximação)contra a qual a Crítica julgava dever se precaver, porque não estava armada para concebo-la. "Quando se abre o mundo pululante das singularidades anónimas e nâmades, impessoais, pré-individuais, plscz mos enfim o solo do t«-scendentat."64 A reação a essa frase é, ela também, um teste. Enquanto vocês restringirem o qz/echamam "o singular" a "piedosas" singularidades, domesticadas,

"aprisionadas",

nada de surpreendente

que o "trans-

cendental" della, para vocês, tomar a forma de uma instância encarregada de conjurar o caos, de frustrar a todo instante os maus aspectos que o malicioso cinábrio poderia nos apresentar. Nada de surpreendente,portanto, que a frase de Deleuze soe para vocês como uma simples provocação...

Restaria examinar como funciona o transcendental após esse

des/ocízmenfo. Mas isso dependeria de um estudo da oncologia de De-

leuze. O objeto desta exposição era simplesmente mostrar, sobre o exemplo do fransce/zde/zfa/,o que Deleuze ganhava ao "fazer jogar um conceito contra ele mesmo" -- e isso dialeticamente, tão ludicamente,

portanto, quanto no Parmênidesou no So/isca. Tradução de Paulo Nunes

ó3G. Deleuze, D//7érenceef rílPéfifion, p 332. ú4G. Deleuze, Loglqae du sons, p. 125. Grifos nossos.

DELEUZE E SUA SOMBRA Scarlett Marton

"Em relação a um filósofo cujo empreendimento provocou tantos ecos e aparentementetão longe do ponto em que ele mesmo se colocava", escreveMerleau-Ponty a propósito de Husserl, "toda comemoração é também traição, seja porque Ihe prestamos a homenagem bem supérflua de nossos pensamentos, como para provê-los de uma garantia a que não têm direito, seja porque, ao contrário, com um respeito que não se faz sem distância, o reduzimos por demais estritamente ao que e]e mesmo quis e disse [...]".l Essas palavras de "0 filósofo e sua sombra" poderiam muito bem aplicar-se à nossa tarefa. Homenagear Deleuze com nossos pensamentos ou reduzi-lo aos seus próprios, essas seriam talvez duas formas de festeja-lo. Apoiar-se em Deleuze para defenderas próprias idéias ou procurar fazer a exegese das suas, essas seriam talvez duas formas de traí-lo. Mas, no limite, essas questões pressupõem outra, anterior e mais abrangente: no que consiste fazer história da filosofia? E, por conseguinte, como lidar com Deleuze enquanto parte da história da filosofia, ainda que seu pensamento constitua uma parte bem à parte? Uma pista para perseguir tal questão talvez se encontre no próprio trabalho de Deleuze. Em textos sobre Hume, Kant, Bergson, Espinosa2, é também enquanto historiador da filosofia que ele se coloca. E, se transforma profundamente os clássicos, não se exime de deixarse transformar por eles. Tanto é que na filosofia da afirmação plena, na filosofia da diferença, na filosofia da imanência, numa palavra, na filosofia deleuzeana,são profundas e múltiplas as marcas deixadas por Nietzsche. Não se trata aqui, porém, de analisar de que maneira a reflexão de Deleuze se inspirou nas idéias do autor de Za afzzsfra nem

de indagar em que medida seu prometofoi por elas influenciado. Bem 1Merleau-Ponty, Sig/zes,Paria, Gallimard, 1960, p. 201. 2 Ct. Empirismo et sabjectiuité,Paus, PUF, 1953; La pbilosopbie critique de Kanl, Paria,PUF, 1962;Le bergsonisme,Paris,PUF, 1966;Spinom ef /eproa/ême de /'expression, Pauis, Minuit, 1968.

mais instigante é investigar a leitura que ele propõe em Nlefzscbe e a P/osoÁza,é vê-lo à obra, debruçado sobre o pensamento nietzscheano, que -- como o seu próprio -- hoje também faz parte da história da filosofia. Em 1962, é de modo original que Deleuze tenta reconstruir a filosofia de Nietzsche. E, ao fazê-lo, procura ressaltar o seu caráter "resolutamente antidialético". Sustentando ser Hegel o alvo principal de seus ataques, afirma que "o anta-hegelianismo atravessa a obra do fi-

lósofo, como o fio da agressividade"3. O cerne da argumentação de Deleuze reside em mostrar que, se Hegel trabalha com o "não dialético", Nietzsche suprime o poder independente da negação e abre espaço para o "sim dionisíaco"4. O abismo que separa a negação dialética e a afir-

mação dionisíaca esconderia um outro: o que se instaura entre o monismo metafísico e o pluralismo radical. Em Hegel, a reconciliação das oposições implicaria a supressão da diferença; em Nietzsche, a filosofia pluralista exigiria justamente a afirmação dela e, por isso, teria na dialética o seu "mais feroz", o seu "único inimigo profundo' No entender de Deleuze, é pela diferença que Nietzsche substitui

a negação, a oposição, a contradição. O conceito de força, central em sua obra, tem caráter relacional: toda força se acha numa relação essencialcom outra; relação que não abriga elementonegativo algum, mesmo porque uma força não nega a outra -- apenas afirma a sua diferença. Com isso, as noções de luta, guerra, rivalidade e mesmo comparação tornam-se secundárias. As forças definem-se quantitativamente;

a determinação puramente quantitativa permanece, porém, abstrata, quando a ela não se juntam uma interpretaçãoe uma avaliação das qualidades. Ora, a essência da força reside na diferença de quantidade que ela apresenta ao relacionar-se com outra, de sorte que não se pode

separar a própria quantidade e a diferença de quantidade. Assim, a diferença de quantidade passa a constituir a qualidade da força; mais ainda, ela acaba por remeter a um elemento diferencial das forças em relação, que é também o elemento genético de suas qualidades. 3 G. Deleuze, Nlefzscbe ef /a pbí/osopbie, Paria, PUF, 4' ed., 1973, p. 9.

4 Essa mesma idéia também é defendida por Murray Greene ("Hegel's Unhappy Consciousness' and Nietzsche's 'Slave Morality'", in Nega/ and tbe pbi/osopby o/' fbe re/íglon, ed. Darrel E. Christensen, Haia, Martinus Nijhoff, 1970, pp. 125-41) e por Michel Haar ("Nietzsche and the metaphysical language'

in Mcz/zand Wor/d,IV, 4 [1971],pp. 392-3).

Esse elemento,diferencial e genético, Deleuze acredita encontra

lo na vontadede potência. Ela "é o elementode que decorrem ao mesmo tempo a diferença de quantidade das forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força"5. A partir da diferença de quantidade, as forças seriam ditas dominantes ou dominadas; a partir da qualidade, ativas ou reativas. Fonte da qualidade das forças, a vontade de potência precisaria ter, ela mesma, elementosqualitativos primordiais, que seriam justamente o afirmativo e o negativo. "Não se podem julgar forças", declara Deleuze, "se não se levar em conta, em primeiro lugar, sua qualidade, ativa ou reativa; em segundo lugar, a afinidade dessa qualidade com o pólo correspondente da vontade de potência, afirmativo ou negativo; em terceiro lugar, a nuance de qualidade que a força apresenta, num tal ou qual momento de seu desenvolvimento, relacionada com sua afinidade"Ó Em Assim Áa/az/aZarafustra, Nietzsche apresenta, por vez primeira, sua concepção de vontade de potência. Identificando-a com a vida, concebe-acomo vontade orgânica; ela é própria não unicamente do homem, mas de todo ser vivo; mais ainda: exerce-senos órgãos, tecidos e células, nos numerosos seres vivos microscópicos que constituem o organismo. Aquando em cada elemento, encontra empecilhos nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opõem e colocálos a seu serviço. Manifestando-se ao deparar resistências, desencadeia

uma luta que não tem pausa ou fim possíveis e permite que se estabeleçam hierarquias jamais definitivas. Na tentativa de resolver como se dá a passagem da matéria inerte à vida -- um dos problemas candentes da ciência da época --, Nietz-

sche elabora então sua teoria das forças. A força só existe no plural; não é em si, mas em relação a; não é algo, mas um agir sobre. Não se pode dizer, pois, que ela produz efeitos nem que se desencadeia a partir de algo que a impulsiona; isso implicaria distingui-la de suas manifestações e enquadra-la nos parâmetros da causalidade. Tampouco

se pode dizer que a ela seria facultado não se exercer; isso importaria atribuir-lhe intencionalidade e enreda-la nas malhas do antropomorfismo. A força simplesmentese efetiva, melhor ainda, é um efetivarse (mir&e?z).Agindo sobre outras e resistindo a outras mais, a força s G. l)e\euze, Nietzscbe et !a pbilosopbie, oP. çit., p. S6 6 /dem, p. 69.

tende a exercer-se o quanto pode, quer estender-se até o limite, mani-

festando um querer-vir-a-ser-mais-forte, irradiando uma vontade de potência. "Toda força motora", assegura Nietzsche, "é vontade de potência, não existefora dela nenhumaforça física, dinâmica ou psíquica"7. Com a teoria das forças, eleé levado a ampliar o âmbito de atuação do conceito de vontade de potência; se, ao ser introduzido, este operava apenas no domínio orgânico, agora passa a atear em relação a tudo o que existe. A vontade de potência aparece assim como explicitação do caráter intrínseco da força. Tributária da ciência da época, a noção de força permite a Nietzsche postular a homogeneidade de todos os acontecimentos; entre orgânico e inorgânico, não existe traço distintivo fundamental -- e tampouco entre físico e psíquico ou, se se quiser, "material" e "espiritual".

De posse dessa noção, ele poderia muito bem abrir mão do conceito de vontade de potência. Se o mantém, é porque acredita que o mecanicismo não dá conta do que existem;quer, então, juntar aos quanta dinâmicos uma qualidade9. Isso não quer dizer que a vontade de potência seja uma substância ou uma espéciede sujeito; não significa que constitua um ente metafísico ou um princípio transcendente. Qualidade de todo acontecer, ela, que diz respeitoao efetivar-seda força, é fenómeno universal e absoluto10;em outras palavras, "esse mundo é a vontade de potência -- e nada além disso! "li. Querendo-vir-a-ser-mais-forte, a força esbarra em outras, que Ihe opõem resistência, mas o obstáculo 7 IV, 14 (121), primavera de 1888. Utilizamos a edição das obras de Nietzsche l WerÊe, Kritische Studienausgabe) organizada por Colli e Montinari e publicada na Trança com o título Friedricb Nietzscbe. (Lutes pbilosipbiques complêtes, Gallimard.

8 É dessa maneira que lemoso fragmentopóstumo com que Deleuze abre seu capítulo acerca da vontade de potência (p. 56): "Esse conceito vitorioso de força,

graças ao qual os nossos físicos criaram Deus e o mundo, tem necessidade de um complemento; é preciso atribuir-lhe um querer interno que denominarei vontade de potência" ]X], 36 [31] de junho/julho de 18851.

9A esse propósito, cf. Müller Lauter, "NietzschesLehre vom Willen zur

Macha", in Niefzscbe Sf die/z, 1974 (3), pp. 19-28, e Nlefzscbe, seilzePbí/osopbie der Gegensãfze and díe Gere?zsãfzeseiner Pbf/osopóie, Berlim, Walter de Gruyter,

1971, em especialo capítulo l.

10C{. Para além de bem e mal, S 22. ii XI, 38 (12), junho/julho de 1885.

constitui um estímulo. Inevitável, trava-se a luta -- por mais potência.

Não há objetivos a atingir; por isso ela não admite trégua nem prevê termo. Insaciável, continua a exercer-sea vontade de potência. Não há finalidades a realizar; por isso ela é desprovida de qualquer teleolo-

gia. O caráter essencialmentedinâmico da força impede que ela não se exerça; seu querer-vir-a-ser-mais-forte impede que cesse o combate. A vontade de potência, impulso de apropriar e dominar, leva a força

a querer prevalecer na relação com as demais; aquando em todas elas, desencadeia uma luta geral e permanente. O combate todavia não se confunde com extermínio nem a precedência com hegemonia. Para que

ocorra a luta, é preciso que existam antagonistas; como ela é scm trégua ou termo, não pode implicar a destruição dos beligerantes12.

Não é por acaso que Nietzsche confessa sentir na proximidade de Heráclito "mais bem-estar do que em qualquer outra parte"13. Num

de seus primeiros textos, Á /i/osoPa na época f7'ágicados gregos, já manifesta admiração por esse pensador "orgulhoso e solitário".

De

fato, como não respeitar nele o descaso pelos homens, que se aproximaria de sua crítica ao "espírito de rebanho", o desdém pela política dos efésios, que precederia seus ataques ao falatório democrático, o desprezo pela polimatia, que antecipada seu combate à erudição? Co-

mo não reconhecer a proximidade entre a ideia de que um mesmo objeto se presta a avaliações opostas, se feitas de pontos de vista distintosi4, e o próprio perspectivismo?Como não apreciar até mesmo a linguagem oracular, que prenunciaria o estilo aforismático? Mas talvez estejamem outra parte as afinidades mais profundas entre os dois pensadores. No entender de Nietzsche, Heráclito recusa a dualidade de mun-

dos, que Anaximandro foi levado a admitir; rejeita a separação entre 12A partir da análisede um dos primeirosescritosde Nietzsche,Gérard

Lebrun mostra que o agózzhomérico reaparece na vontade de potência. Referindo-se à /wsla de }iomero, escreve: "Esse texto deixa transparecer um traço característico da 'vontade de potência': mais próxima de um jogo que da guerra total, a luta é sempre pela dominação, nunca pelo aniquilamento do adversário" ("A Dialética Pacificadora", in A/mcznaque,n' 3, São Pauta, Brasiliense, 1977, p. 33).

i3 Cf. Ecce pomo, "0 nascimentoda tragédia", S 3. i4 Os fragmentos de Heráclito DK 9, DK 13 e DK 58 convergiriam nesse sentido, e ainda o DK 61, em que se lê: "Mar, água mais pura e mais impura, para os peixes potável e saudável, para os homens impotável e mortal"

um reino das qualidades determinadas" e outro da "indeterminação indefinível". Mais ainda: nega, em geral, o ser, julgando-o uma ficção vazia, e questiona o testemunho dos sentidos15, não por revelarem a diversidade e a mudança, como quis Parmênides,mas por não as revelarem o bastante -- e apresentarem os objetos como se fossem dotados de unidade e duração. Entendendo que este mundo, aqui e agora, não mostra, em parte alguma, permanência, dele retira a estabilidade e também a tranqüilidade. Conclui, então, segundo as palavras de Nietzsche, que "toda a essência da efetividade é, justamente, apenas efetuação e que, para ela, não há nenhum outro modo de ser"16. A recusa da dualidade de mundos, a negação do ser e a afirmação do vir-a-ser, essesseriam os pontos fundamentais que o filósofo alemão considera comuns ao seu pensamentoe ao de Heráclito. Não é por acaso que eledeclara: "A afirmação do pcrccimento e do aniquilamento, o que é decisivo em uma filosofia dionisíaca, o dizer-sim à contradição e à guerra, o vir-a-ser, com radical recusa até mesmo do conceito de 'ser' nisso tenho de reconhecer, sob todas as circunstâncias, o mais aparentado a mim que até agora foi pensado"i/. Em Heráclito, o construir e destruir, essemovimento cósmico que se repete com periodicidade, surge da guerra dos opostos, pois é dela

que nasce todo vir-a-ser. Universal, a guerra está em toda parte; sem pausa ou fim, ela é permanente. Como dois contendores, os opostos combatem, de sorte que a tensão, que se instala entre eles, faz com que

ora um ora o outro tenha precedência. Como os atletas nas palestras, os artistas nos anfiteatros, os partidos políticos na agora e as cidadesestado na Hélade, os inúmeros pares de opostos lutam "em alegretorneio". Aqui, a noção de competição, em que se baseia toda a vida política e social dos gregos, atinge a "máxima universalidade" . Com Heráclito, a idéia de luta, entendida agora como o que gera o vir-a-ser, revestecaráter agonístico. E com Nietzsche também. Tanto é que ele encara "tudo o que ocorre, todo movimento, todo vir-a-ser como um constatar de re]ações de graus e de forças, como um combate [...]"18 15Nessa direção, seria possível ler o fragmento DK 107: "Más testemunhas para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras eles têm' lõ A Filosofia na época trágica dos gregos, $ S.

i7 Ecce pomo, "0 nascimentoda tragédia". 18Xl11,(65) 9(91), outono de 1887.

Ao contrapor o pluralismo radical de Nietzsche ao monismo metafísico de Hegel, Deleuze aponta de maneira decisiva a relevância da teoria nietzscheana das forças

e nisso reside um dos inúmeros mé-

ritos de seu livro. É por ignorar a noção de força que estudiosos foram levados, por vias diversas, a fazer da vontade de potência um princípio metafísico ou ontológico, ou até mesmo a humanizá-la19.Por despreza-la, viram-se obrigados a desconsiderar o prometonietzscheano

de ultrapassar a metafísica e construir uma nova concepção de mundo. Mas a leitura de Deleuze talvez comporte alguns excessos. Um deles consiste em recorrer à noção de força para refletir sobre o conjunto dos escritos do filósofo. Sem preocupar-se em refazer seu itinerário intelectualou lançar mão da periodização de seustextos, Deleuze acaba por operar com a noção de força como se ela já se achasse presente desde O nasc/me/zfo da fragédlíz. Ora, é apenas em 1 882, quan-

do da rcdação da GczldcIêncIa, que Nietzsche se volta para essa noção, e é somente em 1885 que elabora a teoria das forças. Por centrar-se no exame das questões relativas aos valores, Deleuze atribui peso desmedido às idéias de força aviva e reativa. Ora, é apenas muito raramente que Nietzsche utiliza os termos ízfiz/oe real/z/o.

Emprega-os,por certo, na Genes/orla da mora/, quando, ao examinar a origem da justiça, considera ativas a avidez e a sede de dominação e

reativa a vingança20. E à idéia de reafiz,o recorre ainda uma vez num fragmento póstumo: "0 que é 'passivo'? Resistir e reagir; estar bloqueado no movimento para diante, portanto, um ato de resistênciae de reação. O que é 'ativo'? Tender para a potência"21. Mas aqui deixa claro que os termos afaz/oe reaflz/o,ou passfz/o,evocam simplesmente o fato de que as forças se exercem. Tanto é que entende que da luta que se trava entre elas se estabelecem hierarquias -- sempre tem-

porárias. E, com estas, surgem as forças que mandam e as que obede-

i9 No primeiro caso, podem-secontar Heidegger,Jaspers e Granier; e, no

segundo, Kaufmann.

zoCf. A gePzea/agia da moral, "Segunda Dissertação", S ll zi Xl1, 5(64), verão de 1886/ outono de 1887, que prossegue: "A 'nutrição é apenas derivada:

a origem é tudo querer

encerrar

em si; a 'geração'

é apenas

derivada: originalmente, onde uma vontade não basta para organizar tudo de que se apropriou, uma contravontade entra em ação, assumindo a separação, um novo

centro de organização, depois de um combate com a vontade original"

cem, as que atuam e as que reagem, as que são "ativas" e as que são ;'reativas" num determinado momento.

De acordo com Deleuze, o pensamento nietzscheano apresentase como " resolutamente antidialético", porque a filosofia pluralista exige

a afirmação da diferença. Entendendo o movimento dialético enquanto negação da negação, julga imprescindível banir do pensamento a con-

tradição, a negação, a oposição. Ao afirmar a diferença, o pluralismo radical exclui a guerra, a rivalidade e mesmo a comparação. "Jamais seria demasiado insistir em relação a este ponto", escreve Deleuze, "o

quanto as noçõesde luta, guerra, rivalidade ou mesmo comparação são estranhas a Nietzsche e à sua concepção de vontade de potência"22. Ora,

da perspectiva de Nietzsche, o mundo é contínua criação e destruição. Pluralidade de forças, ele não constitui um sistema nem se apresenta como mera multiplicidade. O mundo é antes um processo -- e não uma estrutura estável; os elementosem causa, enter-relações-- e não substâncias, átomos, manadas. Totalidade interconectada de quanta dinâmicos ou, se se quiser, de campos de força em constante tensão, o mundo

não é governado por leis, não cumpre finalidades, não se acha submetido a um poder transcendente-- e mais: sua coesão não é garantida por substância alguma. Se permanece uno, é porque as forças, múltiplas, estão todas inter-relacionadas; elas se acham em combate perma' nente, agindo e reagindo umas em relação às outras. Ao conceber as forças como dotadas de qualidade e ao distinguilas em ativas e reativas, Deleuze tem de fazer da vontade de potência o elemento diferencial das forças em relação e o elemento genético de

suas qualidades. Para dar conta da distinção que estabeleceentre forças ativas e reativas, tem de diferenciar força e vontade de potência e distinguir, na vontade de potência, dois elementosqualitativos primordiais: o afirmativo e o negativo. Com isso, ele diferencia e distingue onde Nietzsche não o faz, não pode fazê-lo sem renunciar à coesão interna de seu pensamentozJ. Pois, como se lê na conhecida passagem de Para a/ém de bem e ma/, trata-se de "determinar toda força eficiente

univocamente como: vontade de potência"z4.

22G. Deleuze, Niefzscbe ef /a pbflosopófe, p. 93.

23Cf. Müller-Lauter, "Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht", in Nielzscbe Sf diefz,1974 (3), p. 23. 24Para além de bemtt e ma!, S 36.

Partindo da distinção entre forças ativas e reativas, Deleuze procura entender a crítica de Nietzsche ao positivismo, ao humanismo, à dialética. Ignorando as qualidades das forças, essas maneiras de pensar se revelariam impotentes para interpretar e incapazes de avaliar. A diabética,em específico, seria uma força que, impossibilitada de afirmar a sua diferença, não mais agiria; ela se limitaria a reagir às forças que a dominam. Negando tudo o que não é, ela poria o elemento negativo em primeiro plano e dele faria a própria essênciae o princípio mesmo de sua existência. Pensamento fundamentalmente cristão, ela apareceria como "a ideologia natural do ressentimento, da má consciência". E Deleuze conclui: "Não existecompromisso possível entre Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance polêmico; ela forma uma antidialética absoluta, propõe-se denunciar todas as mistificações que encontram na dialética um último refúgio"2S Para dissipar a sombra do hegelianismo,Dcleuze lança mão da filosofia do meio-dia. Na guerra contra as formas contemporâneas do pensamento da identidade e da repetição, no embate contra os princípios transcendentes e as categorias clássicas da representação, na crítica ao monismo metafísico de Hegel, é o autor de Zarafusf7'a que Deleuze mobiliza. Pois, como ele mesmo afirma: "Compreende-se mal o conjunto da obra de Nietzsche, se não se vê 'contra quem' seus principais conceitos são dirigidos. Os temas hegelianos estão presentes nessa

obra como o inimigo que ela combate"ZÓ

E, no afã de fazer de Nietzsche seu principal aliado, Deleuze acaba por desprezar elementos centrais do pensamento nietzscheano. Isso não

invalida, porém, a legitimidadede sua leitura; ao contrário, revela que, em sua reflexão, história da filosofia e filosofia se entrecruzam, a ponto

de tornarem-se indiscerníveis. Afinal, o próprio Deleuze conclui a esse propósito: "Parece-nos que a história da filosofia deve desempenhar um papel bem análogo ao de uma co//agenuma pintura. A história da filosofia é a reprodução da filosofia mesma. Seria preciso que a explicação em história da filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e comportasse a modificação máxima própria ao duplo"27

25G. De\tule, Nietzscbe et [a Philosophie, p. 223. zó Idem, p. 187.

27G. Deleuze, Dz//érefzceef répéfiffon, Paris, PUF, 1968, p. 4

SOBRE O BERGSONISMO DE DELEUZE Êric Alliez

Creio que é bem abstrato dar conta de um pensa mento pelo que ele encontra em outros autores, pois ele só encontra aquilo que coloca neles, e neles coloca por razões inteiramente diferentes... IGilles Deleuze, Correspondêlzcla prit/anal

Creio que corremos riscos muito grandes ao que-

rermos reconstituir, baseando nos nas semelhanças exteriores de uma doutrina com outras. as influências sofridas por um autor. Quando indicações precisas, emanan do do próprio autor, nos permitem encontrar o que ocor reu efetivamente em sua mente, apercebemo-nos frequentemente de que o caminho que ele seguiu é muito diferente

daqueleque nos teria parecido natural supor. IHenri Bergson, 12 de junho de 1928)

Em suma: é preciso reconhecerque não se poderia projetar um título de pesquisa a priori menos deleuzeano e menos bergsoniano do que o seguinte: "Sobre o bergsonismo de Deleuze". Além da desconfiança dos dois filósofos em relação às palavras em "-ismo", sabe-se muito bem que "nunca há estrelas duplas no céu da filosofia": na ordem do "evento", quando algo acontece, "é de uma vez por todas", dizia ainda um bergsoniano frequentementecitado, com ou sem aspas, por Deleuze: Charles Péguyl Mas Deleuze é o autor de um livro intitulado O bergso/cismo,e a ele acedemos por meio de dois estudos de dez anos antes, publicados em 1956. O primeiro é sobriamente intitulado "Bergson"; o segundo, "A concepçãoda diferençaem Bergson". Que nos permitamformular ] Ch. Péguy, Cabíers de /a Qufnzzzízze,3 de fevereiro de 1907. E Péguy conclui: "As poucas superposiçõesque sepoderia assinalar ou são apenas superposições aparentes, ou não interessam à metafísica e à filosofia"

logo nossa hipótese de trabalho permanecendo o mais próximo possível desses títulos. Á mifzfma: passa-se de Bergson ao bergsonismo de Deleuze investindo-se a questão da diferença como /né'io de desfz'acção do bergsonismo estabelecido jque Merleau-Ponty qualificava de "berg-

sonismo retrospectivo") -- em sua versão mais sóbria, à qual o velho Bergson pede dar a]gum crédito: "[...] arrancando o pensamentodo determinismo científico, [o bergsonismo, esse bergsonismo enquadrado no conjunto tomista ou derivado do Abso]uto tei]hardiano] orientou-o /zoz,amenfepara uma metafísica espiritualista, e finalmente para

um novo acesso à verdade cristã" Igrifo meuj2. A max/ma: tratar-se-á de apreender, no bergsonismo de Deleuze, a heterogêneseem ato do pensamento deleuzeanotanto no nível do sistema como no do método. É preciso aqui citar Deleuze:

[...] Durante muito tempo 'fiz' história da fi]osofia[...] Minha maneira de me safar disso na época foi, creio, conceber a história da filosofia como uma espécie de enrabamento ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e Ihe fazendo um filho monstruoso. Que o filho fosse seu era muito importante, porque era preciso que o autor dissesseefetivamente tudo aquilo que eu o fazia dizer. Mas também era necessário que o filho fosse monstruoso, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizamen-

tos, quebras, emissõessecretas que causaram muito prazer. 2 De modo mais sintético, ver o prólogo de l e zri Bergsofz. Estais et fémoigfzages fnédlfs recml//is pízrA. Begwin et P. Tbéz/maz, Neuchatel, La Baconniêre, 1941,

p. 8. E, segundo uma prosa mais desenvolvida, a de Maurice Blondel: "A própria idéia de movimento e de abertura não implica uma referência antecedente a uma certeza prévia, a uma perspectiva enquadrada e posterior, mas que não atinge absolutamenteo vazio e a noite? O velho adágio: om/zfsmofas áandafz r i?zímmoóí/f efaliso/ufo não tem a significação submetidaà imaginação que Ihe atribuem indevidamente-." ("La philosophieouverte", oP. cil., pp. 88-9). -- Manteremos a demons oração de Henri Gouthier, ressaltando que a cristologia de D as Óonfes "elimina a teologia " ao se pretender "estritamente filosófica", cf. Bergson dons /'bisrofre de la

pe/zséeoccfdenfa/e,Paria, Vrin, 1989, p. 119. Merleau-Ponty, por sua vez, soube focalizar

o elemento "pré-cristão"

dessa mística,

cf. "Bergson

se faisant"

(Szgmes,

Paria, Gallimard, 1960, pp. 238-9). Em que o "partido" jcom e sem maiúscula) que batalhara com sucesso, às vésperas da Grande Guerra, para obter o banimento de Bergson da Igreja, se encontra como que retrospectivamente fundado em sua petição.

Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero.

E há pessoas que hoje se divertem acusando-me por ter es grito até sobre Bergson. Ê que elas não conhecem suficientemente história. Não sabem o quanto de ódio Bergson, no

início, concentrou na Universidade francesa [...] Foi Nietzsche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois é impossível submetê-lo ao mesmo tratamento. Ê ele quem nos faz filhos pelas costas [...]".3 Dessa longa citação, evidencia-se bastante que nossa hipótese só poderá, ao final, se sustentar em relação ao alcance do descentramen[o operado por Deleuze sobre a obra bergsoniana, e considerando-se sua função constituinte para o próprio pensamentodeleuzeano.Focalizando-se essa gênese "bergsoniana"

do "deleuzismo", compreen-

der-se-ia em que condições a descoberta "tardia" de Nietzsche, que alimentaria a publicação de Nlefzscóe e a /7/oso#al 19621, fora como que suscitada pelos primeiros estudos bergsonianos, antes de fecun-

dar, por sua vez, O bergso/zlsmo (1966). Tudo ocorreu, então,como se a "grande identidade Espinosa-Nietzsche", em direção à qual "tudo

tendia"4, tivesse sido alimentada por uma emissão mais secreta, composta pela "pequena" identidade Bergson-Nietzsche que forma a base

do triângulo vitalista constituído da seguinte maneira: Espinosa

Bergson

Nietzsche

Isso logo nos leva a ressaltar que o pertencimento geológico do pensamentodeleuzeano a uma certa filosofia francesa, que tem seu início entre a última filosofia de Maine de Biran e o À4émoirede Ravaisson, dará matéria a essa identidade "menor", de origem bergsoniana, em que se deu a grande ruptura com a filosofia do Estado -em prol de uma filosofia da Vida e do Devir, em que, para evocar um 3 G. Deleuze, "Lettre à un critique sévêre", PourPar/ers, Paras, Minuit, 1990, pp. 14-5; essetexto tinha sido publicado em 1973 -- dez anos, portanto, antes dos trabalhos sobre o cinema, em que Deleuze iria compor um bergsonismo cinema tográfico bem estranho...

4OP. clf., P 185.

Bergson em ressonância com Nietzsche e Espinosa, "não há coisas, só

há ações"5 (quer dizer, impulsões e construções). O que poderia ser traduzido da seguinte maneira: não há impressões, só há expressões. Mas escutemos Deleuze: "A re]ação da fi]osofia com o Estado [...] vem de ]...] longe. É que o pensamentotoma do Estado sua imagem propriamente filosófica como bela interioridade substancial ou subjetiva. Ele inventa um Estado propriamente espiritual,

como um Estado abso]uto [...] Certamente, também Bergson foi absorvido pela história da filosofia à francesa; e, entretanto, há nele algo de inassimilável, aquilo por meio do qual elefoi um abalo violento, um ponto de confluência para todos os oponentes, o objeto de tantos ódios, e é menos o tema da duração do que a teoria e a prática dos devires de todo tipo e das multiplicidades coexistentes"6. Nas observações que se seguem, tentar-se-á circunscrever esse inassimilável" que atwa/izzzrfa,de algum modo, o tema da duração e que constituiria a pree/zsãopropriamente deleuzeana a partir da qual se tornaria possíve] "dizer a]go em seu próprio nome [...] abrindo-se para as multiplicidades"7 para se arriscar a produzir, a fazer com que s H. Bergson, "L'intuition philosophique", L'ét/o/uffo z créafrfce, p. 249 / Oeiíz/res,Édition du Centenaire, Paria, PUF, 1959, p. 705. Segundo o uso corrente, daremos sempre essasduas referências, sendo a primeira a da última edição do livro por Bergson.

6 G. Deleuze, C. Parnet, Dia/ogaes, nova edição, Paris, Flammarion, 1966 l 1977), pp. 20-2. Talvez Deleuze pensassenas seguinteslinhas de Bergson, em uma carta a H. M. Ka]]en, autor de Wf//iam /amas and He/zri Bergson: "]-.] unidade e multiplicidade distintas são, para mim, apenas visões sobre algo que participa das duas sém ser nem uma nem a outra, e que denomino "multiplicidade qualitativa'

ou "multiplicidade de penetraçãorecíproca") ou "duração". Todo meu esforço desde o dia em que comecei a filosofar se concentrou nessa consideração de uma m /flp/lcidade sui generis, que os filósofos sempre deixaram de lado porque da duração só percebiam seu símbo]o espacia], e qiíe é .z própr;a rea]ídade [-.]". A carta termina com a evocação de uma "harmonia preestabelecida" entre o tema

da duração e o "stream of consciousness" jamesiano (28 de outubro de 1915; repub[icada em H. Bergson, Mé/finges, Paras, PUF, 1972, pp. 1 ] 91-4). 7G. Deleuze, PoKTParlers, OP. clf., pp. 15-6. É bem sintomático que essedesen-

volvimento sobre o "gosto perverso", dado por Nietzsche, de "dizer coisas simples em seu próprio nome" se organize em torno da noção bergsoniana de multiplicidade-.

uma filosofia "pegue", no ponto de identidade do expressionismo do percePto (a percepção não é uma impressão, a percepção é alucinação) e do construtivismo do conceito (o conceito é criação).

Novamente Péguy, em sua Note sul' M. Bergson ef /a p&//osopbfe bergsonfen/ze: "Uma grande filosofia não é aquela em que não há nada

a retomar. É aquela que pegou algo" O fato de que esse algo tenha sido pego a partir de uma imagem bergsoniana do pensamento deveria ser uma evidência para qualquer leitor de Dfáerença e repeffção atento ao recentramento que condiciona

a dimensão crítica da obra, com essa "potência intuitiva de negação" que forma a primeira expressão de um pensamento8 e que parece aqui

identificar-seem todos os pontos com a intuição negadora do senso comum instaurada por Bergson. Recentramentodo pensamentoem uma diferença não-pensável na identidade abstrata do conceito, que libera a filosofia do primado da identidadeno ser e na representação, "à custa de uma reversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir; a identidade, do diferente; o uno, do múltiplo etc."9 -- é essa revolução copernicana que provoca o retorno dos grandes temas bergsonianos,a partir de uma série de dualidades em que um pólo é sempre dinâmico e intensivo, ao passo que o outro é inevitavelmente estático, pelo fato de ser apenas, antes de mais nada, o invólucro exterior e o efeito abstrato da representação do primeiro. Posto que a diferença está por trás de qualquer coisa, desde que apreendida em sua heterogeneidadee seu devir, Deleuze partilhara com Bergson a idéia de que a filosofia é questão de precisão, na medida em que ela se propõe a determinar as condiçõesefetivas da experiência real -- e não as condições genéricas de uma experiência simplesmente possível para a representação que profeta algo (de semelhante) por detrás da diferença10... Isso equivale a dizer que, de Platão a H.egel, passandopor Kant, e sobretudopor Kant, "o que mais faltouà filosofia foi a precisão. Os sistemas filosóficos não são talhados à medi8 H. Bergson, 120-1/ 1348.

:L'intuition

philosophique:

La pensée et !e moteuant, pp

9 G. Deleuze, Dr/Xérenceef réPéfifío/z, Paris, PUF, 1968, p. 59. io Cf. G. Deleuze, op. cíf., p. 80: "São sempre as diferenças que se assemelham, que são análogas, opostas ou idênticas: a diferença está por detrás de todas as coisas, mas por detrás da diferença não há nada

da da realidadeem que vivemos. Eles são", conclui Bergson, "grandes demais para ela"t i. E como não, se, como explica Deleuze, marcando a oposição da representaçãoa uma formação de natureza totalmente diferente, "os conceitos elementaresda representação são as categorias definidas como condições da experiência possível. Mas estas são demasiadamente gerais, grandes demais para o real. A rede é tão carga que os maiores peixes passam através de]a [...]"i2. Que a metafísica se torne a própria experiência em uma filosofia da experiên-

cia pura -- esse programa de ajuste da imanência do pensamento à univocidade do devir é o de um "empirismo superior" IDeleuzel cuja "superioridade" não excederia os limites de um "empirismo verdadeiro", que só trabalharia "sob medida", definindo assim um "empirismo radical" IBergson marcando sua afinidade com o pragmatismo de William James, ao preconizar a "experiência integral"). Um empirismo comum a Deleuze e a Bergson, que impõe um novo estilo de enunciação

filosóficapara explorar, na imanênciae na univocidadedo Ser, os requisitos de um pensamento da realidade da diferença: um estilo em que intuição rima com narração, problematização e descrição dos processos de individuação, fora da argumentação. Não tememos multiplicar as citações para manifestar essa comunidade de estilo e de escrita.

Esta frequentemente não possibilita perceber a frase deleuzeanacomo uma certa linha flexuosa" cuja variação depende de uma potência de

integração que é a de uma totalidade viva, sob a espécie de uma continuidade heterogêneade interpretação recíproca, remetendo ao bergsonismo como a seu centro virtual de expressão? E pensa-se aqui menos no "rizoma" do que no problema geral da escrita deleuzeana je deleuzo-

guattarianal tal como se expõe em um duplo nível em Mi/ P/afõs13: 11São realmente necessáriasexpressões anexatas para descrever algo exatamente, considerando-se que a anexatidão não é de modo algum uma aproximação -- é, ao contrário, escrevem Deleuze e Guat-

tari, reencontrando a fórmula do bergsonismo, a passagem exala do que se faz;

/ 1253.

il H. Bergson,La pe?zsée ef /emowuamf. IntroduçãoIPrimeiraparte),pp. l i2 G. Deleuze, oP. cif., pp. 93-4. i3 G. Deleuze &: F. Guattari, Mli//ep/afeaax, Paria, Minuit, 1980, p. 31.

"fórmula mágica" PLURALISMO = MONISMO, passando por todos os dualismos, que são o inimigo, mas o inimigo totalmente necessário, o móvel que não cessamos de deslocar. Será necessário lembrar que ninguém mostrou melhor do que Deleuze, em O bergsonismo, que esse quadro era, por excelência, o de Bergson, ultrapassando a contradição aparente entre o dualismo 21 É realmente preciso investir na

das diferenças de natureza e o monismo da contrição-distensão no plu-

ralismo das durações, tal como ele compõe o monismo do Tempo em função da teoria das multiplicidadesvirtuais e do princípio diferencial dc sua atualização14...? Em síntese, se é preciso um método que "faça efetivamente"

o

múltiplo, tudo indica que, para Deleuze, esse método será, antes de tudo, de inspiração bergsoniana. Retomando o texto bergsoniano, esse método será essencialmente

problemático, na medida em que eleengajará a realidade de sua experiência, manifestando a má vontade necessáriapara "expulsar os conceitos já dados" -- os conceitos da representação -- para colocar de forma nova os problemas, esposar as articulaçõesdo real e seguir as tendências destas ao invés de se deixar guiar pela lógica conservadora que rege o senso comum quando ele "experimenta o problema tal como é colocado pela linguagem". Disso se segueque "conversação assemelha-semuito a conservação", e que se terá em baixa estima o Homo /ogaax, "cujo pensamento, quando ele pensa, não passa de uma reflexão sobre sua fala", apoiando sua comunicação em um conhecimento que seus interlocutores já possuem; e que, de modo oposto, para a filosofia que se liberou da dialética natural às palavras e às coisas recortadas pelo entendimento na continuidade da vida. formular o problema é inventar e não apenas descobrir, é criar, em um mesmo movimento, a formulação do problema e sua soluçãoiS. "E chamo filósofo todo aquele que cria a solução, então necessariamen]4 G. Deleuze, Le bergsonisme, Paras, PUF, 1966, capa. IV e V. 15H. Bergson, oP. cff., Introdução (Segundapartem:"Da formulação dos pro-

blemas". Pensar-se-á certamente na crítica da "metafísica da linguagem" desenvolvida

por Nietzsche; ver especialmente O crepúscu/o dos !'ao/os, S 5: A linguagem, por sua origem, remonta aos tempos da forma mais rudimentar de psicologia; tomar consciência das condições primeiras de uma metafísica da linguagem, ou, mais claramente, da razão, é penetrar em uma mentalidade grosseiramente fetichista

te singular, do problema que ele formulou de novo", com "o sentido novo que tomam as palavras na nova concepção do problema"16 e a criação de novos conceitos que disso pode derivará /. Sem essa subversão do senso comum e essa ruptura com a doJccz,os quais alimentam o ideal lógico do reconhecimento; sem uma teoria geral do problema que não mais configure o pensamento sobre proposições "sólidas" supostamente preexistentes,colocando o problema como o elemento genético extraproposicional de produção do verdadeiro; sem essa afir-

mação do problemático como intensidade diferencial das próprias Idéias em seu movimento de iminência irredutível tanto à Analítica como à Dialética, porque introduz a duração no pensamento, reconciliando verdade e criação no nível dos problemas e dos conceitos... bem, na falta desse empirismo especulativo que é assim levado a investir na oposição da intuição "diferencial" bergsoniana à análise do "previamente dado", e sem a subversão geral que atinge a natureza, a essência

problemática do próprio ser, "a famosa revolução copernicana não é

nada"18 a

Ora, se é verdade que essa fórmula de Deleuze, em capítulo que

constitui uma espécie de órgão vital de Difere/zça e repetição, "A imagem do pensamento", não se refere explicitamente à revolução bergsoniana, é ainda em Bergson que se poderá encontrar afirmada, de algum modo, a necessidadedo bergsonismode Deleuze. De fato, pergunta este, "sendo a filosofia compreendida desse modo, há chances para que um filósofo encontre antecipadamenteou pressintao que um outro filósofo encontrará? Isso não é de modo algum impossível,se esse filósofo compreende do mesmo modo o método fi]osófico [...]"1 9 No caso, o método não poderá mais reencontrar o tempo como um objeto possível de pensamento, mas como o modo objetivo do SerPensamento, forçando o filósofo a "medir as incidências da introdu-

is H. Bergson, "Lettre à FI. Delattre", dezembro de 1935, in Mé/íz/ages,Pa-

ras,PUF, 1972,p. 1528.

i7 Ora, sabe-se se "a idéia que poderíamos tet para criar integralmente, para um objeto novo, um novo conceito, talvez um novo método de pensar, nos repugna profundamente", cf. L'éz/o/wfiomcréafrice, pp. 48 / 535. i8 G. Deleuze, Di/7Zrence ef répéfitio?z,p. 210. i9 HI. Bergson, "Lettre à FI. Delattre, ibidem.

ção do tempo em um problema"20 -- e forçando o outro filósofo a reencontrar a idéia geradora do bergsonismo sob a forma de uma onto-

logia do devir. Deixar-se-á de lado, aqui, a questão de saber se o próprio Bergson pressentiu algo dessa experiência no contado com Gal)riel

Tarde, para marcar a ressonância dessa observação na tese da transcendência de toda filosofia em relação ao tempo histórico em que ela se inscreve. Nisso, Bergson retoma uma idéia profundamente nietzscheana, da qual se sabe tudo o que Deleuze poderá extrair (o devir não é história). Em todo caso, é de um ponto de vista bem bergsoniano que Deleuze faz com que "A imagem do pensamento" seja seguido por um capítulo intitulado "Síntese ideal da diferença", depois por outro, o último de DIÓerelzça e repetição, tendo por título "Síntese assimétrica

do sensível", capítulos em que se elabora o princípio problemático de uma filosofia diferencial segundo a idéia de uma multiplicidade inseparável de uma virtualidade que não suporta "nenhuma dependência do idêntico no sujeito ou no objeto". Pois, em Deleuze, como para Bergson(e Tarde), é o investimento metafísico do cálculo infinitesimal que comanda a ontologia, dando-lhe a feição característica de uma

heterogênese, introduzindo o tempo, em um mesmo movimento cons-

tituinte e diferenciante, no ser e no pensamento o tempo como vitalidade do ser e genitalidade do pensar. Crise da noção de verdade no âmbito de uma oncologia do virtual. Sabe-se que o tema da subversão do ser "previamente dado" em prol de um devir "fazendo-se" e de um movente "mais interior a mim mesmo que eu mesmo", que determina a fluidez dos conceitos desse pensamentoem duração cujo filosofar consisteem inverter a direção habitual do trabalho do pensamento, é explicitamenterelacionado por Bergson, em um texto célebre reproduzido em O pensame/ztoe o mouenfe, com a inversão na maneira de pensar operada pela primeira vez

pela análise infinitesimal. Ela será designada como "o mais potente método de investigação de que dispõe o espírito humano", por aquilo que toma de empréstimo da realidade concreta do movimento e do tempo. Ora, se "a quantidade é sempre qualidade em estadonascente", é "natural que a metafísica adote, para estendê-la a todas as qua-

20B. Paradis, "lndétermination et mouvement de bifurcation chez Bergson

Pbflosopble,n' 32, 1991,p. 12.

lidades, isto é, à realidade em geral, a idéia geradora de nossa matemática [...] Digamos, portanto, [...] que um dos objetos da metafísica é operar diferenciaçõese integraçõesqualitativas"2i. Sendo dito que essa idéia geradora é ela mesma de origem metafísica e que ela participa de uma inteligência da vida que é suficiente para afirmar a supe' rioridade da biologia sobre as outras ciências... Disso deriva que, se as grandes descobertas científicas foram "como que inserções de sonda na duração pura", "quanto mais viva tiver sido a realidade tocada, mais profunda terá sido a inserção da sonda"22. Isso também significa que a vida é o campo de afirmação da plena realidade do virtual, na medida em que não é atual. O tema diferencial explicita, assim, a natureza ontogenética da identidade postulada por Bergson entre onto-

logia do devir e ontologia do virtual. zi H. Bergson, OP. clf., pp 214-5 / 1422-3. J. Millet reuniu e comentou o conjunto dos textos de Bergson sobre o tema "infinitesimal" em Bergson et /e ca/cu/

In/InlfésimczZ, ou /a raison ef /e femPS,Paria, PUF, 1974. Bergson se refere explicitamenteao método newtoniano das "fluxões" pensando, sem dúvida, na passa' gem famosa do Trajado da q adraf ra das cwrz/asque introduz a noção: "Não considero as grandezas matemáticas como formadas de partes, por menores que sejam, mas como descritas por um movimento contínuo [-.] ". É a partir dessa noção

de fluxão que o próprio Bergson "chegará assim a conceitos fluidos, capazes de seguir a realidade em todas as suas sinuosidades e de adotar o movimento mesma

da vida interior das coisas" {ibld.). Para os desdobramentosdessa leitura bergsoniana do Cálculo, ver Le Bergsonfsme de J. Benda, Paria, 1912, nota E, Le Roy,

e l,a penséema bémallq e Fure, PUF, 1960,cap. XVIII.

Gabriel Tarde é o grande predecessorde Bergson por seu investimentometafí-

sico da revolução epistemológica "diferencial" que o conduz igualmentea uma doutrina do Elã vital e da Evolução criadora. Diversas fórmulas de Bergson sobre o pensamento

como "integração-diferenciação", assim como "a grande distinção do estático e do dinâmico, em q e efz ra também a do Espaço e do Tempo,[que] divide em dois o universo inteiro" Iões loasde /'lmilaffon, Paria, 1890, p. IS91, provêm diretamente do corpus tardeano aparaa influência de Tarde sobre Bergson, cf. J. Millet, Gabriel Tarde et la pbi/osopbie de /'bisloíre, Paria, Vrin, 1970, p. 386-8). Deleuze consagrou numerosas passagens a Tarde(especialmente em DiÓermça e repetição e À4íJ PZatós)-

Gilbert Simondon desenvolveua noção de transdução a partir do esquema

integração-diferenciação" . Cf. L'índia/idn el sa gefzêsepbysfco-bio/oglque ( 1 964), Ed. J. Millon, 1995: "0 tipo fundamental de transdução vital é a série temporal, ao mesmo tempo integradora e diferenciadora; a identidade do ser vivo é feita de sua temporalidade" (pp. 161-2). O que significa dizer que "em toda operação vital completa

se encontram reunidos os dois aspectosde integração e de diferenciação" (p. 207). zz H. Bergson, La pe/zséeef /e mouz/afzf,pp. 217-8 / 1425.

Ora, nessescapítulos de DfÁerença e rePeffção, que se iniciam com

um longo desenvolvimento dedicado à história "esotérica" da filosofia do cálculo diferencial (Maimon, Wronski, Bordas-Demoulinl, Deleuzevai de algum modo duplicar a processualidade bergsoniana, inrcgrando seu vitalismo diferencialista à definição objetiva do problemacomo Idéia23. Idéia cuja gênesediferencial consiste no deslocamento

tla dualidade do conceito e da intuição, na medida em que ela vai do virtual à sua atualização, das condições de determinabilidade do pro1)lemaaos casos de solução determinados, como fonte da produção dos objetos reais na sínteserecíproca das relações diferenciais -- "essa é", explica Deleuze, "a matéria da Idéia no elemento pensado da qualitatibilidade em que esta está imersa"24. Extraindo-se, assim, Bergson

de sua última vinculação com o kantismo, investindo na crítica de Malmon para estilhaçar na Idéia o extrinsequismodo conceito e da intuição, o que equivale a colocar uma diferença de grau entre o sensívele o inteligível, Deleuze elabora um bergsonismo ideal de inspiração pós-kantiana25. Inscrevendo na base da ontologia o ser do pro1)1emáticocomo multiplicidade interna que concerne ao evento e à produção do novo por geração ideal de descontinuidades, ele poderá desenvolver uma oncologia diferencial que saiba afirmar a realidade do virtual como característica da Idéia e razão do Sensível no sistema matemático-biológico da diferençação/diferenciação" [dl/7ére/zffaf/on/df/Hérenciaffo/zJ:em que a diferençação [dl/7éren /afío/z] remete à

determinação por relações diferenciais do conteúdo virtual da Idéia,

23Enquanto a Idéia participa em Bergson, com toda a filosofia grega, da

ilusão cinematográfica: "Eixos é a visão estável tomada sobre a instabilidade das coisas", cf. l,'éz/o/K/io/z créarríce, p. 3 13-7 / 760-3 24 G. Deleuze, op. cff., p. 225.

