Genealogia da Moral de Nietzsche - Uma introdução

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Genealogia da Moral de

Uma Introdução

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Genealogia da Moral de

Uma Introdução Lawrence ]. Hatav

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Publicado originalmente em in~lês sob.º tít~lo Nietzsche :S On the Genealogy ofMorality -An fntrod11ction pela Cambndge U01vers1ty Press. © 2008 Lawrence J. Hatab Direito; de edição e tradução para o Brasil. Tradução autorizada do inglês. © 201 O, Madras Editora Ltda.

Editor: Wagner Veneziani Costa Produção e Capa: Equipe Técnica Madras Tradução : Nancy R. Juozapavicius

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Revisão da Tradução : Guilherme Miranda Revisão: Wilson Ryoji !moto Ana Cristina Teixeira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hatab, Lawrence J. A genealogia da moral de Nietzsche : uma introdução / Lawrence l Hatab ; tradução Nancy Juozapavicius. -- São Paulo: Madras, 2010. Título original: Nietzsche's On the genealogy of morality: an introduction. Bibliografia. ISBN 978-85-370-0619-l 1. Ética 2. Filosofia alemã 3. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. A genealogia moral I. Título.

10-07721 CDD-170

índices para catálogo sistemático: l. Filosofia moral 170

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Madras Editora, na pessoa de seu editor (Lei 0 12 9.61 O, de 19.2.98). Todos os direitos desta edição, em língua portuguesa, reservados pela

MADRAS EDITORA LTDA. Rua Paulo Gonçalves, 88 - Santana CEP: 02403-020 - São Paulo/SP Caixa Postal : 12183 - CEP: 02013-970 Tel. : (11) 2281-5555 - Fax: (11) 2959-3090

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Indice

Agradecimentos ..................................... ............................. ................. 9 Abreviações das Obras de Nietzsche ............................................... 11 Introdução ......................................... .. ............................................... 13 1. Pensamento e Vida de Nietzsche .................................................. 21 Da Metafisica ao Naturalismo .................................................... 21 A Morte de Deus ........................................................................ 23 Vontade de Poder ........................................................................ 25 Agonistas .................................................................................... 26 Psicologia e Perspectivismo em Filosofia ................................... 27 O Sentido da Vida ....................................................................... 29 Tragédia e Moral. ......................... -........... .................................... 31 Um Esboço da Vida de Nietzsche ............................................... 34 2. O Prólogo ....................................................................................... 39 Seção 1........................................................................................ 39 Seção 2 ........................................................................................ 41 Seção 3 ........................................................................................ 42 Seção 4 ........................................................................................ 43 Seção 5 ........................................................................................ 44 Interlúdio: Schopenhauer, Pessimismo e Niilismo .............. ...... .45 Seção 6 ........................................................................................ 48 Seção 7 ........................................................................... ............. 49 Seção 8 ........................................................................................ 50

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

3. A Primeira Dis~er,t~ção: "Bem e M~l", "Bom e Mau" ............... 51 Uma Nova H1stona da Moral (Seçoes 1-3) ................................ 51 A Linguagem da Moral (Seções 4-5) ....... :................................. 53 O Sacerdote (Seções 6-9) ....................................... .................... 54 Moral do Mestre e Moral Escrava (Seções 10-12) ..................... 56 Interlúdio: Antes do Bem e do Mal: Valores Heroicos em Homero .................................................................................. 64 Liberdade, Justiça e Vingança (Seções 13-15) ........................... 76 O Conflito Contínuo entre os Valores do Mestre e do Escravo (Seções 16-17) ................................................................ 80

4. A Segunda Dissertação: "Culpa", "Má Consciência" e Questões Relacionadas ................................................................... 83 Esquecimento, Memória e Promessa (Seções 1-2) ..................... 83 O Indivíduo Soberano (Seções 2-3) ............................................ 89 Consciência (Seção 3) ................................................................ 97 Culpa e Má Consciência (Seções 4-5) ........................................ 99 Moral e as Faces Mutantes da Crueldade (Seção 6) ................. 100 Crueldade e Pessimismo (Seção 7) ........... ................................ 103 Dívida e Comunidade (Seções 8-9) .......................................... 105 Justiça, Poder e Lei (Seções 10-11) ......... ;................................ 107 Propósito e Poder (Seção 12) .................................................... 11 O O Significado Original da Punição (Seções 13-15) .................. 112 A Emergência da Má Consciência (Seções 16-17) ..... ............. 113 Má Consciência e Crueldade Criativa (Seção 18) .................... 115 Teologia e Consciência (Seções 19-23) .................................... 116 A Má Consciência Pode ser Superada? (Seções 24-25) ........... 118 Niilismo, Genealogia e Tempo ................................................. 120 5. A Terceira Dissertação: o que Significam os Ideais Ascéticos? ......................................................................... 127

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Seção 1 e a Terceira Dissertação ............................................... 128 Arte e o Ideal Ascético (Seções 2-4) ............................. ........... 129 Arte e Filosofia (Seções 5-6) .................................................... 131 Uma Perspectiva Natural sobre o Ascetismo (Seção 7) ............ 135 O Filósofo e o Ideal Ascético (Seções 8-1 O) .......... .................. 136 O Sacerdote Asceta (Seção 1l) ... .............................................. 139 O Ideal Ascético e a Verdade (Seção 12) .................................. 141 Interlúdio: a Questão da Verdade na Filosofia de Nietzsche .................... :.......................................................... 143 O Ideal Ascético e o Enaltecimento da Vida (Seção 13) .......... 153 O Perigo do Ideal Ascético para a Vida (Seções 14-15) ........... 160 Os Efeitos Terapêuticos do Ideal Ascético (Seções 16-18) ........... 162

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ÍNDICE

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O Ideal Ascético e Culpa (Seções 19-22) ................................. 165 Ciência e o Ideal Ascético (Seções 23-25) ............................... 166 Superando o Ideal Ascético (Seções 26-28) ................. :........... 178 6. Reflexões sobre a Genealogia ..................................................... 187 Uma Visão Geral da Genealogia .............................................. 187 Natureza, Arte e Verdade .......................................................... 192 Tragédia e Moral. ................................................. ..................... 201 'f Platão e a Poesia Grega ............................................................. 205 i Eterna Recorrência e Tragédia Moral.. ..................................... 213 7. A Genealogia e a Filosofia Moral.. ...................................... .......... 219 ;Jç Filosofia Moral Moderna .......................................................... 219 1( Nietzsche e as Teorias Morais Modernas ... .............................. 223 '\°> Ética da Virtude ........................................................................ 232 :r 't::. Nietzsche e Aristóteles .................................................. .......... 235 --{( Aristóteles e a Tragédia Moral.. ............................................... . 241 Ética e o Pensamento de Nietzsche .......................................... 248 8. A Genealogia e a Filosofia Política ........ ........................... .......... 259 ~ A Teoria do Contrato Social ..................................................... 260 ~ietzsche e a Política Moderna ................................................ 261 G A Democracia é Incompatível com a Filosofia de Nietzsche? .............................. ............................... 266 Nietzsche como Pensador Político ............................................ 273 *Democracia Agonista ................................................................ 276 '-1 Agonística Legal ....................................................................... 277 Democracia e Tragédia ............................................................. 280 Política e Comunidade .............................................................. 281 Democracia e Modéstia ....................... .................................... . 285 Esquecimento Ativo e Democracia ........................................... 286 Referências ....................................................................................... 289 Índice Remissivo ..................... .... .. .............................................. ..... 297

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Agradecitnentos

Gostaria de agradecer a Hilary Gaskin, da Cambridge University Press, por iniciar este projeto e orientá-lo durante o processo. Obrigado também aos revisores técnicos pelas sugestões muito úteis. Sou grato à Old Dominion University por uma licença no outono de 2007, que possibilitou que eu completasse o manuscrito em tempo hábil. Agradecimentos especiais à Deborah Bond, cuja capacidade para gerenciar nosso escritório permitiu que eu tivesse espaço para realizar este trabalho e, ao mesmo tempo, ser o chefe do departamento. Acima de tudo, sou grato à minha esposa, Chelsy, que sabe muito bem em que medida "nós conhecedores" somos estranhos. Por fim, quero dedicar este livro aos meus alunos.

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Abreviações das Obras de Nietzsche

Os números citados se referem a seções de texto, exceto no caso de KSA, em que são dados o volume e os números das páginas. Ocasionalmente, modifiquei as traduções publicadas.

A

TheAntichrist [O Anticristo], em The Portable Nietzsche, ed. e trad. Walter Kaufmann (NewYork: Viking Press, 1954).

BGE

Beyond Good and Evil [Além do Bem e do Mal], em Basic Writings ofNietzsche, ed. e trad. Walter Kaufmann (NewYork: Random House, 1966).

BT

The Birth of Tragedy [O Nascimento da Tragédia], em Basic Writings.

CW

The Case of Wagner [O Caso de Wagner, um Problema para Músicos], em Basic Writings.

D

Daybreak, trad. R. J. Hollingdale (Cambridge: Cambridge University Press, 1982).

EH

Ecce Homo, em Basic Writings. Os quatro capítulos principais serão indicados por numerais romanos, com os títulos dos livros no Capítulo III abreviados de forma correspondente.

GM

On the Genealogy of Morality [Genalogia da Moral], ed. Keith Ansell-Pearson, trad. Carol Diethe (Cambridge: Cambridge University Press, 2007).

GS

The Gay Science [A Gaia Ciência], trad. Walter Kaufmann (NewYork: Random House, 1974). 11

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Human, AI~ Too Human [Humano, De~asiado Humano], trad. R. J. Holhngdale (New York: Cambridge University Press 1986). '

KSA

Siimtliche Werke: Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli e M. Montinari (Berlin: Walter de Gruyter, 1967).

TI

Twilight ofthe !dois [Crepúsculo dos Ídolos], em The Portable Nietzsche. Os capítulos estarão em sequência em numerais arábicos.

UDH

On the Uses and Disadvantages ofHistory for Life [As Vantagens e Desvantagens da História para Vida], Parte 2 de Untimely Meditations.

UM

Untimely Meditations [Considerações Extemporâneas], trad. R. J. Hollingdale (Cambridge: Cambridge University Press, 1983).

WP

The Will to Power [A Vontade de Poder], trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale (New York: Random House, 1967).

WS

The Wanderer and His Shadow [O Viajante e sua Sombra], Parte 2 de Human, Ali Too Human.

Z

Thus Spoke Zarathustra [Assim Falava Zaratustra], em The Portable Nietzsche. As quatro partes serão indicadas por numerais romanos, as seções por numerais arábicos de acordo com a relação de Kaufmann nas páginas 112 a 114.

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Introdução

A Genealogia da Moral de Friedrich Nietzsche é um livro contundente, desconcertante e de máxima importância. É amplamente reconhecido nos tratamentos filosóficos como um dos textos mais importantes dos escritos de Nietzsche e tem sido foco de extensa análise nos últimos anos. A Genealogia é ensinada e indicada em outras disciplinas também, particularmente na filosofia política e na teoria literária. Uma das razões para a popularidade deste texto, além do poder de suas ideias, é que, de todos os escritos de Nietzsche após O Nascimento da Tragédia, é o que mais lembra a forma de um "tratado", com discussões estendidas de temas organizados e alguma orientação histórica. De forma distinta dos estilos aforísticos e literários típicos de Nietzsche, a Genealogia oferece algumas vantagens para investigações em sala de aula, apesar de ser difícil chamar este livro de uma típica investigação acadêmica. Nietzsche o chama de uma "polêmica" e está repleto de hipérboles, ambiguidades, orientações incorretas, alusões, provocações, iconoclastias, invectivas, prognósticos, experimentos e a própria persona vigorosa de Nietzsche. Considerando que Nietzsche se tornou uma figura respeitável no meio acadêmico ( e ele é um dos poucos filósofos pós-kantianos do continente europeu levados a sério nos círculos analíticos), é difícil apreciar a natureza radical da Genealogia em seu ambiente do século XIX. Algumas leituras tendem a domesticar Nietzsche, comprimindo o texto dentro dos padrões logísticos das agendas dos filósofos profissionais e teóricos contemporâneos. Outras leituras perdem o poder 13

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intelectual do livro ao exagerar seu caráter radical direcionado a celebrações insanas de diferença e criatividade (o que, na verdade, perpetua outro tipo de domesticação). Em seu próprio momento histórico, a Genealogia é uma espécie de bomba. Seu objetivo é diagnosticar as tradições morais respeitadas como formas de negação da vida, nas quais o que é avaliado como "bom" nesses sistemas se opõe às condições reais da vida natural. Ainda assim, o texto de Nietzsche não está promovendo uma postura "imoral" ou "amoral" em nome de forças vitais presumivelmente desprovidas de valores. Em vez disso, Nietzsche quer explorar novas possibilidades de valores de afirmação da vida ao basear-se em fontes históricas que foram consideradas "imorais'' por sistemas morais da tradição, mas que podem ser redimidas como valores vitais moralmente defensáveis. Consequentemente, o caráter "polêmico" da Genealogia implica uma dupla estrutura negativa, uma luta contra os valores negadores da vida em favor de valores de afirmação da vida. Embora a moral cristã seja um alvo predominante na Genealogia, a crítica de Nietzsche abrange muito mais do que simplesmente religião. O Cristianismo era uma força que moldava o mundo em todos os níveis de cultura, e Nietzsche afirma que mesmo as chamadas morais "seculares" modernas não escaparam das influências formativas do Cristianismo e de seus elementos negadores de vida. E mais, a polêmica na Genealogia não é limitada à moral construída de forma estreita como ética. De acordo com Nietzsche, os julgamentos morais contra a vida natural também marcaram o grosso da história intelectual e cultural do Ocidente, não somente na religião e na ética, mas também na filosofia, na política, na psicologia, na ciência e na lógica. Essas observações preliminares podem ser confirmadas considerando a Genealogia em relação ao livro que imediatamente a precede nas obras publicadas de Nietzsche: Além do Bem e do Mal. Walter Kaufmann observa que, na página de rosto de Genealogia, há estas palavras: "Sequência do meu último livro, Além do Bem e do Mal, que a Genealogia_ pretende suplementar e esclarecer" .1 ~·suplementar" é a tradução de Ergiinzung, que pode também significar "concluir". Assim, é de particular importância levar em conta Além do Bem e do Mal ao se ler a Genealogia. Em Ecce Homo, Nietzsche diz que Além do Bem e do Mal começou seu turno de Dizer Não após a força de Dizer Sim de A Gaia Ciência e Zaratustra e que começou sua "grande guerra" contra valores estabelecidos 1. Basic Writings of Nietzsche, ed. e trad. Walter Kaufmann (New York: Random House,

1966), p. 439.

