Geopolítica, Imperialismo e Desigualdades Internacionais

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Cap. 2 – O IMPERIALISMO COMO QUESTÃO
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GEOPOLÍTICA, IMPERIALISMO E DESIGUALDADES INTERNACIONAIS    

     

JOSÉ WILLIAM VESENTINI    

Editora do Autor, 2020

   

SUMÁRIO Introdução................................................................... Cap. 1 - Capitalismo, Estado e espaço geográfico................ Cap. 2 - O imperialismo como questão.................................. O ponto de vista dos clássicos.............................. Marx, Engels e o colonismo As leituras de Hilferding, Luxemburgo e Kautsky A interpretação de Lênin Por quê a leitura leninista predominou? Os continuadores e os reformadores.................... Imperialismo ainda tem algum poder explicativo? As releituras de Magdoff e Petras........................ Emmanuel e o intercâmbio desigual.................... Império de Negri e Hardt......................................  

Cap. 3 - A geopolítica global..................................................... A ordenação geopolítica após a 2ª Guerra Mundial Militarização Superpotências A ordem mundial pós-guerra fria............................

Uni ou multipolar?............................................... Globalização e revolução tecnológica................... Novos centros de poder........................................ A dinâmica da nova ordem.................................. Cap. 4 - Desenvolvimento e desigualdades internacionais Pressupostos do imperialismo.............................. Motivos do atraso.................................................. China e Índia......................................................... Os limites ambientais............................................ As desigualdades internacionais........................... As desigualdades sociais........................................ Desigualdades sociais na escala mundial.............. Desenvolvimento, desigualdades e democracia....... As desigualdades são imorais?.............................. A modernidade é ocidental?.................................. O desenvolvimento é nacional ou local?............... Notas Finais.......................................................................

 

 

Contracapa: Geopolítica, imperialismo e desigualdades internacionais é um estudo que explica e questiona a teoria leninista do imperialismo, alicerce fundamental para as explicações “radicais” sobre as relações internacionais e as desigualdades entre as economias nacionais. Procura ainda analisar as razões para o desenvolvimento internacional desigual e compreender em que medida as desigualdades internacionais (e as sociais, na escala mundial) estão aumentando ou diminuindo. Além de discutir o que significa desenvolvimento sustentável e as relações complexas entre desenvolvimento e desigualdades sociais, como também entre desenvolvimento e democracia.    

INTRODUÇÃO  

Esta é a terceira versão da obra. Foi publicada originalmente em 1987 pela editora Papirus com o título “Imperialismo e geopolítica global”, em pleno período da guerra fria. Foi reeditada em 2003 pela mesma editora, com atualizações e principalmente com inúmeros acréscimos e reformulações. Daí o próprio título ter sido parcialmente alterado para “Nova ordem, imperialismo e geopolítica global”, pois o mundo ingressava em uma nova ordenação geopolítica. E, afinal de contas, se tratava praticamente de uma nova obra, mesmo que em certos aspectos fosse uma continuação da primeira. Nesta nova e última edição, de 2020, ela foi novamente atualizada e também bastante reformulada em função de novos acontecimentos que redefiniram ou evidenciaram com maior clareza a nova ordem mundial. Entre estes, cabe mencionar a ascensão da China, a recuperação da Rússia e o final daquele período transitório no qual os Estados Unidos pareciam ser uma “superpotência solitária”, além do advento de novas pesquisas e teorias em especial na questão do desenvolvimento humano e das desigualdades sociais na escala mundial. Por esse motivo modificamos novamente o título da obra para “Geopolítica, imperialismo e desigualdades internacionais”. Pois mais do que uma atualização, esta edição é uma reformulação da anterior. Não que algumas das ideias centrais, que resumiremos a seguir, tenham

sido radicalmente alteradas. Tampouco deixamos de lado a análise da ordenação geopolítica global, agora procurando compreender melhor suas tendências. Continuamos enfocando criticamente a teoria do imperialismo, pois ela contina sendo, implícita ou explicitamente, o alicerce teórico por trás das interpretações tidas como radicais da ordenação geopolítica planetária. Especialmente das explicações marxistas das relações internacionais e das desigualdades de desenvolvimento entre as nações. Em todo caso, novos problemas se impuseram, tanto pelas mudanças na realidade como na própria discussão teórica. E algumas partes dos livros anteriores, que da forma como estavam redigidas interessavam quase que exclusivamente aos geógrafos, foram retrabalhadas com vistas a uma interlocução com outros especialistas ou mesmo com o público letrado em geral. Sua primeira versão, reiteramos, ocorreu na penúltima década do século passado, ainda durante a vigência da guerra fria e da ordem bipolar. A segunda versão, bastante reescrita, ocorreu no início deste século em função do final da guerra fria e da emergência de uma nova ordem mundial. Esta ainda estava em seus primóridios e vivíamos então um momento transitório de perplexidades. Basta lembrar que ainda se acreditava numa indiscutível monopolaridade e alguns chegaram até a falar num império comandado pelos Estados Unidos, o que depois se mostrou ilusório. Ninguém imaginava, nos

primórdios do século, que a China se tornaria a primeira economia mundial e a Índia estaria no caminho para se tornar a segunda ou no máximo a terceira já em meados do século, algo que hoje parece cada vez mais evidente. Como também ninguém previa a recuperação da Rússia, na época combalida e dominada por máfias e negócios escusos, mas que já na segunda década do século passou de novo a atuar geopoliticamente como uma potência. Invadiu e anexou parte do território da Ucrânia, forneceu sólido apoio militar para a continuidade do governo ditadorial da Síria, apesar da oposição dos Estados Unidos e de Israel, barrou a tentativa norte-americana de impor sansões ao regime norte-coreano, ajudou na manutenção do governo Nicolás Maduro na Venezuela, etc. Nesta última versão, procuramos evidenciar melhor a nova ordem mundial com seus traços e tendências principais. Como também procuramos analisar com maior profundidade a questão do desenvolvimento, pois sua conceituação se alterou em função de novos estudos e ocorrências. Primeiro, com o rápido crescimento econômico da Índia e principalmente da China, que nesta segunda década do século se tornou no país mais industrializado do mundo. Depois com a inegável diminuição da fome e da pobreza absoluta na escala global, tanto em termos absolutos como principalmente em relação ao total da população mundial, apesar da persistência desses problemas em boa parte da África subsaariana. E o próprio entendimento do que significa

desenvolvimento se alterou radicalmente com a valorização das liberdades democráticas e principalmente da sustentabilidade – não somente ambiental, mas também econômica, cultural e social. O objetivo último deste livro, no entanto, continua o mesmo: o de expor, de forma simples e acessível ao grande público, elementos para uma compreensão das relações de poder ou da geopolítica no espaço mundial. Trata-se de uma exposição até certo ponto didática sobre as relações e imbricações entre espaço e poder na escala global ou planetária, o que inclui, entre outras coisas, a compreensão das desigualdades internacionais. Os principais temas abordados são: o imperialismo e a questão das desigualdades internacionais, a dinâmica da nova ordem, a geopolítica e a geoestratégia mundiais. Por que sucessivas reedições com reformulações? Não seria melhor deixar de lado a obra original e publicar outra com um título completamente diferente e não somente parcialmente modificado? Acreditamos que não por dois motivos principais. Primeiro, que foram realizados acréscimos e atualizações, reformulações inclusive, mas não ao ponto de serem obras totalmente diversas. Segundo, que a problemática que este livro iniciou – a discussão sobre a pertinência da categoria imperialismo para se analisar as desigualdades entre os Estados nacionais e as relações de poder na escala global – ainda não se esgotou. Pelo contrário, tornou-se mais importante

ainda no transcorrer deste novo século. Vamos explicar o porquê disso nas linhas a seguir. De fato, uma das questões essenciais que perpassam as ideias aqui expostas é a seguinte: constitui a teoria do imperialismo, especialmente na sua versão leninista – que se tornou dominante a partir de 1917 –, um arcabouço conceitual suficiente, ou mesmo relevante, para se entender os problemas atuais de relações de dominação e de desigualdades no nível planetário? Essa interrogação, que já era importantíssima em 1987, o era ainda mais em 2003, quando o poderio avassalador dos Estados Unidos, a única superpotência atuante naquele momento, parecia confirmar a ideia de um “novo imperialismo”, um “superimperialismo’ ou, como preferem alguns, de uma “nova Roma” com o seu império mundial1. Mesmo hoje, em 2020, quando já é evidente o enfraquecimento (relativo, é claro) dos Estados Unidos e a ascensão da China e de outros polos econômicos e geopolíticos, ainda há muitos que advogam a versão que a globalização nada mais é que uma nova roupagem para o imperialismo. Ou que as desigualdades internacionais continuam se ampliando. Entre outras preocupações, foi exatamente para dialogar criticamente com esses tipos de interpretações, quase hegemônicas nas universidades brasileiras, que elaboramos as sucessivas versões desta obra. Basta lembrar que ainda hoje, na porta da terceira década do século, a mídia em geral continua a propalar, muitas

vezes

com

auxílio

de

acadêmicos,

essa

interpretação que as desigualdades internacionais – ou que a pobreza e a fome – estão aumentando ou que os países mais pobres estão nessa situação porque são explorados. Todavia, como pretendemos demonstrar, essas representações do “novo imperialismo” (a globalização) e do constante agravamento nas desigualdades internacionais

são

superficiais

e

completamente

inadequadas para uma correta compreensão das relações de poder (sejam econômicas ou político-militares) na superfície terrestre em nossos dias. São representações, convém ressaltar, no fundo herdeiras e/ou continuadoras da teoria leninista do imperialismo. Assim, cabe recuperar as balisas fundamentais da(s) teoria(s) do imperialismo, para evidenciar que foi uma rica e plural construção teórica e por quais motivos a versão leninista se tornou hegemônica. De

forma

explanação

no

genérica capítulo

(iremos 2),

aprofundar

podemos

afirmar

essa que

o

imperialismo foi visto pelos autores clássicos como a política expansionista do capital financeiro das metrópoles capitalistas. O Estado-Nação típico ou o Estado territorial no seu momento áureo, aquele do final do século XIX e da primeira metade do século XX, foi percebido como o garantidor dos interesses da reprodução ampliada do capital das áreas centrais, em especial das grandes empresas capitalistas do período – os trustes e os cartéis. As guerras de pilhagem e interimperialistas foram tidas

como inevitáveis, sendo que o socialismo seria um ponto de chegada desse processo contraditório, ocasião em que cessariam os conflitos armados e a exploração econômica internacional. Todavia, a situação posterior a esses autores clássicos, o mundo pós-Segunda Guerra Mundial, e mais ainda o advento da globalização e da revolução técnicocientífica, vivenciaram acontecimentos e processos que destoaram dessa interpretação e evidenciam outra realidade. O capital produtivo se internacionalizou, ocorrendo a partir de 1945 uma enorme expansão das empresas multinacionais – ou ou transnacionais, como preferem alguns com a imaginosa alegação que algumas dessas empresas são mais poderosas que os Estados nacionais ou estariam “acima deles”. Considero esta versão fantasiosa e sem fundamentação na realidade. Esses dois prefixos (multi e trans), neste caso específico, têm o mesmo significado. As soberanias estatais sobre seus territórios ainda não se extinguiram, exceto para os chamados “Estados falidos” pelas organizações internacionais, mas que por isso mesmo não são atrativos para investimentos estrangeiros. Os Estados nacionais, pelo contrário, não apenas controlam a atuação das empresas em seus territórios, sejam nacionais ou estrangeiras, como até mesmo monitoriam e influenciam os tradicionais meios de comunicações e, em vários casos – na China, na Rússia, na Coreia do Norte, em vários países islâmicos – até

estipulam o que pode ou não entrar na internet e nas redes sociais no espaço sob suas soberanias. Isso patenteia que não tem qualquer sentido usar o prefixo “trans” com o significado de acima ou além da soberania estatal. Atente-se ainda para as multas e imposições que países europeus impõem aos gigantes da tecnologia, que hoje são provavelmente as empresas mais poderosas do mundo. Apesar dos protestos norteamericanos, pois grande parte dessas firmas ainda são estadunidenses, embora empresas chinesas estejam se expandindo neste setor. Ou para as proibições para fusões de certas empresas com o objetivo de evitar monopólios ou cartéis. Ou ainda a recente fixação de prazos para que não mais existam veículos automotivos movidos a combustíveis derivados do petróleo, apesar dos reclames das empresas petrolíferas tidas por alguns como os maiores exemplos de firmas transnacionais. Ademais, existe o fato que muitas das maiores firmas multi ou transnacionais têm hoje as sua matrizes em economias antes tidas como periféricas. Alguns países que eram vistos como integrantes da periferia do capitalismo mundial, ou então como subdesenvolvidos – como Brasil, Turquia, África do Sul, México, Malásia, Indonésia e em especial China, Índia e os “tigres asiáticos” (Coréia do Sul, Cingapura, Hong Kong, Taiwan) – conheceram um notável processo de crescimento econômico e particularmente industrial (superior ao dos países ditos centrais ou desenvolvidos)

e

hoje

sediam

poderosas

empresas

multinacionais. Essas empresas, na verdade, sempre são nacionais que se internacionalizaram. Em última instância, elas recorrem ao seu Estado de origem para buscarem eventuais proteções. Basta lembrar que o governo dos Estados Unidos procura defender (nem sempre com sucesso)

empresas

como

Apple,

Microsoft,

Google,

Facebook e outras de sansões europeis ou de outras partes do mundo. E a China procura da mesma forma defender os interesses de empresas como a Huawey ou a Xiaomi, que em grande parte são estatais, daí mais um motivo para se duvidar daquele sentido forte do termo transnacionais. Da mesma forma, o Estado sul-coreano procura defender os interesses externos de suas principais multinacionais como a Samsung, a LG ou a Hyundai, as quais só puderam crescer e se expandir internacionalmente graças à ação e aos objetivos desse mesmo

Estado.

Exemplos

assim

poderiam

ser

multiplicados. Essa

eventual

defesa

de

firmas

nacionais

no

estrangeiro não ocorre porque o Estado (ou o governo) seria apenas um “comitê para os interesses da burguesia”, tal como na infeliz declaração de Marx e Engels. Ocorre porque elas representam o poderio extraterritorial da economia nacional. No caso de não desempenharem esse papel, de eventualmente contrariarem os interesses do Estado de origem, mesmo que sejam interesses eleitorais do

governo

vigente,

elas

podem

e

costumam

ser

penalizadas pelo poder público com pesadas multas,

aumento

seletivo

concorrentes.



de

impostos

centenas

de

ou

subsídios

exemplos

para

desse

tipo.

Quando a economia sul-coreana passou a crescer lentamente, o governo exigiu reformulações nos conglomerados – os chaebol (Hyundai, Samsung, Daewoo, LG e outros) –, que por sinal só se expandiram devido ao forte apoio estatal. Ou mais recentemente, com deplorável governo Trump, nos Estados Unidos, que por motivação eleitoral exigiu – e conseguiu, pelo menos em parte, à custa de ameaças de sansões – que empresas que transferiram fábricas para o exterior (na ocasião, com amplo apoio governamental) trouxessem de volta parte dos empregos que foram exportados. Empresas com os maiores valores de mercado do mundo, como Facebook, Google

e

outras,



atuam

em

certos

países

se

obedecerem às rígidas regras (inclusive de censura a conteúdos ou mesmo de quebra de sigilo de algum usuário a pedido do governo local, algo inadmissível no seu país de origem), sob o risco de serem expulsas a qualquer momento. Menos recente, porém de grande impacto, foi a estatização das poderosas empresas petrolíferas (que eram

vistas

como

o

maior

exemplo

de

empresas

transnacionais) no mundo árabe e em vários outros países. Nos dias atuais, ao contrário do que ocorria até os anos 1970, praticamente todas as maiores empresas no setor de gás e petróleo no mundo são estatais: Aramco (Arábia Saudita), KPC (Kuwait), ADNOC (Abu Dhabi), Gazprom (Rússia),

CNPC

(China),

PDVSA

(Venezuela),

Statoil

(Noruega), Petronas (Malásia), NNPC (Nigéria), Pemex (México), Petrobras (Brasil) e outras, que há muito já desbancaram as outrora poderosíssimas “sete irmãs” (Exxon, Texaco, Shell, British Petroleum, etc.). As guerras entre as potências capitalistas, tidas por Lênin como inevitáveis na fase imperialista (que ele entendia,

equivocadamente,

como

a

“última”

do

capitalismo), parecem ter cessado, dando lugar aos múltiplos conflitos armados nas áreas periféricas. E também a organizações terroristas e/ou guerrilheiras, mas que hoje, ao contrário do passado até os anos 1980, não mais falam em nome de uma pretensa luta antiimperialista. Até o final do século passado, existiam autores que defendiam a tese do “subimperialismo”, pela qual determinados Estados da periferia – como nos exemplos do Brasil, da África do Sul, da Índia, da Indonésia e até mesmo do Irã anterior à revolução muçulmana

de

1979



desempenhariam

papéis

de

metrópoles subcentrais frente aos países vizinhos, com os quais manteriam relações de dominação e de reforçomanutenção do sistema capitalista mundial. Essa versão, derivada da teoria leninista do imperialismo, naufragou com a formação de “blocos” ou mercados regionais (como Apec, Mercosul, União africana e outros), nos quais predomina a integração e não a submissão/dominação. Como também pelas mudanças em alguns desses polos (Irã, por exemplo) ou mesmo pelo maior crescimento de

países que teoricamente estariam sob o jugo de outros (como a Nigéria frente à África do Sul). As nações auto-intituladas socialistas, ao contrario do que se pensava no inicio do século XX – momento em que emergiu com vigor a problemática do imperialismo com Hilferding, Kautsky, Rosa Luxemburgo e Lênin, para citar apenas alguns nomes importantes ligados a essa temática –, não principiaram nenhuma desmilitarização, nenhuma cooperação international amistosa e igualitária, e tampouco a ausência de guerras entre si. O pensamento auto-intitulado de esquerda teve de refletir agudamente, repropondo alguns de seus alicerces teóricos, ao se defrontar com o esmagamento da insurreição húngara de 1956, com a invasão da antiga Tchecoslováquia em 1968 pelas tropas do Pacto de Varsóvia, com a sangrenta guerra entre o Vietnã e o Camboja (ambos tidos como socialistas)

e

com

inúmeros

outros

acontecimentos

similares, que não fazem sentido dentro de uma certa interpretação

do

marxismo

que

foi

se

tornando

hegemônica a partir da Revolução Russa de 1917 e, de forma especial, com a Terceira International, a International Comunista. Pode-se lembrar também da guerra fria, onde se assistiu a uma rivalidade/cooperação (no sentido de expansionismo conflituoso, mas com uma conivência mútua e obedecendo sempre às implícitas "regras do jogo") entre as duas superpotências da época – os Estados Unidos e a União Soviética –, cada uma com a

sua área de influência. Ou ainda as reviravoltas da política chinesa: do rompimento com Moscou em 1960 à "revolução cultural" subsequente, passando a seguir, em especial a partir de 1976, a uma crescente abertura ao mercado capitalista com uma expansão da economia de mercado e do consumismo, que gerou uma inegável melhora nas condições de vida da população em geral (seu IDH) e, ao mesmo tempo, um agravamento nas desigualdades sociais e territoriais. Por sinal, grande parte da chamada esquerda não consegue compreender que é possível existir crescimento econômico e humanosocial (com redução da pobreza e da fome, com ampliação da expectativa de vida, com diminuição da mortalidade infantil, com maior escolarização, etc.) concomitante a um aumento das desigualdades sociais. Iremos discutir essa questão no capítulo 4. Como adequar todas essas transformações históricas em relação à interpretação clássica do imperialismo? Seria necessário – e suficiente – referir-se a um “neoimperialismo” (com ou sem os seus “subimperialismos”), como propõem alguns, ou então ir mais longe e propor novas teorias/conceitos que prescindam da noção de imperialismo? Não seria essa noção, essa interpretação clássica e renitente, uma construção teórica já superada pela própria dinâmica do real? Não se trata de uma questão meramente semântica, no sentido mais estrito. Trata-se da

compreensão crítica de aspectos fundamentais do mundo, da realidade geopolítica planetária, algo indispensável quaisquer posicionamento e ação na escala global. A teoria do imperialismo, bem ou mal formulada, foi até há pouco tempo o principal instrumento conceitual utilizado para as explicações de “esquerda” – marxistas, principalmente, mas também socialistas em geral e até (neo)anarquistas – a respeito da problemática econômicopolítica internacional. Ela ainda é, explícita ou implicitamente, o principal alicerce teórico-conceitual para grande parte dos que hoje se opõem à globalização. Desde as teorias da dependência até as explicações “radicais” sobre o subdesenvolvimento, passando por inúmeras ideologias terceiro-mundistas – e também múltiplas retóricas antiglobalização –, todos esses discursos via de regra, implícita ou explicitamente, procuravam ou procuram se apoiar na temática do imperialismo. Esta última é vista como uma espécie de "gancho" ou sólido apoio teórico no qual todos aqueles discursos ou interpretações do mundo procuram se sustentar enquanto forma de legitimação no interior do pensamento dito “crítico” ou “radical”. Dessa forma, questionar ou repropor a teoria do imperialismo significa repensar alguns dos elementos mais basilares da visão de mundo dominante durante mais de um século no pensamento de esquerda em geral e em especial na tradição marxista. Nesta, o século XX foi interpretado como o (inexorável) momento "de transição"

do capitalismo para o socialismo, sendo que as "revoluções proletárias" que efetivariam esse processo iriam ocorrer primeiramente nos países subjugados pela rapina imperialista. Para se reatualizar ou, no extremo, superar a temática do imperialismo à luz da crítica de seus pressupostos e, principalmente, a partir do seu confronto com a realidade hodierna, pensamos que é indispensável trabalhar com a dimensão geopolítica. Geopolítica antes tão vilipendiada nessa tradição teórica tida como de esquerda, mas que hoje é cada vez mais revalorizada. A realidade geopolítica no nível planetário (as relações de poder entre os Estados) é imprescindível para essa superação da leitura centrada no imperialismo e por conseguinte no econômico, isto é, numa pretensa lógica inelutável do sistema capitalista. Assim, temos que levar em conta (embora criticando ou buscando superar) os clássicos do imperialismo – Lênin, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Kautsky . Mas temos também que incorporar criticamente os clássicos e os contemporâneos da visão geopolítica: MacKinder, Brzezinsky, Kissinger, Kennedy, Huntington e outros. Sem dúvida que são duas tradições discursivas diferentes e até, em alguns aspectos, alternativas e comumente tidas como antinômicas. Uma delas – a vertente do imperialismo – denega a análise das relações internacionais, que é a essência da outra, isto é, da análise geopolítica. Procura mostrar uma lógica única e

centrada na produção (onde se insere a exploração social) e expansão do sistema capitalista mundial, minimizando a importância dos Estados-nações. Já a outra – a vertente da geopolítica – não valoriza tanto esse sistema produtivo mundial (a não ser como somatória das ações dos Estados, os atores que privilegiam) e raciocina não em termos de uma lógica econômica e sim de estratégias em confronto. Creio que ambas percebem ou compreendem alguns processos que efetivamente existem, embora sejam parciais ou unilaterais. Podemos até advogar que elas se complementam, ou podem se complementar, mesmo que uma tenha sido forjada por autores de “esquerda” e a outra por teóricos normalmente rotulados como de “direita”. Na escala planetária existe sim uma (ou talvez algumas) lógica econômica que se impõe, aquela da mercadoria e da busca de lucros, que é importantíssima para a atuação do sistema financeiro e das empresas em geral. Mas também existem outras lógicas ou outros atores que agem segundo diferentes imperativos: o Estado, em primeiro lugar, e outros grupos, atores ou organizações importantes nas mudanças que ocorrem no cenário internacional: grandes culturas ou civilizações, máfias e grupos criminosos e/ou terroristas, organizações internacionais intergovernamentais e não governamentais, etc. Sem esquecer, naturalmente, dos meios de comunicações globais – não mais apenas aqueles tradicionais, como televisão, rádio e jornais, mas

também redes de computadores, redes sociais ampliadas pelos telefones celulares, que foram extremamente importantes na “primavera árabe” de 2010-3 ou no recrutamente de militantes para o Estado islâmico. A(s) teoria(s) do imperialismo procura(m) explicar a lógica econômica, aquela das transferências internacionais de capital, de mercadorias, de tecnologia, de mão-de-obra. Algumas de suas observações são agudas e pertinentes. Mas não enxerga os outros fatores e vê o mundo econômico (capitalista) de uma forma estreita, como se nele só existissem exploradores e explorados, como se fosse impossível qualquer associação comercial com benefícios mútuos. Daí, por exemplo, a incapacidade dos autores marxistas de compreenderem, desde o início, o processo de unificação da Europa. A visão geopolítica, por sua vez, procura explicar a lógica da ação interestatal, campo no qual produziu inúmeras ideias profundas e duradouras. Só que ela minimiza, ou costumava minimizar, a (relativa) autonomia do sistema financeiro internacional, a atuação das empresas globais e pouco se preocupa com os demais atores – com as grandes culturas ou civilizações, com as ONG’s, com as associações de classe, de etnias, de gênero, etc. –, os quais apenas enxerga como empecilhos a serem enfrentados pela ação estatal. Isso significa que ambas tradições teóricas são importantes e ao mesmo tempo insuficientes para

compreendermos a realidade internacional dos nossos dias. Mas o processo do conhecimento, em qualquer área científica e em especial nas ciências humanas, é sempre dinâmico e sujeito a mudanças às vezes inesperadas. Novas ideias são criadas somente através da superação – o que não significa abandonar totalmente e sim incorporar parcial e criticamente, explorar novos caminhos, construir novas vertentes explicativas – das tradições que engendraram importantes teorias e métodos. Buscar uma explicação crítica – e também, porque não dizer, complexa (no sentido da teoria da complexidade, onde há a convivência do acaso com a necessidade, de múltiplos fatores que se entrecruzam e se influenciam reciprocamente) – da atual realidade planetária, a nosso ver, passa necessariamente pela análise da sua dimensão espacial. Conforme demonstrou com muita pertinência Michel Foucault2, as relações de poder, em qualquer nível (do micro ao macro, do arranjo espacial dos tribunais ou da sala de aula às relações internacionais), sempre necessitam e engendram uma certa (re)organização do espaço. Seja no plano econômico, político-diplomático, militar ou até cultural, essas relações de poder não se inscrevem numa lógica puramente temporal, mas só existem enquanto situações concretas de lutas e estratégias, de ações e reações, de domínios e confrontos, de materialidades e de fluxos intangíveis que sempre ocorrem no e com o espaço. A

dimensão espacial recoloca o contingente, as diferenças e alteridades, a complexidade que existe por trás de uma lógica aparentemente unívoca. É por isso que não existe “o” poder, no singular, e sim poderes (que se exercem nos e com os espaços) ou situações concretas de exercício do poder. Daí iniciarmos o primeiro capítulo deste livro com uma sucinta análise ou interrogação sobre a espacialidade da sociedade moderna. Não somente porque esse é o nosso enfoque ou approach, algo evidente num especialista em geografia política. Tampouco apenas pela indissociabilidade entre poder (ou poderes) e espaço (ou espaços), um entendimento que nos permite superar a interpretação teleológica do real, pois esta tem como âmago o tempo histórico ou a história vista como a realização progressiva de ou um sentido preestabelecido. Mas também porque a problemática do imperialismo sem nenhuma dúvida sempre esteve ligada ao estudo ou à uma determinada explicação do espaço mundial com ênfase na questão da violência e em especial da guerra. Os próprios debates – talvez os mais agudos entre os clássicos do imperialismo – sobre a possibilidade de um "superimperialismo" no qual as guerras entre as potências capitalistas não mais seriam inevitáveis (posição de Kautsky, criticada por Lênin), já demonstram essa forte ligação entre a teoria do imperialismo e a questão da guerra. E o capitulo exemplar de Rosa

Luxemburgo sobre "militarismo e acumulação de capital", exatamente na obra em que a autora se refere ao imperialismo, evidencia isso com mais vigor. Mas os clássicos do imperialismo apenas resvalavam sobre essa questão, percebiam a sua enorme importância para a análise das relações internacionais (ou melhor, para as perspectivas de uma eventual “revolução mundial”) e, no entanto, não conseguiam aprofundá-la. Mais do que não conseguiam, eles na verdade não podiam aprofundar essa questão, pois a sua forma de encarar o mundo sempre foi marcada por um forte viés de negligenciar o espaço e enfatizar somente o tempo, visto na sociedade moderna como pura lógica comandada pelo movimento do capital.  

Cap. 1 - CAPITALISMO, ESTADO E ESPAÇO GEOGRÁFICO  

A emergência e o desenvolvimento da sociedade moderna ou capitalista, desde seus albores nos séculos XV e XVI e principalmente a partir da Revolução Industrial iniciada em meados do século XVIII, implicou numa profunda reorganização do espaço e do tempo. Estamos nos referindo, evidentemente, ao tempo histórico-social e ao espaço geográfico, o espaço ocupado e (re)produzido pelos seres humanos, que há tempos abrange toda a superfície terrestre. Nesses termos, a ordenação do mundo capitalista teve como alguns de seus pressupostos fundamentais, além da condenação do ócio e da valorização do trabalho com vistas a acumular bens, uma instrumentalização do espaço e do tempo. Pela primeira vez na história da humanidade passa a existir, gradativamente, uma temporalidade una para todas as sociedades, a temporalidade capitalista, onde tempo é dinheiro, é valor de troca: "se gasta e não mais se passa"3. E também pela primeira vez surge, ou melhor foi construído um espaço mundial, fruto da expansão do capitalismo e do estabelecimento de uma divisão internacional do trabalho na escala planetária. As temporalidades e as espacialidades plurais e diferenciadas, das inúmeras sociedades que viviam os seus espaços-tempos próprios, no decorrer de três ou

quatro séculos foram violentamente submetidas e destruídas e/ou subordinadas à dinâmica do capitalismo. Nesses termos, espaço e tempo sociais, entendidos como elementos interligados e indissociáveis, não são dados ou dimensões cuja realidade se possa estabelecer a priori. Eles são dimensões ou formas de existir do ser social. A historia não está no tempo mas ela é o tempo da sociedade. E também não se pode dizer de forma estrita que a sociedade está (ou "ocupa lugar") no espaço, pois, de forma mais apropriada, ela possui uma dimensão espacial ou material, uma espacialidade enfim. Espaço é o nome que se dá para a corporeidade, a materialidade dos seres e as suas relações e disposições recíprocas; e o tempo é uma dinâmica do social, o seu movimento no sentido de transformações. Tempo e espaço são indissociáveis porquê não há movimento ou mudança que não ocorra num lugar, que não envolva objetos, assim como as ações no sentido de reorganizar o espaço necessariamente ocorrem num lapso de tempo, ou melhor, constituem tempo. Portanto, uma sociedade não apenas está no espaço, mas ela também é espaço ou tem uma espacialidade, uma dimensão espacial. Ela é um espaço social, mesmo com a presença da natureza original, e ao mesmo tempo o constrói, (re)organiza, (re)produz constantemente. O espaço geográfico não é um “vazio” preexistente que foi ocupado pela natureza original e depois modificado pela ação humana. Ele é todo o conjunto formado pelos

objetos e fluxos (materiais e imateriais) dos seres humanos ou produzidos por eles: as cidades, os edifícios, os campos de cultivo, as estradas, as fronteiras, as comunicações, etc. Não é algo inerte e sim dinâmico, resultado de ações e reações, de confrontos, de lutas que mudam, conservam ou (re)produzem os movimentos e as coisas. Sem dúvida que o espaço geográfico, como propagam há séculos os geógrafos, é o resultado em primeiro lugar da apropriação humana da natureza: tudo o que existe no final das contas, até mesmo o corpo humano, é um aspecto ou parte da natureza. Mas a humanidade, em especial a sociedade moderna na sua forma plena ou industrial (e mais ainda na sua forma pósindustrial ou tecnológica), reelabora essa natureza original produzindo assim uma “segunda natureza”, que se encontra subsumida na dinâmica do social. Essa segunda natureza existe de forma mais acabada nas grandes cidades, nas quais não apenas as obras, os edifícios, as praças, as avenidas, os transportes e toda a infraestrutura são resultados do trabalho humano sobre a natureza, mas até mesmo o (micro-)clima, o solo, as águas ou a vegetação expressam em suas características as marcas da ação antrópica. Podemos assim afirmar que o espaço moderno é uma forma de existência, um campo de atuação e de conflontos e ao mesmo tempo uma obra num duplo sentido: como construção (ou produção) pela ação humana, e como criação ou objeto de arte.

Mas esse espaço, ou espaços na medida em que é pleno de diferenças e peculiaridades, não é tão-somente uma segunda natureza – com ou sem a sobrevivência de aspectos da primeira natureza, embora mesmo estes foram de certa forma apropriados pelo social. Por um lado ele é, especialmente na escala local, afetividade ou elemento indissociável das emoções e sentimentos da população que aí vive e com ele se identifica. Por outro lado, ele é ao mesmo tempo condição e produto da história, das contradições e conflitos entre grupos, classes, etnias, gêneros: não se luta apenas no espaço mas também pelo espaço e com o espaço. São inúmeros os exemplos que demonstram esse fato. A reorganização do espaço nacional ou do espaço urbano de Paris pelos revolucionários de 1789 e posteriormente pelos participantes da Comuna de 1871, que promoveram alterações das funções ou usos em edifícios, trocas de nomes de ruas e praças, destruição de estátuas e monumentos, remanejamentos territoriais administrativos, etc. As mudanças na localização da cidade-capital por parte dos governantes com vistas ao maior controle social e menor participação popular nas decisões politicoinstitucionais (recorde-se aqui de Versalhes da época do Absolutismo, para citar apenas um caso). A transferência de parques industriais de áreas nas quais a organização e tradição de combatividade da classe trabalhadora é forte para locais onde a fragilidade desses fatores permite maiores controle e taxa de lucro. Há ainda as lutas pela

posse e por certo tipo de uso da terra no campo e na cidade, as demandas por moradia popular ou por lugares públicos nas cidades, etc. O espaço é igualmente uma das condições – e a expressão mais visível – do exercício da hegemonia do Estado, das empresas e da(s) classe(s) dominante. O poder se exerce no e com o espaço. A lógica do poder disciplinar, por exemplo, é a ordenação espacial: "A disciplina e, antes de tudo, a analise do espaço. É a individualização pelo espaço, a insersão dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório."4 Pode-se mesmo "ler" o poder através de sua dimensão espacial: o desenho urbano de uma cidade (especialmente se for planejada), o zoneamento, a monumentalidade de certos edifícios públicos (ou de empresas de grande porte), o nome de ruas ou praças, a estrutura fundiária no campo, etc., são expressões no espaço – e, portanto, observáveis e normalmente até cartografáveis – das relações de poder e dominação. Até na escala dos micro-espaços esse fato e perceptível. A organização espacial de um tribunal, por exemplo, manifesta uma certa concepção histórica de justiça com o lugar determinado do juiz, do réu, do promotor e do advogado, do público, etc. E uma sala de aula comum, com as carteiras dos alunos enfileiradas e voltadas para a "frente" (para a mesa do professor, para o quadro-negro), representa uma forma de organização do espaço que surgiu no final do século XVIII. Essa organização espacial

expressa (e ao mesmo tempo serve a) uma nova concepção de ensino: o sistema escolar contemporâneo da Revolução Industrial e da urbanização, da parcelarização e institucionalização do saber que se divide em conhecimentos (as "disciplinas" escolares). Como também do "lugar" preestabelecido da verdade (os órgãos oficiais e o seu representante, no caso o professor), que deve então ser apenas reproduzida e assimilada mas não engendrada na pratica educativa. Mas sem dúvida que a rebeldia de professores e alunos pode subverter esse arranjo espacial e implementar outras concepções de ensinoaprendizagem. Portanto, a organização, estruturação e construção do espaço via de regra manifesta ou expressa os interesses dominantes, em especial aqueles do Estado (principalmente dos mais poderosos) e do grande capital. Isso desde o nível dos micro-espaços até a escala planetária – na qual existe a globalização com uma (extremamente dinâmica e mutável) divisão internacional do trabalho, a compartimentação da superfície terrestre em Estados-Nações com as suas fronteiras e soberanias. E uma hierarquia, mesmo que provisória, formada pelas grandes potências mundiais e potências médias ou regionais, com suas respectivas áreas de influência. Contudo, as contradições também estão presentes no

espaço,

que

muitas

vezes

evidencia

interesses

populares que vingaram. Como também o tempo se expressa no espaço, com a convivência num mesmo local

de

objetos

Contradições

e

construções

ou

tensões

de

diferentes

entre

classes

e

épocas. grupos

dominantes, entre dominantes e dominados, entre Estados, entre facções do capital ou empresas, entre gêneros, entre etnias e/ou grupos culturais. No caso do espaço urbano das grandes cidades, por exemplo, com frequência temos de um lado os interesses imobiliários voltados para a lógica do lucro e, ao mesmo tempo (às vezes de forma conflituosa), o planejamento estatal que normalmente é norteado pelos reclamos de elites e/ou pela racionalidade do capital, ou eventualmente pressões populares ou por motivações eleitorais. De outro lado, surgem as ações populares mais organizadas ou em alguns casos mais espontâneas: as pressões sobre o planejamento, as ocupações de terrenos ociosos ou de edifícios sem uso permanente, a construção de favelas ou de ruas e habitações clandestinas, etc. E no meio rural, especialmente

no

caso

brasileiro,

é

frequente

a

contradição entre duas formas opostas de uso do solo e de regimes de propriedade: a capitalista, na qual a terra é valor de troca, é instrumento para a exploração do trabalho

alheio,

e

a

familiar,

na

qual

o

pequeno

proprietário (ou o posseiro) e a sua família usam a terra como meio de subsistência, sendo que seus ganhos não são lucros e sim ganhos do trabalho5. Malgrado as contradições sociais se manifestarem materialmente no espaço, não se pode no entanto esquecer que o espaço global da nossa época revela um

amplo

predomínio

das

relações

internacionais

de

dominação. A esse respeito, as palavras de um estudioso no assunto não deixam dúvida: "As classes atualmente no poder procuram por todos os

meios

servir-se

do

espaço

como

se

de

um

instrumento se tratasse. Instrumento com vários fins: dispersar a classe trabalhadora, reparti-la nos lugares designados para tal – organizar os diversos fluxos, subordinando-os às regras institucionais –, subordinar, conseqüentemente, o espaço ao poder – controlar o espaço e gerir de forma absolutamente tecnocrática a sociedade inteira. (...) Passa-se da produção das coisas no espaço à produção do espaço planetário, esta envolvendo e supondo aquela. Disso se depreende que o espaço se torna estratégico. Por estratégia entendemos que todos os recursos de um determinado espaço dominado politicamente servem de meios para apontar e alcançar objetivos na escala planetária As estratégias globais são conjuntamente econômicas,

científicas,

culturais,

militares

e

políticas.”6 Essa produção do espaço, esse espaço planetário unificado (mas prenhe de contradições) e fundamentalmente estratégico, não é algo eterno ou ahistórico. Foi o resultado de um processo no qual o capitalismo se mundializou e passou a existir na sua forma

plena

ou

industrial



ou

pós-industrial,

se

pensarmos na revolução técnico-científica iniciada em

meados dos anos 1970. E no qual o sistema capitalista e ocidental consolidou-se globalmente (mesmo que desigualmente) com a expansão econômico e em parte até

cultural

em

todos

os

quadrantes

da

superfície

terrestre. Não é qualquer sociedade que produz o espaço nesse sentido forte, que elabora uma segunda natureza de forma tão profunda e, principalmente, impactando toda a superfície terrestre. Apenas a sociedade capitalista realizou esse feito, em especial no seu estágio urbanoindustrial e tecnológico (com ou sem planificação), que afinal existe hoje praticamente em toda o mundo, mesmo que com desigualdades e particularidades, inclusive nas economias menos desenvolvidas e naqueles poucos Estados que ainda persistem com a retórica (e a prática extremamente repressiva) do "socialismo real". Essa redefinição e a reordenação capitalista do espaço-tempo, com o engendramento de uma temporalidade una para todas as sociedades, sempre foi uma unidade contraditória, bem entendido, pois relações de produção e processos produtivos diferenciados coexistem organicamente nesse movimento do capital. E a construção de de um espaço mundial unificado significou a tentativa de imposição do Mesmo, no qual existem somente diferenças, mas não alteridades, para todos os povos e regiões do globo. A alteridade, o(s) Outro(s), foram sendo progressivamente abolida pela unificação econômico-militar, pelo genocídio (em alguns

casos), ou pelo etnocídio (na maior parte dos casos). E també pela imposição do/pelo Estado – o poder político instituído e locus oficial de toda e qualquer atividade política. Com efeito, dois principais axiomas parecem guiar a expansão do capitalismo da Europa Ocidental para o restante do mundo a partir do século XV, ou, numa outra vertente do mesmo processo, a ocidentalização (mesmo que parcial e relativa) das demais culturas e civilizações. O primeiro deles é a valorização e a imposição do trabalho exaustivo, trabalho “produtivo" ou para o comércio (isto é, produção de valores de troca). E o segundo é o poder político instituído sob a forma de Estado: somente povos com Estado são considerados interlocutores válidos. Só a existência de um Estado – e, portanto, de uma soberania interna no território (a “violência legítima”, na expressão de Weber) e externa pelo reconhecimento como equivalente pelos demais Estados – possibilita o entendimento das sociedades como "civilizadas" e não mais como "primitivas". Mas se toda formação estatal é etnocidária, pois tende a dissolver o múltiplo no uno, somente com a sociedade capitalista o etnocídio de outras culturas, e até mesmo de algumas diferenças e particularidades no seu próprio interior, atinge graus extremos e nunca vistos anteriormente. Conforme as palavras de um antropólogo: "Toda organização estatal é etnocidária. Descobre-se, assim, no próprio âmago da substância do Estado, a

força de atração do Um, a vocação da recusa do múltiplo, o temor e o horror à alteridade. (...) Contudo, a prática etnocidária de abolir a diferença quando ela se torna oposição, cessa desde que a força do Estado não corra mais nenhum risco. Percebemos, por outro lado,

que

no

capacidade

caso

dos

etnocidária

Estados não

tem

ocidentais limites,

a é

desenfreada. O que contém a civilização ocidental, que a torna infinitamente mais etnocidária do que qualquer outra forma de sociedade? É o seu regime de produção econômica, justamente o espaço do ilimitado, espaço sem lugares no que diz respeito ao recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, seja ele liberal, privado, como na Europa do Oeste, ou planificado, de Estado, como [era] na Europa do Leste. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produção, é por isso mesmo a mais assustadora máquina de destruição. Raças, sociedades,

indivíduos;

espaço,

natureza,

mares,

florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser produtivo, de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade.”7 O

desenvolvimento

do

capitalismo

e

a

(re)produção do espaço não podem ser compreendidos sem ligações com o Estado. Desde a denominada acumulação primitiva, dos séculos XVI ao XVIII, processo deflagrador da produção e da sociabilidade capitalistas,

que o Estado vem se expandindo e multiplicando as suas funções. Sem dúvida que existiram ou existem momentos em que o Estado capitalista parece se enfraquecer, ou pelo menos diminui a percentagem dos recursos que arrecada frente ao PIB nacional. Foi o que ocorreu com a “onda neoliberal” iniciada nos anos 1970 nos Estados Unidos e no Reino Unido. Mas essa ideia de um “Estado mínimo”, nos dias atuais, é relativa e principalmente enganosa, pois produz apenas uma pequena diminuição em certos impostos com uma privatização de firmas estatais. Todavia, o que de fato ocorre é uma redefinição nas funções do Estado, que deixa de lado algumas atividades e se torna mais forte ainda em outras, tais como no setor policial-militar e na área de fiscalização. Já no caso do Brasil, ao contrário daqueles dois exemplos clássicos

de

políticas

neoliberais,

a

participação

do

orçamento público no PIB do país cresceu de 27% em 1990 para

cerca

de

34%

em

2019,

malgrado

algumas

privatizações de empresas estatais que foram realizadas nesse período. No Brasil nunca houve de fato a implementação de políticas neoliberais, como afirmam alguns que, a bem da verdade, estão mais preocupados em estereotipar adversários que disputam votos no mesmo espectro ideológico. Aqui, a apropriação estatal dos recursos da sociedade só prosseguiu sua expansão nas últimas décadas, sem nenhum interregno. Exceto em períodos de crise (como as que ocorreram nos governos Dilma e Bolsonaro), nos quais houve o retraimento do PIB

e portanto da arrecadação de impostos. Mas essa retraimento momentâneo não foi decorrência de nenhuma política neoliberal e sim de crises econômicas. Quanto às origens do Estado moderno, é sobejamente conhecida a importância da unificação territorial levada a cabo pelas monarquias absolutistas da época moderna, algo imprescindível para o fortalecimento da burguesia e do capitalismo. Unificação enfraquecimento dos poderes

que implicou feudais locais,

no no

estabelecimento de fronteiras e legislações protecionistas dentro do território sob a soberania estatal, com a imposição da moeda unitária, de taxações centralizadas, de melhoria das estradas para falicitar o comércio, etc. Isso

sem

falar

na

expansão

marítimo-comercial

dos

séculos XV e XVI, implementada pelos monarcas e financiada pelos banqueiros e comerciantes. Além da proteção de um mercado "nacional" pela fixação de uma política alfandegária comum e pelo controle das fronteiras, a ação estatal em prol da economia

capitalista

foi

intensa

e

essencial:

estabelecimento de regras que governam as relações sociais de produção internas à sua jurisdição. Isso desde obrigações fiscais até o controle da mobilidade geográfica da

força

de

proletarização

trabalho, desta,

e

além de

de

incentivos

normas

para

o

vários

à

trabalho

assalariado (ou para outros tipos de trabalho). O poder de taxação, que se ampliou enormemente a partir do século XVI e foi se tornando constante e principal fonte de renda

estatal, que afinal possui um grande efeito redistributivo, beneficiando certos grupos de pessoas e empresas, e penalizando outros. A repressão – e o disciplinamento por variados instrumentos (inclusive com a expansão do sistema escolar8) – da força de trabalho, buscando adequá-la à racionalidade da produção capitalista. A criação de infraestrutura – eletricidade, construção e pavimentação de vias de circulação, ferrovias, água encanada, etc., além de,

mais

recentemente,

construir

aeroportos,

lançar

satélites artificiais e instalar cabos submarinos para fins de comunicação –, que em geral serve primordialmente aos interesses do mercado, mas que também ocasiona melhorias no padrão de vida da população. Até Marx já havia observado que “o capitalismo em apenas um século produziu mais obras que todas as gerações humanas anteriores reunidas”, com expansão das comunicações, eletricidade, maior produtividade na agricultura e na indústria, etc.9 Ele só não conseguia enxergar – e nem poderia, pois em grande parte isso ocorreu após sua época – as inegáveis melhorias ocasionadas pela diminuição das taxas de

mortalidade geral e infantil, da elevação da

expectativa de vida, da maior escolarização da população em geral, do maior consumo de alimentos (a ponto de, já no final do século XX, a obesidade ter se tornado um problema muito maior que a fome ou a subnutrição), etc. Por fim, seja pela via do planejamento (no nível interno) ou da diplomacia (no nível externo), ou ainda via

manu militari, o Estado sempre impôs certos interesses econômicos fundamentais para a dinâmica do sistema capitalista. Dinâmica essa que não é predeterminada, mas dependente de tensões/conflitos entre grupos sociais: "A estrutura do capitalismo histórico foi tal que as alavancas mais eficazes para ajustes políticos foram as estruturas estatais(...) Portanto, não é casual que o controle, e se necessário a conquista, do poder do Estado foi o objetivo estratégico central de todos os grandes atores na arena política, ao longo da historia do capitalismo moderno."10 O Estado capitalista engendrou uma intensa militarização. Aliás, o poder militar, a violência e as guerras, fazem parte da expansão e mundialização do sistema

capitalista

e

constituem

elementos

imprescindíveis nesse processo. No período inicial ou de gestação do capitalismo, na chamada acumulação primitiva, o papel do militarismo foi determinante na conquista da América, na escravização de africanos, na desintegração da manufatura indiana com a imposição de uma política colonial para a Índia, além do genocídio praticado contra alguns povos que de alguma forma constituíam "empecilhos" para o domínio europeu e capitalista no restante do mundo. Com a eclosão da Revolução Industrial e a passagem do capitalismo comercial para o capitalismo pleno ou industrial, assiste-se a uma institucionalização e uma hipertrofia do militarismo. Este se torna um aparato privilegiado e permanente no seio do Estado tipicamente

capitalista, o Estado-Nação engendrado em especial no século XIX. O próprio surgimento das forças armadas permanentes, especialmente do exército como instituição e do militar como profissão institucionalizada e legitimada enquanto elemento imprescindível às funções estatais, ocorreu apenas com a construção dos Estados nacionais, sendo algo pós-napoleônico. Nenhuma sociedade anterior, nem mesmo Roma da antiguidade, teve essa máquina de destruição

que

instituições

se

aperfeiçoa

militares

constantemente,

permanentes

e

esses

essas

enormes

efetivos de soldados que permanecem mobilizados até mesmo

nos

períodos

de

paz.