25Ver a homenagemprestadaa HermannCohen lop. clf., p. 298). Em um artigo recente, Arnaud Villani soube mostrar que o efeito de convergência entre is filosofias de Deleuze e de Whirehead se dava a partir de uma base filosófico-

matemáticacomum, passando por Maimon e seu uso do princípio infinitesimal. Sem analisa-la, ele evoca, no início de seu artigo, uma triangulação Deleuze-Whitehead Bergson, cf. A. Villani, "Deleuze et Whitehead", Rez/z/ede À élapbysfqwe ef de Mora/e, n' 2, 1966, especialmente pp. 249-51. * Sigo aqui a tradução de df/Hêre7zffafionproposta por Luiz Orlandi e Roberto

Machado no glossário da tradução de Difere/zçae repezíção, Rio deJaneiro, Graal, 1988. [N. da T.]

e a diferenciação [d]/Hêrencfaf]on]remete à atualização dessa virtualidade em espécies e partes distintas correspondendo aos casos de so-

lução do problema. Ora, é a intensidade, por meio do processo essencial das quantidades intensivas, que determina as relações diferenciais a serem atualizadas nas qualidades e nos extensos que ela cria por individuação... Deleuze realiza, assim, uma operação à Bergson para além de Bergson, remetendo a crítica bergsoniana da intensidade -no Ensaio sobre os dados /medfatosda conscfê/zela-- a essa "ilusão. física transcendental" que faz com que só conheçamos uma intensidade já atualizada em um extenso, e recoberta por qualidades que tendem a anular a diferença de intensidade, que se encontra colocada fora de si em sua "explicação". Afirmar-se-á, no entanto, que ocorre aí, pelo menos à primeira vista, "deslizamento" ao invés de "quebra". Como qualificar, de fato, esse movimento que consiste em destacar o princípio ontológico da Diferença do princípio empírico da Identidade [evando em conta: ]) que "a extensão [é] precisamente o processo

por meio do qual a diferença intensiva é posta fora de si, repartida de modo a ser conjurada, compensada, igualizada, suprimida, no extenso que ela cria"26; 2) que, em oposição ao falso movimento da realização que privilegia a semelhança do real com o possível, em que esse último foi ele mesmo retroativamente concebido à imagem do real, a atualização é diferenciação produtora de uma verdadeira criação, que não se assemelhaàs virtualidades constituídas de relações diferenciais que ela incorpora? Portanto, como qualificar esse movimento, a não ser, ainda uma vez, de bergsoniano? Aliás, Deleuze é o primeiro a lembrar que, ao interrogar a dupla gênese da qualidade e do extenso jem Mlózférfa e memória), Bergson "redescobre no interior da duração a ordem implicada por essa intensidade que só havia sido denunciada de fora e provisoriamente"27.Redescobertaque dará lugar à Euo/uç.ão criadora e à aproximação da biologia às matemáticas do infinitesimal. Cito a passagem sobre a função "englobante" da biologia: Na medida em que podemos pressenti-lo, o procedimento pelo qual se passaria da definição de uma certa ação vital ao sistema de fatos físico-químicos que ela implica teria uma analogia com a operação por meio da qual se vai da função à derivada [...]"28, isto é, da virtua]idade 2ó Idemz, p. 300. 27 /denz, p. 308. Cf. Le bergsonlsme, oP. cif., pp. 92-5.

28H. Bergson, l,'éz/o/afia/zcréafríce, op. cif., p. 32-3 / 521-2.

diferencial a suas formas de atualização. É, portanto, pela distinção entre os dois tipos de multiplicidade -- as multiplicidades qualitativas internas e as multiplicidades quantitativas de exterioridade, as multiplicidades contínuas referidas à ordem do virtual enquanto pertencentes essencialmente à duração, mudando de natureza ao se divi-

dir para não ser constituída por um conjunto de termos distintos, acolhendo o novo em seu devir na medida em que ele é necessariamente heterogêneo àquilo que o precede..., e as multiplicidades discontínuas

atuais representadas pelo espaço homogêneo segundo o regime do partes exf7'apartes -- que o bergsonismo se apresenta para Deleuze como a fonte intensiva da oncologia moderna como filosofia da diferença "essa filosofia da Diferença que o conjunto do bergsonismo representa", escreve eleZV.Se é verdade que a diferença entre o espaço e a duração, entre o atual e o virtual, torna possível a própria dife-

rença, é todo o bergsonismode Deleuzeque está mobilizado na afirmação de umczfilosofia da diferença, na medida em que "a filosofia é a teoria das multiplicidades", segundo a fórmula que assume a função de abertura em seu último texto, publicado postumamente. Essas poucas páginas, tão densas em seu título e seu conteúdo o mais bergsoniano possível -- "0 atual e o virtual" --, em que é reformulado

mais uma vez o essenciallou o "inassimilável"l, a saber, que só se atingirá o plano de imanência se for conferida ao virtual uma plena realidade, da qual depende sua atualização como diferenciação integrada em uma atualidade determinada. De tal forma que "o atual é o complementoou o produto, o objeto da atualização, mas esta só tem como sujeito o virtual"30. E como "sujeito de direito, na medida em que ele sefaz, [...] a vida, como portadora de singularidades". O fato de que essa última frase, extraída do livro Foucawlf, designe para Deleuze o verdadeiro horizonte da obra foucaultiana não surpreenderá o leitor capaz de detectar o movimento geral bergsoniano de sua leitura3]

Assim fundada,essa filosofiada diferençasó poderia reencon29 G. Deleuze, ibid.

se G. Deleuze, "L'actuei et le virtuel", publicado em anexo à nova edição

dos D/cz/ogaes com C. Parnet, oP. cif., pp. 180-1.

31Tal como Frédéric Gros, em seu belo artigo sobre "0 Foucault de Deleuze; uma ficção metafísica", Pbf/osopbie, n' 47, 1995, pp. 53-63, que conclui: "So

nhar Foucault encontrando emBergson um duplo fraternal". Cf. Foucczn/f,Paris, Minuit, 1986, p. 97, para a citação de Deleuze.

trar e desenvolverpor si mesma a grande intuição vitalistaque havia feito com que Bergson descobrisse a possibilidade de um novo monismo: o monismo do e/ã Fila/ como proa/emafização e dez/irde fnd/z/id zção do seP2. Uma filosofia da di/ere zça z/ifa/que apresenta o vivo múltiplo como ser problemático por excelência, considerando o devir como a dimensão do vivo através da individuação, teatro de individuação do ser e do pensamentono devir vital. Pois a individuação não suporá qualquer diferenciação ou especificação prévias, que relacionariam e reduziriam por abstração a diferençaa identidadese semelhanças entre estados como condições jsegundo "o artifício comum do método de Spencer", que consiste em reco/zsfif ir a ez/o/#çãoízpartir

de /ragmenfos do ez/o/uíao)33;ela as provocará, engendrará, criará, ao contrário, a partir de um campo pré-individual intenso, singularizado somente pelas diferenças de intensidade (ou diferenças individuantes,

isto é, diferenças vitais), que fazem da vida uma "imensidade de virtualidade" com tantas "zonas de indeterminação" quantos forem os seresvivos34... Como diz Raymond Ruyer, aqui mais bergsonianodo que ele o pensa, o x da individualidade está aquém da existência atual dc tal forma que ela é a fonte da diferenciação unitária35, que aparecerá "como constituída por diferenças múltiplas, complementares umas às outras [...] "36. Compreende-se,portanto, que Deleuzepossa

32Seguindo aqui a leitura deleuzeana, tomo essa expressão de G. Simondon, onipresente nesses capítulos de Df/lêre ce ef répélífíofz: "0 devir não é devir do

ser individuado, mas devir de individuaçãodo ser" (OP. cif., p. 234).

33Cf. HI. Bergson, L'éz/o/KtioKcréafríce, pp. 363 / 802. Ver igualmentea "Introdução", pp. X / 493. Mecanismo e finalismo serão, portanto, descartados,

na medidaem que as "criaçõesda vida" são aí igualmentepredeterminadase o tempo é concebido sem eficácia real. Sobre o papel fundador dessa crítica de Spencer

para o pensamentobergsoniano,cf. Líz pe/zséeef /emoz/z/íznt, pp. 2-5 / 1254-6. 34Cf. H. Bergson, "Lettre à L. Brunschvicg", Paras, 26 de fevereiro de ] 903,

]Wé/czges, P. 585.

35R. Ruyer, E/éme?zfsde psyc#o-bio/agia, PUF, 1948, pp. 133, 141. Mas Ruyer toma o partido de ignorar a dimensãovirtual-intensivado elã vital como fonte da diferenciação independente do anual", para recriminar Bergsoá por seu

irracionalismo (pp. 242-3). Deleuzeenfatizaacerca desseponto o profundo bergsonismo de Ruyer, cf. l,e bergsomisme,p. 103, n' l. 3óHI. Bergson, Les denx sources de la morde ef de /a re/igiofz," Signification de I'élan vital", pp. 120 / 1073.

:afirmar que toda confusão entre individuação e especificação, bem como entre individualidade e forma do Eu, "compromete a totalidadeda filosofia da diferença"37. Isso seria renunciar à gênese e à cons-

tituição para se ater, à maneirade Kant e mesmode Husserl, a nm

simples condicionamento transcendente! segundo o qual a condição remete ao condicionado c'tja imagem eta decalca conforme o modelo do possível mantido pelas filosofias da representação-\sso seria, potranto, renunciar a apreender cada existente em sua novidade c confundir o virtual com o possível, uma vez estabelecidoque "o que se diferencia é antes de tudo o que difere de si mesmo, isto é, o virtual"38

Será necessário, então, apreender, por um processo circular, a teoria do conbecimenfo e a feorla da z/idacomo inseparáveis uma da outra. I'ois, se "uma teoria da vida que não é acompanhada de uma crítica tlo conhecimento é obrigada a aceitar, tais como são, os conceitos que o entendimentopõe à sua disposição"iP, inversamente, na medida em que o vivo é considerado em suas fendênclaspróprias e quando é reconhecido o caráter empa'ico do elã vital, há -- segundo a formulação de Canguilhem -- "resistência da coisa, não ao conhecimento, mas a uma teoria do conhecimento que procede do conhecimento à coisa"4u. Ê, portanto, o vivo que marca, assim, a necessidade de um empirismo superior que substitua as condições de qualquer experiência possível pelas condições da experiência real. E "se essas condições podem e devem ser apreendidas em uma intuição", enfatiza Deleuze, 'é precisamente [.-] porque elas não devem ser maiores do que o condicionado, porque o conceito que elas formam é idêntico a seu obje[o"41. Apreende-se aqui o que une Deleuze tão intimamente, tão ex-

37G. Deleuze, op. cit., p. 318. 38G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", Les Éf des

bergsomie#z/zes, vol. IV, Paria, PUF, 1956, p. 97.

39H.. Bergson, L'éuolutio/zcria/ríce, Introduction, pp. IX / 492. 40G. Canguilhem, "Le concept et la vie", Frades d'bfsfoire ef de pbi/osopbfe des sciences, Paria, Vrin, 1968, p. 351. Conhece-se, na introdução a l,a com-

Piafsscznce de /a ple, essa fórmula marcada com o selodo bergsonismo:"0 pensamentodo vivo deve manter do vivo a idéia do vivo" IParis, Vrin, 1989, p. 13). 4i G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", loc. cif., pp 85-6. É nessecontexto que aparece, em Deleuze, a primeira ocorrência da idéia de um "empirismo

superior

clusivamente, à perspectiva bergsoniana e a seus prolongamentos em

Ruyer e Simondon, uma vez que só há um vitalismo integral para afirmar o ponto de vista da ontogênese na identidade constituinte da filosofia e da ontologia. É por isso que Deleuze retoma tão frequentemente o primeiro capítulo de À4aréría e memória, esse livro libertado da psicologia pelo tema da afe/zçãoà z/fda(Prólogo da sétima edição): bombardeando a distinção entre sujeito e objeto com sua teoria das imagens", Bergson atinge o plano da imanência como experiência pura, pura imanência da vida a si mesma, deslocando a oposição entre a vida e a matéria em direção a "toda uma continuidade de durações", com, entre a matéria e o espírito, todas as intensidadespossíveis de uma memória pura, idêntica à totalidade do passado, "passa' do em geral" que existe em si sob o modo de uma coexlstê/zela z,Irfucz/

l"o passado é a ontologia pura"42): igualdade plena do ser e da vida

implicandoa coextensividadede direito da consciênciaà vida, que verifica, assim, sua independência em relação ao Eu na identidade da memória com a própria duração43. Essa idéia de que tudo não é dado jem uma forma que remete necessariamenteà questão do sujeito), porque o virtual é o todo vivo, remete ao cerne de A ez/o/liçãocriadora

o tema nietzscheano da n/Irapass.agem do comem por seu próprio pefz42G. Deleuze, Le bergsonlsme, oP. cff., p. 51. Em um artigo citado por

Deleuze ("Aspects divers de la mémoire chez Bergson"), Jean Hyppolite passa pela língua alemã para aproximar o passado da essência: gemese?ze Weselz. "É preciso

que a ontologia seja possível" (p. 44)

essa afirmação, esse grito deleuzeano,

inspira toda a obra sobre Bergson. 43Em seu curso de 1947-1948, Merleau-Ponty denunciava a "cegueira de Bergson ao ser próprio da consciência, a sua estrutura intencional" na medida em que "é impossível, em sua perspectiva, nos situarmos no dinamismo de um sujeito constituinte" (M. Merleau-Ponty, L'K/zion de I'onze ef d# coros cbez Malebrapzcbe, Bírafz ef Bergson, Paras, Vrin, 1978, pp. 81-2). Raymond Ruyer explicitará a crítica da intencionalidade fenomenológica do

ponto de vista de uma filosofia da gênese: "A consciência primária não é nem consciênciade um Espírito-sujeito que percebe,nem consciênciade um Objeto, real ou ideal. A consciência é toda formação aviva, em sua atividade absoluta, e toda formação é consciência". A título de uma psicobiologia, eledesenvolverásua filosofia da morfogênesea partir de uma identidade forma-potencial-subjelividade(situada "fora" do espaço-tempo do físico), ou consciência-morfogênese compreendida

como "inteligênciainventiva". Assim "o homem só é consciente,inteligentee in

ventivo porque toda individualidade viva é consciente, inteligente e inventiva" -cf. R. Ruyer, l,.z ge/zêsedes dormes z/iz/antes,Paras, Flammarion, 1958, cap. Xll: Philosophie de la morphogenêse'

samenfo em dlreção à z/Ida44.E, de fato: se "a filosofia só pode ser um esforço para se fundir novamente no todo"4Õ, "para ultrapassar a condição humana"46 e "criar criadores"47, a experiência de pensamen-

to devetâ set de ultrapassagem do uiuido pela vida através do ser uivo. Uma filosofia da vida para a qual -- segundoo autor de Duas Áonfes da mo al e da re/lglão-- a própria moral é "de essênciabiológica", sc aceitamos conferir "à palavra blo/orla o sentido muito abrangente blueela deveria ter, que talvez algum dia ela tenha"48; uma ontologia do vivo e não uma fenomenologia do vivido. Segundo o regime da idealidade deleuzeana, a objetividade da Idéia junta-se aqui à subjetivação do pensador: "Todo corpo, toda coisa pensa e é um pensamento, na medida em que, reduzida às suas razões intensivas, ela exprime uma Idéia cuja atualização ela determina. Mas o próprio pensador faz de todas

as coisas suas diferenças individuais; e é nessesentido que ele é coberto de pedras e de diamantes, de plantas 'e dos próprios animais'"49.

Ligando e entrecruzando, como acabamos de fazer, as concepções de Deleuze e de Bergson, tomando como linha diretriz "a obratronco de onde toda obra provém"SO -- Diferença e repeflção --, tudo M Ce. P. Trotlgnan, L'idée de uie chez Bergson et [a critique de ]a méta/9óysígae,Paris, PUF, 1968, p. 279: "A ultrapassagemdo homem é uma disfi/zção epzfre.z z/idae z co/zsciê7zcfa /zo comem no próprio instante em que compreendo a Idefzlldadedíz vida e da cofzsciê cfa /zczco/zsclêncla". Remetendo às precauções de [$ergsonna uti]ização deste último termo ("Por fa]ta de uma pa]avra melhor [.-]

Mas não se trata dessa consciência diminuída que funciona em cada um de nós

[...]"), o autor enfatiza muito acertadamente que a z/idaé mais prímordiaZmenfe consclê/leia do gire mlnóa consclê/zela (p. S091. É só por conceber a ontologia como

'estática" que P. Trotignon pode concluir que a filosofia bergsoniana é "uma fe nomenologia absoluta, que não remete ízqua/quer onfo/ogia, porque e/a s p ime a disfunção entre o em-sà o para-si e o em-si-P.zrcz-si". Como ele mesmo escreve:

rls três são nm só e mesmomouime?zto:a d ração do ser... (p. 592). 45H. Bergson, L'éz/o/#fío/zcréalrice, pp. 193 / 658. 4óH. Bergson, l,a pelzséeef /e mozzz/anf,pp. 218 / 1425 47 H. Bergson, Les dezlx sources de /a mora/e ef de Za re/zgion, pp. 270 / 1 192. 48 Idem,

pp.

1 03 / 1061.

49 G. Deleuze, op. cít., p. 327.

50A. Villani, "Méthode et théoriedana I'oeuvrede Gilles Deleuze", Les Temos modernas,n' 586, 1996, p. 142: "Cada livro sendo então como uma exploração fina em uma das direções abertas por esselivro-evento"

indica que o sucesso relativo da proposta que tende a definir o bergsonismo de Deleuze na perspectiva da gênesede seu pensamento marca

também o fracasso real do projeto de caracterização da novidade deleuzeanaa respeito de Bergson. De forma que, uma vez verificado o centramento bergsoniano dessepensamento, tudo se passa como se o filho monstruoso, feito pelas costas de Bergson, só pudesse ser o efeito da filosofia deleuzeanaem seus desenvolvimentos posteriores (para ser breve: da concepção maquínica do desejo e do pensamento à teoria do conceito que a acompanha, passando pelo investimento na complexidade labiríntica da dobra barroca em Leibniz, entre monadologia e nomadologia)... Como se o #/bo monstruoso nascido da proa/ema-

tologia bevgsoniana não fosse diferente do próprio Deteuze em sua conceptalogia metamorfoseante.. .

A hipótese se sustenta pelo fato de que, tanto no nível do método que determina a coerência da obra deleuzeanacomo em seu ponto de partida e seu lugar teóricos, dados pela questão do estatuto da diferença, é Bergson que encontramos -- na identidade do método e da teoria,

e na passagem da metodologia à oncologia, tais como eles se propõem imediatamente, óergso?zlanczmenfe, desde que se conceba um múltiplo diferencial como diferença interna. Isso é sabido, e admiravelmente abordado nos dois artigos de 1 956, e especialmenteem "A concepção da diferença em Bergson": o método da diferença só é elemento constituinte de uma ontologia da duração na medida em que "a duração, a tendênciaé a diferença de si em relação a si mesmo; e o que difere de si é fmedia amenfe a unidade da substância e do sujeito", "unidade da coisa e do conceito", encontrando seu princípio na própria vida

j"A vida é o processoda diferença") graças à noção de virtual ("A

duração é o virtual"), que não contém negaçãoe descarta todo método dialético (porque dlÁerençaain(ü ex erma:Platão; ou diferença aPe as absfrafa, tributária de conceitos demasiadamente gerais: Hegel)51, mas

afasta também, no fundo pelas mesmasrazões, uma abordagem de tipo fenomenológico. Bergson, portanto, para sair de Hegel e de Husserl; Bergson presente no primeiro livro sobre Hume no nível de uma concepção geral da filosofia que afasta o princípio das "objeções" fundadas em uma crítica das soluções em nome de uma "crítica dos proble-

51G. Deleuze, "La conception de la difíérence chez Bergson", /oc. clf , pp

81, 89, 92, 96-7, 100.

mas"52, Bergson, acerca de quem Deleuze não ignorava tudo o que sua ruptura com as filosofias críticas devia ao empirismo inglês53. Se privilegiamos o artigo sobre a diferença em detrimento de seu duplo genérico,preso na determinaçãodos Pbl/osopbescé/êb7'es, e então intitulado simplesmente "Bergson" -- um Bergson estudado na perspectiva do progresso de sua filosofia, bastante próximo do esquema

do Bergsonlsmo, mas reinscrito, no final, na história da filosofia: o que levava Deleuze a separar o método, "profundamente novo", do projeto, 'não absolutamente

novo,

mesmo

na França"54...

--,

é também

em

função da própria insistência extrema na qzzeslãodo conceífo. Pois o que se esboça nessetexto é a passagem do concelhopuro da dlÁerezzça, identificado com o virtual, à nafwrezado puro conceito de que a duração ("diferença em relação a si", princípio de determinabilidade), .z memória ( "coexistência dos graus da diferença", princípio de determinação recíproca) e o e/ã z/ifa/("diferenciação da diferença", princípio de determinação completa cujos produtos são "objetos absolutamente conformes ao conceito [...] porque na verdade não são diferentes da posição complementar dos diferentes graus do próprio conceito") formam três aspectos-- os três níveis beTgsonianosdo esquematismo do co/zce/foem se ser co/zcrefo55.De forma que a leitura deleuzeana consiste em identificar o "tamanho" de um conceito apropriado a um

objeto determinado segundoo movimento do "empirismo verdadeiro", que vai das coisas aos conceitos "sob medida", moldados sobre as formas maleáveis da intuição -- "conceito do qual dificilmente se pode

dizer que seja um conceito", enfatiza Bergson56 --, ao movimento inverso, que não é mais o do "trabalho habitual da inteligência", dos conceitos "previamente dados" às coisas, mas da gênese das coisas a partir da diferenciação do conceito. Na maneira como Bergson podia definir a noção de cor, "fazendo atravessar uma lenteconvergente" 5z G. Deleuze, Empirismo et slfb/ecfiz/Ifé,Paras, PUF, 1953, p. 1 18-20. 53Cf. G. Deleuze, "Bergson", l,es pbí/osopbes cé/abres, sob a direção de M

Mer[eau-Ponty, Éd. Lucien Mazenod, ] 956, p. 299, f/z/;pze. s4 Idem, ibid.

55G. Deleuze, "La conception de la différence chez Bergson", /oc. cir., pp 99-100. sóHI. Bergson, La penséeet /e mono/cznf,pp. 197 / 1408; citado por Deleuze,

oP. cÍt., PP. 80-1.

seus mil matizes, para leva-los a um mesmo ponto: então apareceria "em sua unidadeindivisa" "a pura luz branca" de que cada matiztira, aqui embaixo, sua coloração própria. Então, conclui Deleuze, as dffeventescores não são mais objetos sob um conceito, mas os graus ou os matizes do próprio co/zceifo: "como as coisas tornaram-se os matizesou os graus do conceito, o próprio conceito tornou-se a coisa"S z. Ora, esse desenvolvimento, que tendia a extrair uma verdadeira conceptologia da problematologia bergsoniana e permitiria circunscrever no ponto mais esperado a natureza do bergsonismo de Deleuze (de

uma filosofia da diferença a uma ontologia do virtual enquíz/zfoteoria do conceito), não é mais retomado na obra sobre O bergsonismo do que nas publicações posteriores. A começar por DfÓerezça e repetição, em que, como vimos, uma Idéia de inspiração pós-kantiana estranhamente tomou o lugar daquilo que se anunciava de uma concepção heterogenética do conceito, relacionada durante um breve momento a Bergson. Uma Idéia que marca certamente, z/faMalmon je a leitura feita por Guéroult58), uma etapa essencial entre os trabalhos sobre Kant

e sobre Espinosa e uma pedra de toque para um possível -- e que logo se tornaria necessário -- retorno a Leibniz. Mas sobretudo uma Idéia que vem ocupar o lugar deixado vazio por Bergsone sua crítica da identidade

"estática",

"sólida",

"geométrica"

ou "utensiliar"

do concei-

to na representação; considerando que Bergson não desenvolverá, por si mesma, a conceitualidadedo conceito como "ser fluido", isto é, a concepção blo/(igicado conceito que ele, entretanto, põe em funcionamento, e que, por isso, é ainda prisioneira da realidade dos conceitos em biologia, em sua atualidade fundada na semelhançaespecífica. E esse movimento que Canguilhem resume, ressaltandoque, em Bergson, "a semelhança por especificaçãose prolonga na invenção humana do conceito, que equivaleà invenção humana da ferramenta: tanto o conceito como a ferramenta são mediações"59. 57Ide#z, pp. 279-80/ 1455-6: extraído da nota sobre "A vida e a obra de Ravaisson", que o próprio Bergson admite ter bergsonificado. Citado e comentado

por Deleuze, op. cif., p. 98.

s8 Ce. M.. Guéíou\t, La pbilosopbie transcendantale de Salomon Maimon, Alcan, 1929, especialmente "Remarque n' 2", pp. 161-71, sobre a Idéia como condição a priori da experiência, uma vez denunciado o valor unicamente formal do princípio de identidade.

59G. Canguilhem, /oc. clt., p. 353.

Somos, assim, confrontados a uma estrutura em quiasmo em que n não-conceitualização pelo próprio Bergson de sua prática do conceito cm um conceito do conceito que não seja mais o de sua identidade com ns idéias gerais, abstratas etc... encontra-se diferenciada e contra-efetua-

tla por Deleuze em uma conceptologia que só existe e só funciona ao integrar no nível do método e no conceito a totalidade das tesesde l\crgson. Daí uma leitura em sega/zdograz{ que slsfemalfzar(í essestemas a partir de um conceito do conceito que figura para Deleuze esse centro virtual, esse "ponto único" evocado por Bergson, tão extraortlinariamente simples em sua intuição original, tão complexo nas absrrações que o traduzem, que "o filósofo jamais conseguiu dizê-lo"60. S(} que Deleuze não desconhece que para Bergson essa impossível expressão é determinada pela í/zcomensarózbl/Idade da f feição ao concelho e czoslsfema61... Ora, O bergsonismo está aí para mostrar que

os deslizamentos, as futuras, e todas essas emissões secretas com as tluais Deleuze nos entretinha em conversações consigo mesmo, participam dessedescentramentoprincipal que, em minha opinião, não será mais exposto enquanto tal porque ele enganao sentido da obra bergso-

niana lza produção e na gênese da filosofia deleuzeana em seu movimento mais próprio de afirmação do vitalismo do conceito. Por meio disso, TUDO o que Deleuze escreveu é vitalista -- assim como ele mesmo o reivindicaóz

Considere-se a experiência integral do conceito em seu automovimento. E o bergsonismo de Deleuze, que celebrará em Bergson "um tios primeiros casos de automovimento do pensamento". Mas então quais são os outros, se "a introdução do movimento no conceito se faz exafame/zfena mesma época que a da introdução do movimento [ia imagem"t'J? óoCf. H. Bergson, l.a penséeef /e moat/anf, pp. 119-20 / 1346-7. ói Em seu comentário, A. de Lattre resume perfeitamente a dificuldade e o 'desconforto" da situação bergsoniana: "'ultrapassar',

dizem-nos, conceitos sem

os quais -- como, aliás, nos declaram -- não podemos ficar; deles nos 'liberar:

quando não podemos dispensa-los[...]" in Bergsolz. Une onfo]ogie de /a como/exffé,

I'ans, PUF, 1990, p. 284. 62Cf. Po rPar/ers, oP. clt., p. 196: "Tudo o que eu escrevi era vitalista, pelo xnenosespero [-.]" ú3 idem,

pp.

166-7.

Querendo afirmar com isso o caso único de Bergson na obra de Deleuze a saber, para falar como Badiou, mas dele me diferenciando (como não?), não há um caso Bergson, porque o bergsonismo não ê um caso do conceito, mas a causa paradoxo! do conceito deleuzeano, e de seu conceito do conceito, nesseenunciado indireto [iure que investirá todas as outras filosofias (incluindo a de Nietzsche...) como "casos do conceito"64 absolutamente unívoco do Ser e do Pensar.

Entre Imanência e Vida, a filosofia, para ser e alcançar a gênese do ato de pensar no próprio pensamento, deve desenvolveruma verdadeira criação: por oposição a tudo o que faz o mundo da reflexão do sujeito e do objeto. Bergson, portanto, quer dizer, também, Espinosa contra Hegel -- e "o que há", para um bergsoniano, "no espinosismo, de irredutível a qualquer outra doutrina"65. E o que há, para Deleuze, em Espinosa de irredutível, ou de "inassimilável", à cesura entre metafísica da vida e filosofia do conceito. Espinosa, ou o problema da expressão de uma metafísica da vida como filosofia do conceito. Daí que Bergson perceba muito precisamente em Espinosa "o mais difícil dos filósofos"ÓÓ. E que a história da filosofia deleuzeana só se conceba a partir de um bergsonismo espinosista que coloca a necessidade do sistema (do conceito) como heterogênese(da vida). O que, dirá Deleuze, nunca fora tentadoÓ7.O que, no que me concerne, propus chamar de uma onto-etologiaÓ8.

Tradução de Ana Lúcia Oliveira

64A. Badiou, Deleuze. La c/ame r de /'érre, Paria, Hachette, 1996, p. 25. Badiou viu acertadamente que Bergson é o "verdadeiro mestre" de Deleuze, mas ele ainda menciona um "caso Bergson" (p. 62).

ó5Segundo o relatório do curso realizado no Collêge de France, 1910-1911 lcf. Àfé/alzges,p 846). A idéia de um cartesianismo de Espinosa é, portanto, "inteiramente superficial".

óõEncontra-se essa consideraçãoem uma carta a F. Vanderem, datada de 27 de fevereiro de 1914 (À4é/.zlzges,p. 1040). õ7Na carta-prefácio a J.-Clet Martin, Vbrfafíons. La pbf/osopbíe de Gi//es De/ezlze, Paria, Payot, 1993, p. 7. SBCÍ. La signature du monde, ou qu'est-ce que la pbilosopbie de Delmze et

Guanari?, Pauis, Éd. du Cera, 1993, p. 36 (e cap. lll: Onto-éthologiques).

1

)0 CAMPO TRANSCENDENTAL

Ao NOMADISMO OPERÁRIO l )nvid Lapoujade

WILLIAM JAMES

William James reivindica para si o empirismo radical. Sua filo\afia não é o pragmatismo, como se pensa habitualmente, mas o emllirismo. O que significa ser empirista radical? Deleuze e Guattari dão [i[n.] definição disso em O qae é a #/oso/7ai: "É quando a imanência

ii;io é mais imanente a algo diferente de si mesma que se pode falar de liln plano de imanência. Tal plano talvez seja um empirismo radical"i ( ) cmpirismo radical seria, consequentemente,essa operação que consiste em liberar a imanência, em entrega-la a seu próprio movimento. l .m outro texto, Deleuze denomina essa operação empirismo transcentlcntal, precisamente aquilo por meio do que se estabeleceum plano tlc imanência, quando o plano de imanência é determinado como caml)o transcendental.

Se, em um primeiro momento, James se diz não empirista, mas c'mpirista radical, é porque ele se relaciona não à experiência, mas à cxPer/ê zelaparca.É o nome que o plano de imanência recebe em William James. Seu empirismo é radical por não reconhecer o dado tal como o concebem os empiristas clássicos, que partem de uma distril)uição anárquica de mifzima sensíveis -- de átomos psíquicos. Além disso, nos empiristas o plano de experiência pura se confunde ainda com o momento teórico, rapidamente ultrapassado, da tábula rasa; a experiência é pura na medida em que aquele que a faz é em si mesmo ainda puro de qualquer experiência: Adão, o recém-nascido. Há um outro modo de destacar um plano de experiência pura, que consiste cm repetir a operação cartesiana da dúvida e suspender todas as posições existenciais que são objeto de crença ingênua -- todas as transcendências. Reencontra-se, então, a célebre fórmula de Husserl, nas Meditações caffesfcznas:"0 início é a experiência pura e, por assim dizer, ainda muda, que consiste em levar à expressão pura de seu pró-

prio sentido. Ora, a expressão realmente primeira é a do 'eu sou' car-

l Qz/'esí-ceq e /a pbl/osopble?,Paris, Minuit, p. 48

tesiano [...]"2. SÓ que a dúvida sempre é conduzida a partir de uma certeza essencial da qual ela é o reverso negativo. Chega inevitavelmente

o momento em que ela volta para trás para instituir como primeiro princípio algo cuja potência de constituição ela já manifestava através de seu poder de suspensão: um "Eu penso" Então, "puro" adquire outro sentido. Não é mais atribuído a personagens sem experiência -- tal como Adão ou o recém-nascido --, como no tempo do empirismo clássico, mas doravante é atribuído a um campo purificado, pela dúvida, de todas as matérias da psicologia empírica. Puro designa, com efeito, aquilo que subsiste à redução ou "colocação entre parênteses". Puro se diz de todos os vividos considerados de um ponto de vista imanente. Assim, há uma experiência pura, mas também uma expressão pura ou uma consciência pura. Trata-sejá da mesma operação encontrada em Kant, embora ela seja conduzida sob outros princípios e produza outros resultados: puro designa a determinação das formas independentementede sua matéria empírica. Identifica-seo puro com as formas a priori para fazer da matéria parte da empina, do condicionado,da experiência.3Começa-se pelas formas puras que, em seguida, são necessariamentepreenchidas por matérias ou por essências, diversificadas por meio de exemplos.

Se a fenomenologia pode se considerar, com razão, transcendental, é na medida em que repete o procedimento kantiano, mas sob uma forma mais complexa, menos visível, já que Husserl deixa menos evidente o fato de que o par empírico/transcendentalrecobre inteiramenteo par matéria/forma. De um modo geral, puro quer então dizer que as formas são implantadas no campo transcendental, constituindo-se ora como a priori, ora como vividos imanentes. Já as descrições da experiência pura dadas por James levam a formular a seguinte questão: por que Kant e Husserl não examinaram a pureza das próprias formas? Por que não examinaram se as formas do ego, do sujeito, do objeto, da imaginação, e da intencionalidade

2 À4édffalfo?zs carfésíen?zes,Vrin, S 16, p. 33. 3 "Se a matéria de rodo fenómeno nos é dada, é verdade, somente a posteriori,

é preciso que sua forma se encontrea priori no espírito, pronta para se aplicar a todos, conseqiientemente,é preciso que ela possaser considerada independentemente de qualquer sensação." Crfffque de /a rafson Fure, Paris, PUF, "Esthétique

transcendantale", S 1, p. 54. Oeaures pbl/osopbiqKes,Paria, Gallimard, 1,p. 782.

c'ram puras? É possível implanta-las no campo transcendental sem t'xaminar melhor suas implicações? A questão parece tanto mais lusrificada na medida em que essas formas, embora reorganizadas, ampliadasou reduzidas, são sempreduplicadas por uma psicologia eml)írica da qual, além disso, pretendemosnos desfazer.4 Censura-se a psicologia por seu empirismo e naturalismo, quando teria sido neces\ária critica-la por deles extrair formas ruins, distinções falseadas. É como se o transcendental fosse uma psicologia depurada. De certo modo, tanto para Kant como para Hlusserl,as formas são puras na iltedidaem que são formas -- há aí um pressuposto aristotélico ou íomista profundo.

Nessas condições, como pode James promover uma experiência pura ao mesmo tempo que reivindica um empirismo radical? A experiência pura não encontra sua expressão no ego da consciência pura. Ao contrário, segundo o que diz Deleuze, em "A imanência: uma vida",

um de seus textos mais densos, é preciso partir de um mundo em que n consciência ainda não esteja revelada, embora seja coextensiva a todo

o campo transcendental.SAinda não se pode praticar aí nenhuma distinção: nem sujeito, nem objeto. Do mesmo modo, em James, é preci-

so partir de um campo ilimitado em que as distinçõesdualistas mundo físico e mundo psíquico, mundo do pensamentoe mundo da matéria, sujeito e objeto -- ainda não estão feitas ou não podem ser

4 Esse aspectofoi amplamente comentado. É, em primeiro lugar, a observação

de Sartre, que critica Husserl por ter duplicado o eu psíquico com um eu trans-

cendental.Cf. l,a Iralzscedentede /'ego,Paris,Vrin, 1, A, pp. 19-20;em seguida, esseé o sentido das páginas de M. Dufrenne sobre a retomada kantiana das faculdades da psicologia empírica de Hume e do formalismo de Husserl. Cf. La /zoffom d'a prior, Paria, PUF: sobre a retomada kantiana, p. 20-1; sobre o primado da forma

em Husserl, pp. 90-1 e 94. E, finalmente, os textos de Deleuze em que se propõe a instauração de um empirismo transcendental que não seja decalcado das formas empíricas, o que é uma outra maneira de dizer que não se deve relacionar o plano de imanência a algo diferente dele mesmo. Cf. DI/Hérenceef réPéfflio#, PUF, lll,

PP. 186-7. 5 Pbf/osopbfe,n' 47, Paris, Minuit, p. 3: "Enquanto a consciênciaatravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita e difusa, não há nada que possa revela-la. Ela só se exprime, de fato, ao se refletir sobre um sujeito que a remexaa objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido por sua consciência, que, embora Ihe seja coextensiva, é desprovida de qualquer revelação

feitas sem que a experiência deixe de ser pura, sem que a imanência seja perdida. É o campo da experiência no estado puro. Não é o campo de ninguém; ou, antes, ele não é dado a ninguém. Mas seria possível objetar: como pode haver experiência sem uma consciência ou um sujeito a quem ela se faz? Não se devem supor, ao menos, formas larvais

de sujeito e de objeto? Aliás, James não diz que a experiência pura "é consciente e é aquilo de que temos consciência"Ó? A experiência deve

então ser entendida em um sentido muito geral: a experiência pura é o conjunto de tudo o que está em relação com outra coisa, sem que necessariamente exista uma consciência dessa relação. Encontra-se algo

desse uso da palavra expe7'fê/zela na expressão comum "fazer uma experiência", por exemplo, a experiência da cristalização entre o cloro e o sódio. Somos nós mesmos que fazemos a experiência; mas a expe-

riência não se dfz de nós, ela se diz das coisas em relação: são o cloro e o sódio que se cristalizam; assim, são eles que efetivamente fazem a experiência da cristalização. Na medida em que é pura, a experiência pode ser dita tanto dos "sujeitos" como dos "objetos" (o que continua a ser uma maneira de falar, pois nessenível nenhum dos dois existe). Em termos mais precisos, deve-separtir de um campo em que a experiência seja virtualmente subjetiva ou objetiva, indiferentemente mental ou física, mas, também, primitivamente nem outra. Isso significa que é preciso liberar o fluxo da experiência das categorias nas quais

se quer tradicionalmente reparei-lo. Nesse sentido, trata-se de fato de uma experiência pura. Puro não quer mais dizer puro de toda matéria, mas puro de toda forma -- ou, antes, designa uma realidade intermediária exterior a qualquer relação matéria/forma. Com efeito, o que o empirismo radical recusa -- e que constitui o fundo das filosofias transcendentais de Kant e Husserl -- é o esquema hilemórfico. Era um objetivo semelhanteque James fixava para si com a psicologia: liberar o fluxo de consciência, o famoso sfream o/' conscious/zess,das formas da psicologia tradicional. Contudo, não se trata, para James, de derrubar o primado da forma sobre a matéria para

deixar fluir uma matéria sensitiva, livre, à maneira dos empiristas. Independentementedessa relação, existe uma realidade intermediária, nem

matéria nem forma, que se desdobra por si mesma e da qual são feitas tanto as realidades psíquicas como as físicas. E o que é ela? É, diz James,

6 Essays, man scriPrsaria Mores,Harvard University Press, p. 18, 4 (4459).

apenas um algo primordial ou um material no mundo, um algo de que tudo é composto, e [...] denominamos esse algo 'experiência pura'".7 C) plano de imanência não é uma matéria, mas um maferla/. Ora, o marcrial não se deixa pensar em uma relação matéria/forma, do mesmo iitodo como também não entra nas categorias sujeito/objeto, matéria/ llcnsamentoetc. Ele é diretamente físico-mental. O material não é nem Matéria, nem Pensamento, embora seja o "estofo" dos dois.

Com efeito, o materialnão é a matériaou o informe. Ele já é l)c'rcorridopor relações,como um tecidoé percorrido por fibras,por linhas. A imagem do tecido retorna constantemente em James. Há um

tecido da experiência pura -- Deleuze e Guattari, por sua vez, dizem Lllle"o plano de imanência não pára de se tecer, gigantesco tear"8. E tln mesma maneira como, para eles, o plano de imanência se define como o "Uno-Todo ilimitado"9, assim também a experiência pura, em .Inmes, se apresenta como um "monismo vago"10. O termo monlsmo não deve, entretanto, nos enganar; na realidade, trata-se de um pluralismo, mas ainda virtual. O mundo da experiência pura apresentasc como um tecido de relações entrecruzadas, superpostas, de acontecimentos que se imbricam. É também o caos propriamente empirista, tias relações possíveis e virtuais em número ilimitado (um pouco como

c'm Hume, que abriga o caos na imaginação e formula seu princípio geral: qualquer coisa pode produzir qualquer coisa). Mas, precisamente, essas relações e esses acontecimentos são virtuais; ainda devem se fazer em uma experiência. O que distingue a experiência da experiência pura é exatamente a atualização dessas relações no interior do material. A experiência é um percurso ou uma série de percursos que seguem um número relativo de relações. Se a

7 Essays ifzradica/ emPlriclsm, Harvard University Press, p 4. Em seu estudo

sobre Leibniz e o barroco, Deleuze mostra, através da obra de Dubuffet, que Leibniz substitui a relação matéria-forma por uma relação material-força: "A matéria que revela

sua textura se torna material, assim como a forma que revela suas dobras se torna força. E o par material/força que, no barroco, substitui a matéria e a forma(as forças

primitivassendoas da alma)". Le P/í, Paria, Minuit, cap. 3, p. 50. 8 Qu'est-ce que !a pbilosopbie?, p. 41. 9 Idem, p. 38. 10 Essays flz radica/ emPirfclsm, p. 113.

consciência se revela como fluxo, é porque ela sempre está seguindo linhas, criando seus percursos. Assim, em uma primeira dimensão, o processo do conhecimento consisteem seguir as linhas, as relaçõesvirtuais inscritas no material, isto é, consiste em criar um percurso e as dimensõesdesse percurso. O primeiro elementoé a linha ou a série que o conhecimento constitui, de um primeiro termo relativo a uma finalização provisória. O conhecimento é deambulatório. E precisamenteJames opõe dois tipos de conhecimento: saltatório e ambulatório. Em um caso, partese da imanência de um sujeito que deve saltar por cima dele mesmo, em um Absoluto ou sobre um campo transcendental, para relacionar o objeto a um sujeito. O conhecimento saltatório procede dessemodo porque ele esvazia as séries de seus termos intermediáriosi l. James substitui essetipo de conhecimento por um outro, que, precisamente,percorre a cada vez toda a série dos intermediários ou a contrai em um hábito: trata-se dessa vez do conhecimento dito ambulatório. Como diz James, "minha tese é a de que o conhecimento em questão é co sfíf ído pela deambulação através das experiências intermediárias [-.] Para uma relação concreta de conhecimento, as experiências intermediárias são, portanto, fundamentos tão indispensáveisquanto

o espaço intermediário o é para uma relação de distância. O conhecimento, todas as vezes que o enfocamos concretamente, significa 'deambulação' [...] "12. Assim, por convenção, denominar-se-ásujeitoo ponto de partida de uma série, e objeto, o ponto de chegada, mas apenas por convenção, e sem negligenciar os intermediários, que adquirem uma consistência própria.13 Dir-se-iam igualmente mantenedores e finaliii "Pois esvaziamos primeiro a idéia, o objeto e seus intermediários de todas as suas particularidades, com a finalidade de reter apenas um esquema geral; e assim só consideramos este último na função que consiste em dar um resultado, e não em seu caráter de processo [-.] Em outros termos, os intermediários que, em sua particularidade concreta, formam uma ponte, evaporam-se idealmente,de

modo a não ser mais do que um intervalo vazio a ultrapassar." Tbe meafzilzgo/ frHfb, Harvard University Press, VI, p. 247.

iz Idem, pp. 246-7. i3 Para Deleuze e Guattari, a independência relativa dos termos intermediá-

rios é um dos traços essenciaisdo nomadismo. Mi/le plafeanx, Paris, Minuit, p. 471: "Um trajeto é sempre entre dois pontos, mas o entre-lugaradquiriu toda a consistência, e goza de autonomia, assim como de direção própria. A vida do nõmade é intermezzo:

/..iclorcs. Deambular não significa que o conhecimento esteja necessa-

ri;trilcnte submetido à errância, significa que ele se faz pouco a pouLt), por meio de junções sucessivas, segundo expressões recorrentes em Inlncs. Conhecer é percorrer relações, as relações que atravessam a ex-

llc'ciênciapura, é seguir relações e coloca-las em série. Conhecer é prosl)t'tr:\r -- como no texto de MiJ PZafõssobre as máquinas de guerra, i'ili blueDcleuze e Guattari, inspirando-se em Simondon, mostram que iio artesão a relação matéria/forma não é a de modelagem,mas que t'lt-segue uma materialidade que ele modula14. A primeira imagem é i) artesão prospector, que só deixa de ser artesão para se tornar tra1).tlhadorquando se interrompe uma deambulação que segueo moviitlcntoe as variações do material, aquilo que Deleuze e Guattari dellominam o "pby/am maquínico". Nesse sentido, seguir as linhas "materiais" é detectar nelas funções, fazer funcionar o material. /amos subs-

titui um esquema matéria/forma por um esquema material/função. É quando se pergunta como são feitas as linhas que z/maseguní/a dimensão aparece. Pois essas linhas são pontos que é preciso construir de um termo a outro. Como diz James, "a idéia não dá um salto tónicopor sobre o abismo, ela opera aos poucos, de modo a lançar uma ponte que o atravesse, completa ou aproximativamente"15. A deaml)ulação se faz gradativamente, por junções sucessivas. O conhecimento cresce por meio de pedaços que se agrupam. O segundo elemento, após

a linha, é então o pedaço. De modo mais preciso, a consciência se revela e se faz seguindo linhas, mas também apreendendo pedaços, que cla relaciona entre si. A consciência é um fluxo, mas o fluxo não cessa de se contrair em campos ou "pulsações" que mantêm juntos os elementos da percepção, da volição, da emoção, do pensamento. Um pedaço é um tal campo, consistente por si mesmo, autocoalescente. As percepções, os pensamentos e as emoções são tratados como pedaços.

