Fundar a moral. Diálogo de Mêncio com um filósofo das Luzes 858659024X

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Fundar a moral. Diálogo de Mêncio com um filósofo das Luzes
 858659024X

Table of contents :
Sumário
Ao leitor
I. Diante do insuportável
II. Fundar ou comparar (ou comparar para fundar)
III. O "mistério" da piedade
IV. Indícios de uma consciência moral
V. Um debate sobre a natureza humana
VI. Ele é bom, ele é mau?
VII. Em busca de uma natureza perdida
VIII. Humanidade, solidariedade
IX. O cuidado do mundo
X. Vontade quimérica?
XI. Sem a idéia de liberdade
XII. A justiça reina sobre a terra
XIII. A terra é igual ao céu
XIV. Isto não é um catecismo chinês
XV. A consciência moral dá acesso ao incondicionado (o céu)
Glossário das expressões chinesas

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FRAN Ç OIS

JULLIEN

FUNDAR A MORAL m

Di á logo de Meneio com um fil ó sofo das Luzes

Tradução de Maria das Graças de Souza

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Cet ouvrage beneficie du soutien du Consulat General de France à S ã o Paulo. Este livro contou com o apoio do Consulado Geral da Fran ç a cm S ã o Paulo.

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CONSULADO CERAL DA FRANÇA / SP 4

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discurso editorial

Copyright © hy Éditions Grasset & Fasquelle, 1995 T ítulo original em francês: Fonder la morale . Dialogue de Mencius avec um philosophe des Lumiè res Copyright © da tradução brasileira : Discurso Editorial , 2001

Nenhuma parte desta publica çã o pode ser gravada , armazenada em sistemas eletr ó nicos , fotocopiada , reproduzida por meios mec â nicos ou outros quaisquer sem a autorização pr é via da editora .

Projeto editorial : Departamento de Filosofia da FFLCH - USP Dire ção editorial : Milton Meira do Nascimento Coordenação: Floriano Jonas Cesar Projeto grá fico e editoração: Guilherme Rodrigues Neto Capa: Camila Mesquita Revisão: José Teixeira Neto Tiragem: 1.000 exemplares

Ficha catalogr à fica: Sonia Marisa Luchetti CRB/8-4664 J 94

Jullien , Fran çois Fundar a moral: di á logo de M é ncio com um fi l ósofo das luzes / Franç ois Jullien ; tradu ção de Maria das Gra ças de Souza . - Sã o Paulo: Discurso Editorial , 2001 . 204 p. Tradu çã o de: Fonder la morale . Dialogue de Mencius avec um philosophe des Lumiè res.

ISBN 85 -86590- 24- X

1 . Moral 2 . Iluminismo 3. Pensamento chinês I . Tí tulo. II . Souza, Maria das Graç as de CDD 170 181.11

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SUMÁRIO

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AO LEITOR

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I DIANTE DO INSUPORTÁVEL

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II FUNDAR OU COMPARAR ( OU COMPARAR PARA FUNDAR )

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III. O

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“ MISTÉRIO ”

DA PIEDADE

. V. UM DEBATE SOBRE A NATUREZA HUMANA VI. ELE É BOM , ELE É MAU ? VII . EM BUSCA DE UMA NATUREZA PERDIDA VIII. HUMANIDADE, SOLIDARIEDADE IV IND ÍCIOS DE UMA CONSCI Ê NCIA MORAL

discurso editorial : SS. ::

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Av. Prof . Luciano Gualberto , 315 (sala 1033 ) 05508- 900 - Sã o Paulo - SP Tel . 3814- 5383 Tel . / Fax : 3034- 2733 E - mail: discurso @ org . usp . br

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IX. O CUIDADO DO MUNDO

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. XI. SEM A ID ÉIA DE LIBERDADE XII. A JUSTI ÇA REINA SOBRE A TERRA XIII. A TERRA É IGUAL AO C É U XIV. ISTO N ÃO É UM CATECISMO CHIN ÊS XV. A CONSCI Ê NCIA MORAL DÁ ACESSO

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X VONTADE QUIM É RICA?

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AO INCONDICIONADO

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CÉ u )

GLOSSÁ RIO DAS EXPRESSÕES CHINESAS

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AO LEITOR

Fundar a moral não é fixar os seus princípios, mas estabelecer sua legitimidade possível. Dizer em nome de que ela se justifica , de uma maneira que não seja como mandamento de Deus ou pela sua utilidade social . Essa quest ão tomou forma completamente na Europa durante o século XVIII: depois que os filósofos das Luzes libertaram a moral de sua tutela metafísico- religiosa, e antes que os mestres da suspeita , com Nietzsche à sua frente , tivessem empreendido , ao contr á rio , destruir a sua razão de ser. A partir de ent ão, n ã o se ousa mais considerá-la de frente , em sua rigidez escolar - pois se descobriu que ela era por demais turva e ingé nua -, mas também n ão se consegue livrar-se dela. N ão negamos que temos uma consciê ncia moral , mas temos medo da mistificação. Tendo se tornado im precisa , vaga , solta no ar, sua id é ia n ão cessa contudo de perseguir, como um fantasma, os nossos debates ideológicos: o “ humanit á rio” , a “ solidariedade” que est ão sempre em nossa boca hoje em dia , com efeito, sobre que repousam ? E por essa razão que meu propósito é voltar a essa ã quest o , abordando- a deliberadamente de modo obl íquo , pelo â ngulo de uma grande tradição moral que se desenvolveu fora do quadro indo-europeu : a China ( tendo como representante Meneio) . N ã o para procurar na China uma so u ção para nossos impasses (e compor um “ catecismo chinês” ' A

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do século XVIII) , mas antes para desenterrar a quest ão — graças ao deslocamento operado simplesmente fazendo-a mudar de terreno. Sob o efeito reativo da confrontaçao , expondo-a a outras configurações, espero abrir novas possibilidades e recolocá-la em movimento. E , como, sobre este ponto, pode-se identificar de imediato uma comunidade de experiência e de desafios (e , por uma vez, a propósito da moral , não se tem necessidade de começar construindo representações mediadoras) , o encontro entre a Europa e a China se faz diretamente, e a comparação se transforma em di álogo. Sabe-se bem que aquilo que periodicamente ameaça a filosofia é precisamente a perda do desafio, quando ela se deixa confinar em seu debate. Ora, a “ China” , aqui, serve para tomar dist â ncias, para pensar a partir de fora. Ela n ão é uma grande gaveta a mais a ser inventariada, mas torna-se um instrumento teó rico (e, de objeto, a sinologia se transforma em mé todo) . Aqui , ela serve para tomarmos pé na moral . Pois , se , como é recomendado pela antiga estratégia chinesa , escolhi aqui atacar indiretamente, por meio da China , é para forçar a questão a se mostrar de frente. E , se parto deliberadamente de tão longe, n ão é por desejo de exotismo, mas para encontrar uma margem de manobra: ver-me desimpedido, ao beneficiar-me de um novo ponto de partida , de tudo aquilo que, estando próximo, acabou por embaralhar a quest ão , tornando-a assim inapreensível. Nas páginas que se seguem , fugindo da moda , n ão falarei de “ é tica” , mas da moral . ao gosto

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I DIANTE DO INSUPORTÁVEL

1. Um rei duvidava de sua capacidade de fazer o bem aos seus s ú ditos. Para persuadi-lo disto, um sá bio lembrou-lhe uma anedota a este respeito. Enquanto presidia a sessão na sala de audiê ncias, este rei teria visto passar, ao pé dos degraus , um boi que estava sendo arrastado para o sacrifício. N ão podendo suportar o ar amedrontado do animal, semelhante ao de um inocente que estivesse sendo conduzido ao suplício, ordena que o soltem . “ Deveremos renunciar ao sacrifício ?” , perguntam então os oficiais. “ Impossível ” , responde o rei , “ vocês só têm que trocar o boi por um carneiro.” Eis o que basta para provar, conclui o s á bio , que esse í pr ncipe é capaz de exercer a realeza. No entanto , a anedota contada parece, num primeiro momento, voltar-se contra ele: ao propor a substituição do boi por um carneiro, o rei se viu acusado de avareza; ele pró prio, ao mesmo tempo em que se defendia desta acusa ção , reconhece sua inconseq úê n cia. Pois por que preferir um carneiro a um boi ? O carneiro n ão era t ão inocente quanto o segundo ? Caber á ao sá bio esclarecer o que se passou na consciê ncia do príncipe, que nem os outros, nem o próprio pr íncipe puderam perceber: se este ú ltimo propôs, de maneira irrefletida, que se substitu ísse o boi pelo carneiro , é porque ele havia “ visto” o ar amedrontado do boi, e n ão tinha “ visto” o carneiro. Ele foi, pessoal-

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testemunha do terror de um: este terror surgiu inopinadamente sob seus olhos, e ele n ão pôde pensar em se proteger dele ; enquanto o destino do outro animal permaneceu para ele apenas como uma id éia . An ó nima , abstrata , e conseqiientemente sem efeito. N ão aconteceu o face-aface da presença — o olhar aberto sobre o terror do outro, e que depois n ão pode se fechar. É por isto que o sacrifício do carneiro n ão poderia perturbar o príncipe; ele o situou de antem ão na ordem das coisas. Ao passo que ver bastou para emocion á-lo, e sua lógica interior ficou por causa disso abalada. Por esta razão, sob a inconseqiiê ncia da sua conduta, da qual o prí ncipe cr ê que deve se envergonhar, manifesta-se de fato aquilo que faz o seu mé rito: o pr íncipe n ão “ supor» u tou ver sofrer” , n ã o pô de assistir com indiferen ça ao destino do outro . mesmo sendo o outro um animal . E esta reação imediata diante do insuport ável bastaria para provar sua inclinação virtuosa. mente,



2. A anedota é contada por Mé ncio, fil ósofo chinês do século IV antes de nossa era (cf. Mencius, I , A, 7)*. Este autor prossegue o episódio fazendo uma generalização: “ O homem de bem , em relação aos animais, se ele os viu vivos, n ão pode suportar vê-los morrer; se escutou seus gritos, n ão pode suportar comer a sua carne” . Uma m á xima que me faz lembrar ( pois , por mais sutil que seja a anedota , ela me pareceu

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As referê ncias ao Mencius são dadas entre parê nteses, com a indica çã o sucessiva dos cap ítulos (de I a VII ) , de sua primeira ou segunda parte (A ou B) e do parágrafo em questã o. São citadas como referê ncias as duas principais tradu ções do Mencius, que datam do fim do século XIX: a de Sé raphin Couvreur em latim e francês, Cathasia , Les Belles Lettres, e a de James Legge em ingl ês, The Chinese classics, Vol . IL Oxford , Clarendon Press ( reedi ção de Dover Publications, Nova York) .

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reveladora) aqueles patos que havíamos levado bem novinhos para o lago , cujas brincadeiras observávamos com prazer, e que nã o pudemos suportar depenar e cozinhar quando um dia um cachorro os matou. Mas em nome de qu ê ? O que é que, ao nos impedir de fazê-lo, introduziu , no seio da experiê ncia , esta demarcação necessá ria — demarcação relativa, afinal de contas , mas que n ão deixa por isto de ser in contest ável (e cuja incid ê ncia , t ão logo seja assinalada, tor na-se crucial ) ? Como nota Mé ncio em seguida , “ o homem de bem estabelece distâ ncia entre o matadouro e a cozinha” (ou seja , os abatedouros devem ser afastados) . Introduzida aqui , a observação (que poderia ser considerada como um preconceito elitista) aprofunda propositadamente a diferença: t ão logo é instaurada a conivê ncia em rela ção a uma existê ncia ( mesmo animal) , desde que se pôde enfrentar o facea-face de sua presen ça ( mesmo que seja moment â nea) , eu n ão poderia permanecer insensível. Aliás , o exemplo, nesse dom í nio, n ão é apenas uma simples ilustra ção. Ele pode servir de pedra de toque: sobre este assunto, t ão debatido na moral , somente a experiê ncia pode dar garantias de modo definitivo , e pode selecionar os argumentos. Seria ainda necessá rio conseguir apreend ê-la em sua radicalidade, e que o fato invocado fosse incontestá vel. É por isso que M é ncio tem o cuidado de construir esta situação como um caso t í pico: qualquer um que vê uma crian ça quase caindo num poço é tomado por um temor violento e se precipita para salvá-la (II , A, 6) . Ora, n ão se faz isto “ para obter as boas graças dos pais da crian ça” , nem “ para atrair os elogios dos vizinhos ou dos amigos” , nem mesmo “ para evitar uma m á reputação” . O que caracteriza este sentimento do insuport ável , diante da infelicidade do outro, é que ele n ão procede de nenhum cálculo, n ão é objeto de nenhuma reflexão, e a reação é espont â nea . Nenhum interesse est á em

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jogo, o gesto feito para socorrer é incontrolável. É por isto que esta situação merece ser erigida como um paradigma. Pois ela revela uma conduta absolutamente desinteressada, na qual o individual é ultrapassado: eis que de repente eu não sou mais senhor de minha iniciativa e de seus fins egoístas; é a pró pria existê ncia, por meu interm é dio, que se insurge em favor do outro. Descobre -se assim ao vivo , de modo instant â neo , aquilo que nenhuma razão poder á contestar. Prova disto é o que Meneio nos conta a respeito dos costumes de outrora (III, A, 5). Antigamente havia pessoas que n ão enterravam seus pais; quando estes morriam, contentavam -se de pegar o corpo e jogar numa fossa. Ora , um dia, passando por ali , elas vêem raposas devorando os cad áveres , e os vermes e moscas se alimentarem deles: logo o suor lhes banha a fronte, só d ão uma olhadela , meio de lado, sem ousar olhar mais ... Este suor que lhes sobe ao rosto “ n ão foi experimentado para os outros verem” , comenta Mé ncio: a reação vinha do mais profundo delas mesmas. Por esta razão , retornam com p ás e cestas e se apressam em cobrir os corpos. A realiza çã o de cuidados funer á rios, conclui Meneio, n ão é apenas uma con ven ção: ela é reveladora de um elo entre uma existê ncia e outra , que nem mesmo a morte pode desfazer. Ou , como nota Mé ncio de modo pudico (II , B, 7) , nós sentimos um contentamento interior inegável pelo fato “ de a terra n ão tocar a pele” daqueles que foram entregues à “ grande transformação natural ” . At é mesmo na morte, n ão conseguimos ficar indiferentes àquilo que ameaça o outro.

3. Tais exemplos remetem a uma universalidade de princípio. “ Para todo homem” existe “ alguma coisa que ele n ão pode suportar que aconteça com os outros” a, deduz Méncio: que este sentimento do insuport á vel seja estendido ao que

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ele suporta (que ocorra aos outros) , então teremos o sentimento de “ humanidade” b (VII , B, 31) . Isto significa que , para todo homem , há alguma coisa que, no seio da infelicidade do outro, n ão poderia deixá-lo indiferente e suscita uma reação. Esta não-indiferença significa que ele n ão conseguiria permanecer tranqiiilo, “ à vontade” , “ em repouso” , diante de tudo o que acontece de mau aos outros (cf. a noção de “ desconforto” 0 j á em Confucio 1) - Ao mesmo tempo , há muitos outros aspectos dos males dos outros aos quais cada um permanece indiferente, até mesmo alguns aos quais n ão se presta a menor atenção. Vista da China, a moralidade portanto não postula nada , não conté m nem mandamento , nem preceito, e não seria mais nada, a não ser esta extensão: a ampliação da rea ção de intolerável a tudo o que não se continua mais a tolerar, em relação à ang ústia humana. Do mesmo modo, para todo homem há alguma coisa “ que ele não faz” ( isto é, que ele n ão aceitaria fazer) : que ele estenda esta consciê ncia do que para ele é inaceitável fazer para aquilo que ele não continua mais a fazer (de repreensível) , eis a “ eqiiidade” . Com efeito, este homem , que não aceitaria “ fazer um buraco” ou “ pular um muro” para roubar seu vizinho, pode contudo muito bem consentir em cortejar seu príncipe à custa da retid ão: mesmo que fosse apenas “ dizendo o que não convém dizer” ou “ calando-se sobre o que conviria que dissesse” . Ora, esta desonestidade é da “ mesma ordem ” que o roubo cometido da maneira mais ostensiva. Em contrapartida, para quem é “ capaz de levar ao extremo a

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Sobre esta filiaçã o de Confucio a Mé ncio , cf. Mou Zongsan , De la spécificité de la philosophie chinoise, Zhongguo zhexue de tezhi. Taipé, Xuesheng shuju , 1963, p. 29. (A respeito do sentido negativo de an, ver por exemplo Lunyu, I , 14 ou XVII, 21 .)

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forma de consciê ncia que o impede de roubar ” , nele a eq ü idade “ é inesgot á vel ” . Essa extensão constitutiva da moralidade realiza-se segundo duas dimensões: em nós mesmos , ela é ampliação para toda a nossa experiência do sentimento do insuport ável vivido ocasionalmente diante da ang ústia do outro (ou daquilo com o que temos cuidado, em relação aos outros ou de tudo com o que ainda n ão temos cuidado a seu respeito, cf. VII , B , 1; ou de nosso sentimento do inaceitável em relação a tudo o que aceitamos fazer de repreensível) ; fora de n ós, esta extensão é a amplia ção em direção aos outros, do mais pr óximo ao mais distante, por simples propagação do bom exemplo que lhes é dado (e , de início, da parte do soberano; cf. I, A, 7). “ Ampliar” , “ estender ” , “ propagar” d, tais sã o as fun ções-chave do Mencius. Pois a moralidade é como um fogo que come ça a queimar, como uma fonte que começa a jorrar (cf. II, A, 6) . É por isto que esta ú nica reação do insuport á vel que o príncipe experimentou um dia ao ver o boi amedrontado sendo arrastado para o sacrifício - desde que ela seja completamente ampliada - bastaria para fazer reinar a paz no mundo.