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(EH III, BGE 1). Ele indica posteriormente que Além do Bem e do Mal "é em toda a sua essência uma crítica à modernidade, não excluindo as ciências modernas, as artes modernas ou mesmo a política moderna, com indicadores para um tipo contrário que é o menos moderno possível - um tipo nobre, que Diz Sim'.' (EH III, BGE 2). Dessa forma, a Genealogia, também conhecida como "conclusão" de seu livro anterior, deve ser lida como uma crítica ao mundo moderno e a toda a gama de construtos intelectuais que o marcam. É claro que questões de ética e política estão no cerne da Genealogia, mas deve-se reconhecer que sua crítica à "moral" é também porta de entrada para as questões mais amplas de conhecimento, verdade e significado, as abordagens tradicionais que Nietzsche diagnostica como fomentando julgamentos moralistas contra a vida natural. De que modo a Genealogia deve ser abordada como texto filosófico? Nietzsche rejeita a noção de que a filosofia é uma busca "impessoal" por conhecimento; a filosofia concebida dessa forma esconde uma "confissão pessoal", uma "memória inconsciente" e, assim, os pensamentos de um filósofo são a "testemunha decisiva de quem ele é" (BGE 6). Ao considerar uma reivindicação filosófica, deve-se perguntar: "O que essa reivindicação nos diz sobre o homem que a fez?" (BGE 187). A filosofia não pode nunca ser separada de interesses existenciais e, portanto, o "conhecimento desinteressado" é uma ficção (BGE 207; GM III, 12, 26). Perspectivas de valor são mais fundamentais do que objetividade ou certeza. Não há um ser em si mesmo, apenas "graus de aparência mensurados pela força do interesse que mostramos em certa aparência" (WP 588). A filosofia construída desse modo significa que o padrão de conhecimento demonstrável deve ser cambiado pelo conceito mais aberto de "interpretação" (GS 374). Interpretação é a "introdução do significado (Sinn-hineinlegen)" e não "explicação" (KSA 12, p. 100).2 Os limites lógicos das respostas às questões intelectuais mais profundas são uma característica óbvia da história do pensamento, dada a persistência de críticas e contracríticas não resolvidas na filosofia. Em vez de desistir dessas questões ou recorrer a soluções místicas, transcendentes ou mesmo relativísticas, Nietzsche foca na filosofia como uma expressão encarnada de forças psicológicas. Questões críticas que seguem esse foco não mais se transformariam em testes cognitivos (Como você pode provar X?), mas em explorações e provas psicológicas (Por que X é importante para você?). Assim sendo, para Nietzsche, a filosofia é sempre plena de valores, não podendo ser reduzida a termos 2. Para um estudo importante, ver Alan D. Schrift, Nietzsche and the Question ofInterpretation: Between Hermeneutics anel Deconstruction (New York: Routledge, 1990).

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descritivos e objetivos ou a um projeto de demonstração lógica; e ele é persistente em reconhecer isso no decorrer de seus escritos: "O que eu tenho a ver com refutações!" (GM P, 4). Ele indica com frequência que a filosofia, incluindo seu próprio trabalho textual, é uma circulação de escritos e leituras que surge de forças e disposições pessoais em relação à vida que explora essas forças e disposições. Isso não significa que a filosofia não seja nada mais do que expressão pessoal, embora a primeira pessoa do singular apareça com tanta frequência nos textos de Nietzsche. Entretanto, Nietzsche emprega "nós" tanto quanto "eu", o que insinua a importância das dimensões coletivas na cultura. E mais: Nietzsche explora uma vasta gama de questões filosóficas sobre realidade, mundo, vida, conhecimento e verdade, com o objetivo de propor respostas irrefutáveis a essas questões. Ainda assim, ele insiste que essas propostas não podem ser entendidas de forma adequada .puramente na terceira pessoa, separadas de seu significado para os interesses humanos no mundo da vida. A predominância do "eu" e do "nós" nos escritos de Nietzsche também implica uma perspectiva de segunda pessoa impregnada, ou seja, "você", o leitor. Eis porque devemos enquadrar os textos de Nietzsche em sua função "locutora", por que a "resposta do leitor" é inseparável da natureza de um texto escrito. As escolhas estilísticas de Nietzsche - hipérboles, provocações, alusões, metáforas, aforismos, formas literárias e narrativas históricas não confinadas a fatos ou teorias demonstráveis - mostram·que ele presumia o envolvimento do leitor no ato de trazer sentido a um texto e até mesmo em explorar além do texto ou ir contra ele. Os livros de Nietzsche não pretendem propor "doutrinas" como transmissão de mão única de pensamentos prontos. Bons leitores devem ser ativos, não simplesmente reativos; eles precisam pensar por si mesmos (EH II, 8). Aforismos, por exemplo, não podem simplesmente ser lidos; eles requerem uma "arte de interpretação" da parte dos leitores (GM P, 8). Nietzsche quer ser lido "com as portas deixadas abertas" (D P, 5). Isso não significa que os textos de Nietzsche não sejam nada além de um convite à interpretação. A própria voz e a posição de Nietzsche são centrais nos seus escritos, e ele assume muitas posições firmes sobre questões filosóficas. Ainda assim, ele não escreveu, tampouco queria ser lido, como um filósofo típico, construindo argumentos na busca da "verdade objetiva". O que quer que a verdade signifique na filosofia de Nietzsche, ela não pode ser um empreendimento estritamente objetivo ou lógico, porque a verdade deve estar viva nos escritores e nos leitores. 3 3. Um estudo excelente a esse respeito é Reading the New Nietzsche de David B. Allison (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2001).

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A forma incisiva como Nietzsche se dirige ao "nós" cultural e ' ' ao "você", o leitor, é a característica essencial do texto da Genealogia, apesar de sua semelhança superficial com um tratado. O livro busca estimular uma "introdução de significado" entre o escritor e o leitor que vai além do texto escrito em si. Além disso, a questão do significado forjada pelo livro apresenta desafios profundos e provocações obscuras a crenças tradicionais e expectativas normais a respeito de filosofia. Eis o que Nietzsche diz a respeito da Genealogia em Ecce Homo: Com relação à expressão, à. intenção e à arte da surpresa, as três indagações que constituem esta Genealogia talvez sejam mais inquietantes do que tudo o que foi escrito até agora( ... ) A todo o momento um início que é calculado para c~mfundir: frio, científico, até mesmo irônico, deliberadamente destacado, deliberadamente refreado. Gradualmente mais agitação; raios esporádicos; verdades bastante desagradáveis são ouvidas ribombando a distância - até que acaba por se chegar a um tempo feroce no qual tudo é lançado adiante com tremenda tensão. No fim, em meio a detonações perfeitas e ameaçadoras, uma nova verdade faz-se visível todas as vezes entre nuvens espessas. (EH III, GM) Como dito antes, alguns tratamentos da Genealogia, embora reconhecendo suas características incomuns, tendem a posicionar o texto em termos de métodos e assuntos filosóficos atuais, ou a situá-lo entre pensadores anteriores e conceitos filosóficos tradicionais. Outros · tratamentos tomam o livro como o mais aberto ou enigmático do que qualquer colocação do gênero. Pode-se ganhar muito de todas essas abordagens, mas eu sempre fiquei insatisfeito com elas. Nietzsche, com certeza, estava buscando realizar um trabalho filosófico da mais alta categoria, e, assim, criticava de maneira específica a maioria dos métodos filosóficos da forma como costumavam ser construídos; e desafiava os conceitos filosóficos mais tradicionais como inadequados à tarefa de pensar. Nietzsche era um classicista por formação, de modo que conhecia bem as técnicas eruditas tradicionais e poderia tê-las empregado em seus escritos. Que ele deliberadamente tenha feito de outra maneira mostra que pretendia que seus textos mostrassem uma tensão contestadora ao trabalho acadêmico tradicional. Minha própria abordagem à Genealogia pode ser assim resumida: tento o máximo possível ler o texto em seus próprios termos, em seus próprios movimentos e contramovimentos, com sua própria linguagem

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e experimentos pensados. Tento evitar "traduzir" o texto para essa ou aquela "teoria" ou esse ou aquele "-ismo" ou "-logia". Não faço isso por mera pressão exegética de fidelidade tex~al, mas porque o texto de Nietzsche tem seu próprio tipo de poder filosofico que pode ficar perdido ou restringido quando traduzido para ambientes eruditos familiares.4 No Prólogo à Genealogia, Nietzsche considera que alguns leitores podem achar o livro "incompreensível e estranho ~?s ouvido~" ( CjM P, 8). Sugere então que será mais claro para os que ler~m pnmeiro meus trabalhos anteriores sem poupar a si mesmos quaisquer esforços ou problemas (Miihe )". Portanto, a leitura da Genealogia sem muito conhecimento prévio do pensamento de Nietzsche pode ser uma desvantagem. Por isso, meu primeiro capítulo fornecerá uma orientação sobre a filosofia de Nietzsche, o que deve ser de alguma ajuda. Os capítulos posteriores irão se ocupar do Prólogo e das três Dissertações da Genealogia, movendo-se em sequência pelas seções numeradas das Dissertações. Ainda assim, meu tratamento não pode simplesmente habitar cada seção em seu espaço textual, porque é necessária alguma flexibilidade para- se movimentar pelo texto para cruzar referências e excursões ocasionais a alguns outros livros de Nietzsche, que podem ser esclarecedoras (isso é verdadeiro, em particular, com relação a Além do Bem e do Mal, como foi observado). Também, no decorrer da minha análise, haverá "Interlúdios" ocasionais que tratam de tópicos ou questões suplementares que devem melhorar a compreensão do material. Minha esperança é dar aos leitores da Genealogia o entendimento mais rico e cheio de nuanças possível do livro. Ainda assim, devem-se sempre ter em mente as precauções sobre os escritos de Nietzsche delineadas nesta Introdução. Conforme Nietzsche coloca ( GM P, 8), seus livros "de fato não são facilmente acessíveis" e a Genealogia, em particular, requer uma "arte da interpretação", que é articulada como uma "arte da leitura, algo que as pessoas hoje em dia são boas em esquecer- e assim será por algun: tempo antes que meus escritos sejam 'legíveis'-, de tal modo que vo~e quase tem de ser uma vaca para fazer isso e certamente 4. P~ra os obje!ivos do meu comentário, não vou sobrecarregar o texto com extensas discussoes sobre literatura secundária, mas tentarei dar aos leitores orientação suficiente para rec_onhecer e expl_orar uma gama de tratamentos eruditos relevantes. Várias fontes serão retirada~ das seg~mtes coleções: Nietzsche s On the Genealogy of Morais: Criticai Essays, ed. Chn st ~ Davis Acampara (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2006)· Nietzsche s Postmoralism · p., e/11de to p hzlosophy · ' . ·· Essays m1 1,.,. v1etzsche s s Future ed Richard Schac ht (eambndge: Cambridge U · ·ty p . ' · . . mvers1 ress, 200 1); e Nietzsche Genealog;1 Morafif)1: Essays on N 1etzsche ~- On th e Genea Jogy o f Morais, ed. Richard Schacht ' ' ·c . p (Berkeley· University of Cal l!orma ress, 1994). ·

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não um 'homem moderno': isso é ruminar." "Ruminar" é uma tradução de Wiederkiiuen, literalmente "mastigar outra vez", ou "contemplar" um texto de forma lenta e cuidadosa. Como veremos, Nietzsche é notório por castigar o "rebanho" e por celebrar a "besta presa". Ainda assim, é interessante que, com relação ao ato de ler, ele recomende um ritmo semelhante ao da vaca em vez de, digamos, "engolir" um texto em grandes pedaços, de modo rápido demais para saborear cada partícula de pensamento. Para Nietzsche, ler bem é "ler devagar" (D P, 5). Não é simplesmente uma questão de velocidade aqui, mas dos tipos de blocos analíticos que colocam o texto em formas familiares, que são, então, engolidos inteiros. Além disso, sabemos que mastigar bem a comida é bom tanto para nosso paladar quanto para nossos estômagos. Ler a Genealogia ruminando não somente revelará sabores mais complexos e sutis, como também diminuirá as chances de indigestão.