O fluxo de consciência é um desfilar de pedaços heterogêneospor seus motivos, homogêneos por seu estofo. A matéria têxtil da experiência 14Ml{/leP/afeaax, pp. 509-10. Note-se que essa materialidade é definida em termos muito semelhantesàqueles com os quais James descreve o material: "Mas elesó é, portanto, 'intermediário' na medida em que o intermediário é autónomo, quando ele mesmo se estende em primeiro lugar entre as coisas e entre os pensamentos, para instaurar uma relação inteiramente nova entre os pensamentos e as coisas, uma vaga identidade dos dois í5 Tbe mea?zfpzgo/' frufó, Vll, p. 264.

pura é compósita. Mesmo sendo contínua e homogênea, não deixa de ser feita de pedaços ligados entre si de diversas maneiras. É evidenteque encontramos aí a definição do pragmatismo americano como pafcbmorA dada por Deleuze. Pode-se ler, assim, em Crítica e c/híca, no estudo sobre Melville:

Nem sequer um quebra-cabeça, cujas peças, ao se adaptarem, reconstituiriam um todo, mas antes como um muro de pedras livres, não cimentadas, em que cada elemen-

to vale por si mesmo e no entanto tem relação com os demais [...]; não uma vestimentauniforme, mas uma capa de Arlequim, mesmo branco sobre branco, uma colcha de retalhos de continuação infinita, de juntura mú]tip]a [...] a invenção americana por excelência, pois os americanos inventaram a colcha de retalhos, no mesmo sentido em que se diz que os suíços inventaram o cuco"ió. Há um "estofo" da experiência. Literalmente, o conhecimento consiste em construir um palcbwor&; é um trabalho por pedaços. E por isso que com frequência James invoca um tecido da experiência, como

material têxtil. Costuramos ou remendamos nossos pedaços de experiências uns aos outros, pouco a pouco, por intermédio de séries. Como

diz James: "A própria experiência, tomada no sentido amplo, pode crescer por suas bordas. Não se pode contestar que um de seus momentos

se desenvolvano momento seguinte por meio de transições, conjuntivas ou disjuntivas, que prolongam o tecido da experiência [...]"i'. Mas não é apenas o conhecimento ou a consciência que se constrói como um pafcbmor&, é o próprio mundo que aos poucos tece um gigantesco pafcbmor&. Nesse sentido, James fala de uma filosofia em mosaico. Existe um número incalculávelde redes que se superpõem umas às outras e formam um tecido compósito. Como diz James: "Nós mesmos criamos constantemente conexões novas entre as coisas, organizando grupos de trabalhadores, estabelecendo sistemas postais, consulares, comerciais, redes de vias férreas, de telégrafos, uniões coloniais e outras organizações que nos relacioname nos unem às coiiÓ Crílíq e et c/ilzlque, Paras, Minuit, pp. 1 10-1.

i7 Essays in radica! empiticism, p. 42.

sas por meio de uma rede cuja amplitude se estende à medida que se estreitam as malhas [.-] Do ponto de vista desses sistemas parciais, o mundo inteiro se sustenta gradativamente, dc diferentes maneiras" 18 James substitui a idéia de um Todo concêntrico que fusiona suas par-

tespor um mundo abertocompostopor pedaçosou por sistemas--

diversos "pequenos mundos"19 de ligações múltiplas, e que se mantêm por sl mesmos. O tema do pafcbmor& ou da filosofia em mosaico terá seu prolongamento na Escola de Sociologia de Chicago, por volta dos anos 20. A cidade é descrita por tal escola como uma realidadeem pedaços, através da diversidade dos bairros urbanos -- pequenos mundos isolados que abrigam populações imigrantes, junções anónimas de indivíduos em deslocamento. Como diz Park, "os processos de segregação instauram distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos, que se tocam sem se interpenetrar. Isso dá aos indivíduos a possibilidade de passar fácil e rapidamente de um meio ambiente moral a outro e encoraja esta experiência fascinante, mas perigosa, de viver em vários mundos diferentes, contíguos certamente, mas, apesar de tudo, distintos"ZU. No entanto, seguindo a outra dimensão, seguindo o emaranhado das linhas, o mundo forma menos um pafcbwor& do que um gigantesco nefmor&. Linha e pedaço, /zefmor&e parcbmorh são os dois grandes eixos de construção da experiência e de crescimento do mundo. Segundo um exemplo de James, a natureza funciona exatamente como uma rede postal à qual se superpõe uma rede telefónicaque a recobre em parte, estabelecendo,entretanto, conexões específicas que incluem novas unidades. O mundo apresenta-secomo um emaranhado de relações: por exemplo, a luz como linha de influência, o espaço como relação de junção, o tempo como relação contínua de envolvimento, a linha de consciênciacujo percurso progride através dessas

i8 Some proa/ems o/'pbf/osopby, Harvard University Press, V, p. 69. i9 Pragmczffsm,Harvard University Press, p. 67: "Disso resultam, para as diversas partes do universo, inumeráveis pequenos agrupamentos no interior de

agrupamentosmais vastos; pequenos mundos [-.] no interior do universo mais

vasto

43-5

zoCitado em Hannerz, Exp/orar /a z/f//e,Paria, Minuit, trad. 1. Joseph, pp

outras linhas. Eis do que se deve sempre partir: uma multiplicidade de relações que se entrecruzam, se superpõem em todos os sentidos e se revelam tão logo as seguimos. Ê preciso citar James novamente: "Existem inumeráveis relações de diferentes espécies que coisas especiais podem ter com outras coisas especiais; e, em seu conjunto, qualquer uma dessas ligações forma uma

espécie de sistema por meio do qual as coisas são ligadas. Assim, os homens são ligados no interior de uma vasta rede de conhecimento. Brown conhece Jones, Jones conhece Ro-

binson etc.; escolhendo apropriadamente suas séries de intermediários, você poderá fazer com que uma mensagemde Jones chegue até a imperatriz da China, até o chefe dos pig-

meus da África, até qualquer habitante deste mundo. Mas você é logo interrompido, como por um elemento não-con-

dutor, quando escolhemal um de seus intermediáriosno curso dessaexperimentação"z'.

O pensamento de James é como um romance de Dos Passos, que descreve a superposição dessas conexões, as redes ferroviárias, marítimas, aéreas, e as mistura com as biografias humanas e com os pedaços de notícias, o grande romance sincrânico dos itinerários simultâneos que se superpõem. Decerto trata-se de considerar o mundo simul-

taneamentecomo um vasto tecido composto pouco a pouco e como um sistema de redes: patcbmorh e nefzaori. Se a filosofia oriunda do pragmatismo é talvez a filosofia americana por excelência,julgar-se-á sem dúvida que isso se deve ao fato de ela pensar as relações como grandes sistemasde netmor&sque podem ser indefinidamente construídos e que se superpõem em todos os

sentidos, ao fato de antecipar os grandes desenvolvimentos das redes de comunicação do século XX, que vão de cidades-mosaicos a cidades-mosaicos. Não estamos, então, longe de retomar a definição tradicional do pragmatismo como promoção do capitalismo americano e de seus valores comerciais. Entretanto, segundo James, o filósofo é aquele que, por sua vez, não cessa de deambular por entre essas vastas redes; ele nos parece assemelhar-se mais a um trabalhador itinerante zi Pragmallsm, Harvard University Press, IV, p. 67.

(ou ao artesão prospector de À4flPlafós) do que a um homem de neH(Seios.A filosofia de James parece, de fato, mais próxima de uma ordem social menos triunfante: a de Hobos (cujos modos de vida a Escola de Sociologia de Chicago descrevera). Eles formam o imenso fluxo disperso dos trabalhadores migrantes que atravessaram os Estados Unidos, de Chicago até a Costa Oeste, em função dos canteiros de obras c dos empregos sazonais, organizando-se em sociedades provisórias e

locais, a "Hoboêmia". "0 veterano da estrada sempre encontra nela outros veteranos; o birrento incurável, seu a/fer ego; o radical, o otimista; o trapaceiro, o alcoólatra, todos aí encontram alguémcom quem se entender [...]. Eles se encontram e seguem seu caminho"22. E]es se distinguemradicalmente dos pioneiros na medida em que são inseparáveis dos movimentos da economia capitalista americana, em que se alternam expansões e crises agudas, em que o uso maciço da demissão se combina com a alta rotatividade da mão-de-obra. Esses ritmos rápidos contribuem para a instabilidade dos empregos e para a mobilidadeforçada, para o "nomadismo operário". Trata-se de uma verdadeira "dromomania", segundo a bela expressão de Nels Anderson. ;Essa necessidadese apodera de nós sem avisar [.-] Temos o automóvel, o vagão de estrada de ferro, o barco a vapor, o avião -- cuja função essencial é, de fato, a de gratificar nossas tendências vagabundas."23 Portanto, eles tampouco são operários sedentários; além disso, mal conseguemsuportar o controle a distância do sindicato. Estão, por assim dizer, no entre-lugar, entre as duas Fronteiras, entre a fronteira das primeiras comunidades de pioneiros (que chegaram ao Pacífico por volta de 1850) e a fronteira da industrialização (que concluiu sua expansão por volta de 1920). São eles que percorrem o país de maneira ambulatória e brilham a rede das conexões. Eles fazem um

pedaço de estrada e passam de transições a paradas provisórias, à maneira dos personagens de London. É, então, de um modo bastante curioso que a filosofia de James é a filosofia do capitalismo americano.

Tradução de Ana Lúcia Oliveira

22Cf. o belo livro de Nels Anderson, Le FÍobo: socio/ogled sa/zs-abri

Nathan, 1993, e o prefácio de O. Schwartz. 23/dem, p. 106.

A PERCEPÇÃO EM SARTRE E DELEUZE Véronique Bergen

DUPLA ACEPÇÃO DE ESSE EST PERCIPJ A escuta de uma percepção liberada do primado do conhecimento

e das predeterminações ligadas às metafísicas da presença é capaz de oferecer uma abertura, uma relação inédita com o ser no movimento em que a base ontológica adorada orienta a tomada da percepção. Em Sartre, desdobra-se um dualismo ontológico obtido no absoluto da consciência e na massividade intemporal de um em-si totalizado, revelado pelo para-si. Em Deleuze, afirma-se um monismo vitalista obtido na univocidade do ser, no ser do devir e na ontogênesecomum do ser e do pensamento a partir de uma matéria intensa não formada. Sob o horizonte dessas duas ontologias, o estudo das modulações específicas que o estatuto da percepção conhece nos levará a expor em que sentido esse duplo posicionamento acerca do esse esf percipl bifurcará na composição de planos de imanência divergentes. Especificaremos essa divergência sobre três linhas.de futura, a saber: primeiro, no nível das relaçõesestabelecidasentre "sujeito" e "objeto"; segundo, na oposição entre fundo/forma, todo/coleção e regular/singular, inconsciente/consciente;e, terceiro, relativamente às qualificações contrárias ligadas ao ser. Para além da assunção comum de uma construção imanente do percebido, fora de todo modelo, veremoscomo se articulam, por diferenciação, um lance de dados reunido pela intencionalidade, de um lado, e um lance de dados obtido das singularidades intensivas, de outro; em suma, como se configuram, a partir da problemática da percepção, duas imagens singulares do que signi-

fica pensar.

Assentada sobre a transfenomenalidade objetiva do ser e do nada, a percepção será associada, por Sartre, a um ser transcendente cuja objetividade se revela irredutível a toda síntese subjetiva, a todo pe7clpie/zs.

Quanto a Deleuze, ele declinara no infinito de um campo imanente a emergênciade uma percepção alucinatória despida de objeto exterior estável,cesurada de todo modelo real ou molde a priori: construindo o ser como perclPi, gerando-secomo mecanismo psíquico inconsciente

ltnivés da circularidade de causalidades projetivas ideais, a percepção .assemelha-seàs dobras da matéria que ela refuta conceitualmente no movimento mesmo em que o objeto, do qual a percepção extrai a tradução em pensamentodo que a (auto-jafeta, é instituído como o semelhado em conformidade ao modelo do percebido extraído daquilo sobre o qual ele se projeta. Ê para a elucidação das respectivas compreensões da fórmula berkeleyana esseesl perclpí de teor negativo, depreciativoem Sartre, afirmativo em Deleuze -- que nos encaminharemos, destacando com isso o estudo da circularidade deleuzeana(movimento em torção, fuga em espiral que deporta o semelhado para o modelo do percebidos por seu confronto com a circularidade fenomenológica.

TRANSFENOMENALIDADE

DO SER

Em Sartre, a anterioridade do ser sobre a consciência que se faz não ser o em-si, a dependência do em-si maciço, opaco, incriado, para com a atividade nadificante de um para-si que revela o ser por e no acesso a seu "há", a seu sentido, o argumento ontológico que autoriza, ou melhor, que prescreve o surgimento do desvelado a partir do desvelamento, se apoiam, todos os três, na aquisição de base da fenomenologia: a absolutidade prévia de uma consciênciada qual nada constitui a causa, que "se extrai" do ser e se afirma como o absoluto irrecusável sempre em ato, agindo incessantementeno todo de sua operatividade, grandeza intensiva sempre Já desdobrada, real, plenamente anual, presente a si como ser do possível, ainda que sob a forma de sua auto-alienação, de uma opacificação concertada em seu seio,

por sua própria vontade. Partindo da relação sintética sempre já estabelecida entre o para-si e o em-si, Sartre interrogara suas ligações dialéticas no nível do fatos, e não as condições de possibilidade que compõem um campo transcendental, na medida em que estas requerem a instalação de um ponto de vista de sobrevoo indevido, a adição de l "Não há juízos sintéticosa priori porque não há necessidadedeles,visto

que não há permanência ontológica do conhecimento. Há liberdade como fundamento de sínteses reais a fazer. Pelo homem a síntese entra no universo. E ele a desvela ao opera-la. O pâr-em-relação vem do fato de o homem ser relação a si

através do Ser. E o põr-em-relaçãoé sempreoperatório. Ele se inscreve no Ser". Sartre, Vérifé ef existe/zce,Paria, Gallimard, 1989, p. 40.

uma opção metafísica, em exterioridade, relacionada a toda questão de direito -- o mesmo que Gilles Deleuze desenvolverá em seu questio-

namento da gênese e do transcendental. Se o conhecimento intuitivo do em-sinada acrescentaa este último, se, por suas síntesesativas, o para'si recorta a opacidade do ser em determinações significantes finitas, arrancando do escuro fundo indiferenciado as formas dos múltiplos "isso", o todo do ser jamais apropriado, que intima o para-si a responder ao desafio que ele compõe, moldado através de suas fenomenalizações, exibe um ser em-si objetivo que o para-si deve não ser. Mas seu ser qualitativo só terá sentido através da atividade sintética da consciência: incapaz de se unificar do interior de suas manifestaçõesfenomênicas diferenciantes (monadologia de Leibniz), estranho a toda natureza intensivaque se distribui positivamenteem afir-

mações de si, em expressões do todo substancial (univocidade do ser

de Espinosa a Deleuze), o em-si como totalização perpetuamente destotalizada depende das negações ativas do para-si, cuja dupla nadificação -- interna, radical, do todo do ser, e externa, disso ou daquilo -- reúne a dispersão sempre ameaçada de explosão que se estende entre os complexos de coisas mundanas. Modulando o todo do ser por um jogo de ações recíprocas entre forma e fundo, o para-si recorta o mundo ativamente, segundo uma seleção finalizada pelo objetivo, segundo uma determinação orientada pela espera no cerne de um sistema perceptivo estabelecidopela função unitária e sintéticado parasi. A percepção de um ser transfenomenal ou de um nada objetivo que frequenta a superfície do ser, subtendendo a atividade judicativa (resposta ao problema bergsoniano do juízo de negaçãol, responde à circularidade -- não viciosa -- da auto-afecção kantiana, reativada por Heidegger: o para-si, a quem ser e nada advêm, faz que haja ser e nada segundo o esquema de uma espontaneidade passiva que se dá aquilo que recebe, na distância inabordável de uma relação intencional com a transfenomenalidade de um ser dos fenómenos, irredutível ao espírito humano. A manutenção de uma disfunção entre um dentro e um fora -- cruzada de efeitos de quiasma, de invasão, de contaminação no mestre de híbridos "em-si-para-si" -- declina-se numa relação exis-

tencial sempre atual entre um mundo e uma consciência cuja inten-

cionalidade perceptiva, emotiva, imaginária, cognitiva preserva a trans-

cendência do ser do percebido, do emocionado, do imaginado, do conhecido. Daí o esquema de uma verdade processual que antecipa, segundo uma finalidade colocada pelo para-si, o que diz respeito ao em-

si })crcebido, e submetida ao teste de verificação que comprova retros-

pectivamente o preenchimento positivo ou a miragem da projeção antecipante. Conhecer é apesar de tudo conferir uma dimensão de ser ao Ser: a luminosidade. A verdade é portanto uma certa dimensão que vem ao Ser pe]a consciência. [...] Mas a verdade é o Ser tal como ele é enquanto Ihe confiro uma nova

dimensão de ser [...] eu antecipo sobre o Em-si que me investe, ultrapasso-o em direção a um fim que é mez{ J:im. Mas esse fim está no mundo e comanda antecipações sobre o Em-

si que têm uma realidade objetiva, isto é, que são antecipações sobre a maneira de ser do Em-si[...] Eu crio o que é

[...] assim sou ao mesmotempo criador e passivo. Eis aí

precisamente o aparecimento da verdade ou o Ser quc aparece no ato. Do ponto de vista subjetivo, o conhecimento não difere da criação e, reciprocamente, a criação é um conhecimento; tem-se um momento de conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, o aparecimento imobilizado do Ser é autónomo, independente;é uma resposta. Se, ao contrário, o Ser é uma recusa compacta de ser 'visto como uma árvore', a antecipação se aniqui]a [...]. Num certo sentido, portanto, não há erro: a antecipação é um não-ser que obtém seu ser do em-si antecipado, ela existe para ser verificada, ela se aniquila se não permite uma construção correta."z A consciência trespassa o mundo de sentido, baliza o em-si em nome de uma doação significante. Centro organizador quc se profeta no vazio do futuro, plataforma giratória pela qual se visa a transcendência real de um fenómeno atingido diretamente "e não por inter médio de um simulacro que estaria nela"3, a consciência aberta ao 2 Idem, pp. 48-51.

3.J..P. Sartre, L'imagfmafiolz,Paria, PUF, Quadrige, 1981, p. 148: 'tAssim,

no ato de imaginação, a consciência se relaciona diretamente a Pedro, e não por intermédio de um simulacro,que estaria nela. De um só golpe vão desaparecer, com a metafísica imanentista da imagem, todas as dificuldades que evocávamos no capítulo precedente a propósito da relação desse simulacro com seu objeto real e do

pensamentopuro com esse simulacro. Esse 'Pedro em formato reduzido', esse

mundo proíbe a confusão bergsoniana entre noema e noese, que, muito distante de uma consciência definida como consciência de alguma coisa,

fazia desta uma coisa, ou melhor, de toda coisa uma consciência latente,virtual, de direito, imersa em toda a matéria. "Bergson não pensa que a consciência tenha obrigatoriamente necessidadede um correlativo, ou, para falar como Husserl, que uma consciência seja sempre consciência de alguma coisa. A consciência aparece, para ele, como uma qualidade, um caráter dado, quase uma espéciede forma substancialda realidade; ela não pode nascer onde ela não é, nem começar, nem findar de ser. Em troca, ela pode existir sem se acompanhar de ato algum ou mesmo de alguma manifestação de sua presença, no estado puramente virtual; e Bergson definirá essa realidade dotada de uma qualidade secreta como o inconsciente. Mas o inconsciente que aparece aqui é precisamente da mesma natureza que a consciência: não há não-consciente para Bergson; há somen-

te consciência que se ignora. Não há opacidade que se oponha à luz e a receba, constituindo assim um objeto iluminado: há luz pura, fosforescente,sem matéria iluminada; só que essa luz pura, difundida em toda parte, só se torna atual

ao se refletir sobre certas superfícies que servem ao mesmo tempo de anteparo em relação às outras fontes luminosas. Há uma espécie de inversão da comparação clássica: em vez de a consciência ser uma luz que vai do sujeito à coisa, é uma

luminosidade que vai da coisa ao sujeito."4

homúnculo arrastado pela consciência jamais foi consclêlzcfa. Era um objeto do mundo material perdido entre os seres psíquicos. Ao rejeita-lo fora da consciência, ao afirmar que há somente um único e mesmo Pedro, objeto das percepções e

das imagens, Husserl livrou o mundo psíquico de uma carga pesadae suprimiu quase todas as dificuldades que obscureciam o problema clássico da imagem com

o pensamento

4Idem, p. 44-5: "Não temos necessidadede deduzir a consciência,diz Bergson, uma vez que, ao afirmar o mundo material, damo-nos um conjunto de imagens. Não há que engendrar a consciência a partir da coisa, se, em sua existência

mesma, a coisa já é consciência. Mas [-.] resta compreender como se passa da imagem não-consciente à imagem consciente, como o virtual pode se atualizar [-.]

GÉNESE PERCEPTIVA E PROJEÇÃO ALUCINATÓRIA

Em Deleuze, a percepção ocorre juntamente com as coisas, na indistinção das clivagens (mantidas por Sartre) entre imagem e percepção, imaginário e real, dentro e fora, pensamento e mundo, e isso a partir da mesma rejeição do idealismo transcendental (síntese subjetiva ativa desdobrando o ser do reall e de um materialismo vulgar (causalidade física produtora do pensado). Remontando ao campo transcendental, às condições da experiência real, onde Sartre havia recusado todo questionamento de direito, toda questão gula jÍuris em proveito do q Id Áacff, Deleuze empreende a descrição de uma gênese inconscientedo pensamento,sob a marca do primado das sínteses passivas. A partir de intensidades diferenciais, do seio mesmo do fluxo de real que compõe as antecipações da percepção (desligadas do controle categorial), o pensamento se arranca de seu fundo escuro de acefalidade" e traça a linha de determinaçãoque o separa unilateralmente do indeterminado que não se distingue dele. Um campo molecular vibrátil povoado de singularidades impessoais, percorrido de ondulações ínfimas, não cessa de ser atravessado por linhas de cris-

ta em força vulcânica de cristalização, através da gênese dinâmica de um sentido dos acontecimentos: à mercê dos impasses encontrados, o SPafíwmintensivo que dramatiza as idéias virtuais se enruga fractalmente e dá consistência a compleições anuais de parte, de espécie, a contrações molares (pessoa, indivíduo, significação, designação, manifestação, em suma, a ordem terciária de Lógica do senado, engen-

drada ao cabo de uma gêneseestática). Muito distanteda absolutidade em ato de uma consciência pré-reflexiva prévia, toda concreção molar -- consciência significante, macropercepção estável, objeto transcendente -- se arranca através do "escuro precursor" intensivo

Idesequilíbrio de potencial, instabilidade dissipativa, "desaparecimento") do fundo escuro de uma matéria não formada, de um cambian-

Bergson considera negligenciávelessa característica essencial do fato de consciência que é mostrar-se precisamente como consciente; e, por ter confundido o mundo com a consciência, tomada como uma qualidade quase substancial, ele reduz também a consciência psicológica a ser apenas uma espécie de epifenâmeno, do qual se pode descrever a aparição, mas que não se explica. Em particular, de que maneira essa consciência inconsciente e impessoal se torna consciência consciente de um sujeito individual?". Consultar também Gilles Deleuze, Cifzéma í : l,'lmzzge-

mouz/eme/zf, Paria, Minuit, 1983, pp. 83-4; 89-90; 93-4.

te caos de corpúsculos em pulverulência incessante -- caos, ovo cósmico sempre peneirado, filtrado por um plano de imanência que torna consistente o infinito do caos. O tempo, o devir, precede o ser no sentido em que o todo virtual infinito precede suas dessemelhantes

atualizações, no mesmo ponto em que Sartre, inversamente, faz o ser preceder o nada. Atualizações contingentesdo virtual próximas do esquema de um vazio quântico que gera uma curvatura do espaço-tempo irradiante da matéria-energiae atualiza as partículas virtuais, tal como desenvolvem 1. Prigogine e 1. Stengers em Entre o tempo e a efer-

lzídadeS. Toda consciência, todo objeto são transcendentes fora do plano de imanência, fora do campo transcendentalvirtual que então se atualiza nesses últimos: a consciência de direito, difusa, em veloci-

dade infinita, não revelada, torna-se consciência de fato, reflexiva, se e somente se ela se reflete, se refuta sobre um sujeito correlacionado

a objetos.6 0 olho interior às coisas é tão-somente essa luz, essa consciência virtual, imanente a toda matéria tematizada por Bergson (cf. À4aférlzz e memória), consciênciadifusa portadora de uma percepção objetiva, completa, total, onde a percepção consciente de fato, subjetiva, seleciona, empobrece, subtrai do real o que não interessa a suas necessidades.7É por uma passagemao limite, por transposição de limiares ao longo de uma gênesemaquínica, automática, que uma consciência de direito, virtual, se atualiza numa consciência de fato correlata à produção criativa do objétil, do espaço e do tempo extensi-

vos, uma vez destituídos os pólos de objeto e de sujeito a priori, fermfn s ad que a montante de toda experiência, representaçõesenganadoras que não captam as nebulosidadesdo campo transcendental. Puras funções, variáveis sem modelo, sistemas acentrados, simu-

5 1. Prigogine e 1. Stengers, Entre /e fe ZPSef /'éferpzífé,Paras, Fayard, 1988. 6 G. Deleuze, "L'immanence, une vie-.", Pbi/osopbfe, n' 47, set. 1995, pp. 3-4. Notemos que nesse texto, contrariamente a l,ógfcíz do se?zfido, a consciência pré-reflexiva, não tética (de} si que compõe o campo transcendental em Á fralzsce/z-

dê/zelado ego, de Sartre, não é submetida a nenhuma reserva, e, longe de traduzir uma síntese de unificação indevidamente projetada no porão transcendental, se vê curiosamente associada à consciência virtual, de direito, inaparente de Bergson, e

valorizada por isso mesmo. Associação insustentável,ato de violência implosivo, tanto no nível da letra como no do espírito, por razões que invocaremos a seguir. 7 G. Deleuze, L'image-mouz/e»ie/zl,

pp. 93-4.

lacres onde coexistem séries divergentes, o superlato jtermo retomado de Whitehead) e o objétil, produzidos pelo co zti/z m de uma flexibilidade de caso que se declina e pela concreção aleatória de um ponto de vista subjetivo que ordena a leitura do mundo perspectivista, se oferecem como derivados diferenciais de um devir do ser caótico

que se auto-afeta através de um materialismo cerebral que se autoforma como sujeito8. O cérebro se torna sujeito, forma, quando o sujeito se torna contemplação passiva criadora do percebido ou salta a uma consciência de fato. Definido de acordo com um ponto de vista descentrado obtido do alto do desvio de um pensamento-nature-

za, no quadro de um materialismodo cérebroque desdobrauma

ontogênesedo pensamento e do ser, o superlato arrancado ao que ele contempla, efeito residual, forro das dobras do fora, é o ponto de vista que decifra parcialmente o mundo em função das zonas claras que ele ocupa, atualizando séries, partes limitadas do mundo virtual que ele contém. Retirado daquilo que ele contempla, derivado da quase-causa dos acontecimentos, o superjato ordena hermeneuticamenteas variações diferenciaisde um mundo que requer um observador inserido, incorporado em seu bojo, e se torna aquilo que ele percebe, segundo a heterogênesede uma dupla captura, enquanto o para'si jamais se perde no em-si, sempre se recupera em suas exteriorizações e passtvaçóes.'

8 Em uma apropriação criadora dos conceitos de R. Ruyer e de G. Simondon. Consultar sobre esse ponto Éric Alliez, La sig/zafare d mo/zde on qu'esf-ce que /a

pbllosopbie de De/eKze ef Guaftarl?, Paras, Cera, 1993.

9 Impossibilidade de uma absorção do para-si no objeto, explicitada por

ocasião de uma passagemdedicada a Rousseau, às pp. 217-8 de L'gire e /e Néa/zf, Paris, Gallimard, Tel, 1943. A essa reviravolta de uma consciência que reemerge

do entorpecimentono qual se obstruiu, se opõe o duplo e irrecíproco devir de-

leuziano,Achab tornando-seMoby Deckquando a baleia se torna intensidade branca, tal como o segue Pessoa: "para que ea me torne esse barco que parte, era preciso que ele se transformasse em intensidade que atravessa a superfície do corpo (que é o mar), que não mais se situasse à distância de mim, separado de minha

sensação[-.] tudo está no exterior porque o exterior resulta de minha reversão, de meu interior no fora [...] Tendo o eu desaparecido,a sensaçãose torna um fluxo". J. Gil, Femapzdo Pessoa on Lz méfapbyslqKe des smsízfíons, Paria, La Différence,

1988,P. 73.

CIRCULARIDADE FENOMENOLÓGICA E CÍRCULO DO VIRTUAL E DO ANUAL

À circularidade fenomenológica da auto-afecção, pela qual o homem se dá o que Ihe sucede e faz com que haja ser e nada (círculo hermenêutico que atesta a finitude de nossa condição, a precedência infinita da relação entre sujeito e mundo), se substitui o círculo de uma

causalidade psíquica deduzida, extraída do efeito que a ela se conforma: circuito retroativo de um pensamento que modeliza o objeto material da percepçãoalinhando-sesobre a autoridade de uma percepção psíquica, ela própria semelhantea seu semelhado, ou, mais glo-

balmente, circularidade de um naturalismo espiritualista, de um "materialismo metafísico"1 0 baseado num plano cerebral que se auto-afeta

como sujeito, sem semelhança alguma da atualização com o que dormita de virtual, bifurcando, em função das fendas e crises encontradas, rumo a uma tradução conceitual dos impassesdo sensível,exatamente onde as flutuações materiais que induzem uma macropercepção consciente se conformam ao modelo do percebido que dela deriva. Essa circularidade recolhida aqui, no nível da percepção, não é senão um caso particular inscrito no quadro da tese da dupla antecedência, a saber: primado do mundo, do campo ontológico, do todo de suas séries de acontecimentos na ordem do virtual, e primado da manada, da alma, das flexões expressivas na esfera do atual.Íi Se, por

um lado, no nível inconsciente, as miríades de pequenas percepções remetem ao mecanismo metafísico e cosmológico segundo o qual o mundo não existe fora das manadas que o exprimem e cujas percepções inconscientessão as dobras que representam o mundo (não o objeto), e se, por outro lado, no nível das macropercepções, o cálculo diferencial que põe em relação os elementos genéticos de pequenas percepções remete a um mecanismo psíquico sem realidade física, a percepção não pode mais se orgulhar de ser um mecanismo físico que reverbera objetivamente um referente exterior. Se toda percepção é

io Segundo a expressão de Éric Alliez, extraída de La slgnaf re d monde oa Çãa'est-ceqae !a pbiiosopbie de Deleaze et Gaattari?, p. 82. 11A circularidade fenomenológica da auto-afecçãoseenraiza em Sartre numa

duplaantecedência;não mais a de um debateentrevirtual e atual, mas em sua distribuição entre um primado metafísico, lógico-ontológico atribuído ao ser emsi, e uma precedência significante dada ao para-si.

llucinatória no sentido de não ter objeto físico externo gerador de mecanismos físicos de excitação, a necessidadei2 de atribuir um corpo à manada, de admitir uma matéria primeira intensiva exterior às dobras da alma implicará a ação de um Deus, de um lançador ideal dos dados que cria uma matéria vibratória em conformidade à percepção que se assemelha a ele. Na ausência de um Deus barroco que compossibilite as séries convergentes e mantenha o princípio do fecha-

mento das manadas, a divergência das séries e o impulso de captura que anima as manadas requerem essa mesma condição material em que se dispõem de modo contingente os órgãos receptores estimulados. Essa matéria em movimento, longe do modelo cartesiano de uma substância extensa objetivamente garantida, tornar-se-á uma rede intensiva de forças, dobrada segundo os ângulos perceptivos atualizados por cada uma das manadas, modulada segundo a interiorização que dela produz cada alma. O pensamento se profeta sobre a matéria cujos movimentos moleculares o agitam e induzem a tradução inteligível do choque ensur-

decido do sensível. Ele se projeta sobre a textura de um mundo me tamórfico, mutante, que se alinha, no que dá a sentir, sobre a representação que o percebido dela extrai. O semelhado (físico) se conforma ao modelo do semelhante(percepção psíquica). A invenção de uma percepção sem similitude real, em cima de uma gênese forçada que faz

bifurcar as faculdades, repercute em uma criação inédita, um real ex posto às turbulências intensivas, tão logo o exercício transcendente de pensamentoo eleva à ordem de uma criação sem modelo a copiar, excedendo toda recognição que identifica um em-si sempre já dado em sua estabilidade. A percepção como simulacro, ora idéias distintasobscuras, ora intensidadesclaras-confusas do pensador, gera uma composição de séries diferenciais, uma determinação do objeto e das con dições do espaço-tempo. Ela é não apenas adequada ao fundo caótico que ela não quadricula categorialmentenum cosmos regulado, mas também é idêntica a ele em razão da identidade entre matéria do ser e imagem do pensamento. A percepção alucinatória não é senão o fundo último da natureza, já que o único acesso ao ser se insinua no esquema ideal de um ser passado na peneira, filtrado em nome de seu

127

12ConsultarDeleuze,Le P/í. Le b/zizel /eBaroqiíe,Paras,Minuit, 1988,p.

arrancamentoao sem-fundoobscuro, ao qual a virtualidade do todo impede qualquer acesso direto. "Mas precisamente as Idéias problemáticas são ao mesmo tempo os elementos últimos da natureza e o ob)eto subliminar das pequenas percepções. De modo que 'aprender' passa sempre pelo inconsciente, ocorre sempre no inconsciente, estabelecendo

entre a natureza e o espírito o laço de uma cumplicidade profunda."13 Um fenomenismo herdado de David Hume impede toda vocação a um conhecimento ântico objetivo, assim como todo credenciamento e elucidação da correlação fenomenológica entre noese e noema. Essa escapada das não-relações entre expressões finitas denunciados/visibilidades, série das palavras/sériedas coisas) correlaciona-seao simples realismo do plano transcendental do Ser, à simples objetividade das idéias que o povoam: na identidade entre ser e pensar, a perda das bases

fenomenaise das relaçõesentre formas finitas secompensa por uma adequação ao todo do Ser virtual14 DE UMA CONSTRUÇÃO DO PERCEBIDO A OUTRA:

DIVERGÊNCIA DOS PLANOSDE IMANÊNCIA

De uma construção do percebido a outra, oscila-sede uma proximidade máxima, no início, a uma divergência final inassimilável. O pareamento no maneirismo inaugural reside no fato de que só há percebido através de sua construção, fora de toda mimese fiel a um modelo dado: recorte, inflexão modulante do ser por negações, sínteses ativas proletadas por um para-si orientado pelo emprego de uma finalidade, em Sartre, criação do percebido através de um mecanismo psíquico inconsciente regido por sínteses passivas, disfunções inclusivas, orientado pelas crises e instabilidades intensivas, em Deleuze. Mais

próxima de uma indistinta contiguidade quanto às iluminações e modulações do todo do ser geradas pela percepção, a dança a dois cindese em dois galés estranhos quanto aos planos de imanência traçados. Com efeito, à ligação diabética que trama em-si e para-si, e estabeleci-

13G. Deleuze, DÍ/Xérepzce ef répéfllfon,Paris, PUF, 1968, p. 244. i4 Do conceito criado, será dito: "o mais subjetivo será o mais objetivo",

em Deleuzee Guattari, Qn'esr-ce que /a póí/osopbie?, Paria, Minuit, 1991, p. 16.

Sobre a objetividade ideal dos problemas, consultar Logfque du selase DI/fure/zce et réPétition.

dn n partir do nada de relação trazido pela consciência, opõe-se um trabalho de toupeira do pensamento, bifurcando ao ritmo de flutuações

intensivas, reverberando as bodas antinaturais do Ser consigo mesmo em sua declinação em praias de energia resfriada, segmentaridades duras, ou em jorros e involuções de intensidade, fendas de linhas de fuga desestratificadas, saliências de cristas vulcânicas... De um sujei-

to a outro -- sujeito no mundo, sedede toda intencionalidade;su

perjato para um mundo que está no sujeito --, a ação do centro significante que torna a agarrar ativamente o que o pega por trás se dissipa num cromatismo nâmade, exposto a uma variação contínua, agitando um campo transcendental sem consciência sintética, fazendo naufragar toda constante, toda forma centrada estável. De um centro sempre excedido, movência vagabunda sempre ultrapassada por seus proletos, deportada por um fim em remanejamento constante -- o para-si sendo o que não é e não sendo o que é --, emana uma luminosidade que desvela o em-si em suas modalidades, longe da cambiante vida interior de um impressionismoque se difrata em simulacros inconsistentes e objetos epifenomenais. De um plano de imanência riscado pela localização de uma intencionalidade desdobrada pelo efeito perverso caído do em-si, avançamos, com Deleuze, para um plano de consistência percorrido de velocidades infinitas e de abetos impessoais, sem centro unificador nem movimento de totalização, conectando traços de expressão e de conteúdo no âmago de um incessante devir que precipita sujeito substancial e função formal em indecidíveis agenciamentos, exprimindo equivocamente a intensidade diferencial de uma vida não-orgânica unívoca. A proximidade no gesto comum de um esquema produtor, de uma construção do percebido, cuja gênese inédita -- motivada diferencialmente pela finalidade subjetiva do para-si ou pelos problemas objetivos encontradosiS -- impede de parte

a parte o esquema de uma recognição subjugada a um modelo ózpriori, desfaz-se a partir de então em dois dispositivos de pensamento heterogêneos. Rejeitando a concepção realista de um ser do fenómeno que age sobre a consciência, bem como a solução idealista de um cogito que constitui o ser transcendente dos fenómenos,16 Sartre recorre às

i5 G. Deleuze, DI/férefzce ef répéfífíolz, pp. 89, 252-3. ió "Nós estabelecemos,com efeito, peloexame da consciência não posicional (de) si, que o ser do fenómeno não podia em caso algum agir sobre a consciência.

operações de nadificações -- negação interna e negação de negação -- agendadas por um para-si preocupado em dispor dos meios requeridos em vista de um fim (espera convertida em alvo), nadificações que são apenas jogos de dissolução provisória do fundo e de seleção das esferas válidas do "isso", e que se adiantam como os vetores de uma totalização do ser, sempre em fuga, desfalcada, perfurada por uma destotalização que remaneja o complexo fundo-formas.i/

"0 ideal da Verdade é somente que todo o Ser seja iluminado e assim permaneça. Compreendemos bem, por outro lado, que a z,e Jade é uma espéciede recuperaçãodo Em-si por ele mesmo. Pois o Ser se desvelo sempre a um ponto de vista [...] A subjetividade é somente a i/nm//cação.

De fato, o ponto de vista se define ob/efiz,ame/zfeem termos mundanos [...] já que o ponto de vista é totalmentedefinível em termos de em-si[...] E, fora disso, /fada senão a iluminação de todo o sistema. É portanto o Ser que aparece ao Ser. SÓque o aParecfmenfo é não-ser e subjetividade; há um circuito que não se pode fechar [...] as condições de aparecimento do Em-si são definidas pelo Em-si. A percepção é portanto interiorização do mundo e, num certo sentido, presençado mundo a si mesmo. Quando toco o veludo, o que faço existir não é nem um veludo absoluto e em si, nem um veludo relativo a uma indefinível estrutura de sobrevoo de uma consciênciatransmundana. Faço existir o veludo para a carne."'' O ser ou o nada transcendente do fenómeno percebido -- conforme a resposta à conduta interrogativa se realize ou se frustre



Com isso, afastamos uma concepção reco/isfzz das relações do fenómeno com a

consciência. Mas mostramos também, pelo exame da espontaneidade do cogito não reflexivo, que a consciência não podia sair de sua subjetividade, se esta Ihe fosse dada de início, e que ela não podia agir sobre o ser transcendente nem comportar sem contradição os elementos de passividade necessários para poder constituir a partir deles um ser transcendente: afastamos assim a solução ideallsfa do

proa/ema". Sartre, L'Efta ef /eNéanf, p. 31. í7 Idem?,pp. 215, 217, 222-6. is Idem, Vérifé ef exisrence,pp. 25-7.

advém pelo pâr-se à disposição do para-si, cuja espera portadora da emergência desse ser ou desse nada não pode fazer, apesar de sua dependência ao para-si no que respeita a seu aparecimento significante, que o teor desse ser transfenomenal deixe de ser objetivo, irredutível à consciência. Esta não pode resgatara contingênciaque atingiu seu ser em cima de sua emergência indesejável, derivada dos vãos esfor ços empreendidos pelo em-si a fim de se fundar reflexivamente. Aper-

tada na contingência de um ser que ela não escolheu, situada no seio de determinações finitas, sujeita a uma facticidade cuja ausência de ra-

zão motiva a escolha de uma liberdade que dê sentido ao que é desprovido dele, a consciência, excessiva, infundada quanto ao ser que a persegue sob o ângulo do Valor, já que ela é não sendo, lançada num mundo que ela só pode nadificar, assumir (assunção pelo para-si de suas circunstâncias, de seu nascimento, de sua morte, de seu corpo, de seu passado), essa consciência pode fundar seu nada de ser, suas maneiras de ser, sem redenção cifrada nem exorcismo possível da facticidade de seu ser. Relativamente aos fenómenos cujo ser ele é incapaz de criar ou de aniquilar, o cogito desdobra uma atividade significante, secreta um nada que modifica a relação com o ser, seu sentido, suas modalidades, não o ser ele próprio.i' INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA E FOGOS-FÁTUOS INTENSIVOS

Através da composição de séries diferenciais que autorizam a excrescência de uma macropercepção consciente, Deleuze rejeita similarmente, de um lado, o materialismo prosaico de um real em-si quc age sobre o pensamento, de outro, o idealismo transcendental de um sujeito que constitui o ser do dado. "Que percebemos sempre nas do bus significa que apreendemos figuras sem objeto, mas através da poeira sem objeto que elas próprias levantam no fundo, e que torna a cair para deixa-]asver por um momento [-.] aquilo a que elas (as qualidades sensíveis) se assemelham não é a extensão nem mesmo o movimento, mas a matéria na extensão, as vibrações, elasticidades, 'tendên

das ou esforços'no movimento.A dor não seassemelhaao alfinete

na extensão, mas se assemelhaaos movimentos molecularesque ela

ip J.-P. Sartre, L'Érre ef le Néanf, p. 59

produz na matéria."20 As percepções raramente representam um objeto exterior, mas se proJetam "sobre o plano vibratório da matéria" e se assemelhamàs agitações moleculares que elas produzem nessa matéria. Fenómeno de ressonância adquirido nos circuitos retroativos, a percepção não pressupõe nem um objeto externo, estável, dado, capaz de nos afetar, nem a atividade espontaneamente prospectiva de um

sujeito que visa uma boa forma, uma Gestalt a selecionar21. A abordagem comum de uma percepção-construção partilhada por Sartre e Deleuzefutura-se a partir de então, como vimos, sobre a divergência de planos de imanência traçados; o funcionamento da percepção, já acionado por operações e motivações diferentes, fornece duas imagens do pensamento sem conformidade de traços diagramáticos: harmonia centrada de uma intencionalidade alojada na consciência versus matéria informe, acentrada, vibrionante, de séries intermináveis de fogos-

fátuos intensivos... O uma vez por todas de uma expulsão sem retorno, de um desprendimento definitivo que separa a esfera do para-si da massividade intemporal de um em-si que engendrou o avesso de seu

desejo, que secretou o outro de seu fundamento em seu ser, implicava a explosão, a conflagração irreversível do um em dois, num desvio inútil

inventado pelo em-si que se verá surpreendido por uma contra-criação perversa cujo tempo da gêneseculminará numa volta do criado contra o criador: autonomia do para-si como ser dos possíveis,temporalidade extática rompendo com aquilo mesmo que a produziu. Ruptura filial resultantede um salto do criado para fora do domínio do genitor, devir pai do filho num crepúsculo do primeiro até um mais

além de toda paternidade,os feixesesparsosde um para-si que faz frente às pretensõesdo em-si reorquestram-senuma dinâmica autó-

noma apta a se voltar contra o princípio de sua produção, em vista de bodas guerreiras que reordenam a relação entre contingência e necessidade. Mais Antígona do que Édipo, fosse ele o peregrino conduzido pelo instinto de suas filhas... Ou ainda, do lado de Orestes... Ao uma vez por todas de Sartre, Deleuze opõe o devir incessante -- altas intensivas que vêm, quedas que vão -- dc um c07POseno zo G. Deleuze, l,e p/i: l,eibnfz ef /e Baroque, pp. 125 e 128. Sobre a percepção molecular, consultar também Mf//e plafeanx, escrito com F. Guattari, Minuit,

1980,P. 345.

2i Teoria da Gestalt recusada por Deleuze (l,e p/f, p. 125) e explicitamente

reivindicadapor Sartre em l.'Êzre ef le Néanf, p- 223.

órgãos exposto a turbulências que se agitam do l ao 0, propelindo concreções molares, ecceidades, linhas abstratas segundo o ritmo cósmico de uma univocidade do ser, outro nome da forma imóvel e vazia do tempo, aios, conjunto de todos os acontecimentos, pura reser va. extra-ser: ritornelo de "todas as vezes em uma" e não do "uma vez

por todas", sem independência do produzido, sempre ameaçado de mergulhar de novo no sem-fundo caótico do ser.22A prova ontológica que valida o em-si a partir do para-si, a identidadenegada, a heterogeneidade exclusiva como relação diabéticaantagonista entre as duas esferas do ser, o acesso ao ser através de uma consciência sem a qual não haveria aparecimento do em-si, a espera perceptiva imantada pela instalação da "boa forma", enfim, e sobretudo, a pré-judicialidade inabordável de uma consciência anual,ainda que pré-reflexiva, balizam uma imagem do pensamento sujeitado, aos olhos de Deleuze, ao quá druplo pelourinho da representação lidentidade no conceito, oposição no predicado, analogia no julgamento, semelhançana percepçãol cujo eixo mais geral se declina sob a forma do "Eu penso"23. Os eus dis persos em cada corpúsculo, dissolvidos, disseminados em cada músculo, em cada influxo nervoso, vêem-sedevorados num organismo "que se faz inerte para agir sobre o inerte", centro sempre em debandada, arrancado a si, num corpo-a-corpo constantecom uma inércia a desativar, uma facticidade a se opor, no ponto em que a "assunção' deleuzeana do eterno retorno seletivo do diferente se redobra na afir-

mação de uma contingência .cujo novo lance de dados pela eclosão de

um pensamento exposto à impotência, conforme ao regime de sua passivização, se revela sempre ganhadora pelo fato de sua adequação ao acaso ontológico que ela difrata no inédito. Retomando a partir da percepção as linhas de futura que separam as ontologias de Sartre e de Deleuze, podemos agora verifica-las rapidamente em três pontos: 1) no nível das relações entre "sujeito" e "objeto", 2) na oposição entre fundo/forma, todo/coleção e regular/singular, inconsciente/conscien-

te (confronto baseado no exemplo da fome, da sedes, 3) quanto às qualificações inconciliáveis ligadas ao ser.

22G. Deleuze, Loglqz/e dz{ sons, Paria, Minuit, 1969, p. 248; DI/lêrence ef répéfitíon, pp. 122 e 381.

23Idenz,p. 180.