Soldados

não

mais

mercenários, como era regra geral, e sim identificados com um Estado nacional, com uma “pátria” que não é mais é vista como o local de nascimento (como sempre havia sido) e sim como o território nacional. Ademais, a sociedade capitalista, especialmente sob a forma industrial, estruturou-se em inúmeros de seus aspectos a partir de modelos militares de organização. O próprio sistema de trabalho fabril, pelo menos na Primeira e na Segunda Revolução Industrial, foi claramente inspirado no exército. A rígida hierarquia e divisão do trabalho no interior da fábrica, as ordens de cima para baixo sem que o operário saiba (nem tenha o direito de perguntar) o porquê e o para quê delas, a uniformização de gestos e vestimentas, os horários prefixados e a disciplina exigida, etc., além de os operários servirem, tal como os soldados, de "bucha de canhão" ou instrumento

barato para os desígnios da produção ou da guerra. Foi por isso que Marx, que viveu no século XIX, denominou os desempregados e os trabalhadores, respectivamente, como "exército industrial de reserva" e "exército de mãode-obra na ativa". A competição ou a concorrência entre firmas capitalistas também manifesta essa influência militar: as "guerras comerciais" para conquistar espaços e clientelas, nas quais por vezes se faz uso da violência física, da espionagem, das pressões, da intimidação e da trapaça. As competições e os conflitos entre Estados, que algumas vezes são um subproduto da concorrência entre capitais (e vice-versa), revela igualmente essa militarização intensa da sociedade capitalista, na qual freqüentemente a força militar consolidou hegemonias econômicas. E não se pode esquecer da importância do militarismo para a acumulação (ampliada) do capital, algo que foi muito bem teorizado por Rosa Luxemburgo no início do século XX: "O militarismo tem uma função determinada na história do capital. Ajudou a criar e ampliar esferas de interesses do capital europeu em territórios não europeus e extorquir concessões de estradas de ferro em países atrasados, e a defender os direitos do capital europeu nos empréstimos internacionais. Enfim, o militarismo é uma arma na concorrência dos países capitalistas, na luta pelo domínio de territórios de civilização não-capitalista. O militarismo tem ainda

outra função importante. De um ponto de vista puramente econômico, ele é para o capital um meio privilegiado de realizar mais-valia; em outras palavras, é um campo de acumulação. (...) Para os fabricantes de canhões, fuzis e outros materiais de guerra, a existência do exército é indubitavelmente proveitosa e indispensável. É provável que o desaparecimento do sistema de paz armada significasse a ruína para os Krupp. Praticamente, sobre a base do sistema de impostos indiretos, o militarismo desempenha estas duas funções: assegura tanto a manutenção do órgão de dominação capitalista – o exército permanente – como a criação de um magnífico campo de acumulação para o capital. Por outro lado, o poder de compra da grande massa de consumidores, concentrado sob a forma de pedidos de material de guerra feitos pelo Estado, não corre o perigo das arbitrariedades, das oscilações subjetivas do consumo individual; a indústria de armamentos será, sem duvida, de uma regularidade quase automática, de um crescimento rítmico."11 A autora supracitada escreveu essa obra em 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Assistia-se então um grande aumento nos gastos militares em especial na Alemanha, onde ela vivia. Mas esses gastos cresceram enormemente após essa guerra, nos anos 1930, tendo sido um dos motivos que fez com que a economia

alemão

se

recuperasse

da

grave

crise

econômica e social pela qual passou. Mas esse novo fortalecimento militar alemão, numa escalada bem maior que o anterior, num país que passou a ter um regime totalitário, levou a aventuras expansionistas (e a atos genocidas) que conduziram à Segunda Grande Guerra. Calcula-se que 20 milhões de pessoas morreram na primeira grande guerra, e quase 80 milhões na segunda. Mas a guerra, momento coroador do militarismo, também produz (ou aperfeiçoa e expande) inovações tecnológicas que depois se propagam para a economia civil. Na Primeira Guerra houve a invenção e/ou aperfeiçoamento dos relógicos de pulso, lâmpadas ultravioletas, zíper, raio X portátil, sonar, gerador, máscaras de gás, fertilizantes industriais, os primitivos drones, zeppelin, o controle do tráfego aéreo e a comunicação entre pilotos. E na Segunda

Guerra

Mundial

tivemos

a

invenção

do

computador, do nylon, do helicóptero, do foguete, dos dispositivos

de

visão

noturna,

do

aerossol,

das

metafetaminas, da fita adesiva, do radar, da borracha sintética, aperfeiçoamento dos aviões e dos antibióticos, etc. Isso tudo mostra que o militarismo, como enfatizou Rosa Luxemburgo, é de fato um importante campo para a acumulação de capital. Dessa

forma,

capitalismo,

Estado

nacional,

militarização e construção do espaço na escala mundial foram

elementos

coevos

e

interligados.

O

desenvolvimento da sociedade capitalista implicou numa redefinição e instrumentalização do espaço: passou-se do

espaço como valor de uso, como natureza (e basicamente primeira natureza), onde o homem vive e da qual é parte integrante, para o espaço construído, tornado mercadoria e claramente funcional. Cada parcela do espaço passa a ter funções próprias e insere-se tanto na divisão territorial do trabalho quanto na organização material do exercício da dominação. No nível planetário o capitalismo engendrou um espaço mundial unificado, no qual se destaca um "centro" e uma (ou algumas) "periferia". Embora essa geometria na escala mundial nunca tenha sido fixa e permanente. Sempre ocorreram ou podem ocorrer transformações históricas com redefinição do centro e das periferias. Antigas acabaram

potências ficando

econômicas a

reboque,

e tais

político-militares como

Portugal,

Espanha, Países Baixos e mais tarde, já nas últimas décadas

do

século

XIX,

a

Inglaterra.

E

outras

despontaram na liderança – os Estados Unidos, em especial a partir da segunda metade do século XX, embora hoje tenha uma predominância cada vez menor em função do maior crescimento de outros centros de poder. Além existiram

de áreas centrais e periféricas, sempre casos intermediários e no fundo essa

organização espacial das relações de poder entre Estados na escala mundial é dinâmica e inerentemente instável, mesmo que eventualente dure décadas ou mais de um século. Os Estados centrais – ou as economias centrais –,

deixando de lado suas origens históricas e as suas diferenças, costumam ser caracterizados de duas formas principais.

Seriam

áreas

que

recebem

parte

do

"excedente econômico" produzido na(s) periferia(s) – esse é o cerne das explicações alicerçadas na teoria leninista do

imperialismo.

Ou

seriam

sociedades

com

níveis

educacionais e tecnológicos mais elevados, portanto, com maior produtividade do trabalho e padrões de vida mais elevados



numa

outra

forma

de

explicação,

que

prescinde da categoria imperialismo. A(s) periferia(s), pela sua vez, pode(m) ser vista como um espaço extremamente heterogêneo, no qual existem

"patamares"

ou

graus

diversos

de

industrialização, de volume e natureza do comércio externo, de acesso da população a bens e serviços sofisticados, etc. São constituídas pelas sociedades nas quais via de regra há um relativo atraso econômico com níveis salariais bem mais baixos que aqueles vigentes no centro,

além

de

consequentemente

uma da

carência plena

de

vigência

democracia dos

e

direitos

humanos. Justamente aqui existe uma enorme diferença de pontos de vista: para alguns, as economias periféricas são exploradas e necessárias para o desenvolvimento dos países centrais, sendo que a principal razão para o seu atraso seria externa. Já para outros as economias mais atrasadas

no

desenvolvimento

geral das

pouco

contribuiriam

áreas

centrais.

para

o

Esse

desenvolvimento teria sido produzido essencialmente por revoluções tecnológicas que ampliaram a produtividade do trabalho. E o menor desenvolvimento decorreria essencialmente de seus entraves internos – poder público autoritário e ineficiente, precário sistema escolar com baixo nível médio educacional e de produtividade do trabalho, elites corruptas e com interesses imediatistas, etc. No capítulo 4 retomaremos com maiores detalhes esta importante questão. Esse espaço mundial possui enormes diferenças e desigualdades, que são bem maiores do que as que existiam durante séculos ou milênios, antes da Revolução Industrial. Existem regiões do planeta que há muito já estão no século XXI e outras que ainda se encontram no século XIX, no estágio da Primeira Revolução Industrial – ou às vezes até na Idade Média, como o Afeganistão sob o regime fundamentalista do Taliban. Existem nações cuja expectativa média de vida é de 83 ou 84 anos (Japão, Suíça, Hong Kong, Singapura, etc.) e outros nos quais essa esperança de vida é de apenas 52 ou 54 anos (República Centro Africana, Chade, Lesoto, Nigéria, etc.). Seriam essas disparidades geradas por uma lógica única, tal como apregoam aqueles que insistem no imperialismo e no sistema mundial? Ou pelo entrecruzamento de inúmeras lógicas ou estratégias, nas quais até o acaso teve o seu papel? Existiria de fato apenas uma (ou algumas, mas interligadas e sendo partes complementares do mesmo processo) razão para o

desenvolvimento de certas áreas e o atraso de outras, ou, pelo contrário, haveria uma série de processos distintos e relativamente autônomos? Acreditamos que essa é uma questão

central

para

qualquer

explicação

sobre

as

desigualdades internacionais. De um lado existem aqueles que detectam uma única lógica ou processo explicador, mesmo que com variações interligadas. Esse processo seria o sistema capitalista mundial ou o imperialismo – isto é, a exploração das áreas

periféricas

como

desenvolvimento

das

exploração

ocasionado

daquelas.

teria Ou,

mais

pré-condição

economias o

para

centrais.

o Essa

subdesenvolvimento

recentemente,

enfatiza-se

a

“globalização neoliberal”, que no fundo nada mais seria que a nova roupagem do imperialismo. Por outro lado, existem aqueles que encontram lógicas ou processos diferenciados, que variam muito de acordo com o caso, com a época ou com a região do globo: a mentalidade calvinista e a imigração européia em massa nos Estados Unidos, o peso da herança católico-inquisisionista e da burocracia ibérica na América Latina, a importância da cultura confucionista e da educação intensiva no Japão, na China e nos “tigres asiáticos”, a influência da tradição étnico-tribal e das religiões que desvalorizam a mulher e a educação, em partes da África e do Oriente Médio, etc. Centro e periferia, ou desenvolvimento e subdesenvolvimento, no interior da teoria do imperialismo e seus seguidores, seriam produtos diferenciados (e

imbricados) de uma mesma lógica, do processo de acumulação de capital ao nível mundial. Nas palavras de dois importantes arautos dessa visão: "A economia mundial constituída é uma categoria produzida pela história. É a economia mundial na fase do imperialismo. É a economia mundial na qual, através do jogo da divisão internacional que se impõe, as relações mercantis dominam. (...) O Estado é o lugar

onde

se

vai

cristalizar

a

necessidade

de

reproduzir o capital em escala internacional. É o lugar de difusão das relações mercantis e capitalistas, difusão

necessária

à

realização

da

divisão

internacional do trabalho. É o lugar por onde transitará a violência necessária a que ela se realize, já que ele e o elemento e o meio que tornam possível uma tal política. ( ... ) Assim compreendida, a economia mundial constitui um todo em movimento. As relações de dominação permanecem, mas se modificam. A política econômica de um Estado da periferia pode assim tentar se adaptar às transformações ocorridas na divisão internacional do trabalho, influir em tal divisão. Desse modo, ela é ao mesmo tempo a expressão de uma divisão internacional do trabalho e de uma tentativa para inverter tal divisão. A economia mundial e vital para o prosseguimento do processo de acumulação do capital no centro, quando esse último atinge uma certa fase do desenvolvimento das forças produtivas. Essa fase é a do imperialismo. Chamamos

a economia mundial que atingiu essa fase de economia mundial constituida. A partilha do mundo é efetuada entre as principais potências do centro. A economia de exportação se põe na ordem do dia. A difusão das relações mercantis substitui a economia de pilhagem. Os

mecanismos

de

assalariamento

substituem

a

escravidão.”12 Introduzimos assim a problemática do imperialismo, categoria que na tradição marxista-leninista expressa a política expansionista do capitalismo num certo momento de sua historia. Momento em que a concentração e a centralização do capital, na Europa Ocidental especialmente, já havia atingido graus elevados (daí o surgimento de cartéis e trustes) e se inicia uma forte exportação de capitais para as áreas periféricas. E há também a partilha e colonização da África e da Ásia – a América já havia se descolonizado, mas a imensa maioria das economias nacionais do continente era constituída por neocolônias. Em outras palavras, pode-se dizer que o imperialismo remete à constituição de uma economia capitalista mundial – e não apenas mercado mundial, que já existia desde o século XVI –, engendrada a partir do final do século XIX. Seria o momento em que a relação de trabalho tipicamente capitalista, o assalariamento, começa a ganhar terreno nos países periféricos, apesar de que ainda subsistem (ou até se reproduzem) relações não capitalistas, só que agora subordinadas à acumulação do capital13.

Imperialismo, pelo menos na tradição marxistaleninista, remete também à partilha do globo entre as potências econômico-militares capitalistas, processo contraditório que deu origem a inúmeras guerras, das quais a Primeira Guerra Mundial (1914-18) foi a que mais suscitou polêmicas entre os principais teóricos marxistas da época, que no final das contas foram os forjadores da questão teórico-política do imperialismo. Iremos, no próximo capítulo, fazer uma releitura crítica da problemática do imperialismo. Uma leitura que procura contextualizar essa construção teórica – vista portanto como constructo, e não como “fato” ou processo inquestionável como sugerem vários autores. Uma leitura que visa destrinchar o(s) sujeito(s) que construiu essa categoria e as suas motivações. Iremos também analisar as tentativas de (re)atualizar essa categoria frente às mudanças históricas que a colocaram em xeque. Acreditamos que esse labor é necessário para a construção de uma teoria que busque explicar a realidade mundial de nossos dias que seja de “esquerda” no sentido de almejar maiores liberdades ou direitos democráticos, mas que não compartilhe a visão panfletária dos que tentam a todo custo manter – na base de “marteladas”, como diria Nietzsche – a categoria imperialismo como lógica explicadora do ordenamento geopolítico mundial.  

Cap. 2 – O IMPERIALISMO COMO QUESTÃO  

2.1 – O ponto de vista dos clássicos O engendramento das ideias não pode ser dissociado do sujeito – individual ou coletivo – que as forjou (ou reelaborou) e do contexto histórico-social onde ele atua e do qual é parte integrante. O imperialismo nos fornece um exemplo meridiano desse fato. Normalmente se afirma, no interior do marxismo-leninismo, que a teoria do imperialismo somente foi sistematizada no início do século XX porque nessa ocasião as “condições objetivas” necessárias para tal passaram a existir de forma plena: o alto grau de concentração e centralização dos capitais, dando origem aos trustes e cartéis; a fusão do capital bancário com o industrial, com o surgimento de um novo tipo de capital financeiro; a partilha e colonização da África e da Ásia pelas potências européias; a exportação de capitais dos países centrais para a periferia do mundo capitalista, etc. Isso é uma meia verdade. De forma mais apropriada, podemos dizer que a intensa (e progressiva) valorização teórico-politica da problemática do imperialismo nessa época, no interior das correntes de esquerda marxista, deveu-se fundamentalmente à luta política, a estratégias de grupos ou partidos. Não se pode desvincular a teoria do imperialismo dos debates sobre o significado das guerras e das nações. Imperialismo e caminhos (ou potenciais) para a revolução socialista são elementos interligados nesse momento histórico –

especialmente

entre

1910

e

1917



no

qual

essa

problemática ganha terreno e torna-se fundamental para a compreensão do (pretenso) destino.

capitalismo

mundial

e

do

seu

A interpretação de Lênin sobre o imperialismo acabou prevalecendo a partir de 1917, tornando-se hegemônica no marxismo e até mesmo no pensamento de esquerda em geral. Aliás, a própria ênfase no imperialismo como categoria chave para a explicação do capitalismo mundial ou das desigualdades internacionais já revela um procedimento leninista. Em Hilferding, Rosa Luxemburgo ou Kautsky, por exemplo, não existiu uma supervalorização dessa questão e sequer alguma "teoria do imperialismo" articulada, mas tão somente o uso da palavra imperialismo como auxiliar na explicação da mundialização ou expansão espacial do capitalismo. O que neles aparece com mais vigor é a determinação do capital financeiro (em Hilferding), a busca das condições da reprodução ampliada do capital (em Rosa Luxemburgo) e uma interpretação do capitalismo e sua expansão que possa alicerçar a opção política social-democrata pela democracia parlamentar como caminho válido para uma transição gradativa até o socialismo (em Kautsky). Com o leninismo surge de fato uma teoria do imperialismo, que pretensamente viria preencher uma lacuna na explicação marxista sobre o capitalismo na escala mundial. Mas que, na realidade, constitui parte de um redirecionamento do marxismo: é à luz do partido

bolchevista, do “centralismo democrático” portanto, e da ideia do "elo mais fraco" – isto é, a revolução social podendo ocorrer primeiramente em nações capitalistas menos desenvolvidas, mas onde a rapina, a exploração burguesa e suas sequelas fossem mais agudas –, que se deve compreender a teoria (leninista) do imperialismo. Primeiras décadas do século XX: assiste-se neste momento histórico a uma agudização da questão das nacionalidades. A Segunda Internacional (1889-1914) vê crescer em seu seio os debates e as divergências políticas que têm por pano de fundo o "pesadelo do nacionalismo".14 A par disso, e de forma complementar, multiplicam-se as guerras por territórios e delimitação de suas fronteiras, por colônias, por injunções separatistas ou nacionalistas. O movimento operário, tão intenso no século XIX (recorde-se de 1830, 1848, 1871...), a ponto de Marx ter escrito inúmeras vezes sobre o caráter "iminente" da revolução social proletária que daria fim ao capitalismo (veja-se, por exemplo, O 18 Brumário, escrito em 1852), ressurgia em cena de forma não tão "pura" ou aparentemente unívoca: com frequência ele se misturava e se contaminava com questões étnicas e nacionais. A par disso, existe o fato de que os dois grandes clássicos do marxismo, Marx e Engels, há muito que já haviam deixado o mundo dos vivos, e aquele que foi durante algum tempo considerado como herdeiro e principal continuador desse pensamento, Kautsky, começava então a ser questionado pela sua tendência

social-democrata, pela sua crença na democracia parlamentar e na possibilidade de uma substancial melhoria do padrão de vida dos trabalhadores nos quadros mesmo do capitalismo15. Daí, portanto, o fato de que os debates, as interpretações e os escritos a respeito da problemática do imperialismo, no interior do pensamento marxista,

sempre

terem

se

referenciado

direta

ou

indiretamente à questão da via socialista, do potencial revolucionário contido, mesmo que contraditoriamente, nas guerras expansionistas, nas lutas e conflitos nacionalistas ou étnicos, na dominação e opressão dos países periféricos. Existem outras leituras ou teorias sobre o imperialismo, principalmente as liberais, mas não as levamos em conta nesta obra. Isso porque elas, além de não terem alcançado grande difusão nos meios populares e mesmo nos acadêmicos, partem de outras pressupostos: nelas, por exemplo, não há uma ligação orgânica entre imperialismo e expansão capitalista e consequentemente esse conceito não é o principal explicador das desigualdades internacionais.  

Marx, Engels e o colonialismo Recordemos, brevemente, o pensamento dos fundadores dessa tradição discursiva. Em Marx e Engels não existe uma teoria (ou mesmo qualquer preocupação) a respeito do imperialismo. Talvez isso se deva, parcialmente, às condições históricas “objetivas” de sua época, isto é, o grau de desenvolvimento do capitalismo

e a natureza de sua mundialização. Isso, contudo, é bastante questionável. Marx viveu ate 1883 e Engels até 1895, ocasião em que não apenas a concentração e a centralização do capital nas metrópoles capitalistas atingiram graus elevados, com o surgimento de monopólios e grandes empresas (além de já ter sido deflagrado o processo de colonização da África e da Ásia), como também se empregava desde a década de 1870, nos meios liberais, o termo "imperialismo" para se designar a política externa da Inglaterra vitoriana. E certos autores (Hirschman, Chatelet e Pisier-Kouehner, entre outros) argumentam, de forma bem fundamentada, que desde pelo menos 1821 pode-se encontrar em Hegel uma teoria (econômico-política) do imperialismo, em certos aspectos semelhante a ideias desenvolvidas posteriormente tanto por Rosa Luxemburgo quanto por Lênin, que Marx teria lido mas não retomou porque os seus objetivos e pressupostos eram essencialmente diversos.16 Mas o fundamental realmente é que a démarche, o procedimento teórico-metodológico de Marx privilegia a lógica das coisas, o capitalismo como modo de produção com as suas determinações essenciais, enquanto realidade vista em sua forma “pura” ou isolada analíticamente. O espaço como expressão material e disposição/relação entre os fenômenos não tem grande importância (a não ser sob a forma de algumas referências esparsas) nesse tipo de construção teórica.

Por vezes se especula sobre como Marx teria abordado o capitalismo mundial no (hipotético) volume IV de O Capital: aí ele teria de se defrontar com a questão das nações e dos Estados, do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no plano internacional (e interregional). Parece bastante provável, no entanto, que dificilmente esse clássico iria desenvolver algo semelhante a qualquer "teoria do imperialismo". O mais coerente com as suas premissas – os países mais desenvolvidos, na ótica capitalista, como candidatos mais imediatos à revolução social, e nunca os menos desenvolvidos, pois um alto grau de evolução do modo de produção capitalista é tido como uma condição sine qua non para o socialismo, etc. – seria uma interpretação do tipo "acumulação à escala mundial" ou "relações e imbricações de modos de produção e formações econômico-sociais sob a dominação do capitalismo mundial". Há em Marx e Engels, evidentemente, refêrencias e escritos a respeito da expansão e mundialização do capitalismo a partir da Europa Ocidental. Mas o objeto tematizado por eles não é o imperialismo e nem mesmo o nacionalismo. O que eles privilegiam, a esse respeito, é a "questão colonial". O ponto de vista subjacente a esses textos sobre a dominação britânica na Índia, sobre o expansionismo territorial norte-americano em relação ao México, sobre os conflitos militares colonialistas da Inglaterra frente à China ou à Pérsia, sobre a dominação francesa na Argélia a partir de 1830, etc., é normalmente

o de considerar o desenvolvimento capitalista das forças produtivas como algo necessário e positivo historicamente (pois gera as condições para a eclosão da revolução social), mesmo que ocasione certos problemas de violência e mortes. Existe aí um elemento explicador que é o internacionalismo como princípio: "Proletariado de todo o mundo, uni-vos" é a frase (e palavra-de-ordem) conclusiva do Manifesto de 1848; e "Os proletários não têm pátria" foi outra expressão sarcástica e lapidar utilizada por Marx num artigo jornalístico posterior. Não se trata contudo de um simples internacionalismo e sim de um enfoque que parte da lógica do capital (o "reino da mercadoria" e sua generalização com contradições) e vê nas suas realizações um progresso inequívoco,

uma

pré-condição

indispensável

para

se

caminhar do "reino da necessidade" para o "reino da liberdade". Seria isso um etnocentrismo ou até um eurocentrismo? Num certo sentido sim; todavia, "Não se trata tanto do eurocentrismo, uma vez que Marx reconhece o deslocamento do centro de gravidade do capitalismo



que

transfere,

portanto,

o

centro

da

revolução – para a Alemanha e, eventualmente – afirma –, para os Estados Unidos e a Rússia no século XX; trata-se, sim, de capitalcentrismo, em que

converge

toda

a

evolução humana."17 A questão das nacionalidades, dessa forma, não tem importância em si mas apenas na perspectiva da "história universal", de cada caso concreto de lutas

separatistas ou por autodeterminação nacional poder auxiliar ou atrapalhar o “sentido da história” que seria corporificado pela classe proletária. Apesar da inegável riqueza e complexidade das ideias de Marx e Engels (além de suas aporias e reviravoltas), não se pode evitar, no que diz respeito a esta questão, a impressão de um certo "darwinismo nacional", como se houvesse um processo de "seleção dos povos" mais aptos a realizar os desígnios da história e da revolução social. Dois autores assinalaram esse fato: "Na perspectiva da história universal, para Marx e Engels, a questão nacional não é mais que um problema subalterno cuja solução virá automaticamente com o curso do desenvolvimento econômico, graças às correspondentes transformações sociais; as nações viáveis superarão todos os obstáculos, ao passo que as relíquias de povos serão condenadas a desaparecer."18 Num artigo publicado no jornal A Gazeta Renana, de 1843, Engels elogia os Estados Unidos por terem arrebatado a Califórnia aos "preguiçosos mexicanos"; que importância pode ter a "independência" de uns tantos californianos e texanos de origem espanhola, ou mesmo as suas agruras em "injustiça e outros princípios morais", comparado com as obras – grandes cidades, linhas marítimas, estradas de ferro, exploração das minas de ouro – que os norte-americanos estão implementando em poucos anos, argumentou Engels19. Marx, em artigo que publicou em 1853 no jornal New York Daily Tribune, sobre o domínio britânico sobre a Índia e a Birmânia, reforça a

visão de Engels. Juntamente com um notável conjunto de frases preconceituosas em relação aos povos asiáticos e à natureza, que só serviria para ser subjugada pela ação humana,

ele

assinala

que

no

fundo

a

“missão

progressista” britânica na região atendia ao sentido da história, ou seja, realizava uma etapa necessária, a modernização de regiões atrasadas ou pré-capitalistas, para a posterior construção do socialismo. Ele conclui o seu artigo da seguinte forma: "Os efeitos devastadores da indústria inglesa no que diz respeito à Índia (...) são palpáveis e aterradores. Mas não devemos esquecer que eles são apenas os resultados orgânicos de todo o sistema de produção tal como este é presentemente constituído. Esta produção baseia-se no domínio todo-poderoso do capitalismo. A centralização do capital é essencial para a sua existência enquanto potência independente.

A

influência

destruidora

desta

centralização sobre os mercados do mundo se revela, na mais gigantesca escala, as leis orgânicas inerentes à economia política atualmente em vigor em todas cidades civilizadas. O período burguês da história tem por missão criar a base material do mundo novo, por um lado com a intercomunicação universal baseada na dependência mútua da humanidade

e

com

intercomunicação

e,

desenvolvimento

das

por

os

meios

outro

forças

de

lado,

dessa com

produção

o do

homem e a transformação da produção material num domínio científico dos elementos naturais. A indústria e o comércio burgueses criam estas condições materiais para o mundo novo, do mesmo modo

que

as

revoluções

geológicas

criaram

a

superfície da terra. (...) Ora, por mais repugnante que possa ser para o sentimento humano testemunhar a dissolução

e

industriosas

desorganização organizações

destes

sociais

milhões

de

patriarcais,

não

devemos nos esquecer de que estas idílicas comunidades de aldeia, por inofensivas que possam parecer,

sempre

constituíram

a

sólida

base

do

despotismo oriental. Não devemos nos esquecer de que

estas

contaminadas escravatura,

pequenas pelas de

que

comunidades

distinções

de

subordinavam

estavam

castas o

e

pela

homem

às

circunstâncias externas (...) criando assim um estupidificador culto à natureza que exibe a sua degradação no fato de o homem, o soberano da natureza, cair de joelhos em adoração de Hanuman, o macaco, e de Sabbala, a vaca. É verdade que, ao causar uma revolução social no Indostão, a Inglaterra foi movida apenas pelos mais vis interesses e foi estúpida na sua maneira de os impor. Mas não é esta a questão. A questão é: pode o homem cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental no estatuto social da Ásia? Se não, quaisquer que tenham sido os crimes da Inglaterra, ela foi o

instrumento

inconsciente

da

história

para

originar essa revolução."20  

As leituras de Hilferding, Luxemburgo e Kautsky No marxismo da Segunda International emerge uma gradativa reproposição dessa temática. Da "questão colonial" passa-se à questão das nacionalidades, das guerras e do imperialismo. De um lado isso se explica pelas transformações sociais que ocorriam em ritmo acelerado desde o final do século XIX. A notável escalada da anexação de colônias por parte das potências europeias, que viviam em clima de intensa rivalidade. As mudanças e redefinições no mapa político europeu e mundial; a difusão dos "Estados-Nações" – forma politicoterritorial com um evidente significado econômico e ideológico, tornada vitoriosa pela hegemonia burguesa – como principio organizativo para todos os "povos civilizados", ou que aspirassem a sê-1o. E as frequentes guerras entre os Estados nacionais, com as confusões e polêmicas que geravam no movimento operário. De outro lado há a influência de uma situação paradoxal: o marxismo do início do século XX ao mesmo tempo em que conquista a maior parte do movimento socialista e operário internacional, tornando-se aí praticamente hegemônico, também conhece uma crescente desagregação, passando a ser cada vez mais plural. Pode-se dizer que o pensamento de Marx e Engels foi uma respeitável tentativa de teorizar e expressar o

movimento operário de sua época, a partir do qual eles extraíam lições e até realizavam autocríticas. O marxismo subsequente em boa medida acaba por se tornar numa doutrina, fato que ajuda a explicar tanto sua crescente popularização quanto sua mixórdia teórica. Ao se difundir por todos os cantos do planeta (até em lugares onde não havia nada que lembrasse, mesmo remotamente, um movimento operário autêntico), e ao se tornar envoltório fundamental para quase todas as práticas e retóricas autodenominadas revolucionárias, o marxismo do finalzinho do século XIX e das primeiras décadas do século XX acaba por ficar fortemente impregnado por uma ideologia nacionalista. É nesse momento que a teoria do imperialismo vem à tona, adquire uma certa autonomia e é supervalorizada como instrumento explicador do capitalismo mundial e dos caminhos da revolução socialista. O imperialismo como objeto de estudos não tem suas origens no marxismo e sim no pensamento liberal e em teóricos que primaziam o Estado como potência na análise do social. As teorias e interpretações sobre o imperialismo, existentes desde o século XIX (apesar de se referirem, em alguns casos, a exemplos de imperialismo na antiguidade: em Atenas, em Roma, etc.), em geral dão uma ênfase na dominação militar-econômica de um Estado sobre outro(s). Não há aí um enfoque de classes sociais, um ponto de partida na exploração/alienação dos trabalhadores. O Estado é o sujeito dessa dominação

imperialista. É sabido que tal ótica não é compatível com os escritos de Marx: este, mesmo enaltecendo a expansão e o desenvolvimento capitalista (a "missão civilizatória" burguesa, como afirmava), chegou a escrever sobre a transferência de riquezas dos "países menos desenvolvidos para os desenvolvidos", se bem que, como argumentou, essa diferença em termos de trabalho, esse excedente transferido internacionalmente, "seja metido à algibeira por uma classe particular". Não pode haver, portanto, dentro da lógica dos textos de Marx e Engels, uma exploração entre países ou entre regiões; o que há é tão-somente a exploração de classes, mesmo com a transferência internacional (ou inter-regional) de maisvalia. Nesses termos, para Marx a libertação nacional ou luta por um princípio abstrato de autodeterminação das nações não é algo necessariamente progressista ou sequer parte do ideário básico do proletariado. Por esse motivo, ao se inserir uma teoria do imperialismo no corpo teórico do marxismo, dificilmente se consegue evitar a ambiguidade, a coexistência conflitante de premissas antitéticas. O famoso livro de Lênin Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo, de 1916, constitui o exemplo mais representativo (e de maior vigor político-ideológico) dessa aporia. E a "resolução" disso, com o abandono definitivo da ótica de classes em favor de uma certa ideologia nacionalista (apropriada para uma burocracia que controle ou almeje controlar um Estado totalitário)

encontra-se nas ideias stalinistas sobre "o socialismo num só país" e sobre a União Soviética como "pátria" do movimento socialista mundial e "baluarte da luta contra o imperialismo". Hilferding, Rosa Luxemburgo e Kautsky, procuraram enfrentar as novas realidades de sua época, tanto do capitalismo mundial quanto do movimento socialista, mantendo-se o máximo possível fiéis ao enfoque de classes. O pioneiro nas análises marxistas que valorizam a questão do imperialismo foi Hilferding, que em 1910 redefiniu capital financeiro e a partir dele explicou o imperialismo e a estratégia proletária apropriada para essas novas condições. Em suas palavras: "O capital financeiro desenvolveu-se com o desenvolvimento da sociedade anônima e alcança o seu apogeu com a monopolização da indústria. O rendimento industrial ganha um caráter seguro e contínuo; com isso, a possibilidade do investimento de capital bancário na indústria ganha extensão cada vez maior. (...) Com a formação dos cartéis e trustes, o capital financeiro alcança seu mais alto grau de poder, enquanto o capital comercial sofre sua mais profunda degradação. Completou-se um ciclo do capitalismo. No início do desenvolvimento capitalista, o capital monetário, como capital de usura e comercial, desempenha um papel importante tanto para a acumulação de capital como também na

transformação da produção artesanal em capitalista. Mas aí tem início a resistência dos capitalistas `produtivos', isto é, dos capitalistas que obtêm lucro, portanto dos industriais e comerciantes, contra os capitalistas do juro. O capital usurário fica subordinado ao capital industrial. (...) O poder dos bancos cresce, eles se tornam fundadores e, finalmente, os soberanos da indústria, cujo lucro usurpam como capital financeiro. O hegeliano poderia falar em negação da negação: o capital bancário foi a negação do capital de usura e ele, por sua vez, é negado pelo capital financeiro. Chamo de capital financeiro o capital bancário, portanto, o capital sob a forma de dinheiro que, desse modo, é na realidade transformado em capital industrial. É evidente que com crescente concentração da propriedade, os proprietários do capital fictício, que dá o poder aos bancos, e os proprietários do capital que dá o poder às indústrias, são cada vez mais os mesmos grupos."21 É nos quadros dessa crescente expansão e monopolização do capitalismo que surge, para Hilferding, a questão do imperialismo, definido como “a política de expansionismo

comandada

pelo

capital

financeiro”,

conforme as suas palavras: "Os postulados de uma política expansionista revoluciona toda a concepção de mundo da burguesia. (...) Os antigos livre-comerciantes acreditavam no livre-comércio não somente como a mais

correta política econômica mas também como ponto de partida para uma era de paz. O capital financeiro perdeu há muito tempo essa crença. Não acredita na harmonia dos interesses capitalistas. No lugar do ideal humanitário irrompe o ideal do poder e da força do Estado. Desta forma, nasce a ideologia do imperialismo como superação dos velhos ideais liberais."22 Portanto, o travejamento do imperialismo como política (e ideologia) de expansão territorial e domínio sobre

povos-nações,

repousa

no

fortalecimento

(e

"captura", pelo capital financeiro) do Estado e na sua consequente

ação

político-militar-econômica

de

criar

condições e garantias para a dominação e os lucros das grandes empresas no exterior, notadamente nas regiões ou países subjugados pelo expansionismo agressivo da política imperialista. O crescimento da geração de maisvalia é o alicerce fundamental nessa explicação, estando intimamente ampliação

ligado do

à

espaço

exportação

de

econômico

capitais das

e

à

potências

capitalistas: "A sociedade anônima e a organização desenvolvida de crédito fomentam a exportação de capital e nisso, modificam

a

imigração

do

empresário.

natureza

(...)

capital

desta

ao

possibilitar

independentemente

Entendemos

por

exportação

a do de

capital a exportação de valor destinado a gerar maisvalia

no

exterior.

Somente

se

pode

falar

em

exportação de capital quando o capital empregado no

exterior permanece à disposição do país investidor e quando os capitalistas nacionais podem dispor da mais-valia produzida por esse capital no estrangeiro. Para a exportação de capital é imperativa a diversidade da taxa de lucro; a exportação de capital é o meio para compensação das taxas de lucro nacionais. O nível do lucro depende da composição orgânica

do

capital,

isto

é,

do

nível

de

desenvolvimento capitalista. Quanto mais avançado for este, tanto menor será a taxa geral de lucro. [Nos países periféricos ou menos desenvolvidos] o lucro do empresário é maior porque a força de trabalho é extraordinariamente barata, e sua menor qualidade é compensada

por

uma

jornada

de

trabalho

exorbitantemente longa. Se a exportação de capital nas suas formas desenvolvidas é realizada pelas esferas capitalistas cuja concentração é mais avançada, a exportação acelera retroativamente o poder e a acumulação dessas esferas. Portanto, a política [imperialista] do capital financeiro persegue três objetivos: primeiro, a criação do maior espaço econômico possível. Segundo, este é fechado pelas muralhas do protecionismo contra a concorrência estrangeira. Terceiro, converte-se assim o espaço econômico

em

área

de

exploração

para

as

associações monopolistas nacionais."23 A conclusão de Hilferding surge no último capítulo da obra, mas é possível de ser deduzida desde as

primeiras

linhas.

Uma

conclusão

praticamente

padronizada pelos teóricos da Segunda Internacional, podendo ser encontrada com ligeiras nuanças tanto em Rosa Luxemburgo quanto em Bernstein, Bukharin, Otto Bauer e outros, que sempre tratavam da questão das nacionalidades ou do imperialismo sob um ponto de vista do proletariado europeu. Tal conclusão é que a difusão do capital financeiro favorece a tomada do poder pela classe proletária – dos países desenvolvidos, é claro. Nesse sentido, Hilferding argumenta e conclui que: "De acordo com sua tendência, o capital financeiro significa a criação do controle social da produção. Mas trata-se de uma socialização em forma antagônica; o domínio da produção social permanece nas mãos de uma oligarquia. A luta pela desapropriação dessa oligarquia constitui a última fase da luta de classes entre a burguesia e o proletariado. (...) A resposta do proletariado à política econômica do capital financeiro – o imperialismo – não pode ser o livrecomércio; só pode ser o socialismo. Do dilema burguês: protecionismo ou livrecomércio, o proletariado se safa com a resposta: nem protecionismo nem livre-comércio, mas:

socialismo,

organização

da

produção,

regulamentação consciente da economia não mediante os magnatas do capital nem em benefício deles, mas mediante o conjunto da sociedade e em seu benefício."24 Outra importante obra clássica que aborda o imperialismo, embora seu escopo seja a análise da reprodução ampliada do capital, é o livro A Acumulação

do Capital, de 1913, escrito por Rosa Luxemburgo. Revendo, à sua maneira (que suscitou inúmeras polêmicas, com elogios e refutações), os esquemas marxistas da reprodução do capital, a autora argumenta que a acumulação do capital, ou seja, a reprodução ampliada, não pode ocorrer indefinidamente num meio tipicamente capitalista (capitalismo "puro"), pois aí ela seria pouco a pouco inviabilizada pela tendência à subdemanda e à diminuição das taxas de lucros. A solução seria a expansão, o domínio ou expansão para áreas e relações não capitalistas, incorporando-as no processo de acumulação. O imperialismo, a seu modo de ver, nada mais é que a expressão política desse imperativo econômico: "O imperialismo é a expressão política do processo de acumulação do capital, em sua luta para conquistar as regiões não-capitalistas que não se encontram ainda dominadas. Geograficamente esse meio abrange, ainda hoje, a grande parte da terra. Mas comparado com o poder do capital já acumulado nos velhos países capitalistas, que luta para encontrar mercados para seu excesso de produção e possibilidades de capitalização para sua mais-valia, comparando com a rapidez com que hoje se transformam em capitalistas territórios pertencentes a culturas pré-capitalistas (...) o campo revela-se pequeno para a sua expansão. Assim, o imperialismo aumenta a sua agressividade contra o

mundo não-capitalista, aguçando as contradições entre os países capitalistas em luta. Porém, quanto mais enérgica e violentamente procure o capitalismo a fusão total das civilizações capitalistas, tanto mais rapidamente irá minando o terreno da acumulação do capital. O imperialismo é tanto um método histórico para prolongar a existência do capital, como um meio seguro para objetivamente por um fim à sua existência. (...) Quanto mais violentamente o militarismo extermine, tanto no exterior como no interior, as camadas não-capitalistas, e quanto piores as condições de vida dos trabalhadores, [ele] tornará impossível a continuação da acumulação e necessária a rebelião da classe operária internacional contra a dominação imperialista."25  

A interpretação de Lênin A mencionada obra de Lênin sobre o imperialismo, de 1916, possui o subtítulo de Um Ensaio de Vulgarização. E de fato foi escrita às pressas, embora as ideias manifestem reflexões de vários anos, com evidente objetivo político-pragmático. Ela deve ser encarada tanto como reinterpretação de uma questão já tematizada e polemizada pelo marxismo da Segunda Internacional. Mas também – ou principalmente – como parte do projeto político do bolchevismo onde, naquele momento, havia uma especial ênfase no questionamento da socialdemocracia alemã e seu principal líder, Kautsky. Cabe

recordar que o termo "social-democracia", que para o marxismo-leninismo virou sinônimo de reformismo (numa acepção depreciativa), foi uma designação assumida pelas diversas organizações marxistas desde o final do século XIX, sob a influência do velho Engels, até por volta de 1914, quando passa a adquirir essa conotação negativa. Tal fato está ligado às polêmicas e estratégias de partidos frente ao capitalismo e às guerras, assim como ao questionamento da liderança teórica de Kautsky, discípulo dileto de Engels, que foi rotulado como "renegado" por Lênin e por Trotsky. Na realidade, Kautsky, assim como o velho Engels, valorizava o pluripartidarismo e as conquistas trabalhistas graduais, entendendo a social-democracia como mais um partido que disputa o poder e implementa reformas, tal como no exemplo posterior dos países nórdicos. Para o velho Engels e para Kautsky, a revolução social não precisaria, necessariamente, ser uma ruptura institucional radical, uma sublevação sangrenta tal como a Revolução Francesa, grande fonte de inspiração para todos os autointitulados revolucionários que surgiram após e devido a ela. Essa revolução poderia também resultar de mudanças graduais no capitalismo que o transformasse em socialismo26. Os líderes bolcheviques, ao contrário, repudiavam qualquer outro partido que não o deles e, consequentemente, objetivavam exercer o poder sem contestações, sem a convivência com outros partidos ou movimentos com distintos ideários.