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II FUNDAR OU COMPARAR

(ou

COMPARAR PARA FUNDAR )

1. Para Mé ncio , e , para al é m deste pensador, para a tradi ção chinesa mais comum , a reação do insuportável (diante da amea ça a um outro ) é o que funda a moral. Ainda assim seria necessá rio compreender bem o que entendemos por fundar, e principalmente distinguir entre o “ princípio” da moralidade e o que lhe serve de “ fundamento” . O princípio da moralidade é a proposição primeira de uma moral , nos diz Schopenhauer, ou seja, a express ão que melhor resume a conduta que é prescrita, sua formulação mais geral da virtude; enquanto seu fundamento é o porquê da virtude que ela recomenda, a razão de sua obrigação. A respeito do princípio, ele reconhece que todos os moralistas estão de acordo (por exemplo, “ n ão prejudique ningué m , ajude cada um segundo seu poder” ) . Mas este princípio , ele logo acrescenta, é apenas a conseq üê ncia de uma razão que se procura ainda, e que somente ela “ constituiria o verdadeiro fundamento da é tica” 1. Pois “ em todos os tempos se viu a moral ser colocada

Le fondement de la morale, trad , de Auguste Burdeau , reed. Le Livre de Poche. Paris, 1991, p. 33.

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em bons e maus serm ões: mas nunca se conseguiu fund á-la” . “ Fundar ” a moral ? Mas esta é precisamente a “ pedra filosofal ” que n ão cessamos de procurar “ h á milhares de anos” ... A quest ão permanece; e n ão é porque ela é menos debatida hoje , pelo menos nesses termos, que nós nos livramos dela (ao contr á rio, ao perder sua rigidez de quest ão escolar, ela se apresenta com mais condições de se infiltrar e minar nossas posições de princípio) . Por esta razão, para dominá-la novamente, e sair desta imprecisã o ideológica , convé m de in ício fixar suas refer ê ncias. Pois, por mais que ela se apresente com um ar de eternidade , esta quest ão n ão é por isto menos fruto de uma história - e esta hist ória é relativamente recente na Europa . Durante toda a é poca clássica , com efeito, a moral foi pensada na dependê ncia da religi ão (e isto acontece mesmo num tratado de moral como o de Malebranche , ao final do século XVII ). Concebida como um mandamento de Deus, ela recebe diretamente dele sua autoridade ( Deus me diz o que devo fazer) ; e, já que é parte integrante da Revelação, n ão exige nenhuma justifica ção particular. Ali ás , nisto , a tradi ção crist ã apenas substitui uma tradição filosófica que vem de nossa Antiguidade, na qual só a metafísica pode fornecer à moral sua base legítima ( assim , no platonismo, com a id éia do Bem , que se confunde com a idéia de Deus). Ao encontrar sua base fora de si mesma, não sendo sen ão um prolongamento da teologia, a moral n ão poderia ser fundada - ela n ão deve sê-lo. Como modesta serva , ela fica dispensada de prestar contas. Esse dogmatismo era por demais pesado para não susseu contr á rio um certo ceticismo que depois como citar n ão cessou de arrastar-se na sombra de nossa tradição , de abalar malignamente as suas certezas (e isto já começa pelo menos com Epicuro) . Acreditais que as regras da moral são

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fundadas na razão e são evidentes por si mesmas ? Mas sua extrema diversidade pelo mundo afora mostra bem que se trata antes de usos bem estabelecidos, a respeito dos quais o costume nos “ adormece” tanto, como diz Montaigne, que acabamos por tomar como “ razão” o que é tão-somente preconceito (cf. Ensaios, I , 23: “ As leis da consciência , das quais dizemos que nascem da natureza , nascem do costume; cada



um , ao venerar internamente as opiniões e costumes aprovados e aceitos em torno de si , n ão consegue se desprender deles sem remorso, nem aplicar-se a eles sem aplausos” ) . Ao desmascarar a evidê ncia engendrada pelo “ costume” e seu poder de desnaturar a realidade, Montaigne lan ça uma nova luz sobre o fr ágil fundamento da moral (“ ... mas, investigando sempre até a sua origem , verifiquei um fundamento tão frágil...” ); o que não deixa de ter como corolá rio o fato de que nosso discurso, desde que se trata de um uso estabelecido , logo pretende “ consolidar ” e “ fundar” qualquer inconveniê ncia . Outro golpe decisivo que atingiu a base da moral: a partir do momento em que não se ousou mais considerar o mundo a n ão ser sob o â ngulo das relações de for ça , a moral balan çou para o lado dos meios, e passou a ter apenas uma fun ção estratégica. Com Maquiavel, como se sabe , a virtù n ão é virtude: às voltas com a “ fortuna” , num mundo cujo curso n ão é transcendido por nada, ela é antes a virtuosidade pessoal que permite ao pr íncipe compensar a instabilidade das situações, e assim controlar a contingê ncia (em vista de impor ao mundo seu desígnio inovador) . Por esta razão, a partir da í, importa mais fazer os outros acreditarem em suas virtudes do que dificultar sua conduta, e a ló gica do parecer se sobrepõe deliberadamente à l ógica do ser. A antiga anco ragem da moral ( metafísico- religiosa) é abandonada sem pudor. Mas , ao perder sua base tradicional , a moral perde ao



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mesmo tempo sua consistê ncia , e se

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transforma logicamente

em imoralismo.



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moral e a religião, como n ão suspeitar de um artifício de qualquer passe de m ágica ? Erigida sobre sua própria base, enrijecida em sua intransigê ncia, ganhando um estatuto de libertadora, esta moralidade de m á rmore n ão seria apenas um novo ídolo, mesmo que fosse um ídolo da razão ? É por isto que a era da “ crítica” e da razão triunfante foi seguida por uma é poca de suspeita. Em nome da histó ria, em nome da vida. Pois, ao descobrir que a moral procede de uma histó ria, somos levados a duvidar de sua necessidade absoluta; ao vermos o quanto ela varia em fun ção dos “ instintos” que ela alternadamente exaltou , n ão podemos mais crer em sua universalidade. Mais vale portanto debru çar-se sobre sua origem do que alimentar a ilusão de poder fund á-la: o projeto de uma metaf ísica da moral é substitu ído por Nietzsche pela aten ção à genealogia; do mesmo modo que ele substitui por uma tipologia , constru ída a partir do con fronto entre os valores, aristocr á ticos ou gregá rios, a abstração do ser razoável. Ora, estes valores nos revelam aquilo que a moral escondeu por longo tempo: que ela mesma é profundamente imoral e contradiz o ideal exibido, pois n ão fez senão apaziguar os instintos de ressentimento e de vingança (dos fracos, que impunham sua tirania aos homens superiores) ; em vez de sustentar o discurso, mesmo ingé nuo, da razão, a moral foi sempre apenas a linguagem cifrada das paixões, ou , antes, da ú nica paixão vital , que é a de dominar. Conseq ü entemente, é in ú til querer inverter a relação de dependê ncia que une tradicionalmente a moral e a metafísica, como Kant nos convidava a fazer. Esta relação j á está invertida , nos diz Nietzsche, desde as origens da metafísica - mas sem que isto fosse alguma vez confessado. As intenções morais pró prias do filósofo (ou antes, imorais: j á que se trata sempre, na verdade, da hierarquização particular de seus instintos) sempre foram o germe, mantido escondido, de entre a



2. Vem daí a urgê ncia de assentar a moral sobre suas próprias bases, ou seja, fundar a moral a partir dela mesma: é a isto que irão dedicar-se os filósofos das Luzes, quando a libertam da tutela da religião e procedem à crítica dos velhos dogmatismos. A moral não ter á mais necessidade do apoio da metafísica apoio tanto mais duvidoso, aliás, quanto as conclusões da metafísica n ão parecem mais concludentes ; mas ela encontra nela mesma seu absoluto, é capaz de atin gir por si mesma o incondicionado. Em vez de depender de uma outra metafísica , ela possuir á a sua própria metafísica (aquela da Fundamentação da metafísica dos costumes ). Pois, desde o momento em que depender de um interesse estranho a ela, em que pretender fundar-se sobre um princí pio exterior (quer seja Deus, a natureza , a ciê ncia , o interesse coletivo...) , a moral deixaria de ser pura, nos lembra Kant, ela deixaria de ser moral; mas ela també m não se reduz a um fato da experiência; ela é um “ fato da razão” , e participa de seu a priori. E por isto que ela possui de pleno direito as caracter ísticas da fun ção legislativa da razão - ao mesmo tem po a universalidade e a necessidade (as do imperativo categó rico). Ao ponto que os papé is tradicionais se invertem e que a relação de depend ê ncia é por isto transformada: em vez de a metafísica e a religião servirem de base para a moral , é a moral que, certa doravante de seu pró prio fundamento (e a ú nica a sê-lo) , poder á servir de base para nossas convicções metafísicas, at é mesmo para nossas convicções religiosas, e justificá-las. Sem d úvida , essa montagem era por demais convincente, a reviravolta simples demais para que n ã o tivéssemos motivo de desconfiar. Nesta troca de papéis , t ão cô moda,



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onde nasceram suas afirmações “ mais transcendentes” . Escondendo seu jogo, sob ares de uma modéstia servil, a moral sempre foi a grande inspiradora; as justificações metafísiforam cas que eram apresentadas como “ fundadoras” inventadas depois.





3. Nosso pensamento moderno foi constru ído a partir dessa reviravolta. Ato I: “ fundar” a moral. O seu princípio é ostensivamente afirmado no século XVIII , quando a moral se liberta da tutela metafísico- religiosa. Seus principais mestres mas sáo Rousseau e Kant, e o empreendimento culmina ( disserta . sua ção cf com Schopenhauer minado é é m tamb Sobre o fundamento da moral). Ato II: destruir a moral. O grito libertador é dado por Nietzsche, após ter cometido com Schopenhauer a morte do pai, e encontra eco em todos os mestres da suspeita. Contribuem para este procedimento de desmistificação, cada um à sua maneira , Marx e Freud . O primeiro denunciando o caráter ao mesmo tempo oculto e servil da moral , sempre nas m ãos da classe dirigente e servindo somente, do mesmo modo que a religião, à consolidação da ordem estabelecida; o segundo, ao remeter a moralidade aos mecanismos ps íquicos dos quais ela deriva: a consciê ncia moral n ão é sen ão o resultado da constituição do superego, que ele mesmo só é devido à introjeção, durante nossa infâ ncia , da imagem idealizada de nossos pais, ou de seus substitutos. Por isso, hoje em dia, a moral nos parece irremediavelmente suspeita (em vez de sermos nós mesmos suspeitos de não atingir seu ideal, é o pr ó prio ideal, doravante, que nos parece suspeito). Pois, em lugar de ir de par com a liberdade , como pretendia Kant , a moral é opressiva ( quer se trate da tirania exercida sobre o “ rebanho” , como em Nietzsche ; ou , ao contr á rio , da domina çã o exercida sobre as massas pela classe exploradora, como em



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Marx; ou , ainda , da frustra çã o imposta , por meio do superego, pela edificação da civilização, como em Freud; do mesmo modo, em vez de ser desinteressada, como proclama, a moral é hipócrita e mente sobre o Bem que preconiza (para nos fazer renunciar à vontade de potê ncia, à revolução, às pulsões do id) . A partir daí, o que eu acreditava ser o cará ter natural da moral não é devido senão a um disfarce ao mesmo tempo só rdido e dissimulado; o que eu considerava como um sentimento interior (e que , como tal , me parecia “ inato” ) deve-se tão-somente a um processo de interiorização: o do ressentimento experimentado contra os fortes e que , ao se inverter, gera a m á consciê ncia e o “ ideal ascé tico” ; ou dos interesses da classe dominante , a ponto de me fazer aspirar à minha própria submissão; ou ainda do papel do Pai , que , ao representar a fun çã o de Deus , me mant é m no infantilismo... Tendo partido em busca de um fundamento autó nomo da moral , eis que n ão encontramos mais , em seu lugar, senão a alienação.

4. Em sua “ Contribuição a uma histó ria natural da moral ” (em Para além de bem e maly §186) , Nietzsche convida os moralistas a mudar de atitude . Em vez de pretender presunçosamente “ fundar” a moral (begriinden), como eles n ão cessaram de fazer desde sempre , seria melhor se dedicarem ao que é “ provisoriamente a ú nica tarefa legítima neste dom ínio” , tarefa modesta , mas a ú nica que é construtiva, ou seja , a de se interrogar sobre as diversas espé cies de moralidade, para em seguida classificá-las e compar á-las (vergleichen ). Pois aquilo que os filósofos denominaram “ fundar a moral ” , e que exigiram de si mesmos sob este nome, não era, se observarmos bem , a n ão ser “ uma forma erudita da cren ça ingé nua na moral reinante ” , portanto , somente “ um estado de fato no interior de uma dada moralidade” , isto é , em ú ltima aná-

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lise , “ uma maneira de negar que esta moral pudesse ser considerada como um problema” . Eles tiveram de permanecer tanto tempo numa ilus ão t ão grosseira somente pelo fato de que lhes faltava , para julgar os fatos morais, uma grande variedade de fatos morais , de uma suficientemente grande variedade de exemplos, e n ão procediam sempre senão “ segundo uma seleção arbitr á ria ou de um objeto fortuito” — “ segundo a moral de seu meio, de seu clima ou de sua regi ão, de sua classe social , de sua Igreja, de sua é poca” . E, “ do fato de estarem mal informados e mesmo pouco curiosos em relação ao que concernia a outras naçõ es, outros tempos , é pocas passadas, nao discerniam nem mesmo os verdadeiros problemas da moral ” . Pois estes, conclui Nietzsche, consistem sempre “ em estabelecer uma comparaçã o entre as diversas

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morais

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Para escapar do impasse de uma fundação impossível , o melhor meio não seria, finalmente, olhar para outros lugares ? A fim de evitar a armadilha na qual ca íram todos os moralistas, n ão haveria outro recurso a n ão ser partir em busca, como um naturalista , das mais distantes amostras. Esta j á era , como vimos, a via tomada por Montaigne: ao assinalar a diversidade dos “ costumes” pelo mundo afora , ele conseguiu tirar a reflexão moral de seu sono dogm á tico. Sem a pedra de toque da comparação com efeito, a universalidade com a qual o moralista trata sempre corre o risco de ser fact ícia (dominado como ele est á pela armadilha de sua língua, ou de sua ideologia) ; o que n ão significa substituir a reflexão moral pela antropologia ( Kant definiu muito bem seus respectivos dom ínios) , mas, descobrindo novos horizontes , faz ê- la sair de seu terreno movedi ço : eis portanto justificada , em primeiro lugar, a aproximação com Mé ncio. Pois, do nosso ponto de vista , a China apresenta , logo de entrada , a maior dist â ncia. Porque ela não pertence ao mes-

FUNDAR OU COMPARAR

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mo quadro lingiiístico que o nosso (o da grande fam ília indo-européia) , porque n ão conheceu a Revelação religiosa nem fez da interroga ção sobre o Ser o objeto de sua especulação , porque, enfim , esta civilização desenvolveu-se na maior parte do tempo fora de qualquer relação conosco, ela representa o caso mais radical de uma alteridade possível . Seu caso, em suma , é ideal. “ Moisés ou a China” , já dizia Pascal , como se esta pudesse ser uma alternativa teó rica ( Moisés, o fundador do monoteísmo, em face da amplid ão de um ou tro mundo ) . A “ China” cumprir á pois aqui uma fun ção estratégica: se escolhi expor as idé ias de Meneio, o primeiro a ter dado uma formulação explícita ao pensamento moral chinês , é para oferecer à reflexão moral do Ocidente moderno , confinada até aqui em sua pró pria histó ria, a ocasi ão de uma confronta ção . Sabe-se das vantagens metodológicas que a comparao em geral apresenta . Ao se olharem reciprocamente, as çã duas posições consideradas se deixam interpretar não somente no que elas dizem , até mesmo no que erigem em sistema , mas també m no que elas não dizem , e que contudo as motiva — que escolhem silenciar, ou que tomam como evid ê ncia , ou que n ã o est ã o em condi çõ es de justificar. Pelo seu entrecruzamento, e ao reagir uma em rela ção a outra , esclarecem n ão somente o que pensam , mas igualmente a partir de que pensam - seus parti pris impl ícitos e todos os seus silê ncios*. Mas a este benefício geral se acrescenta um outro, e

* Isto é particularmente importante para o Mencius, que, se nao se beneficia desta iluminação exterior, pode parecer desinteressante (e freqiientemente ele foi julgado pelos sin ólogos como tal ) , tão simples ele parece e t ã o pouco motivo para interrogação ele oferece, como também pelo fato de ter influenciado a tradi ção chinesa ( pelo menos a partir

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que, neste aspecto, é decisivo. Pois aqui o problema é comum , e é bem aquele - “ universal ” ? do fundamento da moral. Por isto, a menor tomada de posição do Mencius ecoa diretamente nas nossas; e, seja que ela se distinga das nossas posições ou as recubra, não deixa de a elas remeter. E por isso que , aqui, a compara ção se torna diálogo. Tendo como participantes privilegiados os pensadores das Luzes de Rousseau a Kant - que, para nós, puseram de modo mais deliberado o problema (do mesmo modo que eu , inspiran do-me nas conversações culturais do século XVIII desde Malebranche, “ entre um filósofo cristão e um filósofo chi> nes , mas tentando jogar o melhor possível o jogo do diálogo , portanto da troca, ou seja, tentando dar toda oportunidade à diferença) . “ Kant , o grande chinês de Kõ nigsberg” , dizia brincan do Nietzsche. Mas talvez ele tenha imaginado isto de modo mais justo do que ele pró prio pensava... Deixemos pois de querer fundar a moral , disse ele també m dirigindo-se a Schopenhauer e a todos os que o precederam , e ponhamo- nos modestamente a comparar. Eu diria, respondendo , e tomando-o ao pé da letra: façamos com que dialoguem juntas estas duas concepções da moral , a chinesa e a européia, e vejamos se sua comparação pode nos ajudar a melhor fund á-la.