TRÍPLICE LINHA DE FRATURA

'L'. Posiçõesrespectivasdo " sujeito" e do " objeto

Advindo acidentalmente ao ser pelo em-si que visa a se recuperar, o nada da consciência -- estrutura de reflexo-refletora, negação interna, radical, do todo do em-si que ele se faz não ser, através das negaçõesexternas dos "isso" -- faz que haja um ser do conhecido, sendo o ser absoluto da relação pela qual os valores surgem no mundo. Na paixão de uma nadificação com o perfume de uma impossível fusão com o em-si. a consciência "tira o Ser da noite" e manifesta o raiar do mundo em nome do descobrimento de certas praias luminosas24.Dissipando o engodo das formas a priori do sujeito e do objeto decalques friorentos das operações de unificação da experiência no nível empírico indevidamente proletados no plano transcendental --, a auto-afecção de uma superfície cerebral meta-estávelmaquinada por Deleuze se desdobra em torções do Ser sobre si mesmo, através da ;dupla tela", da conversão da superfície física em superfície metafísica, saltando ao sentido dos acontecimentos,ao verbo a partir do ruído dos corpos informes, ao pensamentocomo Ser a partir das ondas de choque e forças do sensível.n 'A forma primeira da consciência, antes de dez/irconsciência-de,

é a forma,

isto é, foda formação

[.-]

Reservar

a

sensação ao vivente organizado seria esquecer que o devir não é devir do ser individualizado, mas dez,Ir de i/zdiz,Iduzzção

do ser (Simondon); seria confundir sujeitoempírico e sujeito transcendental físico, resultado de uma preensão que ele

24J.-P. Sartre, Cabíers polir une mor.z/e,Paris, Gallimard, Bibliothêquede Philosophie, 1983, p. 510. 25A gênesedinâmica do sentido, do acontecimento,partindo das posições kleinianas, esquizóide e depressivo, passando à superfície física da sexualidade e simbolizando-se por ocasião de uma escalada ao pensamento, é desenvolvida nas

séries27 a 32 de Lógfc.zdo sentido. A extração do pensamentoa partir dos corpos, do verbo a partir do sexo, do acontecimentoa partir do estado de coisas, se

fará a seguir(cf. A/zff-Édito, Mi/ P/afãs) no quadro de uma morfogênesecontínua, recusando o dispositivo psicanalítico que articula sublimação, linha de castração, dessexualização da energia, recalque, conversão num instinto de morte es-

peculativo, quadro esseque estava integrado e avalizado em Lógica do se/zlfdoe Diferença e ret)edição.

incorpora

e à qual não preexistia

a título individuado

(Whi-

tehead); seria enfim compreender a sensação como um elemento tomado na cadeia derivada ação-reação, quando 'a contração não é uma ação, mas uma paixão pura'."" A reserva feita em relação a Sartre, em l,(igica do se/zfido27,quan-

to a sua posição de uma consciência no bojo do campo transcendental impessoal, incidia sobre a exportação indevida de uma síntese de unificação da consciência que, embora separada da forma do Eu e do ponto de vista do Ego que ela produzia, determinava a base transcendental como consciência intencional, consciência de alguma coisa, vetou de unificação. Ê precisamente esse bemol aposto à teoria sartreana da consciência pré-reflexiva, na medida em que ela recobre um centro unificador fixo e único como consciência de alguma coisa, que irá desaparecer em O que é a Éí/oso#a?28e no texto "A imanência: uma vida...". Neste, a impessoalidade de uma consciência não reflexiva se vê positivamente qualificada ao vislumbre da consciência virtual, rastejante, neutralizada, de direito, enquistada nela mesma, desenvolvida por Bergson, uma consciência subtraída a toda revelação, condensada, enrolada sobre si, que só se torna um fato expressivo tangível se sujeito e objeto são produzidos fora de campo, como transcendentes pelos quais ela se consagra consciência reflexiva. A supressão da linha de demarcação traçada em relação a Sartre, no ponto mesmo em que este último havia defendido a pertinência de uma radical divergência entre as concepções bergsonianas e as suas,z!' permite polir, recobrir imaginariamente, em nome de conexões heterogêneasque passam de uma para outra e sobem ao plano de imanência definido como "uma' vida, um irredutível antagonismo conceitual entre, de um lado, a apre então sartreana de uma consciência que desvela o mundo, sempre de fato, presençaa si, correlacionadaa um pólo noemático, montantede todo desvelado,e, de outro lado, a teoria bergsoniana,deleuzeana,de uma consciência imanente, embrionada, aquém de sua auto-revelação e de um advir em fato que atualiza a toupeira luminosa escondida em zóE. Alliez, l.a slg/zízfHre d n o/zde,pp. 82 e 84. 27G. Deleuze, l.ogfqae d selas,pp. 139-40 e 132. 28 G. Deleuze e Guattari,

do corpo, registro reificado da história do indivíduo, precipitado da memória e do abeto,e uma "alma verdadeira", pura singularidade subjetiva formal, marca abstrata da pessoa (por exemplo, Viveiros de Castro, 1992a, pp. 201-14; McCallum, 1996). De outro lado, as almas dos mortos e os espíritos que habitam o universo não são entidades imateriais, mas outros tantos tipos de corpo dotados de propriedades -- afecções -- swl generls. A distinção ameríndia entre alma e corpo não é uma distinção substantiva, mas algo que parece remeter a uma "epistemologia ontologizada" (Taylor, 1993a, pp. 4445). Com efeito, corpo e alma, assim como natureza e cultura, não correspondem a substantivos, entidades auto-subsistentes ou províncias ontológicas, mas a pronomes ou perspectivas fenomenológicas. O caráter performado mais que dado do corpo, concepção que exige que se o diferencie "culturalmente" para que ele possa diferenciar "naturalmente", tem uma evidenteconexão com a metamorfose interespecífica, possibilidade afirmada pelas cosmologias ameríndias. Não devemosnos surpreender com um pensamentoque põe os corpos como grandes diferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua trans-

formabilidade. Nossa cosmologia supõe a distintividade singular dos espíritos, mas nem por isso declara impossível a comunicação (embora

o solipsismo seja um problema constantes ou desacredita da transformação espiritual induzida por processos como a educação e a conversão religiosa; na verdade, é precisamente porque os espíritos são diferentesque a conversão se faz necessária(os europeus queriam saber

se os índios tinham alma para poder modifica-la). A metamorfose corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeuda conversão espiritual.20 Do mesmo modo, se o solipsismo é o fantasma que ameaça

perenemente nossa cosmologia -- traduzindo o medo de não nos reconhecermos em nossos "semelhantes", por eles não o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos espíritos --, a possibilidazo A raridade de exemplos inequívocos do tema da possessão espiritual no complexo xamanístico ameríndia parece derivar da prevalência do tema complementar, a metamorfose corporal. Os clássicos problemas da catequese e conversão dos ameríndios também poderiam receber alguma luz a partir daí; as concep' ções indígenas de "aculturação" parecem focalizar mais a incorporação e encorporação das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo)

que a assimilação espiritual jlingüística, religiosa etc.). Virar branco é assumir um corpo de branco; a mente não interessa muito, pois não difere senão no manifestar afecções corporais distintivas. Mais uma vez, recordemos a anedota de Lévi-Strauss.

de da metamorfose exprime o temor oposto, o de não se poder mais diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de ver o humano que insistesob o corpo animal que se come. Donde a importância do complexo de proibições ou precauções alimentares associadasà potência espiritual dos animais, a que fiz menção páginas atrás. O fantasma do canibalismo é o equivalente ameríndio do problema do solipsismo: se este deriva da incerteza de que a semelhança natural dos

corpos garanta a comunidade real dos espíritos, aquele suspeita que a semelhança dos espíritos possa prevalecer sobre a diferença real dos corpos, e que todo animal que se come permaneça, apesar dos esforços xamanísticos para sua dessubjetivação, humano. O que não impede, naturalmente, que tenhamos entre nós solipsistas mais ou menos radicais, como os relativistas, nem que várias sociedades ameríndias

sejam deliberada e mais ou menos literalmente canibais. A noção de metamorfose está diretamente ligada à doutrina das ;roupas" animais, a que já me referi. Como conciliar essa idéia de que o corpo é o sítio da perspectiva diferenciante com o tema da aparência e da essência, sempre evocado para interpretar o animismo e o perspectivismo? Aqui me parece haver um equívoco importante, que é o de tomar a "aparência" corporal como inertee falsa, a "essência" espiritual como ativa e verdadeira (ver as observações decisivas de Go[dman [1975, pp. 63, 124-5, 200]). Nada mais distante, penso, do que aquilo que os índios têm em mente ao falar dos corpos como "roupas" . Trata-se menos de o corPO ser uma roupa que de uma poupa ser um corPO. Estamos diante de sociedades que inscrevem na pele significados eficazes, e que utilizam máscaras animais lou pelo menos conhecem seu princípio) dotadas do poder de transformar metafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no contexto ritual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes de um corpo outro21. As roupas animais que os xamãs utilizam para se deslocar pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras de Carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é 2i Peter Gow {inf. pesa.) afirma que os Pêro concebem o ato de vestir uma roupa como um animar a roupa. A ênfase seria menos, como entre nós, no fato de

cobrir o corpo que no gestode encher a roupa, ativá-la. Em outras palavras, vestir uma roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste.

poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as "roupas" que, nos animais, recobrem uma "essência" interna de tipo humano não são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afecções e capacidades que definem cada animal. E verdade que aparências enganam IRiviêre, 1995) -- mas, no caso, raramente. Minha impressão é que as narrativas ameríndias que tematizam as "roupas" ani-

mais mostram mais interesseno que essas roupas fazem do que no que escondem.zz Além disso, entre um ser e sua aparência está o seu corpo, que ê mais que esta -- e as mesmas narrativas mostram como as aparências são sempre "desmascaradas" por um comportamento corporal inconsistente com elas. Em suma: não há dúvida de que os corpos são descartáveis e trocáveis, e que "atrás" deles estão subjetividades formalmente idênticas à humana. Mas essa idéia não é semelhante à nossa oposição entre aparência e essência; ela manifesta apenas que a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na equivalência

subjetiva dos espíritos. Um outro tema clássico da etnologia sul-americana que poderia ser interpretado nesse quadro é o da descontinuidade sociológica entre os vivos e os mortos ICarneiro da Cunha, 1978). A distinção fundamental entre os vivos e os mortos passa pelo corpo e não, precisamente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que prevalece como diferenciador sobre a "animação" comum dos vivos e dos mortos. As cosmologias ameríndias dedicam igual ou maior interesse à caracterização do modo como os mortos vêem o mundo que à visão dos animais, e, como no caso destes, comprazem-se em sublinhar as diferenças radicais em relação ao mundo dos vivos. Os mortos, a rigor, não são humanos, estando definitivamente separados de seus corpos Espírito definido por sua disfunção com um corpo humano, um morto é então atraído logicamente pelos corpos animais; por isso, morrer 2z Riviêre ( 1995, p. 194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro que a roupa é menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de onça. Diz o mito: "0 jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupas. Roupa para pegar a/zfa, roupa para pegar gueixadcz[-.] roupa para pegar CKffa. Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras' Ora, os jaguares não mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferen tes, eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adaptadas às suas funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só importam, as garras, instrumento de sua função.

é se transformar em animal (Pollock, 1985, p. 95; Vilaça, 1992, pp. 247-55; Turner, ] 995, p. 152), como é se transformar em outras figuras da alteridade corporal, os afins e os inimigos. Dessa forma, se o animismo afirma uma continuidade subjetiva e social entre humanos e animais, seu complemento somático, o perspectivismo, estabeleceuma descontinuidade objetiva, igualmente social, entre humanos vivos e hu-

manos mortos. IAs religiões fundadas no culto de ancestrais parecem fazer a postulação inversa: a identidade espiritual atravessa a barreira corporal da morte, os vivos e os mortos são semelhantes na medida em que manifestam o mesmo espírito -- ancestralidade sobre-humana e possessão espiritual, de um lado, animalização dos mortos e metamorfosecorporal, do outro...) Após ter examinado o componente que diferencia o perspectivismo ameríndio, resta-me atribuir uma "função" cosmológica à unidade transespecífica do espírito. É aqui, penso, que se pode propor uma

definição relacional de uma categoria, a de "sobrenatureza", hoje em descrédito, mas cuja pertinência me parece inquestionável.23 À parte seu uso muito cómodo para rotular domínios cosmográficos de tipo óyPer-oaranfos, ou para definir uma terceira categoria de entidades intencionais -- pois decididamente há vários seres nas cosmologias indígenas que não são nem humanos nem animais (refiro-me aos "espíritos") --, essa noção pode servir para designar um contexto relacional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta tanto da intersubjetividade característica do mundo social como das relações "interobjetivas" com os corpos animais. Seguindo a analogia com a série pronominal IBenveniste, 1966a,

1966b), vê-seque, entre o "eu" reflexivo da cultura (gerador do conceito de alma ou espírito) e o "ele" impessoal da natureza (marcador da relação com a alteridade somáticas, há uma posição faltante, a do "tu", a segundapessoa, ou o outro tomado como outro sujeito, cujo 23Ver Taylor (1993a, p. 445) e Descola {no prelo). As críticas destesautores à noção de "sobrenatureza"

são legítimas, mas sob a condição de se aplicarem

igualmente às noções de "natureza" e "cultura", tão ocidentalistas e reificadoras quanto aquela; se é possível dar a estas últimas um significado puramente sinóptico,

como quer e faz Descola, não vejo por que não se pode fazer o mesmo com a primeira. Além disso, a releitura pragmático-comunicativa do mundo dos espíritos, proposta por Taylor j1993a) para os Achuar, equivale a uma definição de "sobre-

natureza" do mesmotipo que as que proponho aqui para "cultura", "natureza e agora para "sobrenatureza

ponto de vista serve de eco latente ao do "eu". Penso que esse conceito pode auxiliar na determinação do contexto sobrenatural. Contexto anormal no qual o sujeito é capturado por um outro ponto de vista cosmológico dominante, no qual ele é o "tu" de uma perspectiva não humana, a sobrenczfurew é .zÁorm.zdo Oafro como Szl/eito, implicando

a objetivação do eu humano como um "tu" para esse Outro. O contexto "sobrenatural" típico no mundo ameríndio é o encontro, na floresta, entre um homem -- sempre sozinho -- e um ser que, z/istoprimeiramente como um mero animal ou uma pessoa, revela-se como um espí-

rito ou um morto, e Áa/acom o homem (a dinâmica dessacomunicação é muito bem ana]isada

por Tay]or

[1993a]).

Esses encontros

podem

ser letais para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividadenão humana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser da mesma

espécieque o "locutor": morto, espírito ou animal. Quem responde a um "tu" dito por um não-humano aceita a condição de ser sua "segunda pessoa", e ao assumir por sua vez a posição de "eu" já o fará como um não-humano. A forma canónica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em intuir subitamente que o outro é "humano", enten-

da-se, que e/eé o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o interlocutor, transformando-o em presa, isto é, em animal. Apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes de transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas subjetividades extra-humanas sem perder sua própria condição de sujeito.24

A guisa de conclusão, observo que o perspectivismo ameríndio conhece um lugar, geométrico por assim dizer, em que a diferença entre

os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e exacerbada: o mito, que se revesteentão do caráter de discurso absoluto. No mito, cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma 24Boa parte do trabalho xamanístico, como dissemos, consiste em dessub jetivar os animais, isto é, em transforma-los em puros corpos naturais capazes de serem consumidos sem dano; em contrapartida, o que define os espíritos é preci-

samenteo fato de serem ifzcomesfí'fieis; isto os transforma em comedorespor excelência, isto é, em antropófagos. Dessa forma, é comum que os grandes predado res sejam a forma predileta de manifestação dos espíritos, e é compreensível que, para os animais de presa, os humanos sejam vistos como espíritos, que os espíri tos e os animais predadores nos vejam como animais de presa, e que os animais tidos por incomestíveis sejam assimilados a espíritos (Viveiros de Castra, t9781. As escalas de comestibilidade da Amazânia indígena (Hugh-Jones, 1996) deveriam,

assim, incluir no seu pólo negativo os espíritos.

(como humana), e entretanto age como se já manifestando sua natureza distintiva e definitiva (de animal, planta ou espírito). De certa forma, todos os personagensque povoam a mitologia são xamãs, o que, aliás, é explicitamenteafirmado por algumasculturas amazânicas. Ponto de fuga universal do perspectivismo cosmológico, o mito fala de um estado do ser em que os corpos e os nomes, as almas e as afecções, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo -- meio cujo fim, justamente, a mitologia se propõe a contar.

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ESQulZOANÁLISE E ANTROPOFAGIA Suely Rolnik

"Talvez só Deleuze e Guattari tenham praticado essa esquizoanálise, e talvez alguns de seusleitores [...] AtribuirIhe a praça pública [...] teria sido territorializá-la. Esta é a situação da esquizoaná]ise em ] 988, segundo Regnault, num ensaio que integrou o Dossiê De/auge, editado naquele ano pelo Magazine Littéraire' Curiosamente, o Brasil parece destoar desse quadro: a esquizoanálise encontra um solo fecundo nas práticas clínicas locais, principalmente as psicanalíticas, já no final dos anos 70; e desde então ela só vem proliferando. Contudo, que não se espere encontrar aqui uma escola esquizoanalítica: concordando com Regnault, isso seria risível, pois iria na contramão das idéias de Deleuze e Guattari jembora nada impeça que se queira transforma-las em breviário de uma nova escolar. A esquizoanálise está presente no exercício clínico e teórico de alguns psicanalistas, pertencentes ou não a associações psicanalíticas, que recorrem à obra de Deleuze e Guattari; também no trabalho que se desen volve com grupos e instituições, vinculado sobretudo à psicose; e, ainda,

em programas de pós-graduação de psicologia clínica, onde núcleos de pesquisa vêm estudando essa obra e produzindo um número significativo de teses de mestrado e doutorado. Pode-se dizer, também, que a esquizoanálise habita, embora não explicitamente, o imaginário de analistas de diferentes filiações e não só dos que a reivindicam --, convocando, em seu fazer teórico, uma sensibilidade para a emergênciado novo. Em outras palavras, ela

l François Regnault, "Une vie philosophique", Magczzf/ze l,ifféraire n' 257 Paria, set. 1988. Publicado pelos Cczdernosde Snb/efiz/idézde, número especialDe. /euze, Peter Pál Pelbart e Suely Rolnik (org.), São Paulo, Núcleo de Estudos e Pes quisas da Subjetividade, PUC-SP, jun. 1996, pp. 54-5.

funciona neste âmbito como uma espéciede chamado à dimensão crítica da clínicas.

Terá o quadro esboçado por Regnau]t mudado tanto de ] 988 para cá? Parece-meque não. Então, o que faz do Brasil essa exceção no solitário destino da esquizoanálise? O tradicional fascínio do brasileiro pela cultura francesa -- que, evidentemente, incluiria os psica-

nalistas? Se assim fosse, essa influência poderia limitar-se a uma bibliografia estritamente psicanalítica, já que a produção francesa neste campo é farta e conta com ampla divulgação no mercado editorial brasileiro. São então outros, certamente, os motivos dessa peculiar situação da esquizoanálise no Brasil. Arriscarei uma hipótese: a concepção de subjetividade de Deleuze e Guattari, implicada em sua teoria da clínica (a qual, por vezes,eles chamaram de "esquizoanálise"l, faria eco a um dos princípios constitutivos das subjetividades no Brasil. Chamarei esse princípio de "an-

tropofágico", trazendo para a esfera da subjetividade,e reinterpretando, aquilo que o movimento antropofágico apontou no domínio da estética e da cultura brasileiras.

SÓa antropofagia nos une. Socialmente.Economicamente. Filosoficamente."3 É com essas palavras que Oswald de Andrade inicia seu ManlÁeslo. Numa leitura desatenta, a antropofagia pode ser entendida como uma imagem que representaria "o brasileiro", e que, além

de delinear o contorno de uma suposta identidadecultural, teria a ambição de englobar o conjunto tão diversificado de tipos que forma a população deste país. No entanto, o interessante na déma7cbe os-

waldiana é justamente um movimento que se desloca dessa busca de uma representação da cultura brasileira, e tenta alcançar o princípio predominante de sua variada produção. Estendido para o domínio da subjetividade, o princípio antropofágico poderia ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partícu2 Cf. Paulo C. Lopes, Pragmáffca do dose/o. Aproximações a wma feorla da c/z'nicíz em Fé/lx Gna fczríe Gi//es De/auge, dissertação de mestrado, PUC-SP, São Paulo, 1996.

3 Oswald de Andrade, "Manifesto antropófago", Reuisfade AnfroPoÁagza, ano 1, n' 1, São Paulo, maio de 1928. Reeditado em A utopia a/zfropoÁãgím. Obras como/elas de Osga/d de Andrízde, São Paulo, Editora Globo e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990.

las do universo desseoutro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. Constituídos por esse princípio, os brasileiros seriam, em última instância, aquilo que os separa incessantementede si mesmos. Em suma, a antropogafia é todo o contrário de uma imagem identitária.

A ressonância com as idéias de Deleuze e Guattari é notória: a

subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. O que temos são processos de individuação ou de subjetivação, que se fazem nas conexões entre fluxos heterogêneos, dos quais o indivíduo e seu contorno seriam apenas uma resultante.Assim, as figuras da subjetividadesão por princípio efêmeras, e sua formação pressupõe necessariamenteagenciamentos coletivos e impessoais.

Tanto em Oswald quanto em Deleuzee Guattari, temosuma

crítica contundente aos modos de subjetivação subordinados ao regime identitário e ao modelo da representação. Mas a dupla febril cer-

tamente vai mais longe nesseempreendimento, ao criar uma complexa construção conceptualpara traçar efetivamenteuma outra cartografia. Para isso, uma de suas principais iniciativas, senão a principal, será circunscrever o plano onde se opera esse processo de produção: inspirando-se em Artaud, eles Ihe darão o nome de corPO sem (órgãos. E nessecorpo que os encontros com o outro, não só humano, geram intensidades que os autores definirão como "singularidades pré-indi-

viduais" ou "proto-subjetivas". Os agenciamentosde tais singularidades são exatamente aquilo que irá vazar dos contornos dos indivíduos, e que acaba levando à sua reconfiguração. Se o esforço de Oswald de Andrade foi movido pela necessidade

de pensar o peculiar modo de produção da cultura no Brasil, o esforço de Deleuze e Guattari, naquilo que nos interessa,visou pensar o

peculiar modo de produção da subjetividadedominantena era do capitalismo globalizado, num momentoem que, aliás, esteainda não

semostrava em todo o seu alcance, como ocorre nos dias de hoje. Nesse sentido, sua obra constitui uma poderosa cartografia para nos locomovermos nos meandros dos processos de subjetivação contemporâneos, uma cartografia que ainda está por ser descoberta e explorada.

Esboçar um percurso como esse, indagando de que maneira incide o processo de globalização nesse âmbito, nos aproximará das

possíveis ressonâncias das idéias de Deleuze e Guattari neste modo de subjetivação bastante comum no Brasil, que a obra de Oswald de An-

drade nos permiteentrever. Pois bem, o que se observa hoje, já num primeiro olhar, é uma multiplicaçãoao infinito das mestiçagensque se operam na subjetividade, com elementos vindos de toda parte do planeta, não importando o lugar onde se esteja. Com isso, pulverizamse muito rapidamente as identidades, o que pode levar a supor que o modelo identitário na construção da subjetividadeestaria sofrendo pulverização semelhante. Mas não é bem assim: ao mesmo tempo em que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-padrão, de acordo

com cada órbita do mercado. As subjetividadessão levadas a se reconfigurar em torno de tais figuras delineadas a Pr/orf, independentemente de contexto -- geográfico, nacional, cultural, etc --, submetendo-se a um movimento de homogeneização generalizada. Identidades

locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis. Estas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do merca do, mas nem por isso deixam de funcionar sob o regime identitário. É a desestabilização exacerbada de um lado e, de outro, a persistência desse regime acenando com o perigo de se virar um nada, caso nã(i se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das órbitas do mercado, que se formam e se dissolvem com a mesma velocidade. Tal perigo traz conseqüências concretas, pois corre-se o risco de cair na vala dos desempregados, que já somam hoje ] bilhão, espécie de buraco negro do qual é cada vez mais difícil sair. Dilaceradas entre esses dois vetores, as subjetividades estão em crise. Na tentativa de reagir, elas tendem a ficar se debatendo em torno de falsos dilemas: é a defesa da identidade em geral contra a pul-

verização, ou vice-versa; ou, então, a defesa de identidades locais contra

identidades globais, como se vê nos explosivos movimentos de reivindicação religiosa, étnica, racial etc. Varia a disposição das peças do tabuleiro, mas estenão varia: é sempre o mesmo tabuleiro de uma sub jetividade que funciona sob o regime identitário e figurativo, que as novas tecnologias da imagem e da comunicação tendem a fortalecer e a sofisticar cada vez mais. Evidentemente, tais tecnologias não trazem esse sentido embutido em sua fabricação, ele é apenas o resultado de seu uso dominante.

A esquizoanálisepode nos ajudar a sair dessecírculo vicioso. A incorporação do plano intensivo que é o c07po sem órgãos, na carto-

grafia da subjetividade, indica uma pista: é o próprio tabuleiro do regime identitário o que está para ser posto em questão. Não em nome

do fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a produção de uma subjetividade heterogenética. No lugar de imagens a prIorI em torno das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que se pode vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos.

Tais modos se criam em função do mapa de intensidadesque vai se traçando nessedenso processo de hibridações que assistimos em nossos

dias. Isso requer, no entanto, que se escute o corPO sem órgãos, o que implica desenvolver um ouvido atento à emergência das formas de expressão, um ouvido que consiga não ficar sintonizado exclusivamente

seja com os significados, seja com os significantes, seja com ambos. Estariam DelQuzee Guattari, com essa sua noção de corpo sem órgãos, introduzindo uma outra concepção de inconsciente? Sem dú vida: esses autores conservam a idéia de um inconsciente, mas propõem

um inconsciente maquínico, ao invés de representacional ou estrutural, "razão pela qual eles puderam se dizer freudianos contra Freud", como bem lembra Regnault no mesmo artigos. A noção de "maquínico", que causou tanta controvérsia, define a operação por excelência do desejo: agenciar elementos de uma infinita variedade de universos

e, a partir do que seengendra nesseagendamento, produzir as múltiplas figuras da realidade -- e não só da realidade subjetiva. Ora, isso não evoca diretamente a operação antropofágica? Se a interpretamos a partir desta perspectiva, o "antropo" deglutido e trans-

mutado nessa operação não corresponderia ao homem concreto, mas ao humano propriamente dito -- as figuras vigentes da subjetividade, com seus contornos, suas estruturas, sua psicologia. O resultado dessa operação é um desfilar de figuras que se sucedem, geradas nas miscigenações promovidas pelo nomadismo do desejo. Juntando, então, esquizoanálise e antropofagia, diríamos que a lei que rege esse nomadismo é a de um inconsciente maquínico-antropofágico, humano corPO sem órgãos que devora incansavelmente as figuras do humano. Essa idéia ressoa em certas afirmações intrigantes tanto de Oswald

de Andrade como de um outro Oswaldo do movimento antropofágico, o da Costa: é quando o primeiro escreve que a antropofagia é governada pela lei de um "deus de caravana metamorfoseado em deus de

4 Cf. nota 1; ide#z,p- 54

caravela", e que esta seria "a única lei do mundo"5; e o segundo completa, dizendo que esta é "a menos transcendental das leis"Ó. Se retomarmos tais afirmações do ponto de vista que estamos adorando aqui, teríamos que a lei maquínico-antropofágica do deus de caravana é ima nente ao nomadismo do desejo; enquanto que a lei do deus da caravela,

lei das potências católicas que colonizaram o país, é transcendente a

esse nomadismo. A diferença está na estratégia a que obedece a confi-

guração das formas da realidade: quando esse processo é comandado por uma lei que Ihe é imanente, ele irá orientar-se pelas intensidades produzidas no c07POsem órgãos; já quando é regido por uma lei transcendente, esta impõe ao desejo imagens a priori, extrínsecas a seu movimento. A primeira estratégia definirá um modo antropofágico de subjetivação, ao passo que a segunda, um modo do tipo identitáriofigurativo. Se concordamos com os dois Oswaldos, diremos que parece não ser evidente a hegemonia de um modo identitário em terras brasileiras. Podemos inclusive supor que tanto faz se a representaçãoa ser investida como identidade é imposta por um deus de caravela, ou se ele foi substituído por um deus moderno, padroeiro da nação brasileira, ou por um mais moderno ainda, talvez até pós-moderno, deus do "capitalismo mundial integrado", como o chamava Guattari, com suas imagensglobalizadas, flexíveis e efêmeras.É que, sob qualquer uma dessas máscaras com pretensão transcendente, tenderia a afirmar-

se uma outra -- a qual, aliás, não é uma, mas várias e imprevisíveis, pois ela se metamorfoseia acompanhando o nomadismo do desejo. As subjetividades no Brasil teriam, assim, uma certa maleabidade para deixar-se habitar por uma constante variação de universos, bem como uma certa liberdade de criação de novas máscaras, territórios de existência marcados pela hibridação de tais universos. Em suma, o inconsciente maquínico-antropofágico se encontraria especialmente ativo neste país.

Seria, essa situação, a responsável pelo fato de a esquizoanálise, cartografia para uma clínica da subjetividade no final do milênio, ter encontrado precocemente um solo fecundo entre os psicanalistas bra-

5 Idem,

ibid.

6 Acquilles Vivacqua, "A propósito do homem antropófago", Antropofagia, Diário de São Tanto, O'LIQS129.

Rez/fofa de

sileiros? Vista por esse prisma, a esquizoanálise constituiria um instrumento adequado para escutar e com isso, ativar -- o inconsciente maquínico-antropofágico do brasileiro. Da mesma forma, o ouvido do psicanalistabrasileiro estaria particularmenteafinado para esse tipo de escuta que se trata igualmente de avivar. A cartografia concebida por Deleuze e Guattari tenderia a fortalecer o psicanalista nessa empreitada, fornecendo-lhe operadores para circunscrever o modo de subjetivação que sua escuta apreende, e atribuir-lhe sentido e valor.

Isso provavelmentejá não acontece-- em todo caso não com o mesmo rigor --, quando a escuta na clínica tem, como única referência, uma cartografia psicanalítica tradicional. Sob o crivo exclusivo de uma cartografia dessetipo, o desejo conduzido pela lei da antropofagia tenderá a ser ignorado na positividade de sua lógica; ele será interpretado como carecendo de uma associação à lei abstrata do Ideal transcendente e à lei negativa da falta, submetido exclusivamente à re-

gra do prazer que o pontua de fora. Tal funcionamento será diagnosticado como um traço transgressivo, próprio de uma posição arcaica na suposta escala do desenvolvimento psíquico e/ou cultural. Ê quando seescrevecoisas do gênero "falta ao brasileiro a Lei", "falta-lhe o Ideal", "o brasileiro precisa atravessar seu Édipo" etc.7

Deleuze e Guattari examinam essa concepção de desejo, que o associa à falta e ao Ideal transcendente, em muitas passagens de sua obra. Destaca-se o platâ consagrado justamentente ao corPO sem órgãos, em seu livro Mll P/afõs8, onde, com seu humor, eles afirmam que

essetipo de associaçãoé coisa de "padre". Seriam como maldições lançadas contra o desejo, por meio das quais ele é traído, arrancado de seu campo de imanência lo corPO sem órgãosl, onde precisamente ele se define como processo de produção. Examinemos a associação do desejo à falta. É por intermédio desta associação que se obtém o sacrifício da castração. Para obtê-lo, é preciso passar primeiramente por uma operação que consiste em

7 Encontramos essetipo de visão, no Brasil, em ensaios deatgttíiçpsiaanãdistas, especialmenteno livro /{e//o Brasa/,de Contardo Calligaris. São Paulo, Escuta.

8G. Deleuze e F. Guattari, À/fi/P/afãs. Cáfila/esmo e esqufzoÁre/zia, vo1. 3, Platâ 6, "28 de novembro de 1947 Como criar para si um corpo sem órgãos", São Paulo, Editora 34, 1996.

pensar o tempo como realização do possível. Por meio dessa operação, instaura-se um falso problema: contentar-se ou não com o possível. Com base nisso, o fato de o desejo não estar associado ao Ideal transcendente e a seu corolário, a lei da falta, será interpretado como recusa a contentar-se com o possível. E o resto já se sabe: tal recusa será vista como produto de uma vontade de impossível, vontade delirante; ou no mínimo, imatura e infantil. Ora, o que Deleuze e Guattari afirmam não é que não se deva contentar-se com o possível, mas sim que o problema está mal colocado. SÓse pode pensarem termos do par possível/impossívelno plano da representação, porque tal par supõe uma imagem a ser realizada, Ideal transcendente,inacessívelpor natureza, em direção à qual, atormentado pela falta, se moveria o desejo. Mas se escutarmos o corPO sem órgãos, descobriremos que o tempo como realização do possível é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em termos de uma escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano anual das formas. Trata-se de estar atento às rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho das singularidadespré-individuais ou provo-subjetivasque se agitam no virtual co/PO sem órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agen ciamentos que favoreçam a atualização de tais singularidadescomo matérias de expressão. E, assim, infinitamente. Para Deleuze e Guattari, o desejo não carecede nada, não porque possa atingir a plenitudede uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Ideal transcendente. Ê esse sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-sepelos movimentos do desejo, o interpretará como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos de cena o Ideal transcendente e examinámos essesmesmos movimentos com a escuta sintonizada no corPO sem órgãos, aquilo que para o sujeito é falta revela-secomo excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. Dizer que Deleuze e Guattari não consideram que o desejo careça de alguma coisa não significa, portanto, que eles estariam pleite-

ando uma associaçãodo desejo ao prazer. Pelo contrário: para os autores, esse tipo de associação consiste na terceira maldição lançada

contra o desejo, pois o momento da obtenção do prazer é uma forma de trégua durante a qual o desejo se desatava. Como eles escrevem, com

esse mesmo humor, obter o prazer "já é uma maneira de descarregar o desejo, no próprio instante, e de desencarregar-se dele"9. O oposto da ética proposta pela dupla, que consiste em encarregar-se do desejo, recarregar constantementesua processualidade, afirmar sua potência de conexão e criação. No lugar do par prazer/desprazer,o que se terá neste caso é a alegria da atividade do desejo e a tristeza de suas desativações. Não é a essa alegria que Oswald estaria se referindo ao escreverno À4an/Áesfo:"a alegria é a prova dos nove"? Se concordamos com tais considerações, somos levados a pensar que quando se trabalha clinicamentetendo como guia exclusivo uma cartografia estritamente psicanalítica, no sentido mais tradicional, corre-seo risco de fazer vingar no desejo as duas maldições contra as quais eletenta, bem ou mal, resistir. Ou, no mínimo, corre-seo risco de fixar o desejo sob o feitiço da terceira maldição, a que o submete à regra exterior do prazer, atrelando a subjetividade a uma imagem fundamentalmente hedonista. Sob esse olhar, o desejo tende a penetrar-se de angústia, culpa e vergonha. A antropofagia, confundida com um hedonismo, tem grandes chances de minguar. A imagem de uma subjetividade brasileira marcada pelo prazer não é nova. Ela ecoa numa das visões mais tradicionais que se tem do Brasil: o país seria uma espéciede "reserva tropical de hedonismo" à disposição do planeta, para quem queira fazer aí suas catarsese saciarse. Essa visão, que mobiliza um misto de sedução e condenação, tem início na própria fundação do país, com a vontade de catequesedos portugueses, mesclada à volúpia com que se relacionavam com os nativos e, depois, com os negros. Ela vai ganhando outras roupagens ao longo dos séculos e, evidentemente, não é apenas em sua versão psicanalítica que se apresenta na atualidade; o tão falado turismo sexual

é, provavelmente, a mais óbvia de suas manifestaçõescontemporâneas. Em outro panorama, quando a antropofagia encontra um alia do, como parece ser o caso com a esquizoanálise, o que se descortina é a imagem de uma "reserva tropical de hcterogênese", fruto de uma rica biodiversidade de que o Brasil disporia não só no reino vegetale animal, mas também no humano, principalmente no campo da subje-

9 /de z, p. 15 [no original, p. 191]

rividade. O que haveria de vital nessa reserva não é uma imagem a mais

da subjetividade, nem uma variedade de imagens, para alimentar o mundo em sua ânsia de consumo de figuras que possam servir de identidade. Pelo contrário, essa reserva conteria a fórmula de uma vacina contra a tendência dominante à homogeneização, tanto em sua necessidade de identidades globais como em seus efeitos colaterais de reivindicação de identidades locais ou de dissolução no caos: a vacina de heterogênese provocaria nas subjetividades um desinvestimento do modo identitário. Doses dessa vacina estariam assim à disposição para serem injetadas na complexa química da subjetividade que se produz nessa difícil, mas não menos fascinante, passagem de milênio. Nossa indagação acerca do "por que a esquizoanálise vinga precisamente nas práticas clínicas brasileiras" acabou desembocando numa questão ético-política de alcance mais amplo. Mas também aqui se encontram Oswald, Deleuze e Guattari. Oswald chegou a defender a tese de que a antropofagia constituiria uma "terapêutica social para

o mundo contemporâneo"10. Guattari via no modo de subjetivação brasileiro uma saída interessantepara as questõesque se colocam neste

âmbito, na atualidade.Este era, aliás, um dos aspectosque mais o atraíam nestepaís, segundo suas próprias palavras: "Parece-me que estão reunidas aqui as condições para que se desenvolva uma espécie de máquina imensa, uma espéciede imenso ciclotron de produção de subjetividades

mutantes . " ' -l

São pessoas que fizeram essa mutação capitalística e que nem por isso estão inteiramente engolfadas num proces-

so de buraco negroem grande escala,como a União Soviética. '' ' '=

"Em matéria de índios, metropolitanos ou tupiniquins, os países europeus são muito subdesenvolvidos. É claro que

ioOswald de Andrade, "A marcha das utopias" [1 953], A afopia a#fropo-

@gfca (cf. nota 3).

11Félix Guattari e Suely Rolnik, À4fcroPo/#fca.Carrogra#as do dose/o,Pe-

trópolis, Vozes, 4' ed., 1996 [1986]; pp. 310-1 ]trecho de debate ocorrido em 19821. i2 idem, p. 310.

sempre dá para se reassegurar, dizendo que a História não é linear e que se pode esperar rupturas brutais. Estou convencido disso. Sobretudo se vocês continuarem nesse ritmo em que estão, enganados nesta espécie de transformação do

Brasil, talvez vocês acabem nos enviando o elevador das revoluções moleculares."iJ Esses são apenas alguns exemplos da insistência de Guattari nessa idéia, ao longo de suas sete viagens ao Brasil. Quanto a Deleuze, não

terá sido algo assim o que ele quis dizer com a intrigante frase de seu livro Nfefzscbe e a /i/oso#a: "Os lugares do pensamento são as zonas tropicais, freqiientadas pelo homem tropical"14? É óbvio que não se trata, aqui, de estabelecer um quadro classi-

ficatório de cartografias do desejo por regiõesgeográficas, nem de enaltecer os trópicos. As subjetividades no Brasil, como em qualquer outro lugar, se constituem na tensão entre modos de vários tipos. A propósito, quando aqui prevaleceo modo identitário, tanto sob a forma de identidades locais fixas como de identidades globalizadas flexíveis, este tende a apresentar-se particularmente tosco e exacerbado. No pri-

meiro caso, vemos, por exemplo, subjetividades aderirem sem a me-

nor crítica à representaçãode um suposto "ser brasileiro", investindo-a com impressionante fervor ufanista. Uma imagem marcante nesse sentido circula por ocasião de disputas esportivas internacionais: a bandeira envolvendo por inteiro os corpos de atletas e torcedores que, por um momento, transformam-seem puros emblemasde uma pretensa identidade nacional. No segundo caso, quando o modo identitário

assume a forma de identidades globalizadas flexíveis, é surpreendente a facilidade com que se mitifica qualquer figura que se apresenta de modo minimamente sedutor; facilidade igualmente para reconfigurar-se através desta identificação, na esperança de conquistar um re-

conhecimento social imediato. Um bom exemplo disso é o fenómeno das telenovelas, especialmente a novela das oito na Rede Globo. Sua linguagem incorpora as mais avançadas tecnologias, e sua temática,

i3 Idem, p. 304. 14G. Deleuze, N/etzscbe e a P/osoÓa, Rio de Janeiro, Semeion, 1976, p. 91

[1962,P. 126].

IS clucstões políticas, económicas, sociais, comportamentais etc. que .agitam a vida nacional a cada momento. O tratamento dado a essas questões é sempre o mesmo: seu poder disruptivo, envolto pelo g/aznoi/r

dos personagens, se esfumaça. Tais personagens se oferecem como atraentes figuras-padrão para todos os gostos, participando da vida cotidiana de uma média de 50 milhões de brasileiros -- a audiência

chega a atingir 70 milhões,perto da metadeda população do país -que os consomem como sua ração diária de identidade. Eles formam uma espéciede família-prótese cujo equilíbrio e mesmice nada tem o poder de abalar. Verdadeiro laboratório blgb fecb de imagens prol-.àporfer, idealizadas de acordo com cada nova situação do mercado, as telenovelas brasileiras são exportadas com expressivo sucesso para mais de cem países.

Com efeito, o inconsciente maquínico-antropofágico não é prerrogativa dos trópicos, e muito menos dos brasileiros: sendo um princípio imanenteà produção dc subjetividade, eleé próprio da espécie humana como um todo. No entanto, ele pode estar mais ou menos ativo

nas subjetividades, e isso em muito depende dos contextos socioculturais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade. Hoje, na era da globalização, tal inconsciente parece encontrarse especialmente em baixa. E diante dessa situação que ativá-lo torna-se uma prioridade da clínica, não só no Brasil. Prioridade que, aliás, extrapola a esfera da clínica propriamente dita: avivar o insconsciente maquínico-antropofágico se constitui como força de resistência política à regra geral da homogeneização, engrenagem imprescindível do sistema em que vivemos.

oS SIGNOS E SEUS EXCESSOS A CLiNiCA EM DELEUZE .joel Birman

:[...] a psicologia é certamentea última forma do racionalismo: o leitor ocidental espera a palavra final. Desse ponto de vista, a psicanálise relançou as pretensões da razão. Mas, se ela quase não poupou as grandes obras romanescas, nenhum grande romancista de seu tempo chegou a se interessar muito pela psicanálise."i

Trata-se de empreender aqui uma leitura da problemática da clí

nuca em Deleuze.

Com efeito, além de seu interesse por certos autores cruciais da modernidade -- como Kant, H ume, Espinosa, Leibniz, Nietzsche, Foucault e Bergson, por exemplo --, sabe-se que Deleuze foi buscar na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na psiquiatria e na psicanálise certas condições necessárias ao exercício da filosofia. Por isso ele não se contentou em produzir a exegesesevera e inventiva de numerosos autoresclássicos da história da filosofia; foi defender sua prática filosófica no campo de outras práticas discursivas, entre as quais a psiquiatria e a psicanálise.

O significante "clínica" terá portanto, aqui, um sentido muito preciso, com fronteiras bem delimitadas. A clínica não remeteabsolutamente às práticas médica e neurológica; remete às clínicas psiquiá-

trica e psicanalítica, pois são essasas referênciasclínicas que encontramos na obra de Deleuze.No campo da filosofiacontemporânea, parece-me que apenas Foucault se interessou intensamente por psiquia-

tria e psicanálise, tendo realizado uma das obras maiores sobre a arqueologia da clínica médicas l G. Deleuze, "Bartleby, ou la formule", Crifiq e ef c/znfque, Paras, Minuit,

1993,PP. 104-5. 2 Ver M. Foucault, À4a/adiewc/zfcz/cef psycbologie, Paris, PUF, 1954; Nazi sandede !a clinique; ane arcbéologie di{ regard médica!, Paria, PUF, 1963; Histoire de /a /o/fe

à /'áge

c/assiqlíe,

Paria, Gallimard, 1976.

Paria,

Gallimard,

1972,

2' ed.;

l.a

z/o/opzfé de saz/olr,

(;ontudo, é preciso lembrar que Deleuze não realizou sozinho esse sinuoso trajeto clínico. Seu antigo interesse pela psiquiatria e a psicanálise viu-se reforçado pela profunda relação de amizade e colaboração

que o ligava a F. Guattari, com quem escreveu suas obras mais significativas no que concerne a essesdois campos. Como sabemos, Guattari sempre privilegiou a clínica, que ele praticava com verdadeira paixão. Por isso, A/zfl-Edipo3 e MI//P/afós4, escritos em parceria com Guattari, condensam talvez o essencial da contribuição deleuzeana à questão da clínica. Entretanto, é preciso não esquecer os textos escritos apenas por Deleuze, nos quais a problemática da clínica ocupa um lugar crucial e estratégico.

Os ensaios reunidos em 1993 sob o título de Crítíczz e c/z'nícá5

constituem uma contribuição importante de Deleuze sobre essas ques-

tões. Entre essesensaios, alguns são inéditos, outros haviam sido publicados anteriormenteem revistas. Se alguns revelam evidentesinfluênciasprovenientesdas duas grandes obras escritascom Guattari, outros contêm reflexões incontestavelmente originais de Deleuze acerca

da clínica. Da mesma forma. o ensaio de Deieuze sobre Proust. intitulado Proust e os slgfzos6,revela uma reflexão profunda a respeito da clínica, sobretudo na elaboração da idéia proustiana de memória invo luntária, em que Deleuze trabalhou a oposição essencial entre di/crença

e repetição para enfatizar a distinção -- retomada posteriormente

entre a repeflção do mesmo e a repefíção difere/zela/7.Os conceitos de

cópia e de simulacro, igualmentedesenvolvidosem Lógica do se/zlido', são o objeto de uma nova elaboração, inscrita no registro sensível da escrita literária.

3 G. Deleuze e F. Guattari, L'anui-(Edrpe, Paria, Minuit, 1973 (nova edição aumentadas. 4 G. Deleuze e F. Guatari, MI//e P/afeaux. CáFIla/isme ef scblzopbrázie, Paria,

Minuit, 1980.

5 G. Deleuze,Criflqae ef c/ífziqzze, Paris, Minuit, 1993. 6 G. Deleuze, Proust ef /essígnes, Paria, PUF, 1964. 7 G. Deleuze, Df/Hére/zceet réPéfílfofz, Paras, PUF, 1 968. 8 G. Deleuze, Loglqlíe d# se/zs, Paras, Minuit, 1969.

Além disso, a leitura de Sacher-Masoch, empreendida por Deleuze

no final dos anos 60P, revela uma leitura particularmenteacurada e original dos grandes temas do masoquismo. Essa leitura é reveladora de um imenso saber clínico; ela indica de maneira irrefutável, a nosso ver, a irredutibilidade do conceito de pulsão de morte a qualquer tentativa que pretenda recupera-lo no registro simbólico. Nos comentários a seguir, pretendemos apresentar um primeiro esboçoda c/ílzicízde/euzeana.Iremos nos apoiar nas duas obras -sobretudo Anui-Édfpo -- escritas a quatro mãos com Guattari, mas também nos livros dedicados a Proust e Sacher-Masoch e, enfim, nos ensaios reunidos sob o título de Crúica e c/hiccz.

1. AS SOMBRASDA HISTÓRIA Se esse conjunto de textos constitui o campo discursivo do comentário que vamos empreender, é preciso considerar igualmente o contex-

to no qual Deleuze passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise. Acrescentarei que, não podendo realizar uma leitura pormenorizada de cada um dessestextos, vou dedicar-me antes de tudo à orientação c/z'Hlccz da /eífuríz de Deleuze. É nessa perspectiva que empreenderei uma leitura fra7zsz,erszz/ dessestextos de Deleuze. A devida consideração da conjuntura histórica na qual Deleuze passou a se interessar por psiquiatria e psicanálise pode tornar mais evidente sua preocupação com a questão da clínica. Com isso, poderemos

perceber

melhor

a inflexão

particular

dada à experiência

clz'Mica.

O interesse de Deleuze por psiquiatria e psicanálise manifestouse durante os anos 60. A primeira de suas obras que dá um grande destaqueà teoria da clínica, o Á?zfl-Édlpo, foi publicada no início dos anos 70. Estamos então, na França, no auge do pensamento lacaniano -- a psicanálise funcionando ai/zda, no domínio da filosofia e das ciên-

cias humanas, como um importante saber de referência. Ê o momento de apoteose do pensamento estruturalista francês, no qual a psicanálise, em sua versão lacaniana, ocupa o lugar que todos conhecemos. Mas é preciso igualmente evocar que estamos então em pleno desenvolvimento do movimento francês de reforma institucional psiquiátrica, o qual pretendiatransformar as estruturasasilaresdos hospitais e promover a prática da psiquiatria de setor para modernizar o sistema de assistência.

9 G. Deleuze, Présenfaflon de Sacber-À4asocb, Paris, Minuit, 1967

Ora, entre os defensoresda modernização psiquiátrica, uma oposição importante se fazia presenteno campo social. Havia os representantes da "psiquiatria social-democrata",

segundo a expressão de

Guattari, que propunham uma reforma da assistência pública que implicava a introdução da psicanálise na prática clínica dos hospitais psiquiátricos e nos centros médico-pedagógicos(a psicanálise era a aliada incondicional dos novos instrumentos terapêuticos possibilitados pela psicofarmacologia). Mas existia também uma outra linha de trabalho institucional cuja orientação era bastantediversa da anterior, na medida em que a crítica da estrutura asilar do dispositivo psiquiátrico se associavaa um prometopolítico. Esse novo prometoera portador de uma ambição revolucionária, pois não podemosesquecerquc estamos na época do desdobramento do movimento de maio de 1968. A primeira corrente institucionalista estava inscrita no que havia de mais tradicional no campo da psicanálise francesa. Mas a segunda corrente encontrou no pensamento inaugural de Lacan um de seus fun-

damentos. De fato, apesar de ter se originado, com Tosquelles, na Espanha anarquista e republicana do período da guerra civil espanhola, o institucionalismo de esquerda, ao migrar para a França, encontrou no pensamento de Lacan uma de suas referências teóricas fundamen tais. O que estava em jogo, no registro específico do pensamento e da prática institucional psiquiátricos, era, enfim, a oposição entre reforma social e revolução, entre a ideologia do reformismo e a busca de uma ruptura social radical. A junção do pensamento psicanalítica e dos ideais revolucionários dos anos 60 teve como consequências maiores duas proposições fundamentais, que acabaram por determinar os destinos da esquerda institucional" nos anos 70: 1) A crítica sistemática a um modelo de clínica restrita à relação

médico-paciente, ou analista-analisante. Nesse contexto, a clínica devia ultrapassar esse espaço acanhado e limitado, e inscrever-se decididamente no campo social. Essa clínica pretendia, portanto, enraizarse no campo social, perpassando o conjunto de suas práticas, e não mais se restringindo unicamenteao diálogo personalizado e singular entre o analista e seu analisante.

2) A crítica ao pensamentoteórico de Lacan passou a ser feita de maneira sistemática, por ser ele o sustentáculo da concepção limitada da clínica mencionada acima. Além disso, não se pode esquecer a posição abertamente conservadora de Lacan diante dos acontecimen-

tos de maio de 1968; segundo alguns observadores, ela teria sido mes mo lamentável. Assim, se o discurso de Lacan fora uma das principais alavancasdo movimento institucional psiquiátrico francês, em suas origens, a situação havia mudado radicalmenteno fim dos anos 60: ele se tornara um obstáculo. A consideração dessecontexto histórico é, portanto, fundamental para poder compreender a produção teórica de Deleuze sobre a clínica, pois é esse mesmo contexto que explica sua crítica à posição estratégica até então ocupada pela psicanálise nos campos da filosofia e das ciências humanas na França. Convém ainda lembrar que as questões filosóficas subjacentes a essa problemática foram renovadas de tal forma por Deleuze, que a crítica sistemáticaao estruturalismo proposta em Á/zfi-Édlpo poderá figurar como uma das origens do pensamento pós-estruturalista. Unl recomeço filosófico se anuncia aqui, com o que hil de mais sombrio nos destinos clínicos da loucura. 2. O ÉDITO, AS N4ÁQUINASDESEJANTES E O CORPO SEM ÓRGÃOS

Nessa perspectiva, o eixo argumentativo de Ánfi-Edipo se constitui a partir da oposição entre a categoria de n(equina dose/a/zfee a figura do Édlpo, seja esteconsiderado como complexo(Freudl ou como

estrutura ILacan). A "transferência" do Édipo de sua posição de comp/exo para a de esfrufara ocasionou sua radicalização teórica, pois implicou sua centralidade para a constituição do sujeito, a ponto de alça-lo a uma dimensão quase transcendental. Essa mudança da ênfase e do lugar do Edipo na construção do sujeito encontra-sena base da leitura estruturalista da psicanálise e do famoso "retorno a Freud" realizado por Lacanlo Entre os conceitos de máquina desejante e de Édipo, Deleuze e Guattari colocam a categoria de corPO sem órgãos (Artaud) como uma

maneira precisa de desalojar o Édipo de sua posição estratégicade centralidade para o sujeito, e um modo de enunciar uma outra interpretação possível do conceito de recalque originários l formulado por Freud12. O conceito de Édipo enquanto estrutura é relegado a uma 10J. Lacar, "Fonction et chaínp de la parole et du langage en psychanalyse j1953], Ecrífs, Paras, Seuil, 1966.