A grande preocupação de Lênin, nesse livro de 1916, era reprochar a ideia de "superimperialismo", que Kautsky

vinha

desenvolvendo

desde

1911



e

que

sistematizou em 1914 no ensaio Der Imperialismus27. Neste, Kautsky defende

a

tese

de

que

as

guerras

imperialistas não são inevitáveis e seria possível um "acordo internacional do capital" para se regulamentar pacificamente as relações externas entre os principais Estados capitalistas e entre as grandes empresas. Essas ideias de Karl Kautsky, que em parte ele extraiu de – e compartilhou com – Friedrich Lange e Edward Bernstein, dois outros fundadores e teóricos da social-democracia alemã, representaram de certa forma uma revalorização das proposições kantianas do Estado reformador. Isto é, conquistas graduais e pacíficas, dentro da legalidade, no sentido de democratizar o Estado. Como também da revalorização da ideia kantiana da paz perpétua, que posteriormente seriam básicas para a formação da Liga das Nações e para a fundação da ONU. Mas

Lênin,

assim

como

anteriormente

Rosa

Luxemburgo, que foi a primeira a colocar o dilema “Reforma ou Revolução?” como se fossem realidades incompatíveis,

via

nessas

ideias

tão

somente

um

reformismo que abandonava a perspectiva revolucionária e que favorececia a burguesia. Essa percepção de revolução como oposto a reforma – ignorando que as duas principais revoluções da história da humanidade foram reformas graduais que duraram

milênios (a revolução neolítica) ou séculos (a revolução industrial) – no fundo decorre da identificação com a Revolução Francesa de 1789. Esta é vista como o protótipo de revolução politica e social, uma ruptura rápida e radical das instituições com a derrubada da Bastilha e a mudança de regime, a prisão de centenas de milhares de pessoas, a condenação à morte do rei e de pessoas tidas como “antirevolucionárias”, etc. A ironia dessa percepção é que a enaltecida “revolução russa” de outubro de 1917 nada mais foi que um golpe militar (um coup d’État, como até boa parte dos bolcheviques reconheceram no momento, embora depois mudando de discurso e passando a falar numa “Grande Revolução Proletária”) implementado por um grupelho armados que depôs o frágil governo provisório de Kerensky. Governo que era tão impopular havia sido abandonado por boa parte dos guardas que deviam

proteger

o

Palácio

de

Inverno,

de

onde

despachava. Mas havia de fato um processo revolucionário na Rússia, iniciado em fevereiro de 1917, com graduais conquistas

democráticas

lideradas

pelos

sovietes

(o

“tesouro perdido” da revolução, na expressão de Hannah Arendt). Mas o governo bolchevique, instalado em outubro desse ano, esmagou os sovietes e reprimiu as liberdades democráticas. Daí que grande parte da bibliografia, a que não divulga as versões trotskista ou stalinista (que têm mais em comum que diferenças substanciais), assinala que houve na Rússia de 1917 uma revolução social em fevereiro e uma contra-revolução em outubro.28

Já em 1915, no prefácio que escreveu para o livro de Nikolai Bukharin, A Economia Mundial e o Imperialismo, Lênin

dispara

suas

baterias

contra

a

interpretação

kautskista: "Não existe sombra sequer de marxismo em tal tendência, em tal afã de ignorar o imperialismo existente e de refugiar-se num devaneio vazio sobre possibilidades de um dia vir a existir superimperialismo." E completa: "Será possível, entretanto, contestar que uma nova fase do capitalismo posterior ao imperialismo – isto é, uma

fase

superimperialista

seja,

no

abstrato,

concebível? Não. Teoricamente pode-se imaginar uma fase desse tipo. Na prática, porém, ater-se a essa concepção seria cair no oportunismo. (...) Sem dúvida, a evolução tende para a constituição de um truste único, mundial, abrangendo, sem exceção, todas as empresas e todos os Estados. A evolução efetua-se, porém, em tais circunstâncias e a um ritmo tal, através de antagonismos, convulsões e conflitos (...) que antes da fusão `superimperialista' universal dos capitais financeiros

nacionais,

o

imperialismo

deverá

inevitavelmente estourar e transformar-se em seu contrário [em socialismo]."29 Mas só isso não bastava, principalmente porque o texto mesmo do bolchevista Bukharin era frágil nas críticas a Kautsky. Era preciso mais vigor, maior diferenciação entre a leitura (e estratégia) de Kautsky sobre o capitalismo e o imperialismo e o ideário bolchevista face à grande guerra e o seu significado para

o proletariado. Aí surge esse texto clássico de Lênin, escrito em 1916, que com o tempo se tornou na principal (e quase exclusiva) referência sobre o imperialismo no interior do marxismo que prevaleceu com a Terceira Internacional – a Comintern (1918-47) –, em grande parte dominada por Stálin. Pode-se dizer que aí começa, mesmo que de forma embrionária e ainda ambígua, a interpretação marxista-leninista do século XX como "momento de transição do capitalismo para o socialismo”, com as revoluções proletárias ocorrendo primeiramente nos países explorados, isto é, dominados pelo imperialismo. As duas principais referências ou bases de apoio teórico para o escrito de Lênin foram o citado livro de Hilferding e a obra de Hobson – Imperialism, a Study, de 1902. A primeira abordagem, como já vimos, é marxista e parte de uma ótica de classes; a segunda é liberal e vê o imperialismo (algo contingente e não necessariamente ligado ao capitalismo) como expansionismo econômico e militar de nações ou Estados fortes e mal administrados. Nas próprias referências básicas (mas não só aí, pois o problema é mais de dilema político-partidário), portanto, já se pode perceber um amálgama na leitura leninista do imperialismo, que de fato oscilou entre uma abordagem de classes e uma nacional Conforme observou com muita pertinência um analista: "A resposta revolucionária ao imperialismo é ambígua em Lênin. Há uma oscilação entre uma proposição de

revolução nacional nas nações oprimidas – a autodeterminação nacional – e a revolução socialista. (...) Lênin, contudo, estava descrente do proletariado europeu. O próprio imperialismo havia corrompido a classe trabalhadora criando uma `aristocracia operária', e toda a liderança socialdemocrata era acusada de haver descambado para o oportunismo. (...) Se havia alguma possibilidade de enfrentar a reação mundial, ela era dada pela força social que representava a burguesia nacional avançada dos países asiáticos atrasados: ‘Os socialistas devem apoiar com a maior decisão os elementos mais revolucionários dos movimentos de libertação nacional democrático-burgueses e ajudar a sua insurreição – e quando for o caso, a sua guerra revolucionária – contra as potências imperialistas que os oprimem’, escreveu Lênin.”30 Ao contrário de Hilferding, Kautsky ou Rosa Luxemburgo, que malgrado suas divergências identificavam no imperialismo uma política expansionista do capital monopolizado, Lênin acabou meio confusamente por identificar o imperialismo como uma fase ou etapa, a última ou derradeira, do capitalismo. É fato que alguns autores posteriores, na tentativa de atualizar ou recuperar a teoria leninista do imperialismo, assinalaram que a primeira edição do livro de Lênin intitulava-se Imperializm, Kak Novejsij Etap Kapitalizma, sendo que o vocábulo russo novejsij significa "última" ou

"mais recente" e não "superior" ou "derradeira" como surge em praticamente todas as edições posteriores. Todavia, não se pode esquecer que para Lênin – e também para quase que todos os marxistas do início do século XX – a fase mais recente ou "mais nova" do capitalismo era sem dúvida a última; após ela viria inexoravelmente o socialismo.

E a identificação do imperialismo como a

etapa monopolista do capitalismo é clara e repetida inúmeras vezes nessa obra de Lênin: "O imperialismo surgiu como o desenvolvimento e a continuação direta das características fundamentais do capitalismo. Porém o capitalismo se converteu em imperialismo somente ao alcançar um grau muito alto e definido de seu desenvolvimento, quando algumas de suas características fundamentais começaram a converterse em seus contrários, quando tomaram corpo e se manifestaram com todos os traços de época de transição do capitalismo a um sistema econômico e social mais elevado. (...) O monopólio é a transição do capitalismo a um sistema superior. Se fosse necessário dar a mais breve definição possível do imperialismo, deveríamos dizer que ele é a etapa monopolista do capitalismo. Essa definição incluí o mais ïmportante pois, por uma parte, o capital financeiro é o capital bancário de alguns poucos grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais, e, por

outra parte, assiste-se ao final da repartição do mundo entre as principais potências capitalistas."31 Um pouco mais adiante nesse mesmo texto, Lênin assinala cinco "traços essenciais" do imperialismo: o decisivo papel dos monopólios na vida econômica; o surgimento do "capital financeiro" (fusão do capital bancário com o industrial); o papel fundamental das exportações de capital (e não mais apenas de mercadorias) para o capitalismo central; a formação de associações capitalistas internacionais, que repartem o globo entre si; e a culminação do processo de repartição da superfície terrestre entre os países desenvolvidos: como ele enfatiza, daí para o futuro somente será possível uma redistribuição de territórios e não mais uma partilha.32 A ideia de nações oprimidas (e não apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença na impossibilidade do capitalismo prosseguir para além dessa fase: "Os monopólios, a oligarquia, a tendência à dominação em detrimento da liberdade, a exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou débeis por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes: tudo isso deu origem a essas características distintivas do imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de capitalismo parasitário ou em estado de decomposição."33  

Por quê a leitura leninista predominou?

A teoria leninista do imperialismo, apesar – ou talvez devido mesmo a isso – de suas ambiguidades entre a exploração (e, portanto, o sujeito revolucionário, que seria o explorado) ser ora de "classe" e ora de "nação", tornouse hegemônica a partir de 1917 e, especialmente, com a Terceira Internacional. As razões disso são múltiplas. Em primeiro lugar, há a influência do pragmatismo, básico tanto para a ordenação burguesa do mundo desde os séculos XVI e XVII – a instrumentalização do saber e da natureza, a prática ou eficácia nos moldes da ideologia do progresso como critério último de verdade –, como também para o marxismo como um todo: os vencedores tinham razão porque venceram, os vencidos estavam equivocados, pois o fato de não vencerem é uma prova disso. E ponto final. Pouco importa que as ideias de Lênin sobre o imperialismo sejam bem menos articuladas e logicamente consistentes que as de Rosa Luxemburgo ou de Hilferding. Pouco importa que para a realidade posterior à Segunda Guerra Mundial as ideias de Kautsky é que estão mais próximas dos acontecimentos. Pouco importa ainda que a abordagem de Hilferding, entre todas, talvez seja a que mais se assemelhe à de Marx em O Capital. Como também pouco importa que, sob o ponto de vista de criatividade, a obra de Rosa Luxemburgo ganhe de longe dos demais: a reprodução de relações não capitalistas pelo capitalismo, ou as ligações que essa autora fez entre militarismo e acumulação de capital, por exemplo, são originais para a

época e imprescindíveis para uma análise crítica do capitalismo hodierno (em sendo retomadas e aprofundadas). Mas o "fato" tido por relevante e impositivo é que as ideias e a prática de Lênin desembocaram numa "revolução proletária", ao passo que as demais não. Afinal, tanto a história do movimento operário quanto a do socialismo e também a do marxismo (as três se imbricam, mas não são idênticas), no final das contas, são igualmente uma "história dos vencedores". Foi apenas depois da (tardia) percepção, por parte de grande parte da esquerda, da situação de exploração da força de trabalho que existia nos países do socialismo real. E da descoberta das desigualdades sociais intensas, privilégios e mordomias para certa camada burocrática que controlava o poder público, opressão de minorias étnicas ou nacionais, ausência de democracia em todos os níveis (da fábrica ao parlamento). Foi apenas depois disso tudo que se começou timidamente a reavaliar as ideias leninistas sobre o “imperialismo”, o "elo mais fraco", o "centralismo democrático" e inúmeras outras mitologias que influenciaram a quase totalidade das correntes tidas como de esquerda durante praticamente todo o século XX. Por outro lado, não se pode esquecer que grande parte do sucesso da teoria leninista do imperialismo consistiu – e ainda consiste, para alguns – na possibilidade que oferece de se deslocar o eixo da revolução para os países periféricos, e do sujeito dela para a "nação" (portanto o Estado e as camadas dirigentes, normalmente

burocratas ou tecnocratas) ou para um pretensa "burguesia nacional progressista". As críticas de Lênin à "aristocracia operária" dos países desenvolvidos, a sugestão (implícita) de que ela seria num certo sentido beneficiária da "exploração das nações oprimidas" e a ênfase não tanto na luta de classes e sim na "luta contra o imperialismo", são elementos que permitiram o uso dessa teoria por amplos setores (ou projetos) de diversas partes do globo, algumas vezes indiscutivelmente autoritários e repressores dos direitos de cidadania. Entre estes, cabe mencionar os ditadores que se perpeturam no poder em países pouco desenvolvidos sob o pretexto de serem revolucionário por estarem “lutando contra o imperialismo” ou “contra o capitalismo”, tais como nos exemplos de Muammar Gaddafi, na Líbia; de Hissène Habré, no Chade; de Idi Amin Dada, em Uganda; de Pol Pot, no Camboja; de Haile Mariam, na Etiópia; de Hugo Chavez e Nicolas Maduro na Venezuela; e tantos outros. Mas também outros personagens autoritários – como militares e/ou burocracias nacionalistas, burguesias que exploram intensamente sua força de trabalho mas repudiam o "capital estrangeiro", etc. – fizeram uso dessa teoria para se legitimarem, inclusive frequentemente com apoio de setores ditos de esquerda.  

2.2 – Os continuadores e os reformadores Deixando de lado, neste livro, os percalços da teoria leninista do imperialismo de 1917 até recentemente

– sua influência em ideários políticos diversos, as reelaborações que sofreu em inúmeras ocasiões e sob múltiplos imperativos, sua ligação indiscutível mas problemática com teorias da dependência e do subdesenvolvimento, etc. –, pode-se colocar em pauta a sua pertinência para a compreensão do atual sistema mundial de produção e de poder. O que é recuperável nessa teoria, bem como nas ideias de Kautsky, Hilferding e Rosa Luxemburgo? Pode-se falar ainda em imperialismo? Em caso positivo, o que isso significa de fato? Como compatibilizar o imperialismo dos autores clássicos do início do século XX com certas transformações – como a continuidade do capitalismo sob a forma planejada ou keynesiana após a crise de 1929, o novo ciclo de expansão após 1945, a crescente militarização e seu papel no sistema produtivo, os dilemas do "socialismo real" que não conseguiu superar certas contradições capitalistas básicas e ainda criou ou exacerbou outras, a ausência desde 1945 de guerras entre as grandes potências capitalistas, a atual globalização concomitante e indissociável à revolução técnico-científica, etc. –, que colocam em xeque algumas de suas determinações essenciais? Como essa temática do imperialismo tem sido enfocada pelos autores mais recentes? Num seminário interdisciplinar realizado em 1969 na Universidade de Oxford, mais de cem especialistas – historiadores, economistas, sociólogos, antropólogos, filósofos, geógrafos e outros –, que realizaram

trabalhos/pesquisas ligados de uma forma ou de outra à questão do imperialismo, procuraram analisar sob diversos enfoques esse tema. A primeira coisa que ficou clara, nas discussões, é que se usava o mesmo rótulo – imperialismo – para fazer referência a processos ou fenômenos extremamente diferentes e por vezes até incompatíveis. Um dos organizadores do seminário, ao publicar alguns dos textos mais representativos das diversas posições ou correntes, afirmou que: "Apesar de um novo interesse que o imperialismo vem suscitando ultimamente, as discussões entre teorias rivais no geral produziram mais confusão do que aclaramento. Não existe um acordo acerca do significado mesmo da palavra, nem do fenômeno que ela pretende descrever. Para alguns, o objeto de estudos da teoria do imperialismo é todos os impérios, de todas as épocas históricas; para outros apenas os impérios coloniais formais dos séculos XIX e XX; e, para outros ainda, somente a situação de impérios `competidores' que Hobson descreveu como característica do mundo a partir de 1870. Inclusive entre os marxistas esse termo é empregado ambiguamente, dando-se a ele tanto um significado técnico – a etapa final de desenvolvimento do capitalismo (e, aqui, um sistema de relações entre Estados de todo tipo) – quanto um sentido coloquial – as relações entre os países capitalistas desenvolvidos e o Terceiro Mundo.”34

Um professor universitário de economia, motivado por esse seminário, passou sete anos refletindo, lendo e analisando as premissas e a estruturação das ideias de importantes teóricos do imperialismo, especialmente o liberal Hobson e o marxista Lênin, e num livro onde expõe seus resultados ele afirma que o uso da palavra imperialismo para a realidade atual lembra metaforicamente a "utilização de odres velhos (a teoria do imperialismo) para vinho novo (os acontecimentos hodiernos) ". Em suas conclusões, patenteia-se que: "O mesmo significante, o termo `imperialismo', foi e continua sendo empregado para designar um conjunto de tendências distintas, e em certos aspectos antitéticas. “35 As razões mais profundas dessas ambiguidades e desacordos

interpretativos,

a

nosso

ver,

são

essencialmente políticas, no sentido lato de visões de mundo e projetos (mesmo que implícitos) de reordenação societária diversificados. Num certo sentido, pode-se dizer que todas as teorias e conceitos das ciências sociais possuem

um

significado

político.

Por

detrás

de

desentendimentos ontológicos (sobre o que existe ou não), sempre aparecem não apenas problemas de linguagem como também de conceitos (que não são meras palavras, pois um conceito é sempre relacional: o de mais-valia, por exemplo, só ganha significado quando interligado com capital

e

trabalho

assalariado,

com

produção

de

mercadorias – que pressupõe a existência do mercado –,

com trabalho socialmente necessário, etc.), o que implica, em última instância, em visões de mundo diferenciadas.36 E diferentes visões de mundo, especialmente no que se refere ao estudo do social, costumam dar origem a diferentes pontos de vista políticos (num sentido amplo). Mas o caso do imperialismo é especial, é mais evidente em termos políticos do que outras teorias ou problemas relativos ao social. Isso porque imperialismo remete imediatamente (portanto, sem tantas mediações quanto outras teorias ou conceitos) ao significado do capitalismo mundial – com as suas desigualdades, diversidades, conflitos e antagonismos – e, dessa forma, às suas contradições e potenciais de mudanças. Mesmo um autor que, ao pretender encetar uma abordagem geográfica do imperialismo, buscou "separar ciência de ideologia" e tratar desse problema "como conceito científico e não ponto de vista político", não deixou de acabar por concluir, bem ao estilo engagé: "A confusão de relações entre povo/classes/instituições

como

relações

entre

áreas/nações tem sérias implicações políticas. Concluindo, parece evidente que o estudo do imperialismo é de relevância para a Geografia. Resta ver se a Geografia é de relevância

para

o

estudo



e

a

luta



contra

imperialismo.”37  

Imperialismo ainda tem algum poder explicativo?

o

Há pelo menos algo que nos parece evidente: não é possível no mundo atual – nem na época da guerra fria e muito menos neste período da nova ordem mundial, globalização e revolução tecnológica – continuar a usar a teoria do imperialismo sem profundas redefinições, sem reavaliar os seus pressupostos essenciais. Evidentemente que

existem

autores

que

prosseguem

falando

em

"imperialismo" como se fosse um conceito unívoco e sem problemas: quaisquer novos acontecimentos – seja a ameaça de uma guerra termonuclear, seja um golpe militar concretizado ou frustrado na Indonésia ou na Turquia, sejam os bombardeios norte-americanos sobre o Iraque ou sobre o Afeganistão, sejam as propostas do Fundo Monetário Internacional (FMI) na questão das dívidas

externas

de

alguns

países

subdesenvolvidos,

sejam as reuniões do Fórum Econômico Mundial em Davos, etc. – são imediatamente classificados sob essa etiqueta. Mas esse tipo de procedimento tão somente revela uma carência de reflexão e de qualquer tentativa de analisar seriamente a realidade. É uma forma de ver o mundo que possui uma natureza mais panfletária no sentido de primaziar a propaganda e a retórica. E não uma perspectiva científica – esta sendo entendida não no sentido impraticável de oposição a qualquer forma de ideologia, e sim como preocupação constante em adequar as noções e teorias aos acontecimentos, um enfoque no qual o objeto de estudos nunca está acabado ou “morto” – isto é, completamente explicado ou determinado – e sim

“vivo”, em movimento ou em-se-fazendo. Os pesquisadores mais sérios – inclusive alguns marxistas – preocupam-se em repensar essa teoria, em confrontá-la com as novas condições históricas, algo que pressupõe redefinições nos seus pressupostos básicos. Do ponto de vista complexo ou mesmo crítico, os conceitos e teorias nunca são eternos ou a-históricos, mas sempre datados, válidos de forma plena apenas sob determinadas condições históricas. Os conceitos não são meramente coisas ou fatos, mas relações sociais, e portanto, históricas: uma mesma máquina de fiar algodão, escreveu Marx em O Capital, será capital numa sociedade capitalista (pois produzirá mercadorias, num processo onde há extração de excedente sob a forma de mais-valia, de onde se originará um lucro, etc.) e não será capital numa outra sociedade com pressupostos diferentes; e o ouro será dinheiro em certas condições históricas, mas em outras condições poderá não ser nada além de um simples adorno. As categorias de análise podem até ter uma dimensão genérica – por exemplo: o proletariado existindo já em Roma Antiga, as trocas e o dinheiro na antiguidade, etc. –, mas elas só adquirem concretude, só surgem de forma plena, em condições onde haja o entrecruzamento de suas determinações de existência: o proletariado de fato é apenas o da sociedade capitalista ("o proletariado romano vivia às custas da sociedade, ao passo que a sociedade moderna é que vive às custas do proletariado", afirmou Marx); e o dinheiro como expressão do capital só

passa a existir concretamente sob as relações sociais capitalistas. Deixar de lado os pressupostos históricos de uma teoria ou de um conceito, usando a torto e a direito essas categorias como se de uma mera palavra ou rótulo ahistórico se tratasse, é abandonar a seriedade intelectual (e lógica) do discurso científico e cair numa retórica vazia da propaganda ou do panfleto (que até pode ser eficaz e útil como forma de mobilização, mas é nulo como forma de se perscrutar o real). A identificação do imperialismo como uma fase ou etapa do desenvolvimento do capitalismo, seja ou não a última ou derradeira, é insustentável logicamente. Nesse caso, como seria possível associar as determinações essenciais do capitalismo – a relação capital/trabalho assalariado, a extração da mais-valia, a produção de mercadorias, a tendência à concentração e centralização do capital, etc. – com aquelas outras – a partilha do globo entre as potências, o capital financeiro comandando a política e a economia, etc. – do imperialismo? (É de se notar que essas determinações são de natureza diferente: as primeiras, traçadas por Marx, possuem o imperativo da reposição contínua e em todos os momentos desse sistema produtivo, ao passo que as segundas são às vezes até contingentes e fenomênicas). O recurso utilizado, por alguns autores que procuram recuperar essa teoria, é considerar o imperialismo como uma política ou expressão expansionista do capitalismo

numa certa fase (o que está mais próximo de Hilferding ou Rosa Luxemburgo do que de Lênin). Mesmo assim permanecem certos quiproquós. Se o imperialismo surgiu apenas no final do século XIX – com o capital financeiro, a partilha de toda a superfície terrestre pelas potências capitalistas e a exportação de capital para a periferia –, como manter essa categoria tão rigidamente determinada com os novos acontecimentos que modificaram essas determinações? A partilha do globo, por exemplo, já chegou há muito ao seu final: resta apenas a Antártida (que não pode ser objeto de imperialismo porque é inabitada, portanto, sem povos ou nações a serem submetidos aos imperativos capitalistas; além disso até países periféricos - como o Chile, o Brasil e a Argentina - reivindicaram suas parte nesse continente gelado, que no final das contas deverá permanecer como um patrimônio ecológico de toda a humanidade). O que começa a ocorrer hoje é a partilha, num certo sentido, do próprio espaço cósmico, especialmente a camada do espaço ao redor do planeta que possibilita melhores condições para satélites artificiais ou para projetos do tipo “guerra nas estrelas”. Mas a ausência de “nações subjugadas” ou mesmo de trabalhadores nesses espaços torna irrelevante a ideia de um novo imperialismo. E a forma de capital mais avançada já não é a associação entre bancos e grandes indústrias – o capital financeiro na acepção de Hilferding, aceita por Lênin –,

mas sim as empresas multi ou transnacionais. (E também os fundos de investimentos e os fundos de pensões, que possuem centenas de milhares de cotistas e em alguns casos originam-se de sindicatos de trabalhadores). Tais empresas, que às vezes assumem a forma de conglomerados – isto é, grupos que controlam firmas de setores ou ramos diversificados: bancos, seguradoras, indústrias, propriedades agrárias, agências de propaganda, etc, – , muitas vezes são até estatais (embora em geral sejam sociedades anônimas, com milhares de acionistas) e desde algumas décadas que já deixaram de ser uma exclusividade dos “países imperialistas” (ou centrais) e em inúmeros casos são originadas em economias tidas como periféricas como Coréia do Sul, China, México, Brasil, Índia, Indonésia, Taiwan e outras. A própria exportação de capital – que continua ocorrendo, evidentemente, tendo até se generalizado muitíssimo mais – não se dá apenas do centro do capitalismo para os países tidos como dependentes, pois muitas vezes ela ocorre de alguns países periféricos para outros ou até mesmo destes para as economias desenvolvidas. Só para mencionar os exemplos mais conhecidos e divulgados pela mídia, recorde-se das empresas coreanas LG, Hyundai ou Samsung, das chinesas Huawey e Xiaomi, dos atuais investimentos chineses na Europa visando criar uma “nova rota da seda”, ou ainda das enormes inversões de capitais (isto é,

dinheiro que visa a geração de mais-valia) de classes dominantes árabes nos países capitalistas desenvolvidos. Inclusive, como nos relatou com detalhes a imprensa em relação à eleição presidencial norte-americana ocorrida no final de 2001, houve a doação para os candidatos, em especial para o que se sagrou vitorioso, de enormes volumes de dinheiro oriundos de países árabes exportadores de petróleo. Isso desmancha aquela ideia maniqueísta – típica dos adeptos da teoria do imperialismo – que as inversões de capitais e as influências ou ingerências no exterior seriam oriundas tão somente dos países mais desenvolvidos. A solução encontrada, para se contornar essas dificuldades, tem sido a de ampliar a abrangência do conceito. A imensa maioria dos autores que mantêm a categoria imperialismo procura diferenciá-lo em fases ou momentos, que abrangem toda a história do capitalismo: a fase colonial da época mercantilista, a fase pósRevolução Industrial, o imperialismo após a Segunda Guerra Mundial, o superimperialismo da globalização, etc. Além disso, é comum se enfatizar que relações imperialistas ocorrem também entre os países periféricos e até mesmo entre os desenvolvidos – pois a situação pós-1945 mostrou a dominação norte-americana na Europa Ocidental e no Japão – e não exclusivamente do centro para a periferia do sistema capitalista. E o acento nas exportações de capitais ou no capital financeiro é substituído pela ênfase na militarização, em especial no

poderio militar norte-americano (retomando-se assim, alguns aspectos da análise de Rosa Luxemburgo) ou então nas necessidades estratégicas de mercados e de dominação cultural-tecnológica.  

As releituras de Magdoff e Petras Um autor importante nessa temática – em especial nos anos 1970 e 80 – e que expressa bem essa redefinição do imperialismo (apesar da inequívoca inspiração leninista) é Harry Magdoff, que escreveu: "Um dos pontos fundamentais da teoria de Lenin sobre o imperialismo é a sua classificação como estágio particular no desenvolvimento do capitalismo, que surge pelos fins do século XIX. Esta tentativa de dar ao imperialismo uma data de referência histórica tão específica tem sido objeto de controvérsias, sendo a principal objeção levantada o fato de muitos dos traços característicos do imperialismo poderem ser encontrados ao longo de toda a história do capitalismo: a necessidade imperiosa de fomentar um mercado mundial, a luta pela dominação das fontes estrangeiras de matérias-primas, a corrida às colônias e a tendência para a concentração do capital. (...) A característica essencial do novo imperialismo que surge no fim do século XIX: a luta concorrencial entre as nações industriais por posições dominantes com respeito ao mercado mundial e às fontes de matériasprimas espalhadas pelo mundo. (...) Circunscrever o

imperialismo a operações realizadas apenas no mundo subdesenvolvido é realmente estranho se considerarmos a coerência dos objetivos alemães com respeito às outras nações européias durante as duas guerras mundiais: tratava-se de um programa de reorganizar e controlar tanto os países industrializados como os não-industrializados a fim de servir às necessidades de um capitalismo alemão em expansão. O imperialismo de hoje tem várias características novas e distintas. São elas, na nossa opinião: 1) a passagem da tônica, que era posta na rivalidade pela partilha do mundo, para a luta contra a retração do sistema imperialista; 2) o novo papel desempenhado pelos Estados Unidos como organizador e dirigente do sistema imperialista mundial; e, 3) o surto de uma tecnologia de caráter internacional.”38 Um dos alicerces fundamentais dessa (relativamente nova) interpretação sobre o imperialismo, onde Magdoff é um dos principais – embora não o único – dos expoentes, é a ideia de um sistema imperialista mundial liderado militarmente pelos Estados Unidos, que procuraria a todo custo evitar a "retração" do espaço de domínio do capitalismo (isso na época da guerra fria) ou expandir o seu modelo capitalista (na época da globalização). Trata-se, a nosso ver, tão somente de uma versão mais rica e sofisticada da teoria stalinista – que, aliás, é anterior a Stálin, mas foi por ele (e pela Terceira Internacional) reapropriada e instrumentalizada – sobre o

século XX corno momento de transição necessária e “inevitável” do capitalismo para o socialismo , que a isso reage com a crescente militarização e violência. Apesar de Magdoff ser um autor – e crítico do capitalismo, especialmente o norte-americano – sério, com textos que denotam pesquisas e reflexões importantes sobre determinados aspectos do mundo atual, esse tipo de leitura do imperialismo que ele ajudou a elaborar acaba resultando em dogmatismo e teleologia. É como se a inteligibilidade dos acontecimentos – não só passados mas também presentes e futuros – já estivesse definida de antemão na teoria, na "verdade revolucionária". Qualquer golpe militar direitista em algum país periférico é sempre interpretado como "contra-revolução liderada pelos Estados Unidos"; e qualquer transformação social ou tomada do governo por (pretensas) “forças populares” ou que se definem como tal – desde levantes camponeses até revoluções nacionalistas ou religiosas, passando por golpes militares dados por oficiais que dizem ser revolucionários ou socialistas, etc. –, é via de regra enaltecida como "revolução proletária". Tudo aí está rigidamente determinado, definido previamente: os fatos devem apenas ser encaixados na teoria do imperialismo (e do final do capitalismo, aliás, nascimento inexorável do socialismo), não há lugar para o novo, para a indeterminação, para se aprender com a história afinal, que sempre tráz novos acontecimentos ou processos. Não apenas panfletos oriundos de partidos ou

grupelhos socialistas burocratizados expressam esse viés. Também em trabalhos acadêmicos e de reflexão essa simplificação interpretativa transparece, mesmo que de forma mais ou menos encoberta ou implícita. Por exemplo: um autor norte-americano, por sinal ligado a Magdoff, chegou a formular um modelo para as "revoluções socialistas do século XX" onde se refere ao Vietnã, a Cuba, à antiga União Soviética, à China, etc., e inclui todas essas variadas situações, deixando de lado suas especificidades e estratégias, num esquema único de "derrubada do capitalismo" por movimentos sociais de massas sempre lideradas, em última instância, pelo proletariado urbano e sua vanguarda.”39 Sem dúvida que alguns acontecimentos relatados por esse tipo de interpretação são verdadeiros: alguns golpes militares em países subdesenvolvidos provavelmente contaram com o apoio de firmas e instituições norte-americanas; os Estados Unidos de fato passaram a ser o principal líder militar (principalmente) e também econômico do “mundo ocidental” ou capitalista desde o pós-guerra e mais ainda a partir dos anos 1990, embora nesta segunda década do século já se observa um retraimento da sua atuação internacional; e os países autodenominados "socialistas" cresceram numericamente de 1917 em diante, chegando a abarcar cerca de 34% da população mundial em 1985. (Mas a partir de 1989 esse “mundo socialista” se desmantelou e praticamente não existe mais).

O problema é que tais fatos não legitimam aquela "teoria do imperialismo" na qual existe um "sentido" unívoco para a "história do século XX". Vejamos, sucintamente, o porquê disso. Se, por um lado, os Estados Unidos realmente apoiaram ou até ajudaram na elaboração de golpes militares autoritários em nações como, por exemplo, o Chile (1973: assassinato do presidente Salvador Allende e ascensão do general Pinochet), por outro lado, não se pode esquecer que também a antiga União Soviética produziu as suas invasões ou golpes direitistas: os exemplos da Hungria (1956) e da Polônia (1981: o general Jaruzelski assume pela força o poder estatal, prende líderes operários e decreta a ilegalidade do Sindicato Solidariedade) deixam isso bem claro. E determinados acontecimentos – tais como a queda em 1986 do ditador Ferdinand Marcos nas Filipinas, forçada pelas autoridades norte-americanas, ou as pressões norte-americanas sobre a Indonésia, em 1999, para que ela aceitasse a independência do Timor Leste – mostra que para os Estados Unidos interessa não apenas governos autoritários no mundo tido como subdesenvolvido, como transparece naquela teoria citada, mas sim estabilidade política que garanta a continuidade dos negócios e não favoreça o surgimento de forte oposição popular. Não é possível aqui sustentar nenhuma ideia maniqueísta de que uma das duas antigas superpotências da ordem bipolar estaria sempre ao lado do "povo", isto é,

do "sentido da história", ao passo que a outra ficaria sempre ao lado do "imperialismo" ou melhor, da "contrarevolução". O que ocorre, na realidade, é que tanto os Estados Unidos

quanto a União Soviética, ou a Rússia

atual, apesar das inegáveis diferenças, possuem suas classes dominantes que visam se autoperpetuar e procuram nas relações externas apoiar os mecanismos de dominação – e nunca os "interesses populares" – que lhes sejam mais favoráveis. É o realismo, a realpolitik em todos os casos, e não uma pretensa “confraternização com os povos oprimidos” como proclamam alguns para a política externa dos países autointitulados socialistas. Isso nos remete ao mito – felizmente, desacreditado a partir de 1989-91 – da expansão do "campo socialista" com a conseqüente retração do sistema capitalista mundial. Em primeiro lugar o denominado "mundo socialista" sempre foi extremamente heterogêneo e conheceu experiências/vias econômicopolíticas bastante diversificadas. E em segundo lugar o que vem ocorrendo de fato, em especial a partir do final dos anos 1970, é uma expansão da economia (e, portanto, de relações sociais) capitalista até o "socialismo realmente existente". A China, que até o início da década de 1970 era relativamente autosuficiente, passou a conhecer uma notável "abertura" para o mercado capitalista – as exportações chinesas, que se direcionam notadamente para os países desenvolvidos, por exemplo, passaram de 3,6 bilhões de dólares em 1976 para mais

de 200 bilhões em 2000 e 2,5 trilhões em 2019 – e até para procedimentos da economia de mercado em seu território: a bolsa de valores de Xangai, que havia sido fechada em 1949, foi reaberta em 1984; a "iniciativa privada" foi novamente admitida, inclusive sob a forma de investimentos estrangeiros e firmas multinacionais; as fábricas, que até o final dessa década produziam com base em cotas fixadas pelos planos quinquenais, passaram a levar em consideração a lei da oferta e da procura. Também na antiga União Soviética, na Rússia atual e na Europa Oriental essa expansão capitalista pode ser notada no volume do comércio exterior, na abertura para o Ocidente, nas privatizações de empresas estatais, na instalação de filiais de empresas multinacionais, etc Na perspectiva dos países capitalistas desenvolvidos essa expansão para o Leste reflete uma busca de novos mercados e também, pelo menos em parte, de uma força de trabalho mais barata, com um relativo elevado nível educacional e em geral disciplinada. Já na perspectiva desses países do (antigo) "socialismo real" trata-se de uma modernização tecnológica e uma ampliação nos níveis de consumo da população, que de fato estavam e em geral ainda estão abaixo daqueles que existem no antigo Primeiro Mundo ou países pioneiros na revolução industrial. E tudo isso não se destina fundamentalmente a atender os "interesses sociais" – como querem alguns –, e sim a acompanhar o desenvolvimento das forças

produtivas dos países capitalistas desenvolvidos e sem questionar a natureza de classes dessa tecnologia e desse mecanismo produtivo, que evidentemente não são "neutros”40  

Emmanuel e o intercâmbio desigual Dentre as inúmeras teorias, elaboradas nas últimas décadas, que propuseram uma superação – e uma continuidade, pelo menos num certo sentido – da teoria do imperialismo, destaca-se aquela do intercâmbio desigual, de Arghiri Emmanuel e outros autores. Seu ponto de partida é a teoria marxista do valor – o valortrabalho, a mais-valia como trabalho não pago e que vai assumir a forma de lucro – ou de renda da terra, a ser redistribuída –, as diferenças entre valor de uso e valor de troca, o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias, etc. Com base nessa teoria, Emmanuel procura explicar o desenvolvimento desigual e a transferência de riquezas da periferia para o centro do capitalismo. As explicações tradicionais – que atingiram o seu maior vigor com os teóricos latino-americanos da CEPAL, que por sinal inspiraram-se enormemente na teoria do imperialismo – enfatizavam a “deterioração dos termos de troca”. Ou seja, o fato de que as mercadorias exportadas pelas economias periféricas, basicamente matérias-primas e gêneros agrícolas (pelo menos no passado; hoje essas economias exportam também bens industriais em grandes quantidades), tenderem com o

tempo a ter uma oscilação de preços que nunca consegue acompanhar a subida dos preços dos bens manufaturados e da tecnologia avançada, que são exportados pelos países centrais. Essa explicação cepalina, repetida incessantemente por grande parte da “esquerda” dos anos 1950 até a pelo menos a década de 1990, ignora que o maior exportador mundial de produtos agrícolas, desde pelo menos os anos 1930, são os Estados Unidos; e que alguns países vistos indiscutivelmente como desenvolvidos, como a Austrália ou a Nova Zelândia, exportam principalmente matérias primas, isto é, minérios e produtos agropecuários. Mas não é essa a explicação de Emmanuel. A verdadeira questão, argumenta, não é tanto a natureza dos produtos (se industrializados ou não) e sim as condições em que são produzidos: se com mais trabalho vivo (isto é, com salários mais baixos, mais mão-de-obra e menos maquinaria) ou se com mais trabalho morto (máquinas, tecnologia) e, consequentemente, salários mais altos e mão-de-obra qualificada. Como na perspectiva marxista só o trabalho vivo gera valor – e, portanto, mais-valia, base dos lucros –, o país que trocar mercadorias produzidas com muito trabalho vivo com outras nas quais não haja tanto trabalho incorporado levará desvantagem. Assim, se a Argentina e os Estados Unidos venderem trigo no mercado internacional pelo mesmo preço, os norte-americanos estarão num certo sentido recebendo parte do valor corporificado no trigo

argentino. Isso porque o uso de máquinas (logo, de trabalho morto) é maior nos Estados Unidos, ao passo que na Argantina há maior exploração da força de trabalho e incorporação de trabalho vivo. E suma, o pressuposto dessa explicação é que só o trabalho vivo gera valor ou mais valia. A principal base de apoio dessa teoria do intercâmbio desigual está no fato de que as fronteiras nacionais são relativas para o capital – ele migra de acordo com suas conveniências, transfere tecnologia, transplanta indústrias e troca intensamente mercadorias a nível internacional –, ao passo que elas seriam absolutas para a força de trabalho. Os deslocamentos e até a solidariedade internacional de trabalhadores são rigidamente controlados e dificultados, as diferenças salariais (e de níveis de consumo) são gritantes de um país para o outro, principalmente das economias mais periféricas em relação aos países desenvolvidos. Assim, nas palavras desse autor: "O intercâmbio desigual é imputável a uma relação entre países subdesenvolvidos e países desenvolvidos qualquer que seja o produto que uns e outros comercializem(...) O intercâmbio desigual reflete as relações entre os homens – e de maneira alguma as relações entre coisas – e, neste caso, as relações do homem subdesenvolvido com o homem desenvolvido. (...) Do ponto de vista dos salários, as fronteiras constituem umbrais de descontinuidade absoluta. Vemos coexistir no mundo salário de três

dólares por hora nos Estados Unidos com salários de vinte e cinco centavos por dia na África; em outras palavras, salários que diferem entre si, trinta, quarenta ou até cinqüenta vezes.”41 A teoria do intercâmbio desigual ajuda de fato a esclarecer algumas transformações impensáveis para a explicação cepalina tradicional, centrada na oposição entre bens manufaturados versus produtos primários. Por exemplo: a intensa industrialização de alguns países da periferia – tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Brasil, México, África do Sul e mais recentemente China e Índia, além de outros –, que nas últimas décadas tornaram-se importantes exportadores de bens industrializados desde micro-computadores a automóveis e aviões, de smartfones a iates, de suco de laranja a produtos têxtis. Mas nem por isso esses países teriam superado – a não ser, Cingapura e Coreia do Sul e, em breve, a China – o subdesenvolvimento. Eles ainda possuem seus Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) classificados como médios ou às vezes altos, mas não extremamente altos como nos países desenvolvidos. Por outro lado, essa teoria do intercâmbio desigual procura explicar as enormes exportações de trigo e outros produtos de origem agrária por parte dos Estados Unidos, ou da Austrália e da Nova Zelândia, sem que com isso esses países estejam sofrendo com uma relação comercial desfavorável – não no sentido de déficits, comuns na balança comercial estadunidense, e sim de

exploração ou espoliação tal como na explicação cepalina. Mas essa teoria dá conta apenas de um pequeno aspecto da realidade normalmente abrangida pela categoria imperialismo. A maior parte dessas relações e desses processos – econômicos e político-militares – fica por ser explicada, ou seja, é ignorada nessa teoria do intercâmbio desigual. E também essa dogmática de que só o trabalho humano vivo gerar valor (ou mais-valia) é algo extremamente questionável, principalmente nesta época em que existe um enorme avanço da robotização e e da inteligência artificial e nem por isso as taxas de lucro estão diminuindo. Alguns poucos autores, como Robert Kurz42, vão nessa direção, afirmando que existiria uma visível tendência para a queda das taxas de lucros devido ao aumento na “composição orgânica do capital”, isto é, maior quantidade de trabalho morto – máquinas, softwares – e menos trabalho vivo. Mas não há nenhuma evidência factual a respeito dessa pretensa queda nas taxas de lucro e, no fundo, esse tipo de afirmativa somente reproduz uma retórica marxista do século XIX e denega com veemência quase que todos os dados estatísticos que mostram expansão nos lucros. É mais uma doutrina baseada na fé, na crença de verdade nas proposições de Marx, do que uma teoria científica baseada em comprovações empíricas. Por sinal, uma forte tendência atual é a expansão da robótica e de máquinas ou artefatos “inteligentes” (que

podem reproduzir em vários aspectos a inteligência humana e assim substituir uma ampla gama de funcionários humanos, de entregadores a carteiros, de guardas de trânsito a operadores de telemarketing, de advogados a juízes e médicos, de motoristas de táxis ou de aplicativos a contadores, etc.) e nem por isso as taxas de lucro estão diminuíndo ou em vias de diminuir. Pelo contrário, estão aumentando. Essa crença que só o trabalho humano vivo gera valor, que Marx extraiu de David Ricardo, é questionada desde que foi enunciada, pois a natureza também realiza trabalho e gera valor, assim como as máquinas e demais artefatos que substituem ou intensificam o trabalho humano43. Ademais, as implicações políticas que Emmanuel deduz dessa teoria do intercâmbio desigual são radicalmente terceiro-mundistas. Elas representam, na realidade, uma exacerbação da ideia leninista de "aristocracia operária" nos países desenvolvidos, e divergem frontalmente da palavra de ordem marxista "Proletariado de todo mundo, uni-vos". Para Emmanuel "o proletariado dos países privilegiados participa na exploração do Terceiro Mundo", não sendo assim objetivamente possível uma solidariedade internacional dos trabalhadores.44 Por trás dessa conclusão política, está a tese de que o capitalismo por si mesmo é incapaz de melhorar os padrões de vida dos trabalhadores, que isso só ocorreu nos países centrais devido aos benefícios recebidos por

causa da superexploração da força de trabalho da periferia. As "tendências social-democratas" que Emmanuel vê na classe operária norte-americana e da Europa Ocidental, a “integração no sistema”, somente teria sido possível pela "exploração internacional”.45 A "revolução socialista mundial" (na qual Emmanuel acredita), portanto, teria necessariamente que começar na periferia, sofrendo ademais os obstáculos do conservadorismo dos trabalhadores do centro. Apesar da relativa originalidade dessa construção teórica, ela é unilateral e insuficiente para compreendermos as desigualdades internacionais. O grande problema dessa teoria, a nosso ver, é um reducionismo economicista que generaliza capítulos enormes da história em uma fórmula simplista e desconhece a importância do político nos imperativos econômicos. É como se existisse uma "lógica do capital" independente dos homens e de suas práticas – e e contradições. Como se a atividade política – a democracia, por exemplo – fosse apenas uma superestrutura (ou até um "reflexo") da atividade produtiva, sem sobre ela agir e provocar redirecionamentos. Ignora-se assim quase dois séculos de lutas populares, principalmente operárias e mais tarde outras, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, por direitos democráticos – direitos civis, políticos e sociais, e direitos de nova geração como os ambientais. Direitos que, além de terem produzido e garantido esse padrão de

vida alto quando comparado com a força de trabalho da periferia, foram conquistas selvagens, isto é, "de baixo para cima", conseguidas com muito suor, lágrimas e mortes. Nada disso foi doado pela burguesia ou pela "lógica do capital", que, ao inverso, quando pode bem que tenta reduzir essas conquistas: basta ver a política anti-social dos Estados Unidos e do Reino Unido a partir dos governos Reagan e Margareth Tatcher. Essas diferenças, nos níveis de remuneração e de consumo, dos países ricos em relação aos países subdesenvolvidos, não estão ligadas indissociavelmente ao intercâmbio desigual, mas sim a vários outros fatores, em geral políticos e internos a cada Estado nacional. A tradição de combatividade, os níveis de organização e as conquistas já conseguidas desde o século XIX (e que prosseguem, com altos e baixos, em outro patamar, hoje), pelos trabalhadores em geral nos países centrais. Também, ou principalmente desde as últimas décadas do século XX, pelas mulheres, pelos ecologistas, pelos trans e homossexuais, por etnias subjugadas, e pelos consumidores. E predomina o contrário (mas não ausência total) disso tudo na periferia, embora com sensíveis diferenças conforme o país. Ou seja, uma enorme fraqueza ou carência de conquistas permanentes devido a inúmeros fatores. Primeiro, o excessivo exército de reserva dos trabalhadores, algo que facilita o pagamento de baixíssimos salários e dificulta a união dessa força de

trabalho. Segundo, a forte tradição autoritária e de repressão aos movimentos contestatórios. Existem também os valores culturais, em geral patriarcais e machistas, que dificultam sobremaneira as reivindicações trabalhistas, ambientalistas, feministas ou das orientações sexuais diferentes da heterossexualidade, etc. Se o intercâmbio desigual fosse o elemento fundante

das

desigualdades

internacionais

e

do

relativamente elevado padrão de vida dos trabalhadores nos países centrais, então como explicar que esse nível de vida dos Estados Unidos, quando comparado com o da América Latina, por exemplo, já fosse bem superior em meados do século XIX46, ocasião em que esse país voltava-se mais para si próprio e não praticava quase que nenhum comércio, tampouco exportação de capital, com a periferia? São as especificidades históricas de cada sociedade – e história entendida como lutas sociais, que desde o século XIX vêm ocorrendo primordialmente nos limites do Estado dito nacional, embora tenha repercussões mundiais – que explicam essas diferenças salariais internacionais. Daí que até entre os países centrais surgem grandes desníveis: basta lembrar de Portugal e Grécia de um lado, e Noruega e Suíça de outro. Entretanto,

pode-se

concluir

que

a

solidariedade

internacional é possível e necessária para as diversas classes populares. É mesmo condição sine qua non para a

população em geral dos países desenvolvidos conseguir manter as suas conquistas e impedir que a mobilidade do capital – as transferências de empresas para as periferias em busca de inúmeras vantagens: menores impostos, menor proteção ao meio ambiente e aos consumidores, mão-de-obra barata, mais controlada e disciplinada, etc. – gere desemprego e desunião no seu seio. Não

se

pode

esquecer

que

a

busca

dessa

solidariedade já começou, mesmo embrionariamente, e parte exatamente da pretensa "aristocracia operária" dos países centrais. As ajudas financeiras de sindicatos alemães e suecos por ocasião de greves no ABC, em São Paulo, constituem um exemplo disso. Outros exemplos são as ajudas de sindicatos do Primeiro Mundo para o movimento dos sem-terra no México e no Brasil. Ou a atuação das ONG’s que lutam pelos direitos humanos, contra o trabalho infantil e o trabalho (semi)escravo, contra a degradação ambiental, que em sua quase totalidade possuem as suas origens – e o seu alicerce financeiro – nos países centrais. Isso principalmente

tudo na

desmente periferia

a que

ideia as

de

que

é

mudanças

revolucionárias acontecem. Esse mito da "revolução" (social) ter um lugar predeterminado – os países ou sociedades

periféricas,

ou

subdesenvolvidas



é

absolutamente falso e inclusive pernicioso. Ademais, a própria história sempre se encarregou de desacreditar teorias que pretensamente davam conta do futuro. A

história como luta sociais no sentido amplo do termo, o que inclui as lutas feministas, étnicas, ambientais, por moradias, por educação e outras, não é a efetivação de uma lógica econômica transcendente e sim uma abertura para o indeterminado, para se pensar (e produzir) o novo, o

não

previsto,

o

que

romperá

(e

redefinirá)

as

determinações preexistentes. E não há nem pode haver lugar

ou

momento

prefixados

para

isso:

na

práxis

também desempenham seu papel a criatividade e a inovação. O acaso e até o inesperado (frente à lógica predominante) sempre desempenharam um importante papel nas mudanças históricas.  