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1. É possível estabelecer um diálogo direto (direto, ou seja, sem que tenhamos de proceder, como habitualmente, por meio de interpretações mediadoras) , porque nossos interlocutores partem da mesma experi ê ncia: nossa perturba ção diante do que ameaça o outro. A reação do insuport ável invocada por Mé ncio coincide perfeitamente, do ponto de vista da situa ção evocada , com o que nós temos concebido tradicionalmente como “ piedade” . Ora, Rousseau volta sempre a este sentimento para mostrar a moralidade do homem: é este sentimento que “ nos leva , sem reflexão, ao auxílio de quem vemos sofrer ” , e esta virtude é “ tanto mais universal ” quanto justamente precede “ o uso de qualquer reflexão” (D.O., p. 43)*. Ao caso modelo menciano da criança quase

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São indicadas, entre as principais obras europeias citadas, as seguintes, pela abreviação: Rousseau, D.O. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité par mi les hommes. Œ uvres Politiques. Paris, Garnier, 1989 . , E. Émile, ou de l’éducation. Paris, Garnier, 1961. Kant, M.C. Fondements de la métaphysique des mœ urs. Trad , de V. Del bos. Paris, Delagrave, 1967. R. P. Critique de la raison pratique. Trad de J . Gibelin. Paris,

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do século XI de nossa era) e ter tendido a se fundir em sua ideologia: considerado a partir do interior da tradição chinesa, o Mencius é por demais assimilado para ser redescoberto , e é a partir do exterior que ele torna-se problem á tico.

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Vrin, 1965.

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n ô meno primeiro na moral” , está na origem tanto dos “ deveres no sentido estrito” quanto dos “ deveres da virtude” , ao mesmo tempo da “ justiça” e da “ caridade” . A maneira como é concebida a manifestação desse sentimento na nossa conduta permite assim que levemos a aproxima ção at é o fim : ao se “ generalizar” e ao “ estender-se a todo o gê nero humano” , como o diz Rousseau, esta emo ção primeira abre a via para a eqiiidade. Do lado chinês, vimos que a “ humanidade” e a “ eqiiidade” (ren e yic ) são pensadas conjuntamente, e toda a tradição ulterior n ão deixou de pensar sua complementaridade. Do mesmo modo, na opinião de Rousseau , é necessá rio, “ para impedir a piedade de degenerar em fraqueza” , que só nos entreguemos a ela “ na medida em que estiver de acordo com a justiça” (E., p. 303) ; pois convé m “ ter piedade com a nossa espécie mais do que com nosso próximo” . Ao mudar de escala , o sentimento origin ário não fica comprometido: sua incitação nada perdeu de sua intensidade, mas torna-se objeto de uma regula ção ( incitação- regulação: na China, as duas noções correspondem uma à outra ) ; e, conseguindo assim estender-se , ele torna-se o

caindo num poço, corresponde - com um pathos a mais (este pathos que n ão deixou de alimentar nosso sentimento trágico desde a Antiguidade , e que a China nã o conheceu ) o episódio da fá bula das “ Abelhas” , citado por Rousseau como exemplo: “A paté tica imagem de um homem aprisionado que percebe, do lado de fora, um animal feroz arrancando uma criança dos braços de sua m ãe” . Assim como o pensador chinês, Rousseau assinala que aquele que nesta ocasião é sensível à piedade n ão tem “ nenhum interesse pessoal ” no acontecimento. Em Rousseau , esta inclinação chega at é à solicitude atormentada diante da morte do outro; este traço é assinalado e depois estendido aos animais: “ Um animal não passa sem inquietude perto de um animal morto de sua espécie; h á mesmo alguns que lhe d ão um tipo de sepultura” . Car á ter imediato da reação, universalidade do problema e desinteresse: trata-se, é certo, de ambos os lados, da mesma experiê ncia origin á ria. Essa experiê ncia é origin á ria sob dois pontos de vista: porque ela é em nós a experiê ncia mais radical, como o atesta sua manifesta ção espont â nea ; e també m porque esta experiê ncia est á na origem de nossa moralidade , e todo o resto da vida moral n ão é senão a sua conseq íiê ncia . Ela é o seu ponto de partida , ao mesmo tempo decisivo e suficiente . Ela é sua fonte inesgotável. Para M é ncio, a reação do insuport ável est á na base do sentimento de “ humanidade” (o ren confuciano) , que, em si mesmo, resume a moralidade. Do mesmo modo, Rousseau critica o cé tico da moral por nã o ter visto que “ desta ú nica qualidade ” da piedade “ decorrem todas as virtudes sociais que ele quer contestar nos homens” : a “ generosidade” , a “ clem ê ncia” , a “ humanidade ” nada mais são a n ão ser a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espé cie humana em geral ” . Schopenhauer, seguindo os passos de Rousseau , mostrar á, por sua vez, que a piedade, o “ fe-



fundamento da sociedade. 2. Assim , toda diferença de época, de cultura , de meio, parece ter desaparecido. A convergê ncia entre as duas imagens é tal , que, tornando-se binocular, a visão adquire um novo relevo. Pois não podemos duvidar que a experiê ncia designada, de uma parte e de outra, como estando na origem da moralidade é a mesma. Com o mesmo tipo de exemplo , seguindo as mesmas referê ncias. O “ homem” , enfim , teria sido encontrado; bastou desnud á-lo e mostrá-lo. Aliás, era isto que Rousseau proclamava que tinha feito: ao abandonar os sofismas dos filósofos e todas as outras demonstrações in úteis, ele conseguiu distinguir o homem natural do homem

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social; e, sob a camuflagem da civilização, encontrou o homem “ verdadeiro” . Ele o “ descobriu” , como dir á Kant um dia. Como espantar-se então que ele se aproxime t ão naturalmente da visão dos antigos chineses - os quais, contudo, n ão conhecia ? Entretanto, essa originalidade da descoberta, do lado europeu , n ão deixa de ser inquietante, e tanta evidê ncia acaba se transformando em interrogação. Se a “ piedade” é certamente esta experiê ncia inegável da moralidade, por que tivemos de esperar Rousseau para que ela nos fosse revelada ? ( E por que o rousseau ísmo , depois, n ão nos convenceu mais ?) Com efeito, quando relemos as passagens de Rousseau dedicadas à piedade, sobretudo no Emílio, ficamos surpresos com sua ambigüidade. E, para começar, em que consiste a piedade ? Em “ colocar-se no lugar daquele que sofre” , responde Rousseau (“ j á que n ão é em nós, mas nele que sofremos” , E., p. 21) . Mas, então, o que é que nos permite nos “ transportarmos” para o lugar do outro e nos “ identificar mos” com ele ? Este poder, nos responde Rousseau , seria o de nossa “ imaginação” . Conseq üência ( mas que é quase uma contradição em relação ao que fora afirmado no in ício): este sentimento de piedade, que Rousseau nos descrevia como espont â neo no coração do homem , na verdade exige a mediação de nossa imaginação ( ninguém se torna “ sensível ” à piedade “ se sua imaginação n ão é animada” , p. 261); ora , este aquecimento da imaginação não é natural. Prova disto é o fato de que corremos o risco de n ão mais podermos nos emocionar quando o espet áculo da misé ria , tornando-se ordin á rio , n ão permite mais que nossa imaginação alce voo (pois, “ aquilo que vemos demais n ão imaginamos mais” , p. 273; ser á pois necessá rio poupar Em ílio, para que ele permaneça imaginativo, dos espetáculos por muito tempo penosos ) ; ou , ainda , como o fogo de nossa imaginação só se

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acende sob o efeito dos sentidos, isto é, após a puberdade, a criança é logicamente inacessível à piedade (e quid da mulher, já que, sob este plano, ela “ parece” , “ sob muitos aspectos” , permanecer criança ? cf. p. 245) . Afirmara-se que a piedade era desinteressada (e é isto que a tornava digna de ser um sentimento moral, ou, antes, de ser o ú nico sentimento moral verdadeiro). Ora , acrescenta Rousseau , que chega mesmo a fazer da piedade a segunda “ m áxima” de seu Emílioy “ nunca lamentamos no outro a não ser os males dos quais não nos cremos imunes” ( p. 263). Ou seja, eu só experimento a piedade em relação a outro em função daquilo que considero que pode me acontecer: a piedade, que acreditávamos “ altruísta” , está na dependência do eu que a experimenta. Ela se transforma pois logicamente em egoísmo. O próprio Rousseau deixa entender isto ao explicar a “ doç ura” pró pria da piedade: “ A piedade é doce , porque, ao nos colocarmos no lugar daquele que sofre, sentimos contudo o prazer de n ão sofrer como ele ” ( p. 259-60) ; em outras palavras, ao vermos o outro sofrer, “ nos isentamos dos males que ele sofre” . N ão seria exagerado concluir que eu sinto um certo “ prazer ” (sádico ? ) em vê-lo sofrer: j á que isto me faz medir a diferença entre as situações e o quanto sou mais feliz do que ele (cf. p. 270). Ent ão Rousseau , por mais que tente girar em todos os sentidos a sua justificação da piedade, não deixará por isto de permanecer prisioneiro desta lógica do egoísmo: numa nota do Emílio (p. 278) , ele observa que, se, na piedade, eu “ me identifico com meu semelhante” e “ sinto- me, por assim dizer, nele ” , é de fato “ para não sofrer que não quero que ele sofra” ; em outras palavras, se me interesso por ele, é somente “ por amor de mim mesmo” .

Espantosa piedade! N ão se vê mais nela , apreendida com tantas ambig ü idades, o sentimento origin á rio da moral .

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A piedade, dizia La Rochefoucauld, seu grande cr ítico no século precedente, não é senão “ uma h á bil previsão dos males que podem nos acontecer” : nós fazemos o bem a nós mesmos, antecipadamente, ao socorrer os outros, para engajá-los a mais tarde nos dar o que precisarmos. Ora, ao mesmo tem po em que evita seguir esta direção, Rousseau, o grande defensor da piedade, n ão consegue se livrar desta via. O rigor de menos (o do pessimismo que se fecha confortavelmente em seu sistema) , a veemê ncia de mais (a da “ bela alma” ) . Mesmo que tente apresentar em seguida todos os argumentos possíveis, Rousseau n ão far á sen ão girar em círculos, sem descobrir um novo ponto de vista . Pois, a partir do momento em que concebeu o homem sobre a base do amor de siy a piedade natural não poderia mais ser sen ão sua variação. Ou melhor, ela pode existir a título de acréscimo, colocada sobre a base do eu (ver notadamente como ela é introduzida num desvio de uma frase no Discurso sobre a origem da desigualdade: “ Há, aliás, um outro princípio..., p. 43) ; mas a piedade n ão poderia colocar em quest ão a perspectiva adotada ( Rousseau , aliás, contribuiu mais para çonfirm á-la) : a do “ individualismo , ” , no sentido mais estrito do termo, segundo o qual o homem concebe a existê ncia a partir de sua individualidade. Rousseau portanto não descobriu o homem “ verdadeiro” , como o havia proclamado, ou o mé rito de cuja descoberta lhe pôde ser atribuído, mas descobriu o homem sensível , ou , antes, que goza de sensibilidade. Portanto, ele soube descrever para os outros o homem sensível, mas apenas em relação a si: soube nos encantar ao evocar o quanto a piedade é “ doce” , mas esta piedade, apontada como o sentimento origin á rio da humanidade, permanece infundada.

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3. Por essa razão, ao pretender “ fundar ” a moral sobre a piedade, Schopenhauer toma as suas precau ções. A primeira é associar o mais rigorosamente possível a moral ao altru ísmo, para mantê-la pura (assim , fazer o bem para se aperfeiçoar a si mesmo, ou para merecer o para íso, é ainda egoísmo) . A segunda é refutar de imediato a tese segundo a qual a piedade seja devida a um transporte de nossa imaginação (como 1 se pudéssemos crer sentir em nós as dores dos outros ) . Pois, declara Schopenhauer, “ n ão cessamos de ver claramente que o paciente é ele, e não nós” . Mas, uma vez tomadas estas precau ções, o problema posto pela piedade é mais desconcertante ainda: pois “ como pode acontecer que um sofrimento que n ão é meuy que não me concerne, torne-se contudo para mim um motivo” , um motivo que “ age diretamente” sobre mim , “ como se fosse meu próprio sofrimento” ( p. 182) ? O problema levantado pela piedade remete pois ao de nossa “ identificação” com o outro: j á que a piedade supõe que toda diferença entre mim e o outro “ seja destru ída, pelo menos at é um certo ponto” (que , “ até um certo ponto” , o “ não eu” torne-se “ eu” , p. 156) . Ora , não posso entretanto “ entrar na pele do outro” (se sofro “ nele” , meus “ nervos” continuam em mim ... , p. 183) . Ú nica sa ída possível: não repousando mais sobre a faculdade da imaginação, a piedade se apoiaria sobre uma relação de conhecimento: “ O ú nico meio ao qual eu posso recorrer é pois utilizar o conhecimento que tenho deste outro, a representação que me faço em minha mente , a fim de me identificar com ele” e poder tratar, em minha conduta, a diferença entre mim e o outro, “ como se ela n ão existisse” . Mas não escapamos com isto do problema

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Ibid. , p. 160.

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com o qual Rousseau se defrontava. Pois como explicar que a piedade seja “ espontâ nea” e Schopenhauer insiste tam bém sobre o cará ter imediato do fenô meno -, ao mesmo tempo em que ela exige a mediação de uma “ representação” e procede de “ toda esta sé rie de pensamentos” ? É por isto que Schopenhauer não tem outra solu ção, para sair do im passe , sen ão concluir que se trata de um “ misté rio” . A piedade é um fato inexplicável pela Razão e cuja experiê ncia também não poderia nos “ mostrar suas causas” . Estaria aí precisamente “ o grande misté rio da moral ” - ao mesmo tem po o fato primitivo da moral e seu “ marco limite ” . De fato, com a aceitação do mistério, Schopenhauer possui sim uma solução: já que não posso explicar como, na piedade, a barreira entre o eu e o n ão eu fica momentaneamente suprimida , basta que eu suponha que tal barreira é factícia, e o eu , uma ilusão; já que é o individualismo que me impede de compreender a piedade , embora ela constitua a experiê ncia mais autê ntica, basta que me desfaça do princípio da individuação. Ao sentir a piedade , faço a experiê ncia de que o outro, de fato, n ão é “ outro” e que ele e eu somos apenas um ; é por isto que posso experimentar estes sofrimentos tão “ diretamente” quanto os meus. Para terminar com as ambigiiidades nascidas da psicologia, a solução será pois metafísica; foi necessá rio apenas retomar o tradicional desdobramento entre aparência e realidade: o eu, o indivíduo, apreendidos segundo os quadros a priori da percepção ( do espa ço e do tempo, cf. Kant) , n ão s ã o sen ão a aparê ncia das coisas; a reaíidade do mundo que nos revela a experiê ncia da piedade é sua profunda unidade. “ Um e tudo” ( um é tudo) , segundo o antigo ad ágio. Ao torcer o pensamento de Kant para acomod á-lo aos Vedas ( pois sabemos que o fenô meno kantiano não é aparê ncia) , Schopenhauer não se contenta em fazer da piedade a experiê ncia fun-

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dadora da moral ; ele faz dela també m a via de acesso à verdade.





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4. Vê-se assim o paradoxo: Schopenhauer pretende que não se contentar á em “ afirmar” (arbitrariamente) que a piedade é o “ verdadeiro” motivo “ que se encontra no fundo de toda nossa ação moralmente boa” , mas poder á “ provar” que este motivo é o ú nico possível ( p. 152) ; ora, esta prova , em definitivo, não é senão o reconhecimento de um “ misté rio” . Ao mesmo tempo em que julga a piedade como um fato inegável da consciê ncia humana, e o mais comum ( n ão dependendo de “ certas condições , tais como as noções , religiões, dogmas, mitos, educação” : é um produto imediato da natureza” , “ ela aparece em todos os países e em todos os tempos” , p. 162) , Schopenhauer contudo não encontra nenhum predecessor “ entre os filósofos da Escola” (exceto Rousseau , mas Rousseau n ão era um “ filho da natureza” ? , p. 204) . Existe sim uma evidência da piedade (como a experiê ncia mais direta , mais sensível ) , mas esta n ão conduz sen ão a aporias; e , para resolver as dificuldades relativas ao eu , não é preciso nada menos do que negar este eu: em vez de desbloquear a tranca do individualismo, ela é arrancada; e se reconstró i , in extremis, por meio de empréstimos feitos a torto e a direito , a mais idealista metafísica. A solu ção é radical , mas custosa (custosa pela ren ú n cia que implica tanto em relação à experiê ncia quanto à lógica). Ora , eu gostaria de mostrar que , diferentemente de nossa piedade, embora se trate da mesma experi ê ncia, a concepção menciana da reação diante do insuportá vel , tal como eu a evocava no in ício, escapa destas dificuldades. De um lado , mais do que qualquer outro chinês da Antiguidade, Mé ncio n ão tem a idé ia de negar a existê ncia do indivíduo , e ignora qualquer desdobramento metafísico do mundo; de



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outro lado,

ele n ão se deixa embaraçar pelo cará ter ao mesmo tempo espont â neo e desinteressado da “ piedade” : simples-

mente

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porque concebe aquilo que entendemos por piedade

como reação (diante do insuport ável) . A individualidade , tal como ele a entende, é indissociável do fenômeno da interação: o indivíduo existe sim , mas, em vez de ser percebido na perspectiva isoladora de um eu sujeito, é considerado de imediato como parte interessada de uma relação*. A partir do momento em que, ao tomarmos distâ ncia, nos afastamos de nossa visão individualista , não mais nos espantamos. Pois , longe de usar mal o instrumental teó rico, ou de entrar em contradi ção com ele, como ocorre conosco em relação à piedade, a concepção de reação diante do insuport ável integra-se melhor na visão chinesa da realidade. Poder-se-ia mesmo dizer que ela é a sua melhor ilustração (e mais tarde ser á freqiientemente sobre a experiê ncia menciana da reação diante do insuportável, enquanto incitação positiva, que nos apoiaremos para dar conta da marcha do mundo) . Partindo de uma concepção bipolar da realidade (em vez de considerar o mundo a partir de uma inst â ncia ú nica e isolada a alma ou Deus) , os chineses concebem o real como um processo de atualiza ção que decorre apenas do efeito de interação que está em jogo ( n ão somente entre o Cé u e a Terra, o yin e o jyang, como está formalizado no antigo Livro das mutações, Zhouyi ou Yijing, mas igualmente



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O importante, a este respeito , é que o aspecto relacional seja primeiro - como é o caso freqiientemente na China . A título de exemplo: para dar a no ção de “ coisa” ( para n ós uma noção individualista ) , os chineses dizem “ leste-oeste” ; para a no çã o de paisagem ( para n ós uma noção unit á ria ) , eles dizem “ alto e baixo” , “ montanhas-águas” .