1] G. Deleuzee F. Guatrari, L'anui-(Ed;pe,cap. l. iz S. Freud, "Le refoulement", Mêrapsycbo/ogfe, Paras, Gallimard, 1968.

posição secundária na construção do sujeito, ao mesmo tempo que a concepção do corpo, como conjunto de máquinas desejantes acopladas

de maneira anárquica, vem ocupar a posição fundamental. Foi através do desenvolvimento do conceito de máquina desejante

que Deleuze e Guattari procuraram realizar a desconsfr ção do modelo edipiano na psicanálise, e formular uma outra leitura possível do conceito de inconsciente. Ao virarem desse modo o discurso freudia-

no -- mas também, e principalmente, o lacaniano, como mostrarei um pouco mais adiante --, Deleuze e Guattari propunham-se lançar as bases do que eles chamaram "uma psiquiatria materialista", em que o materialismo remeteria às idéias de materialidade desejante e de história13. Era preciso empreender, com Freud e Lacan, aquilo que Marx havia realizado com o naturalismo de Feuerbach. isto é. inscrever a materialidade desejante no registro da história e arranca-la definitivamente do registro da natureza. Desse ponto de vista, poderíamos afirmar que os discursos de Freud e de Lacan são ambos criticados por suas dimensões individual e familiarista, pois não consideram em absoluto o campo social. O conceito de Áa pasma co/eüz.'o,oriundo da psicoterapia institucional e enunciado por Oury, é um momento essencial dessa construção, contra uma leitura individualista e imaginária do fantasma]4. A releitura dos escritos de Freud sobre o fantasma -- em particular o comentário de "Bate-se numa criança" -- revela a argúcia crítica de nossos autores. Mas é sobretudo o modelo estruturalista de Lacan e sua concepção do inconscienteestruturado como uma linguageml) que são visados por essa análise. Isso não quer dizer, é claro, que Freud também não seja atingido pela leitura de Deleuze -- o complexo de Édipo é um conceito freudiano, e muitas páginasdo Anff-Édfpo estão centradas numa crítica sistemática a Freud --, mas a crítica se dirige claramenteao pensamentode Lacan. Foi contra uma certa apropriação lacaniana de Freud, então hegemónica na França, que o Ánfi-Edfpo foi escrito. Com isso se elaborou uma nova concepção do inconscien-

13G. Deleuzee F. Guattari,L'a/zfi-(Edipe, cap. l. i4 Idem, cap. 2.

Ecrits.

]5J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langageen psychanalyse",

te, em que as máquinas desejantese o co/7)osem órgãos vêm ocupar as posições fundamentais, de modo que as noções de i densidade e de

excesso passam a definir o ser do inconsciente. Para realizar essa operação, Deleuzee Guattari apoiaram-seexplicitamente na teoria das pulsões de Freud. Criticando o modelo lacaniano do inconsciente, eles pretenderam conduzir Freud na direção de uma "psiquiatria materialista". É como se fosse preciso apoiar-se necessariamenteem Freud para criticar Lacan e devolver à psicanálise o que Lacan, na leitura que ele havia feito dela, havia posto entre parênteses. Mas era preciso, ao mesmo tempo, radicalizar os enuncia-

dos freudianos indo muito mais longe que Freud. Daí a formulação aparentemente paradoxal de Deleuze e Guattari: ser Éreud/amoconfrcz Freme, pois seria necessário tirar as consequências teóricas e políticas

que este ignorou para a psicanálise.

3. 0 EXCESSO PULSIONAL E A IMPESSOALIDADE SINGULAR

Nessa perspectiva, a idéia de economia é fundamental. A economia remete tanto à economia política como à economia desejante e a sua articulação no registro das máquinas desejantes. Essas duas modalidades do registro económico são, além de indissociáveis, reenviadas

ao campo social. Assim o inconsciente, fundado nas idéias de excesso e de intensidade, pu/sionado pelas máquinas desejantes, é permeado pela economia. E necessário aqui sublinhar que a questão das pulsões e o regis-

tro económico da metapsicologia freudiana sempre foram o maior ponto de oposição do discurso de Lacan ao pensamento de Freud. Essa exclusão da economia da metapsicologia psicanalítica é facilmente identificável no discurso de Lacan, desde o início de seu percurso e ao longo de quase toda a sua obra teórica. Essa recusa sistemática do ponto

de vista económico, na leitura lacaniana de Freud, definia para a psicanálise uma perspectiva cientificista. Com efeito, desde o início de seu percurso teórico -- evoquemos aqui os ensaios "Para além do princípio de realidade"lÓ, "0 estágio do espelho como formador da função do Eu"17, "A agressividade em

íó J. Lacan, "Au-delà du príncipe de réalité" [1936], Ecrffs. i7 J. Lacan, "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je

lt949}, Ecrjls.

l)sicanálise"lS --, no período em que seu pensamento estava centrado na tópica do imaginário, Lacan excluiu, de maneira concisa e deliberada, o conceito de pulsão e a problemática económica da metapsicologia freudiana. Entre os anos 30 e 40, momento de elaboração desses textos, essas questões foram discutidas pela psicanálise anglo-saxânica

em dois registros diferentesmas complementares:elas foram pensadas segundo um modelo eminentementebiológico e representadas como sendo a base de uma teoria da afetividade. É o que Lacan queria, justamente, excluir da metapsicologia freudiana para fundamentar teoricamente a especificidade epistemológica da psicanálise. Por ocasião do segtmdo período de seu percurso teórico, iniciado em 1953, quando a tópica do simbólico predominou, a exclusão do registro económico e do conceito de pulsão da metapsicologia freudiana foi ainda mais radicalizada por Lacan. Seu fascínio pelo modelo linguístico de Saussure o conduziu, pelas sendas abertas por LéviStrauss e Jakobson, à formulação do conceito de inconsciente estru turado como uma linguagem,toda alusão às intensidadespulsionais sendo absolutamenteeliminada da psicanálise. O conceito de abeto devia desaparecerda psicanálise,pois só poderia haver recalque do representante-representaçãoda pulsão, e não do representante afetivo ip. Concluiremos desseselementos que a problemática da intensidade

e o registro económico da metapsicologia freudiana colocavam pro blemas insolúveis para o racionalismo de Lacan, fundado na tradição filosófica de Hegel e transmitido pelo ensinamentode Kojêve. Sabese, com efeito, que a tese do inconscienteestruturado como uma lin guagem e seu ordenamento lógico representado como uma cadeia de significantes permitiam associar as exigências teóricas advindas do racionalismo e do hegelianismo a uma leitura linguística do sujeito do mconsciente. De onde uma concepção não pulsional do inconsciente, represen cada pela lógica da estrutura edipiana associada a uma superposição do modelo lingiiístico do inconsciente ao do Edipo como estrutura o que haveria de eliminar definitivamente a problemática da intensidade. Para tanto, foi enunciado um conceito inédito de pulsão de morte,

inscrito no registro simbólico, de modo que não mais haverá nenhui8 J. Lacan, "L'agressivité en psychana]yse" ]1948], Écrfts. Ecrits.

i9 J. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanal} se'

ma referênciaao excessopulsional e à intensidade.Em suma, a lógica do significante seria exclusivamente responsável pela estrutura do sujeito do inconsciente. Opondo-se a essa visão, Deleuze e Guattari propuseram em A/zffÉdlpo que o inconsciente é perpassado de fio a pavio pela pulsão, ou, em outras palavras, que não poderia haver inconscientesem intensidades. Vale dizer que, face à formulação lacaniana do inconsciente como Áa/fa, Deleuze e Guattari defendem a tese segundo a qual o in-

consciente é excesso. Essa oposição entre o excesso e a falta é fundamental para a construção de um argumento sólido que permita, numa direção completamente diferente da estabelecida por Lacan, fundar uma nova leitura do sujeito do inconsciente. Desde 1967, em sua obra dedicada a Sacher-Masoch, Deleuze já insistia nessa diferença crucial com Lacan sobre o estatuto teórico do inconsciente que, para ele, era atravessado pela questão da pulsão. De

maneira aparentemente paradoxal no contexto de uma tradição psicanalítica em que a idéia de instinto havia sido definitivamente eliminada20 pelo ensino de Lacan, Deleuze distingue então, novamente, a ;pulsão de morte" do "instinto de morte Evidentemente, isso não quer dizer de modo algum que Deleuze quisesse recolocar a biologia no campo da psicanálise introduzindo nela, de forma surpreendente, o significante "instinto". Ao contrário, pela inscrição renovada dessa noção, Deleuze pretende recolocar a dimensão pulsional no inconsciente,desarticulando dessemodo a leitura lacaniana da pulsão de morte que a inscrevia no registro simbólico. Essa tese foi retomada em Á/zf/-Édito, já em suas primeiras páginas, com o enunciado das máquinas desejantesque, na verdade, não é senão a radicalização ostensiva dos conceitos de pulsão enquanto forças21e de pulsão de morte22em Freud. Nesse contexto, a pulsão enuncia-se como desconecfiz.,a,dlslíanfzucz e descons r fora dc unidades. A idéia de pulsão remete, portanto, à mobilidade e à ruptura das unidades, desfazendo com isso a noção de sujeito como unidade.

zo L. Laplanche e J.-B. Pontalis, Vocal /abrede /a psycbana/yse, Paras, PUF, 4' ed., 1973. 2i S. Freud, "Pu]sions et destina des pulsions" [1915], À4éfapsycbo/ogfe. zz S. Freud, "Au-de]à du príncipe du plaisir" [1920], Estais de psycbanalyse,

Paris, Payot, 1981.

Assim, se não há nenhuma dúvida quanto à realidade da crítica ao discurso freudiano, esta se apresenta, em primeiro lugar, como que filtrada pela leitura dc Lacan isto é, pela lógica da estrutura edipiana,

e não pela ordem da economia das pulsões. Esta última é então retomada positivamente por Deleuze, que a radicaliza de maneira inteiramente específicaquando afirma que as máquinas desejantesnão poderiam restringir-seao registro do indivíduo e que elas seencontram no campo social. É por essa razão que Deleuze e Guattari valorizam as categorias da economia pulsional de Freud, pois elas lhes permitem

voltar-se efetivamente para o campo da economia política: trabalho, investimento, força e intensidadezJ. No que se refere à concepção do sujeito e à realidade da experiência clínica, chega-se assim a uma distinção forte entre uma clínica centrada na pessoa/idadee uma outra fundada na siaga/arldade. Com efeito, mesmo tendo Lacan fundado, como sabemos, todo o seu per curso teórico posterior a 1953 na crítica sistemática à psicologia norte-americana do Eu, Deleuze e Guattari mostram com precisão que o Édipo estrutural acaba reconduzindo Lacan a uma leitura do sujeito centrada no Eu e na pessoa, e não a uma concepção da subjetividade centrada na idéia de singularidadeZ4.Esta, ao contrário, estaria fundada, de forma paradoxal, no atributo da ímpessoa/idade.Com efeito, se a singularidade não fosse eminentementeimpessoal, o sujeito jamais poderia ser marcado pelo que é singular. Nessa perspectiva,a singularidadeimplicaria necessariamentea ruptura dos limitese das fronteiras do Eu, com o rompimentodo território restrito da individualidade e a inserção do sujeito em outras territorialidades. O sujeito se inscreveria assim enquanto si/zga/árida de fmPessoa/ por sua inevitável dispersão nas máquinas desejantes do tecido socialn Parece-me que essa é uma idéia cardinal da clínica para Deleuze, pois, enquanto impessoal, a singularidadenão se identifica mais com a idéia de unidade, visto que o um do traço unitário se apagaria para sempre diante das idéias do mú/[lP/o e da d]spe7'são.Eis por que topamos com este aparente paradoxo: o singular, que seria o máxi23 G. Deleuze e F. Guattari, 24 Idem, ibid.

zs Idem, ibid.

L'úzzfi-(Edipe,

cap. 2.

mo da personalização na tradição da filosofia do sujeito, tende agora à impessoalização.Seria portanto para o silêncio da pessoae do Eu que tenderia a singularidade, já que ela está centrada no excesso pulsional e na economia das intensidades. Eis a razão pela qual a esquizofrenia interessa tanto a Deleuze e

Guattari. Com efeito, ela não apenas manifesta sua irredutibilidade ao Êdipo estrutural e a qualquer forma de ser transgeracional, como também mostra os impasses do sujeito que quer se tornar singular na impessoalidade. Desse modo, a esquizofrenia, enquanto figura típica da modernidade psiquiátrica, constitui o ponto de apoio estratégico para se pensar um sujeito não inscrito na estrutura do Êdipo: ela revela esta forma fundamental de existência do sujeito que é a impessoalidade singular. Contra a concepção lacaniana do sujeito, que se baseou sempre no modelo da paranóia26, o su)eitocomo impessoalidade singular está centrado, para Deleuze e Guattari, na figura paradigmática da esquizofrenia. Essa oposição entre as categoriasclínicas da paranóia e da esquizofrenia mostra bem o que está efetivamente em questão nas diferentes leituras da subjetividade. A paranóia como modelo teórico do sujeito implica a glorificação do Eu e da pessoalidade,enquanto a esquizofrenia, pela fragmentação e pela dispersão, revela a problemática da impessoalidadesingular. Além disso, se o modelo da paranóia e a concepção de sujeito que dela provém levaram diretamente Lacan à categoria de alienação de Hegel, a singular impessoalidadedo sujeito não mais poderá deixar de ser pensada no registro da alienação. Deleuze e Guattari estão bem mais próximos de Marx, jamais de Hegel, como podemos observar ao longo

de todo Ánfí-Édlpo. Com Marx seria possível pensar uma psiquiatria

materialista, centrada no inconsciente atravessado por pulsões e intensi-

dades, ao passo que, seguindo o racionalismo hegeliano, a materialidade económica dessa psiquiatria seria da ordem do impossível -- como

aconteceem Lacan. A letra do inconsciente adquire então uma materialidade fosca e evanescente, remetendo a uma idealidade platónica.

Portanto, será sempre em relação a Lacan e à concepção linguística do sujeito que Deleuze quer tomar distância, a fim de explorar uma

concepção pulsional do inconsciente como uma nova base para uma

Ecrits.

zóJ. Lacan, "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je

l)siquiatria materialista. No registro estrito da experiência clínica, a figura central que então se delineia é a da impessoalidade singular. Pois, no registro da materialidade pulsional, das disfunções e das desconexões

do sujeito, a desbotada idéia hegeliana de alienação não tem mais nenhuma razão de ser. 4. OS SIGNOS, OS TRAJETOS E AS CARTOGRAFIAS

Essa leitura nos leva inevitavelmente a retomar a distinção entre repetição do mesmo e repetição diferencial que Deleuze havia estabe lecido em 1964, em sua obra dedicada a Proust27. A repetição diferencial implica o excesso pulsional que funda a possibilidade da dize rença subjetiva e da singularidade. Por isso é impossível pensar a exis-

tência da impessoalidade singular sem a regulação operatória da repetição diferencial. Sabemos que Lacan retomou posteriormente essa distinção feita por Deleuze para pensar a compulsão de repetição em psicanálise, sublinhando suas dimensões positiva e negativa. Além disso, Lacan utilizou essas noções para pensar a experiência da transferência na clínica psicanalítica. Da mesma forma, as noções dc slm&l/actoe de cópia podem ser elevadas à condição de verdadeiros dispositivos que contribuem à representação do sujeito enquanto impessoalidade singularzu. Sem o auxílio dessas categorias, seria de fato quase impossível desenvolver tal concepção do sujeito, pois o simulacro e a cópia remetem à oposi-

ção entre a repetição diferencial e a repetição do mesmo. A singularidade impessoal -- por permitir ao sujeito o acesso a sua condição de diferença irredutível face a qualquer outro sujeito -- passaria assim, obrigatoriamente, pela cadeia dos simulacros. Os comentários que precedem desembocam inevitavelmente nos ensaios reunidos por Deleuze sob o título de Crãlcíz e c/z'Mica.Em sua diversidade temática e temporal, essa obra propõe uma elaboração renovada da questão da clínica e faz Deleuze ir além das teses contidas em Á/zfl-Édito. Nesse contexto, as formulações feitascom Guattari conduzem Deleuze a abrir novos caminhos para a clínica e a psiquiatria materialista, lançando-se nos registros da escrita e da literatura. É nesse campo que a leitura pós-estruturalista de Deleuze toma-

27 G. Deleuze, Prol/sf ef /es slgmes. 28 G. Deleuze, Loglqae da sons.

rá uma configuração ainda mais nítida e contrastada. A oposição en tre literatura e ciência lingiiística é aí desenvolvida de maneira a mostrar que esta última é incapaz de dar conta da literatura, que, por sua vez, só tem valor na medida em que entra em contradição com a ciência lingüísticazV Essa obra renova a concepção deleuzeana da clínica pelas novas possibilidadesque a literatura oferecepara pensar a forma do sujeito como singularidade impessoal. Através da multiplicidade das escritas que nela se manifesta, a literatura constitui o campo privilegiado dessa exploração inédita e contínua; ela é o laboratório privilegiado para experimentar, sempre de novo, a questão do sujeito e da clínica. Se, na prática da escrita, a literatura se materializa enquanto ficção, é entre escriba e /acção que se deverá tentar pensar o sujeito da diferença, os simulacros e a singularidade impessoal. Ê nessecampo multifacetado, portanto, que se decidirá a concepção que Deleuze faz da clínica e da materialidade da psiquiatria. Deleuze irá assim retomar a temática da singularidade impessoal

dedicando-sea explorar certos impassesda criação literária. A produção delirante revela-serica de ensinamentos ao indicar alguns obstáculos presentes na criação, mas também os processos de continuidade da vida. Seriam estes responsáveis pela literatura e pela ficção, transformando-as em "empreendimentos de saúde"? Ora, quando os processos de vida são paralisados, como acontece na neurose e na psi-

cose, sabe-se que a criação é interrompida e impedida. Nesse sentido, 'a enfermidade não é processo, mas parada do processo". Por conseguinte, "o escritor enquanto tal não é doente, mas antes médico, médico de si mesmo e do mundo". Assim, "o mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem"30. C) sentimento de estranheza provocado pelas obras de L. Wolfson,

R. Roussel e J.-L. Brisset dá sentido à proposição de Proust enuncia-

da em "Contra Sainte-Beuve",segundoa qual "os beloslivros são escritos numa espécie dc língua estrangeira" Na verdade.

os ensaios

de Deleuze

reunidos

em Crâica

e c/z'nicíz

são um comentário sistemáticodessefragmento de Proust colocado como epígrafe do livro. A escrita supõe, assim, a possibilidade, para 29G. Deleuze, "La littérature et la vie", Crifiqi/e ef c/inlqKe, p. 13 se Idem, pp. 13-4.

o sujeito, de construir uma nova língua e uma outra linguagem na língua instituída do código vigente e normativo. Para tanto, é preciso poder escrever numa "espécie de língua estrangeira", desterritorializando a língua instituída, de modo a transforma-la em não-familiar, em estranha, porque estrangeira... Nessa perspectiva, a literatura como ficção supõe a fabulação, na medida em que esta não implica nem imaginar nem tampouco proletar um Eu31. A fabulação seria, pois, a própria potência em ato, que traduziria a língua instituída como estrangeira. Assim, a escrita supõe não apenas a decomposição da /ügaa mczferzza,mas também "a invenção de uma nova língua dentro da língua, pela emoção da sintaxe"32. Estaria Deleuze nos indicando, com isso, que a ficção literária e a escrita seriam o próprio exercício da paper/cidade,e do que produz ruptura com a língua materna?Elas estariam como que implicadas na transformação radical do familiar no que é eminentementeestrangeiro. É ainda Proust que nos revela mais claramente o "ataque" da paternidade sobre a língua materna: "A única maneira de defender a língua é ataca-la"33. Aqui é que se produziria a inversão do lugar do sujeito em proveito da posição de estrangeiro no interior de sua própria língua, pois a passagem crucial do registro da pessoalidade do Eu para o da impessoalsingularidade pode, agora, enunciar-se literalmente. Essa diferença se realiza no registro concreto da escrita. Por isso, Deleuze evoca aqui o Blanchot de A cona/ergalzz/imitae de Á parte do fogo, quando este afirma que "alguma coisa acontece caos personagens], da qual eles não são capazes de se reapropriar a menos que se desapropriem de seu poder de dizer Eu"34. Com efeito, o sujeito só pode se reassumir como singularidade quando perde provisoriamente

seu poder de dizer "eu".

Ê por ocasião dessecomentárioque Deleuze irá marcar o senti-

l G. Deleuze, "La littérature et la vie", Crffiqae ef c/iníqua, p. 13. 3z /denz, p. 16.

s3M. Proust, "Correspondance avec Madame Strauss", in G. Deleuze, Crffiqz e ef c/iníqua, p. 16.

34Cf. M. Blanchot, l.czPczrtdu áeue l.'enfrefien in/ini, in G. Deleuze, Crili-

g eefc/iníqua, p 13.

do da ruptura pós-estruturalista: "A literatura parece aqui contradizer a concepção linguística, que encontra nos embreantes,e sobretudo nas duas primeiras pessoas, a condição da enunciação"n É, portanto, uma leitura atenta da literatura, compreendida como fabulação capaz de afirmar a emergência do sujeito enquanto impessoalidade singular, que funda, agora, sua concepção da clínica. Daí resulta que a literatura enquanto ficção e fabulação desmente o prometo supostamente científico da linguística: a literatura é habitada por fluxos, intensidades e afecções que transformam a língua familiar em lín-

gua estrangeira. Assim, o sujeito só se deixará apreender como tal desprendido e liberado do registro da pessoalidadcdo Eu. E Deleuze criticara mais uma vez a concepção lacaniana -- do inconscienteestruturado como uma linguagem-- que se apoia no estruturalismo lingilístico. Ele reencontra assim sua concepção pulsional do inconsciente, que se opõe à lógica do significante e celebra a condição fundadora do slg/zona economia do sujeito. Será, portanto, pelo caminho do signo, e não do significante, que as afecções e as intensidades serão reintroduzidas no sujeito, tornando possível uma leitura pulsional do inconsciente. É preciso então sublinhar a importância, na escrita, do arflgo inda/;nido36. Com efeito, é pela mediação do artigo indefinido que o Eu é desapropriado para que o sujeito possa se reapropriar como singularidade impessoal. Na escrita, o artigo indefinido tem a ver com a lógica do signo e não do significante, pois ela nos remete, enquanto leitores, a algo que se situa no limite e fora da linguagem, isto é, às visões e audições não-linguageiras.Assim, a problemática da escrita remete tanto à questão do ver e do ouvir como aos efeitos "de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras". Haveria, portan to, como uma "Pinfz/ra e uma mzíslcczpróprias à escrita"'', que remeteriam à lógica do signo.

É nessa perspectiva da singularidade impessoal que Deleuze foi levado a incluir a categoria de espaço na lógica do signo. A experiência do temposerá relançadaa partir dessaancoragem espacial (e cartográfica) do signo. 35 G. Deleuze, Crifzqae ef c/imiqz/e, p. 13.

só Idem, ibid. 37G. Deleuze, "Avant-propôs") Crífiqae ef c/Iniqz/e,p. 9. Grifos nossos

l)elos fluxos e afecções, isto é, pelas pulsõcs e máquinas desejan-

tes, Deleuze recupera uma nova potência do dizer e do escrever,em bluesão enfatizadas as idéias de Ira/efo e de carfogra/}a. Num artigo intitulado "0 que as crianças dizem", Deleuze nos mostra a importância dos trajetos espaciais no percurso do pequeno Hans de Freud e nos relatos clínicos de M. Klein acerca do jovem Richard (trajetos espaciais que não foram valorizados nem por Freud nem por M. Klein: eles estavam preocupados apenas com as representações presentes nos

discursos dos meninos). Esses trajetos revelam a circulação dos fluxos e das afecçõesnum espaço bem mais amplo que aqueledefinido pelo triângulo IFreud) ou o quadrilátero (Lacan) cdipiano, pois transporta o sujeito do registro do espaço ao da temporalidade. Seria preciso dizer aqui uma palavra acerca do fascínio que De leuze sentia pela literatura norte-americana, especialmente por Whit-

man38 e Melville39. O que o seduz neste último é redescobrir a figura da singularidade impessoal em cada um dos personagens de seus livros e nos menores detalhesde seusromances, nos quais a lógica do signo é desdobrada em seus cortejos musicais, sonoros e pictóricos. O impacto das intensidades se avalia pela Arar?ne/zfaçãoimanente à narrativa romanesca, marca indelévelda cultura norte-americana. Com efeito, contrariamente à tradição européia, marcada pela universalidade e pela exigência premente de fofa/ilação, a tradição norte-americana seria permeada pela fragmentação e pela d/spersão. A oposição entre a totalização européia e a dispersão norte-americana estaria igualmente presente, no plano político, no registro das idéias

de Estado e de nação que passam diretamentepara a escrita40. Poderia-se concluir disso que a importância da recepção do pensamento de Deleuze nos Estados Unidos e no Brasil se deve às dimen-

sões fragmentárias e dispersivas de suas respectivas culturas? Uma relação de homologia se constituiria aqui entre a filosofia deleuzeana e as formas culturais do Novo Mundo.

3uG. Deleuze, "Whitman", 39 G. Deleuze,

"Bartleby,

Crfrfq

e ef c/fníqire.

ou la formule",

Cr/fiqz/e ef c/l?zfql/e.

40G. Deleuze, "Whitman", oP. cft., pp. 75-6.

HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN

Eduardo A. Vidal

Heterogeneidade é uma palavra que convém a um trabalho incessante, arriscado, aberto, a uma aposta na diferença e na multiplicida-

de como sinal de alerta contra a totalidade e o totalitarismo. Deleuze

é um escrito que se propaga, se difunde, se bifurca, se pluraliza na indeterminação do um que não faz todo. Porém, não se quer anárquico e postula a exigência de constituir um sistema que prove que o filósofo não se lança a uma aventura irresponsavelmente e se compromete com o conceito, com a crítica do conceito. Pois o conceito é o sin guiar, em oposição ao universal vazio, é a invenção contra a monotonia

do mesmo. O conceito não recria, ele faz -- é da ordem do acontecimento. As máquinas, sejam desejantes ou de guerra, são linhas múltiplas que se bifurcam e se multiplicam com seus pontos de fuga ao infinito. Assim o sistema é concebido, feito das linhas constitutivas dos acontecimentos. Uma cartografia desenha caminhos e trajetos, devires que conduzem a um ou vários lugares, sem prejulgar sobre condições e caracteres. Toda antecipação é ilusória e falseia o acontecimento: há lugar de produção, através de marcas, do acidente,do acaso. Proponho aqui que discutamos a possibilidade de produção, a ser verificada, de uma heterogênearelação Deleuze-Lacan. Disse o pintor Francis Bacon: "talvez se manipulecada vez melhoras marcas que foram feitas ao acaso, isto é, as marcas que foram feitas inteiramente de modo irracional. Com o tempo e, trabalhando segundo o que

advém, se condiciona, se reagecom mais vivacidade ao que o acidente propôs. E, quanto a mim, sinto que tudo o que cheguei a amar era o resultado de um acidente sobre o qual tinha sido capaz de trabalhar" ] Salientarei, primeiro, três questões em Deleuze: a da linguagem, a da superfície, a do acontecimento, embora as três se atravessem e se

imbriquem entre si.

l Francês Bacon, L'art de !'impossible; Entretiens auec David Silvester, Ge negra, Albert Skira, 1995, p. l ll.

A experiência de Deleuze na linguagem é radical. A invenção -tluc se figura na literatura mas que se estendea todo ato criador transforma a língua, revelando que ela não é unitária e abriga outrajs) língua(s). A experiência da invenção leva a linguagem até o limite em que algo responde como não-linguagem, audições e visões que perten cem ao campo do delírio, sem ser doença. Deleuze traça o prometode uma nova clínica, uma clínica da linguagem que liberte dos estados clínicos da classificação patológica e permita interrogar, interpelar a própria linguagem. Escrever, o ato de escrever, é fazer vir à tona, à superfície, esses elementos heterogêneos, que, numa sorte de paradoxo,

a linguagem não contém, mas que não poderiam ter sido produzidos sem ela. Em Espinosa, Deleuze aprende a essência do signo, não apenas

como causa do sentido, mas como causador de efeito. Um efeitosupõe corpos que se afetam uns aos outros. Assim, os signos, numa plurali dade categorial, são abetos de passagens, de mudanças de estados registrados por diferenças e variações, deveres. Os signos estão sujeitos à associabilidade

e à equivocidade,

e não se deixam

reduzir

à extensão

convencional de seu uso, pois eles não têm o objeto como referente. É do acaso próprio ao encontro entre os corpos que emerge o signo, com a alegria e a potência necessárias para a produção de um conceito. O artigo indefinido um é aquele que convém para escrever uma relação não-totalizante ao saber. Deleuze renuncia ao todo, ao Um, até mesmo

à questão do sujeito, como elediz, sem drama. Muito antescom poe sia e humor. Sermos afetados implica assumir esse caráter de superfície do corpo em relação aos outros. A superfície aspira, na filosofia moderna, à forma clara e distinta cujo paradigma é o triângulo como fundamento matemático do sujeito do conhecimento. Essa superfície, que escreve o ideal do espaço euclidiano, rejeita as complexidades dos corpos não homogêneos, dos planos superpostos, lisos e estriados, feitos de sulcos e de dobras, relançando-se uns nos outros. É disso que se trata nos cor-

pos libidinais e erógenos. Com Fouczzu/f,Deleuze recorre à topologia para pensar o outro como exterioridade: "a vida, o trabalho, a língua gem surgem no início como forças finitas exteriores ao homem e que Ihe impõem uma história que não é a sua. É num segundo momento que o homem se apropria desta história, e faz de sua própria finitude um fundamento"2. Esse segundo tempo, o da apropriação do Outro, 2 G. Deleuze, Fozrcau/f, Paria, Minuit, 1986, p. 94, nota.

se realiza como topologia da dobradura (doub/wre)e da dobra (P/l). O espaço da subjetivação se constitui pela prega (p/issemezzf)do fora. É do fora (deóors), como limite, que o ser se prega, sendo a relação a si homólogaà relaçãocom o fora, onde, à maneira do traço barroco, 'a dobra infinita" separa, passa entre o exterior e o interior. "A topologia geral do pensamento", que começava já "na vizinhança" das singularidades, termina agora na prega IP/lssemenf)do fora para o dentro: "no interior do exterior e inversamente", dizia a História da /oucura."[...] todo o espaço do dentro está topo]ogicamente em contato com o espaço do fora, independente dab distâncias e sobre os limites de um 'vivente' e esta topologia carnal ou vital, longe de explicar-se pelo espaço, libera um tempo que condensa o passado no dentro, faz advir o futuro no fora, e os confronta ao limite do presente vivente."3 A topologia, pensar de outro modo, um Outro pensar, que inclua a multiplicidade e não se queira fechado sobre si mesmo nem aberto a uma infinitude ilimitada. O signo transborda o pensar: é força que impele e compete; é o impensado que exige pensar. A dobra presentifica a diversidade da intrusão do fora e seu desdobramento em múltiplas linhas de pensamento. Signo e pensamento não fazem relação nem acordo: encontro heterogêneoe discordante, determinante da produção de novos enunciados em resposta ao hiato e à diferença. Com Deleuze, a filosofia é acontecimento. Em ato, o que está em questão são os corpos sem que linguagem e pensamento deles consigam fazer representação, significação ou significado. Um acontecimento não é a história. Ele é histórico em um certo trajeto do devir, mas logo excede, explode qualquer significação histórica para afirmar-se singular. "E filósofo aquele que se torna, quer dizer, aquele que se interessa por essas criações muito especiais,na ordem dos conceitos."4 "Nunca passei pela estrutura, nem pela linguística ou a psicaná-

lise, pela ciência ou mesmo pela história, porque creio que a filosofia [em seu material bruto, que Ihe permite entrar em relações exteriores, dessemodo muito mais necessárias,com essasoutras disciplinas."ÕO trabalho de Deleuze operaria como um PO/ztocora-/ínba necessário, precisamente pela crítica que faz ao discurso analítico, sem incluir-se nele. Há uma heterogeneidadeentre a filosofia e o discurso analítico, 3 idem, p.126.

4 G. Deleuze, PozzlPar/ers, Paria, Minuit, 1990, p. 41 5 /dem, p. 122.

heterogeneidadeque não significou para Deleuze uma recusada psicanálise. Deleuze não ficou alheio à comoção que a invenção freudiana do inconsciente provocou nos saberes de nosso século. O inconsciente deveria, na sua crítica, ser pensado como máquinas desejantes, percursos e redes que, longe de aprisionar o sujeito na sua alienação familiar, o coloquem na mais radical exterioridade a si mesmo. "A descoberta da psicanálise é mesmo o desejo, as maquinarias do desejo. Isso não pára de vibrar, de ranger, de produzir numa análise. E os psicanalistas não cessam de armar máquinas, ou de rearmálas, sobre fundo esquizofrênico. Mas talvez eles façam ou desencadeiem coisas das quais não têm clara consciência. Talvez sua prática implique

operações esboçadas que não aparecem claramente na teoria. Não há dúvida de que a psicanálise colocou a perturbação no conjunto da medicina mental; ela desempenhou o papel da máquina infernal. Pouco

importa se desde o início houve acomodações; isso produzia a perturbação, impunha novas articulações, revelava o desejo."Ó Que Freud localizasseessas máquinas desejantesna cena edipiana foi, sem dúvida, o ponto de partida de uma série de equívocos que a interpretação analítica não cessa de propagar. Surge, em 1972, o ÁnffÉdlpo, que, ao resgatar o desejo, fazia uma importante delimitação:

o complexode Edipo é coerentecom a concepçãode mundo que o

neurótico tem de suas relações familiares, e reduzir a psicanálise a sua função só consolida a alienação própria da neurose. É da psicose, enquanto corPO sem órgão que a psicanálise teria muito a esperar, loca-

lizando com precisão o conceito de pulsão: corpos crógenos, mal compostos na imagem que suporta as forças libidinais dos orifícios corporais. A crítica se estendia ao que seria, na concepção de Deleuze e Guattari, homólogo ao Édipo freudiano: a noção de estrutura de linguagem e de significante proposta por Lacan. Cabe aqui citar Deleuze:

Com seu inconsciente-máquina IGuattari) falava ainda em termos de estrutura, de significante, de falo etc. Era forçosamente assim, já que ele devia tantas coisas a Lacan (eu também). Mas eu me dizia que isso andaria melhor se encontrássemos os conceitos adequados, em lugar de utilizarmos noções que não são as do Lacan criador, mas aquelas da ortodoxia que se fez em torno dele. Ê Lacan quem diz: não me ajudem. lam ajuda-lo esquizofrenicamente.E nós devemos muito a Lacan, certamente,tanto mais que renunciamos a noções como as de estru6 Idenr, p. 27.

tura, de simbólico ou de significante, que são completamente inexatas, e que Lacan, ao contrário, sempre soubevirar para mostrar-lhes o avesso" '

O desejo, Freud o extraiu do discurso da histérica. O desejo na histeria é recalcado, fazendo retorno nas formações de sintoma. O sintoma, pela prática que Freud nomeou psicanálise, é retirado do olhar

médico e constituído na dimensão do discurso. Freud inventou um dispositivo de palavra em que o sintoma se abre à realidade do inconsciente, que é sexual. O desejo inconsciente é fixado, no procedimento próprio da neurose, às constelações edipianas, numa espécie de quis c/os incestuoso. A revelação do sentido do sintoma provocou uma profunda comoção nos pacientes de Freud, no saber médico e na cultura vitoriana. Com o passar do século, a surpresa dessenovo saber foi mitigada pela repetição burocrática de interpretações "psicanalíticas", e a virulência da prática instituída por Freud foi atenuada pelos projetos de psicologias de cunho adaptativo. O desejo resta atrelado, na neurose, ao domínio de pai e mãe. No entanto, essa não é a experiência da psicose, onde o delírio é o mun-

do, nem a da estéticada perversão, onde a máquina desejantequer extrair do Outro o âmago de seu gozo. O desejo provém do fora, dos pontos de encontro com signos que transformam o sujeito. O desejo não é falta, mas máquina produtiva. Uma clínica do desejo segueseus 'agenciamentos" e escreve sua cartografia. "Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise."8 Deleuze critica a prática analítica, mostrando que "o que as crianças dizem" -- título de seu artigo é diferentedo que Freud e Melanie Klein interpretam. A psicanálise insiste em um único ponto de vista. Para Freud, Hans desejadeitar com a sua mãe. Richard é analisado por Klein a partir da perspectivado inconscientecomo substânciae qualidade. Porém, Hans e Richard falam outras coisas: mapas e personagens que excedem o âmbito familiar. Deleuze sustenta que o incons-

ciente não é apenas um investimento libidinal dos pais. Em todo caso, os pais são um meio, entre outros, que a criança aprende a percorrer. 'A líbido não tem metamorfoses, mas trajetórias histórico-mundiais."9 7 /dem, p. 24.

8 G. Deluze, C itiq e ef c/ílziqae,Paria, Minuit, 1993, p. 83 9 Idem, ibid.

Quando a interpretaçãofreudiana assimila, no caso Hans, a identificação do cavalo com o pai, desconhecea força animal que impulsiona o desejo. O investimento libidinal recai sobre algo que se apresenta com o artigo indefinido: zlm cavalo, um animal. Trajetos e percursos desenham um mapa intensivo que não resulta de uma extensão da imagem corporal, mas que constitui essa imagem como permanente mutação. O inconscientee o corpo não são um interior que se projeta e se estende. Ê do fora que os desejosinconscientes se produzem como um devir. Para Deleuze, imaginário e real se superpõem de modo que a imagem virtual recubra o objeto real e, inversamente, o real produza sua própria imagem virtual. Uma análise mais precisa da função de recobrimento da imagem em relação ao real permitiria situar a angústia

no caso Hans, no momento em que emerge, através da imagem especular, o objeto a não-especularizável. A crítica de Deleuze à interpretação psicanalítica desconsidera a função da angústia nos dois casos. Se o desejo na neurose é algo mais do que um fluxo inibido, devemos escutar na angústia o momento de sinalização da causa do desejo. Lacan é freudiano no sentido radical do termo: o inconsciente é

um saber não sabido que se determina em ato, sempre falho, como divisão do sujeito. O inconsciente é um corte entre sujeito e Outro, borda de pulsação entre abertura e fechamento que supõe a necessidade lógica do recalque originário (Uruerdrã/zgw/zg)no ato de sua emergência. A invenção freudiana do inconsciente encontra em Lacan sua formalização e sua escritura. O conceito de inconsciente é radicalmente exterioridade, que se distingue das noções de interior, dentro e conteúdo, tão de acordo com o fascínio que a esfera exercesobre o pensamento. Lacan faz a torção necessária que escreve o Inconsciente como corte e borda, esvaziado de substância e de representação. Uma topologia torna-se necessária, a do plano projetivo, que possa figurar a premissa do inconsciente freudiano de não incluir-se no espaço-tempo kantiano. A banda de Moebius, resultante de um corte do plano projetivo, dá suporte, no espaço de três dimensões, ao sujeito de única borda que não possui nem "dentro" nem "fora": o inconsciente como pulsação temporal. A invenção do inconsciente tem

lugar num momento preciso da interrogação do campo do Outro, operada pela lógica matemática e cuja conseqüência é o esvaziamento dessecampo. A formalização da lógica aristotélica empreendida por

Fregedesembocano paradoxo de Russell. Gõdel colocará em evidência que a consistência da aritmética implica um limite, a incompletude, e, ainda, que no interior desse sistema a consistência não pode ser demonstrada. 0 Outro, diferentemente de Hegel, é o lugar onde o saber falha. Não há saber da morte e do sexo no inconsciente. A linguagem tenta suprir a ausência de relação no inconsciente e, como enuncia Lacan, 'é pensávelque toda a linguagemnão sela feita, se não para não poder pensar a morte que, com efeito, é a coisa menos pensável que possa existir"10. 0 Outro é suposto desejar, e o sujeito deseja enquanto Outro. O desejo é alteridade e exterioridade, intrusão e estranheza. A incidência como um raio do desejo do Outro Freud denominou acontecimento traumático. Dessa irrupção desejantedo "fora", o sujeito é efeito evanescentee fugaz. É como enigma, esfinge e vertigem, que o desejo interpela cada um, constituindo-se o sujeito como resposta. Que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem é a tese

com que Lacan define a posição do inconsciente no seu ensinamento. Deleuze ataca a concepção lacaniana de significante inconsciente a partir da perspectivado totalitarismo, que suporia reduzir o sistema plural de signos ao significante. Com a noção de significante, Lacan depurou o excesso de saber que o inconscientesupõe para o analisante e o analista. O significante não quer dizer nada, não comunica nada, não mantém relação nenhuma com o significado. É diferente de outros significantes e de si mesmo. A cadeia significante, o sujeito a padece. Padecer do significante é ser afetado por ele. Espécie de "signo passional", o corpo se emociona, adoece, sintomatiza, angustia. O corpo é tomado na linguagem de tal modo que, para o ser falante, o significante se faz carne. O significante sem sentido mas com efeito de gozo no corpo remete à inscrição do traço no inconsciente freudiano, desprovida de significação e suporte da diferença. O ensinamento de Lacan problematizou o campo e a função do Outro. 0 Outro não é completo. 0 Outro não responde unicamente

como significante.Uma crítica tem como alvo a incompletudee a inconsistência do Outro, por considera-las posições do discurso religioso. Uma crença, no entanto, é abalada pela incidência de uma falta que io JacquesLacan, "lmprovisation-- Désir de mort, rêve et téveil", trans-

crição de notas de C. M illot, L'Âne, Le À4agazlfzeFreudiepz,n' 3, Seuil, Paris, 1981,

P. 3

ntroduz um buraco irredutível no sentido. E a religião é o domínio do sentido. Esse buraco produz um a-mais de satisfação. Lacan tematiza

a relaçãode impossibilidadeentre dizer e gozo: a palavra para nomear o gozo falta. Freud, no seu E/z m ride 1895, introduzia o termo das Di#g, a coisa, no cerne de seu aparelho neurânico. A coisa, excluída do juízo e da representação, resta inassimilável. É à distância da coisa que as cadeias inconscientesse articulam. Para o sujeito, a proximidade da coisa é causa de estranheza e de horror. Ela presentifica o Outro na sua face de gozo enquanto impossível. A crítica de Deleuzeao conceito de inconscienteformulado por Lacan recai sobre uma suposta hegemonia do significante. Essa crítica não leva em consideração que não há universo do significante, cujo correlato é a introdução da dimensão de gozo nos aparelhosde linguagem. A experiência analítica em Lacan implica o enodamento de três registros heterogêneos: real, simbólico, imaginário, sem que se deva

privilegiar um em detrimento de outro. Enfatizar a primazia do simbólico em sua obra perpetua um desconhecimento. O discurso analítico, que Lacan formaliza, escreve o real da satisfação pulsional estabelecidapor Freud no seu caráter problemático e paradoxal. O gozo do sintoma subverte a noção de sujeito concebida pela filosofia. A psicanálise, no anual estado de coisas, é o discurso que tem o dever ético

de pontuar a função do gozo, que faz obstáculo ao significantee ao sentido, e se encontra, em princípio, excluído da filosofia.

Ah, a misériado imaginárioe do simbólico,o real sendo sempre adiado para amanhã."lt Escrever é, para alguns, uma resposta sem necessidade da per gunta. Escreve-sepor imposição do real. Não se tem outra escolha. Escrever é levar uma língua até o limite, onde se revelam seus elemen tos heterogéneos.Escrever se aproxima do delírio. Wolfson, "o estudante esquizofrênico das línguas", inventa um procedimento de escrita inseparável do processo de sua psicose. Ele procede à destruição da língua materna -- o inglês --, que se tornou impossível de ouvir e de falar. Ele passa a inventar uma outra língua que não resultade uma ii G. Deleuzee C. Parnet, Dla/olhes, Paria, Flammarion, 1977 [nova edição aumentada, 1996], p. 63.

tradução, pois o ponto de partida foi abolido. Deleuze dirá que "é, talvez, o alvo secreto da lingiiística, segundo uma intuição de Wolfson: matar a língua materna"12. Ao atacar a língua, ele pretende erradicar a voz da mãe: "Não é minha língua que é materna; é a mãe que é uma língua"13. O que se chama "mãe" são as palavras que Ihe colocaram no ouvido e os átomos que introduziram no seu corpo. Ao escrever Le scbizo ef /es /angues, Wolfson atinge os limites da linguagem mesma. "Esta história é antes o que há de 'impossível' na linguagem, e Ihe pertence ainda mais intimamente: seu cora.»14 Escrever é um devir. A psicose de Wolfson é uma interrupção de um fluxo vital. Contudo, Wolfson consegue fazer explorações inusitadas na linguagem. Se toda literatura é produzir uma língua estrangeira na própria língua, o procedimento de Wólfson é radicalmente destruir com outra(s) língua(s) o que ainda resiste à catástrofe na língua materna. Transcrever-seé a "operação Wolfson". Da aboliçãoda língua materna à produção de escrita em língua estrangeira, Wolfson, ele próprio, se trens-escreve. Ingerimos da ferocidade do procedimento a gravidade daquilo que se deve excluir. Wolfson procura desesperadamente separar as palavras da "coisa ouvida", descontaminá-las do gozo. Com a destruição da língua materna busca aniquilar a existência de voz. A experiência da psicose revela o estatuto da voz como condensador de gozo. No entanto, o procedimento não se reduz a sua fase de aniquilamento; ele comporta uma outra de reparação e recons-

trução pela via de uma escrita, inédita e inaudita, com função de circunscrever, de produzir uma borda ao gozo intrusivo do Outro. Entre o corpo e o gozo do Outro se interpõe o texto como superfície separadora em que se localiza, através da letra, o efeito do real despedaçante. Wolfson se vale, para constituir seu procedimento, da nãocorrespondência entre as línguas, que torna toda tradução, no limite, impossível. Samuel Beckett problematiza o processo de tradução quando decide escrever em inglês algumas de suas obras escritas originalmen-

te em francês. Ele, estritamente, não traduz; escreve de novo. Paul Auster, no ensaio "From cakes to stones", analisa o trabalho de self12 G. Deleuze, Criliqae

i3 Idem, p. 30. 14Idem, p. 32.

ef c/inlgzze, p. 21

frzz/zs/at/o/z feito por Samuel Beckett. Mercfer and Camlez' espera bastante tempo até receber do autor uma versão em inglês, segundo Auster,

mais satisfatória que o original, lembrando que "English is nevertheless Beckett's home"15. A nova obra ganha em economia e concisão de palavras, confirmando que na arte de Beckett "less is more". Escreve Auster sobre essa tradução: "is not se muco a litteral translation of the original as a re-criation, a 'repatriation' of the book indoEnglish" 16. Com essa repatriação fica patente que não há um original a ser traduzido, mas um texto a ser reinventado. Uma língua, sabe Beckett, resiste; há um real em jogo que não se translada. Beckett recria sua obra com a especificidade da língua materna, fazendo vir à tona os pontos de suspensão em que a palavra se interrompe, se equívoca, se entende

mal. Escrever é, na citação que Deleuze faz de Beckett, "furar bura-

cos" na linguagem.