Império, de Negri e Hardt Vejamos agora uma última interpretação que, a nosso ver, tem como escopo último (e talvez não completamente preocupação

em

consciente reatualizar

para a

os

autores)

a

teoria

leninista

do

imperialismo frente à globalização e à nova ordem mundial. É a obra Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, na qual, apesar de existirem algumas referências à obsolescência do imperialismo, visto como uma etapa do capitalismo que foi superada pelas novas condições históricas – principalmente, segundo os autores, a um declínio do Estado-nação com os seus limites territoriais –, na realidade faz amplo uso das categorias e noções de Lênin. Representações leninistas sobre o capitalismo mundial e as perspectivas de uma revolução socialista,

porém, misturadas com algumas ideias pinçadas em Kautsky e Rosa Luxemburgo, em Guattari e Deleuze, e até mesmo em Nietzsche e Foucault. É uma obra que pode ser vista, sob o ponto de vista

de

projeto

político,

como

uma

espécie

de

“manifesto” lançado com a intenção de servir de guia para todos os descontentes (incluídos ou excluídos) com a globalização – as “multidões”, como eles denominam (camponeses tanto de países desenvolvidos quanto dos subdesenvolvidos, técnicos, professores e intelectuais “de esquerda”, funcionários, militantes ou associados de ONG’s). E do ponto de vista formal ou de estilo, é antes de tudo uma obra artístico-literária, pois ela enfatiza muito mais a estética (a beleza ou a harmonia do texto, as citações de clássicos da filosofia e da literatura) do que a análise da realidade. Partindo de uma interpretação teleológica do conceito de império – entendido em consonância com os escritos de Políbio (para o império romano) e dos “fundadores”

do

sistema

político

norte-americano

(Jefferson, Hamilton e outros) –, os autores vêem a sua “realização completa”, num sentido hegeliano, no final do século XX e inícios do XXI. É como se já existisse, desde no mínimo a revolução americana (ou a luta pela independência), uma tendência ou um movimento no sentido da constituição de um “império mundial”, com os Estados Unidos no topo da pirâmide. (A noção de poder dos

autores,

apesar

de

uma

série

de

citações

disparatadas de Foucault e de Guattari e Deleuze, é a forma piramidal e não a de redes). E também o final do império, para os autores, já está inscrito na sua própria lógica, pois ele criaria “multidões” (a serem lideradas pelos “militantes”) que inexoravelmente irão construir um “novo modo de produção”. Nas palavras dos autores: “O modo de produção do povo reapropria-se da riqueza do capital e também constrói uma nova riqueza, articulada com os poderes da ciência e do conhecimento social pela cooperação.

A

cooperação

invalida

o

título

de

propriedade. Propriedade privada dos meios de produção hoje, na era da hegemonia do trabalho cooperativo e imaterial, é apenas uma obsolescência pútrida e tirânica. (...) A organização da multidão como sujeito político, como posse, começa portanto a aparecer na cena mundial.”47. Os autores conseguem enxergar em Lênin um profeta que teria antevisto a constituição do império: “Lênin, mais do que qualquer outro marxista, pôde antever a transição para uma nova fase do capital além do imperialismo e identificar o lugar (ou, melhor dizendo, o

não-lugar)

Finalmente

da Lênin

soberania

imperial

reconheceu

que,

emergente. apesar

de

(...) o

imperialimo e da fase do monopólio serem, de fato, expressões da expansão global do capital, as práticas imperialistas

(...)

tinham

se

tornado

obstáculos

ao

desenvolvimento do capital. É verdade que o seu ponto de vista revolucionário revelou o nódulo fundamental do

desenvolvimento capitalista – ou melhor, o nó górdio que precisava ser desfeito. A análise de Lênin da crise do imperialismo teve o mesmo poder e necessidade da análise de Maquiavel da crise da ordem medieval: a reação tinha que ser revolucionária. Esta é a alternativa implícita na obra de Lênin: ou revolução comunista mundial ou Império, e há uma profunda analogia entre essas duas opções.”48 Essa interpretação, a nosso ver, é antes de tudo uma expressão da crise da “velha esquerda”, aquela que raciocina em termos de totalidade e de uma única saída – e

um

único

sujeito

revolucionário

(mesmo

que

multifacetado, mas sempre orquestrado em todas as suas partes e com objetivos em comum) – para o sistema capitalista mundial. Ignora-se a pluralidade societária e cultural que prevalece no espaço mundial, os caminhos diversificados que existem ou podem ser criados, e tentase construir um “inimigo” único a ser combatido pelas inúmeras

e

muitas

vezes

protesto

anti-globalização.

contraditórias Entre

formas

estes

de

existem

proprietários rurais e camponeses do Primeiro Mundo, que almejam um maior protecionismo nacional. Como também proprietários rurais no Terceiro mundo, que advogam a queda das barreiras para as suas exportações. Há ainda os

sindicalistas

dos

diversos

países,

que

possuem

interesses diversos: alguns querem um maior fechamento das fronteiras com a proteção da mão-de-obra nacional, sendo

que

outros

defendem

uma

livre

circulação

internacional da força de trabalho. Ou os grupelhos “de esquerda” que ainda acreditam em alguma forma de “revolução socialista” – com eles assumindo o poder, evidentemente. Tem ainda fundamentalistas religiosos que

combatem

a

globalização

porque

odeiam

determinados valores que ela propaga – como igualdade entre gêneros e outros direitos democráticos. Ou ainda militantes

de

ONG’s

que

possuem

propostas

extremamente diversificadas e inclusive contraditórias. Por sinal, a leitura que os autores fazem das ONG’s é inegavelmente idealista e até mesmo hilária: “As forças mais novas e talvez mais importantes da sociedade

civil

global

chamam-se

organizações

não

governamentais (ONG’s). O termo ONG não recebeu uma definição rigorosa, mas podemos defini-lo como qualquer organização que pretenda representar o Povo e trabalhar em seu interesse, à parte das estruturas de estado (e geralmente contra elas).”49. Desconhece-se assim toda uma história do “terceiro setor”, do qual as ONGs fazem parte, que via de regra não é “contra o Estado” e sim o complementa (ou até o redefine) em vários aspectos. E também a extrema pluralidade das ONG’s, que nem sempre atendem aos interesses populares. Em alguns casos elas recebem financiamentos de empresas multinacionais – e com frequência agem como uma espécie de “braço político” destas. Em outros casos são financiadas ou até fundadas por governos ditadoriais e defendem seus interesses.

Agumas até, a pretexto de proteger o meio ambiente original, elas são contra a presença de camponeses, de populações

ribeirinhas

e

até

de

indígenas

em

determinadas áreas florestais. Outras chegam a defender os interesses de firmas petrolíferas ou que usam carvão mineral,

das

quais

recebem

financiamentos,

argumentando que as fontes de energia renováveis seriam

mais

prejudiciais

aos

consumidores.

Essas

“multidões” antiglobalização, a que Negri e Hardt se referem, dessa forma, são diversificadas e possuem interesses e propostas divergentes. Não constituem, portanto, um sujeito histórico que vai revolucionar o capitalismo ou o pretenso “império mundial”.  

Cap. 3 – A GEOPOLITICA GLOBAL  

3.1 - A ordenação geopolítica após a Segunda Guerra Mundial Com a crise econômica de 1929-33 e a sua superação e, especialmente, com a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e os seus resultados, uma nova racionalidade parece ter se imposto na estruturação (contraditória) do capitalismo mundial. Essa nova racionalidade tornou-se mais evidente – e vitoriosa em praticamente todo o espaço mundial – após a derrocada do mundo socialista entre 1989-91. E com a revolução técnico-científica iniciada em meados dos anos 1970, juntamente com a globalização, que pode ser vista, embora não se limite a isso, como um novo patamar da internacionalização do capital. Os conflitos e guerras interimperialistas cessaram e as crises militares desde 1945 ocorrem ou ocorreram somente em áreas periféricas, inclusive no Leste europeu. Mas não mais entre as grandes potências capitalistas, como era a regra geral até a Segunda Grande Guerra. Os tratados militares – principalmente a OTAN – parecem ter unido os países centrais, que hoje agem de forma mais ou menos coordenada frente às ameaças ao sistema global. Ocorreu também a desagregação dos impérios coloniais europeus (britânico, italiano, alemão, francês, belga) com a chamada descolonização, especialmente de áreas/povos asiáticos

e africanos, que se deu com mais vigor entre 1945 a 1960. A partir daí – e também da notável internacionalização do capital produtivo, sob a forma de empresas multi ou transnacionais, em especial de 1950 em diante – predomina uma forma de supremacia internacional indireta, bem mais sutil, centrada nos fluxos comerciais e tecnológicos e não mais implementada pela força ou pela dominação colonial. São os empréstimos externos com taxas de juros elevados para certos países (e bem mais baixos para outros), o intercâmbio desigual, a remessa de lucros das empresas coligadas, os volumosos fluxos de capitais (especulativos ou não) entre as diversas partes do mundo. É também o chamado softpower ou poder cultural de influenciar os demais países com seus meios de comunicações, universidades e centros de pesquisas, filmes e séries de televisão, sites e blogs na internet, maior presença nas redes sociais internacionais, etc. Já em 1878, o velho Engels assinalava algumas considerações essenciais para se entender tanto o surgimento das modernas sociedades anônimas (onde o que mais interessa é a gestão da empresa, nas mãos da diretoria, e não tanto a propriedade, que às vezes pode estar espalhada por centenas de milhares de acionistas), quanto principalmente a crescente estatização dos meios de produção capitalistas: “A transformação das grandes empresas de produção e circulação em sociedades por ações e propriedades do Estado mostra a possibilidade de

se prescindir da burguesia, pois empregados assalariados cumprem atualmente todas as funções sociais do capitalista(...) Mas nem a transformação em sociedades por ações e nem a transformação em propriedade estatal priva as forças produtivas de sua qualidade de capital. O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista; ele é o capitalista coletivo ideal. Quanto mais ele se apropria das forças produtivas, tanto mais se converte no verdadeiro capitalista coletivo, mais trabalhadores explora.”50 Tais mudanças, apontadas no final do século XIX por Engels, foram ainda exacerbadas com o transcorrer do tempo. A hipertrofia das funções e das empresas estatais no capitalismo, em especial após a “revolução keynesiana” dos anos 1930, foi enorme: a proporção das despesas estatais frente ao total do PNB dos Estados Unidos, por exemplo, passou de 7,1 % em 1913 para 24,6% em 1950 e 33,2% em 1970; e na Alemanha, essa proporção era de 15,7% em 1913 e subiu para 37,5% em 1950 e 42,5% em 197051. Sem dúvida que houve um pequeno recuo dessa expansão estatal, pelo menos durante algum tempo e em alguns países, com a chamada “revolução neoliberal”. Porém, isso não invalida o processo de um crescente poderio estatal, hoje muitíssimo maior do que no século XIX ou que na primeira metade do século XX. Esses pequenos e provisórios recuos em alguns países, mesmo que durem décadas, são como as voltas de um

parafuso: no final das contas o sentido é um só, de aprofundamento da estatização nas economias nacionais. Esse fato remete às peculiaridades novas da(s) classe(s) dominante(s) sob estas condições: mais importante que a propriedade jurídica dos meios de produção tornou-se a posse e o usufruto não apenas deles mas também – ou principalmente, em inúmeros casos – do Estado. Daí a forte presença atual, entre os tomadores de decisões e entre o estrato mais rico da sociedade (os 1% ou mesmo os 0,1% da população que possui maiores rendas

e/ou

propriedades)

dos

gestores,

dos

administradores, dos tecnocratas e burocratas, como também a associação, às vezes ilegal (via corrupção) de funcionários públicos do alto escalão com empresas privadas. Não é por acaso que o sonho de alguns dos principais dirigentes das grandes empresas particulares é tornarem-se políticos – governadores, ministros, diretores ou assessores de importantes empresas ou repartições públicas,

prefeitos

de

cidades

importantes,

eventualmente presidentes ou primeiros-ministros. Entre estes últimos temos os exemplos de Donald Trump, nos Estados

Unidos,

Silvio

Berlusconi,

na

Itália,

Piñera

Sebastián, no Chile, Thaksin Shinawatra, na Tailândia, Petro Poroshenko, na Ucrânia, e vários outros. Nos dias de hoje, ao contrário do passado – quando em muitos casos os

governos

nacionais,

inclusive

dos

Estados

mais

poderosos, dependiam dos recursos emprestados por grandes empresas – uma simples decisão política, em

especial do governo norte-americano, e cada vez mais também da China e também, em menor grau, das autoridades europeias, pode de uma hora para outra inviabilizar totalmente as atividades de algumas das maiores empresas do mundo. É lógico que com essas mudanças o capitalismo não acabou, mas apenas, como já havia previsto Engels, teve o seu comando tranferido dos capitalistas – da burguesia – para o Estado. Indissociavelmente ligada a esta nova classe dominante (ou facção de classe, como queiram), surge a questão das diferenças profundas entre ordenados e salários: enquanto estes últimos provêm do trabalho dito produtivo, isto é, gerador de mais-valia, portanto explorado na perspectiva marxista, aqueles primeiros (e mais recentes, tanto que o próprio Engels não conseguia discerni-los, pois tornaram-se bem mais evidentes após 1945) são oriundos da redistribuição dessa mais-valia (que não geram), da exploração do trabalho alheio portanto. Mesmo se quisermos negligenciar essa separação entre trabalho produtivo e improdutivo, que de fato é problemática, há ainda uma diferença essencial entre ordenados e salários: aqueles primeiros

são

de

aumentos

salariais

cargos

que

(sempre

podem

iguais

ou

se

conceder

superiores

à

inflação) e bônus, ou gratificações diversas, enquanto que os últimos são rendimentos sujeitos a difíceis negociações para seus eventuais reajustes, que não raramente são

inferiores às taxas de inflação ocorridas desde o último aumento.  

Militarização Além da estatização, outra característica marcante do capitalismo a partir da década de 1930 tem sido a (acelerada) militarização. Como já assinalamos no capítulo 1, o militarismo, a guerra e a violência sempre desempenharam um papel importante no desenvolvimento capitalístico, desde a acumulação primitiva dos séculos XVI ao XVIII. Mas com a crise de 1929-33 e com a Segunda Guerra Mundial e a guerra fria subsequente, a militarização se expandiu enormemente com uma inovação tecnológica sem precedentes e com a fabricação de um número cada vez maior de armamentos de todos os tipos. Alguns dados estatísticos podem lançar uma luz sobre esse assunto: entre 1901 a 1913, gastavase em média, no nível mundial, cerca de 4 bilhões de dólares por ano com produtos bélicos. Somente no ano de 1986, no apogeu da guerra fria, os gastos mundiais com armamentos chegaram na casa dos 900 bilhões de dólares. As despesas militares norte-americanas, no período da guerra fria, situavam-se normalmente em torno de 5 a 6% do valor total do seu Produto Nacional Bruto (PNB), algo que sofreu uma pequena queda nos anos 1990, subiu novamente e tornou a declinar na segunda década do século XXI: a parte destinada a gastos militares no orçamento de 2002, por exemplo, foi de 550 bilhões de

dólares, o que significa cerca de 6% do PNB estimado em pouco mais de 9 trilhões de dólares; mas em 2019 esses gastos atingiram a cifra de 740 bilhões de dólares, ou 3,4% do PIB. Também a Rússia e a China gastam anualmente centenas de bilhões de dólares com armamentos, mas a percentagem em reação às suas produções totais (o PIB) é bem menor que no período da guerra fria. Contudo, os gastos militares aumentaram enormemente neste século em países considerados periféricos ou não plenamente desenvolvidos: Omã gasta 15% do PIB nesse setor, Arábia Saudita 8,9%, Israel 6,1%, Rússia 4,6% e dezenas de outros (em especial da África, Oriente Médio e Ásia central) despendem de 3 a 6% do PIB com gastos militares52. Isso reforça a tese segundo a qual as guerras mais catastróficas na atualidade não vão mais ocorrer na Europa, como era regra geral nos últimos séculos até 1945, e sim principalmente no lesta da Ásia (envolvendo Índia, Paquistão, Coreia do Norte e eventualmente China), no Oriente Médio e na África. O chamado complexo industrial-militar – isto é, as intrincadas relações e sobreposições entre o militarismo e a grande indústria, juntamente com uma significativa parcela da pesquisa tecnológica – parece que não acabou com o final da guerra fria. Ele foi presevado e até impulsionado pelas guerras dos anos 1990: Guerra do Golfo, de 1991; guerras nos Bálcãs durante toda essa década, em especial na Bósnia e no Kosovo; e pelos

ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que deram origem aos bombardeios sobre o Afeganistão. Apesar de ter se originado com a Segunda Guerra Mundial e se expandido com outros conflitos que envolveram diretamente os Estados Unidos – a Guerra da Coréia, a Guerra do Vietnã –, esse complexo industrialmilitar parece ter adquirido um ritmo próprio e intenso de crescimento, independente inclusive da existência ou não de guerras, conforme um autor que analisou a crise fiscal do Estado norte-americano: "Os maiores produtores militares privados criaram o que parece ser uma torneira permanentemente ligada ao orçamento federal. (...) A participação industrial chega ao nível de 50% do orçamento do Pentágono e a proporção dos pedidos militares recebidos pelos 50 maiores contratantes da área de defesa cresceu de 58% durante a Segunda Guerra, para 66% em 196364. Não é preciso dizer que os empresários do ramo de armamento e o Pentágono estão de tal forma interrelacionados que chegam a constituir, em muitos aspectos, uma única entidade: o complexo industrialmilitar. Porém, o próprio Pentágono tornou-se relativamente autônomo. Como todas as grandes corporações, ele busca expandir-se e alcançar um controle monopolista. Diversifica seus produtos que agora incluem não só armas, teorias estratégicas e conhecimentos militares. Também compreendem doutrinação ideológica, pesquisas sociais, trabalho

social e técnicas ‘educativas e médicas avançadas’.”53 E mais recentemente um importante economista norte-americano comentou da seguinte maneira o orçamento para o ano 2002 de seu governo: “Resumindo, a estratégia do governo é evitar críticas ao debacle fiscal embrulhando seu orçamento na bandeira americana. E digo isso literalmente: o relatório sobre o orçamento estava numa capa vermelha, branca e azul que lembrava a bandeira dos Estados Unidos. Mas, por que estou sendo tão cínico? A guerra contra o terror não é um grande negócio? A resposta é que, emocional e moralmente, sem dúvida é um grande negócio. Mas sob o ponto de vista fiscal, é quase um erro completo. É verdade que o governo está usando a ameaça terrorista para justificar um enorme reforço militar. Mas há algumas coisas engraçadas a respeito desse reforço. Primeiro, se nós realmente temos de nos esforçar para pagar todos esses armamentos, não deveríamos reconsiderar os futuros cortes de impostos que foram concebidos num período de abundância? E é particularmente difícil levar a sério toda aquela história pavorosa sobre a guerra quando o governo, ao mesmo tempo, propõe um corte de impostos adicional de US$ 600 bilhões. Segundo, o reforço militar parece ter pouco a ver com a ameaça verdadeira, a menos que você imagine que o próximo passo da Al-Qaeda seja um ataque frontal com várias divisões de blindados

pesados. Nós, que não somos especialistas em assuntos de defesa, ficamos indagando se um ataque feito por maníacos com poucas armas justifica o gasto de US$ 15 bilhões em peças de artilharia de 70 toneladas ou no desenvolvimento de três diferentes caças de última geração (antes de 11 de setembro, mesmo fontes do governo sugeriam que isso seria demais). Nenhum político que esperasse ser reeleito ousaria dizer isso, mas parece que o novo lema do governo é ‘não se esqueçam de nenhum fornecedor da defesa’.”54 A permanência desse complexo industrial-militar norte-americano e o seu desmesurado crescimento no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, são fatos que podem ser entendidos sob duas etapas. Primeiro, no contexto da guerra fria e do papel dos Estados Unidos como o guardião do sistema capitalista internacional. E segundo com o final da bipolaridade e da guerra fria e o novo papel de xerife do mundo desempenhado nos anos 1990 e na primeira década deste século por esse país. E a expansão do terroristo e de grupos guerrilheiros e/ou terroristas, como o Estado islâmico com forte atuação no Iraque e na Síria especialmente entre 2011 e 2017, também forneceu pretexto para a continuidade desses enormes gastos militares. Mas também existe o fato de que o militarismo é um importante campo de acumulação de capital, como demanda permanente e segura para importantes ramos da indústria (e que cresce à medida que o papel econômico do Estado se amplia).

As novas dimensões e características do militarismo e da guerra implicaram numa reatualização da geopolítica e da geoestratégia a nível planetário. Houve uma geoestratégia do período da guerra fria, que iremos resumir neste item, e uma outra diferente no mundo pós-guerra fria, que iremos analisar no próximo item. O desenvolvimento da aviação e da velocidade ultra-rápida, dos foguetes teleguiados, o surgimento de bombas nucleares e termonucleares, do computador e dos satélites espaciais militares (que podem obter imagens com detalhes na escala do metro quadrado em qualquer parte da superfície terrestre), juntamente com outros fatores, provocaram significativas mudanças na estratégia e na tática militares, na logística e nas relações de força e dominação entre as nações. A guerra, já a partir da Primeira Guerra Mundial, passa a ter um significado muito mais amplo do que no passado: a partir de 1914, em qualquer conflito armado entre países, morrem muito mais civis que soldados, ao contrário do que ocorria até então; os valores de heroísmo, bravura ou mesmo os caracteres tradicionais do "bom soldado" – que era identificados com o gênero masculino – pouco a pouco deixam de ser relevantes e o decisivo agora é a tecnologia dos armamentos. O militar, dessa forma, transforma-se de combatente em técnico e, nessa passagem, há uma crescente incorporação de mulheres nas forças armadas e o número de soldados diminui, pois, tal como na indústria, o importante é a tecnologia, as

máquinas e os armamentos dito inteligentes, havendo a necessidade de um número cada vez menor de pessoas – só que cada vez mais qualificadas – para supervisionar e manipular toda essa maquinaria que inclui tanto bens tangíveis como serviços intangíveis (especialmente softwares). Qualquer guerra local tem ou pode ter uma influência e um significado a nível planetário, porém, pela primeira vez na história da humanidade, a partir da invenção e do aprimoramento das armas atômicas – e também das armas químicas e principalmente das biológicas – a guerra (ou talvez até mesmo um radical e articulado ataque terrorista) pode virtualmente chegar ao extermínio total da humanidade, ou pelo menos á desarticulação total desta forma de civilização que conhecemos hoje. Daí alguns autores – talvez o mais conhecido deles seja Paul Virílio –, terem afirmado, não sem um certo exagero, que a guerra deixou de ser “a política continuada por outros meios” (segundo a célebre formulação de Clausewitz) para se tornar no inverso disso: a política é que parece ser uma expressão dos interesses e dos métodos militares-estratégicos.

55

De fato, a militarização e a tecnocratização do social – que caminham juntas – conduzem ao enfraquecimento da política como participação, como consultas, debates e trocas de ideias. A velocidade da máquina de guerra, a “necessidade do sigilo”, a vigilância e a primazia da "segurança nacional" (isto é, do Estado) em detrimento

dos cidadãos, tudo isso liquida toda uma estrutura política "normal" da democracia liberal, que tem por base o diálogo, uma relativa transparência e o confronto de projetos, o qual, algo importantíssimo, demanda um longo tempo de maturação que acaba sendo atropelado pelas rápidas decisões tomadas em nome da segurança nacional. A guerra, assim, passou a ser um estado permanente nas sociedades hodiernas e, longe de se extinguir pelo avanço do conhecimento científico e da industrialização – como apregoava Comte com a sua doutrina positivista –, ela os incorporou e com eles se associou e convive muito bem. Essa tendência é auxiliada pela enorme importância da mídia nas sociedades modernas, que molda (ou tenta moldar, pois nunca consegue totalmente) a opinião pública, transformando-a em expectadores. Esta sempre está em busca do imediato, da notícia sensacionalista – de preferência um bombardeio, um conflito com mortes, um escândalo, um atentado, um roubo ou um sequestro – que terá uma repercussão planetária imediata durante algum tempo, sendo posteriormente substituída por outra da mesma natureza. Mesmo sendo contrabalançada – às vezes contrariada, às vezes até reforçada – pela expansão da internet (onde qualquer pessoa pode virar jornalista e divulgar notícias ou opiniões num site, blog ou twitter) e das redes sociais, a mídia tradicional, em especial a televisão, ainda continua a influenciar grande parte do público, principalmente os menos alfabetizados. E mesmo

esses “novos meios de comunicações”, propiciados pelas redes de computadores e/ou de telefones celulares, também replicam notícias (muitas falsas ou inventadas) de caráter sensacionalista que prejudicam a democracia na medida em que influem nas eleições, destroem a imagem de alguma pessoa ou de algum projeto ou ação, constroem mitos (por exemplo, de políticos extremamente autoritários cuja imagem inventada nessas redes é de alguém incorruptível), etc. Mas sem dúvida que, assim como a mídia tradicional também possui o seu papel positivo – com reportagens e denúncias de corrupção, que às vezes leva à cassação de políticos, ou de atos violentos por parte de policiais, entre outros –, da mesma forma os “novos meios de comunicações” podem contribuir para mudanças democráticas como no caso da “primavera árabe” na qual os contatos via celulares nos países árabes fizeram um problema inicialmente da Tunísia se expalhar por grande parte dos países da região (Síria, Argélia, Egito, Líbia e outros). A geopolítica e a geoestratégia tradicionais – isto é, anteriores à Segunda Guerra Mundial – alicerçavam-se na guerra convencional e, de forma especial, nos esquemas clausewitianos. As guerras nada mais são, em última instância, que sociedades ou nações em confronto e não apenas exércitos em luta, assinalou Clausewitz56. Napoleão foi derrotado na Rússia, argumentou esse estrategista, não devido aos rigores do inverno, como muitas vezes se apregoa, tampouco devido a menor

quantidade ou qualidade de suas forças militares em relação às tropas russas, mas principalmente pela coesão e pelas características (demográficas, ideológicas, econômicas, territoriais) da nação russa na época. Seria absolutamente impossível conquistar aquele país – mesmo com o dobro de soldados ou com um inverno menos frio – nas condições de "solidariedade inquebrantável" do povo na luta e disposição de não aceitar a presença em seu território do invasor.57 Sem dúvida que Clausewitz também demonstrou, exaustivamente, o peso do território (as distâncias, o relevo, os rios, as matas, as densidades e concentrações demográficas, etc.) e dos aliados, na condução operacional da guerra, além das "forças militares propriamente ditas". Mas ele enfatizou que "a guerra é apenas uma parte das relações políticas" e "ajuizar a guerra de um ponto de vista puramente militar é inadmissível e mesmo funesto.”58 Entendida como um "ato de força destinado a submeter o inimigo à sua vontade", a guerra para esse teórico é um momento acirrado da competição entre Estados. Em grande parte esses ensinamentos continuam válidos. A própria “guerra” contra o Taliban e a El Qaeda, no Afeganistão em 2001, evidenciou que no fundo a verdadeira questão não era a “natureza aguerrida” do povo e tampouco o relevo montanhoso daquele país asiático – tal como apregoaram alguns antes e durante os bombardeios, afirmando que “a tecnologia moderna jamais conseguiria vencer aquelas

condições adversas”59 –, mas sim a determinação da sociedade norte-americana, bem mais evoluída tecnologicamente e com uma coesão e determinação de vingança propiciadas pelos atentados terroristas de 11 de setembro daquele ano em solo estadunidente. Dessa mesma maneira, podemos afirmar que a guerra do Vietnã foi perdida não nas selvas do sudeste asiático – o conflito poderia se estender ainda por décadas, pois era excelente do ponto de vista de campo de experimentos/fabricações de novos armamentos, de contratos do governo com empresas de fabricam armas ou com companhias privadas de mercenários –, mas sim devido aos fortes e crescentes movimentos de oposição dentro dos Estados Unidos. A população, ou melhor, a sociedade – tanto no aspecto numérico como nos laços culturais-ideológicos de solidariedade e coesão – e o territórío são elementos essenciais na guerra pós-napoleônica, que Clausewitz procurou explicar enquanto conflitos militares envolvendo as

"nações

em

armas".

O

pensamento

geopolítico

clássico, aquele de Mackinder (principalmente), Kjellén, Mahan,

Haushofer,

compreender

o

jogo

Spykman de

forças

e

outros, militares

procurou no

plano

internacional à luz desses pressupostos. Num certo sentido – enquanto visão geoestratégica – todos esses geopolíticos foram discípulos de Clausewitz. Dessa forma, os conceitos geopolíticos clássicos de heartland ou "terracoração"60, de "potência marítima" (os EUA) versus

“potência continental” (a Rússia), de lebensraum ou "espaço vital" (de Haushofer), de Manifest Destiny ou "destino manifesto"61, e tantos outros, sempre partiam dessa percepção clausewitiana – que no fundo foi alicerçada nos ensinamentos e na prática de Napoleão, que por sua vez foi um leitor atento de Montesquieu –, segundo a qual "A política dos Estados está na sua geografia" [física e humana, convém esclarecer]. Em parte, mas apenas em parte, as geopolíticas do mundo bipolar representaram visões de mundo e práticas político-espaciais que encaram os Estados – e somente eles – como sujeitos. Mas um novo elemento foi incluído nessa leitura geopolítica: os sistemas econômicos – e também os regimes políticos –, isto é, a luta do capitalismo contra o socialismo ou da “democracia contra o totalitarismo”. Quanto às “novas geopolíticas” do mundo pós-guerra fria, elas são extremamente plurais e em grande parte – embora existam exceções – já superaram a leitura geoestratégica: elas enfatizam mais as “guerras” econômicas, tecnológicas e até culturais e relativizam (mas não omitem) as guerras militares62. A realidade posterior à Segunda Guerra Mundial mostrou cabalmente que o raciocínio de Clausewitz estava correto: mais importante, para o desfecho da guerra, do que as características territoriais ou o tamanho da população – elementos que, até a “guerra estratégica” ou napoleônica, eram os mais valorizados – é a coesão da sociedade e a modernização tecnológica. Num grau

extremo, deixando-se de lado as guerras de guerrilhas e os terrorismos, tão somente o tamanho da população já não possui grande importância na guerra com a tecnologia de ponta. Em tese, os 1,3 bilhões de habitantes da China, ou os 1,2 bilhões de moradores da Índia, por exemplo, poderiam em poucas semanas (ou até horas, se houvesse a utilização de armas nucleares) serem reduzidos a pó ou completamente humilhados e dizimados pelas forças armadas dos Estados Unidos, apesar de existirem cerca de 5 chineses (e 4,5 indianos) para cada norte-americano. E a distância entre áreas longínquas, assim como o obstáculo das montanhas, dos rios e até dos oceanos, já não constitui mais um grande problema estratégico e uma forma "natural" e eficaz de defesa. As tropas napoleônicas, ao irem de Paris a Roma, levaram mais ou menos o mesmo intervalo de tempo que as legiões de Júlio César ao fazer esse percurso na ordem inversa, cerca de mil anos antes. Aquilo que, de forma constante, durante milênios era mais ou menos fixo, a velocidade dos deslocamentos, passou a se acelerar com a Revolução Industrial e o desenvolvimento tecnológico. O que se contava em meses ou semanas hoje se conta em horas ou até em minutos e segundos. Isso modifica profundamente a percepção e a realidade do espaço para a guerra. Do espaço como relevo-clima-rios-oceanoscidades-estradas-distâncias, etc., que a estratégia clássica expressava, por sinal de forma correta para as

suas condições históricas, passamos então para o espaçovelocidade, o espaço como unidade da eletrônica, o espaço relativo, descontínuo e planetário (tendendo, inclusive, a ser interplanetário devido ao uso do espaço ao redor do planeta para vigilâncias e até para colocação de lançadores de raios laser). Até por volta de meados do século XX, a geopolítica e a geoestratégia planetárias não levavam muito em conta a aviação, a velocidade e o espaço externo à superfície terrestre clássica (que se limitava à troposfera). Eram teorias e doutrinas da guerra ocorrendo essencialmente na terra e também nos mares. A partir da Segunda Guerra Mundial e o desenvolvimento primeiro da aviação, que já desempenhou um papel relevante nesse grande conflito, e depois dos foguetes teleguiados e dos satélites artificiais no espaço ao redor do planeta, isso mudou radicalmente. As guerras atuais – desde mais ou menos os anos 1970, pois inclusive aquela grande guerra foi decidida principalmente em terra com o apoio da marinha (para o transporte de tropas) – são principalmente aéreas, o que significa não apenas aviões, mas também mísseis, foguetes, satélites artificiais, etc. A geopolítica dos "autores clássicos" – de Mackinder, Mahan, Haushofer – era a de uma superfície terrestre plana e centrada na Europa. Havia uma grande discussão sobre a primazia da terra (posição de Mackinder) ou do mar (posição de Mahan) no desenrolar das guerras mundiais. Mas tanto o ar (e logicamente que também o

espaço exterior) como a velocidade eram elementos negligenciados. A geopolítica pós-Segunda Guerra Mundial, pelo contrário, partiu da esfericidade da Terra, do planeta visto e mapeado a partir dos satélites espaciais, de projeções cartográficas múltiplas e centradas em diversas regiões do globo e não somente na Europa Ocidental. Daí então uma nova percepção sobre quais são as áreas consideradas globalmente como "estratégicas": não mais essencialmente pontos continentais fixos e em áreas populosas ou que possuem abundantes recursos minerais, mas sim pontos "de passagem", de intensos fluxos aéreos ou marítimos, muitas vezes móveis e em locais por vezes não povoados: a Antártida, as camadas atmosféricas acima da troposfera, o estreito de Ormuz, a região ártica (que se torna cada vez mais importante com o aquecimento global que acarreta um derretimento da camada de gelo que cobre o oceano e dificulta a nagegação), o extremo sul da África, etc.63  

Superpotências As visões geopolíticas da ordem bipolar enfatizavam sempre a existência de duas superpotências militares, os Estados Unidos e a União Soviética. O conceito de “grande potência mundial”, tão caro aos autores clássicos, foi deixado de lado (embora ele tenha sido recuperado no mundo pós-guerra fria) e no seu lugar empregou-se esse conceito de superpotência com uma

base tecnológica-militar (armas atômicas no início, e principalmente a capacidade de agir militarmente, sem enfrentar grandes obstáculos, em toda a superfície terrestre). A guerra fria, sem nenhuma dúvida, foi o elemento mais importante da ordem bipolar ou da geopolítica planetária do mundo de 1945 até 1991. Ela implicou num jogo estratégico e numa relação complexa entre as duas superpotências, na qual havia ao mesmo tempo uma rivalidade e uma conivência, uma competição com uma espécie de vínculo ou acordo tácito. Pode-se comparar essa guerra fria a uma partida de xadrez: existem dois adversários que obedecem às "regras do jogo" (mesmo com trapaças ocasionais, mas com cautela para evitar o confronto final ou total) e simultaneamente tentam conquistar espaços – ou "tomar peças do outro campo" – no tabuleiro, ou seja, na superfície terrestre. Mas ambos os jogadores – as superpotências – procuravam evitar que outros agentes participassem ativamente do jogo. Eles almejavam o monopólio das decisões planetárias, queriam ser os únicos agentes das mudanças, o que significa que tentavam – mesmo que nunca tivessem conseguido totalmente (pois, sempre houve os que aproveitaram certas brechas na rivalidade para encetar um caminho relativamente autônomo) – evitar que as "peças", os demais países, tivessem uma real autonomia. Enfim, sempre procuraram evitar um terceiro caminho, uma terceira via diferente do capitalismo americano e do socialismo soviético.

Os Estados Unidos e a União Soviética, nas palavras de um estudioso, podiam ser considerados como "inimigos, porém irmãos"64. “Se um deles não existisse, o outro reinaria só”, afirmou esse autor. (E foi exatamente isso que ocorreu, pelo menos durante algum tempo, quando dos Estados Unidos foram denominados “superpotência soliária”65, após a crise e a implosão da URSS em 1991). O conceito de superpotência implicava no fato de que qualquer uma delas poderia agir militarmente com eficácia em todo o mundo – o grande problema para cada uma era a existência da outra. Viviam no chamado "equilíbrio de terror", que impuseram a si próprias e a todos os povos do planeta: a ameaça de uma guerra termonuclear, um confronto global onde não haveria vencedores nem vencidos, pois praticamente toda a humanidade – ou pelo menos aquilo que denominamos civilização – pereceria. Mas esse "equilíbrio de terror" e essa rivalidade político-militar sempre possuiu uma inegável funcionalidade para ambas superpotências na medida em que foi uma maneira de controlar – ou tentar controlar – todo o resto do mundo e também as suas próprias populações internas.66 Existiu – ou ainda existe, na visão de alguns – o que podemos denominar "ideologia da guerra fria", que consistiu na interpretação das lutas e conflitos na escala mundial como encerrando apenas duas vertentes ou opções: o capitalismo ou o socialismo, o lado dos Estados

Unidos – tido por alguns como o campo da "liberdade" ou da “democracia” e por outros como a vertente do “capitalismo explorador” e da “sociedade carcomida” – ou então o lado da ex-União Soviética, visto por alguns como o totalitarismo ou “comunismo” e por outros como a “sociedade igualitária". Essa ideologia possuiu uma evidente eficácia: a de forçar os governos, os partidos políticos e até as pessoas, a se definirem em termos de apenas duas opções. Ou esquerda ou direita. Qualquer outro caminho era visto com suspeitas, como equívoco ou incompreensão da história, resultando daí um maniqueísmo simplificador e um estreitamento no leque de opções. Na área de influência norte-americana, especialmente nas periferias, qualquer oposição era normalmente rotulada de "comunista" ou "aliada a Moscou", ao passo que na área de influência soviética as oposições eram sempre reprimidas sob o argumento de serem “anti-revolucionárias” ou defensoras do capitalismo. Essa ideologia da guerra fria permitiu tanto um maior controle social interno – por exemplo, o macarthismo nos Estados Unidos, ou a repressão sobre os "dissidentes" na União Soviética – como também um enquadramento das áreas ou países satelitizados. Foi em nome da "defesa do mundo livre" que o governo norteamericano invadiu o Vietnã (de 1962 a 74) e a Guatemala (1954), além de ter auxiliado ou promovido vários golpes militares com intensa repressão sobre movimentos

populares (Chile, El Salvador, Granada e outros). E foi em nome da "defesa do socialismo" que as autoridades soviéticas invadiram a Hungria (1956), a Tchecoslováquia (1968) e o Afeganistão (de 1979 até 1989), além de terem pressionado para que ocorressem golpes militares antipopulares em casos como o da Polônia (1981) ou da Etiópia (1977). É lógico que o controle social interno, da própria população, sempre foi imensamente maior na URSS do que nos EUA. Mas o controle das áreas satelitizadas foi intenso e brutal para ambas as superpotências. O que mais importou, nas ações repressivas ou no auxílio a alguma região, não foi tanto garantir a “exploração” de alguma nação – tal como diriam os adeptos da teoria do imperialismo – e sim evitar perder uma parcela da área de influência, evitar a expansão da área de influência da outra superpotência, ou ainda, em certos casos, destruir no nascedouro a possibilidade de uma "terceira” ou “quarta”via(s), de algum caminho próprio e independente das duas superpotências. Outra característica importante dessa geopolítica global das superpotências da ordem bipolar, desse jogo complexo da guerra fria, foi a necessidade em alguns casos – isso devido à posição geoestratégica de certos países, que podiam servir como "vitrine" ou como "gendarme", ou as duas coisas ao mesmo tempo – em ajudar ou financiar constantemente (sem perspectivas de retorno) determinados Estados ou economias nacionais. Isso

ocorreu com a ex-União Soviética em relação a Cuba, por exemplo, e com os Estados Unidos em relação a Israel, ao Japão dos anos 50 e 60 ou à Coréia do Sul de 1954 até os anos 1970. A teoria tradicional do imperialismo, em especial na versão leninista, é incapaz de compreender as imensas inversões de capitais norte-americanas, que não visavam lucros, em situações como o Japão pós-guerra, a Coréia do Sul de 1954 até os anos 1970, Berlim Ocidental e Israel principalmente a partir de 1967, quando este recém-criado país do Oriente Médio abandonou definitivamente o sonho “socialista” (que havia inspirado os kibutzim) de alguns e se alinhou pragmaticamente ao campo norte-americano. Os imperativos nesses casos nunca foram essencialmente econômicos e sim geopolíticos: Israel era (hoje já nem tanto) uma espécie de "gendarme" ocidental no Oriente Médio rico em petróleo, mas instável politicamente. Sob outros aspectos, Israel é também uma "vitrine" do desenvolvimento ocidental e capitalista em áreas antes pobres e desérticas; além disso, não se pode negligenciar o poderio do lobby israelense nos EUA. Em Berlim Ocidental (que sempre recebeu muito mais do governo alemão do que este nela arrecadava) as grandes somas gastas pelos Estados Unidos, nos anos pós-1945, destinavam-se a criar o contraste com a parte oriental e socialista – algo mais ou menos semelhante ao que ocorreu em relação à Coréia do Sul frente ao seu vizinho

ao norte. Com o Japão (e também, em parte, com a Coréia do Sul), os objetivos eram criar uma área próspera para contrabalançar o possível "avanço comunista" no leste da Ásia. Também a União Soviética, embora em menor proporção devido à sua menor e menos eficiente economia, praticou ações semelhantes. O principal exemplo foi Cuba, uma espécie de "vitrine do modelo socialista” na América Latina – região na qual predominanavam nações pobres e dependentes dos Estados Unidos. Os soviéticos gastavam com Cuba, até 1991, no mínimo 10 milhões de dólares por dia, pois compravam açúcar a preços quatro ou cinco vezes maiores que os vigentes no mercado mundial, vendiam petróleo a preços bem abaixo dos do mercado internacional (tanto que Cuba exportava petróleo até o final dos anos 1980), distribuíam a cada ano dezenas de milhões de livros didáticos gratuitos e impressos em Moscou (com conteúdos, especialmente nas disciplinas história e geografia, sempre rigidamente controlados), etc. Cabe lembrar que Cuba também desempenhou o papel de “gendarme” para a URSS, com o envio de tropas para apoior um dos lados em determinados conflitos que os soviéticos não podiam intervir diretamente devido às regras (implícitas) do jogo das superpotências: em Angola , Etiópia, Guatemala, Congo-Léopoldville e Nicarágua. Ser uma superpotência na época da guerra fria, em suma, significou também determinados sacrifícios – isto é,

gastos sem retorno, gastos improdutivos do ponto de vista da economia nacional. Foi uma realidade muito mais rica e complexa do que aquela retratada – como centro e periferia, ou nações imperialistas versus países explorados – na teoria leninista do imperialismo. Por sinal essa foi uma das razões das menores taxas médias de crescimento econômico dos Estados Unidos, em relação ao Japão e à maioria dos países da Europa Ocidental, como também em relação a vários países ditos periféricos, na época da guerra fria, e também foi uma das causas (mas de forma alguma a principal) da derrocada da economia soviética. A imensa maioria das guerras e conflitos armados que ocorreu de 1945 até 1991 na superfície terrestre, especialmente nos países subdesenvolvidos, foi ou se tornou, em grande parte, confrontos indiretos entre as superpotências. Não que eles tenham se originado dessa forma e sim que foram instrumentalizados como tal. Mesmo que se tratasse de um conflito tribal ou étnico – algo muito frequente na África, por exemplo –, e/ou um conflito territorial, logo uma superpotência se colocava a favor de um dos lados e a outra passava a apoiar os adversários deste. Em contrapartida, o lado apoiado pelos soviéticos começava a usar o discurso de “luta contra o capitalismo” ou “contra o imperialismo”; e o outro lado passava a falar numa luta “contra o comunismo”. Isso fazia com que a origem do conflito fosse minimizada e a impresa (e também os próprios protagonistas, sempre ávidos pela ajuda militar e financeira, ou pela assessoria,

de uma das superpotências) passava a escrever sobre mais uma “disputa entre o capitalismo e o socialismo”. Por um lado, isso colocou a humanidade à beira de um confronto direto entre as superpotências, à beira do chamado apocalipse – algo que era acirrado ainda mais pela corrida armamentista, o que levou alguns autores a verem uma certa lógica suicida ou exterminista nesse jogo geoestratégico da guerra fria.67

Por outro lado,

produziu um mundo aparentemente mais simples, mais fácil de entender, bem diferente deste mundo pós-guerra fria no qual não há uma lógica única ou mesmo predominante para os conflitos. Estes hoje são plurais e diversificados: ora são étnicos-culturais, ora econômicos, ora territoriais, ora religiosos, etc. O final da guerra fria, entre outras coisas, significou também uma redescoberta da complexidade do mundo.  