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polos que são o fora e o dentro — o que vejo e o que sinto). O mundo , como fluxo, é uma oscilação recíproca e contínua; o que significa que seu continuum n ão é tecido sen ão de “ incita ções” que não cessam de se produzir entre os diferentes aspectos e se “ comunicam” pelo real ao se propagar (cf. a antiga noção de gan-tongf, é pró prio de uma incitação ser conduzida a se ampliar e, ao fazê-lo , colocar em movimento) . Ora , a reação diante do insuport ável é interpretada entre os

precisamente desta maneira: ela é , na interação que se estabelece entre o eu e o outro ( a partir da diferença entre as situações) , a incitação que , provindo do outro e se difundindo sobre minha afetividade , logo suscita minha reação. A emoção que a caracteriza é pois uma e- moção, cujo poder de abalar, no meu interior, escapa ao meu interesse tanto quan to à minha reflexão. É deste fenô meno que vem a iniciativa e n ão do eu como inst ância isolada , esta é a razão pela qual, antes mesmo de poder me conter, sinto- me precipitado para fora de mim ( por exemplo, para salvar uma crian ça) . A concep ção chinesa, conseq úentemente, não é nem individualista (concebendo o mundo a partir do eu) , nem nega a individualidade ( j á que toda atualização é feita por meio de individuações) ; sua perspectiva é transindividual (a existê ncia , tomada em seu conjunto, sempre interage e “ comunica” no interior dela mesma) . A “ piedade” não é pois sen ão a manifesta ção privilegiada deste car á ter transindividual e transemocional , pró prio da existê ncia. Por isso, o que causava dificuldades do lado dos europeus não o faz mais do lado dos chineses: como o eu individual n ão é concebido como um substrato-sujeito (e portanto a priori autó nomo) , n ão preciso mais me perguntar como “ sair ” de mim ( tal como a piedade me impulsiona incidentemente a fazê-lo) ; e j á que o outro não é posto como objeto diante da consciê ncia, não preciso mais me perguntar como posso “ identificar-





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me ” com eie (por intermedio de uma faculdade - a imaginação ou o conhecimento) . São eliminadas as contradições da psicologia ( mediato-imediato; em mim -nele) , não é mais necessá rio interrogar se o fenô meno da piedade é produzido em mim ou nele (lembremo- nos das expressões confusas de nossos filósofos; cf. Rousseau , “ sinto- me, por assim dizer, nele” ; cf. Schopenhauer, toda barreira entre mim e o outro é destru ída “ pelo menos até um certo ponto” ) , já que o fenômeno se produz em realidade entre nós (e é este entre-dois que, por seu campo de interatividade, é essencial) . O que revela a “ piedade” imediatamente é o fato de que nós nos comunicamos, no fundo de nós, pela nossa existê ncia somos ambos ligados nela. E é em nome desta existê ncia comum , mas ameaçada nele, que eu reajo. Este cará ter transindividual da existência explicaria melhor o fen ô meno da piedade do que nossa noção moderna de intersubjetividade (inventada , como se sabe, para nã o ter de supor o outro como objeto “ ser com” , Mitsein, na esperan ça de um “ n ós-sujeito” ) ; pois posso sentir a piedade pelos animais (lembremo- nos do pr í ncipe e do boi , e, de seu lado, Schopenhauer insiste, ele tam bé m , sobre este aspecto) ; ora, n ão posso invocar uma in tersubjetividade real entre eles e mim . O que nos une, em contrapartida , é nossa participação comum na exist ê ncia , este fluxo da vida , que nos atravessa e nos faz vibrar. Ao conceber a piedade sob o â ngulo de um processo (de interação ) , enquanto um fenô meno transindividuai (de incita ção- propaga ção) , o instrumental teó rico chin ês no-la torna , creio eu , mais compreensível. O que n ão quer dizer que a concepção chinesa da rea ção diante do insuport ável “ resolva” as dificuldades enfrentadas por nossa concepção ( j á que ela n ão opera com o mesmo instrumental) - mas ela as dissolve. A piedade não se torna apenas mais compreensível ( de um ponto de vista teórico) , mas també m sai limpa - no





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plano ideológico. Pois nossa concepção da piedade permaneceu prisioneira de uma certa visão da “ misé ria” humana (cf. Rousseau: “ são nossas misé rias comuns que levam nossos corações ao sentimento de humanidade” , E., p. 259) ; ela est á ligada a uma certa celebração nihilista da dor (cf. Schopenhauer: “ o que é positivo é a dor ” , p. 159). Ê por isso que Nietzsche quis nos liberar da “ religião da piedade” , cuja pregação, afirma ele, fala sempre em “ desprezo de si” (Gaia ciência., §222) ; e é sua suspeita em relação à fraqueza que ela idealiza ( por meio do ressentimento) que o leva a rejeitar qualquer moral altruísta, ( “ uma perspectiva nova, imensa” , abrir-se-á a todo aquele que começar a colocar em questão o valor da piedade, Genealogia da moral, Prefácio, §6) . Mas a reação diante do insuportável é imune a toda m á consciê ncia assim como a todo miserabilismo; nela não est á subentendido nenhum mal original , nem alimenta nenhuma complacê ncia em rela çã o à dor. Ela n ão é uma fraqueza. Mas , ao surgir diante de algo que ameaça o outro, esta reação diante do insuport á vel nos lembra imediatamente nossa comunidade de existê ncia , ela reativa entre nós este laço que é a vida.





IV IND ÍCIOS DE UMA CONSCI ÊNCIA MORAL

1. De início, Kant foi seduzido pelas ideias de Rousseau. Na sua opinião, Rousseau é o Newton da natureza humana: Newton foi o primeiro entre todos que viu a ordem e a regularidade na natureza física; Rousseau foi també m o primeiro entre todos que descobriu , sob a diversidade nascida das convenções, nossa verdadeira natureza1. Dos psicólogos in gleses (Shaftesbury, Hutcheson, Home...) , Kant toma emprestada a idéia de que o sentimento está na origem da vida moral; com Rousseau , ele compartilha a confiança na bon dade primitiva do homem . De acordo com o otimismo de seu tempo (principalmente o dos anos 1762-5) , a moralidade lhe parece ser não o produto de uma coação exterior, exercendo-se contra nossas inclinações, mas a expressão de uma tend ê ncia espontâ nea; ela é o “ pró prio desabrochar de nossa natureza ’ 2. Ora , Kant n ão pode sustentar esta posi ção por muito tempo. Ao voltar-se para a piedade, nossa primeira inclina-

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ci. Victor Deibos, Essai sur la formation de la philosophie pratique de Kant. Paris, Felix Alcan, 1903, p. 117. Cf. Ernst Cassirer, “ Kant et Rousseau” , reimpresso em Rousseau, Kant, Goethe. Paris, Belin , 1991, p. 42.

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çao moral , ele é conduzido a suspeitar dela: esta “ tend ê ncia do coração” que “ se converte em um sentimento caloroso de compaixão” , por mais que seja “ bela e am ável” , n ão deixa por isto de ser um “ impulso cego” , e lhe falta a universalidade dos princípios (cf. suas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime 3) . O homem virtuoso pode ser aquele que “ sempre chora” diante do mal do outro aquele cujo coração mergulharia na “ melancolia” ? Nas ambigiiidades ligadas à piedade, Kant encontra sobretudo a falta de pureza que caracteriza qualquer inclinação sensível: mesmo se esta nos conduziu a agir conforme ao dever, e mesmo se não percebermos em nós nenhum motivo de “ vaidade ou interesse , nem por isto fica provado que tenhamos agido por dever e que nossa conduta tenha um valor moral verdadeiro. Para preservar a dignidade da moral , Kant é conduzido a tirar dela tudo aquilo que remeteria à experiê ncia , e, portanto, a con ceber a moralidade independentemente da natureza humana (só ser á levada em consideração nossa natureza de “ ser racional ” ). J á que a piedade , como toda inclinação humana, corre sempre o risco de se misturar a estimulantes sensíveis (de ser marcada pelo “ caro eu” ) , fundar a moral para Kant significa isolá-la, eliminar todo traço de antropologia ou de teologia, para não mais guardar sen ão o dever ser da lei. N ão somente a piedade é turva nela mesma, Kant vem a concluir ( R. P., p. 133) , mas, a partir do momento em que precede a consideração do dever, ela “ importuna as pessoas bem-intencionadas” ; e nós desejamos nos “ livrar” dela. Coloca-se então uma questão, a da motivação moral. Do lado da razão , a moral está doravante definida; mas, do



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Observations sur le sentiment du beau et du sublime. Trad , de R. Kempf. Paris, Vrin , p. 25-6.

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lado humano , n ão se vê mais o que nos induz a agir moralmente. Pois , ao cortar assim a moral da experi ê ncia, ao isolála tão bem , ao querê-la pura a priori - referindo-se apenas ao ser racional , corre-se , imediatamente, o risco inverso: o de n ão ter mais nenhum laço com ela. Ou , para falar mais positivamente: como a lei moral pode ser um móvel> ou seja, como ela pode determinar imediatamente a nossa vontade? E claro que o imperativo da moral n ão deve ser interessado ( pois sen ão ele não é mais moral) - mas , então, o que é que faz com que eu possa ter interesse nela? O m é rito de Kant está no fato de ter querido definir o mais rigorosamente possível a exigência moral (em seu car á ter puro, a priori), e é por isto que ele permanecerá como o interlocutor privilegiado deste di á logo. Mas , ao libertar a moral de qualquer inclinação sensível, ele ficou despreparado para integrá-la à experiê ncia (de sorte que ela possa imprimir à moral a sua necessidade) ; e, ao concebê-la independentemente da natureza humana, n ão pôde mais explicar como ela poderia concernir à nossa humanidade (de um modo que n ão fosse por sua incidência sobre a sensibilidade: nosso sentimento de “ respeito” em relação à lei) . Por mais que ele mostre , ao final da Metafísica dos costumes, como compreender que este m óvel da moralidade permanece para n ós incompreensível ( j á que este m óvel n ão é sen ão uma simples id é ia, a ideia do dever, que, como tal, não tem nada de sensível, é l ógico que sua causalidade nos escape) , isto n ão impede que, legítimo no que diz respeito à razão especulativa, este ponto de vista cr ítico seja muito menos legítimo em rela ção à nossa conduta. N ão basta dizer simplesmente que “ é um fato” (da razão) que temos interesse na lei moral; e é exorbitante invocar, para justificá-lo, um outro eu , que seria o eu verdadeiro. Aliás, corno precedentemente em Rousseau, uma nota , ao fim de uma argumentação (M .C., p. 204, e, antes, na p. 123) , bas-



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para mostrar, por seu acréscimo, a incapacidade de esclarecer esta dificuldade; sua sobrecarga trai uma fraqueza, ela n ão conseguiria esconder sua falha. Ao fundar a moral sobre o sentimento (a piedade) , ou seja , ao conceb ê-la como uma inclina ção da natureza , Rousseau dava conta de sua capacidade para mobilizar a vontade (como reação espontâ nea) ; mas ele n ão a podia tirar da perspectiva do amor de si e fazer do sentimento que a funda um sentimento verdadeiramente altru ísta; por isso , n ão conseguia desembaraçar a moral da ambig ü idade de suas motivações, e assim garantir a sua moralidade . Inversamente, ao vir fundar a moral sobre a razão (a lei moral) , ou seja, ao considerá-la como uma obrigação a priori, Kant a livra logo de in ício de tudo o que pudesse prejudicar a sua moralidade; mas fracassa , em contrapartida , em mostrar como ela pode nos mobilizar. De um lado , a moral permanecia “ misturada” ; de outro, ela é pura, mas n ão nos afeta mais. Ao mesmo tempo que seu conte údo, ela perdeu seu motor. Ao partir da inclinação, Rousseau não conseguia provar o seu desinteresse; ao partir do dever, Kant não consegue mais justificar seu interesse. Desde Schopenhauer, essa crítica é dirigida ao kantismo. Para que a intenção seja boa, nenhum objeto ( maté ria) deve intervir para determinar a vontade; mas, então, esta forma pura (a forma universal da lei) n ão é mais suficiente para determin á-la. O que nos leva a nos interrogar sobre a própria origem desta lei. Pois de onde vem o fato de que tenha sido poss ível que “ despertasse ” no esp írito humano esta “ idé ia de se perguntar se existe uma lei moral ” ?4 (Em outras ta

4

Le fondement de la morale, op. cit., p. 72 e ss.

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palavras, de onde o homem tirou “ de repente esta idéia de se pô r em sua busca” ?) J á que ela não se deve à nossa natureza, ela também n ão se revela em nossa experiê ncia . Certamente Kant pegou esta id é ia em outro lugar e este outro lugar não é sem d ú vida outro senão o velho fundo religioso do qual contudo ele pretendia estar livre. Sob a forma do imperativo categó rico , Kant apenas laicizou o que tradicionalmente era o mandamento de Deus — a antiga lei mosaica (o Decá logo) . Para conceber a lei moral, conclui Schopenhauer, Kant precisou voltar a ser um “ teólogo” . Por isto , pode-se reconhecer em Kant um duplo m é rito: (1 ) o de ter arruinado definitivamente a antiga teologia especulativa ( pela cr ítica da razão pura , e portanto de ter podido colocar o problema do fundamento da moral) ; (2) de ter conseguido definir claramente a moralidade (pelo crit é rio do altru ísmo, e portanto de tê-la liberado da antiga preocupação com a felicidade). Nem por isto Schopenhauer deixa de procurar um outro fundamento para sua “ metaf ísica dos costumes : para evitar a armadilha da teologia de uns assim como do racionalismo de outros (que reconduz à teologia) , ele retorna ao ú nico fundamento possível da moral que a torne espont ânea. Ora , este fundamento n ão pode ser outro sen ão a “ piedade” . Retorno a Rousseau .



2. O dever ou a piedade ? A alternativa parece definitivamenat é mesmo insuper ável. Entre os polos , erigidos te posta face a face, do “ sentimento” e da “ razão” , o pensamento europeu oscila - ou , antes, gira em círculos. Os argumentos est ão ajustados de modo t ão definitivo, de uma parte e de outra, que n ão se vê mais sa ída, e o debate cai num atoleiro. Deve-se procurar o fundamento da moral na obrigação da razão ou na inclinação de nossa natureza, sob o modo da necessidade incondicionada ou de uma tendência espontâ nea ?



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Ao invocar o absoluto da lei, corre-se sempre o risco de não ter sabido cortar sua dependê ncia em relação a Deus (ou da função do Pai) . Mas, ao apoiar-se sobre o testemunho da experiencia, corre-se outro risco — o de nunca se estar seguro de sua moralidade , de não ter nunca conseguido purificar seu sentimento moral de qualquer ambigü idade. E esta d úvida me atinge em conseqiiê ncia: estava eu mesmo justificado, ao iniciar esta reflexão, apoiando- me sobre casos concretos (a crian ça prestes a cair num poço, o boi amedrontado) ? Já que a reflexão está bloqueada, não se deixa mais ser trabalhada, e não se pode esperar mais nada dela (a n ão ser, precisamente depois de Schopenhauer, com Nietzsche, a derrubada pura e simples da moral) , não se poderá esperar ultrapassar a aporia sen ão mudando a configura ção do debate - portanto, repensando cada um dos termos. Ainda assim , seria preciso , para isto, poder beneficiar-se de um outro olhar, encontrar um novo ponto de partida . O que nos con vida a reatar o diálogo: não para procurar na China a solução para estas contradições, mas para desatolar a questão pondo-a de novo simplesmente em movimento. Após ter evocado o caso da crian ça prestes a cair no poço, Mé ncio prossegue (II, A, 6): “ De acordo com isto, pode-se considerar que aquele cuja consci ê ncia n ão é tomada de temor e de pena (em face do que amea ça o outro) n ão é um homem” . E, do mesmo modo , “ não é um homem” aquele cuja consciê ncia n ã o for capaz de “ vergonha” e de “ reprova çã o” (de vergonha , diante do mal que faz e de reprovação diante do mal cometido por outro); ou cuja consciência seria incapaz de “ renunciar” para “ ceder” seu lugar aos outros (em fun ção da hierarquia natural e social) , ou ainda aquele cuja consciê ncia seria incapaz de “ aprovar ” ou de “ desaprovar” (ao julgar que isto é bem ou mal) . Da í decorrem as quatro fun ções t í picas da consciê ncia moral (comparáveis, nos diz M é ncio

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por imagem , aos “ quatro membros” de nosso corpo): a primeira forma de consciê ncia assinalada é o “ termo , em nós, da virtude da humanidade; a segunda, da virtude da eq ü idade; a terceira , de nossa capacidade de respeitar as prioridades é ticas (cf. VI, A, 6); a quarta, enfim , de nossa aptid ão para julgar os valores. O mais interessante, nessa argumentação, n ão me parece ser tanto o invent á rio das formas de moralidade que ele propõe (ainda que a ordem de classificação seja significativa: na base está nossa reaçã o diante do insuport ável, em seu termo nossa propensão a julgar os valores, cf. també m IV, A, 27) , mas o modo pelo qual estas formas de consciê ncia manifestam em nós a moralidade. Pois Mé ncio n ão diz que elas constituem enquanto tais a moralidade, mas que em nós elas são o seu “ termo” . Este “ termo” , nos diz o comentador ( Zhu Xi) , é como a ponta de um fio que, permanecendo no interior, n ão nos aparece, e que só esta ponta apareceria do lado de fora e seria visível. O que nos leva a considerar, seguindo de mais perto esta imagem , que estas inclina ções que se manifestam espontaneamente em nós como disposições interiores ou “ sentimentos” g (cf. VI , A, 6 ) , tais como a piedade e a vergonha , não são sen ão a ponta pela qual aparece nossa moralidade interior (e da qual n ão poder íamos ter consciê ncia sem estas reações repentinas experimentadas diante do perigo que ameaça o outro ou do mal cometido) . Em outras palavras, estas reações espont â neas devem ser consideradas como indícios de nossa consciê ncia moral; sã o elas que a revelam , e as manifestam: quando se produz nossa reação de vergonha ou de piedade, nossa moralidade aflora de repente no plano da experiê ncia; experimentada ent ão ao vivo , esta é momentaneamente inegável e podemos atingir - como seguindo um fio seu fundo escondido. Ou seja , na ocasião destas reações , nossa consciê ncia moral sai de sua latê ncia e



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de sua “ lógica” implícita e se torna para nós imediatamente percept ível ( a logica de suas quatro fun ções típicas, enquanto // h , cf. VI , A, 7) . Ao mesmo tempo, esta ponta pela qual aparece a moralidade n ão é sen ão uma ponta uma simples isca, aquilo que as nossas reaçõ es de vergonha ou de piedade deixam assim entrever n ão senão é o ponto de partida de uma potencialidade , que , como vimos, deve se desenvolver. Elas portanto n ão são virtudes, mas virtualidades.