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CAPÍTULO

1

Pensamento e Vida de Nietzsche

O que se segue não é uma visão geral de todos ou da maioria dos elementos principais do pensamento de Nietzsche, mas um esboço dos elementos que penso terem relevância particular ao se dedicar à Genealogia. 5

DA METAFÍSICA AO NATURALISMO Podemos obter um melhor visto de entrada para a filosofia de Nietzsche começando por sua crítica à metafísica. De acordo com Nietzsche, "a fé fundamental dos metafísicos é afé em valores opostos" (BGE 2). A tradição religiosa e filosófica ocidental tem atuado dividindo a realidade em um conjunto de opostos binários, como constância e mudança, eternidade e tempo, razão e paixão, bem e mal, e verdade e aparência - opostos que podem ser organizados ao redor dos conceitos de ser e tornar-se. A motivação por trás desse pensamento divisional é esta: tornar-se nomeia as condições negativas e instáveis da existência que minam nosso interesse em agarrar, controlar e preservar a vida (por causa da força predominante da incerteza, da variabilidade, da destruição e da morte). Ser, em oposição a tornar-se, permite o governo ou a exclusão de condições negativas e a obtenção de várias formas de estabilidade não contaminadas por seus fluidos opostos. 5. Muito deste capítulo foi retirado do Capítulo Ido meu Nietzsche sLife Sentence: Coming to Terms with Eternal Recurrence (New York: Routledge, 2005). 21

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Nietzsche q~er desafiar a prioridade do ser na tradição, tanto que ele é com frequência lido como simplesmente revertendo esse esquema, ao enaltecer O puro tornar-se e todos os seus correlatos. Esse não é 0 caso, embora Nietzsche com frequência celebre termos negativos de maneira retórica a fim de abalar as convicções e abrir espaço para novos significados. De fato, Nietzsche troca a exclusão opositora por um sentido de cruzamento, no qual as condições divergentes em questão não são exclusivas uma da outra, mas reciprocamente relacionadas. 6 Nietzsche sugere que "o que constitui o valor dessas coisas boas e reverenciadas é o exato fato de que elas estão insidiosamente relacionadas, ligadas e envolvidas com esses elementos iníquos, de que aparentam ser opostos" (BGE 2). Em vez de contrários fixos, Nietzsche prefere "diferenças de grau" e "transições" (WS 67). Mesmo a ideia de puro tomar-se não pode ser mantida, de acordo com Nietzsche. O discernimento desse tornar-se pode surgir somente uma vez que um contramundo imaginário de ser seja colocado contra ele (KSA 9, p. 503-504). Como veremos, de maneira breve, Nietzsche rejeita o delineamento rígido de condições opostas, mas não a força opositora entre essas condições. Ele concorda que as condições da luta façam surgir nos oponentes uma tendência a "imaginar" o outro lado como uma "antítese", para os propósitos de aumentar a autoestima e proporcionar a coragem de lutar pela "boa causa" contra o desvio (WP 348). Ainda assim, essa tendência alimenta o perigo de exclusão opositora e sua negação implícita da estrutura "medial" do tornar-se, uma estrutura baseada em uma tensão inclusiva com forças opostas em qualquer posição em particular. ·Um tema recorrente nesse estudo é que Nietzsche trocará a clareza binária por um senso de ambiguidade, porque um entendimento adequado de qualquer tópico filosófico terá de refletir em uma mistura de tensões não solucionável: "Acima de tudo, não se pode querer despir a existência de sua rica ambiguidade" (GS 373). Ao restaurar a legitimidade às condições do tornar-se, Nietzsche propõe o que chamo de naturalismo existencial. A dinâmica finita e instável da existência terrena - e sua significabilidade - passa a ser a medida do pensamento para contrapor-se a várias tentativas da filosofia e da religião de "reformar" a experiência vivida por meio de uma "transcendência" racional, espiritual ou moral que tem o objetivo de retificar uma condição originalmente imperfeita ( GS 109; TI 3, 16). Ao se voltar para "o texto básico do homo natura" (BGE 230), Nietzsche não está 6. Pego emprestado o termo "cruzamento" do livro de John Sallis Crossings: Nietzsche and the Space ofTragedy (Chicago: University ofChicago Press, 1991).

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restringindo sua filosofia ao que poderíamos chamar de naturalismo científico, que, de muitas formas, coloca-se do lado "ser" da balança . . Para Nietzsche, a natureza é mais instável e desordenada do que a ciência permitiria; ela inclui forças, instintos, paixões e poderes não reduzíveis a categorias objetivas científicas. Enfatizando um sentido mais obscuro de "natureza, rubra em dente e garra", Nietzsche alega que o texto básico terrível (schreckliche) da natureza "deve novamente serreconhecido" (BGE 230). O naturalismo de Nietzsche está em consonância com o naturalismo científico ao rejeitar as crenças "sobrenaturais", mas a fonte dessas crenças, para Nietzsche, surge não de uma falta ou recusa do pensamento científico, mas sim de uma aversão às forças incontroláveis e desintegradoras da natureza que a ciência também suprime e quer superar. Na verdade, Nietzsche identifica a natureza com o caos, como indicado em sua alteração da famosa equação de Spinoza: "chaos sive natura" (KSA 9, p. 519). 7 Ao mesmo tempo, Nietzsche também rejeita o naturalismo romântico, que desdenha a ciência e a razão, e pede um retorno à condição original de inocência e harmonia com a natureza (GS 370). Naturalismo, para Nietzsche, corresponde a um tipo de metodologia filosófica, na qual as forças do tornar-se serão convocadas para redescrever e explicar todos os aspectos da vida, incluindo formações culturais, mesmo a emergência de construções aparentemente antinaturais do "ser". O foco para essa convocação pode ser localizado no conceito de Nietzsche de vontade de poder, a ser discutido brevemente. Primeiro, no entanto, devemos localizar o foco histórico da virada naturalista de Nietzsche, ou seja, a morte de Deus.

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MORTE DE DEUS

Nietzsche propõe a morte de Deus por meio da figura de um louco (GS 125), cujo público não são os crentes religiosos, mas são os não crentes, punidos por não enfrentar as consequências da morte de Deus. Visto que Deus é o símbolo máximo de transcendência e da fundamentação, sua morte deve ser louvada, mas seu impacto atinge muito além da religião. No mundo moderno, Deus não é mais o centro que comanda a vida intelectual e cultural. No entanto, do ponto de vista histórico, a noção de Deus vinha sendo a garantia de todos os tipos de construtos 7. Ver Babette Babich, "A note on Chaos Sive Natura: On Theogony, Genesis, and Playing Stars," New Nietzsche Studies 5, 3/4 e 6, 1/2 (Inverno 2003/Primavera 2004) 48 - 70. Para µm tratamento criterioso do naturalismo de Nietzsche, ver Christoph Cox, Nietzsche: Naturalism and Jnterpretation (Berkeley: University of California Press, 1999).

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culturais nos domínios morais, polít~co~, filosóficos e inclusive científicos; desse modo, a morte de Deus e diferente do ateísmo, visto que divindade tinha estado "viva" _c~mo ~orça ~rodutiva pode~o~a. De Platã~ ao Iluminismo, uma mente d1vma tmha sido o ponto max1mo de refe. rência de origem e verda~e: Com o :elipse de Deus, toda e qualquer inferência das bases teolog1cas tambem deve se desfazer (TI 9, 5). A morte de Deus, portanto, anuncia a morte da verda~e substantiva ou, pelo menos, que o "desejo de verdade se torna ~o?sc1ente de si mesmo como um problema" (GM III, 27). Embora a d1vmdade não seja mais um pré-requisito intelectual, ainda confiamos nas "sombras" de Deus (GS 108), em verdades supostamente seculares que, porém, perderam sua estirpe e sua garantia intelectual. Essa questão é especialmente significativa com relação aos construtos morais e políticos modernos. As consequências da morte de Deus são enormes, por causa do espectro do niilismo, da perda de significado e inteligibilidade. A sofisticação secular do mundo moderno involuntariamente "desacorrentou esta terra de seu sol", de forma que estamos "vagando como que por um nada infinito" (GS 125). O curso do pensamento ocidental levou-o a se afastar de suas origens históricas, mas o resultado insuspeitado foi que "os mais altos valores se autodesvalorizaram" ( WP 2). Somos, então, colocados frente a uma escolha clara: ou nos desintegramos no niilismo ou repensamos o mundo em termos naturalistas, livres da reverência aos construtos do ser. "Ou abolir suas reverências ou - a si mesmos! O último seria niilismo; mas o primeiro também não seria - niilismo? Essa é nossa interrogação" (GS 346). Para Nietzsche, a ameaça do niilismo - a negação de qualquer verdade, significado ou valor no mundo - é de fato parasítica na tradição ocidental, que julga que as condições do tomar-se na vida são deficientes e "anulou" essas condições em favor de correções racionais, espirituais ou morais. Se, na esteira da morte de Deus, a perda dessas correções é experimentada como niilista, é porque ainda se presume que os modelos tradicionais sejam as únicas medidas de verdade, significado e valor, de modo que o mundo parece vazio sem elas (WP 12A). Para Nietzsche, os filósofos podem abraçar a morte de Deus com gratidão e arrebatamento, não desespero, por causa da abertura de novos h~rizontes para o pensamento (GS 343). Vários motivos nos textos de Nietzsche podem ser lidos como tentativas contraniilistas de repensar a verdade, o significado e o valor em termos naturalistas de forma com~atível com as condições do tornar-se. Um motivo cent;al nessa questão e a vontade de poder.

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VONTADE DE PODER

"O mundo visto de dentro (... ) seria 'vontade de poder' e nada mais" (BGE 36). Um mundo de tornar-se, para Nietzsche, não pode simplesmente ser entendido como um mundo de mudança. Os movimentos estão sempre relacionados a outros movimentos e a estrutura relacional não expressa simplesmente as diferenças, mas também as resistências e os conflitos tensionais (WP 568). "Vontade de poder" nomeia em termos dinâmicos a ideia de que qualquer afirmação é também uma negação, que qualquer condição ou asserção de significado deve superar algum "Outro", algum obstáculo ou força contrária. 8 Com relação a isso, Nietzsche proclama algo bastante importante que irá figurar em nossa investigação: "o desejo do poder pode se manifestar somente contra resistências; assim, ele busca aquilo que resista a ele" (WP 656; ênfase minha). Uma formação semelhante é declarada em Ecce Homo em referência a uma natureza belicosa: "Precisa de objetos de resistência; assim, busca aquilo que resista" (EH I, 7; ênfase no texto). Devemos observar a seguinte implicação: visto que o poder pode somente envolver resistência, então o poder de uma pessoa de superar está essencialmente relacionado a um contrapoder; se a resistência fosse eliminada, se o contrapoder de uma pessoa fosse destruído ou mesmo neutralizado por pura dominação, o poder dessa pessoa evaporaria, não seria mais poder. Poder é superar algo, não aniquilá-lo: "não há aniquilação na esfera do espírito" ( WP 588). Poder é mais uma "potência" do que uma realidade completa, porque retém sua relação tensional com seu Outro. Assim sendo, a frase de Nietzsche Wille zur Macht poderia ser traduzida como "vontade em direção ao poder", o que indicaria algo que não uma "possessão" completa. Vontade de poder, portanto, não pode ser entendida em termos de estados individuais apenas, mesmo estados bem-sucedidos, porque nomeia um campo de força tensional, dentro do qual os estados individuais se moldam ao buscar superar outros locais de poder. O poder não pode ser construído como "instrumental" para qualquer estado resultante, seja ele conhecimento, prazer, propósito~ ou mesmo sobrevivência, visto que essas condições são epifenômenos do poder, de um desejo de superar algo (GMII, 12, 18). Por essa razão, Nietzsche retrata a vida 8. Ver John Richardson, "Nietzsche's Power Ontology," em Nietzsche, eds. John Ric~ardson e Brian Lei ter (Oxford: Oxford Univ~rsity Press, 2001 )'.. p. 150-185, q_ue_mostra mmto bem como a vontade de poder é um conceito abrangente, e nao de escopo hm1tado, como alguns acadêmicos afirmam.