3.2 - A Nova Ordem Mundial Nova ordem ou desordem? Conflitos entre “blocos” e/ou potências econômicas ou choques civilizacionais? Monopolaridade ou multipolaridade? Um único império mundial liderado pelos Estados Unidos? A universalização da democracia ou um predomínio de “zonas cinzentas” das máfias, do narcotráfico e das redes terroristas? O mundo pós-guerra fria suscita polêmicas e interpretações antagônicas. Não há mais um consenso tal

como o que existia na época da bipolaridade, na qual se aceitava que o principal conflito mundial era ideológico (capitalismo versus socialismo) e também uma opção entre dois tipos de economia (planificada ou de mercado). Hoje há um amplo predomínio, ao menos aparente, da economia de mercado, porém, ao mesmo tempo existem múltiplas e díspares tensões e contradições no espaço mundial. Não há mais uma hierarquia dos conflitos e muito menos um que seja hegemônico, tal como era a guerra fria no período da ordem mundial bipolar. Isso apesar de alguns autores apostarem neste ou naquele potencial como o mais importante. Alguns nos choques culturais ou civilizacionais. Outros nas disputas comerciais e/ou tecnológicas. Na oposição entre democracia e regimes autocráticos. Na radical diferença entre os “rápidos” (em termos de incorporação de novas tecnologias) e os “retardários”. Na dicotomia entre interdependência (globalização ) ou autonomia nacional. Ou ainda ainda na oposição entre o nacional e o global (sendo este complementado ou auxiliado pela busca de maior autonomia regional ou local). A nova ordem mundial, nesses termos, seria pósmoderna68. A bipolaridade teria sido a última ordenação geopolítica planetária moderna no sentido do progresso entendido como algo unívoco e herdeiro do Iluminismo – o esclarecimento ou predomínio da Razão, o desenvolvimento científico junto com o econômico ou material, o avanço da secularização pelo mundo – e da

oposição dual entre dois pólos: a luz e a escuridão, a esquerda e a direita, o socialismo e o capitalismo. A nova ordem pós-moderna, por sua vez, conhece uma retomada da religiosidade – no mundo islâmico, especialmente, mas também nos países cristãos e em Israel pelo avanço dos fundamentalistas. E uma complexidade no sentido de não ser mais possível afirmar que alguma das alternativas (e elas são inúmeras e não mais apenas duas) está “do lado da história ou do progresso” e a outra “do lado do atraso”. São ambientalistas (defendendo em geral a sustentabilidade, o meio natural e o futuro da humanidade) em conflito com desenvolvimentistas (que objetivam a melhoria das condições de vida no curto prazo, com mais estradas, ferrovias, hospitais, alimentos). São grupos religiosos que se opõem (cada um acreditando portar a verdade revelada), mesmo que muitas vezes interesses materiais e territoriais sejam um dos motivos para esses conflitos (mas praticamente nunca é possível afirmar que um dos lados é progressista e o outro retrógrado). São movimentos populares, algumas vezes instrumentalizados por ideologias autoritárias ou totalitárias – veja-se, por exemplo, o caso da Irmandade Muculmana, no Egito, ao mesmo tempo buscando chegar ao poder num país de governo extremamente autoritário e antipopular e, paradoxalmente, afirmando que quando controlar o governo irá acabar com as eleições, o pluripartidarismo e a rotatividade no exercício do poder. São Organização Não Governamentais que se

multiplicam, se expandem e se internacionalizam, e mesmo tendo amplo apoio pela crescente descrença nos Estados e por uma eficaz divulgação de suas mensagens, com frequência têm propostas conflitantes. Até nas redes sociais e na internet há um acirrado antagonismo entre os pontos de vista plurais, que por vezes são radicais e fundamentalistas. Nestes novos meios de comunicações, uma quantidade muito maior de pessoas (em comparação com o que ocorre com os meios de comunicações tradicionais) participa, escreve e dá suas opiniões, muitas vezes enfáticas devido à menor possibilidade de serem detectados e/ou fisicamente reprimidos. Mas também devido à rapidez das mudanças. Mudanças demográficas, com envelhecimento populacional e intensas migrações internacionais e inter-regionais, que acirram novas formas de preconceitos e racismos. Mudanças econômicas com extinção de certas profissões devido ao avanço tecnológico, transferências de empresas de um país ou região para outros, muitas vezes com o aumento no número de desempregados. Mudanças de valores e comportamentos de uma geração a outra – basta lembrarmos das conquistas de gênero ou de orientação sexual, exorcizados pela imensa maioria até recentemente e que ainda suscita polêmicas extremas nas redes sociais. Existiria afinal uma nova ordem mundial ou uma desordem, uma ausência, nos acontecimentos internacionais, de qualquer lógica ou sentido? Creio que

essa dúvida é infundada, pois toda desordem, todo caos, seja no mundo social ou até na natureza, sempre possui uma lógica ou um sentido explicador, mesmo que ele não seja totalmente conhecido a não ser por aproximações baseadas em probabilidades. E a noção de uma ordem mundial costuma ser entendida como uma situação de equilíbrio instável, no qual evidentemente existem conflitos, guerras, zonas cinzentas, etc. A ideia de uma ordenação geopolítica internacional pressupõe em primeiro lugar um espaço mundial unificado e integrado, com relações diplomáticas, comerciais e financeiras constantes entre os países, algo que só ocorreu a partir da expansão marítimo-comercial européia e capitalista dos séculos XV e XVI. Mais do que isso, como observou Henry Kissinger69, a edificação de uma ordem mundial que passou a vigorar em toda a superfície terrestre, mesmo que com eventuais contestações, expansão territorial de Estados que se tornaram mais poderosos, decorreu da aceitação, primeiramente na Europa (onde surgiu) e depois no restante do mundo, do conceito de soberania legitimado pelo Tratado de Vestfália de 1648, no qual os Estados beligerantes reconheceram o direito de qualquer um deles a ter um poder incontestável – o monopólio da violência legal ou legítima, como posteriormente diria Max Weber – dentro de um determinado território, daí se usar a expressão Estado territorial para se referir ao Estado moderno. Outro autor que se dedicou ao tema, assinalou que são exatamente as desigualdades de poder entre os Estados,

com a presença de alguns poucos Estados poderosos, as grandes potências, que garante a existência de uma ordem, ao invés de uma anarquia internacional: “A contribuição das grandes potências à ordem internacional deriva do fato da desigualdade de poder entre os estados que participam do sistema internacional. Se os estados tivessem todos o mesmo poder, como são iguais perante a lei, e todos pudessem afirmar suas pretensões com a mesma força dos demais, é difícil ver como os conflitos internacionais seriam resolvidos (...) a não ser mediante alianças que introduzissem um elemento de desigualdade. As demandas de certos estados (os fracos) poder ser na prática ignoradas, enquanto as de outros (os fortes) são admitidas como as únicas relevantes na pauta do que precisa ser resolvido”.70 Nesse sentido, estudiosos dessa temática utilizam as expressões "grande potência" ou "potência mundial", indissociavelmente ligada à noção de ordem internacional. Esta normalmente é vista como uma situação de equilíbrio dinâmico, sempre instável ou provisório, de forças entre os Estados nacionais. (Afinal é o Estado quem atua nas relações internacionais e executa tanto a diplomacia quanto a guerra). Esses atores privilegiados no cenário global, os Estados, são equivalentes apenas na teoria – pois há vários que são frágeis em termos de economia, de população, de território e recursos naturais, e de poderio militar; em contrapartida, há alguns poucos extremamente fortes. Por isso a existência de potências grandes ou mundiais, mas

também as médias ou regionais, é um elemento estabilizador, que evita a “guerra de todos contra todos” e estabiliza e define a (des)ordem mundial. Como descreveu Sergio Pistone71, cada Estado possui a sua soberania ou poder supremo no interior de seu território, não estando portanto submetido a nenhuma outra autoridade supraestatal, o que em tese redundaria numa espécie de "anarquia internacional". Mas a existência das grandes potências e de países que com elas se alinham, formando uma espécie de hierarquia entre os Estados nacionais, introduz um elemento estabilizador, uma "ordem" afinal, nessa situação em que não há um poder global ou universal legítimo e que esteja acima das soberanias estatais. O que convencional chamar de ordem mundial, portanto, consiste nessa hierarquia que vai dos Estados fortes – as grandes potências – até os "fracos", passando pelas “potências médias ou regionais”, que formam um sistema de países onde na prática há o exercício do poder pela diplomacia (ou, no caso extremo, pela guerra) e pelas relações cotidianas (comerciais, financeiras, culturais). Por esse motivo, via de regra costuma-se definie uma ordem mundial pela presença de uma ou mais grandes potências mundiais: ordem monopolar72, bipolar, tripolar, pentapolar, multipolar etc. Como podemos perceber, não se avança muito quando se questiona a noção de uma nova ordem, como fazem alguns, e se enfatiza o termo desordem numa acepção hobbesiana, isto é, a “luta de todos contra todos” na

medida em que não há um pacto para se aceitar um soberano planetário, isto é, um poder acima das soberanias estatais. Pois praticamente toda ordem mundial é instável e sujeita à eclosão de conflitos e de guerras. Mas estes conflitos e guerras, normalmente, são explicáveis pela lógica que preside a ordem mundial e, portanto, não a denegam. Às vezes sim, mas nestes casos são rupturas ou possibilidade de crise e redefinições (ou o final) da ordem vigente, tal como foram, por exemplo, a Primeira e a Segunda guerras mundiais ou o final da União Soviética em 1991. Um dos papéis das grandes potências é exatamente o de administrar esses conflitos, procurando evitar que cheguem ao extremo e procurando de alguma forma intervir direta ou indiretamente nas guerras para manter a estabilidade do sistema que as beneficia. Podemos então dizer que o conceito de ordem mundial não é positivista no sentido de ordem sendo igual a uma rígida disciplina, a um arranjo hierárquico inquestionável, com uma ausência quase total de contestações e de conflitos, Mas sim, na falta de uma melhor conceituação, complexa no sentido de ordem sendo algo sempre dinâmico e portanto instável, no qual as disparidades, as tensões e os conflitos são "normais" ou constitutivos.  

Uni ou multipolaridade? Sem dúvida que a nova ordem mundial resultou do avançar da revolução técnico-científica (ou Terceira Revolução Industrial, embora atualmente alguns falem

numa Quarta Revolução Industrial pelo avanço da inteligência artificial e da robótica) e da globalização e, em especial, da rápida desagregação do “mundo socialista” com a profunda crise na União Soviética e o seu final em 1991. Nascida, portanto, a partir da ruína da bipolaridade – que foi o mundo da guerra fria e da preponderância das duas superpotências, que existiu de 1945 até 1989-91 – , ela ainda suscita inúmeras controvérsias e costuma ser definida ora como multipolar (por alguns), ora como monopolar (por outros) ou até mesmo como uni-multipolar. Aqueles que advogam a mono ou unipolaridade argumentam que existe uma única superpotência militar, os Estados Unidos, e que a sua hegemonia planetária é incontestável após o final da União Soviética. E aqueles que defendem a ideia de uma multipolaridade não enfatizam tanto o poderio militar e sim o econômico, que consideram como o mais importante nos dias atuais. Eles sustentam que a União Europeia já é uma potência econômica quase tão importante quanto os EUA e que tanto o Japão (que logo deverá superar a sua crise) quanto principalmente a China (a economia que mais cresce no mundo desde os anos 1990 e que já se tornou no segundo maior PIB do mundo, apesar de alguns, inclusive o principal líder chinês em 2020, terem afirmado que o valor da produção bruta da China é subestimado pelo baixo valor do yuan e já é maior que o norte-americano) também são polos econômicos importantíssimos na escala mundial. Além disso,

raciocinam, a Rússia ainda é uma superpotência militar, apesar de sua economia fragilizada e dependente basicamente das exportações de petróleo e gás natural. A China vem modernizando rapidamente o seu poderio militar – já é o segundo país no mundo em valor total de gastos com armamentos. E as forças armadas da Europa, em especial as da Alemanha, França e Itália, tendem a se unificar com o desenrolar da integração continental. Até mesmo os momentos de crise (Guerra do Golfo, em 1991; conflitos na Bósnia e no Kosovo, em 1993 e 1999; e a luta contra o terrorismo, em 2001) são vistos sob diferentes perpectivas por ambos os lados. Os que insistem na monopolaridade pensam que essas crises exemplificam a hegemonia absoluta e sem concorrentes dos Estados Unidos, enquando que os que advogam a multipolaridade explicam que essa superpotência em todos esses momentos críticos necessitou do imprescindível apoio da Europa, em primeiro lugar, e até mesmo da ONU, além de ter feito inúmeras concessões à Rússia e à China em troca do seu suporte direto ou indireto, ou a sua omissão, nesses bombardeios contra o Iraque, contra a Sérvia e contra o Afeganistão. Talvez a melhor caracterização da nova ordem mundial tenha sido a fórmula conciliatória encontrada por Samuel P. HUNTINGTON73, que a definiu como unimultipolar. Ou ainda as considerações de Zaki LAÏDI74, que assinalou que em alguns aspectos – em especial no poderio militar – a nova ordem é monopolar; em outros aspectos –

no poderio econômico, por exemplo – ela seria multipolar; e em outras situações ou aspectos – por exemplo, no sistema financeiro mundial, no crescimento das organizações globais, sejam interestatais ou não governamentais, sejam legais ou clandestinas – essa ordenação mundial seria apolar. Pensamos que a nova ordem mundial pode ser considerada, pelo menos provisoriamente, como unimultipolar, porém, a a dimensão multipolar tende a predominar com o maior crescimento econômico (e também tecnológicos e até militar) da China e de outros países (Índia, por exemplo). Mas o importante não é sua definição e sim sua compreensão. Ela encerra alguns importantíssimos aspectos novos: o avançar de uma globalização concomitante com a formação de “blocos” ou mercados regionais e o (relativo) enfraquecimento das soberanias estatais, que dividem uma parte do seu poderio com outros atores globais, outras instituições – desde as organizações internacionais e a mídia global até as ONG’s, passando pelas grandes culturas ou civilizações, pelas máfias, pelas redes terroristas, etc. – que se expandem continuamente e passam a ter um crescente papel nas decisões e nas ações ao nível planetário75. Quanto à ideia de um “império mundial” liderado pelos Estados Unidos, pensamos que se trata de um clichê ou uma noção altissonante sem base empírica e que tem como principal função servir como palavra-de-ordem para determinados manifestantes anti-globalização. A

comparação da atual supremacia norte-americana com o império romano, explícita nessa visão, não tem fundamentação histórica, conforme afirmou categoricamente um especialista: “Vejo mais as diferenças [entre essas duas situações]. Os romanos de fato conseguiram fazer uma coisa que os americanos não alcançaram: eles transformaram os habitantes de seu império em cidadãos romanos. Há um acontecimento que considero um dos maiores da história e do qual se fala pouco, que é o Edito de Caracala (212 d.C.), que levou a cidadania romana a todos os habitantes do império. Já no primeiro século da era cristã, o próprio São Paulo, que era judeu, claro, se dizia antes de tudo um cidadão romano. (...) Os americanos estão num mundo em que a americanização deve forçosamente parar num certo momento. Com sua potência militar ou econômica, eles dominam muitos Estados, mas não estão numa situação que lhes permita fazer das pessoas que dominam verdadeiros americanos. Isso é ao mesmo tempo bom e ruim. É bom, porque as pessoas conservam o que se chama hoje de sua identidade. É ruim, porque isso impede que essas pessoas se tornem membros inteiros da democracia americana, que é, apesar de seus enormes defeitos, uma democracia.”76 Essa proposição, a bem da verdade, pode ter – e tem efetivamente – duas leituras: ou se entende por império um domínio absoluto dos Estados Unidos ou se relativiza

isso e apregoa-se um “império sem um centro totalmente localizável no espaço”, um predomínio da desterritorialização no nível mundial, um “império sem uma Roma concreta”. Esta última leitura predomina, misturada de forma ambígua com a outra, no mencionado livro de Negri e Hardt. E aquela primeira é muito comum em parte da mídia e de alguns militantes anti-globalização. Mas qualquer que seja a leitura de uma “nova Roma” com o seu império mundial não existe base factual de sustentação. No primeiro caso – de os EUA (em especial o seu governo federal e o Pentágono, complementados pelo alcance extraterritorial de sua economia) serem identificados com o centro do “império” –, permance a diferença colocada pelo historiador Le Goff, além do fato de que a noção de império não pode prescindir de uma dominação política e econômica direta. E também o crescente poderio de outros centros mundiais de poder: da China à Europa, da Rússia ao Japão. E no segundo caso – o de um “império aterritorial” – existe um hegelianismo exarcebado e temporão, uma doutrina idealista que dificilmente poderá ser colocado à prova na análise empírica da realidade. Globalização e revolução tecnológica Globalização ou mundialização? Não vamos aqui abordar a polêmica sobre o melhor termo para se explicar essa crescente interdependência entre todos os povos e economias – globalização (que de acordo com uma série de autores norte-americanos, britânicos e japoneses seria algo novo, iniciado nos anos 1980) ou mundialização do capital

(que de acordo com uma tradição francesa seria um processo já antigo, vindo desde os séculos XV e XVI). Tampouco iremoso dialogar com os autores que afirmam que a globalização é um mito na medida em que o coeficiente de abertura externa da maioria das economias nacionais – e também o montante do comércio internacional, em termos relativos – no início do século XX era maior do que na atualidade.77 Acreditamos ser possível conciliar todas essas perspectivas na medida em que a atual globalização pode ser vista como um novo patamar do secular processo de mundialização do capitalismo e, por outro lado, ela não se resume ao comércio internacional de mercadorias – se fosse apenas isso de fato ela não teria nada de novo ou de superior frente ao início do século XX. Muito mais que o aspecto comercial (as exportações e importações de cada economia nacional) , o que realmente define a globalização são as novas tecnologias (em especial as redes de computadores, a robotização, a engenharia genética e outras) e o novo e muito mais poderoso sistema financeiro internacional, além de uma interdependência – não apenas econômica e tecnológica, mas também ambiental, cultural, social, etc. – nunca vista anteriormente. A Globalização é indissociável da Terceira Revolução Industrial, ou revolução técnico-científica, iniciada em meados da década de 1970 (e não a partir de 1945, como apregoam alguns autores). Ela não existiria sem o microcomputador, inventado em 1975, sem as fibras óticas,

produzidas em escala industrial pela primeira vez nos anos 1970, sem as redes de computadores enfim78, que permitiram o advento das “empresas em rede” e do novo sistema financeiro internacional, no qual as principais bolsas de valores de todo o mundo funcionam ininterruptamente de forma interligada. E como assinalou com propriedade uma autora, os três instrumentos mais importantes da chamada “revolução das telecomunicações” – o telefone, o cumputador e a televisão – só se expandiram em todo o mundo a partir do final dos anos 197079. Dessa forma, foi a eclosão da revolução técnicocientífica com as suas novas tecnologias – em especial a informática e as telecomunicações –, juntamente com o abandono por parte dos países desenvolvidos (a começar pelos Estados Unidos), no início dos anos 1970, do que ainda restava do padrão ouro, seguido pela liberalização geral dos controles cambiais80, que deu origem a este processo de globalização descoberto ou tematizado como tal nos anos 1980. A globalização e a Terceira Revolução Industrial são processos interligados e interdependentes, que se influenciam mutuamente, pois por um lado não haveria a integração planetária sem as novas tecnologias, e por outro lado uma série de traços essenciais dessa nova revolução industrial – tais como a maior importância do mercado global frente aos nacionais, a concorrência e os preços sendo cada vez mais definidos na escala internacional, a produção interdependente (uma peça é fabricada num país

e outra numa economia nacional diferente), as empresas em rede, etc. – não seriam possíveis sem o avançar da globalização. Revolução técnico-científica e globalização, portanto, são aspectos essenciais da nova ordem mundial, apesar de terem surgido antes de 1989-91, antes da crise terminal do socialismo real – crise essa, por sinal, que contribuíram para deflagrar81. A nova ordem mindial, por um lado, se consolida ou se inicia de fato com o final do “mundo socialista” (e a consequente incorporação definitiva, no sentido de completa e não de eterna, de um terço da humanidade no mercado capitalista global). Entretanto, não há dúvida que essa nova ordenação geopolítica já vinha se esboçando desde os anos 1970 com o avançar da revolução técnicocientífica (e da complementar globalização) e com o desenvolvimento internacional desigual, que, juntamente com o processo de unificação europeia, estava engendrando novos polos ou “potências” na economia mundial: o Japão e o Mercado Comum Europeu, atual União Européia. E um pouco mais tarde a China, atual candidata a emular com os Estados Unidos em toda a superfície terrestre, algo que já começa a ocorrer com a expansão econômica e geopolítica chinesa no Pacífico Norte, no Índico e sul da Ásia, na Ásia Central e na África. Isso sem contar que a China já é o principal parceiro comercial de maioria dos países sulamericanos (desbancando os Estados Unidos) e também de inúmeros países na África, na Ásia e na Oceania.

Uma nova ordem mundial, nesse sentido, é sempre uma decorrência ou uma certa continuação da anterior, na qual determinados acontecimentos ou processos – que não são “necessários” no sentido de algum determinismo, pois em muitos casos resultam de ações ou decisões que têm muito de contingente – modificam de forma substancial a correlação internacional de forças. O aspecto mais visível ou mais espetacular de uma ordem mundial é a hegemonia político-militar: a enorme influência que a Inglaterra exercia sobre todos os recantos do globo do final do século XVIII até o final do XIX – época de uma ordem mundial monopolar – deve-se em grande parte aos seus navios de guerra (a marinha britânica era imbatível) e às suas estratégias (diplomáticas, geopolíticas) para dominar os povos subjugados pelo império britânico. Mas é evidente que não existe um poderio militar sem uma sólida base econômica82 (e, nos dias de hoje, tecnológica), que lhe serve de sustentáculo. Não foi apenas a força militar que construiu e manteve o poderoso império britânico, mas também – ou principalmente – os capitais, a pujança industrial, a economia mais desenvolvida do mundo na época, pelo menos até o final do século XIX (quando foi ultrapassada pela alemã e principalmente pela norte-americana), que precisava de mercados externos, de fontes de matérias primas e de consumidores. Também a ordem bipolar da segunda metade do século XX foi uma decorrência não apenas do maior poderio militar norte-americano e soviético, em comparação com os

demais países. Mas também do fato de que, no mundo pós1945, a ex-União Soviética era indiscutivelmente a maior economia do chamado Segundo Mundo: o seu PIB, em 1950, era maior do que os de todas as outras economias nacionais planificadas somadas. E os Estados Unidos tinham a economia mais poderosa no chamado mundo capitalista: o seu PIB, em 1950, era superior aos da Europa Ocidental, da África, da América Latina e do Japão em conjunto. Já nos anos 1980, quando o PIB do Japão já havia ultrapassado o da URSS (e representava não mais 9% do norte-americano, como nos anos 1950, e sim mais de 30% deste), quando o PIB dos países da Europa Ocidental em conjunto já era superior ao dos EUA, um importante alicerce da bipolaridade estava apodrecido e abalava todo o edifício dessa ordenação geopolítica. É por esse mesmo motivo que a atual unipolaridade militar não deverá se sustentar por muito tempo – a não ser por, no máximo, umas duas ou três décadas83. Exceto se algo imprevisível e significativo ocorra, tal como crises profundas na Europa e na China, uma guerra nuclear entre China e Índia, um extremamente acelerado, embora improvável, crescimento da economia norteamericana junto com uma estagnação chinesa, etc. Pois a economia norte-americana, que já representou cerca 45% da produção econômica total do mundo – em 1950 –, hoje em dia representa 24,4% desse total84 (algo ainda impressionante para uma única economia nacional) e dentro de algumas décadas, provavelmente, deverá representar menos de 20% da economia mundial. A China, em

contrapartida, mesmo desconsiderando o baixo valor de câmbio da sua moeda, representa 16,3% da economia mundial (em 2019, segundo o Bando Mundial) e, se mantido o seu atual ritmo acelerado de crescimento, já deverá abocanhar 23,8% do PIB mundial em 2030, enquanto que os Estados Unidos nesse mesmo ano, mais uma vez mantendo suas atuais taxas anuais médias de crescimento econômico (de 2010 a 2019), representarão também 23,8% desse total. Ou seja, será exatamente nesse ano, em 2030, que a produção econômica chinesa estará superando a estadunidense pelas estatísticas das organizações internacionais (ONU, Banco Mundial e FMI), embora seja mesmo provável que isso já tenha ocorrido por vários motivos. Primeiro, o valor do PIB chinês é calculado em yuans e depois transformado em dólar para efeitos comparativos, o que, levando-se em conta o baixo valor de câmbio da moeda chinesa (mantida propositadamente dessa forma para favorecer as exportações), sem dúvida que é subvalorizado. Segundo, as evidências mostram que uma economia que já se tornou na maior exportadora mundial e maior parceira comercial para centenas de países ao redor do mundo (muito mais do que os Estados Unidos), inclusive em regiões tidas como áreas de influência daquela grande potência americana (como a América Latina em geral, salvo algumas exceções, Austrália e Nova Zelândia, grande parte das economias africanas, etc.), não é possível

que represente hoje, segundo dados de 2019, apenas 68,8% da economia norte-americana85.  

Novos centros de poder Enfim, no aspecto econômico já em meados do século, em 2050, teremos uma supremacia chinesa – e provavelmente a Índia em segundo lugar e os Estados Unidos em terceiro, também segundo projeções baseadas nas atuais taxas de crescimento das economias nacionais. E essa mudança econômica sem dúvida que terá impactos no plano geopolítico, com uma maior influência chinesa na África, em grande parte da Ásia (rivalizando com a Índia) e até na Europa, além da América Latina e Oceania. Isso inclusive já começa a ocorrer. Com a recente contração internacional estadunidense, que cada vez mais volta para seu tradicional isolacionismo e negligencia sua preponderância geopolítica especialmente na Ásia e na África, a China tende a se expandir (econômica e geopoliticamente) ainda mais, ocupando o vazio deixado pela diminuição da presença dos Estados Unidos. Há alguns anos que a China se fortalece nos oceanos Pacífico e Índico, reivindicando uma ampla área no encontro desses oceanos, no mar da China Meridional, a leste do Vietnã, a oeste das Filipinas e ao norte da Malásia. A China reclama uma zona marítima que vai muito além das 200 milhas reconhecidas internacionalmente, alegando que, segundo mapas chineses antigos, toda essa zona, com suas inúmeras ilhas, pertencia ao império chinês. Também vem construindo várias ilhas

artificiais nessa zona marítima, como forma de expandir suas 200 milhas territoriais e também como bases de apoio para suas frotas. E protestou veementemente quando a Índia, a pedido do Vietnã, começou a fazer prospecções de petróleo próximo ao litoral vietnamita. Embora essa área litorânea se situe dentro das 200 milhas territoriais do Vietnã, a China alega que lhe pertence, e há anos vem militarizando esse mar com navios de guerra cada vez mais numerosos, circulando diariamente na tentativa de intimidar esses países e controlar essa zona marítima. Há uma crescente disputa geopolítica no oceano Índico. A expansão econômica e geopolítica da China, que vem aumentando sua presença econômica e militar nesse oceano, tem preocupado a Índia, que sempre se considerou a potência regional nessa zona marítima ao sul do seu território. A China vem realizando projetos de construção no Paquistão, rival da Índia, e seus navios de guerra navegam constantemente pelo oceano Índico. A recente expansão naval chinesa se deve à pretensão de hegemonia na Ásia, e também na África, além do fato de o oceano Índico ser a principal rota marítima do comércio internacional de petróleo, pois a China hoje é a maior importadora mundial – e a Índia vem em terceiro lugar (após os Estados Unidos), o Japão em quarto e a Coreia do Sul em quinto. A China, portanto, está na corrida para se tornar uma superpotência, aproveitando o vácuo criado na região pelo declínio do poder dos Estados Unidos, que pouco a pouco se retraem e contribuem para a expansão chinesa.

Em 2013, a China ampliou sua zona marítima de defesa, sobrepondo-a à zona japonesa. Além disso, anunciou novos regulamentos de pesca e a necessidade de autorização chinesa para navios estrangeiros operarem em mais da metade do mar da China, que banha China, Japão, Taiwan e Coreia do Sul. Com os Estados Unidos preocupados com as intermináveis crises no Oriente Médio, com o seu entorno mais imediato (México e Canadá, além da América Central) e, notadamente, com seus problemas internos, potências regionais como Índia, Japão e Austrália (no Pacífico Sul) começam a investir mais no setor militar e a se unir para confrontar a China. Esses três países assinaram pactos de defesa e têm realizado exercícios militares conjuntos. Em dezembro de 2013, pela primeira vez a Marinha japonesa realizou um exercício marítimo no oceano Índico, em conjunto com a Marinha indiana. Esses três países estão se aliando para suprir a possibilidade de os Estados Unidos deixarem de equilibrar o crescente poder da China nessa região do Índico, da parte asiática do Pacífico e do sul desse oceano. Mas toda essa tendência de expansão da China, bem como os intermináveis problemas fronteiriços entre Índia e Paquistão, ou entre Índia e China, mostra que conflitos militares intensos, talvez até mundiais, não serão mais deflagrados na Europa e sim na Ásia. Em busca de maior protagonismo mundial, especialmente na Ásia, África e até na Europa, a China em 2013 lançou o programa OBOR (One Belt One Road, isto é, um cinturão e uma estrada), também chamado de nova rota

da seda, que consiste numa série de investimentos chineses e conjuntos com pelo menos 60 países europeus, asiáticos e africanos, sobretudo nas áreas de transportes e infraestrutura. Esses investimentos deverão ser tanto terrestres (o cinturão), conectando a Europa, o Oriente Médio, a Ásia central e a África — regiões de extrema importância geopolítica — quanto marítimos (a rota), passando pelos oceanos Índico e Pacífico e também pelos mares Mediterrâneo e Vermelho. O projeto deve se conectar com as obras chinesas que já estão sendo feitas na África e na Ásia central. Tal programa tem ideias arrojadas, como a de um corredor de gasodutos e oleodutos vindos da Ásia central, riquíssima em gás natural e petróleo, ou uma infraestrutura de redes de telefonia, internet, rodovias e ferrovias cortando desde a Europa até a Ásia. Mas essa nova rota da seda não é pensada como um arranjo multilateral, negociado entre os diversos países ao mesmo tempo, mas sim como acordos bilaterais da China com cada país em particular. Em resumo, é provável que a multipolaridade na ordem mundial seja cada vez mais evidente no transcorrer do século, embora com uma supremacia mais chinesa do que norte-americana. Até no aspecto tecnológico, que nas últimas décadas os Estados Unidos desfrutaram de uma indiscutível liderança, vem ocorrendo uma maior expansão chinesa – e, secundariamente, indiana. O governo chinês, nos últimos anos, vem gastando 200 vezes mais que o governo dos Estados Unidos com pesquisas em inteligência

artificial, e existe um plano chinês para se tornar o líder mundial nessa área até 2030, ao passo que os EUA (com o governo Trump) vem reduzindo seu financiamento para a ciência. O sistema autoritário da China e a propriedade estatal das três principais empresas de telecomunicações do país permitiram que ela expandisse muito a cobertura sem fio 5G, que é pelo menos 20 vezes mais rápida do que a 4G, possibilitando melhor conectividade entre todos os tipos de dispositivos, de carros sem motorista a aparelhos inteligentes. Empresas chinesas como a Huawei e a Xiaomi já possuem tecnologia mais avançada que as norteamericanas e, apesar das pressões dos EUA, começam a ganhar concorrências realizadas em vários países para a implantação do sistema 5G. Mas nada é completamente previsível na história e talvez o mundo – pelo menos o mundo desenvolvido, no qual cada vez mais a China se inclui86 – tenha ingressado numa fase de cooperação internacional no lugar das tradicionais rivalidades político-militares e o mais importante para a garantia do “sistema global” seja não o poderio isolado deste ou daquele Estado nacional e sim determinados tratados ou alianças econômicos e militares. O próprio conceito – e os objetivos – de guerra mudou com a revolução técnico-científica, com a globalização e com os novos armamentos “inteligentes”. Não totalmente, é claro, pois a realidade mundial é plena de desigualdades e situações diferenciadas e a natureza beligerante dos Estados territoriais continua existindo. Mas como tendência

não há dúvida que a guerra, cada vez mais (embora existam exceções ou sobrevivências de realidades anteriores), implica não num extermínio em massa do inimigo e sim na destruição de alvos estratégicos específicos procurando limitar o número de mortos. As chamadas “armas inteligentes” – baseadas, fundamentalmente, na informática e na inteligência artificial destroem alvos específicos sem ocasionar matanças indiscriminadas. São mais precisas que os armamentos de destruição em massa, que predominaram durante a maior parte do século XX. O que significa que não é mais necessário o transporte de grande quantidade delas (algo que altera radicalmente a logística militar) e faz com que as informações sejam muito mais estratégicas para a supremacia militar. Esta deixa de estar ligada ao tamanho da população ou mesmo à quantidade de soldados (existe uma perceptível mudança no sentido de diminuir o número de militares, só que aumentando a escolaridade e a qualificação deles) e passa a depender da economia moderna, da tecnologia avançada. Revolução tecnológica e globalizção A revolução técnico-científica, aliada à globalização, ademais, redefine o mercado de trabalho, eliminando um imenso número de profissões e/ou atividades e criando outras, esvaziando mais ainda o setor primário e principalmente o secundário (e também o terciário, embora aqui inúmeras novas funções e atividades sejam criadas) e ao mesmo tempo exigindo uma mão-de-obra cada vez mais

escolarizada, qualificada e flexível. As promessas de robôs com base no aprimoramento da inteligência artificial, que poderá emular a inteligência humana em vários aspectos, sugerem que é possível substituir com vantagem não mais apenas trabalhadores de fábricas, de entregas, telemarketing, guardas de trânsito, motoristas (os veículos se tornarão autônomos), etc., mas também pessoas que trabalham em contabilidade, advocacia e no judiciário em geral, medicina e várias outras do setor terciário ou prestação de serviços. Ao mesmo tempo, reorganiza ou (re)produz o espaço geográfico com uma nova (relativa) descentralização da indústria e principalmente das atividades terciárias e com novos fatores sendo determinante para a alocação das empresas: não mais proximidade de matérias primas e mercado consumidor, e sim telecomunicações, energia e transportes e em especial força de trabalho qualificada. A globalização se expande de forma concomitante com uma nova regionalização geoeconômica do mundo, isto é, com a formação de "blocos" ou mercados regionais. Essa tendência já havia começado anteriormente, com o avançar da unificação europeia desde o final dos anos 1950. Mas foi com a derrocada do socialismo real, com a implosão da URSS e o final da bipolaridade, que ela se consolida e se expande para vários continentes: a competição econômica, tecnológica e comercial torna-se, a partir daí, mais importante do que a disputa ideológica. Devemos recordar que foi apenas em janeiro de 1994 que o Nafta – o Acordo

de Livre-comércio da América do Norte – entrou em vigor, ao passo que o Mercosul – o Mercado Comum do Sul – somente entrou em vigor em janeiro de 1995 (apesar de que o Tratado de Assunção, que criou o “bloco”, foi assinado em 1991). Quanto ao outro importante mercado internacional, a Apec – Cooperação econômica da Ásia e do Pacífico –, ele só adquiriu as atuais características de “bloco” econômico com o Tratado de Seatle, assinado em 1993. Ao contrário de algumas leituras equivocadas realizadas em 1989-90, quando alguns imaginaram que esses mercados implicariam num “fechamento” do espaço mundial, que ficaria dividido entre três ou quatro blocos rivais e relativamente autosuficientes, o que se observa é que a globalização e a formação de “blocos regionais” são dois processos complementares e interligados – e não processos contraditórios. A constituição de mercados regionais, na realidade, expressa a forma pela qual a globalização caminha na dimensão político-territorial. Ela não rivaliza com a globalização nem a obstaculiza , mas, pelo contrário, constitui um dos aspectos desta. Em outras palavras, isso significa que a globalização não é um processo puramente “econômico”, levado a cabo pelas empresas multi ou transnacionais (ou pelo sistema financeiro internacional) e à revelia dos Estados-nações. Ela é também – e talvez até principalmente – um processo político implementado por decisões e ações estatais, por acordos internacionais que expandem o comércio mundial (de bens e de serviços), os

fluxos de capitais entre as diversas economias nacionais, as telecomunicações, etc. Estas últimas, por exemplo, não seriam possíveis – pelo menos não da forma global tal como existem hoje – sem os entendimentos entre governos para construir os principais cabos transoceânicos de fibras óticas, sem os acordos interestatais para permitir a receptação de sinais de satélites, para regulamentar as novas e mais rápidas comunicações telefônicas (por vozes e por dados), que possibilitam a existência das “empresas em rede” e até das redes sociais. Enfim, a globalização é um processo complexo e multifacetado. Possui dimensões tecnológicas, econômicofinanceiro-comerciais, (geo)políticas, culturais, sociais e ecológicas. E se se desenvolve tanto por acordos interestatais quanto pela ação ou reação de inúmeros outros agentes: empresas, indivíduos, grupos sociais, organizações internacionais intergovernamentais e não governamentais, etc. É evidente que na história humana nada é inevitável e muito menos a globalização. Outras alternativas, inclusive outra forma de globalização poderiam ter ocorrido ou ainda podem ser idealizadas.87 Só que ela resultou de um complexo jogo de forças, que ajudou a definir as suas características. Ela se adequou perfeitamente à revolução técnico-científica e à nova ordem mundial consolidada a partir dos término da guerra fria. Quer gostemos ou não, ela constitui um aspecto ou uma parte importante deste novo século e desempenha um relevante papel nas suas transformações.

Dessa forma, não é possível qualquer projeto nacional coerente para o século XXI que não leve em consideração a revolução técnico-científica (especialmente agora, nesta fase denominada Quarta Revolução Industrial, com o notável avanço na inteligência artificial e na robótica), a globalização e a complementar formação de associação de países ou mercados regionais. Sem dúvida que a globalização é uma realidade execrável para muitos, que a combatem sob diversos pretextos ou interesses. Mas ela existe de fato – não é somente um “discurso neoliberal”, como alguns apregoam, e tampouco a “nova roupagem do imperialismo”. E faz parte do contexto ou das “condições objetivas” no qual a nossa existência e as nossas ações estão enraizadas. Por sinal, até mesmo os antiglobalistas dependem dela para suas ações: se comunicam via internet ou redes sociais com o uso de computadores ou telefones celulares, viajam de avião para participar de manifestações em vários recantos do globo, aproveitando portanto a enorme expansão dos meios de transportes que caracteriza a globalização, possuem cartões de crédito e/ou débito internacionais (tidos como um dos grandes símbolos da globalização) para pagar suas despesas, etc.  

Dinâmica da nova ordem A nova ordem mundial possui um ritmo de mudanças muito mais rápido do que a ordem anterior, a bipolar. Rápidas mudanças tecnológicas. Mudanças econômicas – basta ver a ascenção da China e da Índia, considerados

países extremamente atrasados até os anos 1980. Intensos fluxos internacionais de capitais. Maciços movimentos de pessoas, tanto na expansão do turismo internacional como nas migrações em massa, com dezenas de milhões de pessoas todos os anos – refugiados e migrantes legais ou ilegais – indo para a Europa, os Estados Unidos, os países árabes exportadores de petróleo e outros. Mudanças de valores culturais – por exemplo, em ações afirmativas em vários países, na legalização de casamentos homossexuais ou do aborto, na crescente incorporação feminina à força de trabalho, nas mudanças no modelo de família, que deixa de ser patriarcal e apenas heterossexual, além do crescente número de pessoas que vivem sozinhas, etc. Por isso mesmo esta ordem mundial é mais instável que a anterior. Ela possui variados conflitos e tensões. Mesmo sem a pretensão de detalha-los, acreditamos que seja possível um entendimento genérico a partir de duas constatações: eles se tornaram mais complexos e plurais com o final da guerra fria e tendem a ser mais globais e, direta ou indiretamente, interconectados. No que diz respeito à maior complexidade e pluralidade, isso decorreu do final da guerra fria e da disputa ideológica entre capitalismo e socialismo. A dissolução do “mundo socialista” – e também, em grande parte, da própria utopia socialista –, juntamente com a derrocada da União Soviética, que era o único centro mundial de poder que de certa forma

limitava a expansão da economia de mercado e a ação geopolítica dos Estados Unidos, suscitou em muitas partes do mundo uma busca de novas alternativas (no plural). Em alguns casos ocorreu um fortalecimento de antigas tradições culturais, em outros casos o(s) fundamentalismo(s) substituiu(ram) a antiga utopia socialista e, em outros ainda, caminhou-se para a criminalidade pura e simples. Determinadas identidades culturais, que aparentemente estavam adormecidas durante a guerra fria, emergiram com vigor nesta nova ordem mundial. Isso, a par do aumento nos fluxos demográficos (migrações e turismo internacionais, aumento dos refugiados), fez com que houvesse uma redescoberta da enorme diversidade que existe na humanidade. Juntamente com a difícil convivência com os “outros” nas sociedades que se tornam cada vez mais multiétnicas e multiculturais. Como também na escala planetária pela expansão dos meios de comunicações que divulgam valores e modos de vida que se chocam com determinadas culturas ou religiões. Para alguns somente um completo retorno às “tradições” (religiosas ou até nacionais, sempre idealizadas) – e, no limite, uma expulsão ou uma conversão dos “outros”, dos “estrangeiros” ou dos “infiéis” – traria uma harmonia para este mundo pleno de diferenças, desigualdades e injustiças. São os racistas e os fundamentalistas, que em muitos casos não se limitam ao discurso e partem para a

ação violenta (agressões, depredações, terrorismo). Para outros – inclusive muitos ex-comunistas – não há mais nenhum ideal pelo qual valha a pena lutar e, consequentemente, deve-se explorar ao máximo e sem qualquer escrúpulo as oportunidades de ganhos monetários: são os mafiosos, os traficantes (de armamentos, de drogas variadas, de prostituição, adulta ou infantil, de trabalho semi-escravo, etc.), os novos piratas e os novos mercenários. Também os conflitos armados, ao contrário do que se pensou inicialmente (em 1989-90), parecem ter se expandido com o final da bipolaridade. A ausência do jogo da guerra fria, da disputa entre as duas superpotências, que se intrometia em ou intermediava quase que todos os demais conflitos do globo, deixou uma espécie de “vazio” que logo foi preenchido por violentos choques étnicoculturais-territoriais que em alguns casos produziram verdadeiros extermínios em massa: na África (Somália, Ruanda, Sudão, Chade, Nigéria, Líbia e outros), nos Bálcãs, no Oriente Médio (Kuwait, Iraque, Síria, Líbano, Israel e Palestina), e no sul da Ásia (Afeganistão, Caxemira, Punjab). Talvez o mundo tenha sido menos instável e inclusive menos perigoso na época da bipolaridade, apesar da intensa corrida armamentista e da ameaça da guerra termonuclear entre as superpotências. A guerra fria foi ao mesmo tempo uma rivalidade e uma cooperação implícita e os conflitos étnicos-territoriais e/ou culturais eram por ela

normalmente dissolvidos ou abafados – ou no mínimo administrados. Não que eles não existissem, pelo contrário: em alguns casos eram estimulados pelas superpotências, que gostavam, sempre que houvesse oportunidades, de expandir sua área de influência ou até eventualmente testar novos armamentos ou estratégias. Só que eles eram relativamente controlados ou limitados pelo chamado “equilíbrio de terror” e pela conivência tácita entre as duas superpotências. No mundo pós-guerra fria o holocausto, a virtual e catastrófica guerra termonuclear entre superpotências, é uma possibilidade extremamente remota. Porém, os conflitos locais e regionais – que passam a encerrar uma dimensão global – se multiplicam, inclusive entre Estados detentores de armamentos nucleares (como entre Índia e Paquistão, ou envolvendo a Coreia do Norte ou até a China). Mas talvez todos esses conflitos violentos sejam apenas provisórios e a nova ordem, que ainda não se encontra totalmente configurada, caminhe no sentido de forjar instituições internacionais – uma ONU fortalecida e redefinida, por exemplo88, ou então uma OTAN que inclua a Rússia e até a China – que equacionem ou minimizem esses problemas. Mas para isso é também imprescindível que os Estados nacionais formalizem uma mais profunda e clara divisão de tarefas com os “novos” agentes que dispõem de um crescente poderio em todos os níveis ou escalas: as organizações não governamentais, a mídia, principalmente em relação às “novas mídias”, as grandes

culturas ou civilizações, com destaque para as principais religiões, os fortes movimentos separatistas que existem em vários países, etc. Os inúmeros conflitos ou tensões da nova ordem mundial tendem a ser cada vez mais conectados e globais. Por um lado há a crescente interdependência entre todos os locais, entre todos os povos, culturas e economias. Não apenas pelo aspecto econômico – os fluxos comerciais e financeiros, produção complementar, redes de empresas. Mas também pelas comunicações, pelas redes de computadores e pelos celulares com seus aplicativos, hoje em dia disseminados por todo o mundo, inclusive nos países e áreas mais pobres. Pelos problemas ambientais em comum. E pelos valores – pelo menos alguns deles – que se universalizam. Por outro lado, e de forma complementar, a intensidade, a velocidade e o alcance planetário das informações hoje faz com que praticamente todos saibam as mesmas notícias no mesmo instante e se sintam como interessados (ou até responsáveis) pelos problemas de áreas distantes. Os meios de comunicações – que em grande parte tendem a se tornar mais variados, segmentados e interativos – passam a desempenhar um crescente papel nas relações de poder. Como escreveu um autor: “O poder, como capacidade de impor comportamentos, reside nas redes de trocas de informações e de manipulação de símbolos que estabelecem relações entre atores sociais, instituições e movimentos culturais por

intermédio de ícones, porta-vozes e amplificadores intelectuais. (...) Não há mais elites estáveis do poder. Há, contudo, elites resultantes do poder, ou seja, elites formadas durante seu breve período de detenção do poder em que tiram vantagens da posição política privilegiada para obter acesso mais permanente aos recursos materiais e às conexões sociais. A cultura como fonte de poder e o poder como fonte de capital são a base da nova hierarquia.”89 Isso não significa que a mídia tradicional – TV, jornais, rádio, que também possuem portais de notícias na net – “manipule” a opinião pública a seu bel prazer, como querem alguns. Tampouco que predomine uma “sociedade do espetáculo” no sentido maniqueísta do tempo substituído pela publicidade e do espaço instrumentalizado como separação ou isolamento dos trabalhadores90. Na realidade os meios de comunicações são um campo de lutas (culturais, simbólicas) e não um instrumento puro e simples das elites ou do capitalismo. Um campo de lutas que se tornou mais importante na medida em que as “novas indústrias”, no sentido amplo do termo (ensino e pesquisa, mídia, assessorias, setor financeiro...), adquiriram uma maior importância, para a reprodução do capital, do que a fábrica ou as “relações de produção” no entendimento clássico. Não se trata do “capital” ou do(s) proprietário(s) decidindo tudo de cima para baixo, nem de uma relação conflituosa entre os “trabalhadores” (jornalistas, técnicos

de informática ou telecomunicações) e os capitalistas ou os diretores. Trata-se de um equilíbrio instável entre vários participantes, que possuem maior ou menor poder de acordo com as circunstâncias. O público (leitores, espectadores ou ouvintes, internautas), os anunciantes, os proprietários (que podem ser milhares de acionistas), os diretores (que muitas vezes têm interesses divergentes). Os técnicos e os jornalistas (de diversos matizes ideológicos). A preocupação com os concorrentes e com os lucros, os “amplificadores intelectuais” ou ícones/mitos nacionais e/ou internacionais que não podem deixar de ser ouvidos (e que em alguns casos são extremamente críticos). E a própria realidade (ou a percepção dela), que nunca pode ser completamente ignorada ou distorcida nesta época de redes sociais e de computadores, na qual mesmo um indivíduo isolado pode transmitir a sua versão para todo o mundo. A nova ordem geopolítica mundial, enfim, encerra um maior potencial de conflitos e estes são mais variados e complexos – e também mais interdependentes e de alcance global – do que aqueles da bipolaridade. Por um lado isso é negativo: a revolução técnico-científica também possibilita novas formas de guerras e até de terrorismos (informáticos, biotecnológicos, químicos, de comunicações, etc.) e estas podem acabar se tornando permanentes e incontroláveis. Mas por outro lado isso é positivo: a Terceira (ou a Quarta, se aceitarmos esta ideia de uma nova fase) Revolução Industrial e a complementar

globalização parecem estar constituindo uma sociedade mundial e esta poderá, mais cedo ou mais tarde, construir determinados canais democráticos para se deliberar e agir de comum acordo. Pelo menos segundo a vontade da maioria. Ou melhor, dos Estados mais fortes, em primero lugar, e, possivelmente, também de outras instituições internacionais nas quais os mais fracos também têm voz. Deliberar e agir com vistas a resolver ou minimizar os grandes problemas geopolíticos e talvez até econômicosociais (na medida em que, pelo menos em tese, a exclusão de inúmeros povos e áreas não interessa ao sistema global) do espaço mundial.