Freud apresentara as primeiras formulações de seu aparelho psíquico cm termos de operações de transcrição e escrita. Em carta à Fliess

de 6 de dezembro de 1896, analisava as sucessivas extratificações dos traços de memória, sendo essesreordenados periodicamente. E do fora como percepção que o aparelho é afetado, produzindo-se o primeiro registro, indicado com as letras Wz, que correspondem à primeira escrituração (die ersfe N/ederscbrlÁi) dos signos de percepção ( Wabr?zebra ngzelcben). Estes signos são sempre pontuados enigmaticamente, de acordo com o como se é afetado pelo desejo do Outro. As notícias

do próprio corpo também fazem parte desseexterior. Os corpos se afetam à maneira de uma língua; elessão corpos falantes. SÓhá encontro com abetose sintomas sob o regime da contingência;disso se escreve um traçado, se marca uma inscrição, rastro e vestígio de "coisas vistas e ouvidas", mas não compreendidadas nem reconhecidas. O seguinte registro, cuja notação é Ub ( U/zbemussf), o inconsciente, consiste numa segunda escritura Id/e zmeíle NfederscbrlÁi) dos signos

de acordo com relações causais de outra ordem. As letras Vb (Vor-

bewzlssfldesignam o pré-consciente como terceira transcrição (die drive

UmscbrlP), articulada a representaçõesde palavras. O aparelho psíquico registra rastros da palavra gozante. O inconsciente é o traço de i5 Paul Auster. "From cakes to stones: a note on Beckett's French", Tüe arf

o/bu/zger,USA, PenguinBooks, 1992,p. 88. ió Idem, ibid.

uma perda decantada como escritura: o prefixo lzieder,abaixo, assinala o caráter de precipitar, assentar, próprio do ato de escrever. Há a ilusão de que algo cesse 'de não se escrever, que finalmente se escre-

va. O inconsciente freudiano escreve em torno de uma opacidade radical que não encontra sentido, algo ausente ao sentido (ab-sefzs),fora sentido lbors-sons), indessenso Iffzde-se/zs).O inconsciente faz disso (das

Es, na tópica freudiana), equívoco, mal-entendido, chiste. O ganho de prazer (Luslgemifzfz)é o excedente pelo fato de sermos falantes, um mais-de-gozar nos aparelhos de linguagem que habitamos. A questão do sujeito, em psicanálise, é correlativa a uma série de escritas heterogêneas e heterotópicas. O inconsciente é o conceito decorrente da instauração de um traço que se repete como diferença. Algo

escreve no sujeito sem que se transcreva inteiramente na palavra nem seja integralmente lido. Há hiato entre as diferentes escrituras. Uma escrita é sempre parcial, em relação a uma linguagem e a outras escritas: ela encontra a dimensão do real. O impossível está no cerne da escrita. Escreve-se do impossível, não apenas como limite mas como causa. Hereros designa o Outro como diferença absoluta, como real. O "procedimento Wolfson" desmistifica a noção romântica da escrita como escolha do sujeito. Escreve-sepor imposição do real. Escrever é exigência de linguagem, do real de uma língua. Um sujeito implica sempre uma escrita: ele é o que de uma língua, inscrevendo-se, se particulariza. O tempo é inerente à escrita. Freud traz com o conceito de inconsciente uma nova temporalidade dos processos psíqui-

cos. Comandada pela exigênciade um real traumático, tem lugar a

reordenação periódica dos signos, a poslerlorf lnacbfràg/lcb), em resposta a isso que não cessa de se escrever. A posição do inconsciente difere daquilo que o substancializa ao concebê-lo concluído na infância. Uma psicanálise opera, precisamente, produzindo o inconsciente em ato pela função "desejo do analista O inconsciente é feito do que Lacan nomeou a/z'água.A proposição d'alíngua decorre do inconscienteestruturado como uma linguagem. "Como umd" se opõe a que a linguagem seja o que o discurso da ciência define. Não há a linguagem mas o efeito de ama, do qual se determina a incidência do real. O discurso analítico cinge um real específico do falante, aquele que se transmite na sentença: "não há relação sexual". Disso resulta que o gozo do Outro, de seu corpo, é sempre inadequado, já seja perverso, ao ser reduzido a objeto a, já seja louco e enigmático, pela ausência radical de significante para nomeá-

lo. O real introduz ao artigo indefinido am, a nm corpo que se fragmenta em órgãos no encontro com o gozo. Alíngua é o precipitado dessereal no curso do tempo. "Uma língua entre outras não é nada mais do que a integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela."17 Alíngua que o inconsciente habita e que se revela em lapsos, chistes, equívocos, que não servem nem à comunicação nem ao diálogo; não estabelecerelação com o objeto referente. Os efeitos de uma língua escapam à ciência e ao próprio sujeito, produzindo uma série de abetosenigmáticos. Estes resultam d'alíngua enquanto o inconsciente

é um saber que, ao articular-se, goza com isso. "[...] o inconsciente é um saber, um saz,oír-pairecom alíngua. E, o que se sabe fazer com alíngua, ultrapassa de longe aquilo do que se pode dar conta à título de linguagem."Í 8 Michel Leiris testemunha o instante preciso em que desperta ao sentido real de uma palavra d'alíngua: "...reusement". Fora

de qualquer intenção de comunicação, essa expressão reservada à intimidade de seus jogos infantis, repetida no jogo de guerra dos soldados de chumbo, faz parte do tesouro de um saber da infância e, na maturidade, o força a escrever as belas páginas de seu texto. Essa pa-

lavra é um abetode comoção, um acontecimentodo encontro com o Outro. "Pois essa palavra mal pronunciada, e sobre a qual acabo de descobrir que não é na realidade o que acreditei até então, me colocou num estado de sentir obscuramente -- graças à espécie de desvio, de intervalo que foi, por esse fato, imprimido a meu pensamento-no qual a linguagem articulada, tecido aracnídeo de minhas relações com os outros, me ultrapassabrotando por todos os lados suas antenas misteriosas." 'z

A filosofia é o trabalho do conceito. Deleuze concebe a filosofia como acontecimento. A heterogeneidade concerne os signos que a partir

de um exterior nos afetam. O encontro com os signos não tem relação ou correspondência com o pensamento. Não se trata de reconhecer algo que o pensamento sabe. A ilusão da linguagem é pretenderse completa e buscar enunciar o todo. Manter-se na dimensão do acon-

i7 Jacques Lacan, "L'étourdit", Scl/fcef,n' 4, Paras,Seuil, 1973, p. 47. i8Jacques Lacan, Le séminaíre,/jureXX, elzcore,Paria, Seuil, 1975, p. 127. 19Michel Leiras, Bf/7Kres. La rêg/e d /e J, Paris, Gallímard, 1994, p. 12.

tecimento implica postular a indefinição do artigo zlm. A topologia da vizinhança possibilita delimitar zonas de indiferenciação e de indicernibilidade que a escrita pode aproximar sem compromisso com a coerência ou a síntese. E de "entre" outros que um homem ou z/m animal se exprime na linguagem. Uma escrita é devir, o inacabado fazendo-se, tornando-se. Escrever é inventar algo que falta, "um povo que falta". Escrever é levar a língua até o limite, onde ela é transtornada e não se reconhece mais, deparando-se com seu fora, seu avesso, feito de visões e audições. Esse fora é radicalmente exterior, radicalmente fora, já que as visões e audições não pertencem a língua ne-

nhuma. "Qua/zdo a /üg a está lão tensa que ela se põe a gaguejar, ou a murmurar, balbuciar[...], foda a /inguagematinge o /Imite que desenhaseu fora e se confronta ao silêncio."20 A partir de outro discurso, o analítico, Lacan indaga o intervalo de onde responde um pedaço de real. O silêncio não está no limite da linguagem; ele atravessa o dizer. A palavra falta para dizer-se toda, para

enunciar uma verdade que só se pode meio dizer. Trata-se de dar o estatutoao intervalo quando algo já não responde como palavra. O próprio de uma linguagemconsiste em encobrir o hiato, mascarar a separação, fazendo supor que há relação entre os significantes que copulam no inconsciente.Se a cadeia significantefaz uma série em que o zlm se repete produzindo a ilusão de completude, aqui nos deparamos com o "entre", o buraco, a hiância onde a questão do desejodo Outro secoloca para o sujeito. O silêncioproduz a voz na sua função de causa do desejo. "A linguagem pode ser concebida como o que prolifera no nível da não-relação, sem que se possa dizer que essa relação existe fora da linguagem"zi

Deleuze e Lacan conduzem, respectivamente, a experiência da filosofia e da psicanálise ao encontro com a ruptura, a diferença, a falha.

Não há conciliação possível. É necessário produzir a heterogeneidade em que os conceitos se inscrevam nas suas diferenças.

zo G. Deleuze, Crírfq e ef c/iníqua, p. 142.

p3

21Jacques Lacan, "lmprovisation -- Désir de mort, rêve et réveil", oP. cit.

Quarta Parte

VARIEDADES ESTÉTICAS

A PROPÓSITODE UM CURSO DO DIA 20 DE MARÇO DE 1984 O RITORNELO E O GALOPE PascaleCriton

Naquela manhã, um dia de março de 1984, o curso era sobre a diabéticada profundidade nos neoplatânicos e o esboço de um estatuto da imagem cristali. Ruptura. Por um salto expresso como um parêntese urgente, Deleuze lança uma pista de trabalho por vir, sobre a música, sobre a qual ele pede à sala para refletir. À medida que faz essedesvio, apresentadocomo antecipado e anacrónico, Deleuze insiste sobre a importância, para ele, dessa questão e, defendendo-se, começa claramente, murmurando, tateando, uma improvisação em voz

alta, de um pensamento cujo tema pouco a pouco se formava:

"0 que é quc se vê no cristal? O que se vê no cristal é o tempo não-cronológico. [...] O cristal ou a imagem cristal não é apenas óptica... O cristal tem também propriedades acústicas, a imagem cristal é também sonora. [...] Todo cristal revela o tempo... A noção de cristal me parecetao rica... l Os cursos aconteciam em St. Denis, nos pequenos prédios pré-fabricados que beijavam a rua. Deleuze não queria um grande anfiteatro, não queria falar em um microfone. Na sala retangular, as janelas de vidro davam para uma vegetação selvagemdo terreno baldio ao redor. No quadro negro, Deleuze havia desenhado, com giz, um esquema que ilustrava a dialética da profundidade neoplatânica, e escrito:

A profundidade não pode emanar senão de um sem fundo: o Um imparticipável" Rodeado de cadeiras muito próximas umas das outras, ele esperava algum tempo antes de começar, fazendo, como de costume, algumas brincadeiras em voz baixa.

Apresentoaqui um curto trecho do curso do dia 20 de março de 1984, so-

bre O crlsfa/ sonoro, o riforne/o e o ga/ope. Nessa época, as noções de imagem

tempo e imagemcristal tinham sido abordadas do ponto de vista do cinema, e a do ritornelo já havia sido exposta no capítulo "Do ritornelo", em Mlí/lep/afeanx,

Paris, Minuit, 1980, pp. 381-433. Como também antes, por FénixGuattari, em L'fpzco/zscfenf macbf iqae, Paras, Recherches-Encres,1979, pp. 244-314. As no ções de rffor/ze/oe de crêsa/ sonoro de tempo surgiram do trabalho comum de Deleuze e Guattari.

Félix Guattari desenvolveu,em l.'incozzscfe f macAirzíqz/e,a noção de cristal de tempo, considerando o cristal de um ponto de vista sonoro. Ele liga o cristal sonoro de tempo ao que ele chama o ritornelo, que ele analisa em Proust, na pequena frase de Vinteuil: o ritornelo seria, segun-

do ele, um cristal de tempo por excelência.'

Eu me distancio de Félix, pois é assim que trabalhamos: as coisas remontam, descem. Proponho hoje trabalhar com vocês e transmitirem,por minha vez, as coisas a Félix. Vamos refletir juntos: o trabalho coletivoé isso. Digo para mim mesmo, o ritornelo é perfeito, mas isso não me basta... É apenas um aspecto. Precisaria de alguma coisa a mais, algo que faça o cristal se mover, que tome outra

posição no cristal... O ritornelo... está ligado à ronda, ao canto dos pássaros. E, na música da Idade Média, o canto dos pássaros está ligado à polifonia."

"[...] O que é que se distingue,que só se opõe se distinguindo.

..?

[...] Ê o galope. O galope... é um vetor linear com precipitação... velocidade aumentada. O galope... é isso. Os dois grandes momentos da música seriam o ritornelo e o galope, dois pólos não-simétricos: o cavalo e o

pássaro."'

Deleuze prosseguia, discernindo pouco a pouco como a não-simetria desses dois termos, enquanto manifestações puras, na música de cinema em particular, iria produzir uma variação. É elaborando um dispositivo conceitual, orientado conforme uma objetividade especificamente filosófica, que Deleuze encontra a música, como também encontra, além disso, a pintura, o cinema, a literatura. A elaboração de um problema se constitui e se precisa no próprio encontro com a música, com questões que vêm sondar a ária musical. Entretanto, a particularidade dessas questões é a de não ser 2 Sobre isso, Deleuze diz. rindo: "Pois então... vou dar a Félix essa triste

notícia... que há também o cavalo"

ainda especificamentefilosófica ou musical e de conservar uma dimensão pré-material: elas são pré-filosóficas e pré-musicais. Sendo assim, pode-sepensar uma relação direta material-força? De que agenciamentos espácio-temporais somos capazes? De que matrizes ou máquinas de produção nós dispomos? E como a música permeia tais questões? Tem ela algo a nos ensinar? Nesse procedimento, a arte de orien-

tar o pensamento e de colocar as questões é decisiva. Deleuze não faz um discurso sobre a música e tampouco propõe um tipo de análise ou um modelo de interpretação. Ele determina ângulos de encontro, coletânea das potencialidades, das idéias musicais que se desenvolvemcom obras e autores, cruzando-se em diferentes estratos ou formações musicais, abordando, ao mesmo tempo, as coisas de um ponto de vista que Ihe é próprio: o ponto de vista de um pby/zzmmaq z'Mica,de um maquinismo sonoro e musical. O dispositivo conceptual é, ele próprio, uma pequena máq í/za que se constitui

simultaneamentecom o lugar no qual os termos e os operadores se organizam: trata-se de uma matriz, de uma máquina de apreender, de fazer ver, de produzir signos e inteligíveis. Essa mzíqaifzapossui, essencialmente, dois pólos funcionais: 1) Um pólo de territorialização, com uma função territorializante que se exprime com a emergência de matérias de expressão. O que faz a marca? O que faz o território? O que é territorializado na música? 21Um pólo de escapamentodo território, com uma função caralizadora ou vetor de desterritorialização. O que se autonomiza? O que se destaca? Que forças se lideram na música? De um pólo a outro, uma flutuação produz uma experiência, uma linha de variação. Para Deleuze, a música é o lugar privilegiado de um processo transversal de variação. Lugar de trocas entre as forças territorializantes

do ritornelo e a composição de uma linha de variação propriamente musical. Do que trata a música, qual é o conteúdo itüissociáuet da expres-

são sonora? O ritornelo é ponto de preensão, território, dobra securitária, com o risco de um retorno melancólico ao natal, mas é também uma linha potencial cujos pontos podem se redistribuir, se pâr em movimento: distribuição polifónica, variações melódicas, variações de timbres, de velocidades, de dinâmicas, de densidade de orquestração... "A música é a operação ativa, criadora, que consiste em dester-

ritorializar o ritornelo."

Mas qual é, portanto, esse rigor/ze/o, qual é essa dimensão nova

que se insinua imperceptivelmenteem uma palavra tão familiar que tranqüilizaria, de imediato, tanto músicos como não-músicos, ao mesmo tempo que os leva para o desconhecido? O ritornelo seria o co/zfeúdo da música, e tal conteúdo ainda não seria musical: o ritornelo capta forças e abetos,lugares e momentos, intensidadesde infância: "os sinos do vilarejo", "os pequenos caminhos gramados", "um pássaro", "o trem" vão setornar motivos musicaise retomarão. São também estados de velocidade ligados a abetos: acelerações, suspensões, desacelerações,paradas; ou ainda expressõesrítmicas, a chuva, o relógio, ou formas sonoras expressivas, a caminhada, a perseguição, as rondas, as cavalgadas.

Desse plano de intensidadespercorrido por abetosnão subje-

tivados, em velocidades e lentidões, Deleuze faz o plano pré-material essencial da música, indissociável de um plano de vida ou de um plano de Natureza. O plano dos abetos, tacitamente admitido em música, embora na maior parte do tempo minimizado, torna-se uma proposição essencial da abordagem musical de Deleuze. Com efeito, os abetos apresentam-se, na acepção musical corrente, como representações ou imagens que viriam duplicar a música, assim como recorremos à anedota ou à metáfora, reduzidas a um efeito de sentido secundário3 Ora, Deleuze inverte essa relação, colocando o acontecimento, o que se está experimentando,a hora, a luz, o lugar, como imediaticidade que o ritornelo capta em um composto percepção-ação. O ritornelo torna-sea marca, um composto abeto-perceptoindicial. São fatos impessoaisque se individualizam com os abetose, de certo modo, é essa ressonânciaimpessoal, "uma criança que grita", "os pássaros rodopiando no céu", "ouve-se o ruído de botas", "nuvens negras", "a luz de seu riso"... que o ritornelo capta e conserva em um motivo, uma matéria harmónica, uma sequênciarítmica. A literatura, a pintura, o cinema também produzem matérias de expressões, mas de maneira diferente. Se o ritornelo apreende e territorializa, a música leva as botas,

o riso, os pássaros, a ronda e a hora, e os desterritorializa de maneira bem particular: fazendo blocos dissimétricos se moverem, compondo e recompondo no tempo das relações cujos signos são variáveis, deuíres... É nessa relação passo a passo do conteúdo e da expressão que 3A não ser durante o período do primeiro Barroco, que experimentaa expressividade dos a/Xeffi.

a música faz passar forças "não-sonoras": forças do cosmos, forças da terra, forças do tempo, abetose potências, em devires-guerreiro animal, mulher, criança, máquina... O que está em jogo na música seria essa potência de devir, ligada ao trabalho do ritornelo:

"continua ele

territorial e territorializante, ou é levado para um bloco móvel que traça uma transversal através de todas as coordenadas? A música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira pela qual ela cai em... um pobre refrão, um indicativo, uma cantiga... ou então a maneira pela qual ela se apodera do ritornelo, torna-o cada vez mais sóbrio, algumas notas, para leva-lo para uma linha criadora cada vez mais rica... Como o riforne/o faz território, como passa do não-musical para uma variação m usical desterritorializada? Três operações caracterizam esse dispositivo, o r/forme/o, que desde então já não pertence nem à mú-

sica, nem à filosofia, mas se constitui entre-dois, dispositivo transversal que faz o espaço se manter -- espaço não-sonoro, dez/fr-música --, por

sua relação com forças do caos, com forças terrestres e com o cosmos... 1. Criar um meio. Ligada à residência, ao solo, ao reconhecimento, a primeira operação do ritornelo é criar um meio, limiar de agendamentoque conjura as forças aniquiladoras do caos. Trata-se de fixar um ponto frágil que é centro. É o medo da criança no escuro, que canta baixinho para se acalmar, o círculo a ser traçado para uma tarefa a ser cumprida, uma obra a ser feita. O ritornelo se bate diretamente com o plano de Natureza, inseparável do que produz, plano de comslsfêzzciapercorrido por velocidades e abetos não subjetivados sobre o qual hecceidades se formam segundo composições de potências, intensidades e direções. Sobre esse plano virtual e, contudo, inseparável do que ele produz, trata-se de estabelecer diferenças e discernimentos, passagemà existência de um infra-agendamento ainda fluente com a emergência de meios e de ritmos, velocidades, componentes periódicos, energia e movimentos direcionais pré-territoriais. 2. Produzir ferrifórlo. Como vimos, o ritornelo não se relaciona com o território a título de evocação ou de uma representação deste, mas produz uma dimensão expressiva dele, diretamente constitutiva. Em sua função territorializante, o ritornelo opera uma seleção,uma diferenciação serial: é a distribuição espacial de um agendamento, a passagem à territorialidade com a geração de matérias expressivas. Para

o músico, é a escolha sequencial de gamas, de escalas, tais como a seleção de modos, em Messiaen, a escolha de crivos, em Xénakis, de um meio harmónico, em Scriabine ou Debussy, a partir dos quais se ela-

l)eram os motivos e seqüênciasde ritmos e de melodias, a fibragem harmónica. O favor territorializante é o devir expressivo do ritmo e da melodia, que se tornam personagens e paisagens sonoros+ "A arte é o nome dessa emergência", é a expressividade que faz território: o plano de composição musical, ou plano de organização, desenvolve as forças terrestres do intra-agendamento, liberando tanto matérias de expressão quanto marcas territoriais. 3. O moz,imenso de destef7fforla/lzação. A terceira função que se exercesobre o território é uma operação de transversalidade. "A transversal é um componente que toma para si o vedor especializado de desterritorialização". Trata-se de "introduzir uma escapada", no território, de um vetor que age sobre as velocidades e as relações e/ztre agenciamentos territorializados, estratificações, matérias de expressão: são componentes de passagem que estabelecem relações não pré-localizadas, não enquadradas, empregando níveis moleculares inseparáveis de todos os componentes materiais das matérias de expressãoj. Nesse

nível da atividade inter-agendamento, tratar-se-á, do ponto de vista da composição musical, do tipo de orquestração, da produção de relações de relações (escritura) e do acesso aos níveis moleculares do mate-

rial: "A relação essencial apresenta-se aqui como uma relação direta material-força. O material é uma matéria molecularizada, que deve nessaqualidade 'captar' suas forças"6. O ritornelo desterritorializadodesterritorializante capta e integra componentes energéticos, moleculares, revelando potencialidades, inter-relações, desdobrando novas matérias e novas transições, "é um prisma, um cristal de espaço-tempo. Ele age sobre o que está a seu redor, som ou luz, para tirar vibrações variadas, decomposições, projeçõese transformações..."7. Nesse movimento transversal, surgem novas populações e percepções, cristais sonoros de tempo ligando o plano de consfsfê/zelae o plano de organfzaçião8. 4 Ou inversamente: "0 ritmo e a melodia são fatores territorializantes quando se tornam expressivos... O ritornelo é o ritmo e a melodia territorializada",

P/afeaux, p. 391.

MfJ/e

5 Sobre o nível molecular das matérias de expressão e as transversais de destratificação, cf. À4///eP/alegar, pp. 412-6. 6 À4i//eP/czfe'zzzx, p 422. 7 À í//e p/afe'zux, p. 430.

8A criação de uma linha transversalrepousa sobre o duplo movimento de um plano abstrato pré-material, ou plano de colzsisfêncla, por um lado, e de um

Ao propor o prisma cristalino como operador "espaço-tempo", Deleuze chama a atenção para a importância da questão da relação direta material-força, que sempre animou Varêse tanto no nível de uma concepção molecular das qualidades sonoras como no de sua produção segundo o princípio que anima a composição do "som organizado": "Quero estar no interior do material sonoro, ser uma parte da vibração acústica, por assim dizer... me aproximar tanto quanto possível de uma espécie de vida interior, microscópica, como a que encontramos em certas soluções químicas, ou através de uma luz filtrada". Quanto ao nível da forma, ele diz: "Concebendo a forma musical como uma resultante, o resultado de um processo, senti nele uma estreita analogia com o fenómeno de cristalização"; ainda no nível da relação material-forma-forças: "há, antes de tudo, a idéia; é a origem da 'estrutura interna'; esta cresce, se fende segundo várias formas ou grupos sonoros que se metamorfoseiam incessantemente,mudando de direção e de velocidade, atraída ou repelida por forças diversas. A forma

da obra é o produto dessa interação. As formas musicais possíveis são

tão inumeráveisquanto as formas exterioresdos cristais". O cristal sonoro é um operador germe-estruturação, mas tambémum princípio revelador de transmutações e de variação infinitas A proposição de um espaço espácio-temporal mostra-se como o

plano de elaboração lógica, ou plano de orgapzfzação,por outro. Os dois planos são indissociáveis,ligadosem um movimento de produção recíproca, eles não param de fazer trocas. Cf. "Lembranças de um planejador", Mi//e p/afeaux, pp. 325-33

e pp. 363-7ss.

9 "É surpreendentever a que ponto o som puro, sem harmónicas, dá outra dimensão à qualidade das notas musicais que o rodeiam. Realmente, o emprego

dos sons puros em música age sobre as harmónicas como o prisma de cristal se bre a luz pura. Tal utilização os irradia em mil vibrações variadas e inesperadas

Edgard Varêse, Écrífs, Paria, Bourgois, 1983, pp. 44 e 158-9. E ainda: "Em minha obra, encontramos, no lugar do antigo contraponto linear, fixo, o movimento de planos e de massas sonoras, variando em intensidade e densidade. Quando essessons entram em colisão, resultam os fenómenosde penetração ou de repulsão.

Certas transmutações ganham lugar em um plano. Projetando-as sobre outros planos, se criaria uma impressão auditiva de deformação prismática. Aqui se tem também, como ponto de partida, os mesmos procedimentos encontrados no contraponto clássico, com a diferença de que agora, em vez de notas, massas organizadas de sons se movem uma contra a outra", cf. Georges Charbonnier, Enfrefie/z

auecEdgczrdVarêse, Paris, Belfond, 1970.

1)1anode composição e de estruturação do som próprio à escritura musical da segunda metade do século XX. Das abordagens eletroacústiCas e eletrânicas às concepções ultracrornatistas, da síntese sono-

ra e instrumental às últimas gerações da informática musical, o livre plano de composição das relaçõessonoras, anunciado por Varêse desde os anos 20, gerou incessantementeuma abordagem molecular do material sonoro, confiando aos "construtores do som" a criação de sua própria relação com o espaço e o tempoiu. Como o cristal sonoro revela o tempo? Deleuze distingue o ritornelo e o galope como duas figuras do tempo jmanifestaçõespuras), exemplares na música de cinema, e elabora uma matriz, cujos elementos

assimétricosproduzem uma variação transversal. O vetor de desterritorialização é atribuído ao galope: com efeito, o vedor de aceleração é uma variável do ritornelo que pode tornar-se autónoma, mantendo uma relação dissimétrica com o outro componente variável, de territorialização: "A desterritorialização implica a coexistência de uma variável maior e de uma variável menor que formam-se ao mesmo tem-

po: a desterritorialização é sempre dupla... os dois termos não se trocam, não se identificam, mas são levados para um bloco assimétrico, onde um muda tanto quanto o outro"ll. Deleuze propõe dissociar as duas variáveis, chamando uma de rlfor/ze/oe a outra de ga/OPe: [...] Se o que se ouve no cristal é o próprio tempo, a própria fundação do tempo, se é o ruído do tempo o que se ouve no cristal, é preciso, portanto, que o ruído do tempo seja duplo. Com efeito, o galope é cavalgada dos presentes que passam(velocidade acelerada). [...] E o ritornelo é a ronda dos passados que se conservam .

Duas figuras do tempo... Não sei qual é o signo de cada um; o signo é variável...

[...] Introduzamos uma nova dupla: vida-morte... io Pasca[e Criton, "Continuum, u]trachromatisme et mu]tip]icités", La ]goz/-

pe//eRez/weMasfcíz/eSnfsse,Dissolzíznz-Disso/zafzce, n' 42, Zurique, 1994. E "Espaces sensibles", Colóquio l,'Espace: Musique ef Pb//osopble, Paras, Sorbonne, 1997

latas a serem publicadaspela editora L' Harmattan). ii ÀÍI//e p/afeaux, p. 377.

lope.

[...] Há autores para quem a vida está do ]ado do ga[-.] A vida é uma cavalgada dos presentes que passam,

para um cineastacomo Renoir, por exemplo... [...] E a morte é a ronda que nunca termina dos passados que se conservam e que fazem pressão sobre nós. [...] Melancolia de 'se você também me abandonar' A pequena canção que nos mergulha no passado, que nos leva ao passado, que nos arranca lágrimas sobre nós mesmos... O pequeno ritornelo... é a morte." "Outra possibilidade... A cavalgada dos presentesque passam anda rápido. Ela nos faz correr,... mas para onde corremos? De modo algum para a vida: corremos para o túmulo. [...] Para onde correm?... E]es correm para o túmu]o. E ao contrário... o pequeno ritornelo... é a verdadeira vida... é o que nos salva da corrida para o túmulo... é a prova do eterno... E o que vai se assentar sobre nós como uma auréola sonora e nos subtrair, mesmo que apenas por um instante, à corrida ao túmulo."

"[...] Lá, os signos se invertem, é o ritorne]o que contém a vida e o galope que nos leva à morte. Perdidos... salvos... perdidos... salvos... [...] Fellini põe em cena os dois-. Mas não está nem em um nem no outro... Em Ensaio de Orquestra, tem-se o

ensaio da orquestra, que tem por sentido constituir os dois elementos... Constituí-los, antes de tudo, de maneira autónoma, depois mistura-los cada vez mais, para mostrar que nunca se sabe de antemão o que será perdido ou ganho. [-.] No esplêndido galope des]izante de violinos, no fim, se forma um pequeno ritornelo..., uma pequena frase... A pequena frase pára, o galope retoma, e a pequena frase também... [...] AÍ se dá uma compenetração dos e]ementos, na forma: Salvos?... Perdidos?... Salvos?... Perdidos?..."

Nesse esboço de dupla desterritorialização, Deleuze mostra como,

na música de cinema, um agendamento maquínico se desenvolve com a manutenção de uma ária de intensidade estendida entre dois pólos, o tempo sustentado por uma flutuação, cuja queda é conjurada. Pau

sa que permiteo tempo de um descolamento,em prol de um transporte, uma declinação de figuras largadas no cosmos. A música é pre cisamente a aventura de uma linha de fuga, a um só tempo impessoal e coletiva, capaz de fascinar ou de mobilizar um povoDeleuze pensava na pequena frase do Bairro, uma simples frase, dizia Ravel, mas de tal insistência...t2 "Uma pequena frase, que basta ouvir uma vez para jamais esquecê-la' Uma pequena frase, é só, que não muda nem de ritmo, nem de melodia. Apenas mudanças de intensidade e de orquestração introduzem incessantementeuma variável e modificam as relações em um longo crescendo sabiamente dosado, de modo que... [...] a retomada da pequena frase se dá segundo um galope... que chega a um esplêndido fim, à quebra do ritornelo,

[...] como um prato que se quebra: os pedaços se estilhaçam.

Na extrema velocidade do galope... Vejam...

[.-] Eis como se pode construir uma matriz simples, com os dois elementos,o Ritornelo e o Galope." Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro

12Clément Rosset desenvolve o papel do rlforne/o da frase do Bo/ero, de

seu caráter particularmente insistente e repetitivo em "Archives", l,a Nouue//e Recue Fralzçaise,n' 372, Paria, fevereiro de 1984. Vale salientar que o ritornelo do Bo/ero de Ravel se substituiu a qualquer informação e retiniu, sem interrup ção, nas ondas, no dia 3 de setembro de 1939, dia da declaração da guerra e da

partida dos contingentesmobilizados.

EXISTE UMA ESTÉTICA DELEUZEANA? Jacques Ranciêre

Meu objetivo não será situar uma estética deleuzeana em um qua-

dro geral que seria o pensamento de Deleuze. A razão disso é simples: não sei muito bem o que é o pensamento de Deleuze, ainda estou investigando. E, para mim, os textos de Deleuze considerados estéticos

são um meio de me aproximar dele. Aproximar, aliás, é um termo impróprio. Compreender um pensador não é chegar a coincidir com o seu centro. É, ao contrário, deportá-lo, conduzi-lo a uma trajetória em que suas articulaçõesse afrouxam e permitem um jogo. Ê então possível des-figurar esse pensamento para refigurá-lo de outro modo, sair da restrição de suas palavras para enuncia-lo nessa língua estrangeira que, para Deleuze, depois de Proust, constitui a tarefa do escritor. A estética seria aqui o meio de desatar esse novelo deleuzeano que

deixa tão pouco lugar à irrupção de uma outra língua, para deslocálo na trajetória de uma questão. De fato, não se tratará de situar o discurso deleuzeanosobre a arte no âmbito da estética,concebida como uma disciplina que tem seus objetos, seus métodos e suas escolas. Para mim, a palavra "estética" não designa uma disciplina. Não designa uma divisão da filosofia, mas uma idéia do pensamento. A estética não é um saber sobre as obras, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e que as toma como testemunhos de uma questão: uma questão que se refere ao sensível e à potência de pensamento que o habita antes do pensamento, sem o conhecimento do pensamento. Tentarei então mostrar como os objetos e os modos de descrição e de conceptualização

de Deleuze nos levam ao centro do que há a ser pensado sob essa palavra, já bicentenáriae ainda tão obscura, "estética" Partirei de duas formulações deleuzeanas, cuja distância me pa-

rece fixar de modo exemplar os pólos, aparentemente antagonistas, entre os quais se inscreve o pensamento deleuzeano acerca da obra. A primeira se encontra em O que é a /i/osoÓa?: "A obra de arte é um ser de sensação e nada mais: ela existe em si[...] O artista cria blocos

de perceptos e de abetos, mas a única lei da criação é que o composto

tlcve se manter por si só"l. A segunda figura em l,ógfca da sensação:

Com a pintura, a histeria se torna arte. Ou melhor: com o pintor, a histeria se torna pintura"z. À primeira vista, a primeira fórmula enuncia o que parece ser o requisito de qualquer estética entendida como discurso sobre a arte: há um modo de ser específico: o da obra de arte. A obra de arte assim o é na medida em que se mantém por si só. Ela é o objeto que estádiante

de nós, que não tem necessidade de nós mas persiste, em virtude de sua própria lei de unidade de uma forma e de uma matéria, de partes e de sua junção. Pode ser a tragédia, como Aristóteles a define; a cal-

ma idealidadeda estátua grega, em Hegel; o romance sobre nada de Flaubert, que se mantém apenas pela força do estilo; a superfície de manchas coloridas por meio da qual Maurice Denis define a pintura etc. É precisamente desse modo que Deleuzc parece nos colocar diante da obra sob a forma de um: "eis o que há". Assim começaexemplarmente, em Lógica da sensação, a descrição daquilo que um quadro de Bacon nos apresenta: "Uma circunferência delimita frequentemente o lugar em que está sentada a personagem, isto é, a Figura"J. Uma circunferência, uma oval, círculos, procedimentos plásticos, um espaço bem delimitado e caracterizado, assim Deleuze nos descreve "o

que há" diante de nós, na superfície plana e autónoma da obra. E "o que há" pode ser descrito nos termos de uma espéciede gramática das formas. Assim, pode-sedescrevera superfície do quadro de Bacon como a estrita combinação de duas formas identificadas pelos historiadores e teóricosda arte. De início, a coexistência, no quadro da figura, da camada de tinta que cria o fundo e da circunferência que ao mesmo tempo as une e separa é a restituição de um espaço háptico: um espa-

ço de conexão do ver e do tocar em um mesmo plano. Segundo Riegl, é esse espaço que caracteriza o baixo-relevo egípcio. SÓ que nesse espaço o contorno tem por função essencializar a figura que ele circunscreve. O problema é, então, definir um espaço que tenha a "planeidade'

háptica, mas que seja liberado dessa função essencializante. Tal problema é resolvido formalmente por uma operação que incide sobre o contorno. Sua linha vem se identificar, em Bacon, com 1 G. Deleuze e F. Guattari, Qa'esf-ce qzze/a pbf/osop&íe?, Minuit, p. 155. 2 G. Deleuze, Loglqzze de la se/zsaüofz, La Différence, t. 1, p. 37.

3Idem, p. 9.

uma outra linha, pertecente à lógica de uma outra forma: a linha gó rica setentrional de Wõrringer, essa linha que se encurva, se quebra, se embaralha, muda de direção. Essa linha inorgânica desorganizaa função do contorno essencializante. Ela o prolonga no mundo do acidental para fazer dele um lugar de tensão, de confronto, de deformação dos outros elementos. A superfície baconiana será definida, então, como uma combinação específica de formas: o espaço háptico "egípcio" de Riegl desorganizado pela identificação de seu contorno com a linha setentrional de Wõrringer. Pode-se assim definir uma fórmula de quadro em uma gramática geral das formas. Mas como compreender, então, que esse agendamento de planos e de linhas, definido por critérios estilísticos, tenha o nome de uma doença mental, a histeria? Eu digo "doença mental". Mas

há toda uma tradição de pensamento para a qual a histeria não é uma doençaqualquer. Ela é, especificamente,a doença que seopõe ao trabalho da obra, que a impedede existir como coisa autónoma, retendo prisioneiras no corpo do artista as potências que deveriam objetivar e autonomizar a obra. Penso aqui no que Flaubert diz de seu Sainf A/ztol/ze:a potência que devia criar a consistência do bloco de mármore da obra inverteu sua direção. Ela foi para o interior, ao invés de ir para o exterior. E, indo para o interior, ela se liquefez. Ela escorreu em Flaubert como doença nervosa. Assim a histeria é propriamente a antiobra. Ela é a paixão ou a efusão nervosa que se opõe à potência atléticae esculturaldos músculos. Como compreender, então, que o "manter-se por si só" da obra possa se identificar com a histeria?Retomemos, para isso, às primeiras linhas de l,ógica da sensação. A circunferência, a oval, o paralelepípedo formais têm, de fato, uma função muito precisa: isolar a figura. Isola-la não para essencializá-la,como o contorno egípcio, não para espiritualizá-la, como a ma/odor/a bizantina, mas para impedi-la de entrar em contado com outras figuras, de se tornar elemento de uma

história. E há duas maneiras de se tornar elementode uma história: há a relação externa de semelhança, a relação do personagem figurado com aquilo que ele representa. E há as relações que, na própria superfície da obra, uma figura mantém com outras figuras. Essas duas maneiras definem, de fato, as duas faces de um mesmo modelo: o modelo representativoaristotélico, tal como fixado pela Poética. Representar, com efeito, significa duas coisas. Primeiramente, a obra é imitação de uma ação. Por meio de sua semelhança, ela

faz reconhecer algo que existe fora dela. Em segundo lugar, a obra é a ação de representar. Ela é encadeamento ou sistema de ações, agendamento de partes que se ordenam segundo um modelo bem definido: o agendamento funcional das partes de um organismo. A obra é viva

por ser um organismo.Isso quer dizer que a fecb/zeda obra existeà imagem da natureza, da potência que encontra no organismo vivo em geral, e no organismo humano em particular, sua efetuação. O modelo clássico da autonomia da obra consiste em dissociar o modelo aristotélico, em contrapor a consistência orgânica da obra à sua dependência mimética, a natureza potência da obra à natureza modelode figuração.Uma verdadeiralibertaçãoda obra supõe, en tão, a destruição dessa organicidade que é o segundo recurso da representação. Histerizar a obra, fazer da histeria obra, significará desfazer essa organicidade latente na própria definição da "autonomia' da obra. Isso significará tornar doente essa natureza que tem a autonomia orgânica como fe/os. A obra pictural deverá, então, ser pensada como uma doença da natureza orgânica e da figuração que imita sua potência. O que os elementosda gramática formal evocada constituem é, de fato, uma instauração de crise, a doença de uma natureza. Eles delineiam a cena de um combate ou de uma crise. O contorno baconiano é assim uma pista, um ringue, um tapete de ginástica. É o lugar de um combate: o combate da pintura contra a figuração. Da mesma forma, também os elementosdo "código formal" foram cuidadosamentetorcidos por Deleuze para organizar esseringue. Prova disso é a maneira pela qual ele muda a significação das análises de Wõrringer.

Neste autor, a linha era idealidade, potência de ordem. Mesmo a linha gótica tinha uma dupla função. Ela traduzia angústia e desordem. mas também as corrigia, manifestando uma potência vital ideal. Em Deleuze, inversamente, a linha torna-se a potência do caos que arrasta toda forma, a potênciado devir-animal que desfaz a figura humana, a instauração de catástrofe no espaço figurativo. O contorno de senha, então, um campo fechado no centro de um duplo impulso: em torno dele, a camada de tinta do fundo faz subir em direção à figura as potências do caos, as forças não-humanas, não-orgânicas, a vida não-orgânica das coisas, que vêm esbofetear a caras . Em seu interior,

+ No original francês, pode tratar-sede um jogo com o duplo sentido da palavra /zgzfre,simultaneamente "figura" e "cara". IN. da T.}

a própria figura busca escapar, desorganizar-se, esvaziar-se pela cabeça para se tornar copo sem órgãos e ir juntar-se a essa vida nãoorgânica. Assim o "manter-se por si só" apolíneo da obra é, antes, uma histeria dionisíaca: não o escorrer das potências da obra no corpo do artista, mas o escorrer na obra dos dados figurativos que a obra tem por tarefa desfazer. Deleuze dá um outro nome a esse trabalho de deserção. Ele o denomina justiça. E à própria justiça ele atribui um novo nome: ele a denomina deserto. É assim que o capítulo 5 de Lógica da sensação descreveo término do movimento por meio do qual a figura escapa em direção à estrutura molecular da matéria: "Será necessárioir até esse ponto a fim de que reine uma justiça que não será mais do que Cor ou Luz, um espaço que não será mais do que Saara"4. A obra faz justiça, e a justiça se origina em um certo lugar. Ainda que a associação da justiça e do desertoevoque, em primeiro lugar, a Antígona de Hõlderlin, parece-me impossível não ouvir aqui o eco de um outro discurso sobre a justiça e seu lugar. Refiro-me certamentea Platão, no livro Vll da Repzíb/ica.Tanto em Deleuze como em Platão, a que se trata de fazer justiça? Pode-se responder: ao sensível como tal. Tratase de dizer qual é sua verdadeira medida. Em Platão, a medida verdadeira chama-seidéia e a idéia tem um inimigo: as doxaf. A doxczé a justiça que o sensível faz a si mesmo na ordem corrente das coisas. E preciso, então, sair da caverna, da coxa, do sensível, para alcançar o lugar a partir do qual o sensível recebe sua medida, com o risco de que ele aí desapareça. Ora, em Deleuze, a justiça tem o mesmo inimigo: a coxa, a opinião, a figuração. Do mesmo modo que o espírito em Platão, a tela do pintor não é branca, à espera do que deve preenchê-la. A tela é superpovoada, recoberta pelos dados figurativos, isto é, não apenas os códigos figurativos picturais, mas os clichês, a coxa, o mundo

das sombras sobre o muro. O que é isso: os "dados figurativos" ou a coxa? É o recorte sensório-motor e significante do mundo perceptivo tal como o organiza o animal humano quando se faz centro do mundo; quando transforma sua posição de imagem entre as imagensem cogffo, em centro a partir do qual ele recorta as imagens do mundo. Os "dados figurativos" são também o recorte do visível, do significante, do credível tal como organizados pelos impérios, enquanto atualiza-

* Idem, p. 23

ções coletivas desse imperialismo do sujeito. O trabalho da arte é o de desfazer esse mundo da figuração ou da doía, de despovoar esse mundo, de apagar o que está previamente sobre qualquer tela, de fender a cabeça dessasimagenspara aí colocar um Saara. Ir em direção à justiça é ir em direção àquilo que dá a verdadeira medida do sensível: o mundo da "ldéia". E, certamente, em Deleuze, a verdade não é a idéia por detrás ou sobre o sensível. A verdade é o sensível puro, o sensível incondicionado que se opõe às "idéias" da coxa. O sensívelincondicionado é o que se denomina justiça ou deserto. A obra é caminhar no deserto. SÓ que o deserto justiceiro alcançado, o término da obra, é a ausênciade obra, a loucura. "Será necessário ir até esseponto", diz Deleuze,mas a obra só irá a esseponto com a condição de anular-se. O teatro da obra é então o de um movimento no mesmo lugar, de uma tensão e de uma estação -- no sentido também em que se fala das estações de um caminho da cruz. A obra

é o caminho da cruz da figuração que a cara esbofeteada, como um Cristo ultrajado, manifesta. Mas, precisamente, ela retém no mesmo lugar a cara esbofeteadaque quer fugir. A obra é uma estaçãono caminho de uma conversão. Sua histeria é esquizofrenia mantida nos limites em que ela faz ainda obra e alegoria do trabalho da obra. Em um sentido, o livro sobre Bacon é apenas isso: uma vasta alegoria do trabalho da obra. O privilégio de Bacon, o privilégio do expressionismo, no sentido amplo, na estética pictural deleuzeana, é o de mostrar e alegorizar o momento da metamorfose, de mostrar a arte se fazendo -- histericamente-- em seu combate com os dados figurativos. Em Deleuze, a obra é, antes de tudo, a alegoria da obra. Ela mostra seu le/os, seu movimento e sua retenção. A figura, para ele, é ao mesmo tempo a /órm /a de uma transformação e sua alegoria. E seu julgamento sobre a figura está ligado a sua capacidade de se tornar fórmula e efígie que opera e alegoriza ao mesmo tempo o movimento da fuga retida. Pode-se pensar aqui na maneira pela qual, no livro sobre o cine-

ma, o limiteda imagem-movimentoe a gêneseda imagem-tempose emblematizam em duas efígies, dois rostos de mulheres, de "loucas": o rosto da mulher do Tbe Wro/zgÀ4an, de Hitchcock, interpretada por Verá Mi[es, e o de ]rene em Earopa S] , de Rosse]ini, interpretada por Ingrid Bergman. Ambos os rostos testemunham essa passagem: tanto a mulher do Áa/se clf/Fado, que mergulha na esquizofrenia após a injusta incriminação de seu marido, como a grande burguesa de Ezíro-

pcz5] , que se torna "louca" aos olhos do mundo do qual ela deserta em favor das operárias e das prostitutas, se retiram do universo da coxa

e da justiça. Elas vão em direção a uma outra justiça: a do deserto, de Antígona, da petrificação e do confinamento. SÓ que Hitchcock, o aristotélico, se furta a essa passagem para o outro lado que engole o belo edifício da imagem-movimento e do enredo bem construído. Já Rosselini dá tal passo, faz o cinema que esse rosto pede. E Deleuze, como marca a passagem? Fazendo de Irene uma efígie alegórica. Toda a potência da efígie se prende às palavras que Irene pronuncia, voltando da fábrica: "Creio ter visto condenados". Com isso ela se torna a alegoria do artista: aqueleque foi ao deserto, que viu a visão excessivamente forte, insustentável, e que, a partir de en-

tão, nunca mais se conciliará com o mundo da representação. Deleu-

ze não nos mostra a imagem-tempo,ele nos designa um rosto que

alegoriza o que ela significa: o não-ajustamento, o desacordo dos dados sensíveis. Tudo acontece como se, quanto mais a arte se aproximasse de sua verdade, mais se tornasse alegoria de si mesma e mais a leitura se tornasse alegórica. Tudo acontece como se o próprio da arte fosse alegorizar a travessia 'em direção ao verdadeiro do sensível, em direção ao espiritual puro: a paisagem que vê, a paisagem antes do homem, aquilo que precisamente o homem não pode descrever. A partir daí, é possível situar o pensamento de Deleuze no destino da estética como figura do pensamento. É possível relacionar sua crítica da figuração e da organicidade ao que a estética quer dizer em si. O que significa "estética", no surgimento dessa noção, tal como se efetua entre o fim do século XVlll e o início do XIX? Antes de tudo, significa, negativamente, a ruína da poética. A poética era o modo de verdade que regia as obras no universo da representação. O universo da representação era governado pelo duplo mecanismo do princípio mimético que mencionamos: a obra produz uma semelhança. Mas também a própria obra é uma semelhança, na medida em que constitui um organismo, um logos, um "belo vivo". A recbne da obra prolonga a natureza, a pbysfs, o movimento que realiza a vida em organismo. Ela é uma produção normatizada por essa outra produção que é a pb)réis, potência comum de vida, de organismo e de obra. inversamente, a estética centra sua atenção não mais na obra, mas no afslbefo/z,

no que se sente. Daí o paradoxo que parece marcar originariamente a estética. Ao passo que o desabamento das normas da representação

abre por direito a realezada obra e da potênciada obra, a estética,

por conta de seu próprio nome, afunda a obra em um pensamento do sensível, privilegia o abeto, e um afeto que é o do receptor ou do espectador. Sabe-secomo Hegel resolve essa questão no início das l,ições sobre a esférica. Ele declara que a palavra é evidentementeimprópria, trazendo a marca de uma época que terminou: o tempo de Burke e de Hume, em que as obras eram explicadas a partir de uma psicologia empírica da sensação. Mas tendo a palavra "estética" entrado em uso, pouco importa sua origem, e ela pode então ser empregada sem problemas para designar a teoria da bela arte. Mas não se trata disso. Tal palavra não é um anacronismo ou uma impropriedade. Estética designa uma mudança de perspectiva: quando o pensamento da obra não remetemais a uma idéia das regras de sua produção, ela é subsumida sob outra coisa: a idéiade um sensível particular, a presença no sensível de uma potência que excede seu regi-

me normal, que é e não é do pensamento, que é do pensamentoque se tornou diferente de si mesmo: um produto que se iguala a um nãoproduto, um consciente que se iguala ao inconsciente. A estética faz da obra a manifestação pontual de uma potência de espírito contraditória. A teoria kantiana do gênio a define como uma potência que não pode dar conta daquilo que faz. O Sísfema do idem/esmo fz'a/zsce/zden-

fa/, de Schelling, fixa o paradigma do produto que torna equivalentes o consciente e o inconsciente. Hegel faz da obra a estação do espírito fora de si: nela o espírito está presente como animação da tela ou sorriso

do deus de pedra. A obra é um sensível separado das conexões habituais

do sensível,que vale daí em diante como manifestaçãodo espírito, mas do espírito na medida em que ele não conhece a si mesmo. A estética nasce como modo de pensamento quando a obra é subsumida sob a categoria de um sensível heterogêneo, a idéia de que há uma zona do sensívelque se separa das leis comuns do universo sensívele testemunha a presença de uma outra potência. É a essa outra potência -- a potência

daquilo que, diretamentesobre o sensível,sabe sem saber -- que se pode dar o nome de espírito ou, como Deleuze, de "espiritual". Não há determinação mais precisa que Ihe possa ser dada do que a seguinte: a idéia de uma zona do sensível qualificada pela ação de uma potência

heterogêneaque modifica o regimede tal zona, que faz com que o sensível seja mais do que o sensível, que é do pensamento, mas do pensamento em um regime singular: do pensamento diferente de si mesmo, do palcos que é/ocos, da consciência que se iguala ao inconsciente, do produto que se iguala ao não-produto. A estética é o pensa-

mento que submete a consideração das obras à idéia dessa potência heterogênea,potência do espírito como chama que igualmente ilumina ou queima. A partir daí, essa potência, no sensível,do pensamentoque não pensa pode ser concebida segundo dois esquemas que se alternam. O primeiro enfatiza a imanência do /egos no pafbos, do pensamento naquilo que não pensa. O pensamento se encarna, se deixa ler no sensível. É o modelo romântico do pensamento que vai da pedra e do deserto ao espírito, do pensamento já presente na própria textura das coisas, inscrito nas estrias do rochedo ou do marisco e que se eleva em direção a formas cada vez mais explícitas de manifestação. O segundo, inversamente, apreende o espírito nesse ponto de parada em que a imagem se petrifica e remete o espírito a seu deserto. Ele enfatiza a imanência do palcos ao /ocos, a imanência no pensamento daquilo que não pensa: a "coisa

em si" schopenhaueriana,

o sem-fundo,

o indi-

ferenciado ou o obscuro da vida pré-individual. Por mais que a estética hegeliana marque sua distância em relação à geologiaromântica do espírito, ela não deixa de ilustrar exemplarmente o primeiro movimento: nela a obra é a estação do espírito fora de si -- o espírito que falta a si mesmo na exterioridade e que, ao se faltar, cria o êxito da obra, desdea pirâmide que em vão busca contêlo até o poema que o leva ao limite de toda apresentação sensível, passando pela ache da arte grega, em que ele cria sua figura sensível ade-

quada. A estéticaé a história das formas da coincidência entre o espaço da representação artística e o espaço de uma apresentação do espírito a si mesmo no sensível. A morte da arte marca o momento em que o espírito não tem mais necessidade de apresentar a si mesmo formas exteriores da representação. Isso significa dizer que o espaço da representação não é mais um espaço de apresentação. O que ele se torna, então? Torna-se imagem de mundo, coxa platónica ou to/lce flauber-

tiana. A questão da modernidade estética, a de uma arte que vem após a morte da arte, se formula, então, nos seguintestermos: afirmar a potência da apresentação artística contra a doxczrepresentativa, a potência do espírito que se iguala a seu outro -- a natureza, o inconsciente, o mutismo -- nas condições de uma corrida com essas máquinas de dota, essas máquinas de imagens de mundo que fazem de Apoio,

já no tempo de Hõlderlin, o deus dos jornalistas; essas máquinas que se denominam jornal ou televisão. O programa estético da arte significará, então: inverter a direção de espírito que vai da arte à dox.z, fa-

zer da obra a reconquista do espiritual perdido nesse movimento, fazer do "espiritual" o inverso da potência clássica de encarnação e de individualização. O destino da obra se acha, então, vinculado à outra figura do "espiritual": a imanência no pensamentodaquilo que não pensa, o scm-fundo da vida in-diferenciada, não-individual, a poeira dos átomos ou dos grãos de areia; o pático* sob o lógico; o pático em seu ponto de repouso, de a-patia. E, portanto, sob forma de tarefa ou de combate que se apresenta o prometode igualar a potência da obra à de um sensível puro, de um sensível a-significante. O processo de des-figuração analisado por Deleuze na pintura de Bacon é idêntico, por exemplo, à limpeza operada por Flaubert, desfazendo, linha após linha, as conjunções gramaticais e as inferênciassemânticasque criam a consistênciahabitual de uma história, de um pensamento, de um sentimento. Essa limpeza tem uma finalidade precisa: igualar a potência da frase à de uma sensibilidade que não é mais a do homem da representação, que é a do contemplador

que se tornou o objeto de sua contemplação: espuma, seixo ou grão de areia. Essa limpeza substitui uma tolice (a sobre-significação de cará-

ter nulo da dota) por uma outra tolice: a a-significância do vazio, do infinito, a grande vaga indiferente que rola e agita os átomos. Do mesmo modo, Proust relaciona a potência da obra à experiência de um sensível subtraído a suas condições, a esse momento de esfacelamen-

to de todas as marcas em que dois mundos vêm acoplar-se. Mundo

do sensível puro, do sensível sentido pelas pedras, pelas árvores, pela paisagem ou pelo momento do dia. Conhece-se o ideal do livro sonhado pelo jovem Proust: o livro feito da substância de alguns instantes arrancados ao tempo, o livro feito de "gotas de luz", da substância de nossos

mais belos minutos.