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C:

como "aquela que sempre supera ª. si m~sma" II? ~2). I~so explica as objeções de Nietzsche para medir a vida ~or ~ehc~dade , porque a estrutura da vontade de poder mostra que a znsallsfaçao e o desprazer são intrínsecos aos movimentos da superação (WP 696, 704), de modo que as condições de pura satisfação e completude esgotariam as energias da vida. . . . · De acordo com Nietzsche, qualquer doutrma que reJeltasse a vontade de poder no sentido por ele atribuído minaria as condições de sua própria emergência histórica como uma contenção com forças conflitantes. Todos os desenvolvimentos científicos, religiosos morais e intelectuais começaram como elementos de insatisfação ~ impulsos para superar algo, seja ignorância, materialismo, brutalidade, confusão ou modelos culturais concorrentes. Mesmo o pacifismo - entendido como um impulso de superar a violência humana e como uma forma de vida elevada tomada como um avanço em relação à nossa natureza embrutecida - pode assim ser entendido como uma instância da vontade de poder. AGONISTAS

Uma pré-figuração da vontade de poder e do naturalismo de Nietzsche pode ser encontrada em um texto preliminar, A Disputa de Homero (KSA I, p. 783-792). 9 Argumentando contra a ideia de que "cultura" seja algo antitético às forças brutais da "natureza", Nietzsche destaca a expansão na Grécia antiga do agõn, ou disputa por excelência, que operava em todas as ocupações culturais (no atletismo, nas artes, na oratória, na política e na filosofia). O agõn pode ser visto como uma expressão ritualizada de uma visão de mundo expressa em muito da mitologia, da poesia e da filosofia grega: o mundo como uma arena para a luta de forças opostas (mas relacionadas). As relações agonistas são retratadas na Teogonia de Hesíodo, na Ilíada de Homero, na tragédia grega e em filósofos como Anaximandro e Heráclito. 10 Em A Disputa de Homero, Nietzsche argumenta que o agõn emergiu como uma cultivação de desejos naturais mas brutais ao não lutar pela aniquilação do Outro, mas sim por arranjar disputas que testassem a habilidade e o desempenho em uma competição. Consequentemente, a disputa agonista 9. Há uma tradução [para o inglês] contida na edição de Genealogy da Cambridge University Press, p. 174-181. 1O. Ver minha discussão em My th and Philosophy : A Contest of Tnt~hs (Chicago: Open Court, 1990), Capítulos 2-6.

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produziu excelência, não obliteração, visto que o talento era desvelado em uma batalha com os concorrentes. Dessa forma, os gregos não sucumbiam a um falso ideal de pura harmonia e, assim, garantiam a proliferação da excelência ao evitar a estagnação e o controle uniforme. O agõn expressava a resistência geral dos gregos à "dominação unificada" (Alleinherrschaft) e o perigo do poder não desafiado ou não desafiável - daí a prática de condenar ao ostracismo alguém tão poderoso, alguém que arruinaria a estrutura recíproca da competição agonista. O agõn grego é uma fonte histórica que Nietzsche, mais tarde, generalizou dentro da estrutura recíproca da vontade de poder. E é importante reconhecer que tal estrutura mina a ideia de que o poder pode ou deve ser exercido sem controle, quer no sentido de pura dominação ou de indeterminação caótica. Vontade de poder implica certa "mensuração" de limites opositores, mesmo que essa medida não implique uma ordem dominante ou um princípio estável de equilíbrio. Apesar disso, há uma capacidade de mensurar nas relações de poder agonistas. Nietzsche nos diz (KSA 8, p. 79) que as instituições gregas foram saudáveis ao não separar a cultura da natureza sob a forma de um esquema de bem e mal. Assim, eles superavam as puras energias naturais da destruição ao ordená-las seletivamente em suas práticas, seus cultos e seus dias festivos. A "liberdade de pensamento" grega (Freisinnigkeit) foi uma "liberação mensurada" das forças naturais, não de sua negação. Consequentemente, o conceito de Nietzsche da vontade de poder agonista deve ser construído não como uma ameaça não mensurável à cultura, mas uma redescrição naturalista das mensurações culturais. A estrutura recíproca das relações agonistas significa que as forças concorrentes da vida produtivamente delimitam umas às outras e, assim, geram formações dinâmicas, mais do que forma pura ou indeterminação pura. 11 PSICOLOGIA E PERSPECTIVISMO EM FILOSOFIA

Uma característica central do naturalismo de Nietzsche é que seu diagnóstico da tradição filosófica vai além de uma crítica conceituai às crenças e teorias: "o caminho para os problemas fundamentais" será 11. Para discussões importantes dessa ideia, ver dois artigos no Jo11rnal of Nietzsche Studies 24 (Outono 2002): Paul van Tongeren, "Nietzsche's Greek Measure", 5-24, e H. W Siemens "Agonal Comrnunities ofTaste: Law and Community in Nietzsche's Philosophy ofTrans~aluation", 83-112. Ver também Christa Davis Acampora, "Of Dangerous Games and Dastardly Decds: A Typology of Nietzsche's Contests", International Studies in Phi/osophy 34/3 (Outono 2002), 135-151.

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encontrado na psicologia (BGE 23), que não deve ser co_nfundida com uma mera "ciência da mente". Nietzsche afirma que as origens do construto problemático do "ser" n?o s~o. baseadas meramente em crenças errôneas mas na fraqueza psicologica em face de um mundo finito uma ave~são às condições negativas da vida, que ele descreve com~ "decadência um sintoma do declínio da vida" (TI 3, 6). Assim, é necessário algum ~ipo de força psicológica ~a~a afirmar~ vida e repensá-la de formas mais apropriadas às suas condiçoes naturais do tornar-se. O que se segue é que a psicologia nietzschiana não sugere uma natureza humana universal, mas sim um delineamento dos tipos ao longo das linhas de fraqueza e força - daí as famosas objeções de Nietzsche à igualdade humana 12 e sua promoção de um arranjo hierárquico de tipos: "Minha filosofia objetiva um ordenamento de categorias" (WP 287). Em termos gerais, Nietzsche afirma que nenhuma forma de pensa-. mento é "livre de valores". Elementos de desejo e interesse estão sempre operando no pensamento humano - o que pensamos tem de importar para nós. Mesmo os princípios de "desinteresse" ou "objetividade" servem a determinados valores. Quando solicitados a não extravasar os interesses pessoais, o princípio em si é animado por valores e interesses: "A ação 'desinteressada' é uma ação extraordinariamente interessante e interessada" (BGE 220). Com a insistência de Nietzsche de que a filosofia não pode ser separada de interesses pessoais e formação de sentido, a sua inclinação para a psicologia significa que o conhecimento não pode ser baseado em um padrão absoluto, fixo e objetivo, mas sim em um perspectivismo pluralizado: "Há somente uma perspectiva vendo, somente uma perspectiva 'sabendo"' (GNI III, 12). Há muitas possíveis perspectivas no mundo, nenhuma das quais pode ser tomada como exclusivamente correta. Uma pluralidade de perspectivas exibe interpretações não somente diferentes, mas também divergentes, de forma que mesmo a c~existência de posiçõ~s conflitantes não pode mais ser excluída do jogo. Nietzsche expressa assim seu ponto de vista: "Uma aversão profunda a se estabelecer de uma vez por todas em qualquer visão total do mundo. Enca~ta~ento (Zau?er) do _ponto de vista oposto" (WP 470). Essa que~tao e relevante a acusaçao de que os escritos de Nietzsche exibem posições cont~aditórias em textos diferentes (mesmo dentro do mesmo texto) · Assumi ' que N ietzsche · . ndo, porem, soubesse o que estava fazendo, podemos dizer que esses i·nc1·dent es retratam sua advertencia ,. . contra o 12. Ver minha discussão em A Nietz I D . modern Politics (Chicago· C se iean ef ense 0f Democracy: An Experi111e11t in Post. 0 pen ourt, 1995), Capítulo 2.

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pensamento opositor ao deliberadamente perturbar uma posição fixa inserindo uma contraposição. Além disso, seus ataques hiperbólicos podem ser vistos como uma estratégia retórica para alterar o pensamento e ~evelar p~ssib~lidades que, de outra forma, estariam ocultas por premissas cornqueiras. Vale a pena mencionar outra implicação metodológica do naturalismo de Nietzsche. Eu a chamo presunção de imanência. Podemos somente pensar em termos de como já existimos no meio de forças que não são de nossa escolha e que não se pode imaginar como elas surgiram de alguma "outra" esfera além do mundo experimentado ou mesmo em que "outra.,, esfera elas impliquem. Essas forças são "nativas" às nossas vidas, "nascemos" nelas; deve-se observar que esse senso de natividade é uma conotação não científica da "natureza", tanto na natura latina como na phusis grega. A imanência nativista ordena que aceitemos como dadas todas as forças que podemos honestamente reconhecer que funcionem em nossas vidas, do instinto à razão, da guerra à paz, da natureza à cultura, e assim por diante (ver BGE 36). Isso inclui a disputa permanente entre essas forças, que mina os projetos tradicionais de oposição "eliminadora" (que pode surgir em qualquer esfera, da religião à ciência). Para Nietzsche, todas as forças nativas evidentes desempenham um papel na vida cultural e a não aceitação do pacote completo trai as fraquezas e as sementes da negação da vida.

o SENTIDO DA VIDA Em certo sentido, a filosofia de Nietzsche, em todos os seus elementos, está focada na questão do sentido da vida - não no sentido de descoberta de uma resposta decisiva a "Por que estamos aqui?", mas sim ao problema de descobrir sentido em um mundo que essencialmente bloqueia nosso interesse natural na felicidade, na preservação, no conhecimento e no propósito. Para ser preciso, a pergunta não é "Qual é o sentido da vida?", mas "Pode haver sentido na vida?". Sendo assim, a pergunta que preocupa as investigações de Nietzsche é: a vida, como a temos, é significativa, válida e afirmável em seus próprios termos? Nenhuma cultura, nenhuma forma de pensamento jamais negou ( como poderia?) que nosso "primeiro mundo", existência imediata, é constituído de restrições negativas - mudança, sofrimento, perda e morte que limitam todas as possibilidades positivas na vida. No fim, devemos confessar que a vida, como a temos, no princípio é trágica, mensurada contra nossas mais altas aspirações.

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o diagnóstico de Nietzsche da tradição ocidental é que, de urn forma ou de outra, a respo?a ,ª ~ssa questão do se~tid? ~a vida natura~ tem sido: não. "Com relaçao a vida, os homens mais sabios de todos tempos julgaram da mesma forma: não é boa" (TI 2, 1). Quer em terrnos científicos, racionalistas, religiosos o~ morais, as condições iniciais existência foram julgadas como deficientes, confusas, decadentes, estra. nhas ou básicas e, assim, necessitavam de correção ou transcendência juntas. Nietzsche considera todos esses julgamentos implicitamente nii~ listas e vê como sua tarefa o objetivo de uma reavaliação afirmativa de uma existência necessariamente trágica: "Quero aprender mais e mais para ver toda a beleza que é necessária nas coisas; então devo ser um daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: deixe que sejam meu amor daqui por diante( ...) E que em suma e no todo algum dia eu desejo somente ser alguém que diz Sim" (GS 276). É importante estabelecer que a afirmação da vida - em resposta à questão do sentido da vida e ao perigo do niilismo após a morte de Deus - é a questão central no pensamento de Nietzsche; ultrapassa e anima todas as suas supostas "doutrinas", como a vontade de poder, o perspectivismo e, especialmente, a eterna recorrência. 13 Assim, os textos de Nietzsche não podem ser reduzidos a doutrinas ou posições quepedem para ser avaliadas como "proposições filosóficas", mensuradas por critérios conceituais, empíricos ou lógicos. 14 O trabalho filosófico de Nietzsche sempre se apoia na tarefa existencial de reconciliar-se com o sentido e o valor da vida, de uma maneira ou de outra. Na esteira da morte de Deus, o problema do significado se volta para a escolha entre um niilismo indistinto ou uma reavaliação da vida. A própria filosofia de Nietzsche tem o objetivo de unir duas noções q~e anteriormente haviam sido separadas: tornar-se e o valor da existência, que ele alega ter unido de "forma decisiva" (WP 1058). A preocupação que o orienta, contrária à tradição, é encontrar significado e·valor em tornar-se.

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13. Ver Bernard Reginster, "Nihilism and the Affirmation of Life" fnternational Studies in Philosophy 34/3 (2002), 55-68. Sobre eterna recorrência, ver meu Nietzsche sLife Sentence. 14. Ver Ivan Sol!, "Attitudes Toward Life: Nietzsche's Existentialist Project", /ntemational Studies in Philosophy 34/3 (Outono 2002), p. 69-81. Ler Nietzsche é mais como receber uma proposta indecorosa de um sedutor. Ele até diz que filosofia é mais sedução do que argumento (D 330).

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TRAGÉDIA E MORAL

O i!1teresse de Nietzsche na tragédia é exposto em seu primeiro trabalho publicado, O Nascimento da Tragédia. Esse livro plantou as sementes para cada aspecto que Nietzsche abordou subsequentemente, sobretudo a crítica da moral. Nietzsche chama O Nascimento da Tragédia de "minha primeira reavaliação de todos os valores" e o "solo" para seus ensinamentos posteriores (TI l O, 5). O texto estabelece o caráter histórico do engajamento de Nietzsche na tradição ocidental, na forma como clama por um resgate de algo da cultura grega que foi perdido ou suprimido. 15 Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche foca nos deuses gregos Apolo e Dionísio, a fim de entender o significado do drama trágico. Tragédia, para Nietzsche, era muito mais do que uma forma literária; refletia e consumava uma visão de mundo dos gregos antigos que era muito mais fiel às condições finitas da vida do que os desenvolvimentos subsequentes em filosofia, especialmente em Sócrates e Platão. A religião e os mitos gregos primitivos eram bem diferentes das religiões que promovem a transcendência da existência terrena em favor das condições eternas e da salvação do sofrimento. Os trabalhos mitopoéticos e vários cultos gregos expressavam uma visão religiosa que sacralizava todas as condições da vida concreta, celebrando todas as suas forças, tanto benignas como terríveis, tanto construtivas como destrutivas. 16 A religião grega primitiva era (1) pluralista, ao não ser organizada em volta de uma única forma ou deidade, ou mesmo reduzida a isso; (2) agonista, porque histórias sagradas exibem uma tensão entre forças opostas; e (3) fatalista, pois a mortalidade e a perda são naturais à existência humana e não devem ser reparadas, reformadas ou transcendidas. Os seres humanos devem sempre confrontar um destino negativo que limita seu poder e, em última instância, traz a morte. Nietzsche entende a tragédia como a culminação dessa visão de mundo dos gregos antigos, e as figuras de Apolo e Dionísio podem ser entendidas como paradigmáticas das dualidades e tensões da experiência religiosa grega, mostradas no mesmo palco no drama trágico. Com o retrato narrativo de um herói nobre que experimenta uma derrocada inevitável, a tragédia expressa o desdobramento de uma vida repleta de significado, mas finita, limitada por um destino negativo. 17 15. Além do livro de Sallis, Crossings, uma fonte excelente é Nietzsche on Tragedy, M. S. Silk and J. P. Stern (Cambridge: Cambridge University Press, 1981 ). 16. Ver minha extensiva discussão em Myt/z and Phi/osophy, Capítulo 2. Ver também Walter Burkert, Greek Religion, tradução [para o inglês] John Ratfan (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985). 17. Ver meu Myth and Phi/osophy, Capítulo 5.