Cap. 4 - Desenvolvimento e desigualdades internacionais  

A teoria do imperialismo foi um alicerce fundamental para quase todas as teorias “radicais” sobre a dependência ou o subdesenvolvimento. Mas foi justamente esse o ponto fraco dessas interpretações. Foi se legitimar numa teoria com evidentes objetivos político-programáticos e que no fundo apenas justificava uma certa estratégia (leninista) para se fazer a “revolução social” – ou, mais precisamente, para se “tomar o poder” enquanto partido burocratizado e centralizado que fala em nome do proletariado. Também aqui os limites dessa teoria são tangíveis e as explicações mais recentes sobre as desigualdades internacionais a deixam de lado e buscam outras determinações – diferentes da “lógica do sistema global” ou do imperialismo – para se compreender o desenvolvimento (visto agora como humano e sustentável e não apenas econômico) e, consequentemente, o subdesenvolvimento. O ponto que talvez seja o mais importante é que não se acredita mais num processo ou modelo único de desenvolvimento, válido para todos os povos e regiões do planeta. O(s) caminho(s) do desenvolvimento – e a própria maneira de entender essa situação – varia(m) muito conforme a cultura e conforme as condições históricas e geográficas. E, de forma complementar, não existe uma única realidade do subdesenvolvimento, mas sim inúmeras. E o “atraso” ou não desenvolvimento de alguma economia nacional ou de regiões do globo não é mais considerado como uma pré-condição indispensável para o desenvolvimento de outras. Esse tipo de lógica – que o desenvolvimento de alguns pressupõe e necessita do subdesenvolvimento de outros – foi típica das explicações alicerçadas na teoria do imperialismo e no fundo imagina a economia mundial como um conjunto fixo de riquezas, como um imenso bolo no qual alguém que se apropria de um enorme pedaço, necessariamente deixa apenas pequenas porções para os demais. Existe sim uma ligação, uma interdependência entre todas as partes do mundo. Mas essa interligação é complexa e cheia de nuances. Ela não se explica pela ideia simplista que o alto padrão de vida em algumas áreas exista devido ao atraso e à exploração em outras. Que os países subdesenvolvidos são o outro lado, a outra face do desenvolvimento, que o desenvolvimento enfim necessita “explorar” determinadas áreas periféricas ou dependentes.  

Pressupostos do imperialismo

Alguns pressupostos da teoria do imperialismo – que existem, parcial ou totalmente, em praticamente todas as interpretações “radicais” sobre o subdesenvolvimento – não mais se sustentam. Vamos fazer uma pequena lista deles e depois mostrar o porquê cada um não tem mais – se é que alguma vez teve – qualquer fundamentação científica. Um deles afirma que o sistema global, o sistema capitalista mundial, tem uma lógica única que explica todas as desigualdades internacionais. É como se cada parte não tivesse real autonomia e fosse apenas uma engrenagem da máquina unitária. Outro é que não há desenvolvimento sem o seu par, o seu outro lado necessário: o subdesenvolvimento. Isso significa que as áreas ricas vivem às custas das pobres e não há desenvolvimento sem a retirada de riquezas em áreas que, por esse motivo, ficam na situação oposta, isto é, no não-desenvolvimento. E outro pressuposto afirma que o “verdadeiro” desenvolvimento não é capitalista e sim socialista, que somente numa sociedade mundial igualitária e sem economias de mercado, sem a propriedade privada e a busca de lucros, é que todos os povos poderiam ser plenamente desenvolvidos. O capitalismo, assim, é entendido como um sistema que necessariamente gera subdesenvolvimento e desigualdades (sociais e regionais), e somente a sua radical substituição por um novo sistema socioeconômico permitiria a tão almejada igualdade e o desenvolvimento de todos os povos. A ideia de uma lógica única comandando todas as desigualdades planetárias tem por base dois princípios fundamentais. Primeiro, que o todo, ou a totalidade, é algo superior e que se impõe a cada uma das suas partes. Segundo, que essa totalidade – o sistema capitalista mundial – já se propagou para toda a superfície terrestre, já se tornou hegemônica em todos os recantos do globo. O autor da atualidade que expressa com maior clareza e de forma mais radical essa ideia é Imannuel WALLERSTEIN91, que numa entrevista jornalística reiterou com veemência esse seu ponto de vista: “Tanto os economistas neoliberais quanto os desenvolvimentistas tradicionais sempre acreditaram que o ‘desenvolvimento’ fosse um processo nacional e, portanto, fundamentalmente dependente das ações realizadas dentro do próprio país, seja no que se refere a políticas públicas, seja em tudo o que gira em torno dos valores culturais ou da estrutura social. [Todavia] O sistema-mundo é estruturado de tal forma que há um eixo centroperiferia, no qual algumas zonas geográficas produzem bens de alto valor agregado (de modo quase monopólico) enquanto outras regiões produzem bens de baixo valor agregado para mercados altamente competitivos. É impossível, dentro desse sistema, que todos os países tenham o

mesmo padrão de vida, que todos aqueles que hoje são pobres possam ‘desenvolver-se’ e tornar-se tão ricos quanto aqueles que já são ricos agora. Alguns Estados podem mudar de posição e subir ou descer na hierarquia, mas a hierarquia é constante. Os EUA têm sido, ao menos desde 1945, o poder hegemônico no sistema-mundo. Hegemonias, como monopólios, nunca duram. Elas se autodestroem. A hegemonia dos EUA tem apresentado sinais de declínio desde a década de 1970. (...) O sistemamundo moderno é a economia-mundo capitalista. Ele teve início no século 16 num segmento específico do planeta: na Europa ocidental e em partes das Américas. Ele se expandiu geograficamente e inclui todo o planeta desde o século 19. Vivemos nos últimos 400 anos num único sistema histórico, a economia-mundo capitalista. Estamos num caminho comum bastante particular. Esse sistema tem suas regras, suas contradições, seu modo de desenvolvimento. A economia-mundo capitalista tem sido um sistema histórico incrivelmente bem-sucedido no que se refere ao que quer fazer, que é a interminável acumulação do capital. Ela atingiu, em 400 anos, uma enorme expansão da produção mundial e um incrível avanço tecnológico. Logicamente, ela também criou uma enorme quantidade de destruição e de empobrecimento de amplos segmentos das populações mundial. Um dos princípios básicos da economia-mundo capitalista é a distribuição desigual da mais-valia. Com o tempo, isso leva a uma constante polarização – econômica, social e demográfica – do sistemamundo.”92 Como se percebe nessa longa citação, não seriam os Estados – nem qualquer outro fator interno às sociedades: política macroeconômica, iniciativa empresarial, sistema jurídico-político, traços culturais ou geográficos, etc. – que influenciariam a sua situação de desenvolvido ou subdesenvolvido, mas sim a lógica do sistema global. A economia-mundo capitalista se imporia sobre cada um das suas partes – as economias nacionais, as regiões do globo – e ela necessitaria engendrar um centro e uma(s) periferia(s), sendo que esta(s) enviaria(m) ao centro uma parte da mais-valia nela(s) produzida. Estamos aqui no velho terreno da polêmica sobre o maior peso dos fatores “externos” ou “internos” para os processos históricos de cada sociedade93 e essa interpretação minimiza completamente os elementos “internos” e enxerga uma entidade “externa” onipotente – o sistema-mundo –, que no final das contas seria a grande (ou melhor, a única) responsável pela situação de maior ou menor desenvolvimento econômico e social de cada um dos Estados-nações.

É um tipo de percepção que desvaloriza completamente a história concreta – isto é, as lutas sociais, as estratégias e os projetos deste ou daquele agente ou protagonista – em prol de uma lógica econômica fantasmagórica e inexorável, de uma “história” escatológica e sem sujeitos. Além disso ela também compartilha do pressuposto – ou crença – de que o desenvolvimento de algumas áreas é um resultado da transferência internacional de riquezas – isto é, de mais-valia – e que, dessa forma, existiria uma “exploração” das economias periféricas pelas centrais. Apesar da orientação marxista, essa visão contraria frontalmente os escritos de Marx, que afinal foi o forjador da ideia de exploração social fundamentada no trabalho vivo não pago, isto é, na mais valia. Só existe exploração ou tranferência de mais valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com veemência Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em sua principal obra, ele enfatizou que: “Já vimos que a taxa da mais valia depende, em primeiro lugar, do grau de exploração da força de trabalho. (...) Outro fator importante para a acumulação é o grau de produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de horas com a mesma intensidade. (...) Apesar dessa igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do produto semanal do inglês, que trabalhou com uma poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês consegue fiar várias centenas de libra-peso.”94 Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do que a China não devido a uma transferência de riquezas desta para aquela, mas sim porque tinha uma tecnologia mais avançada e uma maior produtividade do trabalho. Isso, para Marx, significava maior quantidade de mais valia relativa e portanto uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o chinês. Para Marx, enfatizando, a Inglaterra era mais rica porque produzia internamente mais riquezas ou mais valia – e isso mesmo com os operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por semana que os chineses, ou até mesmo com estes últimos trabalhando bem mais – só que produzindo menos devido à menor produtividade do trabalho, fruto do menor desenvolvimento tecnológico. Aliás, é exatamente por esse motivo que a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente ocorrer primeiro nas regiões mais desenvolvidas, ou seja, com maior acumulação de capital e portanto com maior exploração do trabalhoEm todo o caso não é esta a nossa objeção fundamental. Não será nos escritos de Marx – e sim no confronto com a realidade – que iremos evidenciar as insuficiências desse tipo de explicação.

 

Motivos do atraso Se as economias subdesenvolvidas estivessem nessa situação devido à transferência internacional de mais valia, então uma conseqüência lógica desse fato é que as áreas ou nações mais “atrasadas” seriam as mais “exploradas”. Ora, não é isso o que acontece na realidade. As economias mais subdesenvolvidas do mundo – tais como Serra Leoa, Níger, República Democrática do Congo, Zimbábue, Chade, Sudão do Sul, Burundi, República SulAfricana, Mali, Eritreia, Serra Leoa, Moçambique, Etiópia, Guiné-Bissau, Sudão, Etiópia e outras –, ao contrário do que pensam alguns, são áreas pouco atrativas para os capitais dos países desenvolvidos. Possuem baixo volume de comércio exterior (exportações e importações, tanto de bens como de serviços) e poucas empresas estrangeiras, às vezes nenhuma. O grande problema delas não é o de serem “exploradas e sim relativamente “esquecidas”. Isto é, são economias que não receberam nem recebem grandes inversões de capitais, que não têm grandes atrativos para as empresas estrangeiras, embora atualmente seja a China quem mais investe nesses países com vistas a produzir, a baixo custo, matérias primas para suas indústrias ou alimentos para o gado e para sua população. São portanto economias nas quais ainda não há tanta exploração de riquezas naturais (minérios, petróleo) ou mesmo de riquezas agícolas que visem abastecer os mercados internacionais. Quando essas economias começam a ser mais “exploradas”, com investimentos estrangeiros visando extrair petróleo ou minérios, ou produzir gêneros agrícolas para exportação, na verdade a pobreza começa a diminuir e não a aumentar. Assim, quando há essa exploração dos recursos naturais (petróleo, minérios, solos para agropecuária), normalmente são países com rendas per capita e padrões de vida (expectativa de vida, mortalidade infantil, índices de escolaridade, etc.) maiores que esses mencionados, que estão na lista dos mais baixos IDHs do mundo. Estes são países extremamente pobres que exportam muito pouco para o exterior – o que eles mais “exportam”, pelo menos nas últimas duas décadas, é emigrantes ou refugiados. Ah!, exultariam alguns: aí está a “exploração” internacional dos países ricos, que necessitariam dessa força de trabalho barata para o seu elevado padrão de vida. Nada disso. Na realidade em grande parte esses migrantes entram clandestinamente na Europa ou os Estados Unidos, que não necessitam deles, pois vão contribuir para aumentar as taxas de desemprego. Em geral, nos dias atuais – desde pelo menos a revolução técnico-científica, com o avanço na mecanização e na robotização – esses migrantes quase que não

possuem serventia nessas economias avançadas, que têm necessidade muito mais de força de trabalho qualificada do que de mão de obra barata. Esta última, aliás, nem é muito possível nesses países devido aos salários mínimos relativamente elevados e à intensa fiscalização para o cumprimento das legislações trabalhistas avançadas quando comparadas aos países mais pobres. Mas e as dívidas externas? Não seriam elas a principal causa do subdesenvolvimento desses países, como alegam alguns? Também não. Em boa parte, essas economias mais pobres sequer pagam as parcelas de suas dívidas externas – quando elas existem – e esses minguados recursos não são de maneira alguma importantes para o elevado padrão de vida das sociedades desenvolvidas. A bem da verdade, esses países mais pobres, os de menores índices de desenvolvimento humano, via de regra mais recebem recursos financeiros ou produtos – equipamentos, medicamentos, alimentos – de fora, especialmente a título de ajuda de instituições internacionais, de alguns países ricos e de algumas ONG’s, do que os enviam para o exterior. O grande empecilho que existe para seu desenvolvimento não é a (pretensa) lógica do sistema capitalista e sim suas questões nacionais específicas: guerras civis ou de guerrilhas; grande diversidade étnica e até de idiomas e culturas, com disputas pelo controle do poder público ou de certas regiões no país; governos em geral extremamente autoritários, ineficientes e corruptos; ausência de empreendedorismo ou mesmo de condições sociais, jurídicas e econômicas que o possibilitem; etc. Daí então uma grande parte dos pensadores “de esquerda” nos últimos anos ter deixado de lado essa ideia de “nações exploradas” – ou mesmo de classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos sem terra, etc. –, pois para haver exploração (social) é necessário haver trabalho não pago, ou seja, geração de mais valia. Ninguém é explorado porquê não tem emprego, terra ou capital. Por isso a noção de “excluídos” – para indivíduos, grupos sociais, regiões ou povos – é mais adequada para essas situações de pobreza ou de carência. A categoria “exploração” pressupõe trabalho, atividade produtiva, extração de riquezas em benefício de outros, ao passo que a noção de “exclusão” significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa – seja do trabalho (isto é, da “exploração”), do acesso à escola ou à saúde gratuítas, do acesso à moradia ou à terra, do acesso à internet (a chamada exclusão digital), etc.95 Mas se chegarmos até esse ponto – o de falar em “excluídos” e não mais em “explorados” – então não tem mais sentido afirmar que o desenvolvimento dos

países ricos se faz às custas do subdesenvolvimento das áreas pobres. Pois para que isso ocorra – isto é o desenvolvimento e o subdesenvolvimento serem faces opostas e complementares do mesmo processo de acumulação mundial – teria que haver necessariamente uma efetiva inclusão dessas regiões mais subdesenvolvidas no sistema global, com enorme produção e exportação a baixos preços de riquezas, algo que não existe - ou existe numa quantidade ínfima – nessas economias mais pobres do mundo. O contrário é que é verdadeiro: os países que mais exportam riquezas (seja petróleo, minérios, produtos agrícolas ou bens industriais mais simples), são exatamente os que, em geral, possuem as maiores taxas de crescimento da economia (algo que possibilita, embora não necessariamente, um desenvolvimento humano ou social), tais como a China (depois que se abriu para o capitalismo), ou a Índia (depois que deixou de ser uma economia fechada e realizou reformas no sentido de desburocratização, diminuição de impostos para produção e exportação, privatização de empresas estatais ineficientes, incentivos ao empreendedorismo, etc.), entre vários outros.  

China e Índia Pode-se argumentar que nem todos os países periféricos constituem esses países mais pobres, com os menores IDHs do mundo. Alguns países tidos como “periféricos” (um termo, por sinal, bastante questionável) exportam grandes quantidades de minérios, de petróleo, de produtos agrícolas ou até de bens manufaturados produzidos – pelo menos em alguns casos – com o uso de uma mão-de-obra extremamente barata. A China, por coincidência – justamente esse Estado com um governo (mas não uma economia) que ainda se proclama “comunista” – é desde os anos 1990 a mais importante dessas economias antes vistas como periféricas e que vêm inundando o mercado mundial com produtos industrializados variados, produzidos com o uso de uma força de trabalho “disciplinada” (ou seja, reprimida) e cujos salários são baixíssimos em termos internacionais. Tanto o salário mínimo quanto o salário industrial médio na China, apesar de terem aumentado nos últimos anos, ainda são inferiores até mesmo aos do Brasil. Mas isso possibilitou à China se tornar no país mais industrializado do mundo desde 2010, quando superou os Estados Unidos no valor da produção industrial, e também gerou uma notável melhoria nas condições de vida da imensa maioria da população: as taxas de mortalidade infantil, a pobreza e a fome caíram enormemente, o IDH chinês, como já mencionamos, subiu bastante

(era baixo até inícios dos anos 1980, depois se tornou médio e desde 2015 já é considerado alto). E isso tudo com salários baixos em comparação com os países desenvolvidos e até mesmo em comparação com países como o Brasil, a Argentina ou o México. Mas esses empregos industriais, com esses salários baixos pelos padrões internacionais, são intensamente disputados, pois não podemos esquecer que até os anos 1980 havia mais de 800 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha internacional da pobreza na China – hoje são menos de 100 milhões. Esse mesmo exemplo pode ser, mutatis mutandis, aplicado à Índia. Apesar de um crescimento econômico (e social) mais recente que a China (ela só acordou para a necessidade de reformas liberalizantes quando percebeu que seu vizinho e tradicional adversário estava despontando como uma das maiores economias do mundo). Apesar dos salários médios extremamente baixos em termos internacionais, vem com esse crescimento econômico diminuíndo, embora bem menos que a China, a pobreza e a fome que há décadas (ou séculos) existem nesse país tão diversificado. E vários outros casos podem ser mencionados – Indonésia, Turquia, Vietnã, Chile e outros – de países que vêm tendo um bom ritmo de crescimento econômico nas últimas décadas exatamente porque se abriram mais (e não porque romperam, como recomendam as teorias do imperialismo e da dependência) para o capitalismo, para investimentos estrangeiros e para o comércio externo. Alguns outros casos, especialmente os “tigres asiáticos”, também exemplificam essa constatação. Singapura, Coreia do Sul e Taiwan tinham economias consideradas, no início dos anos 1970, bem menos desenvolvidas que a brasileira – e com salários médios e rendas per capita mais ou menos semelhantes ou até menores que os do Brasil. Hoje são países considerados pela maioria dos especialistas como praticamente desenvolvidos, com salários médios bem maiores que os do Brasil, com rendas per-capita elevadas (de 65 mil, 32 mil e 27 mil dólares em 2019, segundo o Banco Mundial, sendo a que do Brasil era de 9 mil dólares), e com outros invejáveis índices econômico-sociais: elevadas taxas de escolaridade e inexistência de analfabetismo para a população com mais de 7 anos de idade, alta expectativa de vida, baixíssimas taxas de mortalidade infantil, amplo acesso da população em geral à educação, à saúde, à telefonia, à água tratada, à rede de esgotos, etc. E essa melhoria não foi conseguida ficando à margem da globalização ou do sistema capitalista internacional e sim se integrando mais, produzindo e exportando bem mais do que no passado. E também graças ao combate à burocracia e à corrupção (especialmente em Singapura, que era considerado até os anos 1970 um dos

países onde mais havia corrupção em todo o mundo). Além da diminuição de impostos, dos incentivos a investimentos estrangeiros, à produção e à exportação, o estabelecimento de normais legais que garantem os contratos e criam um clima de estabilidade, etc. Ao contrário das explicações alicerçadas no imperialismo ou no capitalismo como responsável pelo subdesenvolvimento – nas quais uma maior integração da periferia no sistema global significa uma maior “exploração” e, portanto, maior pobreza –, esses casos demonstram que a maior integração ao sistema mundial pode e costuma ser benéfica e inclusive trazer um efetivo desenvolvimento não apenas econômico, mas também humano ou social. E a bem da verdade não existe nenhum caso de desenvolvimento, desde que esse processo se iniciou com a Revolução Industrial, que não tenha ocorrido com forte ligações com o sistema produtivo mundial, com aumento no comércio externo. Na realidade só passou a existir desenvolvimento no sentido que entendemos hoje – com também seu contrário, o atraso ou subdesenvolvimento – a partir da Revolução Industrial iniciada em meados do século XVIII. Até então predominavam economias de base agrária e com pequenas desigualdades internacionais. Comparado com nossa realidade atual, todas as sociedades eram pobres.96 Havia, evidentemente, pessoas extremamente ricas em comparação com seus compatriotas (reis, nobreza, grandes comerciantes e proprietários rurais), embora com baixíssima expectativa de vida frente à imensa maioria da população mundial da atualidade. Mas não existia de fato nenhuma economia desenvolvida ou rica. A industrialização, com as máquinas ampliando a produtividade do trabalho, é que gerou economias que deslancharam, que se destacaram frente às demais por uma maior produção e diversificação de riquezas (bens e serviços) por habitante. A pobreza, dessa forma, precede o desenvolvimento e não é uma decorrência ou um efeito deste. Mas o desenvolvimento, mesmo impulsionado pela tecnologia e elevação da produtividade do trabalho, sempre se expande com o intercâmbio com outras economias. E contrário também é verdadeiro. Ou seja, via de regra os países mais pobres do mundo são relativamente fechados, com poucos investimentos estrangeiros e pouco comércio externo. Sem dúvida que também existiram e existem determinadas injunções internacionais que atravancam o desenvolvimento de certas sociedades: o colonialismo (que já não mais existe), o pagamento das dívidas externas (mas que em geral, salvo exceções, foram recursos desperdiçados e em parte desviados para contas particulares), as dificuldades que os países desenvolvidos criam para

transferir tecnologia avançada para os países subdesenvolvidos, os capitais especulativos que desestabilizam algumas moedas nacionais, etc. Mas essas injunções não são inquebrantáveis; elas apenas dificultam bastante, mas não impossibilitam, o desenvolvimento das economias menos desenvolvidas. Afinal, elas também existiram para os “tigres asiáticos”, que bem ou mal, souberam como superá-las. A dívida externa da Coreia do Sul, por exemplo, já foi maior que a do Brasil, e esse país asiático também enfrentou enormes dificuldades para colocar no mercado internacional os produtos que hoje exporta em grande quantidade: micro-computadores, especialmente chips (é um dos maiores exportadores mundiais), produtos eletrônicos em geral, automóveis, aço, navios, etc. Alguns fatores são extremamente importantes para o desenvolvimento econômico e social. Primeiro, um Estado eficiente, que tenha uma consistente e contínua política econômica, que não seja hipertrofiado (isto é, que não seja um peso ou um parasita para a sociedade) e que se ocupe primordialmente de algumas atividades básicas (educação, saúde, previdência, lei e ordem, fiscalização). Segundo, um ótimo sistema educacional acessível à população em geral, desde o nível básico até as universidades e institutos de pesquisas científicas e tecnológicas. Complementarmente, uma força de trabalho qualificada, com elevada escolaridade média. E um sistema legal que garanta os contratos e o clima de estabilidade, fundamental para o empreendedorismo e os investimentos. Como também um razoável mercado consumidor (que pode ser ampliado através da integração em algum mercado regional), o que significa uma população com elevado nível médio de poder aquisitivo. Não há mais nenhuma dúvida que o elemento tido hoje como o mais importante para o desenvolvimento é o chamado “capital social”, isto é, a população: sua escolaridade, sua cultura, suas condições de saúde e higiene, seu nível de rendimento e poder aquisitivo. E também o “capital natural” – ou seja, a conservação e a preservação dos recursos naturais, a preocupação com a as gerações vindouras – é importantíssimo, principalmente quando se pensa num desenvolvimento sustentável. E o contrário também é verdadeiro: os maiores obstáculos ao desenvolvimento econômico e social sustentável não são tanto os “externos” (dívidas, barreiras às exportações, empresas estrangeiras) e sim a ineficiência, a hipertrofia, a burocratização e a corrupção do Estado – e também na sociedade em geral, algo que desperdiça preciosos recursos. E o descaso para com a educação e a saúde, a negligência frente ao uso racional dos recursos naturais e a presença de preconceitos e discriminações (contra as mulheres ou contra determinadas etnias e/ou

grupos sociais ou de orientação sexual), o que implica numa subutilização dos recursos humanos ao deixar de lado uma enorme parcela da população, ao impedir ou dificultar seu acesso à educação, ao trabalho ou às decisões importantes.  

Os limites ambientais A questão dos limites ambientais para o desenvolvimento surgiu a partir de um estudo de 1972, patrocinado pelo Clube de Roma, que foi uma associação de cientistas, patrocinada por empresários, que surgiu na capital da Itália em 1968. Essa associação publicou, em 1972, o relatório The limits of grown [os limites do crescimento], que em síntese afirma que os recursos naturais do nosso planeta não aguentariam o intenso crescimento populacional e das atividades humanas, que num meio ambiente finito não seria possível um crescimento (econômico e demográfico) infinito. Esse constatação foi violentamente combatida por setores da esquerda que a viam como uma forma (imperialista) de evitar o desenvolvimento do então chamado de Terceiro Mundo. Mas no fundo não se pode negar a impossibilidade de que os 9,6 bilhões de seres humanos projetados para 2050 tenham todos os mesmos níveis de consumo (de água potável, de eletrodomésticos, veículos, etc.) de um norte-americano médio de 1972 – ou de hoje, o que seria pior ainda. Não haveria recursos naturais para tanto e as consequencias ambientais (desmatamentos, perda de biodiversidade, mudanças climáticas, poluição atmosférica e das águas, etc.) seriam insustentáveis. De fato, não é possível um crescimento infinito num meio ambiente finito. O mencionado estudo patrocinado pelo Clube de Roma, que foi a origem dessa questão, infelizmente, preocupava-se mais com o crescimento demográfico numa visão neomalthusiana, e não tanto com o tipo específico de desenvolvimento, se sustentável ou não. Foi considerada como uma preocupação “de direita” ou conservadora, embora autores como Celso FURTADO e Cornelius CASTORIADIS97, dentre outros, se apropriaram dessa temática dando a ela um colorido “de esquerda” ao deixarem de lado a ênfase na demografia (afinal, uma criança norte-americana consome em média 35 vezes mais que uma criança indiana e quase 300 vezes mais que uma africana!) e colocando em pauta a problemática econômico-social (Furtado) e a questão filosófica do absurdo contido na ideia ocidental e capitalista de crescimento infinito (Castoriadis). Mas em todos esses estudos existe a

mesma falha básica que comprometeu a tese de Malthus: o não reconhecimento da inovação tecnológica ou pelo menos uma ausência de percepção que o sentido da tecnologia sofre mudanças. Sim, é verdade que seria virtualmente impossível continuar a produzir mais e mais automóveis, cidades e edifícios, campos de cultivo, estradas, etc., numa progressão infinita, pois não haveria espaço físico para isso na superfície terrestre, a enorme poluição (do ar, das águas, do acúmulo do lixo) nos sufocaria. E sequer existiriam recursos naturais suficientes: minérios, petróleo, água potável, solos agriculturáveis. Só que a tecnologia vem mudando, inclusive em parte graças a esse pioneiro estudo de 1972 patrocinado pelo Clube de Roma, a partir da introdução do conceito de sustentabilidade. Esse conceito, que se tornou imprescindível para se repensar o desenvolvimento, surgiu no rasto desse estudo do Clube de Roma, graças ao chamado Relatório Brundtland98, produzido em 1987 pela Comissão Mundial Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, chefiado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, advindo daí o nome do relatório. Na época do estudo The limits of grown só se imaginava automóveis movidos a derivados de petróleo (extremamente poluidores), sendo que hoje já existem veículos automotivos movidos a eletricidade, como também (em menor proporção) a hidrogênio, que não ocasionam nenhuma poluição atmosférica. Naquela época existiam os imensos “cemitérios de automóveis”, pois não havia o reaproveitamento de materiais que hoje começa a se tornar regra geral. Naquela época praticamente não existia a coleta seletiva e a reciclagem do lixo. Nem mesmo se conhecia a “produção intangível”, que hoje é essencial: os softwares que controlam a temperatura da geladeira, do ar condicionado ou da água numa máquina de lavar roupas, por exemplo, ou que controlam a programação num aparelho moderno de televisão. Já em 2000, ao contrário de 30 anos atrás, cerca de 70% do custo de um automóvel era formado pela produção intangível; e o PIB norte-americano nesse mesmo ano, medido em toneladas, era o mesmo que um século atrás, porém, quando medido em dólares – principalmente devido à produção intangível – era 20 vezes maior99. Isso em 2000; e hoje, em 2020, mais ainda. Ou seja: todos esses autores – desde os cientistas do Clube de Roma até Furtado e Castoriadis – não levaram em conta as mudanças tecnológicas, com a criação e a progressiva implementação de uma tecnologia verde ou “limpa”100, e muito menos a produção cada vez mais intangível. Eles só

raciocinaram em termos de produção material (por tonelada) e daquela tecnologia predominante no início dos anos 1970. Todavia, a implementação da sustentabilidade, ou de desenvolvimento sustentável, permite um desenvolvimento de todos os Estados nacionais desde que com base em novos padrões de consumo e de tecnologia “limpa” ou verde. Como ênfase no transporte coletivo e veículos não mais movidos a derivados do petróleo, geração limpa de energia (apenas energia solar, eólica, das marés, geotérmica, hidráulica, etc., com a eliminando as usinas termoelétricas), completa reciclagem do lixo, eliminação dos plásticos exceto os que são biodegradáveis, etc. Esse conceito de sustentabilidade, inicialmente econômico-ambiental, depois se expandiu para abarcar outras dimensões: social e cultural. Seria um desenvolvimento ecologicamente correto, economicamente viável e socialmente justo, como também preocupado em preservar culturas tradicionais ameaçadas pelo avanço da modernidade. É uma nova concepção de desenvolvimento que não mais tem como referência o modo de vida dos norte-americanos da segunda metade do século XX. Sem dúvida que existem os limites ambientais para o crescimento econômico. É evidente que se pensarmos em mais e mais toneladas ou quantidade – de automóveis, de máquinas de lavar, de computadores, de prédios, de estradas, etc. – então teremos que concluir que essa noção de um crescimento infinito é um absurdo ambiental e inclusive lógico. Mas a ideia atual de desenvolvimento não é a de crescimento material – o “mais e mais” quantitativo a que se refere Castoriadis. E sim de aprimoramento: veículos automotivos mais seguros, que não poluam a atmosfera e que sejam feitos com materiais recicláveis e/ou reciclados. Residências mais confortáveis e “ecológicas”, com o uso de materiais mais adequados e o seu reaproveitamento, maior uso de vegetação, controle racional via computador, com menor desperdício de energia ou de água, etc. Menos consumismo e reciclagem completa do lixo, infovias que, em parte, substituem as estradas (os produtos que podem ser distribuídos on-line crescem mais que os tradicionais, que necessitam de uma distribuição física), uso conservacionista dos recursos naturais, etc. Mesmo o crescimento populacional, que de fato ainda exerce uma grande pressão sobre os recursos e também impede que alguns países – os campeões mundiais de natalidade, hoje em dia localizados mais na África subsaariana e em partes do mundo muçulmano – tenham uma real melhoria nas suas rendas

per capita e em seus IDHs, tende a se estabilizar e ficar relativamente estagnado (taxa mundial de nascimentos equivalente à de óbitos) por volta de 2040 ou 2050. Nesse sentido – isto é, se pensarmos que a ideia de desenvolvimento não é fixa e imutável e sim constantemente redefinida (inclusive em função de cada realidade específica: seja civilizacional ou nacional) – não existe um claro limite ambiental para que todos os povos possam, cada um conservando os seus valores, serem “desenvolvidos”. Desenvolvidos não no sentido de todos se tornarem iguais aos norte-americanos pelo seu atual padrão de consumo ou consumismo, algo absurdo inclusive sob o aspecto da diversidade cultural. E sim no sentido de poderem alcançar elevados indicadores sócioeconômicos para a população em geral: elevadas expectativas de vida, baixas taxas de mortalidade geral e infantil, altos índices de escolaridade, amplo acesso à água tratada, à rede de esgotos, à eletricidade e à tecnologia moderna (do computador ao telefone, da internet aos mais avançados tratamentos médicos e odontológicos), etc. Seria isso algo impossível, apenas um mito como afirmaram alguns, um privilégio reservado somente a uma minoria da humanidade? Não há comprovação disso e a crescente melhoria do padrão de vida médio da população no mundo – medido pelo crescimento dos índices de IDH de quase todos os países nas últimas décadas, mostra que isso é possível. Juntamente com os avanços da tecnologia “limpa” – expansão da geração de eletricidade com fontes solar e eólica, de veículos automotivos movidos a eletricidade, da reciclagem do lixo, da proibição do uso de embalagens com plásticos não biodegradáveis, etc. Não que seja inevitável – basta ver os retrocessos ocasionados por medidas desastrosas (sempre atendendo a escusos interesses de empresas petrolíferas, de fabricantes de armamentos, de madeireiras, de firmas que objetivam lucros imediatos desconsiderando a sustentabilidade, etc.), implementadas por governos como Trump nos Estados Unidos, ou Bolsonaro no Brasil, entre outros. E sim que é possível. É lógico que sempre existiram e provavelmente sempre existirão defasagens ou diferenças – e até mesmo desigualdades, embora não necessariamente extremas – entre pessoas, entre regiões e entre povos ou nações. Mas isso não quer dizer que uma parte do mundo está condenada, dentro do sistema capitalista mundial, a viver sempre na miséria e no subdesenvolvimento. Em contrapartida, acreditar que outro sistema dito “revolucionário” vá produzir uma homogeneização do social (seja no nível

nacional ou – maior absurdo ainda – no plano mundial), é professar o mais extremo idealismo. É no fundo imaginar outra humanidade, outro ser humano diferente do que sempre existiu – quem sabe algo semelhante a alguns livros de ficção científica, nos quais se fabrica, via clonagem, pessoas exatamente iguais, ou então se realiza uma lobotomia radical em todos os recém-nascidos. Essa crença é uma das decorrências do Iluminismo com a sua ilusão de clarear ou espalhar luz para todos os cantos da experiência humana, todas as as escuridões e injustiças, como se fosse possível uma sociedade humana transparente de ponta a ponta. Como disse com propriedade Habermas: “Não duvido de modo algum da influência saudável do pós-modernismo sobre os debates atuais. A crítica a uma razão que submete o todo da história a uma teleologia é tão convincente como a crítica à pretensão risível de preparar um fim para todas as alienações sociais.”101  

As desigualdades internacionais Frequentemente veicula-se, seja em livros ou artigos acadêmicos, em jornais, na internet, ou na televisão, a tese ou julgamento que as desigualdades internacionais e as sociais estão se aprofundando. Acreditamos que existe certo mal-entendido neste tema, pois muitas vezes se confunde desigualdades internacionais com desigualdades sociais. Vamos tentar destrinçar este quiproquó começando pelas desigualdades internacionais. Sobre estas, não existe qualquer sustentação nas estatísticas internacionais – sobre evolução dos PIBs, das rendas per capita ou dos IDHs da quase totalidade dos países – que estariam se agravando, isto é, que os países ricos estão ficando cada vez mais ricos em comparação com as nações pobres. O contrário é que é verdadeiro. Ou seja, vem ocorrendo nas últimas décadas uma diminuição nas desigualdades internacionais, como iremos demonstrar. Praticamente todos os países do mundo – ou quase todos, pelo menos a imensa maioria – conheceram nas últimas décadas uma elevação da expectativa de vida, uma diminuição das taxas de mortalidade (principalmente a infantil, que é a mais significativa), um maior acesso – embora extremamente desigual em termos regionais e sociais – à eletricidade, à água encanada e tratada, à telefonia, ao saneamento básico, etc. Veja a tabela seguinte para evidenciar esse fato. Indicadores sócio-econômicos de alguns países selecionados (I)    

PIB em 1980

PIB em 2019

Renda per

Renda per

IDH em

IDH em

País

(em milhões de dólares)

EUA

Japão

Singapura China

(em milhões de dólares)

capita em 1980 (em dólares)

capita 1990* 2019 em 2019 (em dólares)

2.587.100 21. 584.400

12.553

65.760

0,860

0,920

1. 039.980

9.466

41.690

0,816

0,915

4.500

64,582

0,718

0,935

310

10.410

0.502

0,758

276

2.130

0,427

0,647

5.263.500

10.480

372.062

253.230 14,554.300

Índia

2.910.800 142.010

México

1.258.286

3.290

9.430

0,650

0,767

1.839.758

1.229

9.130

0,611

0,761

1.080

0,370

0,528

166.700 Brasil 237.930 Tanzânia

63.177

448

4.350 Chade

164 500

700

0,298* 0,401

11.314

*Os IDHs só se iniciaram nesse ano de 1990, portanto não existem para 1980. O IDH do Chade só começou a ser calculado em 2000 (devido a conflitos internos e guerra civil) e foi estimado nesse ano em 0,298               Indicadores sócio-econômicos de alguns países selecionados (II)  

Taxa de mortalidade infantil por mil habitantes em 1980

Taxa de mortalidade infantil por mil habitantes em 2019

Expectativa Expectativa Taxa de Taxa de de vida em de vida em analfabetismo analfabetismo 1980 2019 em 1980 em 2019 (população (população (em anos) (em anos) com 15 anos com 15 anos e mais) e mais)

12,6

6,0

73

79

1%

0,2%

7,4

1,8

76

84

0,2%

0%

Singapura 12,0

2,1

72

83

17,2%

2,7%

China

47,8

6,8

66

77

46%

3,7%

Índia

117,8

28,3

54

69

59,4%

24,6%

País

EUA Japão

México

54,0

12,2

67

75

17,8%

4,7%

Brasil

76,5

12,4

62

76

25,4%

6,9%

Tanzânia

106,9

36,0

50

65

55%

22%

Chade

123,4

69,1

44

54

93%

77%

Tabelas elaboradas a partir de várias fontes:: Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial – 1992; e World Development Indicators – 2020; UNDP. Human Development Report – 1993 e 2020.

Como se percebe pelos dados estatísticos desses países selecionados – dois sempre tidos como países desenvolvidos (EUA e Japão), dois indiscutivelmente entre os mais pobres do mundo (Tanzânia e Chade) e os demais cosiderados pobres até pelo menos os anos 1970, mas em desenvolvimento, seja num ritmo mais lento ou rápido – não é possível afirmar categoricamente que as desigualdades internacionais estão se ampliando nas últimas décadas. Cabe realçar que estamos tratando das desigualdades internacionais – isto é, entre economias nacionais –, e não das desigualdades sociais (entre pessoas), assunto que deixaremos para examinar mais adiante. As estatísticas – não somente desses nove países selecionados, mas também de praticamente todos os demais – mostram que em geral todas as sociedades nacionais estão melhorando seus índices de desenvolvimento, seus IDHs, embora algumas de forma mais rápida e outras lentamente ou às vezes até conhecendo curtos períodos de retração. Todos os países, nas últimas décadas, vêm conhecendo melhoras no valor do PIB e da renda per capita, nas taxas de alfabetização, nos índices de mortalidade infantil, no acesso à eletricidade e ao saneamento, etc. Não é possível então afirmar que o desenvolvimento de alguns se faz às custas do maior atraso de outros. Sem dúvida que esse desenvolvimento é desigual na medida em que alguns o vivenciam num ritmo acelerado e outros (uma minoria, contudo) ficam quase estagnados. Mas isso sempre foi normal desde pelo menos o século XVIII, e essa relativa estagnação, durante alguns anos ou raramente décadas, não impede que no prazo mais longo eles também conheçam melhorias econômicas e sociais. Em todos esses casos de retração momentânea ou relativa estagnação, sempre existem fatores intrínsecos, principalmente guerras com vizinhos, guerras civis ou guerrilhas que ocasionam grande mortandade e destruições – casos do Chade, Sudão, Sudão do Sul, Iraque, Irã, República Democrática do Congo, Síria, Afeganistão e vários outros. E às vezes também a catástrofes naturais (Haiti). Em todos esses casos existem governos autoritários, corruptos e extremamente ineficientes do ponto de

vista de políticas macroeconômicas voltadas para promover o desenvolvimento. Se levarmos em conta tão somente uma minoria de países ricos e uma minoria de países pobres, aqueles que ainda têm um IDH considerado baixo (que abrangem no máximo 12% da população mundial), então talvez possamos afirmar que as desigualdades internacionais se ampliaram nas últimas décadas. Mas não a pobreza e a fome, que sem dúvida declinaram tanto do ponto de vista absoluto (número total de pessoas nessas condições) como também do ponto de vista relativo (a percentagem das pessoas nessas condições em relação à população total do globo). Em alguns poucos países ou regiões a pobreza e a fome aumentaram, mas não na escala mundial e tampouco nos países extremamente populosos como China, Índia ou Indonésia, nos quais, ao contrário, esses indicadores vêm declinando substancialmente. Examinemos alguns exemplos. A renda per capita dos Estados Unidos era de 12 553 dólares em 1980 e, em 2019, de cerca de 65.760 dólares, enquanto essa renda na Tanzânia era de 448 dólares em 1980 e de apenas 1.080 dólares em 2019. Dessa forma, a renda média dos norte-americanos era 28 vezes superior à da Tanzânia em 1980 e 60 vezes maior em 2019. Chegaremos a conclusões semelhantes se compararmos a evolução da renda per capita dos Estados Unidos nesse período com países pobres como Etiópia, Serra Leoa, Chade, Níger ou Afeganistão. Todavia, se fizermos essa mesma comparação com países como China, Índia, Indonésia, Chile, Turquia, Brasil e vários outros, que em conjunto abrange muito mais da metade da população mundial, veremos que o oposto ocorreu: as desigualdades, nestes casos, diminuíram. A renda per capita da China em 1980 era de 310 dólares — 40 vezes menor que a dos Estados Unidos —, mas, em 2019, era de 10.410 dólares, apenas seis vezes menor que a norte-americana. A renda média dos indianos era de 276 dólares em 1980 (45 vezes menor que a dos norteamericanos), ao passo que, em 2019, essa renda já era de cerca de 2 130 dólares, 30 vezes menor que a dos estadunidenses. Ou seja, nesse caso dos Estados Unidos versus China e Índia, exatamente os dois países mais populosos do mundo, as desigualdades internacionais, embora ainda sejam significativas, diminuíram bastante. O mesmo vale para numerosos outros países do chamado Sul geoeconômico. Vejamos o caso do Brasil: sua renda per capita em 1980 era de cerca de 1 229 dólares, dez vezes menor que a norte-americana; em 2014, era de 9 130 dólares, sete vezes menor. Esse mesmo raciocínio vale, mutatis mutandis, para os valores de IDH – que

incluem índices de educação e saúde, além dos econômicos –, que também mostram que, para a maioria dos países e da população mundial, as desigualdades de desenvolvimento diminuíram nas últimas décadas. Podemos até afirmar, com base em claras evidências, que a revolução tecnológica e a globalização acasionaram, dos anos 1980 até o presente, um progresso econômico e social sem precedentes na história da humanidade. E uma sensível diminuição nos índices de pobreza e fome: em 1980 existiam 1,88 bilhão de pessoas que viviam abaixo da linha internacional da pobreza, o que equivalia a 42,5% da população mundial; esse número em 2019 havia caído para 705 milhões ou 9,2% da população mundial102. Em 1990 havia 1,11 bilhão de pessoas passando fome no mundo, ou 20,6% da população mundial, ao passo que em 2015 essa quantidade de pessoas em situação de fome tinha caído para 795 milhões (216 milhões a menos), que perfaziam 10,8% da população mundial.103 Nunca antes tinha ocorrido uma diminuição dessa proporção na escala global em tão curto espaço de tempo. Sem dúvida que esses números ainda são grandes e até mesmo intoleráveis, mas o que estamos analisando aqui não é como acabar com a fome e a pobreza no mundo104, e sim a questão das desigualdades internacionais, as quais, ao contrário do que normalmente se afirma, estão diminuíndo. E estão encolhendo devido a – e não malgrado ou apesar de – uma maior integração das economias nacionais no sistema global. E as economias que ficam para trás são exatamente as menos integradas no sistema global, isto é, as que recebem menos investimentos estrangeiros, que quase não possuem firmas estrangeiras em seus territórios, que possuem um baixíssimo valor de comércio externo, especialmente de exportações, etc. A globalização, ao contrário do que afirmam alguns105, não gera invariavelmente pobreza nem desigualdades. Em alguns casos sim, mas no geral não – pelo menos para a imensa maioria da população mundial. No balanço final produz muito mais impactos positivos do que negativos. Evidentemente que também existem perdedores, e não apenas ganhadores, na globalização e na revolução tecnológica. Inúmeras profissões desaparecem ou são depreciadas, o mesmo ocorre com regiões inteiras que se empobrecem devido à inundação a baixos preços de produtos similares aos que fabricam, o que ocasiona fechamento de empresas locais, desemprego e estagnação. Existem vários estudos mostrando os efeitos negativos da globalização em algumas regiões que viviam da fabricação de móveis, brinquedos, calçados, produtos têxteis, etc., e que se empobreceram devido à importação de

produtos similares a baixos preços. Como também há os casos de locais que se transformaram para pior em termos ambientais e sociais – com desmatamentos e poluição das águas, perda de biodiversidade, expulsão de populações tradicionais, etc. – devido ao “progresso” ocasionado pelo aumento do turismo ou pela instalação de alguma fábrica que produz para o mercado externo. Mas sempre há perdedores em qualquer processo históricosocial, mesmo que este no final implique em desenvolvimento humano. E essas perdas ambientais não são inevitáveis e sempre poderiam ser obstadas pela ação do governo regional e/ou nacional, principalmente quando há uma eficaz mobilização da população local com contatos com a mídia, incluindo-se os novos meios de comunicações, e pressão sobre políticos. E o fechamento de empresas, mesmo com inevitáveis perdas de emprego e empobrecimento local, no final das contas beneficia a maioria da população nacional devido aos preços mais baixos dos produtos similares. Além disso, há vários exemplos de locais ou regiões (e pessoas com profissões que vão desaparecendo ou sendo substituídas por máquinas) que se reinventaram e voltaram a se desenvolver, inclusive mais que antes, a partir de estratégicas que mudaram a economia local.  

As desigualdades sociais Examinemos agora outro fator importantíssimo no desenvolvimento social: as desigualdades sociais, ou seja, desigualdades na distribuição da renda no interior de cada sociedade nacional. Conforme podemos perceber pelo quadro “Desigualdades sociais em alguns países”, em vários casos – Estados Unidos, China, Índia, Indonésia e Tanzânia – essas desigualdades se ampliaram de 1980 até 2018. Mas em outros casos – França, México, Coreia do Sul, Brasil e Angola – elas até diminuíram no decorrer dessas quase quatro décadas. Portanto, não se pode afirmar taxativamente que a globalização vem acentuando as desigualdades sociais (exceto no caso da população mundial como um todo, que mencionaremos mais adiante), pois estas variam muito conforme cada sociedade específica e os fatos que explicam essa relativa concentração ou desconcentração são normalmente internos a cada país.  