O problema é que, com tal substância pática, não se escreve um livro. E o livro deve ser feito por construção de uma fábula analógica, de uma fábula construída para fazer sentir novamenteo mesmo abeto que o dessepuro sensível que talvez pense, mas que certamente não escreve. O livro flaubertiano é a construção intencional de uma natureza idêntica à natureza incriada que não provém de nenhuma intenção. O livro proustiano é a construção de uma intriga orgânica que

englobaos momentosepifânicos:uma fábula da descobertada ver* Em francês, palbigue, de pafbos. (N. da T.)

dade -- da verdade pensada segundo o modelo moderno da verdade, fixada de uma vez por todas por Hõlderlin, a verdade como erro que se tornou um erro. A obra moderna toma a figura de um objeto paradoxal. Ela é a inclusão de uma verdade estética. de uma verdade do sensível puro, do sensível heterogêneo em uma poética aristotélica: a intriga de saber e de fortuna que passa pela peripécia e pelo reconhecimento. O livro de Proust apresenta essa figura exemplar da inclusão de um tema schopenhaueriano -- o esfacelamento do mundo da representação -- em uma intriga aristotélico-hegeliana da verdade como devir do erro. A análise de Deleuze inscreve-se, portanto, no destino da estética

como modo de pensamento, no destino da obra moderna ligada a esse sensível puro, em excesso em relação aos esquemas da doxcz represen-

tativa. Ela se estabelecenessas mesmas zonas que a piedade isto é, a simpatia pela vida in-individual, vizinha da loucura, da perda de todo mundo. Deleuzetrata da obra moderna como obra contraditória em que o elementopático, o pensamento-árvoreou o pensamento-seixo, vem desfazer a ordem da doía, mas em que esse elemento pático é ele mesmo incluído, resgatado em uma organicidade e um logos de tipo novo. Ele denuncia esse compromisso -- ele tenta anulálo -- de reconstruir a obra moderna dc forma a que ela siga uma única lógica ou antilógica. Nesse aspecto, é exemplar seu corpo-a-corpo com a obra proustiana que Ihe faz dar a seu livro uma continuação e uma continuação da continuação. Como se fosse preciso, incessantemente, remeter Proust à pureza de um modelo antiorgânico. Ele nos diz: :Em Proust. seriam buscadas em vão as banalidades sobre a obra de arte como totalidade orgânica"5. Talvez elas fossem buscadas em vão,

mas certamente seriam encontradas. Mas Deleuze não se interessa pela insistenteorganicidade do esquema proustiano. Não se interessa pelo devir do erro, da reunião final dos lados e do equilíbrio dos arcos. Ele retorna a Proust uma segunda vez, como para destruir o que deixara subsistir, para construir o modelo do anui/ocos proustiano: a obra feita de pedaços reunidos, de caixas e de lados nãocomunicantes. Em suma, trata-se, para ele, de tornar a obra de Proust coerente,de tornar a obra moderna, a obra do tempo da estética,coerente com ela mesma. Daí esse combate com a obra, que se emble-

5 G. Deleuze, Prol/sf ef /es sfglzes,Paras, PUF, p. 138

matiza na representação da obra como combate. Deleuze perfaz, em suma, o destino da estética. Ele consuma a coerência dela. Permanece a questão: consumar o destino da estética, tornar coerente a obra moderna incoerente, não é destruir sua consistência, não é fazer dela uma simples estação no caminho de uma conversão, uma simples alegoria do destino da estética? E não seria esse o paradoxo de tal pensamento militante da imanência: o de reconduzir, incessantemente, a consistência dos blocos de perceptos e de abetosà tarefa interminável de configurar a imagem do pensamento?

Tradução de Ana Lúcia Oliveira

M.ICHAUX, DELEUZE% Raymond Bellour

A mais inquietante sugestão nasce do lugar singular ocupado por Michaux na filosofia de Deleuze, ou de Deleuze-Guattari. Isso irrompe,

de início, no livro consagrado por Deleuzea Foucault, no terceiro capítulo da parte "Topologia: pensarde outro modo": "As dobras ou o dentro do pensamento jsubjetivação)". O fato marcante é que, para qualificar em Foucault e através dele os conceitos de pensamento e de impensado, de dentro, de fora e de dobra, Deleuze utiliza, inicialmente

de modo implícito, um título de Michaux para sustentar sua proposição principal: "um espaço do de?zero,que será inteiramente co-presente

ao espaço do fora sobre a linha da dobra"l. Mas ele chega, sobretudo, a agenciar, em um único fluxo, três títulos de Michaux ("espaço

do dentro", "longínquo interior", "vida nas dobras"), quando, no final de seu percurso, procurando "contar a grande ficção de Foucault",

cujos termos distribuíra até então, repentinamenteele se concentra, de modo estranho e absoluto, em Michaux. Misturando referências a AÍ/leais e a Grandes érre z/es de /'esPrff, destaca "a linha de Michaux singularidade selvagem exprimindo, para além das relações de formas

e de forças ligadas ao saber e ao poder, o fervilhar do fora como "zona de subjetivação", bem acima da fissura que separa o visível do enunciável, luz de linguagem. Por que esse livro de filosofia, sobre um filósofo que deve tanto aos pintores e aos escritores que modelaram seu pensamento(assim como Raymond Rousselabrindo, em Foucault, o

* © Copytfgbf Edições Gallimard, 1998. Estas páginas foram extraídas da

introdução às obras completas de Henri Michaux, publicadas na Bíb/fofbêq e de

!a P/éladena primavera de 1998. Agradecemos às Edições Gallimard por terem autorizado sua reprodução. Elas constituemo cerne da seção "Philosophie?", na qual se interroga acerca do estatuto, ou da imagem,de um Michaux "filósofo", em uma perspectivaque visa a aprofundar a relação, já postuladapor Raymond Bellour e Claude Lefort, entre Michaux e Merleau-Ponty. (N. do E.)

l Foz/czzzl/f, Paris,Minuit, 1986,p. 126.

Tema alucinatório dos duplos"2), por que esselivro termina, assim, com um escritor-pintor, com a imagem de uma câmara central onde "nos tornamos senhores de nossa velocidade, relativamente senhores de nossas moléculas e de nossas singularidades"3? Após uma passagem por Leibniz em que Michaux se torna um dos heróis modernos da dobra e do Barroco4, uma resposta enigmática surge em O que éa filosofia {s .

Os autores resumem assim a matéria de um livro que tem por objeto qualificar, em suas respectivas diferenças, a filosofia, a ciência e a arte, sendo cada campo enfim concebido sem qualquer privilégio em relaçãoa outro, como exercício e produção do pensamento:"plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de referência ou coordenação da ciência; forma do conceito, força da sensação, função do conhecimento; conceitos e personagens conceituais, sensaçõese figuras estéticas, funções e observações parciais". Ora,

ocorre que Michaux é citado cinco vezes nesselivro: uma vez de modo esperado; quatro outras bem menos. Ele aparece logicamente quando, abordando as relações entre personagens conceituais e figuras es-

téticas, Deleuze e Guattari ressaltam de que forma "o plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a ponto de certas extensões de um serem ocupadas por entidades do outro"6. Daí a situação particular de certos escritores, erigindo assim novas imagensdo pensamento:

2 /dem, p. 120.

[-.] um espaço do fora, mas coexistindo a toda tinha do fora. O mais longínquo se torna interior, por uma conversão ao mais próximo: ízz/idíz/zasdobrízs. É a câmara central...". /dem, p. 130. Tomada inicialmente a Melville, a imagem da câmara central também pertence a Michaux(l.a z/fedons /esp/is: "é.o sangue

das lembranças, da abertura da alma, da frágil câmara central, lutando na estopa, é a água avermelhada da veia memória",

p. 1241. Ver também a passagem de

Poz#par/ersem que Deleuze atribui a Foucault uma proximidade e uma preocupação em relação a Michaux, totalmente fictícias, devido à projeção de um sobre o

outro que eleopera para seuspróprios fins (pp. 151-3).

4 Le PZl: l.efbnlz ef /e Bízroqile, Paria, Minuit, 1998, pp. 47 e 124. Essa passagem em que Deleuze observa em Michaux numerosas "reminiscências leibnizianas" é um momento-chave do capítulo "La perception dana les plis", abrindo lpp. 131-2) o "conjunto da teoria da dobra: 5 G. Deleuzee F. Guattari, Qu'esf-ce que /a pbl/osopble?, Paris, Minuit, 1991.

"Esses pensadores são filósofos 'pela metade', mas são

também bem mais que filósofos, embora não sejam sábios. Que força nessasobras com pés desequilibrados,Hõlderlin,

Kleist, Rimbaud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa,Ar-

taud, muitos romancistas inglesese americanos, de Melville a Lawrence ou Miller, nos quais o leitor descobre com admiração que escreveram o romance do espinosismo... Certamente. elesnão fazem uma síntesedc arte e de filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios híbridos,

que não apagam a diferença de natureza, nem a ultrapassam, mas, ao contrário, empenham todos os recursos de seu 'atletismo' para instalar-se nessa própria diferença, acroba-

tas esquartejados num malabarismo perpétuo."/

No entanto, Michaux, e apenas ele, é citado outras quatro vezes junto com filósofos. Inicialmente, já na primeira qualificação do plano de imanência: "de Epicuro a Espinosa (o prodigioso livro V...), de Espinosa a Michaux, o problema do pensamento é a velocidade infinita". Em seguida: corre-se em direção ao horizonte, sobre o plano de imanência; dele se retorna com os olhos vermelhos, mesmo sendo os olhos do espírito. Mesmo Descartes tem seu sonho. Pensar é seguir sempre uma linha de feiticeira. Por exemplo, o plano de imanência de Michaux, com seusmovimentose suasvelocidadesinfinitas, furiosos. Michaux é, em seguida, associado a Blanchot e a Foucault em uma nota que precisa a caracterização do plano, "a intimidade como fora" ou "longínquo interior". Referência relevante: uma sugestão como essa, incessante, do plano de imanência poderia ser "o gesto supremo da filosofia"; o que faz de Espinosa "o Cristo dos filósofos"8 Encontra-se de novo Michaux, por fim, quando se trata de mostrar -- a ciência, a arte e a filosofia relacionadas conjuntamente em jogo,

"do caos ao cérebro" -- que, no que concernea essaúltima, a "varia-

lgffur é precisamente um desses casos, personagem conceitual transpor to em um plano de composição, figura estéticatransportada em um plano de ima nência: seu nome próprio é um conjunção." Idem, p. 65. 7 Idem, ibid.

8 Essas três menções (pp. 38, 44 e 59) figuram na seção "Philosophie", do capítulo sobre o plano de iminência.

ção conceitual" é a forma particular de luta contra a variabilidade caótica, permitindo tocar "o mais rapfdamenfepossüe/ em objetos mentais determináveis como seres reais". Para acentuar o que mostra-

vam Espinosa ou Fichte, por que recorrer então à oposição apontada por Michaux entre "idéias correntes" e "idéias vitais"9? Sem dúvida para mostrar, nessa abertura final das mais delicadas, o quanto Mi-

chaux se encontra em posição de encarar o problema, de fazê-lo vibrar.

De que se trata de fato? De reafirmar e de relativizar, com tanta precisão quanto possível, as relações entre ciência, arte e filosofia. Haverá assim três tipos supostos de interferência entre as disciplinas, "entre planos que se juntam no cérebro". As primeiras são ditas extrínsecas, quando cada disciplina, inspirando-se nas dimensões internas de uma das outras, permanece em seu próprio plano e utiliza seus elementos próprios. Mqs um segundo tipo de interferência é intrínseco, quando conceitos e personagens conceituais parecem sair de um plano de imanência que a eles corresponderia para escorregar sobre um outro plano, entre as funções e os observadores parciais; e o mes-

mo vale para os outros casos.Tais deslizamentos,como o de Zaratustra na filosofiade Nietzscheou de lgitur na poesiade Mallarmé, são tão sutis que nos encontramos em planos complexos difíceis de se qualificar.

Tal é o nível delicado em que Michaux se encontra com outros escritores e pensadores, meio filósofos e bem mais que filósofos. Por fim, existem as interferências ilocalizáveis, que delineiam o obscuro ponto de desfecho desse livro. Pois acontece que cada disciplina entra, à sua maneira, em uma relação essencialcom um Não, no ponto em que seu próprio plano afronta o caos e onde os diversos planos, por isso, "não mais se distinguemem relaçãoao caos no qual o cérebro mergulha". Deleuze e Guattari escrevem então que a filosofia, a arte e a ciência poderiam partilhar "a mesmasombra, que seestende através de sua natureza.diferente e não cessa de acompanha-las" lO. O

destinoparticular e bastanteenigmáticoreservadoa Michaux ao longo de todo o livro dever-se-iaao fato de que, de maneira mais manifesta que outros -- e talvez apenas Michaux a tal ponto --, ele dá cor9 Idenz, p. 195. io Trata-se da última frase do livro, p. 206. Para as demais referências, ver

PP. 204-6.

po, voz e horizonte a essa sombra, projetando e reprojetandoo que foi a "filosofia" de P/ume até o "espaço das sombras"ll. Eis aquilo em que Michaux, nessemais fictício lugar de transição, tocou com uma fórmula insubstituível:"Saber, outro saber aqui, não saber por informações. Saber para se tornar musicista da Verdade"12 Como compreender essa posição única e quase inexprimível de Michaux no interior de uma filosofia em busca de uma transformação cuja via estaria, desse modo, sugerida? Há, assim, na obra de Deleuze, dois momentos essenciaisem que a filosofia, embora sempre reafirmada a partir de sua realidadeprópria, encontra-seremetidaa uma comparável oscilação entre interferências intrínsecas e ilocalizáveis. O primeiro momento é o prefácio de Diferença e repetição, em que o uso dos conceitos é, de saída, relacionado a "dramas", bem como a um exercício de "crueldade"; em que a relação entre saber e ignorância,cada qual passandoe repassandoao extremodo outro (em termos muito próximos aos do posfácio de P/ume13),funda a possibilidade da escrita, de modo mais íntimo do que sua suposta relação com o silêncio e a morte; em que, enfim, uma referência aos novos meios de expressão filosóficos inaugurados por Nietzsche anuncia um 'tempo em que não será de forma alguma possívelescrever um livro de filosofia como se faz há tanto tempo"14. O segundo momento é o último livro de Deleuze, Cr#lca e c/í'Mica,em que, como que indiferentemente, filósofos e escritores são apanhados em um único magma,

tornando-se criadores de línguas dentro da língua, todas elas porta-

is "L'espace aux ombres", in l;ace aax z/erroas,Paria, Gallimard, 1954. Um movimento como esse, de interferência entre arte e filosofia, também diz respeito, evidentemente, à ciência. Daí o interessedespertado em homens de ciência, como

por exemplo StéphaneLupasco lcf. Robert Bréchon, Mícbaax, Paria, Gallimard, 1959, pp. 217-20), pela obra de Michaux. Uma teserecentee notável,abrindo e recobrindo todo essecampo, foi defendidapor Anne-ElisabethHalpern: l,e /aborafoire da poêfe: Henri Jb icbaax ef /es sauoirs safe/zll#qzzes( 1996, publicada em

1999, por Éd. Sanofi-Synthelabo,Col. Les Empêcheurs de Penderen Rond). iz Face a x uerroas, p. ] 91.

i3 "Todo progresso, toda observação nova, todo pensamento, toda criação parece criar (com uma luzl uma zona de sombra./ Toda ciência cria uma nova ig-

norância." ip. 2201.

i4 DI/7érenceef r( élflíon, Pauis, PUF, 1968, pp. 3-4.

doras de visões e de audições não-lingüísticas, o que faz deles, através de suas palavras, coloristas e músicos. Esse movimento culmina em um derradeiro texto em que Deleuze, voltando pela última vez a Espinosa, subverte as distinções anteriormente estabelecidas entre arte

e filosofia, a ponto de fazer com que vibre, em uma "terceira Ética", através do "prodigioso livro V", uma reviravolta análoga àquela que

tornava necessárioaproximar Michaux de Espinosa, para qualificar melhor o plano de imanência e a velocidade do conceito próprios à pilosofia D

Seria falso objetar que deslizamentos como esses concernem mais a Deleuze do que a Michaux, e às incertezas da filosofia mais do que

às transformações da literatura e da poesia, um movimento único, o mesmo que já percorre o século XIX -- dos românticos de lena, de Schlegele Novalis a Kierkegaard e depois a Nietzsche--, torna-se a questão do século, que se segue na França, por exemplo, através de Breton, Artaud ou Bataille.Um movimentocomo essevincula-seà necessidade de uma confrontação direta e integral com o pensamento como estiloe como arte, violênciae buscado desconhecido.Confrontação que se tornou -- na França, pelo menos, em algumasgrandes obras, em Merlau-Ponty, Foucault, Deleuze, ainda que ao sabor de necessidadesclássicas de especificidade -- própria à filosofia, mesmo que pela força de uma relação obrigatória, e cada vez mais estreita, estabelecidacom as artes e a literatura; a tal ponto que a filosofia induz à imagem ativa de seu próprio deslocamento16.É a obsessão

Spinoza et les trois éthiques", CriffqKe ef c/ínfque, Paris, Minuit, 1993, especialmente pp. 183-7. Deleuze distingue, assim, nas três Éfícízs, os signos ou abetos, as noções ou conceitos e as essências ou perceptos. Somente esses últimos

são dotados de velocidade absoluta atribuída ao conceito em Qu'esí-ce q e Za pbí/osopbíe?, enquanto o conceito se torna afetado, nesse texto de Critique ef c/í?z/que,por uma velocidade relativa. Percepto é, por outro lado, um dos dois termos que servem (juntamente com abeto)para circunscrever, por oposição ao conceito, o plano de composição da arte no livro anterior. ió Mesmo que em termos que ainda supõem repartições estritas entre campos, essa relação foi ressaltada por André Pierre Colombat: "Le philosophie critique et ponte: Deleuze, Foucault et I'ouvre de Michaux", Frenc# Foram, XVI, 1991. A "velocidade-Michaux" também foi colocada como o modo mais seguro da leitura de Deleuze, por Pratice Loraux, em sua intervenção no colóquio consagrado a Deleuze, "lmmanence et vie", ocorrido em Paria de 25 a 27 de janeiro de 1997.

que impele Deleuze, por exemplo, a encontrar eM Proust as forças pelas quais este se opõe à filosofia, para extrair daí a inspiração para uma nova maneira de tratar a própria filosofiat7. Eis o sentido de umR certa identidade, postulada aqui, entre Michaux e Deleuze (Deleuze e Guattari). Não se trata, como se faz tão frequentemente, de preten-

der fundar a realidade de uma obra literária em conceitos filosóficos que permitiriam, em uma relação de exterioridade, designar-lhe uma verdade mais objetiva e que ela seria impotente para dizer. Trata-se menos ainda faltando para isso tanto a realidadecomo o desejo metafísico -- de uma dessas altivas conjunções pelas quais se celebram, através de encontro mítico entre Char e Heidegger, as núpcias da filosofia com a poesia, cada qual comungando com a outra as alturas de seu mistério18. De modo mais simples (a influência, se é que

existe,indo do escritor ao filósofo), reconhece-seatravés da proximidade dos termos afluxo e multiplicidade, por exemplo19, mas também dobra ou passagem,sombra ou velocidadeou linha), e mais ainda do pensamento, uma preocupação comum à poesia-literatura e à filosofia: entrar em uma cumplicidade, em uma confusão de bordas ainda desconhecidas-- até talvez se contaminar, a ponto de encontrar, nesse

i7 Eis a estreita correlação que liga Pro sf ef /esslgnes (a primeira edição, pela PUF, data de 19641 e "A imagem do pensamento", capítulo central de Dize renda e rePefíção. Sobre a relação entre Proust e Michaux -- que foi para esse último uma referência importante --, cf. Luc Fraisse, "Proust et Michaux: assonances

profondes", Rez/aed'Hísfoire Lftfércz/rede /a Fra/zce,n.' 2, 1995.

i8 Assim como no famoso "Entretien sous le marronier", sob cujos galhos Jean Beaufret percebe "dois Diferentes de mesma raça, ambos marcados por uma

fulgurantesolidão" j"René Char", L'arc, n' 22, verão de 1963, p. 7). Essa entrevista foi retomada no título dos estudos críticos das (EHZ/resde Char na edição da PJéfade, cuidadosamente organizada pelo próprio poeta. Ver também, no dossiê

René Char de À4czgazíne l,Ifférafre(n' 340, de fevereirode 1996), Patrick Née, "Le dialogueChar/Heidegger", e Jean Beaufret, "A lalisiêredeslavandes", apresentado por Frédéric de Towarnicki. i9 Esses dois termos centrais do Afztf-Édlpo e de MÍ/ P/afãs aparecem juntos no posfácio de P/ume: "0 verdadeiro e profundo fluxo pensante se faz, sem dúvida, sem pensamento co zsclezfe"; "Falsa simplicidade das verdades primeiras jem metafísica) seguidas por uma extrema multiplicidade, que se tratava de veicular"(pp.

218 e 220). Ou a "expartição" de Michaux setornandoa "desterritorialização" de Deleuze-Guattari.

movimento, não uma resposta ou uma centelha obscura, mas ao menos uma maneira de melhor se afinar com a univocidade do ser20,cujo alegre tormento lhes é comum.

Tradução de Mana Cristina Franco Ferraz

io Ver Di#érence ef réPéfiríon, pp 387-9. Essa univocidadeque se concilia com a "diferença individuante" ("Uma única e mesma voz para todo o múltiplo com suas mil vias, um só e mesmo oceano para todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes.") é evidenteem Michaux.

BARROCOLÜDIO DELEUZEANO Haroldo de Campos

Em meu breveartigode ] 955, "A obra de arte aberta"Í, formulei uma previsão programática em favor do que chamei, lá àquela

altura, "neobarroco" ou "barroco moderno". Transcrevoo trecho pertinente:

"Pierre Boulez, em conversa com Décio Pignatari, manifestou o seu desinteresse pela obra de arte 'perfeita', 'clássica', do 'tipo diamante', e enunciou a sua concepção da obra de ízrte ízberla, como um 'barroco moderno'

Talvez esse neobarroco, que poderá corresponder intrinsecamente às necessidades morfológico-culturais da expressão artística contemporânea, atemorize, por sua simples

evocação, os espíritos remansosos, que amam a fixidez das soluções convencionadas.

Mas esta não é uma razão 'cultural' para que nos recusemos à tripulação de Argos. Ê, antes, um estímulo no sentido oposto."z A invocação a Pierre Boulez, ao jovem Boulez -- "Boulez, le violent" --, então o líder polêmico da vanguarda musical francesa e da nova música, em termos mundiais (com o alemão K. Stockhausen, os italianos Bário e Nono e, numa outra extremidade do leque, o americano John Cage), tinha como pressuposto o interesseque os poetas concretos brasileiros,Augusto de Campos, Décio Pignatari e eu, nutríamos pelos rumos experimentais da música pós-serialista de linha weberniana, por um lado; por outro, nossa admiração comum pelo poema'constelar de Mallarmé, U/z coz/P de dés jpoema que acabei por

"trans-criar" em português). Quando, em 1954, o jovem Boulez este1 Diário de São Pazí/o,03/07/55; Correio da À4anbã, Rio de Janeiro, 28/04/56

2 Teoria da poesia co/zcre]a,São Pau]o, ]nvenção, ] 965, p. 31.

ve no Bntsil, como diretor musical da Companhia Teatral Jean-Louis Barrnult/MadeleineRenaud, com ele tivemos um encontro no ateliê do pintor Waldemar Cordeiro (líder do Grupo Ruptura, 1952, um dos pintoresconstrutivistas de São Paulo), durante o qual Augusto mostrou-lhe os originais, datilografados, em cores(cada cor definindo um timbre fonte-semântico), dos poemas da série poef.zme/zos (1 953), ins-

pirados no princípio da K/angÁarbe/zme/adie, de Webern; eu, de minha parte, Ihc perguntei: "Há algum músico francês contemporâneo empenhado em fazer uma composição sobre o Coam de dés?" (ao que Boulez me respondeu prontamente: "Moi!"); Décio, embarcando para uma permanência de dois anos na Europa, pouco tempo depois desse encontro paulistano, teve a oportunidade de conviver em Paris com o

autor de l,e À4arfe síznsMaífre (1 952-54)*, vendo-ocom freqüência e participando das atividades e das polêmicas públicas do grupo que promovia os concertosdo "Domaine Musical". Quanto aos desenvolvimentos dos temas abordados naquele primeiro encontro (que causou surpresa não pequena a Boulez, cujo primacial interesseestava, justamente,na conjunção radical Webern-Mallarmé), considere-se,por um lado, a Trolsiême Sonora (1957), para piano, com seus percursos aleatórios delineados em cores diversas; por outro, tenha-se em conta o fato de que, se Boulez não veio a escrever uma composição musical baseada na partitura verbo-ideográfica do CouP de dés, a verdade é que introjetou estruturas sintáticas mallarméanas na sua técnica de compor ("forma aberta" e "acaso controlado"), seja na própria sonata acima referida, seja no ciclo de cinco peças para instrumentos e voz soprano, denominado P/{ se/on P/i (compreendendo "Don", "Tombeau" e "Três improvisações sobre Mallarmé"). E aqui chego ao momento de articular esta introdução aparentementediversiva com o tema destesimpósio. P/i se/onP/i do soneto "Remémoration d'amis belges", a dobra mallarméana que obra e se desdobra da dobra -- é o emblema sob o qual Gilles Deleuze escreveuum de seuslivros mais belos c mais provocativos -- .4 dobra: Lelbnlz e o Barroco. Integrado na tradição fortemente atenta às inovações literárias da filosofia francesa contemporânea -- à semelhança de Foucault, que se ocupou de Roussel e de Mallarmé; de Derrida,

* Cantata de câmera do compositor Pierre Boulez a partir de poemas de René Char. {N. do E.)

que se debruçou sobre Mallarmé, Ponge, Joyce e Jabés; do próprio Sartre, que, antes deles, se deteve, com agudíssimosenso crítico, sobre Mallarmé, Ponge,Nathalie Sarraute, entre outros, Gilles Deleuze se dedicou, constantemente, à abordagem de questões de arte: cite-se, no campo da poesia, já em Lógica do senffdo (1969), a fundamental leitura de Lewis Carrol, com estágios em Mallarmé e Antonin Artaud; mencione-se o livro de 1964, Prousf e os slgzzos;o estudo sobre Ka/&a:

por z/m.zJiferat ra menor (com Guattari, 1975);as instigantesrefle-

xões sobre cinema -- Cinema ] =A imagem-mouimenlo (1983j; Ci/lema 2: A imagem-temPO11985), reflexõesque, entre nós, despertaram a atenção apaixonada de Julio Bressane, o mais culto e sofisticado de nossos diretores de vanguarda, autor desseesplêndido "concerto barroco" para o olho e luz que é Os Sermões do Padre Á/zfõ/zioV/eiríz jum filme-invenção no qual, segundo o cineasta carioca: "tudo se traduz, tudo se dobra e desdobra, chega à borda e desborda"3). Pois bem, em P/l, Gilles Dcleuze retoma, sob a égide de Leibniz, a dobra mallarméana -- e, não por acaso, foi o desdobrar dessadobra, na recepção da modernidade, que propiciou a reconsideração de Gângora (o rejeitado "Príncipe das Trevas" dos manuais conservadores

de literatura espanhola), segundo afirma Hans Robert Jauss, o propugnador da "Estética da recepção", em Lfferafzírgescblcbfe a/s Prouokation+ :

"So hat erst die dunke lyrik Mallarmés und seiner Schule den Boden für die Rückwendung zu der seit langem nicht mehr geachteten und darum vergessenen Barochdich-

tung und im besonderenfür die philogischeNeuinterpretation und 'Wiedcrgeburt' Gongoras bereit." *

Observe-se que Deleuze retoma o p/f mallarméano em paralelo à "monade aux multiples feuillets" de Leibniz, à manada concebida à 3 Folha de S. Pavio, 07{02J93.

4 Frankfurt am Main, Surkhamp, ]970, p. 193; 1' ed., Universitãtsverlag Konstanz, 1967. * "Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que

preparou o terreno para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para a reinterpretação filológica e o 'renascimento' de Gõn-

gora." Tradução brasileirade Sérvio Tellaroli, São Paulo, Ática, 1994. IN. do E.l

maneirade uma "capela barroca", cujo mármore interior se deixa percorrer de venaturas dedálicas. E essa retomada "barrocolúdica" não se dá de maneira neutra e

ornamental, como exercício virtuoso de erudição filosófico-literária, datado no tempo, mas como intervençãoatualíssimaque, revendo o passado com os olhos sincrónicos do presente, segundo a perspectiva da "história descontínua", objeto de "construção", proposta por Walter Benjamin ("Ê irrecuperável, arrisca-se a desaparecer, toda imagem do passado que não se deixe reconhecer como significativa pelo presente a que visa."I, ilumina o recorrido diacrónico com o fulmíneo instantâneo da "agoridade" Uezzfzeif), toma partido ( "crítica parcial", diria Baudelaire, a única que Ihe interessava; "quem não é capaz de tomar partido deve calar-se", completaria W. Benjamin, "A técnica do crítico em treze teses"). Traslada-se assim, empenhadamente,do Barroco como modo operatório histórico, para o Neobarroco, enquanto prática semiótica contemporânea que "cita" o passado, retraduzindo-o -- trans-configurando-o -- no contexto do presente, não por assimilação pura e simples de dois distintos entornos históricos, mas por metonímia, pelo reconhecimento de traços, de linhas de força contíguas e não-contíguas, por rastros dispersos, mas afins, que se definam reger pela infinitude da dobra dobrante, pelo P/l /lz#/zl: "Viendra le Néo-baroque, avec son déferlement de séries divergentes dana le même monde, son irruption d'incompossibilités sur la même scêne, là ou Sextas viole ef ne

viole pas Lucrêce, oü Cegar franchit et ne franchit pas le Rubicon, oü Fang tue, est tué et ne tue pas ni n'est tué. L'har-

monie traverse une crise à son tour, au profit d'un chromatisme élargi, d'une émancipation de la dissonance ou

d'accords non résolus, non rapportés à une tonalité. Le modêle musical est le plus apte à faire comprendre la montée de I'harmonie dans le Néo-Baroque: de la clâture harmonique à I'ouverture sur une polytonalité, ou, comme dit Boulez, une 'polyphonie de polyphonies'."5 5 G. Deleuze, Le P/í: l.efb?zlzef /e Baroque, Minuit, 1988, p. 112. ["Virá o Neobarroco com suas velas desfraldadas de séries divergentes no mesmo mundo,

com sua irrupção de incompossibilidadessobre a mesma cena, no ponto em que Sexto viola e não viola Lucrécio, em que Casar atravessa e não atravessa o Rubicão,

É mais do que uma simplescoincidênciao fato de que, nessa constelaçãoargumentativa deleuzeana,que passa pela praga dà plicatura mallarméana e se deixa reinvestir na "condição barroca" leibniziana (para Deleuze, "le pli est sans doute la notion la plus importante de Mallarmé, non seulementla notion, mais plutât I'opération, I'acte opératoire, qui en faia un grand ponte baroque" * ); que transita ainda pelo "caosmos" joyceano; é mais do que uma mera coincidência o fato de que, nesse enredo constelar, se engaste como fecho o nome

de Pierre Boulez, o músico que teorizou produtivamente a integração do aleatório no processo compositivoo. Um músico que, não por acaso, mas por afinidade "caósmica", avalizava com sua concepção da obra aberta, acessívela múltiplos percursos, "antidiamantina", minha proposta de 1965 no sentido de um "neobarroco" como prospecto de poesia, proposta apresentada num breve artigo que, precedendo de cerca de seis anos a Obra aberta de Umberto Eco, foi objeto do seguinte comentário, da parte do notável semioticista italiano: "E pois curioso que alguns anos antes de eu ter escrito Obra aberta, Haroldo

de Campos, num pequenoartigo, tivesseantecipadoos temasdesse livro de maneira assombrosa, como se ele houvesse escrito uma resenha do volume que eu não havia escrito ainda e que escreveria sem ter lido o seu artigo. Mas isto significa que certos problemas aparecem de modo imperioso em um dado momento histórico, deduzindose quase que automaticamente do estado das pesquisas em curso."' A contribuição filosófica de Deleuzeao debate do Barroco e do

Neobarroco foi enfocadaagudamentepor Walter Moser, destacado

em que Fang mata, é morto, e não mata nem é morto. A harmonia, por sua vez, atravessa uma crise, em proveito do cromatismo ampliado, da emancipaçãoda dissonância ou de acordes irresolutos, não alçados à tonalidade. O modelo musical é o mais apto para fazer com que se compreendam os montantes da harmonia no Neobarroco: do fechamento harmónico à abertura da politonalidade ou, como diz Bou[ez, uma 'po]ifonia de polifonia'." (N. do E.)]

* "A dobra é provavelmente a noção mais importante de Mallarmé; não só

a noção mas, antes, a operação, o ato operatório, que faz dele um grande poeta barroco."

(N. do E.)

6Ver meu ensaio de 1963, "A arte no horizonte do provável", no livro de mesmo título, São Paulo, Perspectiva, 1969. 7 Cf. Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, prefácio do autor à edição brasi-

leira, 1968.

teórico da literatura e comparatista de origem suíça, radicado no Canadá, professor da Universidade de Montreal8. Avaliando em paralelo os contributos de Christine Buci-Glucksmann, de amar Calabrese e de Guy Scarpetta,9 Moser sublinha nesse confronto, sobretudo em relação aos dois últimos teóricos mencionados, a radicalidade da proposta deleuzeana. Esta consistiria, para Moser, no gesto de "inventar o Barroco", ou mais exatamente, de inventar um "conceito operatório" capaz de estender o raio de incidência multidisciplinar e o âmbito historizável do Barroco, sem perda de sua especificidade. O conceito em questão seria justamente o de P/i, tal como está anunciado já nos primeiros parágrafos do livro de Deleuze: Le Baroque ne renvoie pas à une essence,mais plutât à une fonction opératoire, à un trait. ll ne cesse de paire des plis. ll n'invente pas la chose: il y a tous les plis venu d'Orient, les plis grecs, romains, romans, gothiques, classiques... Mais il courbe et recourbe les pais, les pousse à I'infini, pli sur pli, pli selon pli. Le trait du Baroque, c'est le pli qui va à I'infini." *

Nesta breve comunicação, não me é dado alongar-mesobre o assunto10.Reservo-me para um trabalho mais demorado, em curso de 8 Refiro-me ao ensaio "Baroque and Neo-Baroque: the emergenceof a postmodern canon", versão inédita, apresentada de forma abreviada em colóquio pro-

movido pela Universidadede Brasília e publicado sob o título "Versões do Barroco: moderno e pós-moderno", na revista Sociedadee Estado do departamentode sociologia da referida universidade, vol. Vlll, n' 1/2, jan.-dez. 1993.

9 Respectivamente,La rafson baroq e; de fraude/abreà Ben/amfn, Paris, Galilée {Débats), 1984;L'efà pzeob.zrroca,Bati, Laterza, 1987; L'fmp ralé, Pauis,

B. Grasset, 1985.

* "0 Barroco não remete a uma essência, mas antes a uma função operató-

ria, a um traço. Ele não pára de fazer dobras. Ele não inventa a coisa: há as do

bus vindas do Oriente, as dobras grego-romanas, românicas, góticas, clássicas... Mas ele dobra e redobra as pregas, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra

após dobra. O traço do Barroco é que a dobra vai ao infinito." (N. do E:)

io Gostaria de travar, por exemplo, uma cordial discussão com certas pas-

sagensdo último livro de Luiz Costa Lama,Vida e mfmesls,Rio de Janeiro, Edito-

ra 34, 1995, que tive a satisfação de prefaciar, sem deter-me neste ponto, lateral ao que então pretendia expor.

elaboração. Mas algo precisa ser dito, desde logo. Parece-me necessário assinalar a importância da intervenção deleuzeana no vivo do debate estético e crítico da arte e da literatura contemporânea. Na cena

cultural brasileira, especialmente, onde o Barroco foi alvo de um "sequestro" historiográfico ("seqüestro" no sentido conferido ao termo por Mário de Andrade, que Ihe deu equivalência às noções freudianas de reÓozílemenl,

Verdrãnguzzg,

"repressão",

" recalque";

Sub/ímfer

/zg,

'sublimação"), as idéias provocativas de Gilles Deleuze são um estímulo à reflexão e ao debate. Sobretudo quando está sendo repristinada entre nós, a propósito da questão do Barroco, a concepção de um sócio-

filólogo ultraconservador, o copioso Guido Morpugo-Tagliabue, autor, há mais de quarenta anos, de um longo ensaio sobre a retórica aristotélica e sua pro)eção no século barroco, ensaio que se caracteriza pela recarga erudita de citações greco-latinas e pela singular incompreensãodo fenómeno estéticodo Barroco; ensaio que situa seu autor no pólo oposto de um estudioso notável como Luciano Anceschi e de um alto poeta como Ungaretti, dois dos mais eminentes responsáveis pela revalorização da poesia barroca na Itália.il Ao reeditar em 1987 o seu prolixo ensaio sobre o Barroco, por ele caracterizado como

a "neurose social do Seiscentos", Tagliabue acrescentou-lheum outro trabalho, cbmpendiando uma crítica igualmenteincompreensiva ao "Neobarroco", cuja mera possibilidadede emergêncianegacom a mesma obstinação de quem se opusesse a refutar, por critérios de teo-

ria aeronáutica, o vâo do besouro no momento mesmo em que este Ihe circungira a testacontumaz. O "neoclássico" êmulo italiano do Estagirita tem inspirado em nosso meio um crítico de empostação retoricista, cujas concepções se distinguem pela estrita circunscrição do Barroco ao seu contexto da época (o contexto correspondente ao "público do tempo", privilegiado, por exemplo, na sociologia da literatura "reducionista" de Robert Escarpit), sem nenhuma abertura à possibilidade de novas leituras, de novos "cortes sincrónicos" ("concretizações", na terminologia do tcheco Vodiéka) operados sobre a sucessividade diacrónica, ao longo da "recepção estética" IJauss). Infiltrado de Po/IticaJ correcfness retrospectiva (ou seja, regida por critérios ideolí As limitações da visão do Barroco pela óptica mopurgo-tagliabuesca já foram apontadas, entre outros, pelo próprio Anceschi, pelos estudiosos Giuseppe

Conte, preste Macro, A. G. Berrio e mesmo por J. A. Maravall, em mais de um passo de sua análise de cultura do período.

1(3gicose culturais de hoje e, pois, "anacrónicos" na sua aplicação retrocessiva), esse crítico -- ou essa intervenção crítica -- se volta, no mesmo compasso de Tagliabue, contra o "Neobarroco" (manifestação literária que, em Nossa América, tem sido particularmente notável em Cuja, com Alejo Carpentier, Lezama Limo e Severo Sarduy -o segundo dos quais definiu apropriadamenteo Barroco em sua dimensão ibero-americana como "arte da contraconquista", num ensaio que fez época, Líz expresfózzamericana12). O criticismo acadêmico a que me refiro assume empostação sócio-retoricista c professa ambição estreitamente

historizante

(serão "considerações

exteriores",

segundo

juízo emprestado de Tagliabue, todas aquelas que não respondem a um conceito linear de história, de marcos temporais "objetivamente' definidos de uma vez por todas, embora o próprio discípulo brasileiro do neopreceptista italiano se apresse em declarar contraditoriamente

que sua análise, por delimitada historicamente que o seja, não é "mais z/erdadelrzzpor isso, nem sequer z/erdadefra, mas outra"; o que não o impede, no entanto, de tachar de "a-históricos" e incapazesda "mínima pretensão analítica" os discursos críticos que não correspondam ao seu ideal historicista de "linearidade" e clausura temporal, discursos que descarta como meras "considerações exteriores"...). Quanto ao "Neobarroco", no afã de impugnar as manifestações estéticasque explodem perturbadoramente diante de seu podlum professoral (na literatura, nas artes plásticas, no teatro, no cinema, no vídeo), parte, primeiro, para negar qualquer originalidadeao Barroco histórico ("Ao poeta barroco nada repugna mais que a inovação..."; origina/idade nos dois significados principais do termo, 'autoria' e novidade', é critério duplamente exterior à poesia barroca"); vai então ao extremo de recorrer maliciosamentea paralelos arbitrários, totalmente destituídos de critério de pertinência, para desqualificar ideologicamente

as manifestações

"neobarrocas".

Assim,

o neo-re-

toricista brasíiico justapõe a esseconceito (do qual se reclamam tantos autores de nossa América, e não apenas de Cuja) o de "neoliberalismo". A manobra argumentativaconsiste em apoiar no prefixo fzeo, industriosamente enfatizado, o símile pejorativo "neobarroco"/ "neoliberalismo". Ora, para um crítico de profissão de fé historicista e que se alardeia adversário do "anacronismo", nada mais fora de lugar

12Havana, Instituto Nacional de Cultura. 1957.

do que evocar, no paralelo falsamenteaproximativo, o conceito de "neoliberalismo", que não se remete pelo prefixo ao século do Barroco, mas, sim, ao Oitocentos, século do capitalismo montante, do liberalismo vitoriano e do Romantismo, como também das histórias literárias positivistas, de orientação teleológica, linear-evolutiva. O diversionismo argumentativo se explica não só pela animadversão a uma tendência estética, reconfigurada contemporaneamente em novos mol-

des e com novas motivações, mas no fato curial de que, no recessodos arraiais acadêmicos, é sempre mais cómodo dirigir os petardos disponíveis contra os "deletérios" escritores e artistas renovadores (que soem

perturbar a paz sepulcraldos seminárioscurriculares), do que tomar posição diante do real, da praxis efetiva,ou seja, no caso, diante dos neoliberais" de carne e osso, beatificados pela "boa-consciência" de gaacbe, vale dizer, daqueles políticos que hoje regem os destinos de nosso país no plano administrativo e económico, imprimindo-lhe rumos que nada têm a ver com uma subversiva "arte da contraconquista", mas, sim, e antes,com a obsequiosaanuência(dada por "conjuntural", no nível do discurso suasório) ao chamado "consenso de Washington Sobre essa prática retórica (e factual), o epígono brasileiro de Morpurgo-Tagliabue nada tem a dizer, bastando-lhe a satisfação íntima (e os eventuais louros acadêmicosl de ter "desmascarado" o ROVO...i'

i3Ver Jogo Adolfo Hansen, A safira e o e?zgelzbo: Gregário de JUdIase a

DÚbIado sécu/oXVll, São Paulo, Companhia das Letras, 1989; "Pós-moderno e Barroco", São Paulo, Cadernos do Mlesfrado, do Departamento de Letras da UERJ, 1992)

O CINEMA DO PENSAMENTO PAISAGEM, CIDADE E CYBERCIDADE André Parente

para Raymond e Christa Deleuze costuma agenciar múltiplas linhas, saltando entre elas, fazendo-as bifurcar ou convergir, mas semprese perguntando onde fazer passar a linha, pois toda a determinação de um problema depende

disso. Em "Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem"l, ele sobrepõe três linhas distintas para pensar a situação da arte na sociedade de controle: os conceitos imagem-moz/Imensoe imagem-tem-

PO, os três períodos do cinema descritos por Daney e as finalidades da arte segundo Alols Riegl: embelezar a natureza, espiritualizar a natureza e rivalizar com a naturezas

Na primeira linha, o cinema surge como enciclopédia do mundo: o que bá para z/erpor trás da imagem? O que há para ver é o mundo como janela aberta pelo cinema, que embeleza a natureza, mesmo se o "borrar"

Áaz parte da imagem. A montagem é a arte do cinema e

faz variar o esquema sensório-motor, integrando os centros de indeterminação e as linhas do universo numa totalidade orgânica, anima mundo. Mas esse desejo de embelezar o mundo foi capturado pelo tota-

litarismo de Hitler e de Hollywood, que transformaram a alma do mundo num cortejo de autómatos desalmados. A arte das massas logo se revelou como programação das massas, reprodução da vida e da l "Carta a SergeDaney: Otimismo, pessimismoe viagem" foi escrita como prefácio para o segundolivro de SergeDaney, Cine-/Durma/(Cabiersda Cinema, 1986). Daney foi um dos principais críticos do Cabfers d Cfmémaao longo dos anos 70 e 80. Durante seus cursos sobre cinema, entre 1982 e 1985, Deleuze não parava de chamar a atenção para a força de Z.a rampa (1983), que segundo ele estava, juntamente com l.'bomme ordlnafre d ci éma(1980), deJean-Louis Scheffer, entre os mais interessantes livros de cinema. 2 AloÍs Riegl é, juntamente com Fiedler, Wõlfflin e Hidelbrand, um dos au-

tores da Escola de Viena. Riegl criou um método muito original para fazerda história da arte uma história da cultura. Os conceitos de Kunsfwo//elz(vontade de arte) e de Vo/ksgelst(espírito de um povo) são exemplosdisso. Cf. Grammafre üfsforiq e des arfa p/asffqaes. Paria, Klincksieck, 1 978.

cultura, como espetáculo total que culminaria na guerra como a maior encenação, onde a cidade-cinema hollywoodiana vence a cidade-teatro

hitleriana.