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Dionísio era uma deidade de forças ter:enas, cujo ~it_o expressava 0 ciclo natural de nascimento, morte e renascimento: em vanas versões 0 deus sofre uma morte e um desmembramento cruéis, mas é restaurado de volta à vida. Os devotos do deus experimentavam tanto festins eróticos e selvagens como ritos obscuros de sacrifício animal visando experimentar uma comunhão ca_tár~i~a com as. forças da vida e da morte. Dessa forma, 0 culto a Dioms10 promovia a autotranscendência extática, na qual os limites entre o eu e a n_atureza ~ão ?issolvidos. Perder-se nas ondas de destruição amorfas do ciclo da vida e ganhar um tipo de paz e união que é normalmente "outro" ao ser. Apolo era um deus olímpico que represe~tª:ª a luz, a ~eleza, 0 comedimento, a profecia, a poesia e as artes plasticas. Para Nietzsche, Apolo expressa o "princípio da individuação" (BT 1), feito ~ara neutralizar o fluxo dissolvente de Dionísio por estabelecer os limites da forma, a formatação comedida de entidades e seres individuais. No entanto, por causa do poder primal de Dionísio, que anima a tragédia, o poder formador de Apolo é apenas temporário e deve ceder para a força negativa do fluxo dionisíaco. Em termos abstratos, a confluência de Apolo e Dionísio representa um fluxo finito de formação e deformação que nunca descansa ou almeja um estado terminado ou uma condição preservada. Embora os dionisíacos tenham alguma primazia na interpretação da tragédia de Nietzsche (no sentido de que a forma deve sempre ceder para o amorfo), ainda assim os apolíneos são de igual importância; a tragédia não é um fenômeno puramente dionisíaco. Como forma de arte sofisticada, as forças apolíneas da poesia e das imagens plásticas são essenciais ao sentido e ao significado da tragédia. O drama trágico, com suas construções artísticas apolíneas, transforma a experiência dionisíaca amorfa em um mundo cultural articulado. Em, BT 21, Nietzsche chama a tragédia de uma mistura mediadora do dionisíaco e do apolíneo: a tragédia apresenta um limite negativo, mas "sem negação da existência individual". A experiência dionisíaca pura impossibilitaria a consciência e a compreensão da produção cultural, de tal modo que a capacidade formativa e educativa dos símbolos míticos "permaneceria totalmente ineficaz e despercebida". Com a força de imagens sensuais, ideias inteligíveis e emoções solidárias, os apolíneos evitam um colapso na "autoaniquilação orgiástica" do puro abandono dionisíaco. O dionisíaco, em si, carrega o perigo do niilismo e do pessimismo, expressado pela "Sabedoria de Sileno": É melhor "não ter nascido, não ser, ser npda. Mas a segunda melhor opção para você é: morrer logo" (BT 3). E a dor dos estados individuados (intrinsecamente sujeitos

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à dissolução) que desperta interesse na dissolução como uma libertação da dor. Assim, a força da individuação apolínea é uma libertação não da dor, mas do perigo da negação da vida (BT 7). Nietzsche vê os elementos artísticos apolíneos na tragédia como essenciais ao espírito de afirmação da vida dos gregos. A arte apolínea moldou um mundo de significado no qual os gregos habitariam e por meio do qual eles poderiam suportar a terrível verdade da deformação dionisíaca, evitando assim o perigo da autoabnegação. O mito trágico precedeu o advento da filosofia no mundo grego. Em O Nascimento da Tragédia, a filosofia é corporificada por Sócrates, a terceira voz importante nesse texto. Sócrates buscou a consistência lógica, a definição precisa, e pressupostos universais conceituais e seguros na mente consciente. Com esses poderes de pensamento racional, _ os humanos poderiam superar a confusão, o mistério e os limites, de modo a virem a "conhecer" a· verdadeira natureza das coisas. Agora, o significado não é mais colocado em imagens míticas associadas a uma força negativa, mas sim em ideias universais e fixas que fundamentam o conhecimento e substituem o mundo da vida. Essa transformação está presa à designação de Platão de formas eternas como base do "ser" que transcende as condições negativas do "tornar-se". Os objetivos aparentemente transcendentes de Platão o levaram a ciiticar a arte trágica por causa das mesmas características que Nietzsche considerava como afirmação de vida. Nos Livros II, III e X da República, Platão ataca a poesia trágica porque ela retrata falsamente o divino como instável, obscuro, imoral e injusto; e os prazeres sensuais dos trabalhos artísticos despertam as paixões e nos seduzem para as atrações da vida carnal, que bloqueiam as mais altas possibilidades de transcendência intelectual e espiritual. Embora a República seja um texto complexo, suscetível a uma ampla possibilidade de leituras, é plausível dizer que todo o diálogo é uma confrontação com a tradição trágica grega, noção que será aqui desenvolvida no Capíhilo 6. O resgate de Nietzsche do trágico é um desafio" fundamental às concepções tradicionais da moral que começaram com Platão. O tema principal da tragédia é que aquilo que é bom ou valioso não é preservado no coração da realidade, mas limitado e marcado por forças opostas que não podem ser erradicadas ou explicadas (o exemplo mais significativo é o destino e a derrocada de Édipo). Desde Platão, a tradição ocidental tem, de modo geral, objetivado evitar ou superar a tragédia moral de várias formas: por um controle garantido da contraforça do bem, pela perspectiva de uma libertação da vida finita , pelas esperanças utópicas

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de transformação histórica ou, no _?1Íl!imo, por uma "teoria" ~oral ga, rantida que pode fornecer soluçao mtel~ctual apesar dos limites do bem. Inspirado pelos gregos, ~ iet~sche vai em busca de u~~ orie?t~ção renovada que pode encontrar s1gmficad~ e valor e~ c~ndiçoes ~~agicas. É por isso que a crítica da m?ral de Nietzsche na~ e_ m~a cntica dos valores em si mas de alguns tipos de valores que dimmmram ou subs, tituíram os v~lores do mundo finito do tornar-.s~. . . A razão pela qual dei ênfase ao trabalho imctal de Nietzsche sobre a tragédia é porque ele mesmo o chamou d_e precursor ,d~ sua reavaliação dos valores ocidentais e porque acredito qu~ o tragico e a possibilidade de valores trágicos pairam no pano de fundo da Genealogia. Recordando que Dionísio era o deus tanto da vida como da morte, observo que, quando Nietzsche, em Ecce Homo, chamou a Genealogia de "misteriosa" (unheimlich) e ameaçadora, ele acrescentou esta observação: "Dionísio, como se sabe, é também o deus das trevas" (EH III, GM). O "também" aponta para o movimento duplo da vida trágica, no qual o valor da vida não pode ser separado dos limites dela. Teremos muito mais a dizer sobre o trágico em discussões posteriores.

UM ESBOÇO DA VIDA DE NIETZSCHE 18 Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 em Rõcken, na Alemanha. Sua irmã mais nova, Elisabeth, nasceu em 1846. Um irmão mais novo, Ludwig Joseph, morreu em 1850, aos 2 anos de idade. Seu pai era um pastor luterano de aldeia e Nietzsche era muito ligado a ele. Ele morreu em 1849, uma perda pela qual Nietzsche foi profundamente afetado. Em 1850, a família mudou-se para Naumburg, onde Nietzsche viveu com sua mãe, sua irmã e duas tias. Friedrich era um garoto estudioso e bem-comportado, e mostrava algum carisma e um ar de autoridade entre os outros estudantes. A família esperava que ele se tornasse pastor. Em 1858, Nietzsche foi aceito na prestigiada escola interna Pforta. Lá, ele exibiu uma forte motivação para o conhecimento, para a escrita e para seu desenvolvimento individual. Ele era uma espécie de nerd que mostrava pouco gosto pelos interesses comuns de seus colegas. Em Pforta, 18._Para _biografias confiáveis e aguçadas, ver Rüdiger Safranski, Nietzsche: A Philosoplucal _B,ography,_ tradução [para o inglês] Shelley Frisch (New York: Norton, 2002), R. J. l~oll_11~gdal~, N1etzsc/1e: The Man and His Pl,i/osophy, 2. ed. (Cambridge: Cambridge Un~vers!ty Piess, 1999) e Ronald Hayman, Nietzsche: A Criticai Life (Oxford: Oxford Umvers,ty Press, 1980). ·

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PENSAMENTO E VIDA DE NIETZSCHE

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nutriu um grande interesse pelos estudos clássicos. Em 1864, Nietzsche se matriculou na Universidade de Bonn para estudar filologia teológica e clássica. Era bastante reservado, ocupando suas energias estudando, escrevendo e tocando piano. Ele começou a se afastar da crença cristã e ficou profundamente afetado quando leu a filosofia de Schopenhauer. Insatisfeito com a atmosfera em Bonn, em 1866 se transferiu para a Universidade de Leipzig, onde seu professor favorito, Friedrich Ritschl, havia assumido uma cadeira. Em outubro de 1867, Nietzsche começou seu serviço militar de um ano na artilharia de Naumburg. Ele foi dispensado após um acidente grave enquanto cavalgava, do qual sofreu meses de recuperação dolorosa e convalescença. Em novembro de 1868, conheceu o compositor Richard Wagner e ficou eufórico ao se tornar conhecido de tão grande artista. Em maio de 1869, foi convidado para a casa de Wagner em Tribschen, onde também passou o Natal e o Ano-Novo. Assim, estava estabelecida sua importante amizade com Wagner e sua esposa Cosima. Em fevereiro de 1869, Nietzsche foi indicado para uma vaga de professor na Universidade de Basileia. Isso era incomum, porque ele ainda não havia completado seu trabalho de graduação. Ritschl foi fundamental para obter a indicação, por sua crença no talento e no potencial superiores de Nietzsche. Em Basileia, Nietzsche deu aulas de poesia, drama e filosofia gregas, e desenvolveu um forte interesse na tragédia da Grécia antiga, em parte inspirado pela filosofia pessimista de Schopenhauer. Em agosto de 1870, após a eclosão da Guerra Franco-Prussiana, Nietzsche começou o serviço militar como paramédico, atendendo aos feridos e mortos no campo de batalha. Ele adoeceu com disenteria e difteria, e foi liberado para retornar a Basileia. Em janeiro de 1872, foi publicado O Nascimento da Tragédia. Felizmente para Nietzsche, Wagner ficou entusiasmado com o livro, sobretudo por causa de sua celebração da música wagneriana como o renascimento do espírito trágico. Ainda assim, o caráter incomum e ousado do texto não foi bem recebido pela comunidade filológica. Naquela época, Nietzsche estava sofrendo de várias doenças e infecção nos olhos, e temia sofrer uma morte precoce como seu pai. No final de 1876, ele se licenciou de Basileia. Pouco depois, conheceu e desenvolveu uma amizade com o filósofo moral Paul Rée. Nietzsche continuou doente e sofria dores de cabeça debilitantes causadas por seus problemas nos olhos. Em 1878, Nietzsche publica Humano, Demasiado Humano, um livro iconoclasta que rompeu com seu idealismo anterior e clamou por renovação cultural, uma mudança que desagradou Wagner e outros amigos. Apesar da doença e do sofrimento sem alívio, seu trabalho sobre

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

· filosofia e moral O inspirou e provocou sentimentos elevados. Ades. peito disso, sua doença o forçou a abandonar_ seu tr~balho em Basileia, que lhe forneceu uma pensão. Em 1~81_, fm pubhc_ado Aurora e, ern agosto daquele ano, a ideia de recorrencia eterna veto a ele, um racio. cínio de afirmação de vida que animaria muito de seu pensamento e de seus escritos subsequentes. Em 1882 foi publicada A Gaia Ciência. A visão de Nietzsche tornou-se tão ruim que ele teve de adquirir uma máquina de escrever, urn dispositivo novo na época. Naquele ano, Paul Rée conheceu Lou Salomé em Roma. Lou era uma jovem russa encantadora que estudava filosofia e história, e Rée persuadiu Nietzsche a se juntar a eles em Roma. Nietzsche ficou cativado por Salomé e estava tão impressionado por seu intelecto e sua paixão que passou a vê-la como uma alma gêmea, até mesmo uma possível herdeira intelectual. Ele propôs casamento a Salomé duas vezes, mas foi recusado. Rée, Nietzsche e Salomé viaja.ram juntos, mas uma competição entre os dois homens pela afeição de Salomé enfraqueceu sua amizade. A irmã de Nietzsche, Elisabeth, era bastante hostil a Salomé e, por sua vez, Nietzsche era hostil à sua irmã. 19 Em 1883, Nietzsche começou a trabalhar em Assim Falava Zaratustra, que reuniria suas energias filosóficas e artísticas da época em uma narrativa inspirada e inspiradora sobre reconciliar-se com a vida terrena. Em fevereiro daquele ano, Wagner faleceu, o que afetou Nietzsche profl;lndamente, apesar de seu rompimento com o compositor e sua mudança de ideia sobre renovação cultural por meio da música de Wagner. Nietzsche experimentava uma distância crescente do mundo, de sua mãe e irmã em nível pessoal, e de sua própria época em nível intelectual. Sua visão de uma humanidade liberada da tradição acentuava seu sentimento de alienação. Em 1884, ele rompeu com Elisabeth por causa da simpatia dela com o antissemitismo. Em 1885, ela se casou com um proeminente antissemita, Bernhard Forster, e, em 1886, o casal se mudou para o Paraguai a fim de estabelecer uma colônia alemã, que acabou por fracassar. Em 1886, foi publicado Além do Bem e do Mal. A doença e os sofrimentos de Nietzsche continuavam a ser um peso, e seus amigos observavam nele uma hipérbole visionária perturbadora. Em J 887, A Genealogia da Moral foi publicada, continuando sua crítica vigorosa à tradição moral e filosófica cio Ocidente. Nietzsche tinha um sentimento crescente ele alienação e solidão. Ele estava trabalhando em sua 1~- P_arn um _estuc.lo sobre Lou Salomé, ver Rudolph Binion, Frau lo11: Niet:sc/1e s /Vi'1ywa rd D1sc1ple (Pnnceton: Princeton University Press, 1974 ).