3. Da ponta que aparece , que surge diante do olhar, podemos retroceder até a fonte escondida: à rea ção de vergonha ou de piedade, que se manifesta repentinamente em n ós, corresponde seu enraizamento numa consciê ncia “ originá ria” ou “ fundadora” (ben xin ) 1. Esta noçã o de consciência é uma das principais inovações teó ricas do Méncio, e confirma perfeitamente a concepção rousseau ísta (cf. Rousseau , critican do o ceticismo de Montaigne: “ H á, no fundo das almas, um princípio inato de justiça e de virtude, [...] e é a este princípio que dou o nome de consciê ncia” , E., p. 352). Mas n ão creio que a posi ção de Mé ncio caia por isto sob a crítica kantiana . A piedade é “ cega” , dizia Kant. Mé ncio n ão o teria negado , ele que conduz o rei a medir sua inconseqiiê ncia, quando o rei pedira que se trocasse o boi amedrontado pelo carneiro; mas sob esta inconseqiiê ncia da rea çã o , Mé ncio n ã o deixa de perceber uma exigê ncia inegável . “ Um exame mais aprofundado” , nos diz Kant numa nota , sublinhando a inaptid ão da piedade para elevar os princípios à universalidade, mostraria que o sentimento de piedade, “ por mais sensível que seja” , “ n ão atinge, por si só, a dignidade da virtude” , já que “ uma crian ça que sofre” ou uma “ jovem mulher infeliz” nos d ão tristeza, “ enquanto recebemos com sanguefrio a not ícia de uma grande batalha na qual se pode supor

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que muitos inocentes pereceram em dores atrozes” 5. “ Mais de um pr íncipe desviou os olhos, cheio de tristeza diante de uma só pessoa infeliz, enquanto declarava a guerra por motivos f ú teis.” Ora , é exatamente o que Mé ncio diz em seguida ao seu pr í ncipe: vós n ão suportais ver um boi amedrontado ser conduzido ao sacrifício, mas n ão hesitais em “ levantar os exé rcitos e colocar em perigo vossos soldados e vossos oficiais” (I , A, 7) . O que significa n ão que sua reação diante do boi amedrontado n ão seja ind ício de uma virtude efetiva, mas que ele não soube estender a exigê ncia ao conjunto de sua conduta. Com seu cará ter puramente ocasional, a reação de piedade n ão é senão o ponto de partida , ou a “ ponta” saliente, da virtude da humanidade; e é esta que, quando for completamente ampliada , atingirá a universalidade. Kant tem razão de dizer que “ n ão se poderia prestar pior serviço” à moralidade do que fazê-la “ derivar de exem plos” (M .C., p. 115) : porque, limitados como são à experiê ncia, e sempre na dependê ncia do sensível, nada prova que sejam dignos de servir como “ exemplos originais” , e , como tais, de serem erigidos como modelos. Mas, como vimos, os casos mencianos da crian ça prestes a cair no poço ou do boi apavorado sendo arrastado para o sacrifício n ão devem ser tomados como exempla de moralidade (que ordenam serem imitados) . Eles só valem enquanto ind ícios e n ão são sen ão a sua “ ponta” , aflorando ao estado da experiê ncia e do sensível , de uma “ l ógica” que, quanto a ela , escapa da experiê ncia e não é limitada pelo sensível a lógica de nossa consciê ncia ( “ origin á ria” ou “ fundadora” ) . Neste caso, não se considera que a situação evocada me forneça o crité rio que permita jul-



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Observations sur le sentiment du beau et du sublime, op. cit., p. 26.

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gar a moralidade, nem o conceito que me permita defini-la; mas, por meio da reação vivida, percebo uma indicaçã o inegável: o fato n ão é narrado para me servir de norma de moralidade (ou de regra de conduta), mas ele é a garantia de que esta exigê ncia existe em mim . E por isto que, embora a reação de vergonha ou de piedade possa ser vivida por nós como uma inclinação espontâ nea , ela n ão se reduz por isto a uma inclina ção da sensibilidade (e n ão se deixa situar naquilo que Kant entende por “ patol ógico” : estranha por princípio a toda moralidade , perturbando-a mesmo fatalmente, j á que determina a vontade em vista do prazer, e n ã o da lei). Portanto, ela escapa à oposi ção tradicional entre a “ razão” e o “ sentimento” . Pois estas reações espontâ neas n ã o valem a t ítulo de m óveis empiricamente determinados (e conseqiientemente associados ao in teresse pessoal ) , mas valem como a marca, em n ós , de uma obrigação que, enquanto laço original com outro, está acima de toda experiê ncia (experiê ncia que se deixa apreender ao vivo por estas reações particulares) . Por meio dos sentimentos de vergonha e de piedade , é meu enraizamento na comunidade das existê ncias que reage em mim e me abala at é mesmo apesar de mim mesmo. Do mesmo modo , era legítimo que Kant , pela recusa de qualquer condicionamento empí rico da moral, se opusesse decididamente a fazer a moralidade depender da natureza humana; ora, veremos que a natureza humana, tal como é concebida por Mé ncio , e que serve para fundar a moral , n ão é uma natureza “ antropológica” , mas enra íza-se no incondicionado. É necessá rio, antes, assinalar uma diferen ça: a injunção moral , tanto em Rousseau quanto em Kant , seja a do sentimento ou do dever, manifesta-se como uma voz interior. “ Consciê ncia , consciê ncia! Instinto divino, voz imortal e celeste!” , diz Rousseau (E., p. 354). “ Voz celeste” , diz Kant ,

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da razão” “ faz tremer até mesmo o mais ousado celerado” ( R. P., p. 49, 92) . De resto, esta expressão de uma voz da consciê ncia é tão comum , que nos parece ser evidente , e nos faz esquecer a met áfora. Ora , ela est á completamente ausente no Mencius, assim como . no conjunto da tradi ção chinesa . Isto nos d á a ocasião de remontar, para alé m das opções filosóficas que opõem Kant a Rousseau, ao quadro cultural comum que marcou nossa percepção da moral ( j á que é somente a partir de fora , a partir da diferen ça , que podemos nos tornar sensíveis a este condicionamento) . Pois, sob o motivo da voz que se dirige a n ós , os antropólogos n ão tiveram dificuldade em reconhecer a antiga imagem , notadamente bíblica, do pastor e de seu rebanho. Na China, o Cé u n ão “ fala” , diferentemente de Deus, e a pró pria consciê ncia não tem “ voz” . Mas ela se manifesta diretamente a n ós numa reação espont â nea , tal como aquela vivida diante da crian ça prestes a cair num poço. Rea ção “ inata” , poder-se-ia dizer. Pois não podemos suspeitar que ela seja o produto de qualquer interiorização: nem do ressentimento dos fracos (como em Nietzsche) , nem de um interesse de classe (como em Marx) , nem da fun ção do Pai (como em Freud ) . Ela é ideologicamente clara — livre de qualquer alienação. Por isto pode servir de pedra de toque para a moral. Ela basta para nos assegurar de nossa consciê ncia moral , mas só nos mostra a sua ponta. Permite que a detectemos , resta- nos aprofund á-la. Pois , ao abrir a experiê ncia sobre o que se passa , ela liga nosso afeto particular ao que constitui a lógica do conjunto da realidade. Em vez de opor um ao outro, faz com que se comuniquem os dois polos entre si; por isto, a partir do “ sentimento” suscitado, podemos remontar à “ razão” que o justifica, da emoção manifestada à nossa natureza impl ícita. esta “ voz

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1. Essa disjunção, pelo menos, é geral . Se sua exigê ncia n ão se encontra em nós, a moral n ã o é mais justificada, a n ão ser no plano social e serve somente para a regula ção (dos desejos e das ambições). Em vez de se erigir como finalidade da pessoa humana, ela torna-se apenas um meio de limitar o seu ego ísmo. Pois as duas devem ser opostas: seja que a moral valha por sua utilidade, mas neste caso permanece relativa; seja ela um ideal incondicionado. Fundar a moral é pois lhe procurar um enraizamento que seja anterior à experiê ncia e a torne independente em rela ção a esta experiê ncia: a inclinação de nossa natureza (em Rousseau) , o a priori da razão pr á tica (em Kant) . Mé ncio só pode se colocar de seu lado; ele foi o primeiro na China que definiu a categoria da qualidade de fundo, ou do inato: “Aquilo do qual somos capazes sem que tenhamos aprendido é uma capacidade original ” (ou “ de fundo” ) ; do mesmo modo, “ o que se sabe sem refletir é um « saber original ” (ou “ de fundo” , cf. VII, A, 15) . Do mesmo modo que a crian ça tem afeição por seus pais, este saber e esta aptid ão originais est ã o difundidos por toda a humanidade e não comportam exceção. H á, em todo homem , uma disposição para a moralidade - que é revelada por sua rea ção de vergonha ou piedade; e é dela que decorre, para retomar a expressão de Kant, nossa “ vocação moral infinita” .

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É por isso que Mencio faz da bondade naturai do homem o ponto forte de seu ensinamento (cf. Ill , A, 1) . Ora , se este ponto se impôs na seqiiê ncia (sobretudo a partir dos Songs, no século XI de nossa era) , e até mesmo tendeu a se confundir com a ideologia chinesa , ele não deixa por isto de corresponder a uma afirmação própria do Mencius, e a sua posição , de in ício, é isolada. Pois, no pró prio seio da tradição confuciana, parece que no começo se considerou a natureza humana “ ao mesmo tempo boa e m á ” 1 ] (segundo uma ou outra destas acepções: seja de que h á boas e m ás inclinações no homem, seja de que h á homens que são bons, e outros que n ão o são) . E, alé m desta tradição, Meneio també m devia refutar os que ( tais como Yang Zhu , nos meados do século IV antes de nossa era) assimilavam a “ natureza” do homem ao processo de sua “ vida” (de uma maneira, aliás, mais geral , nota A.C. Graham 2 , a “ natureza” , no pensamento chin ês , é concebida mais sob o â ngulo da maturação , como desenvolvimento de potencialidades, do que em função de qualidades fixadas desde o in ício) . “ A natureza ( humana) é a vida” 3 k, tal é o novo slogan libertador deste fim de Antiguidade (cf. Mencius, VI, A, 3) ; ela é , em primeiro lugar, seus apetites fundamentais, “ o alimento e o sexo” 1 (ibid., 4). Neste per íodo de intensas transformações, surge assim um naturalismo que ousa destruir as conseq üê ncias da

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Tese atribuída a Shi Shi; cf. Wang Chong, Cap. “ Ben xing ” . O capítulo bibliográ fico do Hanshu parece atestar a anterioridade desta posição sobre a de Meneio. A.C. Graham , “ The background of the Mencian theory of human nature” , TsingHua Journal of Chinese Studies, 6 / 1 , 2 ( 1967) , p. 215 e ss. Até o fim da Antiguidade, como nota Graham , ocorre freqiientemente que nao se distinga graficamente os dois termos.

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decomposição das antigas estruturas feudais e quer tirar partido disto. J á que nossa natureza se confunde com a capacidade de estar vivos, nossa principal preocupação deve ser, aos olhos destes individualistas, “ alimentar em nós a vida” ; e , para isto , n ão deixar que ela seja perturbada por nada que venha do exterior ( principalmente as coações e ameaças da vida p ú blica) , a de recusar sacrificá-la a qualquer coisa que seja (em primeiro lugar, aos interesses políticos). Tanto é precioso respeitar o curso da vida, poupar seus recursos, preservar a sa ú de. J á que ela é o ú nico valor autê ntico, nosso ú nico cuidado deve ser o de viver a vida o “ mais completamente” possívelm, e portanto até seu termo e sem preju ízo , satisfazendo os desejos vitais pelo regime mais adaptado. Concepção radical demais para não abalar na base as antigas adesões: se “ alimentar a vida” corresponde à vocação de nossa “ natureza” , por que dar preferê ncia à moralidade ? Ou ainda (o ponto de vista pró prio de Gaozi) , já que ela se confunde com o processo vital , nossa natureza é moralmente neutra, nem boa, nem m á , e sem dire ção prévia 4: toda orienta ção moral n ão poderia vir a não ser de fora , e lhe ser imposta. Na época de Mé ncio, nesse fim do século IV antes de nossa era , a quest ã o da natureza humana torna-se ent ã o objeto de debate, e este é mesmo o primeiro grande debate filosófico da tradição chinesa . Ou , mais exatamente, é por meio deste debate que o pensamento chinês se organiza pela primeira vez como filosofia . Pois, eis, enfim , que teses são confrontadas, que posições são argumentadas , que as idéias do “ verdadeiro” e de “ falso” aparecem 11 (cf. VI , A, 6) . Como vimos, existem aqueles que afirmam que a natureza humana 4

Cf. o Cap. 26, “ Jie” , do Guanzi, que parece muito próximo das de Gaozi.

teses

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“ n ão é boa nem m á ” , que ela é portanto indiferente à moralidade. H á os que afirmam que ela “ pode ser boa” , assim como “ pode n ão ser boa” , e que tudo depende do ambiente: sob um bom pr íncipe, o povo tem apreço pelo bem , enquan to, sob um mau príncipe , ele ama a desordem. H á enfim os que dizem que seja ela boa, seja ela m á, sempre se viu gente que n ão vale nada sob um bom soberano, do mesmo modo que, sob o pior tirano, h á homens de bem . Sobre esta quest ão da natureza humana , a reflexã o é sistematicamente constru ída , as posições se erigem umas contra as outras, e todos os casos são considerados. Ao ponto, talvez, de tornar-se um debate de escola. Mé ncio se defende da acusação de amar a “ disputa” filosófica (cf. Ill, B, 9) , mas també m n ão pode deixar de refutar : pois, doravante, os homens tomaram gosto pelas razões, a discreta incitação do Mestre não basta mais, e as escolas se entregam sem fim à contrové rsia . Sob o impacto da pol ê mica , abandonada às argú cias, a Via dos antigos Sá bios fica ameaçada: torna-se urgente fundar a moralidade.

2. Mé ncio, porque sabe que a sabedoria acaba por ser ocultada sob o jogo dos argumentos polêmicos, porque deseja tamb ém preservar o valor indicativo de sua palavra , abrindo-se para uma reflexão sem fim, que caracteriza o “ propósito sutil ” dos antigos sá bios para refutar seus adversá rios, escolhe agir de modo indireto 5 (cf. VI, A, 1) . É por isto que se contenta em retomar imagens apresentadas por seu interlocutor e examin á-las. A natureza humana , lhe diz um , “ é como o vime ” , a eq ü idade é como uma “ cesta” feita de vime:

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Cf. sobre a estrat égia obl íqua que é usada neste debate nosso precedente ensaio , Le détour et l'accès, stratégies du sens en Chine, en Grèce. Grasset , 1995 , Cap. XI , p. 306.

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“ Obter a natureza

humana a partir da moralidade é como partir do vime para obter uma cesta” . Em outras palavras, a natureza humana é um material bruto (o da capacidade de estar vivo ) , e a moralidade, a partir dela, é o fruto de um trabalho a ela acrescentado. Confrontado a esta imagem , Meneio prefere, em vez de repeli-la, explorar a sua ambig ü idade: a confecçáo da cesta se faz conforme à natureza do vime ou a contraria ? Uma vez colocada esta alternativa, é fácil mostrar a qual conseqiiência negativa seríamos levados pela segunda solução: se violentamos o vime para obter dele a cesta , igualmente violentaremos o homem para obter a moralidade e isto conduz a fazer com que ele a deteste. Diante da tese da indiferença da natureza humana em relação à moral , o raciocínio impl ícito é que, qualquer que seja o trabalho acrescentado (e Mé ncio é o primeiro a reconhecer a importâ ncia dos esforços neste assunto) , este apenas desenvolve predisposi ções: a natureza humana é inclinada à moralidade assim como o vime se presta a ser tran çado. Outra imagem proposta (ibid., §2): a natureza humana , diz o interlocutor de Meneio, é como uma água que gira em turbilh ão: se abrimos uma brecha a leste, ela escapa pelo leste; se abrimos uma brecha a oeste, ela escapa pelo oeste; “ a natureza humana é indiferente ao bem ou ao n ão- bem , assim como a água é indiferente ao leste ou ao oeste” . Novamente, Meneio procura encontrar por detrás da comparação a lógica de uma inclinação: se a água é efetivamente indiferente ao leste e ao oeste, ela não o é em rela ção ao alto e ao baixo; a natureza do homem tende para o bem , assim como a á gua tende para o baixo. E certo que, batendo nela, pode-se fazêla espirrar para cima, e, barrando-lhe a passagem , retê-la no alto, mas, neste caso, for çamos sua natureza . O mesmo acon-



tece com a natureza

humana: se o homem vem a n ão se con-

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duzir bem , é sob o efeito de uma press ão exterior, e não de uma inclina ção natural. Tentemos agora tornar mais precisa, do ponto de vista da noção, a oposição que est á em jogo. Em primeiro lugar, é sob o â ngulo da generalidade que posso apreender minha natureza (assim , pelo fato de estar vivo) ou sob o â ngulo de sua diferença específica (para o homem , subentende Mé ncio, de possuir uma consciê ncia moral; cf. §3) ? Se o interlocutor de M é ncio pode afirmar que o branco da pena é igual ao branco da neve, e que este é igual ao branco do jade, pode ele pretender do mesmo modo que a natureza do cão é a mesma do boi, e esta é igual à do homem ? A quest ão se torna mais precisa a propósito da virtude da eqiiidade (§4). Esta é exterior ao homem , sustenta o interlocutor de Mé ncio, j á que seu crité rio se encontra fora de mim : do mesmo modo que é porque uma coisa é branca que eu a chamo branca , em fun çã o de uma brancura que é exterior a mim , assim també m é porque algué m é idoso que eu o trato (com respeito) como uma pessoa idosa . Mas, responde Mé ncio, se podemos dizer que um homem é branco do mesmo modo que um cavalo é branco, pode-se considerar que um homem é idoso do mesmo modo que um cavalo é idoso ? E, al é m disto, ser á a idade da pessoa que faz a “ eqiiidade” ou o fato de que eu a trato (convenientemente) como uma pessoa idosa ? Certamente, este respeito pode diferir em fun ção de situa ções (se, normalmente , eu respeito mais meu irm ão mais velho que qualquer outro um pouco mais velho do que ele , em contrapartida, é este outro que eu honro prioritariamen te, quando sirvo bebida); mas isto n ão prova que o respeito n ão venha do “ exterior” : no inverno , tomo bebidas quentes, no ver ão, frias, mas sou sempre eu que bebo... Conclusã o do debate (§6): as virtudes cujas reações morais me fazem ver a