Quadro – Desigualdades sociais em alguns países País

Proporção da Renda Nacional nos 10% mais ricos em 1980

Proporção da RN nos 10% mais pobres

Índice de Gini* em 1980

Proporção da RN nos 10% mais ricos em 2018

Proporção da RN nos 10% mais pobres

Índice de Gini* em 2018

em 1980

em 2018

Brasil

45,9%

0,8%

58,0

42,5%

1%

53,9

EUA

25,3%

2,3%

34,7

30,4%

1,8%

41,1

México

46,3%

1,3%

50,1

36,4%

2%

45,4

China

25,8%

3,5%

35,2

29,4%

2,7%

38,5

Índia

26,4%

3,6%

32,1

30,1%

3,5%

38,5

França

28,5%

2,5%

35,2

25,8%

2,7%

31,6

Noruega

21,9%

3,9%

27,0

21,6%

3,6%

26,9

Coréia do 24,0% Sul

2,6%

31,7

23,8%

2,6%

31,6

Indonésia 3,5%

3,5%

32,4

29,3%

2,9%

37,8

Angola

40,3%

1%

52,0

39,6%

1,3%

51,3

Tanzânia

27,1%

2,7%

37,0

33,1%

2,9%

40,5

*O índice de Gini é a medida de desigualdade social mais aceita pelas organizações internacionais e consiste em valores de 0 a 100, no qual o 0 seria uma sociedade onde todos têm exatamente os mesmos rendimentos e 100 o oposto, uma sociedade onde uma só pessoa concentra toda a renda nacional. Em resumo, quando maior esse índice, maiores as desigualdades sociais, e vice-versa. Elaborado a partir de várias fontes: World Bank – World Development Report – 1983 e 2020; e páginas do World Bank sobre “income share by…”, disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator. Acesso em 11 dez. 2020.  

De fato, as razões para essas disparidades – em alguns países há maior concentração, em outros menor, em alguns a concentração aumentou nesse período, e em outros diminuíu – são inúmeras e via de regra relacionadas a fatores endógenos de cada sociedade. Elas são muito complexas e variadas, e diferentes de um país para outro, além de se alterarem com o tempo, com as mudanças históricas em cada sociedade. Iremos a seguir mencionar algumas delas. Primeiro, temos os níveis salariais e de outros emolumentos percebidos pelas diversas categorias profissionais, tanto no setor privado como no público, que variam bastante conforme o país. Por exemplo, enquanto os salários médios mensais para professores do ensino médio no Brasil é de 300 dólares, no Japão é de 3.650 dólares, em Luxemburgo 8,3 mil e na Suíça de 9,1 mil dólares106. E diferenças semelhantes, ou até maiores, existem em relação a várias outras atividades. Segundo, os níveis educacionais da força de trabalho, que são importantíssimos nesta questão pois exercem grande influência nos rendimentos das pessoas: aquelas com maior nível educacional, em média, ganham muito mais que as que têm baixo nível de escolaridade. Não por

acaso sociedades onde há um elevado nível médio de escolaridade – Noruega, Suíça, Suécia, Nova Zelândia, Bélgica, Japão, Coreia do Sul, Finlândia e outros – são também países com os menores índices de Gini, ou as distribuições sociais da renda menos concentradas. Outro fato que vai se tornando cada vez mais importante com o crescente envelhecimento populacional são as aposentadorias: o sistema previdenciário influi bastante na distribuição social da renda, pois o número e a proporção de aposentados vem se expandindo em praticamente todo o mundo: no Brasil, por exemplo, já são 31 milhões de pessoas (em 2020) ou 15% da população total (ou 30% em relação à força de trabalho total, segundo dados do IBGE) que vive de aposentadoria. E existem vários outros países nos quais a proporção de idosos (e de aposentados) é maior ainda. Portanto, o nível dos ganhos de aposentadoria vai se tornando um elemento fundamental para a distribuição social da renda em especial nos países onde há um maior envelhecimento populacional. A seguir, temos a relação entre inflação versus reposição salarial ou versus aposentadorias. Em alguns casos os reajustes anuais dos salários (ou das pensões) não cobrem a inflação do período, tal como ocorria frequentemente no Brasil nos anos 1970 e 80, por exemplo (ocasião em que a concentração na distribuição social da renda se agravou enormemente), o que significa que os assalariados em geral vão tendo seus rendimentos defasados em relação àqueles que vivem de lucros, de ordenados (diretores de empresas, por exemplo), de royalties, de juros, de honorários e outros ganhos diferentes dos salários. Estes ganhos normalmente não são tão afetados pela inflação porque eles próprios podem aumentar seus preços, honorários, ordenados, etc. Ou até ganham com a inflação ao investirem volumosas somas no mercado financeiro ou a subirem os preços de seus bens e serviços acima da inflação, o que evidentemente depende do tipo de produto ou serviço (se essencial ou não), se o consumior tem ou não outras opções, etc. O sistema de impostos também é essencial: a sensível concentração na distribuição da renda que ocorreu nos Estados Unidos a partir dos anos 1970 (veja o quadro com os dados desse país, que por sinal é o país desenvolvido com a pior distribuição social da renda) foi resultante, principalmente – embora não apenas, pois também o sistema financeiro e a liberalidade com que os CEOs das empresas se dão enormes gratificações, às vezes até quando a firma está tendo sucessivos prejuízos , contribui para esse processo –, de governos neoliberais que diminuíram os impostos para as pessoas e as

empresas mais ricas e os mantiveram para a maioria da população e das demais firmas. Isso com o questionável argumento que essa diminuição iria acelerar o crescimento econômico porque essa minoria de empresas e pessoas é que mais investe e, portanto, produz crescimento econômico. O sistema de impostos, em resumo, pode ser mais regressivo ou mais progressivo, e isso varia muito conforme o país e conforme o tipo de imposto. Impostos regressivos são aqueles em que a alíquota diminui à proporção que os valores aumentam, que foi o que passou a ocorrer nos Estados Unidos. E tarifas progressivas são aquelas em que a alíquota aumenta à proporção que os valores sobre os quais incide são maiores, como por exemplo o imposto de renda no Brasil. Sintetizando, podemos concluir que não é verdadeira a ideia que o desenvolvimento capitalista ou a globalização engendrem, necessariamente, uma crescente injustiça social, com maior concentração na distribuição social da renda. Com já mencionado, os fatores que normalmente influenciam nessa questão, em cada sociedade nacional específica, são de natureza endógena (embora possam ser influenciados por circunstâncias exógenas): o poder de barganha ou pressão dos diversos agentes econômicos e sociais (sindicatos, empresas, corporações, instituições...), a relação entre os aumentos salariais e a inflação, o sistema tributário e fiscal, os níveis das pensões para os aposentados, o sistema educacional, etc. O aumento ou a diminuição das desigualdades sociais, dentro das sociedades nacionais, nesses termos, não é produzido por uma dinâmica ou lógica capitalista independente das ações humanas, mas sim pelas estratégias dos diversos atores ou agentes sociais, a começar pelo poder público, e que variam muito no tocante ao peso específico exercido por cada um deles, sempre em função do contexto histórico. É por isso que em alguns períodos uma mesma sociedade pode vivenciar uma concentração na distribuição social da renda (por exemplo, o Brasil dos anos 1970 e 80), e em outros períodos pode ocorrer o inverso (como no Brasil a partir dos anos 1990, quando a inflação – que exercia uma pressão enorme sobre os salários e o poder aquisitivo da população em geral – foi controlada, e posteriormente políticas de auxílio governamental aos mais pobres, mesmo sendo populistas e eleitoreiras, também contribuíram para essa relativa desconcentração na distribuição social da renda). Desigualdades sociais na escala mundial

Quanto à questão da distribuição da renda no nível da população mundial, as evidências parecem sugerir que tem havido concentração nas últimas décadas, com uma minoria se apropriando de uma parte crescente do PIB mundial. Mas as evidências aqui são problemáticas e sempre sujeitas a controvérsias. Vejamos os que provavelmente são os dois estudos mais representativos ou os mais mencionados entre os que defendem a tese que as desigualdades sociais globais estão se ampliando. São eles o volumoso estudo de Piketty e os relatórios da ONG Oxfam, que na verdade surgiram devido ao sucesso daquele estudo. O primeiro relatório feito pela ONG britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse, afirma que os 1% mais ricos do mundo já possuem, desde 2016, de metade da riqueza total dos habitantes do globo, ou seja, praticamente o mesmo que os 99% restantes da população107. Isso seria algo inédito e teria ocorrido pela primeira vez na história da humanidade. O problema é que os dados mencionados nesse estudo discordam frontalmente das estatísticas – muito mais abrangentes e confiáveis – de outras fontes como a ONU, o Banco Mundial ou o FMI. Se os 1% mais ricos nos Estados Unidos dispõem de 18,7% da renda nacional, na China dispõem 13,9%, na Índia de 21,4%, na Indonésia 10,7%, no Brasil 27,6%, na Nigéria 11,4% e em Bangladesh 15,8%108, e só esses países mencionados em conjunto já abrangem mais da metade (52%) da população mundial, como é possível que esse hipotético 1% detenham 50% da renda total do planeta? Como se sabe que a renda mundial consiste na soma de todas as rendas nacionais, e se em nenhuma destas os 1% mais ricos possuem mais do que 32% da renda nacional, evidentemente que não é possível que na escala mundial os 1% mais ricos abocanhem 50% da renda total. Contudo, os defensores desse estudo afirmam que estão medindo riquezas (fortuna acumulada, propriedades) e não apenas renda. Mas não existem, em nenhum país do mundo, dados confiáveis sobre a riqueza total dos indivíduos. E o próprio banco Credit Suisse, que forneceu os dados usados pela Oxfam, admitiu que eles são parciais (abrangem apenas 17 países que têm informações sobre riquezas, e mesmo assim incompletas, sendo para os demais países foram feitas extrapolações) e que o estudo sobre distribuição da riqueza “está apenas na sua infância e ainda pleno de equívocos”. Além disso, essa ONG se notabiliza por constantemente procurar estar em evidência na mídia: há anos que, no dia da abertura de toda reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), invariavelmente ela lança um novo estudo mostrando que as desigualdades estão se ampliando, e sempre conta

com ampla cobertura pela mídia (televisão, jornais, revistas e sites na net). Em 2018, por exemplo, lançou um novo relatório exagerando a afirmação anterior e afirmando que agora os 1% mais ricos dispõem de 82% da riqueza global (e não mais 50%) e que apenas 42 bilionários possuem juntos um nível de riqueza maior que metade da humanidade.109 Esses supostos estudos da Oxfam, na realidade, mesmo alcançando ampla repercussão pela mídia tradicional – que, afinal, sempre divulga notícias sensacionalistas e que vão sensibilizar o público, qualquer que seja a sua natureza, e esse tipo de mídia quase nunca assume alguma autocrítica frente a notícias falsas que divulgou anteriormente – não foram levados a sério pelos institutos de pesquisas econômicas e até alguns jornais ou revistas liberais (que nos países anglo-saxônicos são tidos como de esquerda) predominaram as críticas.110 Mas são críticas não por questionarem que as desigualdades sociais em geral estão aumentando, e sim pela metodologia não científica e pelas estatísticas extremamente duvidosas. Mas a volumosa pesquisa de Thomas Piketty, de 2013, o primeiro a mostrar que as desigualdades sociais são enormes e em geral estão se ampliando, foi elogiado por eminentes economistas, até por alguns ganhadores do prêmio Nobel. Esse economista francês com certa inspiração marxista (embora nuançada), percebível até no título da sua obra, realizou durante anos um estudo sobre o tema com farto material histórico, abrangendo três séculos, sobre as desigualdades de riquezas (rendimentos e fortuna acumulada) em 20 países, onde chegou à conclusão que as desigualdade tendem a aumentar, mas de forma alguma com dados tão extremos como nos referidos estudos da Oxfam.111 Piketty não se arriscou a especular sobre a distribuição da riqueza na escala global, mas sim em países selecionados e onde há estatísticas confiáveis. Ele afirmou, por exemplo, que no pais que era considerado o mais democrático e meritocrático de todos, os Estados Unidos, os 10% mais ricos já dispõem de 50% da renda nacional, enquanto 90% da população, que seriam os trabalhadores, ficam com os restantes 50%. E no tocante a riquezas em geral (e não apenas rendimentos), a desigualdade seria ainda maior, com os 1% de "super ricos" ficando com cerca de 35% do patrimônio norteamericano, e os 10% mais ricos com 70% dessa riqueza total. Ele concluiu que, ao contrário da tese predominante que afirma que o desenvolvimento acarreta melhoria na justiça social (isto é, que os países mais pobres têm uma pior distribuição de riquezas, e à medida em que se

desenvolvem essa distribuição vai ficando menos concentrada), no século XXI vem ocorrendo uma crescente concentração na distribuição da renda apesar do acelerado desenvolvimento econômico global. Ele admite que essa tese foi verdadeira durante grande parte do século XX – e de fato, quando se examina estatísticas sobre distribuição social da renda ou sobre o índice de Gini nos diversos países, percebe-se facilmente que, em sua imensa maioria, os países subdesenvolvidos têm piores índices que os países desenvolvidos –, mas que deixou de ser desde pelo menos o início deste século devido a maior valorização da remuneração do capital em relação à taxa de crescimento da produção. Em suas palavras: “A primeira [conclusão] é que se deve sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente de determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política (...) A segunda conclusão, que constitui o cerne deste livro, é que a dinâmica da distribuição da riqueza revela uma engrenagem poderosa que ora tende para a convergência [isto é, para melhor distribuição] ora para a divergência, e não há qualquer processo natural ou espontâneo para impedir que prevaleçam as forças desestabilizadoras, aquelas que promovem a desigualdade.”112 Analisando quais são essas forças de convergência e de divergência que influem nessa questão, o autor assinala que o principal mecanismo de convergência, que reduz as desigualdades, é a difusão do conhecimento e a formação e qualificação da mão de obra, em suma a expansão da educação. E o principal fator de divergência, ou concentração na distribuição de riquezas, seria o seguinte: “Quando a taxa de remuneração do capital excede substancialmente a taxa de crescimento da economia – como ocorreu durante a maior parte do tempo até o século XIX e é provável que volte a ocorrer no século XXI –, então, pela lógica, a riqueza herdada aumenta mais rápido do que a renda e a produção. Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da renda do seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia como um todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração de capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça

social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas.”113 Após procurar demonstrar sua tese central, que a distribuição da riqueza tende a se concentrar quando os ganhos financeiros superam o crescimento da produção, com numerosos dados no volumoso livro114, ele sugere que deveria haver algum grau de cooperação internacional no sentido de taxar mais os ganhos com capital (isto é, os ganhos apenas financeiros e que não visam produção) e ao mesmo tempo investir mais e melhor em educação. Ele insiste ainda na necessidade de valorização dos impostos progressivos especialmente sobre ganhos do capital (e logicamente também sobre heranças). Dessa forma, é um estudo plausível e alicerçado em dados confiáveis, e as desigualdades sociais, mesmo que tenham diminuído em vários países nos últimos anos ou décadas, provavelmente estão mesmo se ampliando na escala global devido ao fato dessa concentração estar ocorrendo nos países mais populosos e com maiores rendas nacionais (China, Estados Unidos, Índia, Alemanha, além de vários outros com PIBs menores como Nigéria ou Bangladesh ), que, em conjunto, perfazem a maioria da população e da renda mundiais. E as propostas ou apelos de Piketty para acordos internacionais para limitarem ou taxarem os capitais especulativos voltados para lucros imediatos e que não produzem bens nem serviços – que de fato geram instabilidade, depreciam algumas moedas nacionais e ocasionam crises como a de 2007-8, além de produzirem estagnação ou até regressão temporária em alguns países – são plenamente aceitáveis. Mas, como assinalaram vários especialistas, são também idealistas tendo-se em vista as dificuldades em discernir capitais especulativos e produtivos, além do predomínio da realpolitik nas relações internacionais, com cada Estado preocupado com seus interesses específicos. E suas recomendações de investir mais e melhor na educação, e também de enfatizar impostos progressivos, mesmo não sendo novas (há décadas que muitos insistem nisso), são importantes e realistas. A questão das desigualdade sociais, contudo, possui outras vertentes ou frentes de discussão, em especial a econômica (suas relações com o desenvolvimento), a política (suas relações com a democracia) e a ética ou moral (se a desigualdade é per se imoral). Vamos iniciar com a questão econômica. Desenvolvimento, desigualdades e democracia

Alguns argumentam que as desigualdades sociais estão aumentando em países de rápido crescimento, como a China ou a Índia, exatamente porque esse processo seria inerente ao crescimento econômico, com abertura para o empreendedorismo, isto é, com a permissão (pois antes eram economias fechadas e burocratizadas) ou inventivos para as pessoas inovarem, para investirem e abrirem seus negócios. Isso geraria desigualdades não pelos pobres estarem ficando mais pobres, como querem alguns, e sim pelo fato de que uma minoria está ficando bem mais rica e se destacando em relação à maioria. Mas essa minoria no fundo estaria até mesmo auxiliando a maioria pelo fato de iniciarem mais empreendimentos que expandem a produção e a oferta de empregos. Argumenta-se, com base em dados fiáveis, que os pobres estão ficando menos pobres – isto é, suas rendas médias e o seu poder aquisitivo vêm crescendo, e a pobreza absoluta e fome crônicas estão evias de se extinguir na China e diminuindo bastante na Índia. Portanto, o crescimento das desigualdades na distribuição de riquezas nesses países onde há um sensível crescimento da economia (bem superior ao crescimento demográfico) nos últimos anos ou décadas – conjunto no qual pode-se também incluir vários outros países além de China e da Índia: Indonésia, Filipinas, Bangladesh, Nigéria, Vietnã, Camboja, Turcomenistão, Tajiquistão, Myanmar, Turquia, etc. – não seria um problema, mas, pelo contrário, algo louvável na medida em que está produzindo diminuição da pobreza e da fome, além da expansão de empregos que, mesmo com baixos salários, são positivos em relação às ainda menores remunerações que essa força de trabalho percebia anteriormente. Lembra-se ainda dos “tigres asiáticos”, nos quais até os anos 1980 predominavam baixos salários médios em termos internacionais, mas que hoje são praticamente países desenvolvidos, com IDHs muito altos. Esses baixos salários, dessa forma, seriam importantes para atrair investimentos. Porém, quando a economia já tinha se expandido bastante, a subida dos salários (tal como vem ocorrendo ultimamente na China) torna-se fundamental para o crescimento do mercado interno. Os exemplos citados são bem fundamentais e plausíveis – e inclusive reforçam a famosa tese de Simon Kuznets, prêmio Nobel de economia em 1971, que afirma que as desigualdades são maiores nas economias mais pobres e tendem a diminuir com o crescimento econômico, tal como ocorreu com os “tigres” e com vários outros países na segunda metade do século XX. O problema é saber se esse exemplo também ocorrerá nos países mais pobres que também estão ou tendem a crescer economicamente e que, em geral, têm governos

extremamente autoritários. Pois no final das contas o aumento dos níveis salariais, dos quais em geral depende a maioria da população, são sempre decisões políticas – nas quais se incluem, evidentemente, as lutas sindicais e as pressões sobre o poder público. São estas que determinam eventuais aumentos superiores (ou não) em relação à inflação. Mas o mercado também exerce grande influência, pois a força de trabalho não consegue substanciais aumentos salariais em situações onde há excesso de trabalhadores disponíveis. E quando a legislação barra ou dificulta enormemente as demissões, a economia deixa de ser atrativa para os investimentos. O desenvolvimento consiste, afinal, numa série de indicadores sócioeconômicos, que inclusive vão além do IDH (embora o incluam) na medida em que este não mede sustentabilidade e tampouco direitos democráticos ou de cidadania plena. Direitos ou liberdades que hoje não se restringem aos tradicionais direitos civis, políticos e sociais, mas se alargam cada vez mais com a invenção e inclusão (a partir de lutas, evidentemente) dos direitos ambientais (inclusive das árvores e dos animais), da igualdade entre gêneros e etnias, do combate às discriminações culturais, regionais, de orientação sexual e outras. Expansão das liberdades sim, e igualdades também, porém, com limites na medida em que o igualitariasmo ingênuo é pernicioso para o social: ele atravanca a democracia e o desenvolvimento. A igualdade é um ideal importante e defensável, mas complexo e pleno de nuances. Igualdade em relação a que? Se respondermos “em relação à renda ou à propriedade”, então estaremos criando uma desigualdade em relação às oportunidades, aos talentos e competências de cada um, pois para lograrmos aquele tipo de igualdade teremos que limitar a liberdade, ou seja, teremos que reprimir os mais talentosos, os mais criativos e inclusive os mais produtivos. E se respondermos “igualdade em relação às oportunidades” – algo inquestionavelmente democrático, pois não limita a liberdade –, então teremos que admitir que alguns vão se sobressair frente aos demais. O problema aqui, cabe repetir, é o de definir os limites aceitáveis para as desigualdades e não pretender ingenuamente acabar com elas, algo que numa sociedade complexa só pode ser tentado – apenas tentado, pois nunca é de fato conseguido – às custas da supressão da democracia, o que significa que alguém – uma pessoa, um grupo, um partido – vai exercer o poder de forma totalitária.

Existe assim um cotejo complexo entre desigualdades sociais e democracia. Alex de Tocqueville já assinalava, no século XIX, a relação entre democracia e certa igualdade social que seria imprescindível para que as instituições democráticas funcionem bem. Não há dúvida que todos os países plenamente democráticos são desenvolvidos e vice-versa, ou seja, não há e nunca houve nenhum país efetivamente desenvolvido que não seja uma democracia. E todos países democráticos possuem uma distribuição social da renda não muito concentrada quando comparada à maioria dos países mais pobres – a única exceção são os Estados Unidos nas recentes décadas, a partir dos anos 1970, quando as desigualdades começaram a subir no país.115 Amartya Sen, prêmio Nobel de economia (embora sua formação acadêmica seja em matemática e filosofia) e um dos idealizadores do IDH, demonstrou duas verdades essenciais: que o desenvolvimento não apenas pressupõe, mas consiste mesmo numa expansão das liberdades ou dos direitos democráticos, e que é impossível uma igualdade em todos os aspectos116. Uma igualdade total elimina a liberdade e vice-versa, uma liberdade total gera enormes desigualdades. É fácil perceber que, no mundo real, e não na imaginação de autores como Rousseau (o primeiro a enfatizar essa questão) ou Marx (no fundo um seguidor de Rousseau neste aspecto), as pessoas nascem desiguais – tanto física (herança genética, biotipo) como em termos de meio social. Este último significa não apenas maior ou menor riqueza, mas também ou principalmente os valores culturais, pois a família é a instituição que mais influencia na educação (no sentido amplo) de uma pessoa117. E com o transcorrer da vida de cada um – suas diversas experiências de vida, de maior ou menor aproveitamento e evolução educacional, de empenho e iniciativas, de produtividade, de desenvolvimento de talentos, habilidades e competências, etc. – essas diferenças podem diminuir (em alguns casos) ou até se agravar (na maioria), mas sempre existem. A própria vigência de liberdades democráticas conduz a uma certa desigualdade na medida em que as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na criatividade ou nas formas de luta. E tentar impor uma igualdade total através da única forma possível, qual seja, de cima para baixo, pela repressão através de um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi demonstrado ad nauseam pelas experiências históricas, é algo que sempre resulta em privilégios abusivos para alguns, que mandam e

desmandam de forma arbitrária, que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos.  

As desigualdades são imorais? Existe ainda a questão moral suscitada pelas desigualdades sociais. Essas desigualdades são intrinsicamente imorais? Essa problemática existe de forma latente desde pelo menos o século XIX, com a Revolução Industrial e o trabalho exaustivo (inclusive feminino e infantil) que predominava nos atuais países desenvolvidos. Nessa ocasião, alguns – mas não Marx, que, como vimos em suas análises do colonialismo, pouco se importava com o aspecto moral da violência e da exploração e as avaliava em função tão somente do (pretenso) “sentido da história” – acusaram o capitalismo de ser imoral porque inevitavelmente geraria exploração social e desigualdades. Foi uma polêmica de natureza mais religiosa, que pouco prosperou na medida em que existem vários entendimento do que é moral, e para alguns (como os protestantes em geral, especialmente os puritanos) o capitalismo é inclusive o mais moral de todos os sistemas porque liberta o trabalhador da servidão e acarreta uma liberdade para que qualquer pessoa possa prosperar. E o trabalho visando acumular bens, ou os empréstimos a juros, ao contrário da visão que predominou na Europa durante séculos, passaram a ser vistos como positivos e não mais como pecaminosos e imorais. Além disso, como observaram alguns autores neste século – quando novamente se questionou a moralidade do capitalismo após sua aparente “vitória” com o final do “mundo socialista” –, a moral diz respeito a atos humanos, a deveres de cada pessoa no sentido de viver corretamente e fazer o bem, não tendo sentido avaliar a moralidade de um sistema econômico, que por definição seria amoral (e não imoral) assim como a genética (na qual pode-se fazer clonagens questionáveis do ponto de vista ético) ou a física (a partir da qual pode-se fazer armamentos atômicos)118. Em síntese, poderíamos questionar, por exemplo, a moralidade de pessoas que exploram mão de obra (semi) escrava, ou que fazem empréstimos a juros abusivos e ilegais, mas nunca um sistema de mercado, de propriedade privada e livre iniciativa – ou mesmo qualquer outro sistema socioeconômico em si. Seria o mesmo que taxar de imoral uma sociedade dita primitiva ou selvagem que pratica o canibalismo, prática que, por sinal, foi extremamente comum para os nossos antepassados mais remotos. Isso consistiria numa atitude etnocêntrica (ou anacrônica) de julgar outras

sociedades ou épocas pelos nossos atuais valores e costumes. Evidentemente que isso muda completamente se for o caso da prática do canibalismo em nossa sociedade atual, algo que seria não apenas imoral, seria intolerável, ilegal e sujeito a severa punição. Esta questão da moralidade, agora muito mais das desigualdades sociais e nem tanto do capitalismo, voltou à tona novamente a partir do mencionado livro de Piketty e dos numerosos demais trabalhos que vieram no seu rasto, principalmente os “estudos” bombásticos da Oxfam. Isso devido ao enorme interesse (e indignação) suscitado pela constatação do elevado grau das desigualdades e de sua suposta tendência a se ampliar ainda mais. Um filósofo que abordou esse assunto concluiu que, mesmo sendo favorável ao combate às desigualdades sociais extremas (com as que existem em seu país, os Estados Unidos), não acredita que esse problema seja intrinsicamente imoral. Ele afirmou que: “Centrarmo-nos na desigualdade, que não é em si mesma censurável, é interpretar mal o desafio que estamos na verdade a enfrentar. A principal preocupação deveria ser reduzir tanto a pobreza como a riqueza excessivas. Tal poderá de fato implicar a diminuição da desigualdade. Mas esta não pode ser, por si só, nossa ambição essencial. (...) Do ponto de vista da moralidade não é importante que todos tenham o mesmo. O que é moralmente importante é que todos tenham o suficiente. Se todos tivessem dinheiro suficiente, não seria relevante nem constituiria preocupação saber se alguém teria mais que os outros.”119 A questão das desigualdades sociais, dessa forma, não deve ser um problema per se. Elas são inevitáveis e inerentes a qualquer sociedade complexa e com grande efetivo populacional. E amiúde constituem um inventivo para a competição, que, dentro da ética e da legalidade democrática, é sempre saudável para a inovação, para o crescimento da economia e mesmo para o desenvolvimento de competências e habilidades das pessoas, ou seja, para o aprimoramento pessoal de cada um. O problema maior é o combate à pobreza e à fome, o combate às exclusões de vários tipos, tais como em relação ao acesso a sistemas educacional e de atendimento médico-hospitalar no mínimo razoáveis, à água tratada, ao saneamento básico, a um nível adequado de alimentação e de conforto, etc. Existindo tudo isso para todos, não tem qualquer sentido moral e tampouco econômico combater os que se sobressaíram ficando mais ricos, desde que isso tenha ocorrido dentro da legalidade democrática (sem privilégios, sem apadrinhamentos ou o uso do poder público para fins particulares), e por empreendimentos nos quais recursos foram arriscados (dinheiro, tempo e

inteligência) e que acabaram dando certo. Pois estes de alguma forma inovaram e criaram novas opções de consumo, de lazer, de entretenimento, de bens (tangíveis ou intangíveis) ou de serviços. E normalmente criaram também empregos, contribuindo enfim para o desenvolvimento. O que se deve combater veementemente são as injustiças, e não as desigualdades em si. Não é inaceitável que uma pessoa ou grupo fique milionário ou até bilionário com base num empreendimento tecnológico que vingou, por exemplo; ou que criou, desde um pequeno mercado, uma rede de supermercados; ou ainda que fundou uma fábrica que, com o tempo e dedicação, se transformou numa empresa multinacional com inúmeras indústrias espalhadas por vários países. O inaceitável e até escandaloso é alguém que enriqueceu à custa de privilégios, de instrumentalização da legalidade para fins privados, sempre contrariando o princípio democrático de todos iguais perante a lei. Vemos frequentemente estes casos, por exemplo, em juízes da suprema corte poderem ter duas ou mais aposentadorias públicas, com valores elevadíssimos, quando isso é interditado à imensa maioria da população, que só pode ter uma aposentadoria no sistema público com um limite (baixo) de valor; ou de políticos ou dirigentes de empresas estatais que, com associação ou no mínimo conivência com governantes, se apropriam de recursos e empresas públicos; dos que se enriquecem com agiotagem; dos CEOs que se dão aumentos, gratificações e bônus milionários, às vezes até em épocas de crise e sem contrapartida para os trabalhadores das empresas que dirigem.  

A modernidade é ocidental? Seria a modernidade – e, portanto, também a noção de desenvolvimento – uma ideologia ou um projeto de dominação ocidental? Alguns autores vão nessa direção, afirmando que “a ideologia do desenvolvimento”, vista como uma nova roupagem da modernidade e da secular ideia de progresso, não passa de uma forma de dominação ocidental e capitalista sobre os demais povos do planeta. O subdesenvolvimento, nas palavras de um importante arauto dessa visão, seria basicamente “Esse olhar, essa palavra do Ocidente, esse julgamento sobre o Outro, decretado miserável antes de o ser, e assim se tornando porque foi irrevogavelmente julgado. O subdesenvolvimento é uma denominação ocidental.”120. Esse autor ainda complementa que: “A industrialização, filha da ocidentalização, vê seu destino fortemente ligado ao da sua mãe. O fracasso da

industrialização provoca o fracasso da ocidentalização, já que a participação concreta na ‘cultura ocidental’ supõe um direito de ingresso de 10 mil dólares per capita. O fracasso se traduz pela inserção apenas das elites na modernidade do Ocidente, enquanto as massas são marginalizadas. A modernidade como projeto societal está em crise.”121 Essa interpretação tem um fundo de verdade. Não há dúvida que a modernidade nasceu no Ocidente, na Europa ocidental, e depois se espalhou pelo resto do mundo, embora com diferenças e/ou adaptações, enfrentando resistências e inclusive se redefinindo em função destas. Também é fato que a noção de desenvolvimento, que se popularizou após a Segunda Guerra Mundial, representa uma nova versão da modernidade e da ideia de progresso, que surgiu apenas no século XVIII. Só que isso não significa que não sejam valores universais, inclusive porque até as populações mais pobres e carentes almejam um maior padrão de vida, almejam as condições materiais propiciadas pelo desenvolvimento. Um conhecido historiador resumiu isso muito bem: “O progresso é uma ideia tardia na história mundial. Ela não existia antes do século 18. O século 19 foi o da dominação da ideia de progresso, em particular tecnológico, industrial e político. Depois, veio o terrível século 20, duas guerras mundiais, o Holocausto, os gulags, o que se passa na África, e deixamos de acreditar no progresso. Mas eu penso que o progresso é ao mesmo tempo um fato e uma necessidade fundamental do espírito humano.” 122 Existem sem dúvida um enorme exagero no entendimento da modernidade e do desenvolvimento como como ideais exclusivos da civilização ocidental. Originários sim, mas nunca exclusivos, pois hoje são ideais reproduzidos ou às vezes reelaborados em praticamente todo o mundo. Apesar disso, há ainda em afirme que a democracia e os valores a ela associados representariam tão somente um “cavalo de Tróia” que o Ocidente usa para dominar outras culturas. 123 Esquece-se que sempre ocorreram trocas culturais na história da humanidade, influências recíprocas entre civilizações, e que o próprio Ocidente capitalista incorporou inúmeros conhecimentos e conquistas de outras culturas: do direito romano à matemática indiana através dos árabes, da filosofia e da lógica gregas à bússola e à pólvora chinesas. Como assinalou Claude LéviStrauss, o “progresso” da humanidade sempre consistiu num jogo em comum, numa coligação entre diferentes culturas 124 . Só que isso implica numa aparente contradição, pois por um lado esse jogo em comum ou essa troca poderia resultar numa homogeneização, mas, por outro lado, a diversidade cultural é uma pré-condição para o progresso 125 .

É por esse motivo que as instituições internacionais, a começar pela ONU e pela UNESCO, dentre outras, costumam ter um duplo objetivo:

o de preservar a diversidade e ao mesmo tempo expandir determinados valores ou atitudes – como a democracia e os direitos humanos, a preservação de patrimônios históricos e ecológicos, e o acesso à ciência e à tecnologia moderna – que são ou estão se tornando universais. As inúmeras culturas ou civilizações são diferentes e esse fato é enriquecedor para a humanidade. Mas não é verdade que o desenvolvimento social ou que a democracia – processos relativamente distintos mas que no final das contas são inseparáveis – sejam atributos exclusivos do Ocidente. Somente se os concebermos de uma forma demasiado restrita é que eles poderiam ser vistos dessa forma: a democracia tão somente como o sistema liberal anglo-saxônico e o desenvolvimento apenas como a reprodução do estilo de vida norte-americano. Mas esse entendimento estreito deixa de lado o avançar do desenvolvimento (e da democracia) em países como o Japão, Cingapura, Coréia do Sul, Costa Rica, Índia e outros. E também não enxerga que o progresso material e determinadas liberdades democráticas são realidades ou aspirações antigas e possíveis de serem achadas, guardadas as devidas diferenças e proporções, em diversas civilizações e em vários momentos da história. E hoje em dia o desejo de dispor de mais liberdades individuais (mesmo não esquecendo o coletivo), o ideal de igualdade social (especialmente de oportunidades), a criatividade e a invenção de novos objetos e técnicas, a vontade de debelar inúmeras doenças e viver mais, a possibilidade de dispor de um conhecimento cada vez mais amplo sobre o mundo, o esforço no sentido de produzir mais alimentos, de dispor de melhores meios de comunicações, etc., são valores encontráveis em várias culturas. Talvez não em todas, e tampouco da mesma forma ou com a mesma expressão. Mas sem dúvida que esses valores existem hoje em praticamente todas as “grandes culturas” da atualidade: a ocidental, a islâmica, a japonesa, a oriental-confucionista, etc.  

O desenvolvimento é nacional ou local? Podemos colocar ainda a seguinte dúvida: o desenvolvimento é um fenômeno nacional ou regional e/ou local? Não se trata de uma interrogação meramente retórica e sim o diálogo com um grande número de autores, inclusive geógrafos, que enfatizam a região ou a localidade. Um conhecido economista japonês chegou a dizer que o desenvolvimento nacional é uma abstração, que o crescimento econômico e social não ocorre no nível da

economia nacional e sim em determinadas regiões – Tóquio e Osaka, para o Japão; São Paulo, para o Brasil; o Norte da Itália, para aquele país, etc. –, que em muitos casos seriam até mesmo atrapalhadas pela necessidade de subsidiar outras regiões “acomodadas”. Em suas palavras: “Meu argumento é simples: num mundo sem fronteiras [globalizado] o interesse nacional tradicional – que se tornou pouco mais do que um manto para o subsídio e a proteção – não tem um lugar significativo. (...) Para os Estados-nações e, especialmente, para os seus líderes, a questão básica continua sendo a proteção – de territórios, recursos, empregos, setores industriais e mesmo da ideologia. Em contraposição existem as zonas econômicas naturais do mundo sem fronteiras, que denomino ‘Estados-regiões’: unidades geográficas como o norte da Itália, o Alto Reno, o País de Gales, a Bay Area de San Francisco na Califórnia e outras. Essas regiões possuem uma capacidade (relativamente) irrestrita de explorar extensamente os quatros ‘Is’ da economia global [investimentos, indústria, informação e indivíduos (consumidores)].”126 E inúmeros economistas, geógrafos e sociólogos prestam assessoria a este ou aquele município com vistas a promover o seu “desenvolvimento”, que é entendido como algo essencialmente local. Existe um elemento de verdade nessa perspectiva, mas existe também certo viés unilateral. Sem dúvida que podemos, com uma estratégia adequada, “desenvolver” ou melhorar bastante os indicadores sócio-econômicos (e até mesmo determinadas liberdades, mas sempre com limites traçados pela realidade nacional) de uma região ou de um município específico. Mas o território nacional ainda é o locus determinante na realidade do desenvolvimento. É fato que a noção de desenvolvimento pode ser aplicada às diversas escalas ou níveis espaciais. Podemos dizer, por exemplo, que a Europa é mais desenvolvida do que a África (escala inter-continental) ou que a Europa Ocidental é mais desenvolvida que a Oriental (escala das “grandes regiões” no plano continental). Como podemos também afirmar que o Norte da Itália é mais desenvolvido que o Sul desse país, ou que o Sul do Brasil é mais desenvolvido do que o Nordeste (escala regional propriamente dita, das regiões internas a um Estado-nação). E podemos igualmente dizer, numa escala local, que o Município de Jundiai, em São Paulo, é mais desenvolvido do que o Município de Fernando Falcão, no Maranhão. Em todos esses casos estamos tomando como base uma série de indicadores econômico-sociais: produção econômica total e renda per capita, distribuição social da renda, escolarização, nível e expansão do atendimento médico-hospitalar, expectativa de vida, índices de mortalidade geral e infantil, percentagem da

população com acesso à água tratada e à sanitarização, número de computadores e de acesso à internet por mil habitantes, e até mesmo o usufruto de determinadas liberdades – de ir e vir, de votar sem constrangimentos, de poder falar em público ou publicar livremente as suas ideias, etc. Só que a escala privilegiada na questão do desenvolvimento é a nacional, a do território sob a soberania de um Estado. Desde o final do século XVIII – e desde as obras clássicas de economia política, de Adam Smith, David Ricardo e outros, que no fundo apenas retratavam uma realidade que se impunha – que a produção econômica é entendida e praticada na competência dos territórios nacionais. Não há nenhuma dúvida que no passado isso já foi diferente: os impérios ou as cidades-Estado da antiguidade clássica, os feudos da Idade Média, as repúblicas na época do Renascimento, etc; todavia, em todos esses períodos ainda não havia a ideia de desenvolvimento, que como já mencionamos é contemporânea da modernidade e em especial da Revolução Industrial127. Cabe recordar que foi a partir da Revolução Industrial – e não antes, com o colonialismo do século XVI, como imaginam alguns – que essa diferenciação entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, tal como entendemos hoje, começou a ocorrer. É lógico que a colonização também contribuiu para criar essas diferenças, mas o fator primordial foi quem acompanhou a industrialização clássica – e ampliou com máquinas a produtividade do trabalho – e quem ficou para trás. No caso da África subsaariana, a região mais pobre do mundo, a colonização dificultou sobremaneira o deslanchar das economias ao criar fronteiras arbitrárias e acirrar diferenças étnicas e tribais que até hoje continuam a entravar o desenvolvimento de vários países nessa região. Mas tanto o padrão de vida médio das diversas regiões do globo, como as desigualdades entre elas, eram extremamente baixos em comparação aos atuais. Segundo estimativas históricas de Angus Maddison, consideradas as mais confiáveis a respeito da renda per capita dos diversos continentes, no início do século XVIII a Europa pouco se destacava frente à Ásia, e todo continente Americano, incluindo Estados Unidos e Canadá, tinham um nível de vida semelhante, com poucas diferenças. Mesmo o Japão, que depois se tornou desenvolvido, pouco se destacava de seus vizinhos asiáticos. A África já estava um pouco atrasada em relação à Europa (por motivos mais internos), mas as diferenças internacionais eram irrisórias comparadas às que começaram a ocorrer com a industrialização de alguns países.128 O atraso ou

subdesenvolvimento, cabe reforçar, é anterior ao desenvolvimento e não um subproduto deste. Talvez num futuro não muito distante a economia nacional poderá ocupar uma posição secundária frente à escala continental com o avanço dos mercados regionais, que às vezes também caminham no sentido de uma união política. Ou mesmo frente às escalas regional e/ou local, com uma (eventual) abertura sem limites de todas as economias nacionais. Todavia, malgrado as proclamações exageradas de autores como Kenechi Ohmae e outros129, essa não é a realidade atual. O Estado-nação e a economia nacional continuam a ter um papel preponderante e o desenvolvimento ainda ocorre e é determinado na escala do território nacional. Mesmo que tenha perdido uma parte de sua soberania – em alguns lugares menos e em outros mais (como na União Europeia, por exemplo, ou muito mais nos “Estados falidos”) –, o Estado nacional ainda detém um poder hegemônico sobre as forças armadas e a guerra (ou o estado de sítio), a moeda e o sistema financeiro, os impostos (pelo menos a maior parte deles), as relações exteriores, etc. Exemplificando: apesar de o Brasil possuir alguns municípios com elevados padrões de vida, ou até algumas micro-regiões relativamente ricas, como a chamada de “Califórnia paulista”, ele ainda é um país subdesenvolvido e essas áreas privilegiadas não são autônomas e sim dependentes de todas as injunções políticas, econômicas e culturais do Estado nacional. Ou seja, das migrações internas, do poder público federal (e estadual) ineficiente, do sistema de impostos arcaico, da moeda que se desvaloriza constantemente, etc. E o mesmo se dá no caso dos países desenvolvidos, por exemplo em algumas localidades considerados pobres nos Estados Unidos ou na Alemanha, que apesar de terem relativamente baixas rendas per capita, às vezes menores que a de alguns locais do Brasil ou da Argentina, estão localizadas em economias nacionais poderosíssimas (nas quais podem pleitear subsídios) e a sua população afinal está integrada num espaço nacional democrático dentro do qual pode circular à vontade. Por sinal é exatamente este o elemento fundamental nessa questão da escala privilegiada do desenvolvimento: o controle sobre a circulação da força de trabalho, que é antes de tudo praticado nas fronteiras nacionais, embora no caso (único) da União Europeia ele já tenha sido extendido para os limites do bloco. Mesmo neste caso peculiar da União Europeia, essa liberdade de circulação da força de trabalho é obstada por fatores culturais tais como o idioma e até os preconceitos contra trabalhadores estrangeiros, especialmente de determinados países que fazem parte do bloco e em

determinadas atividades. Mas na hipótese de um espaço mundial sem fronteiras nacionais, sem nenhuma forma de controle sobre as migrações internacionais, parece evidente que uma parte significativa das populações dos países subdesenvolvidos, especialmente os mais jovens, iria se transferir para as economias desenvolvidas, o que ocasionaria uma (relativa) homogeneização social na escala planetária.

NOTAS FINAIS Os marxistas das primeiras décadas do século XX, assim como boa parte dos socialistas e dos anarquistas dessa época, viam a escalada de guerras que sucedia em seu tempo como algo lamentável, porém, auspicioso ou até "progressista" por ocasionar mudanças políticas e sociais radicais. Fiéis aos bordões utilizados por Marx e Engels – tais como “não se faz omelete sem quebrar ovos” ou “a violência e as guerras representam as dores do parto da revolução” –, eles imaginavam que as guerras imperialistas poderiam significar o "último estertor" do capitalismo. Sua derradeira crise antes de se tornar superado historicamente, antes do triunfo do socialismo. Devemos transformar essas guerras inter-Estados em guerras civis, em guerras de classes, proclamaram vários teóricos da Segunda e mesmo da Terceira Internacional. Alicerçando essa forma de percepção, principalmente para os marxistas, existia (e ainda existe para muitos) todo um entendimento teleológico da história: a sucessão de "modos de produção" até se chegar ao seu último estágio com o "comunismo" (tendo no "socialismo" um período de transição); o "proletariado" como classe destinada a (ou com a "missão" de) revolucionar o capitalismo e construir uma sociedade sem classe, sendo, portanto, um sujeito histórico pré-determinado e redentor; o visível otimismo quanto ao futuro, que seria transparente e inequívoco apesar dos percalços do presente,. A teoria do

imperialismo, como vimos, partiu dessa filosofia da história, operando, entretanto, um deslocamento no eixo pré-fixado da "revolução": do proletariado dos países desenvolvidos passa-se às nações subjugadas pela dominação imperialista. Mas a grande preocupação não foi redirecionar o sentido do desenvolvimento social e tecnológico, nem mesmo a de alterar profundamente os mecanismos institucionais de poder. A principal aspiração foi a de trocar quem está no "comando", isto é, substituir os capitalistas e seus “lacaios" (os governantes) pela "vanguarda do proletariado" organizada sob a forma de um partido. O resultado foi o que se viu: burocracias oriundas dos partidos comunistas se apropriando do poder público que se torna todo poderoso, o que eliminou não as desigualdades e sim as liberdades que existiam, mesmo poucas, que enfim reprimiu violentamente toda e qualquer forma de oposição e de crítica, seja na política, na cultura, nas artes ou nos meios de comunicações. Mas no fundo não eliminou as desigualdades sociais e muito menos a exploração da mão de obra, desde que esta seja entendida como trabalho exaustivo, disciplinado e com baixa remuneração. E o fato de, nessas economias planificadas, muitas vezes se substituir dinheiro (tão exorcizado) por vales ou cupons, nunca escondeu a espoliação, principalmente porque sempre havia falta de bens e serviços nas lojas comuns, a que a maioria da população tinha acesso (mas não nas lojas especiais, destinadas apenas a certos membros do partido),

advindo daí enormes e constantes filas para as pessoas adquirirem suas pequenas cotas de pão, leite e outros produtos básicos. A economia centralmente planejada e burocratizada, ao eliminar a concorrência entre empresas e com isso limitar a inovação tecnológica, produziu um sistema que não conseguiu acompanhar as transformações das economias de mercado ou capitalistas. Estas geraram sucessivas revoluções tecnológicas, desde aquela iniciada no início do século passado, com o taylorismo, o fordismo e a produção em massa, que inegavelmente expandiram o consumo e a qualidade de vida da população, até principalmente a revolução técnico-científica iniciada em meados dos anos 1970, que alargou ainda mais a distância entre os países que nela embarcaram e aqueles que permaneceram com suas economias fechadas, burocratizadas e pouco dinâmicas. Somente a volta à plena integração no sistema capitalista mundial – com o retorno dos investimentos estrangeiros, das empresas privadas e da busca de lucros, além da expansão do comércio externo – é que possibilitou o rápido crescimento econômico (e social) da China, e a posterior recuperação da Rússia com base na superexploração de petróleo e gás natural visando suprir o mercado europeu, principalmente, e os mercados da China, Turquia e Coreia do Sul. A situação mundial dos nossos dias, desde pelo menos o mundo da guerra fria (e mais ainda com o seu final), leva indubitavelmente a uma profunda revisão nessa

teoria finalista e etapista da história e nas categorias nas quais se fundamenta: proletariado, revolução socialista, comunismo, imperalismo, modo de produção, exploração baseada na mais valia, etc. Se abordamos aqui apenas a questão do imperialismo – e não esses demais conceitos, todos questionáveis – é porque imperialismo, no marxismo dominante a partir da terceira década do século XX, foi a principal categoria a partir da qual as relações e as desigualdades internacionais eram entendidas. O futuro do social nunca é transparente ou legível com clareza – a não ser parcial e aproximadamente em alguns aspectos, como nas prováveis mudanças tecnológicas, ou nos prováveis crescimentos demográfico e econômico –, mas mesmo assim sempre com probabilidades, ou cenários possíveis, e nunca certezas. Cenários que têm por base as tendências passadas e presentes, e quase nunca levam em conta (exceto como especulações) possíveis mutações radicais que, por definição, são imprevisíveis. Já não há mais dúvidas que as desigualdades internacionais de uma forma geral ou para a imensa maioria dos países não estão se ampliando. Elas estão de fato encolhendo, pelo menos desde o início dos anos 1980 até 2019. As estatísticas internacionais referentes ao PIB, à renda per capita e principalmente ao IDH de cada país mostram isso claramente. Essas desigualdades crescem apenas em certas circunstâncias ou períodos, e geralmente para aquele pequeno conjunto de nações com os piores

índices de IDH do mundo. E mesmo assim, uma vez solucionados problemas de governos extremamente corruptos com economias fechadas, estatizadas e burocratizadas, e/ou de guerras civis ou com vizinhos, de catástrofes naturais, etc., eles acabam deslanchando tal como ocorreu por exemplo, com a Etiópia, que neste século, de 2001 até 2019, vem conhecendo um crescimento econômico anual médio de 8,9% ao ano, ou com Uganda (8,1% ao ano no mesmo período)130, entre outros exemplos de países com baixos IDHs e que estão crescendo a um ritmo bem superior ao dos países desenvolvidos. Isso mostra que não tem mais sentido procurar entender as desigualdades internacionais a partir de categorias como imperialismo, exploração entre nações ou mesmo centro e periferia vistos como realidades inescapáveis e necessariamente reproduzidas pelo sistema global. Quanto às desigualdades sociais na escala da população mundial, as evidências sugeram que em geral estão se agravando. Mas não devido a uma lógica inexorável do capitalismo e sim por processos internos nas principais economias (com PIB e rendas nacionais mais elevados) do mundo, como Estados Unidos, China, Índia, Japão e outros. No entanto, em vários outros países – na França, Noruega, México, Coreia do Sul, Bélgica, Países Baixos, Finlância, Malásia e até no Brasil – essas desigualdades sociais, medidas pelo índice de Gini, diminuíram desde os anos 1980 até pelo menos 2019, ano dos últimos dados disponíveis131.