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PENSAMENTO EVIDA DE NIETZSCHE

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obra-prima, A ·Vontade de Poder, más, em 1888, decidiu dividir o material para esse texto em dois livros separados, que foram publicados como O Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo. Em 1889, começou a trabalhar em sua autobiografia filosófica, Ecce Homo. Sua saúde e seu humor começaram a melhorar, mas seu comportamento e seus escritos começavam a parecer incoerentes. Em 3 de janeiro de 1889, Nietzsche estava dando uma caminhada em Turim, na Itália. Ao ver um cocheiro bater em um cavalo, jogou seus braços ao redor do animal e caiu inconsciente. Após escrever várias cartas perturbadoras aos amigos, um deles, Franz Overbeck, foi até Turim e levou Nietzsche de volta a Basileia. Nietzsche havia sucumbido a uma loucura irrevogável e passou um ano em uma clínica psiquiátrica. Em 1890, sua mãe o levou para Naumburg e, após a morte dela, em 1897, Elisabeth o levou a Weimar para cuidar dele. Nietzsche morreu em Weimar em 25 de agosto de 1900. 20

20. A tragédia da derrocada de Nietzsche piorou com a influência de Elisabeth após a morte dele. Ela assumiu a administração dos trabalhos de Nietzsche e encorajou a imagem do irmão como um gênio louco que havia sacrificado a sanidade pela profundidade ele sua filosofia. Ela foi inescrupulosa de muitas maneiras e alimentou a imagem errônea de Nietzsche como um nacionalista alemão, racista e militarista, ocasionando a posterior apropriação pelos nazistas do pensamento dele. Para um trntado sobre Elisabeth e seus efeitos, ver H. F. Peters, Zaralflllslra '.S' SisJer: The Case of ElisabeJ/i a11d Friedric/1 Nietzsclie (New York: Markus Wiencr, J 985). Para uma consideração completa dos trabalhos de Nietzsche após a morte dele, ver Steven E. Ascheim, Tlie Nietzsclie legacy i11 Ger111a11y, 1890- 1990 (Berkeley: University of California Press, 1992).

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CAPÍTULO

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O Prólogo

SEÇÃO

1

A primeira frase do Prólogo é estranha e desconcertante: "Somos desconhecidos (unbekannt) para nós mesmos, nós, os homens de conhecimento (Erkennenden ), mesmo para nós mesmos, e por boas razões". Que maneira de começar um trabalho filosófico! Essa frase e essa seção não estão anunciando a necessidade familiar de buscar autoconhecimento ou conhecimento da mente em face da ignorância inicial. Em vez disso, dizem-nos que há algo escondido na busca do conhecimento em si, o que é inevitável. Permanecemos estranhos a nós mesmos por necessidade, não nos entendemos, devemos confusamente nos enganar sobre quem somos, o lema "todos são distantes (Fernste) de si mesmos" se aplica a nós para sempre (in alie Ewigkeit) - não somos "homens de conhecimento" quando se trata de nós mesmos. Além de desafiar a ideia geral de que a autoconsciência fornece autoconhecimento confiável, a alegação de Nietzsche trata de busca de alta ordem de conhecimento (Erkenntnis), incluindo filosofia. Há algo dentro dos homens de conhecimento que sempre será não familiar a eles ("não familiar" sendo outro significado de unbekannt). O que devemos fazer com essa alegação e por que ela está logo no início da 39

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

Genealogia?21 J:?uas questões sobre essa seção parecem preme~tes: (1)

que é necessariamente auto-ocultado dentro da busca do conhecimento? E (2) de quem se trata o "nós" em questão? · Com relação à primeira questão, o que é o "eu" desconhecict0 ou não familiar escondido dos buscadores de conhecimento? Nietzsch menciona "o resto da vida" e as "exper~ê?cias" da vida, e então per~ gunta: "Quem de nós pode levá-las a seno? Ou ter tempo suficient para elas?". O "eu" não familiar é o eu vivente que refletimos a fi~ de trazer para casa seu "tesouro" intelectual para as "colmeias do nosso conhecimento"? De fato, Nietzsche aponta para uma postura de homens de conhecimento que são "distraídos" e "rl1:ergulhados nos pensamentos", que poderia explicar por que os pensadores devem necessariamente mal interpretar "quem eles são" (observe que é "quem" em vez de "o quê"). Isso é uma referência pessoal a pensadores que sacrificam seus eus viventes por seus eus conhecedores? O eu vivente é um tipo de entidade diferente que pode ser conhecido de forma diferente? Ou há algo na vida que não possa ser capturado como uma "entidade"?22 Há algo obscuro e escondido proibitivamente dentro de um pensador vivente, mesmo que seja algo que o consome? Deixarei essas questões em suspenso por agora, mas acho que nosso passeio pelo texto que está por vir irá mostrar que cada questão provoca uma determinada resposta afirmativa.Com relação à segunda pergunta, quem o "nós" designa e Nietzsche se inclui nesse grupo? Será que o "nós" é simplesmente um dispositivo retórico que Nietzsche emprega enquanto implicitamente se exime, de maneira que o alvo sejam simplesmente o conhecimento e os homens de conhecimento "até então"? Creio que não, porque, na seção seguinte do Prólogo, Nietzsche repete a frase "nós, homens de conhecimento" no contexto de algumas observações autobiográficas. A questão permanece: Nietzsche implica a si mesmo no que parece ser um desafio à .postura do conhecimento filosófico? Sim e não. Essa questão também pode ficar em suspenso por agora, mas quero enfatizar como é importante essa primeira seção do livro, porque acredito que prenuncia algumas passagens consideravelmente complicadas nas últimas seções da terceira Dissertação da Genealogia.

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21. ~er Ken Gemes, '"We Remain of Necessity Strangers to Ourselves': The Key Message of N1etzsche 's Genealogy", em Acampara, ed ., Nietzsche ·s On the Genealogy of Mora IS, p. 191-208. . 22. Na verdade, Nietzsche não está examinando " individualidade" em um sentido formal, · porque sua linguagem sempre dá o tratamento reflexivo de se/bst e 1111s .

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O PRÓLOGO

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Nesse estágio da leitura, porém, deixe-me oferecer algumas sugestões sobre as implicações dessa seção. Nietzsche irá demonstrar que há algo autoalienante, até mesmo autossabotador na his' tória da moral e da filosofia do Ocidente. Embora Nietzsche se apresente como um novo tipo de filósofo, não acredito que ele exima absolutamente seu próprio pensamento desse problema. Filosofia, para Nietzsche, não é somente um exame de questões estranhas; filosofia em si é um fenômeno estranho. Qualquer filosofia, como busca de conhecimento e verdade irá necessariamente envol' ver uma alienação produtiva do "resto da vida", em razão de uma postura reflexiva e de produções da filosofia como tal. Nietzsche, então, deve incluir-se entre "nós, homens de conhecimento". Ainda assim, Nietzsche pode distinguir seu próprio trabalho ao revelar sua dinâmica e propor uma filosofia alternativa de vida natural contra filosofias antivida. No entanto, a postura de qualquer filosofia, mesmo a de Nietzsche, reside em forças da vida que passam pela reflexão, deparando-se com elas. Acredito que Nietzsche reconhece um dilema intrínseco na filosofia, particularmente em súa própria filosofia de vida, já que ele deve reconhecer e adotar um elemento autolimitador ao filosofar "sobre" a vida, porque a vida não é uma abstração, mas sim uma força viva que bate inclusive no coração de um filósofo. Em suma, "nós, _homens de conhecimento, desconhecidos para nós mesmos" pode sugerir tanto uma crítica à alienação tradicional da filosofia da vida natural como uma admissão de que mesmo uma filosofia de vida natural é sempre superada pela vida. Deve-se acrescentar que esse caráter autolimitador da filosofia é observado no estilo inortodoxo dos escritos de Nietzsche; e não pode ser um acidente que a Genealogia, que mais lembra um tratado típico, abra com intimações de seus próprios limites ao declarar o caráter de auto-ocultação do conhecimento. SEÇÃO

2

Nietzsche nos diz que sua polêmica sobre "a fonte (Herkunft) de nossos preconceitos morais" na Genealogia não é um projeto novo, porque foi primeiro delineada em 1876-1877 em Humano, Demasia~o Humano; e que seus pensamentos sobre a questão remontam a mmto

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

antes disso.23 Então, Nietzsch~ diz em ter~o~ f~rt_es que esses Pen~ sarnentos "não surgiram e~ rntm de maneira md1v~dual, aleatória ou esporádica, mas de un!a _raiz co~um, ~e ~m dese1o fimdamenta/ de conhecimento do meu mtm10 ( ... ) · ~ntao, JU~to ~o problema da busca de conhecimento anunciada na Seçao aqm N tetzsc~e abertamente declara seu próprio desejo pelo conhec1me?to como o impulso de sua filosofia. Observe que ele distingue esse impulso de qualquer coisa meramente subjetiva ou individual; de fato, '~tomou controle" sobre ele de maneira dominante. Continuando, ele diz:

!,

E essa é a única coisa adequada para um filósofo. Não temos direito de nos afirmarmos individualmente: não devemos nem cometer erros nem atingir a verdade individualmente. Em vez disso, nossos pensamentos ( ... ) crescem em nós com a mesma necessidade das frutas que nascem na árvore. A filosofia, para Nietzsche, é claramente não apenas uma perspectiva individual, mas uma compulsão para um conhecimento que desvenda o mundo, mesmo que ele tenha alertado sobre os limites vitais que dizem respeito ao conhecimento filosófico. SEÇÃO

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A "curiosidade e [a] suspeita" de Nietzsche sobre a origem ( Ursprung) do bem e do mal se expressaram muito cedo em sua vida. Quando garoto, ele se digladiou com a origem do mal de uma perspectiva teológica e concluiu que Deus tinha de ser "o pai do mal". Com o tempo, Nietzsche veio a "separar o preconceito teológico e moral" e "não mais buscava pela origem do mal além do mundo". De forma mais naturalista, sua questão se tornou: "sob que condições o homem inventou os julgamentos de valores de bem e mal?". No entanto, logo em seguida, acrescenta uma questão que vai além de mera consideração histórica ou antropológica sobre esses valores: "e que valor em si eles têm?". 2~- ~a Seção~• re~ rin~o-se ,?ovamente a seu desenvolvimento inicial da questão da moral, ~,etzsche desi_gna a origem (Ursprung) como seu foco. Herkunfi também pode ser tradu· z1do como "onge m" , mas , ".:ionte " captura o sentido · importante · no'1' qual as origens da mora1 nasceram e sa;-o susten tadas em nossa cultura. Ambas as palavras se comp1e• . ' fixaram-se ~ . . ~:~ntam_e nao mdi~ai~ qL!alquer condição "original" que defina a moral de qualquer for°:ª Sla~tiva, mas sim mtnnsecamente o caráter histórico da mor"I Na~o ·1credito que haJa ' · entre fie, _ .kw!/1. e Ursprung no uso que' Nietzsche u · ' Suma- d, fcrenç ª tccrnca faz' das palavras,. na 4 1 eçao , e e parece usar os dois termos de maneira alternada.