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sua ponta, não são “ fundidas” a partir de fora, eu as possuo em mim mesmo , elas são “ inatas” 0. Vê-se que essa discussão a respeito da natureza humana, de um ponto a outro, só flui a partir de analogias6. Fazem falta instrumentos lógicos que ter íamos direito de esperar, principalmente as noções de gê nero e de espécie, de essê ncia e atributo, de sujeito e objeto: o que quer dizer finalmente Mé ncio, ao opor assim o “ dentro” e o “ fora” , é que, se o respeito devido à idade corresponde a crité rios objetivos ( n ão somente a idade da pessoa , mas també m a circunst â n cia em quest ão) , um tal respeito não se deve menos a um juízo (sobre o dever ser) do que a um investimento (“ a efetivação de meu respeito” p, como diz Mé ncio de modo muito impreciso) , que são ambos subjetivos. O que designa aqui confusamente a noção de “ interior” exige pois ser concebido a partir de nossas categorias do mó bil , no sentido kantiano, e da vontade 7. Em suma , na dificuldade em que se encontra o pensamento chinês para identificar o fen ô meno da motivação pessoal8, encontramos, em contrapartida, a sua facilidade para pensar o car á ter transindividual da existê ncia: vi-

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7

8

Sobre o procedimento analógico neste cap ítulo , cf. D.C. Lau , “ On Mencius’ use of the method of analogy in argument ” , Asia Major, n .s. , 10 (1963) ; e també m I .A. Richards, Mencius on the mind, Londres, Kegan Paul , 1932 p. 43 e ss.; Chad Hansen , A daoist theory of Chinese thought, Oxford University Press, 1992 , p. 188 e ss. Prova disto é a maneira pela qual Xu Fuguan explica este debate em termos de “ subjetividade” e de “ aspiração” (yuqiu) em sua Histoire de la théorie chinoise de la nature humaine, Zhongguo renxinglun shi. Taipé, Shangwu, 1969, p. 1969, p. 192 e ss. Ver a ambig ü idade do termo yue para significar a motivação em VI , A, §4 (4) ; tom á-lo no sentido de shuo, “ explicar ” como o fazem Lau e Graham , me parece erró neo.

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mos que , uma vez que nos engajamos na perspectiva do eusujeito, é difícil pensar como posso “ sair” de mim (como a rea ção de piedade me faz sair); no sentido inverso, desde que concebo o real sob o â ngulo de um processo de interação (que torna a reação da piedade mais inteligível) , torna-se difícil aprofundar este mundo à parte que é a consciência. As duas ó ticas, a chinesa e a europeia, iluminam cada uma um aspecto diferente. O interesse ent ão, n ão é tanto forçá-las a convergir, para chegar a n ão sei qual sí ntese “ humanista” ( unanimista) , mas o de aproveitar sua diferença de perspectiva e de instrumental , em vista de ampliar nossas chances

de inteligibilidade. N ão tendo definido a categoria de um eu-sujeito, não dispondo també m de nenhum crité rio ontoteológico da natureza humana, Meneio n ão tinha condi ções de estabelecer de imediato a universalidade da consciência moral. E por isto que ele continua a proceder por analogia (§7): do mesmo modo que há uma semelhan ça de gosto entre os homens (ou de audição, ou de visão) , comunidade que lhes é própria e que nos foi revelada pelo primeiro grande . cozinheiro, assim també m h á uma semelhança entre eles no que concerne à consciê ncia moral , e são os primeiro sá bios que no-la revelaram . Levada até este está gio - mas Mé ncio foi logicamente conduzido a ele porque n ão possui outro apoio a não ser o ponto de vista do naturalista -, a analogia pode nos espantar: os princípios morais e a eq ü idade que deles derivam agradam à minha consciência , diz Mé ncio, assim como a carne dos animais alimentados com folhas ou gr ãos “ agrada ao meu paladar” . Do mesmo modo que, se me pedem para fazer uma sand á lia , mesmo sem ter visto o pé em quest ão , eu n ão faria um cesto, assim també m estou autorizado a pensar que o Sá bio e eu “ somos da mesma categoria” . Nossas consciê ncias se assemelham como se assemelham nossos

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pés... No pensamento chinês, a natureza humana n ão é definida por um crité rio absoluto dado de antem ão, e a consciê ncia moral n ão se apoia sobre nenhuma “ alma” , como entidade. E por isto que era tanto mais importante para Mé ncio revelar a consciê ncia moral a partir da reação de vergonha e fiedade, depois definir a natureza humana apenas sobre a }ase da moralidade.

3. Contudo, nesse caso, Mé ncio era auxiliado por uma im portante tradi ção. Se é o primeiro a afirmar a bondade natural do homem , em relação aos pensadores de seu tempo, a idéia de uma positividade inerente ao grande processo do mundo, do qual o homem é parte interessada, lhe servia de plano de fundo. Durante todo o ú ltimo milé nio antes de nossa era, no qual o pensamento chinês conhece um grande desenvolvimento, esta idéia n ão cessou de ser refletida e amadurecida. No século IV antes de nossa era, a concepção de Mé ncio é o seu fruto. É verdade que, quando ela aparece muitos séculos an tes , a noção de “ via do cé u” é de in ício tomada num sentido religioso. O “ Cé u” est á ainda próximo de um deus pessoal, semelhante ao “ Senhor das alturas” , e o mandamento que é o seu é concebido como ordem emitida por um soberanoq. Mas, em vez de se tornar, como aconteceu entre nós, objeto de uma reflexão teológica, esta noção de via do Cé u , deixan do-se progressivamente despersonalizar, acaba por evocar o fator absoluto, de “ engendramento-transformação” , cuja influê ncia n ão cessa de atravessar a materialidade e de renovar a vidar (assim como o fluxo do curso dos astros, das estações) . Portanto, em vez de aprofundar-se como consciê ncia, o Cé u dos Chineses é percebido sob a ó tica da regulação, como um princípio de harmoniza ção cont í nua: é porque não se desvia jamais que o curso do Cé u nunca é interrompi-

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do nem se esgota, e que não cessa de inovar; por esta razão, acoplado à Terra, que doravante lhe serve de parceira, rege o funcionamento bipolar - o do yin e do yang (o Cé u tendo a iniciativa, e a Terra atualizando-a) - cuja interação continua a fazer advirem as exist ê ncias e a promover a realidade9. Vê-se assim a qual vertente o pensamento chinês deve sua originalidade (em rela ção à logica desenvolvida pela tradição européia) : a partir das cosmologias primitivas, assim como das primeiras formas de consciê ncia religiosa, que, tanto aqui como l á , estavam associadas ao surgimento das civilizações, ele não se orientou num sentido onto-teológico ( procurando extrair o Ser do devir ou colocar Deus como criador ou primeiro motor) , mas desenvolveu a idéia funcional que estava contida no pensamento cosmològico antigo, e n ão cessou de refinar sua coerê ncia (para o que contribui principalmente o antigo Livro das mutações, Zhouyi ou Yijing). O que n ão quer dizer, conseqiientemente, que ele tenha permanecido cosmològico (o termo tem entre nós uma conotação de um infantilismo do espí rito, j á que remete a um est á gio pr é- metafísico ou pré-filosó fico do pensamento) , mas que n ão deixou de aprofundar o pensamento do devir por formar a partir disto a idé ia de um processo regulado. É sobre a base desta idéia que ele concebeu o absoluto: n ã o desviando nunca do seu curso, e por isto sempre engendrando e promovendo a realidade, o Cé u dos chineses é ao mesmo tempo o Fundo do real e a fonte do bem . Mas como o homem pode se relacionar com ele ? Conf úcio , a este respeito, faz o papel de um Sócrates: em vez de

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Sobre esta mutação essencial no pensamento chin ês arcaico ( pré-confuciano) , ver sobretudo Mou Zongsan, De la spécificité de la philosophie chinoise, op. cit., p. 19 e ss.

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especular sobre a marcha do mundo, reflete sobre sua própria conduta . Nas conversas com seus discípulos ( narradas em suas Conversações ), ele se propõe a fazê-los descobrir a virtude da “ humanidade” que está no fundo deles mesmos ao mesmo tempo que os incita a tornar sua conduta sempre mais “ equilibrada” (evitando cair na parcialidade , por desvio de uma parte ou de outra) s. Pois é ao aplicar-se assim a regular a conduta , em sua vida quotidiana, que eles poder ão ter acesso à transcend ê ncia e tomar consciê ncia da marcha das coisas (a grande “ Via” da Regulação) . Aos 15 anos, diz Confucio sobre si mesmo, comecei a “ aplicar- me” ; aos 30, comecei a me “ manter firme” ; aos 40, n ão me “ perdia” mais; aos 50, enfim , tomei consciê ncia do “ mandamento do Cé u” f (cf. Conversações, II, 4). Um discípulo, contudo, observa que, se podemos ouvir sempre o Mestre falar daquilo que torna a conduta humana “ realizada” ( principalmente o ritual) , “ n ão podemos ouvi-lo falar” daquilo que o toca de modo mais profundo, “ a natureza humana e a via do Cé u” (ibid. , V, 12). Mas, como dirão em seguida todos os comentadores, Confucio nunca deixou de falar implicitamente sobre relações entre a “ natureza humana” e a “ via do Cé u” , o assunto mais abscô ndito do pensamento. Pois, ao fazer os homens descobrirem a virtude da humanidade que está no fundo deles mesmos , ele os liga ao mesmo tempo ao princípio da positividade que está no fundo do real; ao incitá-los a tornar sua conduta constantemente equilibrada, ele os faz experimentar a grande lógica da regulação. Conf ú cio n ão cessou de “ honrar” o Cé u , da maneira mais reverente; mas , ao elevar-se à sabedoria , ele se “ afina” també m, de longe, com eleu. A partir do ensinamento confuciano , duas vias abriam-se para pensar a natureza humana. A primeira era a de pensá-la a partir do “ mandamento” do Cé u (a via seguida pelo Zhongyong e o “ Grande comentá rio” , do Livro das mu

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§ffK

; . Ora, é exatamente esse debate que encontramos no pensamento chinês do final da Antiguidade (séculos IV-III) . Em face de Mé ncio, que pretende mostrar que há em nós ind ícios de uma inclinação moral, seu contraditor, alguns decé nios mais tarde (Xunzi) tende a provar que o homem é “ naturalmente mau” 2 x. E, desta vez, a refutação é sistem á tica , os argumentos pacientemente rebatidos; aproveitando o recente surgimento do debate nas escolas, deseja-se que a contradição seja logicamente organizada e que o propósito seja filosófico.

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J

If “ A natureza humana é m á” , “ Xing e” (todas as referências seguintes a Xunzi remetem a este capítulo) .

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se disputas e espoliações, e a boa ordem torna-se impossível. Se pois Meneio pôde crer na bondade natural do homem , é porque ele não soube distinguir entre o natural e o adquirido. É “ natural ” o que nos é dado de imediato e n ão pode ser obtido progressivamente, nem pode ser objeto de aprendizagem ou investimento ^; o uso dos sentidos nos fornece um exemplo: vejo e ouço sem estudo, a capacidade n ão é separada do ó rgão implicado. E, do mesmo modo que não pode ser objeto de um aprendizado, o natural não pode se perder. Ou, antes, se houver perda de nossa natureza, é apenas no sentido de “ separação” em relação ao estado bruto inicial, separação que começa com a vidaz. Inversamente, pretender que o homem é naturalmente bom significaria lhe atribuir mé rito sem que ele tivesse de deixar este estado rude e elementar; ora , a rela ção deste estado com o que é merit ó rio no homem , ou a inten ção da consciê ncia em face do bem moral n ão é indissociável como o é a capacidade de ver em relação ao olho e de ouvir em relação ao ouvido. É neste ú ltimo caso somente que , sob o efeito da “ incitação” , isto se produz diretamente “ assim” , de modo imediato e espontâneo 3 ; e esta é a ú nica definição possível do natural . J á que o homem n ão é originalmente bom , sua moralidade é pois o produto de uma “ transformação” , ela é pois “ artificial ” ( noção de wei ). Oposta ao instinto natural, a moralidade só pode provir de uma criação técnica. Por esta razão, o contraditor de Mé ncio é levado a conceber a moral sob o modo do instrumento: ela é como a prensa à qual é submetida a madeira para endireitá-la ou como a pedra de amolar que torna afiado o ferro sem corte. No caso da moral, este instrumento é o das normas e regras instituídas pelos antigos Reis: julgando que a natureza humana é depravada, e não correta, inclinada à desordem , e não à paz, estes sá bios do passado instauraram o instrumento da moral em

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2. A natureza do homem é m á , afirma o contraditor de Mé ncio, porque o homem é levado, desde o nascimento, a procurar seu “ interesse” pessoal, e, conseq úentemente ele é conduzido a “ invejar” e a “ odiar” . Sua natureza é de ter desejos: por esta razão, desde que siga suas inclinações, seguem-

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ELE É B O M , E L E É M A U ?

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vista de corrigi-la . Para isto, “ acumularam reflexões” e esta beleceram os “ princípios” ( “ fundamentos” ) da “ artificialidade” 0 . E já que ela é um puro objeto fabricado, a moralidade é completamente exterior à natureza humana: do mesmo modo que a telha moldada pelo ceramista n ão é ligada à sua natureza, assim també m a moral que os antigos sá bios institu í ram n ão tem nada de inato. É fá cil provar, em contrapartida , que a maldade é algo do fundo do homem . Para isto basta imaginar a que pode conduzir a hipó tese inversa. Que se suprima por um instante o poder exercido pelo soberano, que se renuncie ao mesmo tempo às normas e às regras que modelam a conduta assim como às san ções que servem para reprimi-las: logo veremos os fortes maltratarem os fracos e espoliá-los, a maioria oprimir a minoria e a sociedade mergulhar na anarquia. Al é m disto, apenas a existê ncia do instrumento é suficiente para provar, por indu ção , a necessidade que o gerou: a prensa só existe para distorcer a madeira porque esta é torta; do mesmo modo, se o instrumento da moral existe, é que ele tornou-se necessá rio para corrigir a natureza humana e portanto esta , na sua origem , é m á. Ou ainda , o fato de que se aspira a uma moral basta para provar sua falta. Com efeito , assim como o “ fino” aspira a ser “ espesso” ou o “ feio” aspira a ser “ belo” , assim també m o homem aspira à moralidade porque é imoral. Pois, inversamente , o rico n ão tem por que aspirar à riqueza, ou o nobre a uma fun ção elevada: n ão temos necessidade de buscar o que possu í mos. Se portanto o homem aspira à moral , é que ele é originalmente privado dela . Enfim , ’Somente a tese da transforma ção da natureza humana pela moral permite explicar a oposição que constatamos existir entre o homem de bem e um outro que n ão vale nada: se a natureza dos homens é a mesma , aquilo que os diferencia ( moralmente) n ão é natural . Um acede ao bem

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porque é capaz, forçando sua natureza, de ir contra seus instintos vitais ; enquanto, ao se contentar em seguir suas inclinações naturais, o outro permanece bruto . Não somente a natureza humana n ão é moral, mas est á mais do que provado que natureza e moralidade são incompat íveis.