E os motivos para essa dinâmica concentradora ou desconcentradora são antes de tudo internos – e ligados a decisões políticas, como já vimos – e não a alguma lógica inerente ao capitalismo global ou a uma pretensa exploração de alguns países por outros. Esses fatores internos são variados e normalmente conjunturais. No caso dos Estados Unidos foi principalmente o sistema fiscal e tributário que se tornou mais regressivo. E nos casos da China e da Índia isso se deveu à abertura das economias, com incentivos à produção, à inovação e ao empreendedorismo, diminuição de impostos e de burocracia para produzir e exportar, incentivos aos investimentos estrangeiros, etc., que resultaram num forte crescimento econômico com notável enriquecimento de uma minoria – inclusive, infelizmente, de políticos ou membros do partido no poder que se apossaram ou viraram sócios de firmas que foram privatizadas ou que foram criadas com fortes subsídios estatais. Mas esse processo não prejudicou a maioria da população desses países, que também se beneficiou com a inegável progressiva elevação no seu padrão médio de vida, nos seus valores de IDH. Isso significa então que o capitalismo é eterno, que a globalização é inevitável e sempre benéfica, ou que não há mais bandeiras de luta para se construir um mundo melhor? É evidente que não. Nada é eterno e nenhum processo histórico-social, por mais que beneficie a maioria, deixa de produzir perdedores e empobrecimento em certas áreas ou categorias sociais. O capitalismo, em toda a história da

humanidade, parece ter sido o sistema socioeconômico que produziu os melhores resultados em termos de progresso econômico e social-humano. Ele elevou a expectativa de vida das pessoas, diminuiu os índices de mortalidade geral e infantil, produziu mais bens e serviços per capita do que em qualquer época anterior – ou frente ao sistema que se dizia alternativo, o socialismo real. Mas capitalismo não se reproduz da mesma forma em todos os países: lutas sociais e decisões políticas modificam vários aspectos do sistema socioeconômico. O modelo japonês, como se sabe, é diferente do anglo-saxônico, que por sua vez é diferente do brasileiro. E sem dúvida que o modelo capitalista socialdemocrático dos países nórdicos é bem superior ao anglo-saxônico no tocante à igualdade, à segurança e à qualidade de vida das pessoas. É evidente que ainda persistem e às vezes se agravam inúmeros problemas nacionais e globais, que cada vez mais se entrelaçam nesta crescente interdependencia. Desde problemas políticos – por exemplo, o enfraquecimento da democracia em alguns países, ou a sua total ausência em inúmeros outros. Ou o notável número de refugiados a cada ano devido a guerras locais, grupos guerrilheiros ou governos extremamente repressivos. O crescimento dos preconceitos e até dos fundamentalismos em especial nos países que recebem muitos imigrantes e/ou refugiados a cada ano. Até os problemas econômicos, tais como, por exemplo, os indecorosos ganhos financeiros com capitais especulativos que muitas vezes ocasionam instabilidades

que impactam a economia real. Ou os os aumentos salariais e gratificações que os CEOs de bancos e empresas em geral se concedem todos os anos, sem contrapartida para os trabalhadores. Ou os funcionários públicos de alto escalão, especialmente no Brasil e em outros países com democracia bastante falha e incompleta, que criam para si escandalosos privilégios como aumentos nos salários já altíssimos (maiores até que nos países desenvolvidos) superiores à inflação, mesmo em épocas de crise ou de regressão da economia, além de gratificações diversas, auxílio-moradia mesmo para quem já reside no local de trabalho, férias de 60

dias,

possibilidade

de

várias

aposentadorias

com

recursos públicos e com valores acima do máximo permitido à maioria da população, nepotismo e compadrio na ocupação de cargos públicos, etc. Ou os políticos que desviam

para

contas

particulares

preciosos

recursos

públicos – seja pela supervalorização de obras e serviços, seja pela colocação de parentes ou amigos (ou deles próprios) em cargos de decisão nas diversas instituições e empresas públicas com a visível finalidade de se apropriarem de parte das receitas. Ou da persistência – e até agravamento, em alguns casos – da pobreza absoluta e da fome em boa parte da África subsaariana e em alguns poucos

países

de

outras

regiões.

Ou

os

enormes

desmatamentos nas florestas tropicais, a poluição do ar e das águas e o constante empobrecimento da biodiversidade no planeta, fatos que comprometem a qualidade de vida desta e principalmente das futuras gerações.

Mas isto tudo só será conseguido a partir do enfrentamento dos variados governos autoritários, ineficientes

e

corruptos,

das

economias

fechadas

e

burocratizadas, e não de um combate contra o “sistema capitalista”, como este se fosse um sujeito histórico cuja ação produziria os problemas de cada país. Enfatizar a luta contra abstrações como o “capitalismo”, a “globalização” ou o “imperialismo”, é embater contra moinhos de vento, é um posicionamento político-ideológico que, consciente ou inconscientemente, desvia as atenções das verdadeiras causas dos problemas econômicos, sociais e ambientais, sejam estes nacionais ou globais. É afinal fazer o jogo dos privilegiados, que não raramente repercutem esse tipo de discurso panfletário e pseudocrítico, no fundo inócuo para os seus interesses. Pois sabem que se trata de uma cortina de fumaça para obnubilar o esclarecimento sobre as verdadeiras causas das desigualdades, da pobreza ou da fome, das baixas condições de vida nos países nos quais mandam e desmandam. Hannah Arendt demonstrou, com muita perspicácia, que os momentos verdadeiramente revolucionários – nos quais a maioria da população conquista ou expande direitos, amplia enfim o espaço da democracia – nunca são promovidos pelos “revolucionários profissionais”, aqueles que decoram cartilhas marxistas ou anarquistas e se autointitulam vanguarda do povo ou dos trabalhadores. São produzidos pela ação mais ou menos espontânea das massas que lutam por conquistas pontuais e não por uma

“revolução” que como num passe de mágica mudaria tudo de uma hora para outra.132 Essas conquistas democráticas não se inscrevem no esquema da substituição de um modelo ou sistema por outro, tal como apregoam os “revolucionários profissionais”, que

no

fundo

somente

desvirtuam

os

processos

revolucionários com vistas a assumirem a sua liderança. Mas consistem na criação de novas práticas, as quais aperfeiçoam, expandem, redirecionam ou recriam processos que já existem, mesmo que embrionariamente, no atual estado de coisas. São conquistas, enfim, de direitos trabalhistas, dos consumidores, de moradia e infraestrutura, de liberdade de expressão e de crítica, de gênero ou de etnias, de um meio ambiente sadio e outros. A utopia de implementar através de uma “revolução” um sistema socioeconômico totalmente diverso, outra

sociabilidade

diferente

da

atual,

“uma

outra

globalização” na qual não existam perdedores nem excluídos, outra economia na qual não mais exista a competição, a propriedade privada ou o lucro, nunca é o produto espontâneo das massas. E sim uma doutrina que alguns intelectuais apregoam com base na leitura de autores dos séculos XVIII e XIX – ou de algum autor recente que apenas glosa, simplifica ou tenta atualizar suas ideias. E quando esses intelectuais conseguem chegar ao poder com promessas altissonantes e irrealizáveis, o resultado é o totalitarismo, a submissão do social ao Estado comandado por um só partido que pretende deter o controle sobre tudo

mesmo que carregado de “boas intenções”. Isso é inevitável na medida em que contraria a complexidade da ordem social moderna e até os valores mais arraigados no seio da população em geral. A propósito de como o ideal utópico com frequência resulta em totalitarismo, Foucault descreveu bem um exemplo desse tipo: “Eu diria que Bentham [o inventor do Panapticon] é o complemento de Rousseau. Na verdade, qual é o sonho presente em tantos revolucionários? É o de uma sociedade transparente, ao mesmo tempo visível e legível em cada uma de suas partes; que não haja mais nela zonas obscuras (...) ou desordem; que cada um do lugar que ocupa possa ver o conjunto da sociedade; que os corações se comuniquem uns com os outros; que os olhares não encontrem mais obstáculos, que a opinião reine, a cada um sobre cada um.”133. A ação política, como ensinaram vários mestres como Maquiavel,

Gramsci

ou

Foucault,

é

antes

de

tudo

estratégica. Isso quer dizer que ela se insere numa relação de forças e não na aplicação pormenorizada de uma doutrina ou um esquema pré-existentes. Tampouco existe um sujeito específico destinado a fazer uma “revolução” ou promover uma mudança radical. Esta resulta sempre de um encadeamento

de

acasos

e

necessidades

sempre

particulares: as confrontações entre forças diversas e desiguais, repartidas por campos diferentes e às vezes opostos. Afinal, “Os objetivos, os interesses, as vontades, as representações das diversas facções empenhadas na luta,

(...) tudo isso desempenha o seu papel. A estratégia global só aparece a posteriori como encadeamento dos riscos e das partidas perdidas ou ganhas, como sequência de acontecimentos.”134 Lutas no sentido de constantes conquistas pontuais são de fato necessárias.

Para se controlar os fluxos

internacionais de capitais especulativos, que desestabilizam inúmeras economias nacionais. Para equacionar as dívidas externas de alguns países extremamente pobres, cujo pagamento consome a cada ano recursos preciosos. Para se combater as epidemias ou pandemias – como a da AIDS, ou mais recentemente a do novo coronavírus, e outras que certamente virão –, que matam dezenas de milhões de pessoas todos os anos, em especial nas regiões menos desenvolvidas e entre as camadas mais pobres das populações.

E

isso

não

poderá

ser

feito

sem

um

enfrentamento com a poderosa indústria de medicamentos, para o barateamente de medicamentos e/ou vacinas. Para apregoar uma concórdia, uma coexistência pacífica entre civilizações, entre etnias e culturas diferenciadas (algo fundamental na África subsaariana e no sul da Ásia), combatendo assim todas as formas de fundamentalismos, que no final das contas se reproduzem – em maior ou menor proporção – em todas as grandes culturas e religiões. Para buscar

uma

solução

aos

intermináveis

conflitos

que

suscitam guerras permanentes no Oriente Médio, em várias partes da África, no sul da Ásia e em outras regiões do globo. Para expandir os direitos democráticos – mas sem

imposições neocolonialistas – em todos os recantos da superfície terrestre: direitos das mulheres, das crianças e dos idosos, de etnias e culturas minoritárias em certas sociedades,

de

orientações

sexuais

diferentes

da

heterossexual, dos camponeses sem terra, dos indígenas, etc. Para buscar soluções viáveis contra a degradação da natureza e a intensa poluição ocasionada pelo modelo econômico e tecnológico dominante, que ainda tem por base fontes de energia não renováveis, o amplo uso de plásticos

não

biodegradáveis,

o

consumismo

com

o

crescimento na produção do lixo, o desperdício no uso da água potável, a pesca predatória nos rios, mares e oceanos, etc.

Como

também

com

vistas

a

um

mundo

mais

interdependente e com maior liberdade de circulação das pessoas (e não apenas dos capitais) e que ao mesmo tempo conviva

com

e

respeite

as

diferenças

e

promova

determinados valores universais tais como, por exemplo, a democracia e os direitos humanos. Isso tudo são conquistas possíveis – e que, em boa parte, já estão até sendo conseguidas, pelo menos em vários lugares – e não uma enganosa utopia de fazer uma “revolução contra o capital”. Não se trata mais do embate do trabalho contra o capital

e

sim

de

uma

nova

hegemonia

no

sentido

gramsciano: legitimar determinados valores democráticos e pluralistas

que

possibilitem

um

mundo

sem

pobreza

absoluta nem fome, com desigualdades aceitáveis e que não sejam resultado de negócios escusos ou apropriação dos bens públicos por alguns, com proteção das áreas

florestais,

dos

mares

e

oceanos

e

manutenção

da

biodiversidade, com a proteção de culturas tradicionais ameaçadas pela macdonaldização. Mas não existe modelos ou caminhos pré-estabelecidos e muito menos um sentido unívoco para a história. Se qualquer projeto e estratégia democráticos têm necessariamente que levar em conta a escala global ou planetária, o seu ponto de partida ainda é o nível local e/ou nacional. Na imensa maioria dos casos, sua base de ação será a escala local, embora sempre levando em conta as determinações e as influências recíprocas frente à escala nacional, na qual se decidem as grandes questões que impactam toda a população do país. Sem dúvida que hoje a internet e as redes sociais possibilitam diálogos com outros povos – basta lembrarmos da suas influências na “primavera árabe” –, mas as mudanças ocorrem mesmo no nível nacional como esse

mesmo

exemplo

mostra

em

seus

diferentes

resultados nos países onde ocorreu: na Tunísia, no Marrocos, no Egito, na Síria, na Líbia, etc. Mas é uma ilusão, inclusive perigosa, imaginar uma sociedade sem desigualdades nem relações de poder. As relações de poder e as desigualdades são inerentes a qualquer agrupamento de pessoas, a qualquer sociedade humana. Assim, nunca iremos alcançar o “paraíso” no sentido de um sistema totalmente transparente e sem contradições e atritos. As diferenças e alteridades, que são enriquecedoras para a humanidade e devem ser preservadas, sempre poderão conduzir a choques e

enfrentamentos. A única alternativa que conhecemos hoje para minimizar os conflitos e as relações bastante assimétricas

de

poder



mas

nunca

elimina-los

completamente – é a constante expansão e reinvenção da democracia. Mas esta não é uma utopia no sentido de uma realidade outra já pronta ou esquematizada, e sim um processo que pode e deve ser constantemente aprimorado. Democratizar as relações internacionais, que sempre foram marcadas pelo predomínio dos interesses das grandes potências, algo extremamente difícil mas não impossível. Democratizar as inúmeras sociedades nas quais

diversas

formas

de

autoritarismo

ou

até

totalitarismo ainda imperam. Abrir mais canais ou fóruns de diálogo entre as civilizações, culturas e religiões, combatendo os diversos fundamentalismos. Expandir o sentido e a prática dos direitos humanos ou de cidadania, para neles incluir os demais seres vivos e as condições que garantam um meio ambiente sadio. Tudo isso é importante e ao mesmo tempo insuficiente. E são projetos difíceis de operacionalizar, pois cabe reconhecer que devido a alguns valores arraigados, eles podem contrariar os anseios da maioria da população em determinadas sociedades. Tais ideais poderão soar como demasiadamente limitados e frustrantes para aqueles acostumados com as promessas grandiloquentes contidas nas teorias do “sistema mundial” ou do imperialismo como etapa última

do capitalismo, onde com o seu final estariam solucionados todos os principais males da humanidade. Em contrapartida, poderão soar como idealistas e ingênuos para os que encaram o mundo em termos “realistas”, nos quais as injustiças, as desigualdades extremas, os conflitos e as guerras, as discriminações variadas e a dominação incontestável da humanidade sobre a natureza, vista como mero instrumento, seriam inescapáveis e inerentes à “natureza humana”. Talvez um desses dois lados tenha razão e o final do capitalismo produziria um “paraíso” neste mundo, ou então existiria uma “natureza humana” imutável e sempre agressiva e plena de discriminações contra os “outros”. Mas, no final das contas, preferimos a esclarecedora fala de Riobaldo, personagem criado por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas:   “O real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.  

São Paulo, dezembro de 2020 Notas

[←1] Veja-se, por exemplo, o badalado livro de NEGRI, A. e HARDT, M. Império. Rio de Janeiro, Record, 2000, talvez o mais representativo do conjunto de obras que propaga essas ideias mesmo que utilizando a categoria “império” no lugar de “imperialismo”. No final do capítulo 2 faremos um exame mais detalhado das proposições destes autores.

[←2] Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp.209-227.  

[←3] Sobre essa nova concepção de tempo com a modernidade, cf. THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em comum. SP, Cia das Letras, 2005.

[←4] FOUCAULT, M. - Microfisica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.

[←5] Cf. MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. 9ª. edição revista e ampliada. SP, Editora Contexto, 2010.

[←6] LEFEBVRE, Henri. Espacio y Política. Barcelona, Peninsula, 1976, pp.139140.

[←7] CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, São Paulo, Brasiliense, 1992, pp. 58-60.

[←8] Para evitar mal-entendidos, cabe esclarecer que disciplinamento, no entendimento foucaultiano que adotamos, é um exercício do poder não apenas e nem principalmente repressivo. Por exemplo: a escolarização é disciplinadora (em termos de preparar direta ou indiretamente força de trabalho, de inculcar nacionalismo e outros valores culturais, inclusive a concepção de espaço e tempo mercantilizados), mas isso não impede que seja extremamente progressista ao promover difusão do conhecimento e ao contribuir para desenvolver competências e habilidades que vão ampliar a qualidade de vida das pessoas.

[←9] Apud BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. Cia das Letras, 1986.

[←10] WALLERSTEIN, I. - O Capitalismo Histórico, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 39.  

[←11] LUXEMBURGO, R. - A acumulação do Capital. Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pp. 399-410.  

[←12] SALAMA, P. e MATHIAS, G. - O Estado Superdesenvolvido, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 38-43.

[←13] Essa ideia de relações não capitalistas sendo toleradas ou até reproduzidas pela acumulação capitalista são de Rosa Luxemburgo. Elas foram aplicadas e até retrabalhadas no Brasil rural por José de Souza Martins em vários estudos.

[←14] Cf. GALLISSOT, R. - "Nação e Nacionalidade dos Debates do Movimento Operário", in HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, Vol. IV, pp. 173-250.  

[←15] A bem da verdade essa opção social-democrata com a valorização das conquistas democráticas dentro do capitalismo já havia sido iniciada por Engels nos últimos anos de vida. Ele considerava Kautsky como seu discípulo predileto e herdeiro, mas os marxistas do século XX omitiram completamente esse fato e taxaram apenas Kautsky como “renegado”.

[←16] Cf. HIRSCHMAN, Albert O. "Sobre Hegel, imperialismo e estagnação cultural", in Almanaque, SP, Brasiliense, 1979, n.° 9, pp. 68-72; e também CHATELET, F, e PISIER-KOUCHNER, E. As Concepções Politicas do Século XX, RJ, Zahar, 1983, pp.293-327.  

[←17] GALISSOT, R. – op. cit., pg.190.

[←18] HAUPT, U. e LOWY, M. - Los Marxistas y la Cuestion Nacional, Barcelona, editorial Fontamara, 1980, pp. 20-21.

[←19] Engels, in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o Colonialismo, Lisboa, ed. Estampa, 1978, vol. 1, pp. 103-104.

[←20] MARX - "O Dorninio Britânico na Índia", in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o Colonialismo, op. cit., pp. 47-48. Os grifos são nossos.  

[←21] HILFERDING, R. - O Capital Financeiro, S. Paulo, Abril Cultural, 1985, col. Os Economistas, pp. 217-20.

[←22] HILFERDING, R. op.cit., pp. 314-315.

[←23] Idem, pp.296-306, passim.  

[←24] Idem, pp. 342-344.  

[←25] LUXEMBURGO, Rosa. Acumulação do Capital, op. cit., p.392 e p.411.

[←26] Em suas últimas obras – Anti-Dühring e Dialética da Natureza, esta inacabada –, Engels procurou mostrar como, segundo as “leis da dialética”, o quantitativo pode se transformar em qualitativo, ou como reformas graduais, inclusive na natureza, podem resultar em metamorfoses ou mudanças radicais, o que pode ser lido como uma legitimação para que a revolução social, a mudança do capitalismo em socialismo, pudesse também ocorrer gradativamente. Veja-se sobre isso nossa análise in: Geografia, Natureza e Sociedade, editora Contexto, 1997.

[←27] Cf. SALVATORI, M.L. - "Kautsky entre a Ortodoxia e o Revisionismo", in HOBSBAWN, E. (org.) - História do Marxismo, op. cit., vol. 11, pp. 299-339.

[←28] Sobre esse episódio da história russa, cf. ARENDT, H. Sobre a Revolução, SP, Cia das Letras, 2011; FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. SP, Perspectiva, 1988, 2ª edição; e MCMEEKIN, Sean. The Russian Revolution: A New History, New York, Basic Books, 2017. Também o importante texto de CASTORIADIS, C. “O papel da ideologia bolchevique no nascimento da burocracia”, in: A experiência do movimento operário, SP, Brasiliense, 1985, pp.226-46, demonstra como antes mesmo de 1917, Trotsky, Lênin e os bolcheviques – e também boa parte dos socialistas da época – compartilhavam uma ideologia burocrática e autoritária.

[←29] LÊNIN. "Prefácio", in BUKHARIN, A Economia Mundial e o Imperialismo, S. Paulo, Abril Cultural, col. Os Economistas, 1984, pp. 12-13.  

[←30] GALVÃO, Luiz Alfredo. "Marxismo, Imperialismo e Nacionalismo", in Debate e Crítica, S. Paulo, Hucitec, 1975, n.° 6, pp. 44-45.  

[←31] LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, ed. Anteo, 1971, pp. 108-109. Grifos nossos.

[←32] Cf. LÊNIN - op. cit., pp. 109-110 e p. 95.  

[←33] LÊNIN - op. cit., p. 153. Observe-se aí o uso da categoria exploração para as relações entre nações, algo, como já vimos, impensável para Marx.

[←34] OWEN, R. - "Introducción", in OWEN e SUTCLIFFE (org.) - Estudios sobre la Teoria del Imperialismo, México, ed. Era, 1978, p. 16.

[←35] ARRIGHI, G. - La Geometria del Imperialismo, México, 5iglo Veintiuno, 1979, p. 171.  

[←36] A respeito das conexões lógicas entre problema ontológico e visões de mundo, consulte-se o importante texto de QUINE, W.V. - From a Logical Point of View, Cambridge, Harvard University Press, 1953, pp. 1-19.       

[←37] FOLKE, S. - "Primeiras Reflexões sobre a Geografia do Imperialismo", in Seleção de Textos, AGB, S. Paulo, 1978, n.° 5, pp. 25-36. (Traduzido de Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.5, n.° 3, dez. 1973).

[←38] MAGDOFF, Harry. A Era do Imperialismo, Porto, Ed. Portucalense, 1972, pp.14-27, passim. Os grifos são nossos.  

[←39] PETRAS, J. Imperialismo e Classes Sociais no Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, pp. 224-257. Por final este autor, James Petras, é mais um dos que a partir dos anos 1990 começa a investir contra a “globalização neoliberal” fazendo uso dos velhos argumentos leninistas que são apenas adaptados a este novo cenário internacional.

[←40] Mantivemos esse parágrafo nesta nova edição do livro para evidenciar que no mínimo desde 1986, quando redigimos sua primeira edição, já enfatizávamos expansão do capitalismo até esse antigo Segundo Mundo, algo que se ampliou consideravelmente após 1989-91.

[←41] EMMANUEL, A. - "El Intercambio Desigual", in BETTELHEIM e Outros Imperialismo y Comercio Internacional, Córdoba, Pasado y Presente, 1971, pp, 8-17, passim. Os grifos são do autor.

[←42] Cf. KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.  

[←43] Cf. SHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. RJ, Fundo de Cultura, 1961. O autor analisa a teoria do valor de Marx – que pouco difere da de Ricardo, a não ser na retórica marxiana de simplificar e vilipendiar este último autor – e demonstra como ela é insustentável frente às evidências empíricas.

[←44] EMMANUEL, A. - op. cit., pp. 163-167.

[←45] Idem, ibidem

[←46] Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1977 (original de 1834, em francês). Esse autor francês visitou os Estados Unidos durante dois anos – 1831 e 1832 – e ficou espantado pelo que denominou "revolução democrática" (o federalismo, o espírito individualista e de iniciativa privada, as associações voluntárias e comunitárias, etc.), além de ter assinalado a menor hierarquia – em relação á Europa (e com a América Latina mais ainda) – dos salários e da relação patrão-empregado. É fato que nessa época havia ainda a escravidão nos EUA, especialmente no sul do país, mas o número de homens livres pobres (e até proletários) era enorme e possuía um grau de participação na expansão econômica bem superior ao dos homens livres pobres do Brasil, por exemplo.  

[←47] NEGRI, A. e HARDT, M. Império. Rio de Janeiro, Recorde, 2001, p.434.

[←48] Idem, pp.253-4. Os grifos são dos autores. É impressionante como os autores afirmam isso com a maior tranqüilidade, ignorando completamente as ácidas críticas de Lênin a Kautsky, cujas ideias de um “superimperialismo” estão muito mais próximas da noção de um “império [capitalista] mundial”.  

[←49] Idem, p.333. O uso de Povo com maiúscula e de estado com minúscula é dos autores.

[←50] ENGELS, F. - El anti-Düring, Buenos Aires, Claridad ,1970, p. 291. (Os grifos são nossos)

[←51] Apud MANDEL, E. - O Capitalismo Tardio, op. cit., p. 194. Dados do FMI, referentes a 2011, mostram que as despesas públicas nos Estados Unidos atingiram 41,4% do PIB, na Alemanha 45,3%, na França 56% e no Brasil 37,3%. Esses dados estão disponíveis in: https://www.imf.org/external/datamapper/exp@FPP/USA/JPN/GBR/SWE/ITA/ ZAF/IND/CHL/FRA/GRC/NLD/ESP/RUS. Acesso em 08 dez. 2020.  

[←52] Esses dados mencionados são de 2019 e obtidos no site do International Institute for Strategic Studies: https://www.sipri.org/sites/default/files/202004/fs_2020_04_milex_0_0.pdf. Acesso em 08 dez. 2020.

[←53] O’CONNOR, J. USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp.63-72.  

[←54] KRUGMAN, Paul. “A defesa e o terrorismo”. In: O Estado de S.Paulo, 06/02/2002.

[←55] Cf. VIRILIO, P. Guerra Pura. A militarização do cotidiano. Entrevistas a Sylvere Lotringer. São Paulo, Brasiliense, 1984.

[←56] CLAUSEWITZ, Karl Von. Da Guerra. Lisboa, Martins Fontes, 1979, pp.733743.

[←57] CLAUSEWITZ, op.cit., pp.764-768.

[←58] CLAUSEWITZ, op.cit., pp.737-743.

[←59] Nessa ocasião escrevemos um texto, a pedido de um organizador de antologia de artigos sobre geopolítica - CARVALHO, L. A. Geopolítica & Relações internacionais. Curitiba, Juruá, 2002, pp.275-93 –, mostrando a falácia desses argumentos, e acreditamos que a evolução posterior do conflito mostrou a justeza do nosso ponto de vista.

[←60] Segundo Mackinder, heartland ou “coração da Terra” seria uma vasta região que se estenderia, no sentido norte-sul, das costas geladas do oceano Ártico aos desertos da Ásia Central, e no sentido leste-oeste, dos confins da Sibéria às terras situadas entre os mares Branco e Negro. Seria uma espécie de lugar nevrálgico para as guerras e conquistas na Eurásia (a “ilha-mundo”) e por tabela o resto do mundo. Mackinder resumiu sua teoria assim: “Quem governar a Europa oriental comanda a heartland;quem governar a heartland comanda a ilha-mundo; e quem governar a ilha-mundo comanda o mundo.”

[←61] Doutrina geopolítica norte-americana do século XIX justificadora do genocídio dos indígenas e do expansionismo territorial para o oeste e para o sul.

[←62] Cf. VESENTINI, J.W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000.

[←63] Cf. VIRILIO, P. Vitesse et Politique. Paris, Galilée, 1977.

[←64] ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações, Brasília, UNB, 1986, pp. 657-695.

[←65] HUNTINGTON, Samuel P. A superpotência solitária. In: DUPAS, G., LAFER, C.; SILVA, C. E. (Org.). A nova configuração mundial do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 135 – 152.

[←66] Cf. CHOMSKY, N. - Armas Estratégicas, Guerra Fria e Terceiro Mundo, in THOMPSON e Outros. Exterminismo e Guerra Fria,S.Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 188-205.  

[←67] THOMPSON, Edward. Exterminismo e guerra fria. S.Paulo, Brasiliense, 19085. E também CASTORIADIS, C. Diante da guerra. S.Paulo, Brasiliense, 1982.  

[←68] Cf. LAÏDI, Zaki. “Sens et puissance dans le système internacional.” In: L’Ordre mondial relâché. Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp.13-44.

[←69] Cf. KISSINGER, H. Ordem Mundial. SP, Objetiva, 2014, especialmente na Introdução – a questão da ordem mundial.

[←70] BULL, H. A sociedade anárquica. Brasília, Editora da UNB, 2002, p. 236.

[←71] PISTONE, S. Relações Internacionais, in: BOBBIO, N. (Org.). Dicionário de Política, editora da UNB, 1986, pp.1089-1098.

[←72] Hedley BULL (op.cit.) não admite a existência de uma única grande potência mundial e, portanto, de uma monopolaridade, que para ele seria um império e não uma ordem mundial, que necessariamente deve ter um equilíbrio de poder entre as grandes potências. Mas a imensa maioria dos demais autores que estudam esse tema não compartilham essa visão e se referem a uma (eventual) ordem monopolar.

[←73] O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro, Objetiva, 1977.

[←74] “Sens et puissance dans le système internacional.” In: L’Ordre mondial relâché, op.cit.

[←75] Um autor que analisou com perspicácia o relativo enfraquecimento da soberania estatal (ou melhor, do crescente compartilhamento dessa soberania com outros atores) foi David HELD – La democracia y el orden global. Barcelona, Paidós, 1997.

[←76] LE GOFF, Jacques. O início da História. Entrevista publicada in Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 14 de abril de 2002.

[←77] Cf. THOMPSON, G. e HIRST, P. Globalização em questão. Petrópolis, Vozes, 1998.

[←78] Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume I, São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp. 64-80.

[←79] CAINCROSS, Frances. O fim das distâncias. São Paulo, Nobel/Exame, 2000, pp.19-38.

[←80] Cf. KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro, Campus, 1993, p.48.

[←81] Cf. VESENTINI, J.W. A nova ordem mundial, op.cit. Nessa obra mostramos com detalhes a influência da Terceira Revolução Industrial no esgotamento das economias planificadas, que nunca conseguiram acompanhar a modernização tecnológica dessa nova fase da industrialização devido à falta de concorrência entre as empresas, à excessiva burocratização e centralização das decisões, etc., que são incompatíveis com a produção flexível.

[←82] Essa verdade elementar foi tematizada, dentre outros, por Marx e Engels no século XIX. Mais recentemente Paul KENNEDY (Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989, especialmente pp.1-10) demonstrou, com uma excelente análise histórica, que em geral o poderio econômico vem antes do militar e este último não se sustenta – embora possa sobreviver durante algumas décadas, dependendo do contexto internacional – depois que o poderio econômico é enfraquecido ou deixa de existir.

[←83] Cf. BRZEZINSKI, Zgbigniew. The grand chessboard. American primacy and its geoestrategic imperatives. New York, Basic Books, 1997. Esse importante estrategista norte-americano (foi assessor para política externa no governo Clinton) argumenta que a atual supremacia planetária dos EUA é algo “sem dúvida provisório” e que poderá se prolongar por mais tempo – por mais algumas décadas – desde que o governo dessa superpotência utilize uma “geoestratégia adequada, em especial para a Eurásia”, que é exatamente o que esse livro procura esquematizar.

[←84] Informação referente a 2019 e calculada pelas estatísticas do Banco Mundial, disponível in: https://databank.worldbank.org/data/download/GDP.pdf. Acesso em 08 dez. 2020.

[←85] Todos esses dados citados no parágrafo foram extraídos ou calculados a partir da referida página do Banco Mundial mencionada na nota anterior.

[←86] Segundo informações do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2015 o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da China já atingiu o patamar considerado alto, mas não ainda “muito alto”, que seria característico dos países considerados desenvolvidos por essa organização. Como o IDH chinês – com todos os dados que o constituem (econômicos, educacionais e de saúde) – está avançando de forma acelerada a cada ano, até no máximo 2030 esse índice provavelmente já estará no patamar tido como muito alto. Todavia, essa conceituação de desenvolvido como IDH muito alto é problemática por dois motivos principais. Primeiro, porque não leva em conta a sustentabilidade: entre os países com elevadíssimos IDHs, por exemplo, existem alguns (como Kwuai ou Arábia Saudita) que dependem basicamente de exportações de petróleo e nos quais grande parte da força de trabalho é constituída por estrangeiros que não desfrutam dos mesmos direitos trabalhistas que os nacionais. Segundo, porque não leva em conta a democracia, que é constitutiva do desenvolvimento: todo país efetivamente desenvolvido – desde os EUA até a Noruega, Nova Zelândia, Suíça, Países Baixos, etc. – possui uma democracia consolidada, com a efetivação dos direitos civis, políticos e sociais, com o avançar dos direitos de nova geração (ambientiais, de orientação sexual e outros). A China sem dúvida logo terá um IDH muito alto, mas o extremo autoritarismo de seu regime político constitui uma dúvida para que ela possa ser considerada como plenamente desenvolvida.

[←87] Cf. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro, Record, 2000.

[←88] Uma redefinição nessa importante organização internacional, a nosso ver, é condição indispensável para sua sobrevivência neste século, ou para não se tornar completamente irrelevante. Ela precisa de adequar às mudanças, especialmente na questão ambiental (aquecimento global e mudanças climáticas, enorme perda de biodiversidade com os desmatamentos e a poluição nos mares e oceanos), nas alterações no equilíbrio de poder na escala mundial: países ou regiões subrepresentadas na ONU vão se tornar cada vez mais relevantes, tais como, por exemplo, a Índia, que deverá se tornar na segunda maior economia do mundo já em meados do século; ou no caso da África, que na virada para o século XXII deverá superar a Ásia e ser o continente mais populoso, etc.

[←89] CASTELLS, M. Fim de milênio. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume 3. São Paulo, Paz e Terra, 1999, pp.424-5.

[←90] Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto, 1997.

[←91] Especialmente na obra The Capitalist World-Economy (Cambridge University Press, 1979).  

[←92] WALLERSTEIN, I. “Wallerstein desfaz a ilusão do progresso”. Entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 10/02/2002. (Os destaques são de nossa autoria).

[←93] Essa é uma tradicional e em grande parte estéril discussão teórica, embora constantemente reproduzida: vide o famoso escrito de Mao Tse-Tung: Sobre la Contradiccion, B.Aires, La Rosa, 1969. Em primeiro lugar, no mundo moderno existem interpenetrações e influências recíprocas entre fatores “endógenos” e “exógenos”, que em alguns casos são inseparáveis. Em segundo lugar – e o que é mais importante –, a maior ou menor influência deste ou daquele fator ou processo sempre depende de cada realidade específica, é algo que varia muito de acordo com ao lugar e o momento, não sendo possível nenhuma generalização que dê conta de todas as situações possíveis numa única fórmula. Em todo caso, como até Mao Tse-Tung assinalou, nas questões referentes aos Estados territoriais modernos via de regra os fatores internos são os mais relevantes, mesmo que por vezes influenciados por circunstâncias externas.  

[←94] MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, pp.696-704, passim.

[←95] Existem entendimentos variados sobre exclusão, inclusive polêmicas sobre a sua pertinência na medida em que, vivendo numa sociedade, ninguém é excluído do ponto de vista sociológico. Mas a exclusão não remete ao todo social e sim à carência de bens ou serviços específicos. Um importante autor que questionou essa noção escreveu que: “a exclusão deixa de ser concebida como expressão de contradição no desenvolvimento da sociedade capitalista para ser vista como um estado, uma coisa fixa (...) a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro modo, com as suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (MARTINS, José de S. Exclusão social e a nova desigualdade, SP, Paulus, 1997, Martins, p.17 e p.32). Seria, em suas palavras, “uma ‘exclusão includente’ produzida pelo capitalismo”. Malgrado a perspicácia dessa percepção, no velho e bom estilo Rosa Luxemburgo (o que só engrandece o autor), há o problema que seu ponto de partido é uma totalidade imaginada, o “sistema capitalista”, que é entendido como se fosse um agente histórico – e ademais onipresente. E passa desapercebido que exclusão é uma noção ética – no sentido dado por Richard RORTY (Pragmatismo e política, SP, Martins, 2005, p.101-22) –, que implica em ação afirmativa, em demanda por novos direitos.

[←96] Cf. SACHS, J. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.

[←97] FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico, RJ, Paz e Terra, 2005; CASTORIADIS, C. “Reflexões sobre o desenvolvimento e a racionalidade”. In: As encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp.135-158.

[←98] Esse estudo foi publicado no Brasil com o título de Nosso Futuro Comum (editora FGV, 1988).

[←99] CAIRNCROSS, F. O fim das distâncias, op..cit., p.250.

[←100] Um bom estudo sobre as mudanças tecnológicas no sentido de uma tecnologia “limpa”, que permita o desenvolvimento econômico sustentável (a produção de veículos automotores a hidrogênio ou a eletricidade, de prédios e residências “ecológicos”, de como reaproveitar a água ou dessalinizar de forma econômica e sustentável a água do mar, de como obter com menores espaços e custos novos alimentos, etc.), é o livro de HAWKEN, P., LOVINS, A. e LOVINS, L. H. Capitalismo natural. SP, Editora Cultrix/Amaná-Key, 1999.

[←101] HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo, Littera Mundi, 2001, p.186.

[←102] População abaixo da linha internacional da pobreza definida como 1,9 dólar ao dia ou menos por pessoa. Essas informações são do Banco Mundial e disponíveis in: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.DDAY? view=chart. Acesso em 11 dez 2020.

[←103] FAO - World hunger falls to under 800 million, eradication is next goal, in: http://www.fao.org/news/story/en/item/288229/icode/. Acesso em 11 dez. 2020. A FAO define fome como prevalência de desnutrição, entendida como consumo alimentar habitual nsuficiente para fornecer os níveis de energia dietética necessários para manter uma vida normal ativa e saudável.

[←104] Sobre as razões da pobreza no mundo e propostas para eliminar esse problema, cf. SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza. SP, Cia das Letras, 2005.

[←105] Cf. CHOSSUDOVSKY, M. A globalização da pobreza, SP, Moderna, 1999; e SANTOS, M. Por uma outra globalização, SP, Record, 2005.

[←106] Informações coletadas em várias fontes: sites da AAE (Association of American Educators), de Our World in Data e do OECD https://data.oecd.org/eduresource/teachers-salaries.htm). Acessos em 13 dez. 2020.

[←107] Veja-se esta notícia da BBC, reproduzida na época em quase todos os portais de notícias ao redor do mundo: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo _oxfam_fn. Acesso em 11 dez. 2020.

[←108] Todos esses dados foram extraídos do World Inequality Database, disponíveis in: https://wid.world/world/#sptinc_p90p100_z/US;FR;DE;CN;ZA;GB;WO/last/eu /k/p/yearly/s/false/24.339999999999996/80/curve/false/country. Acesso em 12 dez. 2020.

[←109] Cf. The Independent, in: https://www.independent.co.uk/news/business/comment/oxfam-righthighlight-global-economic-inequality-despite-brickbats-thrown-its-criticsa8171926.html. Acesso em 12 dez. 2020.

[←110] Veja-se, por exemplo, o jornal Financial Times: Three reasons to question Oxfam’s inequality figures. In: https://www.ft.com/content/bc09a15d-d04d3f15-9b61-8bad80392947. Acesso em 12 dez. 2020.

[←111] PIKETTY, T. O Capital no século XXI. SP, Garamond, 2014. Publicada em francês em 2013, esta obra foi traduzida para dezenas de idiomas e recebeu rasgados elogios, embora também algumas críticas. Ela vendeu milhões de exemplares, tornando-se um best seller internacional (durante algum tempo foi o livro mais vendido pela Amazon), além de ampla cobertura na mídia, o que provavelmente tenha inspirado a Oxfam a escrever e divulgar seus “estudos” todos os anos com dados cada vez mais sensacionalistas e que repercutem enormemente nos meios de comunicações.

[←112] PIKETTY, T. op. cit., p.27. Interessante que, apesar da declarada inspiração em Marx, após analisar as oscilações para baixo ou para cima na concentração da distribuição de renda nesses 20 países (e os motivos disso), o autor teve que admitir que essa dinâmica não se deve a uma lógica inexorável do capitalismo, como Marx imaginava, e sim a decisões políticas.

[←113] Idem, p.32-3.

[←114] Além das estatisticas no livro de quase 700 páginas, sempre com dados oficiais ou de pesquisadores e organizações internacionais fidedignos, ele disponibilizou na internet centenas de tabelas e gráficos sobre o assunto, além de explicações sobre de onde e como foram obtidos ou retrabalhados esses dados. No caso da edição brasileira, esse anexo técnico pode ser encontrado in: https://www.intrinseca.com.br/ocapital/.

[←115] Cf. dados do Banco Mundial in: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?locations=US. Os Estados Unidos até 1970 tinham um índice de Gini abaixo de 33, mas em 2019 já era de 41,1 – considerado elevado e maior até que vários países não desenvolvidos tais como Albânia, Armênia, Azerbaijão, Egito, República da Guiné, Índia, Libéria e outros. Portanto as relações entre democracia e desigualdades medidas pelo índice de Gini são complexas: praticamente todos países democráticos, com a recente exceção dos Estados Unidos, possuem baixos índices, mas também alguns países pobres (embora não a maioria) possuem esse índice abaixo de 33.

[←116] SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000; e Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.

[←117] Cf. DELLORS, J. (Org). Educação – um tesouro a descobrir, Brasília, Unesco/Mec, 1998. Esta obra coletiva mostra que a família é a instituição que mais influencia a educação dos jovens por sua maior ou menor valorização da escolarização e do conhecimento, da meritocracia, do gosto pela cultura, literatura, artes, etc. É por isso que certos grupos étnicos costumam ter, em média, um melhor desempenho escolar do que outros em sociedades multiétnicas – por exemplo, no Brasil ou nos Estados Unidos, os descendentes de japoneses, chineses, judeus, alemãos e outros. É porque seus valores familiares valorizam imensamente a educação e a cultura em geral, e os mais velhos (pais, avós, tios) costumam acompanhar e estimular vida escolar das crianças e dos adolescentes.

[←118] Cf. COMTE-SPONVILLE, A. O capitalismo é moral? SP, Martins Fontes, 2005.

[←119] FRANKFURT, H. G. Sobre a desigualdade. SP, Gravida, 2015, p.13-5.

[←120] LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Petrópolis, Vozes, 1994, pp.68-9.

[←121] Idem, pp.92-3.

[←122] LE GOFF, Jacques. Op.cit.

[←123] Cf. HUNTINGTON, S. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Editora Objetiva, 1966. Nessa mesma linha, alguns autores latinoamericanos argumentam que os reclames de países desenvolvidos – ou de ONGs neles sediadas – contra os desmatamentos e o trabalho infantil ou o escravo, sugerindo sansões comerciais frente aos produtos oriundos dessas áreas, estariam apenas “tentando impedir exportações dos países periféricos”.

[←124] LÉVI-STRAUSS, C. Raça e História. Lisboa, Editorial Presença, 1975, pp.9199. Este autor assinalou ainda que todas as culturas que se fecharam às influências estrangeiras acabaram estagnadas.  

[←125] Idem, pp.92-3.

[←126] OHMAE, Kenechi. O fim do Estado-nação. A ascensão das economias regionais. Rio de Janeiro, Campus, 1996, pp.73-5.

[←127] Cf. BAIROCH, Paul. Revolución industrial y subdesarrollo. México, Siglo Veintiuno, 1967.  

[←128] Cf. http://www.ggdc.net/maddison/oriindex.htm. Acesso em 18 dez. 2020.

[←129] Cujas interpretações, a bem da verdade, são antes de tudo desejos ou até projetos. Eles não analisam ou auscultam a realidade, mas pretendem contribuir para a sua mudança nos termos em que julgam mais adequados.

[←130] Em contrapartida, nesse mesmo período os Estados Unidos cresceram em média 2,6%, a Alemanha 2,0% e o Japão apenas 1,9%. Esses dados podem ser obtidos no site do Banco Mundial in: https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?view=chart. Acesso em 17 dez. 2020.

[←131] Essas informações podem ser pesquisadas in: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?view=chart&locations=JPMY. Acesso em 17 dez. 2020.

[←132] ARENDT, H. Sobre a a Revolução, op. cit.

[←133] FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Op.cit., p.215. O Panapticon foi um tipo de arquitetura de presídios, idealizada por Jeremy Bentham no século XVIII, que visava o controle, a vigilancia constante sobre os presos. Estes deveriam saber que estavam sendo observados e assim interiorizar essa mecanismo de poder. Esse modelo foi posteriormente aplicado a outras instituições como escolas, hospitais, sanatorios, asilos, etc.  

[←134] LEFEBVRE, H. A Reprodução das Relações de Produção, Porto, Publicações Escorpião, 1973, pp. 89-90.