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O PRÓLOGO

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Ele elabora: "Eles até agora obstruíram ou promoveram o florescimento humano?". Eles refletem "a degeneração da vida" ou "a plenitude, a força_ e o desejo da ~ida~'? No decorrer da busca por essas questões, por me10_de estudos htstóncos e psicológicos variados, acabou por refinar ,su~s mte~r?~ações e conjecturas posteriormente, até que tivesse seu "propno terntono", seu "próprio solo", para examinar a moral. Nas seções seguintes do Prólogo, Nietzsche delineia algumas das forças pelas quais seu próprio solo nutriu e produziu o caráter da Genealogia. SEÇÃO

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Nietzsche diz que uma motivação para trabalhar em suas hipóteses com relação à origem da moralidade veio da leitura do livro de um amigo: A Origem dos Sentimentos Morais, de Paul Rée, publicado em 1877. Ele associa o trabalho de Rée com um tipo "perverso" de genealogia, que chama de "tipo inglês" e será criticado na primeira Dissertação. Em trabalhos anteriores, vinha trabalhando criticamente com várias passagem do livro de Rée a fim de moldar sua própria abordagem genealógica alternativa. Ele aponta para seções específicas de Humano, Demasiado Humano, O Viajante e sua Sombra e Aurora, que prefiguraram os temas-chave da Genealogia. 24 Conforme destaca suas questões em relação ao trabalho de Rée, Nietzsche nos alerta para a maneira atípica de sua postura crítica, que não é uma questão de refutar erros: "O que eu tenho a ver com refutações!". Mais exatamente, como um "espírito positivo", ele busca "substituir o improvável (Unwahrscheinlichen) pelo mais provável e, em algumas circunstâncias, substituir um erro por outro". Essa observação tem um significado importante em relação a como lemos as investigações genealógicas de Nietzsche e, neste ponto, pode ser útil propor uma discussão preparatória sobre o que entendia por "genealogia". 25 Ele emprega discussões quase históricas e genealógicas para subverter a confiança nos sistemas de crenças tradicionais (não para refutálos). A genealogia mostra que doutrinas reverenciadas não são fixas ou eternas: elas têm uma história e emergiram como uma competição com . 24. Tomar esses tratamentos anteriores será útil no decorrer de nossa análise, quando adequado. Felizmente, a tradução [para o in~lês] da Cambri~~e Un'.~ersity Press da ,? enealogia inclui todas as seções observadas por Nietzsche em seu Matei 1al Suplementar . . 25 . Um ensaio muito Mil é Raymoncl Guess, "Nietzsche and Genenlog(, em R1charcls?n e Lcitcr, ecls., Nietzsche p. 322-340. Para uma discussão de respostas cnt1cas à genealogia, ver S. Kemal , "Sorne Problems of Gencalogy", Nietzsche St11die11 19 ( 1990), 30-42.

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

contraforças existentes; de fato, elas não poderiam evitar ser apanhadas nas condições às quais se opunham. Essa análise rev.e~a a complexidade das crenças culturais e mina a suposta estabilidade e a pureza presumida de medidas de pensamento longevas. Genealogia, então, é um tipo de história diferente daquelas que presumem inícios discretos, bases substantivas em condições "originais" ou linhas de desenvolvimento simples. · Alguns escritores acreditam que a genealogia de Nietzsche implica nostalgia de uma condição original mais nobre. 26 Ele, porém, não advoga um retorno ao passado: em A Gaia Ciência, ao exaltar "nós, filhos do futuro", que somos "sem teto" no presente e indiferente a "realidades" endurecidas, acrescenta: "Nós não 'conservamos' nada; tampouco queremos retornar a quaisquer condições passadas" (GS 377). Genealogia é uma estratégia para crítica em face de convicções enraizadas ( GM P, 6) e uma preparação para algo novo (GM II, 24). A atenção às complexidades da emergência histórica desestabiliza os modelos fundamentalistas e as garantias transcendentes: e a encruzilhada agonista intrínseca a essa história rompe os limites claros das categorias conceituais. Dessa forma, a genealogia não olha simplesmente para um histórico de explicações do passado e do presente; seu objetivo é ser contestadora e preparar para novas empreitadas. Por fim, embora esteja trabalhando com forças e períodos históricos reais, ele certamente não pretende oferecer um trabalho historiográfico. Como veremos, Nietzsche é deliberadamente seletivo e arranja as narrativas mais de acordo com sua força retórica - para nos provocar a pensar sobre questões filosóficas maiores evocadas por amplas considerações históricas. SEÇÃO

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O início dessa seção é bastante significativo. Continuando uma consideração de seu desenvolvimento em direção à Genealogia, Nietzsche diz: "Eu estava preocupado com algo muito mais importante do_ que a natureza das hipóteses, minhas ou de outra pessoa, sobre a ongem da moral( ... )". O tratamento histórico era instrumento "somente para um objetivo" e, de fato, Nietzsche chama esse tratamento de "um 26. Ver Ji!r~en Habermas~ Th e Phil~sop~iica/ Dis~ourse of Modemity [Discurso Filosófico da Mode1111dade], traduçao [para o mgles] Fredenck G. Lawrence (Cambridge, MA: MIT Press, 1987), p. 125-126,

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O PRÓLOGO

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mei? enh·e n:iuitos" para alcançar esse objetivo. O centro da preocupaçao ,~e N1:tzsche não era simplesmente uma genealogia da moral, mas a questao do valor da moral". Não há objetivo ou ideias livres de valo~es no cerne da análise de Nietzsche, e sua questão sobre a importância dos valores morais vai muito mais além de uma consideração sobre em que medida a moral em si é valiosa para a existência humana. Para Nietzsche, a avaliação da moral tem um viés decididamente polêmico, evidente quando ele formula essa questão em termos de sua necessidade de "confrontar meu grande mestre Schopenhauer". Schopenhauer era um pessimista que, de forma impudente, respondeu Não à questão do significado da vida e, ainda assim, forjou uma ética robusta a partir de seu pessimismo, ao reformular a moral como uma negação de nossas tendências naturais, no lugar de um cultivo positivo de uma natureza moral. Nietzsche resume a ética de Schopenhauer como uma "moral da piedade (Mitleid)", que inclui uma valorização da abnegação, da autonegação e do autossacrificio. Por que Nietzsche distingue Schopenhauer nessa questão? São necessárias algumas observações sobre antecedentes. INTERLÚDIO: SCHOPENHAUER, PESSIMISMO E NIILISMO

Schopenhauer teve uma influência inicial importante na filosofia de Nietzsche, que o admirava muito, em particular por sua honestidade intelectual. O pessimismo de Schopenhauer rejeitava todas as formas de otimismo, todas as formas de redenção terrenas e não terrenas da existência finita, como filosoficamente injustificadas. Para Schopenhauer, a natureza suprema da realidade é a Vontade, uma força sem objetivo e amorfa que ilude o conhecimento humano e consome todas as suas manifestações. Na vida, o sofrimento e a falta são o ponto principal. A sabedoria, para Schopenhauer, exigia o reconhecimento da falta de objetivo fundamental da existência e a prática da resignação, de forma semelhante às tradições religiosas ascéticas, mas sem esperanças em outro mundo. O pessimismo de Schopenhauer advogava uma vida de autonegação e via a perspectiva de aniquilação como a única forma autêntica de "salvação". Nietzsche veio a enxergar a filosofia de Schopenhauer como . o código secreto para toda a . tradição ocidental. Em primeiro lugar, Schopenhauer compartilhava a avaliação cronofóbica ocidental da vida. Embora desprezasse projetos otimistas, sua proposta de negação da vida mostrava que ele concordava com esses critérios de valor tradicionais, mas simplesmente discordava que esses critérios pudessem

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ser realizados de qualquer forma positiva. Em outras palavras, pessimismo implica que a vida deveria apoiar as aspirações humanas existenciais e intelectuais, mas não consegue fazê-lo. Por _que mais se afastar da vida? Ao mesmo tempo, Nietzsche reconhecia o rigor filosófico de Schopenhauer ao desconstruir o otimismo ocidental. Schopenhauer estava certo quando baseava a realidade em ~ma força sern objetivo que limitava todas as perspectivas humanas. Nietzsche, então, concluiu que o pessimismo de Schopenhauer era .ª ver~ade oculta do pensamento ocidental, que todos os projetos de retificaça? em nome da verdade, do conhecimento, da salvação, da justiça, e asSim por diante, eram de fato formas esotéricas e disfarçadas de negação pessimista da vida. Schopenhauer, então, exemplificava a tradição ocidental sern toda a falsa ornamentação. Para Nietzsche, cada perspectiva "positiva" de resolver a finitude temporal era no fundo uma forma de negação da vida. Nietzsche e Schopenhauer eram irmãos filosóficos no sentido de que o centro de seus pensamentos era uma concentração aguda e resoluta em uma questão: a existência é válida? A resposta honesta de Schopenhauer era Não. A resposta de Nietzsche era Sim e ele acusava o pensamento ocidental tanto de se evadir dessa questão simples como de esconder um Não reprimido, um niilismo oculto. Isso nos traz novamente à questão do niilismo no pensamento de Nietzsche. Há alguma ambiguidade (especialmente nos cadernos de anotações) sobre se Nietzsche está promovendo ou rejeitando o niilismo, definido como "o repúdio radical do valor, do significado e da desejabilidade" na vida ( WP I.l). Para esclarecer, penso que podemos dizer que Nietzsche saúda o niilismo como uma negação dos construtos tradicionais (por • exem~lo,..:.na morte de D_eus), m_as somente como uma transição para a reavaliaçao, que superana o pengo profundo do niilismo. 27 Como :'eremos, ?!1iilism? é uma consequência da própria autodesconstruç~o da t~ad1çao. Assnn, Nietzsche declara que o niilismo se ~ostra daqui por dt~nte como a essência oculta da tradição, uma anulaçao do t_ornar-se fimto surgida da fraqueza em face da vida. No entanto, ao ~ o nu .. 1.ismo evidente se torna seu próprio . contmuar co m a trad'1çao, tip~ de dogma bin~rio, um~ ~orm~ peculiar de certeza que simplesmente ieverte as doutrinas trad1c10na1s enquanto retém, de maneira velada, sua confiança em atingir l ima pos1çao · ~ fi ... xa. N11hsn10 é uma "crença na descrença" (GS 347) · Em uma epoca , ' de sublevação e incerteza cultural, 27. Ver Richard Schacht "N' t· h .. . Essays, ed. Robert Solo,;10 n 'c~s~ e an~i Nihilism", em Nietzsche: A Col/ection of Criticai en City, NY: Anchor Books, 1973), p. 58-82.

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O PRÓLOGO

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o niilismo equivale a uma preferência pela certeza do nada sobre condições de in_~~rteza (_BGE 1O). Não importa o quão corajoso isso possa parecer, o m_ihsmo amda é um sinal de fraqueza e desespero (BGE 1O). Para Nietzsche, as posturas "positivas" da tradição são de fato ornamentos cr~a~ivo~ do nada (GM III, 17, 25.; TI 3, 6). A negação das crenças trad1c1onais (sem reavaliação) é apenas niilismo honesto. Por isso, Nietzsche admirava tanto Schopenhauer. Seu pessimismo inflexível era o código secreto para decifrar as motivações da filosofia e da religião ocidentais. O niilismo é mais realista e benéfico ao desmantelar o passado; ele reconhece de forma correta que não temos direito a postular uma base divina, moral ou racional na existência. Sua conclusão, porém, é a "insustentabilidade absoluta da existência" (WP 3). Portanto, ocorre que o otimismo tradicional era um niilismo disfarçado e que o niilismo é simplesmente um otimismo desencantado ou fracassado. Para Nietzsche, o niilismo admite o tornar-se radical como a única realidade, mas não pode mantê-la; sem as categorias do propósito, unidade, verdade e ser, o mundo agora "parece sem valor" (WP 12A). Um niilista é alguém que acredita que o mundo como deveria ser não existe e que o mundo como ele é não deveria ser (WP 585A). O niilismo pode ser benéfico, mas somente como um estágio transicional, a superação da tradição que permite um novo avanço (WP 7, 111-112). Desvalorizar a tradição "não é mais uma razão para desvalorizar o universo" (WP 12B). Há uma necessidade urgente por novos valores, nos quais o mundo possa ser visto como "muito mais valioso do que costumávamos acreditar" ( WP 32). É necessária uma forma de pensamento que seja liberada tanto da tradição como de seu centro niilista (quer oculto ou evidente). Os que forem capazes desse pensamento irão atingir uma "redenção" do mundo da vida: uma redenção da maldição que o ideal até agora reinante colocou. Esse homem do futuro, que irá nos redimir não somente do ideal até agora reinante, mas também do que estava destinado a s~rgir dele, a grande náusea, a vontade do nada, o niilismo; (... ) esse anticristo e antiniilista, que superou tanto Deus como o nada - ele virá um dia. (GM II, 24) No contexto dessa discussão, as observações de Nietzsche sobre Schopenhauer na Seção 5 podem se sobressair com mais precisão. Uma moral de piedade e autonegação pode parecer tornar totalmente válido um chamado para se livrar de nossos interesses egoístas em relação