3. De uma maneira geral o erro de Meneio, na opinião de seu contraditor, é não ter sabido conciliar sua teoria com a “ experiê ncia” ( no sentido de experiê ncia positiva , de constatação objetiva ^ ) . Do ponto de vista do m é todo, de fato, observa ele , o que afirmamos sobre o passado só é válido de for confirmado pelo presente. O que dizemos sobre o curso da natureza n ão é pertinente , a n ão ser se for verificado no nosso n ível, no plano humano. Pois é apenas sob esta condi ção que a teoria feita em casa pode ser manifestada e posta em pr ática . Ora , a teoria de bondade natural n ão oferece nenhuma garantia deste gê nero, e portanto n ão consegue resistir à prova dos fatos. Entretanto, coloca-se a quest ão: no caso presente , qual prova deve ser invocada, e de que “ fatos” se trata precisamente ? O ponto de vista “ empirista” assumido pelo contraditor de Mé ncio n ão o conduziu , neste caso, a desnaturar a experiê ncia e , a despeito de seu cuidado com a argumentação l ógica, a aferrar-se em sua posi ção ? Ele teve a intuição , pela primeira vez na China , dos crit é rios de um procedimento cient ífico; podemos imagin á-lo encantado com sua descoberta , efetivamente tomado de confiança sem limites em seu rigor. Mas este rigor aplica-se à moral ? Pois creio que é fácil mostrar que a crítica a Mé ncio feita aqui, em nome de um certo realismo, n ão o atinge verdadeiramente (e logo não o confina numa posição “ idealista” ) ; somos mesmo for çados a constatar, ao contr á rio, que o adversá rio de Mé ncio, de passagem , acaba sub- repticiamente chegando ao mesmo ponto de vista de Mé ncio (conseq üen-

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temente contradizendo sua propria posição ) . E tudo isto porque este contraditor de Meneio partiu de uma concep-

ção por demais estreita da moralidade. Para ele, o bem é tãobem p ú blico, a “ boa ordem” na sociedade; a noção de “ consciê ncia” (xin), neste quadro, nunca aparece. É por isto que ele é conduzido continuamente a voltar à analogia tecnicista, a ponto de se fechar nela, e que esta é, definitivamente, seu ú nico argumento: a moral é como a pedra de amolar ou como a prensa, seu produto é tao exterior ao homem quanto a telha é exterior ao ceramista . Ora , Meneio també m levava em conta esta dimensão p ú blica da moralidade, e até mesmo insistia sobre seu condicionamento material: se a população é t ão desprovida a ponto de temer por sua vida, diz ele sem hesitar ao príncipe (I , A, 7) , como poderia ela ter o “ lazer” de pensar em seus costumes ? Mas, para ele, a dimensão social da moral n ão exclui sua dimensão pessoal (renyiy em relação a liyi* . E impossível reduzir a experiê ncia unicamente à objetividade; a moral é també m (de início) um fenô meno “ interior ” à consciê ncia , e a boa ordem da sociedade é concebida como seu prolongamento. Essa refutação de Mé ncio n ão é somente redutora, ela repousa també m sobre uma simplificação. O erro de Mé n cio , na opinião de seu contraditor, é não saber distinguir de maneira clara e natural, que nos é dado de imediato, e o que é objeto de aprendizado, e que remete pois a uma aquisição. O que é inato, enquanto tal, não é suscetível de nenhum progresso. Ora , longe de pô r em d úvida a import â ncia do esforço e da formação de si, Méncio dedicou-se ao contrá rio a mostrar de que modo o progresso moral era possível. Fez isto introduzindo a mediação do virtual entre o inato e o adquirido, para reduzir a sua oposição: a “ ponta” ou esboço da moralidade que é revelada pela reação de vergonha ou piedade é inata em nós, enquanto inclinação espontâ nea, mas somente o

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ELE É B O M , E L E É M A U ?

acontece també m que, por meio de nosso esforço, desenvolvemos esta reação (para estend ê-la a toda a nossa conduta). Em outras palavras, a moral só é natural como predisposição; a “ bondade” é original no homem mas como um potencial. Se não fosse assim , não poderíamos compreender que o homem conseguisse aceder à moralidade. Aliás, a prova disto é o fato de que o adversá rio de Méncio chega, apesar de si mesmo, a reintroduzir uma aptid ão inicial. À questão de saber por que o “ homem da rua” pode tornar-se um modelo de virtude, ele responde que, de um lado, a moralidade possui uma “ l ógica” interna que a torna ao mesmo tempo cognoscível e praticável , e , de outro, que todo homem possui uma “ constituição” que lhe permite conhecer a moralidade, uma “ faculdade” que lhe permite praticá-la . Pois, se nenhum homem possu ísse “ intrinsecamente” em si uma tal disposição, ele ignoraria até mesmo os deveres humanos mais fundamentais ( na China , ligados ao respeito à hierarquia) , os dos filhos em rela çã o aos pais ou do s údito em rela ção ao pr í ncipe. Ora , j á que todo homem conhece estes deveres, todo homem possui em si esta disposição . Eis portanto o contraditor de Mé ncio conduzido a supor também uma certa inclinação natural à moralidade. Por isto mesmo ele é levado a retomar a idé ia de virtualidade. É preciso distinguir, afirma ele em seguida, entre uma possibilidade de princípio e uma possibilidade efetivaf : qualquer homem tem a possibilidade de ser moral , mas nem todo homem realiza esta possibilidade. Em princípio, com efeito, todos os homens podem tornar-se homens de bem (e inversamente) , do mesmo modo que podemos mudar entre nós o seu uso; mas, de fato, isto não acontece. Diria Mé ncio que é porque todos possuem a mesma capacidade inicial , mas que apenas alguns efetivamente a desenvolveram .



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Como se espantar, ent ão, com o fato de que esta cr íti ca a Meneio, anunciada contudo como uma refutação em regra , seja conduzida progressivamente a se desviar e n ão possa chegar ao fim ? O ponto de partida era uma definição rigorosa do bem p ú blico; ora, eis que reaparece incidentemente a no çã o de moralidade interior (renyi): ser á ent ão que não se poder dispensá-la ? Ou , ainda, estas inclina ções humanas; “ como são feias” , exclama o contraditor de Meneio, sem mais argumentos; “ é somente com o sá bio que isto n ão ocorre” . Isto significaria dizer que o Sá bio como uma exceção, possuiria uma bondade natural ? (Mas o que acontece ent ão com a universalidade da natureza humana estabelecida em princípio?) Mesmo se ele possui um “ bom natural ” , acaba ele concedendo, o homem dever á ainda procurar mestres para tom á-los como modelos , escolher seus amigos para aproveitar de sua influê ncia . Ora , é exatamente isto o que Meneio diz: o exemplo dos mestres, as virtudes do meio social, são os coadjuvantes essenciais para desenvolver a moralidade em nós. Mas isto significa reconhecer nossa predisposi ção a seu respeito.

4. A argumenta ção em favor da “ maldade” natural do homem progressivamente mudou de rumo: a tese , apresentada no in ício , é esquecida. Por mais que o contraditor de Mé ncio tenha exercido com virtuosidade a arte ainda nova da dial é tica, e mesmo estabelecido conceitos operató rios ( por exemplo, para pensar o imediato e o espont â neo) , a posição de Mé ncio não sai por isto abalada. Ora, este fracasso me parece revelador. Pois o alcance do debate ultrapassa em muito o quadro ideológico destes protagonistas longínquos. Trata-se, nada mais nada menos, de compreender por que toda concepção utilit á ria da moral é injustificável , mesmo de um ponto de vista l ógico; em outras palavras , por que todo

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ELE É BOM , ELE É MAU ?

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positivismo fracassa ao explicar a moralidade (positivo enquanto institu ído e opondo-se, neste sentido, ao natural). O que quer dizer no fundo , e para usar uma só palavra , trata-se de saber por que a moral não é o direito. Para isso, vale a pena ampliar o di álogo. Meneio se vê criticado por ter pretendido fundar a moral sobre nossa reação espont â nea diante do insuport ável ; Rousseau , por sua vez ( no Segundo discurso ), critica a Hobbes o fato de ter ignorado a import â ncia da “ piedade” (esta “ repugnâ ncia inata em ver sofrer seu semelhante” , p. 42) . E, de fato , entre o filósofo que critica Mé ncio e o que Rousseau critica , são evidentes as intersecções. Tanto um quanto o outro se vangloriam da mesma lucidez e querem manter -se no plano estrito da experiê ncia. Eis o homem despido de seus apan á gios: a alma e a “ reta razão natural ” não t ê m mais lugar em Hobbes do que a consciê ncia moral para o contraditor de Mé ncio. É por esta razão que tanto um quanto o outro definem a natureza humana a partir do desejo entendido como puro movimento vital e conatus. Por isto eles se re ú nem na concepção de um “ puro estado de natureza” ^ ( num sentido novo que , entre n ós , Hobbes deu à expressão ) . Sabe-se , com efeito , que a originalidade de Hobbes , do lado ocidental , foi a de rom per com a tradição de Arist ó teles segundo a qual pertenceria à natureza do homem , enquanto “ animal pol ítico” , viver em sociedade. Na realidade , diz Hobbes, j á que o homem é feito antes de tudo de desejos e que os desejos todos se referem aos mesmos bens, os homens sã o levados naturalmente a lutar uns contra os outros - ou antes, “ todos contra todos” . Em vez de o homem ter uma disposição natural para viver em sociedade , é a guerra o seu estado natural. Ora , vimos que a mesma coisa acontece com o contraditor de Mé ncio, para quem o desejo conduz naturalmente os homens para a rivalidade e para a anarquia. Mesma inferê ncia, de uma par-

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te e de outra , tirada do exame das paixões; mesma confirmação, també m , a partir de nossa experiê ncia: que se suspen dam por um momento a coação exercida pela autoridade e as normas sociais, dizia o adversá rio de Meneio, e a violê ncia reaparece imediatamente. E Hobbes (cf. Leviatã, Cap. XIII): que se considere o quanto cada um se protege contra os outros, usando cadeados e travas, mesmo que existam leis, pode-se ent ão facilmente imaginar o que a humanidade logo se tornaria sem estas leis. É portanto també m l ógico que ambos concebam a capacidade pró pria do homem como um poder de afastamen to: “ separação” entre o estado bruto inicial, distanciamento do dado e do presente. O homem é assim conduzido a tornar-se o artesão de sua pró pria maté ria: ao se desligar de sua natureza, ele fabrica uma humanidade social que, como tal , é “ artificial ” (o que corresponde à noçã o de wei para o contraditor de M é ncio). Enfim , a justifica ção apresentada é a mesma de uma parte e de outra: só poderemos superar o estado de discó rdia natural ao preço de um constrangimento imposto pela sociedade. Entretanto, há um ponto sobre o qual o adversá rio de Mé ncio permanece evasivo: se a natureza do homem é m á, de onde os sá bios-reis do passado puderam tirar a moralidade ? De uma forma lacó nica, ele responde que para isto eles “ acumularam reflexões” e estabeleceram “ princípios de artificialidade” . Mas, de um lado, de que modo estes sá bios puderam ter a idéia de uma solução moral (a menos que tenham experimentado esta exigê ncia neles mesmos, logo, por uma disposi ção natural ) , e, de outro, em nome de que puderam impô-la aos seus s úditos? Em Hobbes, ao contrá rio, a necessidade que conduz a sair do estado de natureza é perfeitamente explicada. Pois é o medo, paixão eminentemente natural suscitada pela guerra contínua de uns contra outros,

ELE É B O M , E L E É M A U ?

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que justifica os homens renunciarem aos seus direitos primitivos e aceitarem transferi-los ( a um soberano ou a uma assembléia). E isto em virtude de um cá lculo racional: por medo da violê ncia previsível, que põe a vida em perigo, o homem escolhe logicamente obedecer a um poder comum e garantir sua segurança no quadro de uma sociedade. A ú nica condição é que haja consentimento recíproco entre as partes . Tal é o pacto ou contrato (covenant) que funda o estado civil para Hobbes , mas que est á completamente ausente no contraditor de Mé ncio e em todo o pensamento chinês. Ora , parece- me que é contra esta ausê ncia que este pensamento vem continuamente se chocar ; é ela que faz com que a refutaçã o a M é ncio seja levada a se desviar e n ã o atingir seu fim . O positivismo de Hobbes o conduziu a pensar a lei (que limita, de comum acordo, nossos interesses) , a conceber o contrato, condição de toda vida em sociedade. E, como tal , ele é legítimo: graças a ele, a instituição arbitr á ria do Estado é fundada de direito. Mas o contraditor de Mé ncio permanece prisioneiro de seu horizonte moral: nã o podendo chegar a um pensamento sobre o direito e a lei , sua refutação de Mé ncio n ão é conduzida por nenhuma perspectiva autó noma, permanece dependente de seu adversá rio e n ão pode estabelecer nada; como n ão consegue inscrever-se num quadro jur ídico- pol ítico , n ão encontra base leg ítima para instituir o arbitr á rio , e sua defesa do artificial n ão atinge seu objetivo. Ora, creio que a China está sempre diante deste problema: a ordem do pol ítico ou é concebida como um simples prolongamento da moral (entre os confucianos, pela via dos ritos) , ou a substitui inteiramente (como entre os pensadores chineses do totalitarismo dito “ legismo” ) . De sua parte, o contraditor de M é ncio tentou uma síntese entre estas duas correntes contrá rias, mas fracassou . Falta (ainda hoje na

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China ) esta complementaridade de dom ínios ( tal como principalmente Rousseau no-la legou): entre, de um lado, a naturalidade da moral (que a China soube pensar tao bem ) , e , de outro, a institui ção de uma sociedade civil (em fun ção do contrato e da lei). O risco é deixar o poder aproveitar-se do vazio da instituição pol ítica e n ão ver o arbitrá rio limitado por nenhum direito.

VII EM BUSCA DE UMA NATUREZA PERDIDA

1. Se nos decidimos em favor da bondade natural , n ão estamos por isto quites com o outro partido. Pois este é menos uma hipótese do que uma constatação: se é t ão dif ícil estar seguro de que um ato seja absolutamente bom ( até mesmo impossível, segundo Kant) , é inegável , em contrapartida , que h á atos maus. Se, pois, para n ão deixar a moral se confinar em justificativas prá ticas, puramente utilit á rias, sou levado estabelecer em princípio que o homem é bom, faltame então explicar como ele pôde se corromper e tornar-se mau. Para esta questão , a resposta é clássica ( haveria mesmo outras respostas possíveis a partir de tais premissas ?): se o homem tornou-se mau , é porque ele afastou-se de sua natureza original, ele a “ perdeu” . Esta é principalmente a solução crist ã ligada à histó ria de Ad ão. “ Vós n ão estais mais no estado em que vos formei ” , diz o Deus de Pascal (Pensées, Brunschvicg, 430) . Eu havia criado o homem “ santo, inocente, perfeito” . Mas, por presun ção, o homem quis se afastar de mim , e , desde ent ão, “ eu o abandonei a si mesmo” . E por isto que o homem doravante tem “ duas naturezas” , uma primeira , que lhe veio de Deus, permanece nele como um princípio de “ grandeza” (graças ao qual ele ainda aspira ao bem ) , uma segunda que, resultando de sua queda , tornou-se nele um princípio de “ misé ria” (arrastando-o para o mal); e so-

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“ dupla capacidade” pode explicar as suas “ espancontradições” . Ora, se bem que queira pensar a religião “ nos limites da simples razão” , Kant ainda segue esta solução; ou , pelo menos, n ão encontrando nenhuma “ razão compreensível ” para a origem do mal no homem , não pode deixar de passar pela representação do relato bíblico1: antes de qualquer tendê ncia ao mal a condição do homem é um estado de “ inocê ncia” ; depois , deixando os impulsos sensíveis ganharem dom ínio sobre ele, o homem comete o pecado; de onde resulta sua “ queda” ; mas, a despeito da “ corrupção de seu coração” , ele guarda em si a “ boa vontade” . Quanto a Rousseau , por mais que compartilhe a hostilidade de seu século em relação à doutrina do pecado original, també m n ão consegue escapar verdadeiramente deste esquema; mas, ao laicizá-lo, concebe no homem duas naturezas em função da evolu ção social . Ou antes, a “ queda” do homem é precisamente o advento da sociedade. Os primeiros homens eram inocentes porque viviam iguais e livres. Depois, “ aperfeiçoando a razão humana” , a espécie “ deteriorou-se” e ao tornar -se “ sociável ” , o homem tornou-se “ mau ” (D.O., p. 50). Ou , como está dito no Emílio (p. 281) : o homem é “ naturalmente bom” e ainda hoje se sente assim ; mas a sociedade o depravou e seus “ preconceitos” são a fonte de seus vícios. Mé ncio també m não tem outra saída. Vimos que seu contraditor apresentava o fato de que os homens são moralmente diferentes para provar que a natureza humana, originalmente m á e a mesma em todos, poderia ser transformada graças à moralidade. Ora , Mé ncio havia, de modo expl ícito, mente esta

tosas

La religion dans les limites de la simple raison, op. cit., p. 82 e ss.; cf. O. Reboul , Kant et le problème du mal. Montreal, PUM, 1971, p. 105 e ss.

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tomado a posição contrá ria: a de invocar uma “ perda” da natureza humana para explicar que os homens possam desviarse do bem e conduzir-se diferentemente. Pois somente os Sábios coincidem perfeitamente com sua natureza original; quanto aos outros , cabe-lhes fazer todos os esfor ços para “ voltar” para sua natureza (VII , B , 33). Isto é sempre possível porque, de fato, “ perder” sua natureza n ão é nada mais senão perder a “ consciê ncia” (que “ funda” nossa humanidade, VI, A, 10 h ; que possuímos em nós desde a mais “ tenra infâ ncia” , IV, B, 12) . É por isto que a moralidade n ão é complicada , não exige nenhuma capacidade particular, mas se reduz simplesmente a isto , mas que é imenso: recobrar sua consciê ncia . Deve-se ainda, para isto, “ tomar consciê ncia” de que se a perdeu (sentido de si 1 como fun ção do xin, VI, A, 13, 15, 17) . O ú nico erro do homem é n ão perceber que possui uma consciê ncia, mas freq üentemente a “ deixa ir” . Quando perdeis uma galinha ou um cão , sabeis muito bem ir à sua procura , diz Mé ncio, para chocar seu interlocutor (VI , A, 11 e 12) ; perdeis vossa consciê ncia e n ão sabeis procur á-la! Por isto, a “ via” , seja como objeto de estudo ou de aplicação, não é “ nada mais” do que partir em busca de sua “ consciê ncia perdida” . Pois, como aliás Mé ncio o observa ( VII, A, 5) , e que sempre preocupou o pensamento chinês, nada é mais difícil do que tomar consciê ncia daquilo que “ n ão se deixa de seguir toda a vida” , mas, justamente, “ sem conhecer sua via” : que “ se pratica” , mas sem “ esclarecê-lo” ; ao que nos “ habituamos” , mas sem “ bem examinar” . Em suma , nada é mais difícil de realizar pela consciê ncia ( no sentido inglês: to realize) do que aquilo que nos é próximo e mais familiar. Sem recuo e sem apreensão: impossível, diríamos, de fazer disto um objeto. Ora, é isto que acontece com a “ via” que conduz

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naturalmente nossa consciê ncia, ou seja , em fun ção de nossa natureza - por pura iman ê ncia.