Com a crise desta primeira linha, o cinema se torna pedagogia do mundos será que podemos sustentar com o olhar o qae de todo modo z/amos?E um cinema de videntes. Os personagens do cinema -- a montagem, a narração, os componentes da imagem -- vão se metamorfosear

e desencadear um processo de espiritualização do mundo no mais alto grau de intensidade. É todo um cinema da imagem-tempo que vai se desenvolver. Mas a enciclopédia do mundo e a pedagogia da imagem logo desmoronam em prol de uma profissionalização do olho: é a televisão, como técnicaimediatamentesocial, como consenso social-técnico, que emerge como o fim da arte das imagens-tempo. Uma terceira linha se delineia, a nova questão agora não é mais a de uma porta-janela apor trás da qual...), nem tampouco a de um quadro-plano jno qual...) mas a de uma mesa de informação sobre a gwa/as imagens deslizam indiferenciadas. Como se inserir nas imagens,

uma vez que o fundo das imagens (b07s-cbamp) já é uma outra imagem? Como passar entre as imagens, se o interstício das imagens se cristalizou numa imagem clichê que nos impede de ver as que vêm de fora Ideborsj? Como construir um plano de imanência, traçar uma linha de fuga, se o mundo passou a fazer cinema, nos impedindo de pensar um fora que não seja, desde sempre, capturado pelo clichê? Na "Carta a Serge Daney", Deleuze faz uma espécie de recapitulação da sua classificação das imagens e signos cinematográficos e lança alguns temas que já anunciam a idéia de uma sociedade de controle (termo inclusive utilizado pela primeira vez nesse momento). Gostaríamos de retomar a linha traçada por Deleuze e fazê-la birfurcar em direção a três pontos de singularidade que podem nos possibilitar pensar uma redistribuição das séries. Antes de mais nada, é preciso dizer que Deleuze tinha o gosto pela

história universal. E a retomada da periodização de Riegl -- para quem a história da arte se confunde com a história do pensamento -- é, para Deleuze, nessemomento, uma forma de enunciar o que estava apenas implícito em Cinemízí e 2, a saber, que este livro se apresentacomo uma história do pensamento através do cinema. A partir de Ànfi-ÉdlPO, Deleuze e Guattari criam diversas periodizações que se comple-

mentam, formando uma grande cartografia da subjetividade e de seus múltiplos universos: cognitivos, afetivos, sensíveis, discursivosJ PRIMEIRO PONTO: DA PAISAGEM Num texto de indizível beleza, intitulado "Da paisagem"4, Rilke

distingue três tipos de paisagem que são verdadeiras formas de subjetividade que poderiam se integrar perfeitamente a essa cartografia citada: na Antiguidade a paisagem-corpo tem como função embelezar a natureza; na Renascençaa paisagem-pafbosespiritualiza a nature-

za; na Modernidadea paisagem-spafiumaparececomo pura plasticidade indiferente à natureza. Na Antiguidade, a paisagemera uma cena vazia que não existia, que não tinha sentido algum enquanto o homem não aparecesse, animando-a com a ação serena ou trágica do seu corpo. A paisagem era vista pelo olhar previnido do homem que relaciona tudo com ele mesmo: "desconhecida era a paisagem que não fosse relacionada à ação

do homem sobre ela; desconhecida a montanha em que nenhum deus com rosto de homem morasse; desconhecido o promontório onde não se erguesse nenhuma estátua visível à distância. O homem era ainda novo demais, estava por demais encantado consigo mesmo para dirigir o seu olhar para outro lugar longe de seu corpo Na Renascença louvava-se, com a terra, o céu, mas isso era feito com tanta dedicação que a pintura se torna um hino à natureza, "pois

3 Citamos apenas duas das várias periodizações realizadas por Deleuze e Guattari. Deleuzedistinguiu, a partir da obra de Foucault, três regimessociais-sociedades de soberania, sociedades disciplinares e sociedadesde controle --, cada um dessesregimes apresenta uma formação subjetiva. Guattari fez uma classificação das diversas eras dos equipamentos coletivos de subjetivação: era da cristandade europeia, era da desterritorialização capitalista dos saberes e das técnicas e era da informatização planetária. Cf. G. Deleuze, Foacan/f, Paris, Minuit, 1986;

A sociedadede controle", in Conversações,Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992; F.

Guattari, "A produção de subjetividade", in André Parente (org.), Imagem-À4águina, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993. 4 Cf. Rainer Mana Rilke, "Von der Landschaft", in Samflicbe W'erre, Funfter

Band, Frankfurt am Main, Insel-Verlag, 1965, pp. 516-22. Trata-se de um texto póstumo. Provavelmente é uma das versões do prefácio do ensaio escrito por Rilke em 1902 sobre os pintores de Worpswede -- Fritz Mackensen, Otto Modersohn,

Fritz Overbeck, Hans Am Ende e Heinrich Vogeler --, onde eleviveu entre 1900 e 1902, tendo se ligado profundamente à escultora Clara Whesthoff.

a piedade profunda é como a chuva: sempreretorna à terra, da qual proveio, como bênção que faz florir os campos". Pouco a pouco, a paisagem se torna arte "como pretexto para a expressão de um senti-

mento humano, parábola de uma alegria, de uma piedade e de uma profundidade humana quase indizível". Mais tarde, e de forma imperceptível,o pafbos se dissipa e se retira, e a paisagem vai ganhando autonomia. O homem começa a sentir a paisagem como uma coisa distante, diferente dele, como uma realidade de que não toma parte e que está aí, radicalmente fora, uma realidade que não tem sentidos para nos perceber, realidade indiferente.

SÓentão o homem pede compreendê-la. "E mais tarde, quando o homem entrou nesse ambiente como pastor, camponês, ou simplesmente figura no fundo do quadro, ele havia perdido toda presunção e viaje que ele não queria ser nada além de uma coisa, colocado entre as coisas como uma coisa.

A belezado texto de Rilke provém do fato de que eletem êxito em descrever a história da paisagem como uma profunda cartografia da subjetividade, seguindo o mesmo movimento utilizado por Deleuze em Ci/gema ] e 2. É assim que o interesse da paisagem se desloca

progressivamente. De acessório, mais ou menos comandado pela ação, ela se torna jardim das delícias, portadora de um sentimento indizível. Pouco a pouco a paisagemse torna o prazer de olhos distraídos, em seguida a impressão e a sensação a carregam: de uma ímagempercePção, passamos a uma imagem-aÁefoe daí a um puro percepfo. Para Rilke, a paisagempura é a única coisa capaz de revelar a natureza humana na qual o homem se instala: trata-se de percePfos puros, ou de paisagens não-humanas da natureza. SEGUNOO PONTO: AI,PH,4V/LLE, A CAPITAL, OA DOR

A/praz,í/le é o primeiro filme de Godard a combater o mundo da informação. Trata-se de um filme serial, virtual, que se atualiza sob três

formas distintas e nos permite recolocar a tríade deleuzeanacitada sobre uma Guita forma: cidade/corpo, cidade/natureza, cidade/cérebro. A cada série ou linha do filmecorresponde uma figura geométrica emblemática: a linha, o círculo e a banda de Moebius. Essas figuras se repetem ao longo do filme sob a forma de sinais e grafismos da cida-

de: flechas, círculos, semi-círculos, a letra alpha, o símbolo do infinito e o número oito. É todo o filme, em sua montagem, em sua narrativa, em seus movimentos de câmera, em suas vozes, em seus gêneros,

que se confunde com as funções geométricas da linearidade, da circu-

laridade e a linha partida e redobrada ao infinito da banda de Moebius. O filme comporta três movimentos de comera. Os longos frczue//i/zgs,as panorâmicas circulares e os movimentosbrownianos. Os primeiros são funcionais e motivados pelo espaço, enquanto os segundos são puramente formais. Existe ainda um terceiro tipo, em que tanto a câmera como os personagens fazem percursos aleatórios e independentesuns dos outros, sobretudo no final do filme, quando a cidade se desgovernae produz uma verdadeira coreografia browniana. As vozes do filme formam uma relação triádica complexa: a de Lemmy Caution preencheo papelde narrador clássico, idênticaà série televisiva à qual o filme pertence, e constitui uma narrativa linear.

A voz feminina de Natacha, assume o papel de narrador na seqijência em que ela recita os versos de Paul Éluard5, interrompendo a seqüencialidade narrativa, e criando uma circularidade literal entre o que é dito e o que é mostrado. A voz de Alpha 60 é múltipla. Como Proteu, Alpha é puro simulacro: elese mostra se escondendo,e se escondese mostrando. Cada aparição sua é uma possibilidade de resposta local e uma impossibilidade de resposta global. Linha partida, fractal, da narrativa de Alpha. Proteu é água, pantera, fogo. Mas quem é Proteu, quando ele não é mais rio, e ainda não é tigre ou fogo? No final de A/pbaul/Je, o impiedosocomputador Alpha 60 cita, com sua voz rouca, uma frase de Borges, que poderia ser um começo de resposta: "o tempo é a substância mesma da qual sou feito. O tempo é o rio que me carrega, mas eu sou o rio: é o tigre que me rasga, mas eu sou o tigre: é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo"ó

5 Sobre o sistema de citação de Alpbat/f//e,e em particular as citações da poesia de Paul Éluard, ver a belíssima tese de Mariana Otero, "Valeurs de la poésie dana A/praz/i//e" de Jean-Luc Godard, dissertação de maífrise orientada por Marie-

Claire Ropars Wuileumier, Universidade de Paris-Vl11,1985. 6 Jorge Luis Borges, "Nueva refutaüión del tiempo", Obras como/elas (192372), Buenos Aires, Emecé, 1974. Lembramos que em A/pbapiZle, Godard faz uma série de citações tiradas deste texto de Borges, entre elas a famosa frase de Schopenhauer, que afirma que só o presente existe: Nadie ba Fluido en e/pesado, nadfe viverá en e! futuro: el presente es la forma de toda vida... Sobre o tempo como multiplicidade de aparência e o mito de Proteu, ver Michel Serras, Genàse, Paria,

Grasset, 1982, pp. 33-6.

A voz de Alpha é pura virtualidade e não se confunde com suas múltiplas atualizações: voz de motorista de táxi, voz de conferencista, voz de recepcionista, voz de máquina. Quando fala, ele não é nem um, nem outro; voz que está dentro somenteporque está fora, à distância sem distância, porque não pode se encarnar: não pode se fixar num substantivo de majestade. Ela pode tomar emprestado a voz de um personagemqualquer, ou mesmo criar a função híbrida do mediador -- como quando ela interroga Lemmy Caution --, ela que arruína toda mediação, ela que é sempre a diferença-indiferençaque destrói o caráter pessoal de toda voz: puro interstício que impede que o filme se constitua enquanto totalidade7 O próprio título do filme é tríptico. O primeiro é .4/pbat/f//e.O segundo, seu subtítulo: Uma at'enfada de l,emmy Caafíon. Enfim, o terceiro remetea Alphaville como nome de cidade: CáFIla/ da dor, livro de Eluard tantas vezes citado, e que também aparece no filme.

.4/praz/i//eé um policial de série B -- mais uma aventura de Lemmy Caution, série de televisão interpretada por Eddie Constantine cujos ingredientes ele parodia: perseguições, universo noturno, peso da fatalidade, amor à primeira vista entre o detetive-espiãoe a mulher que poderia ser seu pior inimigo. 41pbaul//eé um filme mítico, que espiritualiza o mundo e a arte. Se por um lado ele remetea um tempo histórico, em que o fascismo disciplinar hitleriano se mistura aos modernos sistemasde controle da cidade-cérebro, por outro lado ele remetea um tempo imemorial, nesse sentido cm que os fragmentosdo livro de Éluard, Á capa/a/dzzdor, emergem aqui e ali como de um tempo que nunca foi presente. No momento mesmo em que o amor é desnudado, cm que as palavras se lideram da imagem e a memória do passado, o filme nos profeta num tempomítico, porque fonte do mito, da poesia e do olhar: é como Orfeu que Lemmy Caution rapta Natacha da noite de A/pbaui//e8.

Á/pbau/l/e é também uma ficção científica na qual o homem e a sociedadesão rivalizados pela alta tecnologia: os habitantes de A/-

7 Trata-se aqui de uma paráfrase do texto em que Blanchot define oque ele chama o "il y a" da narrativa neutra. Maurice Blanchot, "La voix narrative lle 'il',

le neutrej", l,'enfrelfen in#/zl,Paris, Gallimard, 1969, pp. 564-6.

8Cf. Made-Claire Ropars-Wuilleumier, "La forme et le fond ou lesavatars du récit", ÉfKdes CI/zémarograpblqaes,n' 50/51, 1967.

praz,llle são autómatos cujos gestos e pensamentos são controlados à distância pelo cérebro eletrânico, Alpha 60. TERCEIRO PONTO: BERLIN CYBER CITA Os sistemas de realidade virtual são dispositivos de visualização de imagens de síntese que traduzem tudo o que o espectador faz, sente e pensa em motricidade. São ambientes construtivos de ação, que nasceram visando o aprimoramento do desempenho da ação militar. A teleologia da investigação dos sistemas de interface interativas visa complexificar e agilizar os esquemas sensório-motores e aumentar o grau de ilusão de realidade das interfaces. Para o usuário da realidade virtual, perceber é agir virtualmente sobre algo. O programa de realidade virtual de Monika Fleischmann, Ber/in caber cify9, desloca o uso dominante dos sistemas de realidade virtual e potencializa a imagem-cérebro-cidade. Trata-se de usar a realidade

virtual para interferir no processo de representação do espaço urbano. Ela parte da constatação que o muro de Berlim caiu, mas ainda persiste como imagem virtual mental petrificada. Berlln caber cfO faz coexistir

duas imagensde Berlim: a atual, presente, sem muro, e a Berlim virtual, petrificada na memória. A idéia é a de que a realidade virtual se dê como

abertura nas imagens petrificadas, que impedem as pessoas de verem as que provêm de fora. Tudo se passa como uma paramnésia invertida:

o virtual como /amais z/a.Na paramnésia, o a4a z/nnão é um passado real que retorna; o passado é um puro virtual que a memória introduz em tempo real e que se torna indiscernível do presente atual da percepção.

O que o espectador sente ao se liberar de uma imagem real petrifi-

cada o faz viver um evento em imagem: "Um evento em imagem", diz Blanchot, "não é ter desse evento uma imagem, nem tampouco atribuir-lhe a gratuidade do imaginário. O evento, neste caso, tem verdadeiramentelugar, e no entanto, terá lugar verdadeiramente? O que acontece apodera-se de nós, como nos empolgaria a imagem, ou seja, nos despoja, dele e de nós, mantém-nos Fora, faz desse exterior uma presençaem que o 'Eu' não 'se' reconhece."iu 9 Em um texto inédito intitulado "Cibercidade" analisamos algumas instalações e projetos multimídia

L'aulobus, Legib/e cily, Cizy pro/ecl, BrasÀ41ffe e

Visoranza, entre outros -- que produzem imagens da cidade com a utilização das novas mídia. io Maurice Blanchot, "As duas versões do imaginário", O espaço Jilerárlo,

Rio de Janeiro, Rocco, 1987.

O VIRTUAL COMO LAMA/S VU

A paramnésia é um sintoma interessante que nos ajuda a entender essa situação, na medida em que nos permite compreender o virtual como categoria estética e técnica ao mesmo tempo. Por exemplo, em Virilio e Baudrillard, as tecnologias do virtual se impõem como o

último rival da natureza: estética da desaparição que substitui o real; estética do hiper-real que despotencializa o real; buraco negro que aniquila o referente... A velocidade da eletro-ótica,sua instantaneidade e ubiqiiidade, introduz um desdobramento do real que equivale a um estado de paramnésia: ao real anual se acrescenta um real virtual. um real em espelho que vem substituí-lo em tempo real. Aqui a paramnésia

é como um protótipo de visão artificial em tempo real, caverna de Platão eletrificadall. É como se a experiência do real fosse capaz de ameaçar a experiência do possível, é como se o mundo pudesse ser anestesiado pelo efeito de sua reprodutibilidade técnica. Por outro lado, é como se a paramnésia, como deficiência psicocerebral, disfunção das coordenadas do cérebro, fizesse intervir uma indiscernibilidade no circuito de linearidade Ideslize metonímico) e de circularidade (deslize metafórico), criando circuitos rizomáticos que vão alterar a linguagem e o pensamento, o corpo e a tecnologia, e positivar as novas funções emergentes.Os agramaticalismos (entre eles o discurso indireto livrej12 vão produzir uma gagueira no pensamento, que se torna ilógico, alucinatório, porque se faz pensamento de um outro; o corpo perde a ancoragem do sensório-motore cria posturas e atitudes que vão exprimir um novo teatro do pensamento; a tecnologia é deslocada de suas coordenadas de controle, a partir de certas disfunções, e vai interagir com novos circuitos noéticos e estéticos. Enfim, é aí que a arte moderna encontra uma certa idiotia do real: como

extrair das deficiências do cérebro, da linguagem, do corpo e da tecnologia a possibilidade de traçar novos circuitos de pensamento? ii Sobre a idéia do virtual como uma caverna eletrificada,ver "A imagem virtual, auto-referente", Image/zs,n' 3, Campinas, Unicamp, 1994. Nesse texto. tentamosfazer uma espéciede genealogiado virtual e mostrar que existem pelo menos três diferentes concepções do virtual.

lz Em Crlflq e ef c/llzfque,Deleuze leva até as últimas consequências a ideia de que todo grande artista e toda grande obra são feitos em uma espécie de língua estrangeira, uma nova língua, cheia de agramaticalidades, gagueiras e disfunções, capazes de criar novas conexões cerebrais e novos agenciamentos coletivos

É preciso lembrar que o virtual é uma categoria estética que se apresenta sempre como recriação de um real recalcado, de um real confundido com suas representaçõesdominantes, independenteda técnica ou da tecnologia. Os grandes teóricos do cinema contemporâneo e das novas tecnologias,ao mesmo tempo precursorese discípulos de Deleuze, trazem à tona as disfunções das imagens emergentes: SergeDaney, com a idéia de maneirismoscínemalográ/!cos,convulsões provocadas pelo encontro cinema/imagem eletrânica; Raymond

Bellour, com à idéia de entre-imagens, hibridização das técnicas rompendo as fronteiras do analogizável; Pascal Bonitzer, com os desefzqz4a-

dramefzfos, disfunções que fazem o cinema encontrar a pintura perdi-

da; PhilippeDubois, com a /macemtremida, movimento de hibridização entre fotografia e cinema. Cada um a seu modo descobre, por trás das alianças, que o cinema estabelececom as novas imagensum novo elemento que emerge das disfunções do cérebro: um o/bo infermináz,e/(Jacques Aumont), uma c/ar.zbóla do inPfzffo rNoêl Burchl que podem liberar o pensamento, com o risco de o sistema de controle fazer

dessenovo elementoa sua clínica sócio-técnicaij Deleuzenão pára de recriar uma estéticado cérebro recorrendo ao que em Kierkgaard e Nietzscheabala a moralidade da linguagem, em Leibniz e Bergson supera a generalidade do conceito, em Foucault e Blanchot dissolve o sujeito do pensamento. Nessa estética, o virtual não se confunde com o que, no pensamento, funda a linguagem e suas cadeias significantes, o conceito e suas regras de significação, o sujeito e seus jogos de poder, a imagem e seus circuitos cerebrais dominan-

tes. Para nós, tratava-se de mostrar, através de um texto de Rilke sobre a história da paisagem, um filme serial de Godard sobre a cidade da informação, e um programa de realidade virtual sobre Berlim, que o importante é detectar forças de resistênciaque infletem o poder. Para nós o virtual é uma abertura que nos permite exprimir esse combate, essa luta do pensamento e da linguagem contra o que, no pensamento e na linguagem, é ao mesmo tempo poder e servidão.

í3 Serge Daney,

Dez/anf /a reco descende des saca à mala, Paria, Aléas,

1991

Raymond Bellour, Entre-fmages, Paris, La Différence, 1990; Pascal Bonitzer, Décadrages, Paras, Éditions de L'Étoile, 1987; Jacques Aumont, L'oe// fnfe mflzab/e, Paria

Librairie Séguier, 1989; Noêl Burch, l.a / carne de /'iK/inf, Paria, Nathan, 1991

CINEMA DELEUZE Julgo Bressane

As conchas são os ossos do oceano, disperso esqueleto, desvago", escreveGuimarães Rosa em "Aquário", estamos em maio de 1954. é minha travessia na água-viva,

sorvo e inflamo Deleuzecomo flor colhida num sonho, Jerõnimo lutador no deserto, argonauta do [rans e observador do des

lo temívelprefixo que transtorna o radical!), passageiro clandestino do fora-do-lugar.

Espinosao Barroco NietzscheCarroll Proust Kafka Bergson

Artaud Godard:

busca da inspiração como outros se obstinam em receber o raio.

Tudo o que pode ser entendido é plebeu", arriscou um letrado com escárnio... Além do escárnio, há a idéia de que o que se propõe ao entendimento é dominado pelo sinal-signo, gema no sentido da sepultura, do finito, do passado, perdido, esgotado de um corpo que cai, Verffgo... Compreender com Gilles Deleuze significa desentender-se. Pelo corpo que ele traça, o desenho de seu pensamento escapa à vala comum dos sistemas,

transpassa com sua visão de inseto sensível todas as ficções, todas as facções, simultaneamente. Vasta rede no interior da qual circula a eletricidade dos sentidos. Homem-mosca ou aranha sagrada, semelhante sem semelhante.

A cena barroquizante de sua escrita contrátil, tátil transmuta todos os ares

para vir devorar o sonho da crisálida e ser assim por rapto o olho-idéia móbile que se movimenta em contraponto

em diferentes linhas de fuga e de ataque, instantaneamente.

Deleuze, filósofo-criador, criador e filósofo. fez do cinema um meio de investir o sentido da superfície contrariando a profundidade clássica da filosofia. Cineasta radical, ele é o homem dos olhos de raio X do cinema dos circuitos conexões disfunções agenciamentos em curto-circuitos cerebrais.

Cinema-crise, de epilepsia rigorosamente controlada. Sangue de um poeta, de Michaux ou de Ghérasim Luca...

Um pensamento, uma mirada que atualiza o cinema, localiza sua complexidade em seus murmúrios metafísicos.

Como liberar a imagem de todos os seus clichês? Q«e o cinemaent« em relação«inda com out«s fo.ças. Que ele se abra para as revelaçõespoderosas e diretas da Imagem-tempo (crono-signos), da Imagem !egíuel (tecto-signos) e da Imagem-pensamento (noo-signos}.

Deleuze sente que o cinema é um organismo intelectual quase demasiadamentesensívelque faz fronteira com todas as artes, todas as ciencias,

e com a própria vida. Nõmade, tudo o transpassa. Corpo-máquina, conecta-secom todo o universo. Cinemancia, expõe-se,imprime-sediretamenteno devir. Luz-Enquadramento: um arrasta o outro num fluxo circular que deixa no fotograma granulado um sinal, uma nódoa: mancha-pensamento de um cinema que se insurge e surge como um cometa em coma. O que diz Deleuze da luz (sim, porque o que há antes de tudo é a luz -- herança de outra fronteira: a pintura. A luz, sua compreensão e sua apreensão. Sua primazia.): tudo existepara o movimento, até a luz. Há no cinema um luminismo onde a luz vale por si própria. Mas )ustamente o que ela é para si própria é movimento, puro movimento de extensão que se realiza no cinza.

O célebre cinza luminoso da escola francesa. Duas luzes qt4ese alternam: a solar e a lunar. Cinema-Deleuze. Pois Deleuze fez filmes.

Um delescontém todos os filmes de Losey, sem se superpor a

nenhum deles.

São vários foPof de Losey, reinventados, remontados em outro circuito. Uma mulher nua desce uma escada... Pântano de pulsões e de fragmentos convergentes, eis a imagem de uma alta falésia plana, pot;Dada de grandes pássaros, de helicópteros, de esculturas inquietantes, enquanto em baixo jaz uma pequena cidade uitoTiana.

Anatomia de um crime, plano a plano: a) através de uma alta falésia plana: imagem recorrente, riocorrente, em muitos filmes de Losey, como zoom/, Modesly B/alga; bl povoada de grandes pássaros: é o caso de Doam!, Cerfmõnia

secretas

cl de helicópteros: Figures in czl,andscape (os helicópteros são grandes pássaros e esculturas inquietantes); Tbe Damzzed (a escultura inquietante e o helicóptero surgem no mesmo enquadramento); d) de esculturas inquietantes:é lugar comum em Tbe Damned, Eua, Blind Date, Trotsky; el enquanto em baixo jaz uma pequena cidade vitoriana: certa-

menteTbe Go-Befwee , e ainda 7'üeGipsy and lbe Ge/zf/íman.

Mas o "jaz uma pequenacidade" é quase todo o cinemade Joseph Losey: The Boy with Green Hair, TuleLawless, The Big Nigbt, The S/eepi/zgTlger, Tbe Criminíz/: mundo das origens, fim do mundo, usura,

degradação, besta humana. E nessedomínio em que a Imagem-abetoe a Imagem-açãonão podem representar surge a Imagem-pulsão,

ela rasga, desarticula o próprio tempo... É uma desmontagem-remontagem da mancha Losey. Por escolha e mistura de verdadeiros foPol visuais,

expressãode um movimentodo espírito transformado em

imagem.

É um cinema inatual, novo. Iene pertenceà tradição do novo, que elecontra-efetua.) Cinema do cinema. Ele fez outros filmes: com Dreyer, Bresson, Hitchcock ( "a câmera

desvelada": o enquadramento, o movimento de câmera que manifestam relações mentais. Não é câmera-olho, mas olho-espírito, cinemavidência onde a descrição substitui o obtetol, com Orson Welles, sobretudo. Ele foi o primeiro cineasta filósofo. L a primeira vez. Porque os filósofos não se ocuparam do cinema, mesmo quando o freqiientavam, por um temor de precedência: pois a filosofia estava por si só ocupada numa tarefa análoga à do cinema. Pâr movimento no pensamento, como o cinema o põe na imagem.

Se há toxicófago e taxicófago em Gilles Deleuze, ele o deve ao cinema. Durante mais de quarenta anos, ele viu nos filmes, filmes que ninguem viu. Pensou cinema quando este foi desprezado por intelectuais e acadêmicos. Com ele, o signo cinematográfico contaminou a filosofia. SÓ wma Honrada de a fe pode nos sd/ucz7 -- escreve, sentencioso, o filósofo da imanência. Clhamado selvagem a duas ou três coisas de um deserto vermelho.

SOBRE OS AUTORES

RENA SCHÉRER

Filósofo, professor emérito da Universidade de Paris VIII. Autor de obras sobre comunicação, fenomenologia, infância e sobre Charles

Fourier. Ultimas publicações: Pari snr /'impossib/e, Paria, PUF, 1989;

Zeus bospifa/le7-, Paras,Armand Colin, 1993; Uropiesnomades,Paris, Séguier, 1998; Regatas sur De/auge, Paris Kimé, 1998. ARNAUD VILLANI Professor de filosofia no Liceu Massena de Nice. Publicou diversos

artigos de filosofia em revistas, além de poemas e traduções de poesia. Autor de Ka/&a: l,'ouz/e7'furede /'exista/zt,Paris, Belin, 1984; e de um ensaio sobre Gilles Deleuze: La guêpe ef /'orcbfdée, Paris, Belin, 1999. Colaborou em: Nozzz/e//es /ecfz/resde Nielzscbe, Lausanne, L'Age d'Homme, 1985; Le Cemeau, Grenoble, Jérâme Millon, 1989; HÓ/derIf#, Paris, Cahier de I'Herne, 1989; Procês ef réa/ifé, de A. N. Whitehead, tradução, Paris, Gallimard, 1995.

LUIZ B. L. ORLANDI Filósofo e professor da Universidade de Campinas. É autor de: A uoz do intervala\ e de Falares de malquerença= O fio da metamorfose (no prelo), uma coletânea de ensaios escritos ao longo de quinze anos sobre a obra de Gilles Deleuze. Traduziu para o português Á dobra: l,eib/zlze o Barroco, Campinas, Papirus, 1991, e, com Roberto Machado, Dfáe7'onçae rePeffção, Rio de Janeiro, Graal, 1988.

JosÉ Gil

Professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa e corres pondente do Colégio Internacional de Filosofia. Publicou, entre ou arostítulos: Á froPO/orla de//eÓorze,Milão, Einaudi, 1983; Mélam07.

pbosesd# coros, Paris, La Différence, 1985; Ferzza/zdoPessoa, ozzLa méfbapbysfq

e des sensafio/zs, Paris, La Différence, 1988; Mofzsf2'0s,

Lisboa, Quatzal, 1994; Á imagem/zuae as peq e/zaspercepções,Lisboa, Relógio d'Água, 1996. PETER PÃL PELBART

Professor de filosofia na PUC de São Paulo; trabalha como terapeuta Junto a psicóticos em um hospital-dia. Publicou: Da c/auswra do cora ao cora da c/ausurcz,São Paulo, Brasiliense, 1989; e Á naw do fem/70-rei,Rio de Janeiro, ]mago, ] 994. É autor da tese O temPOnãoreconciliado: Imagens de temPO em Deleuze. JEAN-CLET MARTIN Doutor em filosofia e autor de: Varfaffons: l.a pbi/osopbfe de G///es De/ez/ze,Paras, Payot, 1993; Oss abres: Ánafomie d# moyen'2ge7'0main,Paris, Payot, 1995; L'lmage z.'frrue//e,Kimé, 1996. Van Gogb: L'oei/ des cbose, Paria, Synthelabo, coleção Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998.

JEAN-LUC NANCY Professor de filosofia na Universidade de Strasburgo. Últimas publicações: Tbe birra fo presa/zce,Stanford, Stanford University Press, 1992; Le sonsd# monde, Paris, Galilée, 1994; Les m ses, Paria, Galilée, ] 996; fíege/: l,'i/zqulél de d n({gcztlÉParis, Hachette, 1997; La naissance

des sons, Collection 222, 1997.

FRANÇOIS WAHL Ex-coordenador da coleção L'Ordre Philosophique, Seuil. Publi-

cou: /nlrodwcffo a dlscours da lab/eau, Paris, Senil, 1996. Está preparando um estudo sobre a fenomenologia sob a crítica do discurso.

ALAIN BADIOU Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Pa ris Vlll durante vários anos, atualmente é professor da École Normale

Supérieure (ENS-Ulm). Publicou, entre outros títulos: l,'érre ef /'éz/éne-

memf,Paria, $euil, 1988; Condífions, Paris, Seuil, 1992; 1,'étbfque, Paris, Hatier, 1993; De/ewze:La c/ameur de /'êfre, Paris, Hachette, 1997; SaflztPau/: l,a Áo/zdaflonde J'wfziz/esa/isme. Paras, PUF, 1997; Cozzrf f aifé d'onlo/ogle Iransifofre, Paris, Seuil, 1998; Pefif ma/zue/d'lneslbéfique, Paris, Seuil, 1998; Ábrégé de mélapo/Ifique,Paria, Seuil, 1998. No Brasil, publicou Para uma Mofa teoria do swjfeifo,trad. Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994. GIORGIO AGAMBEN Professor da Universidade de Verona. Autor, entre outros títulos, de EnÁance ef blsfoíre, Paria, Payot, 1989; Lczcoram naafé q f z/le/zf,Pauis, Seuil, 1990; Le /angage ef /a mora, Bourgeois, 1991; Moyens san /;n, Paris, Rivages, 1995; Bartleóy oa /a Créaffon, Circé, 1995; 1Íommo sacar, Paria, Seuil, 1997. DÉBORAH DANOWSKI Professora de filosofia na PUC do Rio de Janeiro. Autora da tese de doutrorado Nafwreza/acaso: a cofzti/agênciana/i/osoÓa de Daz/fd

Numa, defendida na mesma universidade em 1991. GÉRARD LEBRUN

Antigo professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de Aix-en-Provence. Publicou, entre outros títulos: Kanf ef /a Pfz de /a méfapbysique, Paris, Armand Colin, 1970; La paffencedu concePf, Paris, Gallimard, 1972; O avesso da dia/érfca, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. É autor de numerosos artigos, entre os quais: 'Notes sur la phénoménologie

dans Les mofa ef /es cboses",

in À4ícbe/

Foucaz{/fpbi/osopbe, Paris, Seuil, 1989; "Devenir de la philosophie", in Noflo/zs de pbf/osop#fe /IJ (Denis Kambouchner, org.l, Paras, Galli-

mard, 1995. Gérard Lebrun faleceu em dezembro de 1999. SCARLETT MARTON

Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros títulos: Niefzscbe: Uma /;/oso/la a mízr-

fe/abas, São Paulo, Brasiliense, 1982; Nierzscbe; Das /alças cósmicas aos ua/aresó manos, São Pauta, Brasiliense, 1990; Niefzsc#e: A fra/zsmufação dos z,a/odes,São Paulo, Moderna, 1993. É autora de diversos artigos publicados em revistas especializadas, entre os quais: "L'éternel retour du même: thêsecosmologiqueou impératif éthique?", Niefzscbe Sr die/z,n' 25, 1996. ÉRIC ALLIEZ

Professor convidado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro de 1988 a 1996, fundador do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares e coordenador da coleção Trans, da Editora 34. Entre 1992 e 1998, foidire

mr (ü propamme no Collêge International

de Philosophie, em Paris. Atualmente, é professor no Institut für Kulturphilosophie da Akademie der Bildenden Künste, em Viena.

Livros traduzidos no Brasil: Tempos caP/tais,t. 1: Re/arosda conqalsfa do temPO,pref. de Gilles Deleuze e trad. de Mana Helena Rouanet, São Paulo, Siciliano, 1991; A assinar ra do mundo: O qz/e é a /i/oso/za de Deleaze e Gzlaffarl, trad. de Mana Helena Rouanet e Bruma Velar, São Paulo, Editora 34, 1995; Da impossfbi/idade da Áe,'omenologia: Sobre a filosofia francesa contemporânea, ttad. de Raquel de Almeida Prado e Bento Prado Jr., São Paulo, Editora 34, 1996; Deleuze: Filosofia virtual {em A.nexos=G. Delenze, o aludi e o uirtual}, trad. de Helosia B. S. Rocha, São Paulo, Editora 34, 1996. últimas

publicações:

Les

[emPS

caP]faux,

t. ]], vol.

]: ],'éfaf

des

cboses, Pauis, Cera, 1999; (com G. Schõder, org.) À4ezamorpbosezzder

Zeil, Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1999; (com E. von Samsonow, org.) Te/e/zela:Krlllh de7'ulrt e/JenBi/der, Viena, Verlag Tuna + Kant, 1999 É editor responsável pelas Oeuz/res de Gózbfle/ Tarde, Paris, Sa-

nofi-Synthelabo, coleção Les Empêcheurs de Penser en Rond. DAVID LAPOUJADE Agrégé e doutor em filosofia, ensina na Universidade de Paris XNanterre. Publicou: "Le flux intensivede la consciencechez William games", Pbilosophie, n' 46; William Jades: Empirismo et pragmatismo, Paris, PUF, 1997.

VÉRONIQUE BERGEN

Está escrevendouma tesede doutorado sobre a ontologiadeleuzeana, a ser defendida na Universidade Livre de Bruxelas; é colaboradora regular de diversas revistas de filosofia e literatura. Autora de/ean Genes: Entre myfbe ef éa/Ifé, Boerk Université; e de três antologias de poemas: Entres, B7'ú/e7Je pêra qzízznd/'enáazzfdorl, ambos por La Lettre Volée, e de l,'obsidia zerêde/'obscKr, no prelo.

BENTO PRADO JR. Professor da Universidade de São Paulo (1960-69); affacbé de recbercbe no CNRS (1969-74); professor da PUC de São Paulo (197577); e professor da Universidade Federal de São Carlos desde 1977. Publicou, entre outros títulos: Presença e camPO franscedenra/: Conscfêncfa e negaízufdade na P/oso/i(z de Bergs07z,São Paulo, Edusp, 1989;

Alguns ensaios: Filosofia, literatura, psicanálise, São Pau\o, M.ax Limonad, 1985; Erro, ilusão, /owcura, no prelo. ISABELLE STtNGERS

Filósofa, professora da Universidade Livre de Bruxelas. ultimas publicações: CosmoPO/fliques, 7 volumes, Paris, La Découverte, coleção Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1997-98; Sele/icesef pouuofr, Paras, La Découverte, 1998.

FRANÇOIS ZOURABICHVILI

Doutor em filosofia, diretor de programa no Colégio Internado nal de Filosofia. Agr(igé de filosofia e responsável por cursos na Universidade de Paris VIII. Publicou: De/e ze: U e pbf/osopbie de /'éué zzemenf,Paris, PUF, 1994. MICHAEL HARDT Professor assistente na Universidade Duke (EUA). Autor de: Gi//es De/euze: A/z apprezzficesblp i/zpbl/osopóy, Minneapolis, University of

Minnesota Press, 1993; e, com Antonio Negri, l,ab07'o/Dlonys s: A criffc o/' tbe Sf.zfe-/orm, Minneapolis, University of Minnesota Press, l qqd

FREDRIC JAMESON

Professor de literatura comparada e diretor do Programa de Literatura da Universidade Duke IEUA). Últimas publicações: Posfmoderpzlsm, or lbe c /lzlla/ /ogic o//afe mPIZa/fsm, Duke, Duke University

Press,

1993; S(gnalures o/fbe z/lsió/e,Londres e Nova York, Routledge, 1992; Tbe secas o/[fme, Columbia, Co]umbia University Press, ] 995.

RENATO JANINE RIBEIRO Professor de ética e filosofia política no Departamento de Filo-

sofia da Universidade de São Paulo. Publicou dois livros sobre Thomas

Hobbes (A marca do Lez,fala e Ao leitor sem medo, um livro de ensaios filosóficos (A zí/famarazão dos 7'efs)e vários artigos, dos quais, em francês: "Thomas Hobbes: Philosophie premiêre, théorie de~+a science ct politique", Paras, PUF, 1989; "Rétif et Michelet", l,es É/udc'9

Rélíz/íennes,n' 11, 1989; e "Révolution, souveraineté, histoire: La complicité de trois concepts", em Vovelle (org.), L'fmage de /a Réz/o/ flozzFrançafse, 1989. Organizou o colóquio Recorc&zrFoucau/f, cujas ates foram publicadas em 1985. JOHN RAJCHMAN Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), membro do conselho editorial de diversas revistasde arte e arquitetura (ArlÓorzlm,'4fzy, entre outras). Algumas de suas publicações traduzidas para o francês: &í]cbel rouca Zr:],a/ibe

é de sauofr, Paras, PUF,] 987; 1,'é70rf-

que de !a uérité: Fotlcault, Lacar et la qaestion de I'étbique, Par\s, PUF,

1994. Organizou, com C. West, l,a pe/zséeamé lcaine co/zfemPorai?ze,

Paras, PUF. É autor de diversos livros em vias de publicação, em inglês: Gi/ZesDeleKze: Tbe pb//osopby, Cambridge, Cambridge University Press; Braizz-cify: Dlag7am íznd dias/zosls, Nova York, Monacelli; e, com E.

Balizar, Frencbpbf/osopbysíncefbe Wa7',Nova York, The New Press. LAYMERT GARCIA DOS SANTOS Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas e membro diretivo do Conselho da Comissão

Pró-Yanomani ICCPY). É autor de vários ensaiose livros, entre os quais: 7'empade e/zsaio,São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Antropólogo, professorde antropologiasocial no Museu Nacional desde 1978; professor visitante da Universidade de Chicago j1991l; professor honorário da Universidade de Manchester (1994); pesquisador visitante na École des Hautes Études en SciencesSociales e no Laboratório de Etnologia e Sociologia Comparativa da Universidade de Paria X(1986, 1987, 1989, 1995). Publicou, entre outros Eito\os: From tbe enemy's point oft/iew: Hamanity and diuittity in Âmago/ziazz soclefy, Chicago, Chicago University Press, 1992; nestaobra, discorre sobre suas pesquisas etnológicas na Amazânia indígena desde 1975 SUELY ROLNIK

Psicanalista c professora da PUC de São Paulo, onde coordena o Centro de Estudos Pós-Gradilados sobre Subjetividade em Psicologia Clínica. É autora de: Carlograáía se/ztime?zfa/: Transformações confempor.incas do dose/o,São Paulo, Estação Liberdade, 1989; e, com F. Guattari, Mlcropo/alga: CarfogrízPas do desejío,Petrópolis, Vozes, 1985. Coordenou, com P. P. Pelbart, o número especial De/euze dos Cadernos de S b/efípfdade,São Paulo, PUC, 1996. Tradutora de À41/ P/afãs, vo1. 3, Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.

JOEL BIRMAN

Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor associado da Universidadedo Estado do Rio deJaneiro. últimos livros publica-

dos: Por ma esf{/Êficada exlsfê/zela,São Paulo, Editora 34, 1996; Estilo e modernidade em psíca á/ise, São Paulo, Editora 34, 1997 e Carfogr.z#as do Áen/Hino,São Paulo, Editora 34, 1999.

EDUARDOA. VIDAL Psicanalista, membro da escola Letra Freudiana, no Rio de Ja

negro.

PASCALE CRITON

Compositor e musicólogo, cbargé de recue cães no IRCAM j1989-911e no Laboratório Ondas e Acústica do ESPCI (IP93-971. Membro do conselhoeditorialda revista Cbfmê7'es.última publicação: Introdução a La /oi de /a Pa/zsonorifé, de lvan Wyschnegradsky, Genebra, Contrechamps, 1996. JACQUES RANCIÊRE

Professor de estética no Departamento de Filosofia da Universidade de Paria VIII. últimas publicações: Les /zoms de /'blsfo/re: Essas de poéflqae dzzsaz/olr, Paria, Seuil, 1992; La mése fende: Po// íq e ef Pbitosopbie, Paria, Ga\i\ée, 1995 ; Mallarmé: La polittque de la sirene, Paris, Hachette, 1996; La }zulfdes pro/éfafres, Paris, Sayard, Arc#ll,es du rêz,eouz/fiar,Poche Pluriel, 1997 [reedição], (Á noite dos proZefários, São Paulo, Companhia das Letras, 1988); e, com J. L. Comolli, .4rrêf szlrbfsfolre, Paria, Centre Georges Pompidou, 1997; Áz/x borda dz/ PO/f iq e, Paris, La Fabrique, 1998; 1,a paro/e m erre, Paras, Hachete, 1998; 1,a cbair des mofa, Paria, Galilée, 1998; Po/bicas da escrita, São Paulo, Editora 34, 1995.

RAYMOND

BELA.OUR

Pesquisador, escritor. Coordenador de pesquisas do CNRS, em Paris. Interessa-sepor literatura romântica (irmãs Brontê, Écrils de /eunesse,

Pauvert,

1972

[Laffont,

1992j;

A]exandres

Dumas,

À4ade-

molse//egai//of/ne,Paris, La Différence, 1990) e contemporânea (He#ri Micbazfx, Paris, Gallimard, 1965 [coleçãoFolio, 1986], preparação da edição da Plélade). Interessa-setambém por cinema ILe mesfer/z,Albatros, 1979 [Calmann-Lévy, 1996]) e, principa]mente, pe]os pontos de contato, passagens e regimes mistos de imagens -- pintura, fotografia, cinema, vídeo, imagensvirtuais --, assim como pelas relaçõesentre a palavra e a imagem (exposição Pczssagesde /'fmage, 1989; Entre imagens, Campinas,

Papirus, 1 997; /ean-l,nc

Godard;

Sonlmage, Nova

York, MoMA, 1992). Participou em 1991, com Serge Daney, da criação da revista de cinema Tra/ic.

HAROLDO DE CAMPOS Poeta, tradutor, ensaístae crítico literário, foi, nos anos 50, um dos fundadores do movimento internacional de poesia concreta. Professor visitante nas Universidades de Austin e Yale, professor emérito da PUC de São Paulo, autor de mais de trinta obras, entre as quais: 7'Corja da poesia cofzcrefíz,São Paulo, Duas Cidades, 1975 inova ediçãol; À'tela/Inguagem,

São Paulo,

Cultrix,

1976

[nova edição];

Ga/(í-

xlas, São Paulo, Ex-Libris, 1984; A educação dos cí/zcose/zffdos,São Paulo, Brasiliense, 1985; Os me/bofespoemas de litro/do de Cam-

pos, São Paulo, Global, 1992.

ANDRÉ PARENTE Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Programa de Ensino e Pesquisa sobre Comunicação e Tecnologia da Imagem. Em 1987, defendeu sua tese de doutorado, Narrar/z//zé

ef non-narra lz/ifé#!mlques, no Departamento de Cinema da Univer-

sidade de Paris Vlll, sob a orientação de Gilles Deleuze. Organizou duas

obras coletivas: Yasu/fro Ozu: O exfra07'di/báriocfneasla do cofidiano, 199Q e Imagem máquina: A era das tecnologias do virtual.

JULIO BRESSANE

Cineasta e escritor, nascido no Rio de Janeiro, em 1946, dirigiu mais de quarenta filmes, entre os quais: À4úzfoz/ a Família e Foi ao Cinema; O Anjo Nasceu ; Memórias de um Estrangulados de Loiras; Ago

nia; O Monstro Caramba;O Rei do Barulho; Gigante da América; Tabu; irás Cubas; Sermões; O Mízndarim. Atualmenteestá preparando um filme sobre São .jerânimo.

COLEÇAO TRANS direção de Eric Altiez Para além do mal-entendido de um pretenso "fim da filosofia" intervindo

no contexto do que se admite chamar, até em sua alteridade "tecno-científica", a crise da razão; contra um certo destino da tarefa crítica que nos incita-

ria a escolherentre ecletismoe academismo; no ponto de estranhezaonde a experiênciatornada ipzff'fgadá acessoa novas figuras do ser e da verdade... TRANS quer dizer transversalidade das ciências exatas e anexatas, humanas

e não humanas,transdisciplinaridadedos problemas. Em suma, transforma'

ção numa prática cujo primeiro conteúdo é que há linguagem e que a linguagem nos conduz a dimensões heterogêneasque não têm nada em comum com o processo da metáfora. A um só tempo arqueológica e construtivista, em todo caso experimental, essa afirmação das indagações voltadas para uma exploração polifónica do real leva a liberar a exigência do conceito da hierarquia das questões admitidas, aguçando o trabalho do pensamento sobre as práticas que articulam os campos do saber e do poder.

Sob a responsabilidadecientífica do Colégio Internacional de Estudos

Filosóficos Transdisciplinares, TRANS vem propor ao público brasileiro nu-

merosastraduções, incluindo textosinéditos. Não por um fascínio peloOu-

tro, mas por uma preocupação que não hesitaríamos em qualificar de políti-

ca, seporventura se verificasseque só se forjam instrumentospara uma outra realidade, para uma nova experiênciada história e do tempo, ao arriscar-se no horizonte múltiplo das novas formas de racionalidade.

Gilles Deleuzee Félix Guattari

André Parente (org.)

O que é a filosofias

Imagem-máquina

Fénix Guattari Caos?nome Gilles Deleuze

Bruno Latour Jamais fama; m.dera.s Nicole Loraux

Cona/ersações

rlzuenção de Afe/zas

Bárbara Cassin, Nicole Loraux:

Éric Alliez

Catherine Peschanski

A assinatura do mundo

Gregos, bárbaros, estrangeiros

Maurice de Gandillac

Pierre Lévy As tecnologias {ía inteligência

Gêneses da modernidade

Paul Virilio

Mi! platâs rVo/s. í, 2, 3, 4 e 5;

O espaço crítico

Antonio Negri A anomalia seu;agem

Gilles Deleuze e Fénix Guattari

Pierre Clastres

Cfânica do índios Guayaki

Jacques Ranciàre

do saber, opondo a toda imagem dogmática do pensamento a urgência insistente de um

Políticas da escrita

Jean-Pierre Faye A razão /zarraffz/íz

Monique David-Ménard A !sacara

na razão pura

Jacques Ranciêre

pensamento dissidente -- para resistir ao pre' sente e inventar novas possibilidades de vida.

Dentro da extraordinária diversidade de

itinerários de abordagem e de meios de inves tigação propostos, este livro se apresenta co-

O desentendimento

mo uma primeira homenagem coletiva ofere-

Éric Alliez

locar em jogo sua própria atualidade a partir

Da impossibilidade



fenomenologia

Michael Hardt Gilies Deleaze Éric Alliez Deleuze filosofia viTtuat

Pierre Lévy O que é o virtua!!

François Jullien Figuras da itnanência Gilles Deleuze C ética e clínica

cida a um pensamento que não cessou de coda necessidade de "pensar de outro modo

Participam destevolume: Giorgio Agamben, Éric Alliez, Alain Badiou, Raymond Bel-

lour, Véronique Bergen,Joel Birman, Julio

Bressane, Haroldo de Campos, Pascale Criton, Déborah Danowski, Laymert Garcia dos Santos, José Gil, Michael Hardt, Fredric Ja

meson, David Lapoujade, Gérard Lebrun, Jean-Clet Martin, Scarlett Marton, Jean-Luc Nancy, Luiz B. L. Orlandi, André Parente,Pe [er Pál Pelbart, Bento Prado Jr., John Rajchman, Jacques Ranciêre, Renamo Janine Ri-

beiro, Suely Rolnik, René Schérer, lsabelle Stengers, Eduardo A. Vidas, Arnaud Villani, Eduardo Viveiros de Castra, François Wahl,

François Zourabichvili.

Este livro não é um: n

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autorizados),

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marcadas pelo sentimento de viva urgência desse pensamento dissidente.

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"automovimentos" envolvendo a identidade contemporânea de uma certa idéia da filosofia. Éric A!!iez

coleção TRANS

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editoral 134