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

aos outros. Mitleid poderia ser mais bem traduzido co~o "_compaixão'', literalmente um sofrimento-com-o-outro, uma expenencta da dor do outro como sua própria, que estimularia o interesse em aliviar a dor ou se abster de causá-la, na mesma extensão que valorizaria esses modos quando orientados em direção a si mesmo por outros: ~o entanto, Nietzsche relata sua suspeita (Argwohn) crescente dessa ehca schopenhaueriana como um "grande perigo para a humanidade, ,sua mais sublime tentação e sedução - tentação a quê? Ao nada?". E importante reconhecer que Nietzsche atribui esse perigo a uma "supervalorização'' da piedade, mais do que ao fenômeno da piedade em si. O problema da piedade é sua aversão latente a uma vida de sofrimento, que pode fazer surgir o niilismo. 28 Em qualquer caso, o perigo de que a humanidade "vire sua vontade contra a vida" com certeza não pode ser uma revelação sobre a filosofia de Schopenhauer, visto que essa é precisamente sua maneira de dar nova forma à moral. Por sua vez, Nietzsche descreve essa disposição pessimista da piedade como "procurando cada vez mais apanhar mesmo os filósofos e torná-los doentes, como o sintoma mais assustador (unheimlich) de nossa cultura europeia". Mais uma vez, o pessimismo de Schopenhauer é importante para Nietzsche como um diagnóstico e uma reformulação dos desenvolvimentos ocidentais que não são entendidos como pessimistas ou niilistas, e esse entendimento autoilusório é o alvo principal da crítica genealógica de Nietzsche. SEÇÃO

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Quando o valor de uma moral da piedade é entendido como um problema, um "vasto e novo panorama se abre", que traz vertigem (Schwindel), desconfiança, suspeita e medo, uma condição ambivalente na qual a "crença na moral, em todos os tipos de moral, é sacudida". Uma "nova demanda" nos pressiona: Precisamos de uma critica dos valores morais, o valor desses valores deve ele mesmo, dessa vez, ser colocado em questão - e então precisamos saber das condições e circunstâncias sob as quais os valores cresceram, desenvolveram-se e mudaram. 28. :'er Mi~h~el ~re, "The_ lrony of Pity: Nietzsche Contra Schopenhauer and Rousseau", Jou, 31 (Outono 2006) , 68-91 . uma boa d'1scussao ~ M na/ h eojNNietzsche Stud1es .. . cn·t·1ca e' de 6 art uss a~m, Pity and Mercy: Nietzsche's Stoicism" em Schacht ed. Nietzsche, Genea ogy, Mora/Jty, p. 139-167. ' ' '

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O PRÓLOGO

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Nietzsche nos diz que o valor desses valores é daqui por diante tomado como dado, "como além de todo questionamento". Ninguém jamais duvidou que o assim chamado "homem bom" faz a vida humana avançar, em oposição ao "homem mau". Então, Nietzsche pergunta: E se o oposto fosse verdade? E se uma característica regressiva atraísse "o homem bom", algo como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, de forma que o presente vivesse à custa do futuro? E se a moral fosse culpada de a espécie humana nunca atingir seu · "mais alto poder e esplendor potenciais"? E se a moral em si fosse o "perigo dos perigos"? Com essas palavras, Nietzsche coloca as perspectivas perturbadoras e contundentes de sua crítica genealógica. E se nossas normas morais mais estimadas fossem, na verdade, ruins para nós? Devemos ter em mente que essa seção, apesar de seu tom tétrico, expressa graus de ambiguidade em suas descrições mistas e também devemos observar que essas perspectivas perturbadoras estão todas colocadas em forma de perguntas. SEÇÃO

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Essa seção fecha a explicação de Nietzsche de seu desenvolvimento até a Genealogia. Ele procurou por colegas eruditos que pudessem examinar a moral com "novos olhos", que poderiam caracterizar a moralidade "como se de fato (wirklich) existisse e fosse de fato experimentada". Ele acrescenta que ainda está procurando por esses colegas até hoje. Paul Rée é mencionado novamente e Nietzsche diz que queria focar o "olho clínico" de Rée em uma direção melhor, em direção a "uma verdadeira história da moral". Ele queria advertir Rée contra a genealogia "inglesa", que ele chama de "hipótese que se perde no azul". Em alemão, Fahrt ins Blaue significa algo como uma viagem misteriosa, mas acho que Nietzsche queria enfatizar azul como uma cor penetrante, porque ele continua dizendo: "Fica claro qual cor é cem vezes mais importante para um genealogista do que o azul: a saber, o cinza". A referência à cor parece precisar a complexidade, a contingência e a nebulosidade da história da moral, porque, quando Nietzsche descreve o "cinza" genealógico como refletindo o que "de fato existiu", o que pode ser documentado e "realmente confirmado", ele resume esse

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

ponto de vista como "o completo, Jongo e difícil de decifrar roteiro hieroglífico do passado mora". Era essa orientação cinza, diz Nietzsche, que fa_ltava a Rée. Ele continua mostrando a abordagem de Rée como um tipo de estupefa_ ção e indolência eruditas, mesmo quando confrontando a justaposição darwiniana de nossa linhagem bestial e de nossa polidez moderna. Nietzsche detecta aqui um indício de "pessimismo e fadiga", como se não valesse a pena levar esse problema da moral "tão a sério". Nietzsche, no entanto, acha que "não há nada que recompense mais levar a sério" do que os problemas da moral. O inter~ssante é que ele oferece um exemplo de tal recompensa como a possibilidade de ter permissão para tomar esses problemas morais "alegremente" (heiter), à moda de sua "ciência prazerosa" (fi·ohliche Wissenschaft). A recompensa do prazer e alegria pode vir após uma longa e corajosa "seriedade subterrânea". A esse respeito, Nietzsche termina com algumas observações surpreendentes que remontam a O Nascimento da Tragédia: dia em que pudermos dizer com convicção "Avante! Mesmo nossa antiga moral pertence à comédia!", poderemos ter descoberto uma nova reviravolta e uma possibilidade para o dr,ama dionisíaco do "destino da alma". O

, . Há expressada aqui, acredito, uma ligação importante entre a tragedia e a moral na visão de Nietzsche, que iremos considerar mais profundamente no momento devido. SEÇÃO

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Já consideramos a importância dessa seça~o par·a a co · ~ d b d · , . mpreensao a a or agem de Nietzsche a leitura e à interpretação H, ., ob ~ b '1: . • • a, pmem, uma ,sehrvaçao so re a ierce1ra Dissertação cuja discussão iremos protelar ate c egarmos a essa parte do texto.

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CAPÍTULO

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A Primeira Dissertação: ''Bem e Mal'', ''Bom e Mau''

A verdade da primeira dissertação é a psicologia do Cristianismo: o nascimento do Cristianismo, a partir do espírito de ressentimento, não, como se acredita, do "espírito" - um contramovimento por sua própria natureza, a grande revolta contra a regra dos valores nobres. (EH III, GM)

UMA NOVA HISTÓRJA DA MORAL (SEÇÕES

1-3)

Nietzsche começa resgatando sua discussão sobre os psicólogos ingleses no Prólogo. Ele elogia algumas de suas qualidades, especialmente sµa posição de suspeita em relação ao Cristianismo, ao Platonismo e ao idealismo moral, bem como sua coragem de confrontar verdades indesejadas sobre a moral ( I ). Nietzsche prepara o palco para a sua própria abordagem genealógica alegando que falta a esses historiadores da moral "espírito histórico" (2). Como assim? Para eles, a origem do termo "bem" é encontrada na utilidade de atos altruístas, no elogio feito pelos beneficiários desses atos. Com o tempo, porém, essa origem instrumental mundana foi "esquecida" e atos abnegados vieram a ser considerados como intrinsecamente bons. Embora Nietzsche pudesse apreciar o efeito "deflacionário" desse tratamento, ele acusa os historiadores 51

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TZSCHE - UMA INTRODUÇÃO A GENEALOGIA DA MORAL DE NIE

. , . e mina sua premissa de que a b ingleses de perder outra h1stona qude atos a b negad os e seus b enefi .011.. dade moral é equivalente ao va1or . d leios · valor desse conceito e mor · 0 d Eles não questionaram o verda eir a1 no · , · 29 contexto de sua l11stona. . , • · · Na Seção 2, Nietzsche inicia sua h1stona a 1ternahva dos con. • . A" dadei·ra origem" da bondade deve ser loca11·2 ce1tos morais. ver a. da antes da emergência de valores abnegados;_de_ f~t~, esses valores ~ h.1sto' ricas contra essa mensuraçao e1.am reaçoes . _ inicial. da bondade. Aqui, ele propõe a noção de que_ as a~a~iaçoes mora~s. e~a~ origi. nalmente território de posição anstocratica. O que fm micialmente considerado "bom" na cultura humana não era nem atos abnegados nem sua utilidade, mas sim um nobre "páthos de distância" de tipos baixos e comuns da sociedade. Na moral nobre, 0 bem era experimentado no ambiente de sucesso, poder e dominação sobre os infe. ri ores, e não no "cálculo de prudência ou [no] cálculo de útilidade'' (2). Então, a origem dos valores morais deve ser encontrada em conceitos aristocráticos e hierárquicos de "bom e mau", que denotava gradações de superioridade e inferioridade, nobreza e povo. A noção de que a moral é fundada em ações abnegadas somente surgiu com o "declínio dos julgamentos de valor aristocráticos", quando a simples antítese entre ações egoístas e altruístas veio a redefinir gradualmente os valores morais. Nietzsche atribuirá essa redefinição de moral ao surgimento de uma "moral escrava" e sua rebelião contra a "moral nobre" .30 Aqui, porém, Nietzsche designa a reversão como uma função do "instinto de rebanho", um termo mais amplo do que qualquer associação histórica com escravidão ou submissão. De qualquer forma, ele alega que a visibilidade das origens da moral aristocrática tem sido encoberta pela predominância dos valores de rebanho e que o pensamento europeu contemporâneo tinha mantido o preconceito de equacionar moral com abnegação e desinteresse.

29. Com relação ao t_raba!h? de Paul Rée, as investigações preliminares de Nietzsche esta· va,m, na v_erda~e.' mais prox1mas da posição de Rée (ver WS 40). Ver Robin Small, ed.,Paul ~ee: Bas1c_Wnting_s (Urb_ana: ~1~iver~ity of_lll_ino~s Press, 2003), p. xi-liii. ~- Em mmhas d1scussoes uttltzare1 as d1stmçoes mestre-escravo mesmo que na GM Nietzsche use O termo "moral nobre" de preferência ao termo "mor;I do mestre" que foi us_ado em BG~. A d_istinção mestre-escravo se tornou um termo de a;te nos tratamentos de Nietz?che, e nao VeJO qualquer diferença significativa entre "mestre" e "nobre". Nietzsche menc1ona..o term?, "mestre" ocasionalmente na G/vl (p. ex., Seção 5), e no Epílogo de CW moral do mestre e moral "nobre" parecem ser termos intercambiáveis. · 1

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A PRIMEIRA DISSERTAÇÃO: "BEM E MAl:', "BOM E MAU"

A

LINGUAGEM

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DA MORAL (SEÇÕES 4-5)

Na Seção 2, Nietzsche havia mencionado "palavras" e "nomes" como uma fonte de entendimento e proliferação moral. Na Seção 4, ele segue com essa importante parte de sua investigação genealógica, ou seja, uma análise etimológica de palavras morais nas culturas e línguas antigas. Em oposição a outros tratamentos históricos, que falsamente presumem significados mais atuais para termos morais, Nietzsche insiste que palavras antigas são nossos primeiros "dados" históricos e, aqui, ele encontra confirmação para sua tese alternativa. As formas iniciais de linguagem moral disponíveis para nós mostram que "bom" e "mau"; na verdade, denotavam associações hierárquicas de superioridade e inferioridade. Ele cita o exemplo da palavra alemã schlecht (mau) que originalmente carregava conotações de comum e simples, em contraste com qualidades nobres. Outras etimologias irão confirmar essa distinção também, em uma abordagem linguística que Nietzsche chama de "uma percepção essencial na genealogia da moral" (4). Na Seção 5, Nietzsche se volta para o grego e o latim para confirmação adicional de sua tática etimológica, o que mostra "que nessas palavras e raízes que denotam 'bom', podemos com frequência detectar a nuance principal que faz o nobre sentir-se homem de uma categoria mais elevada". Alérri das associações típicas com o poder e a riqueza físicos, a bondade também nomeava alguns traços de caráter como veracidade e legitimidade (na palavra grega esthlos) , que se contrapunha à falsidade das pessoas vulgares. A palavra grega para "bom" era agathos, que originalmente significava bem-nascido, rico, valente e capaz. Nietzsche observa que, mesmo com o declínio da aristocracia grega, agathos retinha um senso de "nobreza espiri- · tual" evidente no uso contínuo da palavra kakos (mau) para significar fraco, feio, covarde e sem valor. A força da análise etimológica de Nietzsche nos faz perceber que os sentidos preliminares de "moral" exibiam graus seletivos de class(ficação performática, social e psicológica, formas de estratificação e poder que, de muitas formas, são moralmente questionáveis, se não imorais, pelas medidas modernas. Nietzsche agora começa a tratar da questão de como, e sob que condições, um senso de moral aristocrática original veio a ser suplantado por normas contrárias.

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A GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE - UMA INTRODUÇÃO

Q

SACERDOTE (SEÇÕES

6-9)

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A figura do sacerdote desempenli_a un_, papel i~portante na ge~ealo. gia de Nietzsche. Infelizmente, ele nao aJuda mrnto a co~preensao do leitor. A discussão é ambígua e sem foco por causa do segu_m~e conjunto de relacionamentos: o sacerdote irá fornecer O poder cnahvo que dá forma à moral escrava em sua reversão da moral do mestre; porém, 0 tipo sacerdotal é apresentado em seu primeiro formato com? p~rte da classe nobre. Apesar das dificuldades colocadas p_or e~sa ,ª~arencia