medir a diferença entre o antes e o depois, este relato n áo absolutamente a função de um mito (que procurasse explorar o insondável). Mas, já que é tão difícil nos fazer tomar consciê ncia (de nossa consciê ncia) , ele nos conduz pelo viés de uma analogia (em VI, A, 8) . Havia outrora belas á rvores sobre a Montanha dos bois , mas, como esta montanha estava próxima da capital , “ machado e machadinha as cortaram” e esta bela floresta desapareceu . Entretanto, como a seiva continuava a circular no n ível das ra ízes, e també m com a influ ê ncia benéfica da chuva e do orvalho, “ nasceram brotos e mudas” . Mas os bois e carneiros, chegando por sua vez, fizeram deles seu pasto. Eis por que hoje esta montanha est á t ão nua: vendo-a assim , n ão podemos acreditar que ela j á foi recoberta por uma floresta. E contudo, como seria, no estado presente , a verdadeira “ natureza” da montanha ? E fácil tirar a lição: o homem possui uma consciê ncia moral , mas deixou que ela se perdesse, sob os golpes que lhe foram dados , assim como a floresta foi perdida. O interesse da imagem não pá ra porém a í; pois, ao se deixar 1er de modo mais preciso, que M é ncio tem o cuidado de explicitar, ela , a imagem , chega a apreender a perda de nossa natureza sob um modo existencial , em rela ção à nossa vida quotidiana: da mesma maneira que , no caso das á rvores, a seiva continuava a circular no n ível das raízes e, pelo seu influxo, lhes devolvia a vida , quando n ós despertamos na serenidade da manh ã e o influxo vital começa a exercer sobre nós seu efeito reparador, “ nossas inclinações então nos aproximam da comunidade dos homens” . Pois neste momento em que se passa da noite para o dia , quando o repouso da noite nos libertou das preocupações da véspera e a atividade interessada do dia ainda n ão foi retomada , nossa consciê ncia, menos solicitada, está em melhores condições de se apreender; aproveitando

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2. A solu ção de Mé ncio abrange pois, no leque das possibilidades , aquela à qual os filósofos das Luzes, Rousseau e Kant , est ão ainda ligados, a despeito de seus esforços para ultrapassá-la; mas sua significação existencial é diferente, e me parece que é da í que vem seu interesse. Em vez de ser a herança comum da condição humana (a partir do primeiro homem , segundo a Bí blia ou da humanidade primitiva, como em Rousseau) , a perda de nossa natureza nã o nos é imposta de antem ão, como se doravante se tratasse de nossa essê ncia, mas depende de cada um de nós em particular ; ela só pertence ao puro presente e nunca é irremediável - mas ameaça- nos a todo instante . Em Kant també m , o pecado de Ad ão n ão é mais pensado como uma mancha congé nita, pesando para sempre sobre nós, mas como um ato que se repete cada vez em cada um de n ós. (Como disse Ricœ ur, pecamos como Ad ão , e n ão em Ad ão; sua histó ria nos fornece somente o como se que pode dar conta da passagem instant â nea , sem causa antecedente, da inocê ncia ao pecado 2. Isto n ã o impede que estes temas da perda , ou da queda , guardem , na reflexão ocidental , uma dimensão m ítica e que n ão se deixaram apropriar completamente pela filosofia ( mesmo em Rousseau , para o qual nosso distanciamento da humanidade primitiva deve-se a “ acontecimentos conjeturais” ). Em Mé ncio, em contrapartida , a perda de nossa natureza n ão depende de nenhuma história, portanto n ão é matéria de nenhum relato; ou , se h á um relato bem breve, para nos fazer

2

Cf. o estudo de B. Carnois, La cohérence de la doctrine kantienne de la liberté. Paris, Seuil , 1973, p. 160 e ss.

exerce

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interst ício, sua propensão moral aparece (captamos de novo seu “ esboço” , como na reação de vergonha ou piedade) . Mas ela “ quase” aparece, de modo precá rio como um “ broto” , e as questões do dia logo a embaraçam de novo, até abafá-la: sendo abafada, a consci ê ncia n ão poderá mais aproveitar o efeito reparador da noite. E, contudo, nossas a ções do dia, sob a pressão de interesses, n ão poderiam corresponder às nossas inclinações naturais. A lógica dessa imagem nos remete aliás a Rousseau. Pois, a despeito de suas reconstruções teó ricas, projetadas na “ pré-histó ria” (e sobretudo fantasiosas) , Rousseau est á próximo desta intuição, mais fenomenologica , de uma fragilidade própria da consciência. Ele també m soube evocar a experiê ncia desta fragilidade ( no Emílio, p. 355): “A consci•ê ncia é t í mida , ela ama a solid ão e a paz” ; a voz dos preconceitos “ abafa a sua voz e a impede de se fazer ouvir” . “ Ela se desencoraja de tanto ser rejeitada; n ão nos fala mais, n ão nos responde mais, e , depois de um t ão longo desprezo por ela, é t ã o difícil cham á-la de volta quanto fora difícil bani-la. ” Uma imagem que é próxima desta é a do embaraço e do sufocamento. Mas, de um lado, ela remete à sua voz (em função, como vimos, do paradigma ocidental da voz de Deus ou do pastor); de outro, remete à planta (segundo o paradigma chin ês, terra de agricultores, do crescimento vegetal). Evocada em relação ao tema, dominante no pensamento chinês, da “ via” a ser seguida , este embara ço torna-se obstru ção, a da erva que recobre o caminho (VII, B, 21): a partir do momento em que tomamos a via , a menor passagem na montanha torna-se um caminho; mas, se ele ficar um tem po inutilizado, a erva volta a cobri-lo. Atualmente, conclui Mé ncio, dirigindo-se ao seu interlocutor, vossa consciência est á “ bloqueada” . este





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3. O resultado da visão cristã é que possuímos, de fato, duas naturezas, e a perda de nossa natureza original nos faz cair numa outra, a de seres decaídos. E por esta razão que não podemos voltar ao nosso estado primitivo: para redimir a falta de Adão, a humanidade vai precisar da mediação do Cristo. Em Meneio , em contrapartida , o homem possui sempre uma só natureza, que como tal é boa , mas ou o homem a “ segue” (cf. Zhongyong, 1) ou a perde: este ú ltimo caso, que é aquele em que ele não se conduz moralmente, significa conseq íientemente “ fazer violê ncia a si mesmo” , ou ainda “ abandonar-se” ( IV, A, 10). Por isto, n ão cabe senão a ele mesmo recuperar sua natureza; sua salvaguarda (diferente neste sentido da salva ção religiosa) est á sempre ao seu alcance. A “ via” do homem est á “ pr óxima” , diz com efeito Mé ncio em seguida (IV, A, 11) , mas nós a procuramos “ longe” ; nossa tarefa “ repousa na facilidade ” , mas nós a procuramos “ nas dificuldades” *. Quer se trate da natureza do mundo ou de sua natureza, o erro do homem , de um modo geral, é o de engenhar-se e de “ forçar” ( IV, B, 26). Ora, o homem não tem que procurar nada fora, descobrir outra coisa, desvendar um segredo (cf. Zhongyong, 11). Em outras palavras, ele n ão deve esperar uma revelação, nem tem necessidade de

*

O mesmo ocorre com a estratégia chinesa, na qual , segundo os antigos tratados (cf. Sunzi, Cap. 4 ) , o estrategista vence sempre “ onde é mais fácil ” ; pois, sabendo explorar o potencial implicado na situação, ele nã o precisa forçar nada no momento do confronto. Este elogio da facilidade (oposto à nossa cultura da epopeia ) é um tema comum do pensamento chinês. A arte do Sá bio, em vez de ser a de realizar grandes façanhas, lê-se no Laozj (§63), é a de abordar as coisas no est ágio de sua “ facilidade” para se deixar levar pela sua manifestação.

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socorro divino: deve somente manter ativa a sua capacidade. Para n ão perder sua natureza, basta-lhe n ão perder a consciê ncia de sua consciência , mas mantê-la presente , atual. Ou , como o diz mais simplesmente M é ncio (IV, B, 28): “ O que faz o homem de bem diferente dos outros é que ele mantém sua consciência em via de existir” . É por isto que Mé ncio n ão precisa distinguir a consciê ncia psicol ógica ( no sentido de dar-se conta: sentido de si; cf. Bewusstsein ) da consci•ê ncia moral ( no sentido rousseau ísta; Gewissen ): pois é tornandose consciente daquilo que sou realmente ( minha “ natureza” ) que sou moral; deixar (fazer) existir sua consciência é ao mesmo tempo recobrar sua natureza e conhecer sua vocação. É por isso també m que a moral de Mé ncio é a menos presentiva, e n ão se deixa embara çar por regras ou mandamentos. Neste aspecto, ali ás, ela se aproxima de uma certa intuição da linguagem ordiná ria. Quando dizemos simplesmente, para justificar o que julgamos que n ão se deve fazer, “ isto n ã o se faz” , a formulação elimina t ão bem qualquer ju ízo suposto, que ela parece reduzir-se a uma constataçã o. Como se, em vez de remeter ao dever ser, a moral pertencesse de imediato à realidade; ela fosse objeto, não de uma avalia ção e de vontade , mas de evidê ncia . Ora, é exatamente o efeito que encontramos em a ção em certas expressõ es do Mencius, se o traduzirmos literalmente. “ Para o homem, h á o n ão-fazer e em seguida somente ele pode (verdadeiramente) fazer” ( IV, B , 8). Ou , ainda: “ Não fazer o que n ão se faz, n ão desejar o que não se deseja: assim e isto é tudo” (VII , A, 17) . “ E preciso suplementar muito, nos diz o tradutor ingl ês fiel a uma concepção presentiva da moral , para tornar isto inteligível na tradução” (Legge, p. 457). Quanto a Couvreur, ele traduz assim a passagem ( p. 614) : “ N ão façais o que sabeis que n ão deveis fazer; não desejeis o que sabeis que não deveis desejar” . Mas, ao complementar assim a expressão chi-

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nesa , eles a privam de fato daquilo que ela contém de mais significativo: sua reticê ncia em considerar a moral de um ponto de vista normativo , o do dever ser (o ponto de vista cristão, que foi radicalizado por Kant) . Com efeito, desde que o homem n ão se separa de sua natureza, a moral j á que é sua natureza - se encontra implicada na exist ê ncia; por isto, o que lhe é contr á rio fica de antem ão negado ( mesmo que , seguramente , isto possa acontecer, quando se perde a sua natureza, e acontece at é muito freq ü entemente) . Esta é a razã o pela qual a formulação de Mencius beira aqui a tautologia ( n ão se faz o que não se faz) , acrescenta o menos possível de valor de obriga ção (do tipo “ tu deves” , sollen ), em suma , recusa-se a modelar a conduta ( construindo para ela uma forma ideal ) . Seu esforço é separar-se o menos possível de nosso sentimento de evid ê ncia, já que este sentimento corresponde à atualiza ção de nossa consciê ncia, e, por isto, confunde-se com a lógica que conduz a existê ncia (o que se tornar á o Zrk chin ês) . É por isto que a formulação do Mencius contenta-se em mostrar, sob um modo factual: “ É assim, e isto é tudo” . De outro modo, não conseguiríamos dar conta de certas distin ções do Mencius. “ O sá bio, lemos (IV, B, 19) , segue a moralidade e não a coloca em pr á tica.” 1 Pois, assim como explica o comentador (Zhu Xi) , “ do mesmo modo que a moralidade está enraizada na sua consciência, tudo o que ele faz procede dela. N ão é que o sá bio considere que a moralidade é bela e em seguida esforça-se por praticá-la” . A nuance é sutil , mas decisiva: quando se atinge a sabedoria, que nada mais é do que coincidir completamente com a injun ção da natureza em si, da qual sabemos que é boa, a moralidade não sofre mais nenhuma dist â ncia de si a si, ela é necessariamente imediata e espontaneamente nasce de si mesma; ela n ão é da ordem da visada, como se devêssemos tom á-la como ob-



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jetivo para em seguida trabalhar para realizá-la ( numa relação do tipo teoria e prà tica). Em vez de ser imposta corno um Fim , ela advém somente a título de conseq üê ncia; em outras palavras , ela n ão é senão um efeito (cf. IV, B, 11) que, como tal , “ obté m-se sozinho” , “ para qualquer lado que nos viremos” , ela corre “ da fonte” (IV, B, 14). Ou , ainda , diz Meneio ( VII , B, 33), do mesmo modo que, quando se chora um morto , é pela dor, “ e não para os vivos” , ou que, quando se segue “ regularmente” a virtude, “ sem nenhum desvio” , não é para “ ganhar um sal á rio” , assim també m , “ se as palavras devem ser confiáveis, é tão-somente em vista de se conduzir corretamente” . O sá bio n ão deve pensar em se com portar de modo moral, nem mesmo deve ter esta inten ção, ele não o faz propositadamente: se ele não perdeu nada de sua natureza, logo sua consciê ncia existe pienamente, e a moralidade disto decorre inevitavelmente.

4. Na medida em que basta conformar-se à injunção da natureza em nós, n ã o temos necessidade de regras ou de prin cípios que venham formalizar a partir de fora o nosso com portamento; e na medida em que nada mais prescreve de antem ã o o nosso comportamento, de maneira fixa e codificada, nós nos encontramos sempre em condições de nos prestar à diferença de situações, logo, de nos conformarmos a todas as mudan ças. Não poder íamos desconhecer o duplo defeito das regras e princípios (que sempre serviram de armadura para a moral): de uma parte, ao servir de modelos para a consciê ncia, introduzem uma dist â ncia inelut ável entre ela e a moralidade (e esta ent ão n ão pode ser mais sen ão objeto de visada, em vez de operar sponte sua); de outra, pelo que implicam de rígido e que transcende as circunstâ ncias, mant ê m forçosamente nossa conduta à dist â ncia do que constitui a particularidade de cada ocasião. Duplo afasta-

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relação a si e em relação ao mundo; considerando bem , esta intromissão da regra seria antes uma deficiência. N ão somente ela constrange a consciê ncia , mas enrijece també m a conduta. Ora, o mundo n ão cessa de mudar, e as situações com as quais nos defrontamos sempre são novas. Por sua generalidade, a intromissão da regra nos coloca em desequil íbrio com o mundo. Na cultura européia , havíamos oposto o sá bio ao estrategista; havíamos aumentado sempre a distâ ncia entre a consciê ncia interior e o mundo “ como ele é ” : nada é mais oposto à moral de Kant, a do imperativo categó rico, nada h á que suscite mais sua indignação do que a idéia de submeter a m áxima de sua conduta a dados circunstanciais até mesmo só levá-los em conta; nada seria mais contrá rio à exigência da consciê ncia para usar uma só palavra, do que o oportunismo. Ora , o pensamento chinês nos ensina precisamente a inverter o sentido desta palavra , a trocar o seu sinal, considerando o oportunismo de uma maneira positiva: j á que a sabedoria é conformar-se à injun ção da natureza em nós, o sá bio n ão poderia se separar, para fora de si , do modo pelo qual ela conduz a realidade; n ão poderia pois estar em ruptura com a lógica inerente ao mundo, e sua vocação, ao contr á rio , como a do estrategista , é desposar do melhor modo possível cada situação ( ú nica diferença, neste caso: o interesse que conduz o sá bio é de ordem coletiva, na escala do mundo inteiro, e n ão um interesse particular) . Geralmente criticamos o oportunismo porque ele consiste em tirar partido das circunstâ ncias transigindo, se for necessá rio, as regras e os princípios. Mas o que acontece se evitamos, de in ício, estabelecer regras e princípios? Não h á mais lugar para “ transigir” , a ú nica virtude ser á então a de “ seguir” e desposar (em vez de impor): desposar ao mesmo tempo a injun ção da mento, em



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natureza , em sua consciê ncia , e o curso

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do mundo em sua

conduta. O Mencius oferece vá rios retratos contrastados de grandes homens do passado. Um (Bo Yi) só consente em servir ao pr í ncipe que reconhece como seu pr íncipe , n ão consente em comandar sen ão o povo que for o bastante virtuoso para merecê-lo; quando o mundo est á em ordem , ele assume um cargo , e quando o mundo está em desordem , ele se retira. O outro, ao contr á rio (Yi Yin) , est á pronto para ser vir qualquer pr í ncipe, a comandar não importa qual povo, assim como a assumir um cargo, quer o mundo esteja em ordem ou não (II, A, 2) . Ambos têm princípios pelos quais se opõem um ao outro -; quanto a Confucio, ele não os tem : “ Quando convinha exercer um cargo , ele o fazia; quando convinha retirar-se do cargo, ele se retirava; quando convinha esperar, esperava; quando convinha apressar-se , ele se apressava” . Não se fixando nenhuma regra, Conf úcio est á livre de todo parti pris, fica perfeitamente dispon ível ao que cada ocasião exige. E isto até mesmo nos menores fatos de sua vida: quando é seu principado que ele deixa, o faz lentamente ( tanto lamenta fazê-lo) . Quando é outro principado , ele toma apenas o tempo necessá rio para recolher, com um gesto, o arroz que estava de molho (VII , B, 17) . Aqueles, ao contrá rio , que são ligados a regras est ão sempre em falta , de qualquer lado: tanto aquele que recusa, por princípio, qualquer compromisso com os que est ão à sua volta, com medo de se contaminar ( pois fugir de toda sociedade para defen der sua pureza é algo tão in ú til quanto arbitr á rio, cf. Ill, B, 10) , quanto aquele que estabelece como princípio que sua integridade moral é uma questão só dele, e não depende de ninguém ( Hui de Liuxia, cf. II , A, 9) . O primeiro “ não tem largueza de vis ão” e é por demais intransigente; o outro , muito complacente , “ n ão tem dignidade” .



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Um célebre sofista pensava colocar Meneio em contradição com a moral (IV, A, 17) . “ N ão é conforme ao rito que homem e mulher n ão possam tocar-se pela mão para se darem alguma coisa ? ” Meneio, sem d úvida , só pode aquiescer. “ Mas, se vossa cunhada estiver se afogando, podeis retirála d’ àgua dando-lhe a m ão ?” Não fazê-lo , insurge-se Meneio, seria perder toda a humanidade. Pois se h á, de um lado, um ritual, h á , de outro, a “ aprecia ção das circunst â ncias” . Esta noção de apreciação circunstancial ( no sentido de pesar na balan ça , quanm ) j á se encontrava situada no cume do ensinamento de Confucio ( cf. Conversações, IX, 29). Pois, nesta gradação em dire ção à excel ê ncia , ela ultrapassa qualquer princípio possível: para além de nossa “ aplicação” comum ao estudo , é preciso levar em conta, em nossas relações com os outros, nossa convergência a seguir a via; para alé m desta convergê ncia em seguir a via, a capacidade de compartilhar firmemente nossa posição; e, para alé m desta capacidade a compartilhar firmemente nossa posição, a de pesar em conjunto a situação. É por isto que Confucio diz de si mesmo que não tem “ posição definida” ( Conversações, IX, 4) ; ele n ão pode ser classificado em nenhum lado (ibid., XVIII , 8) , n ão tem um “ eu” particular (ibid., IX, 4) 3. É por isto també m que não se poderia definir Confucio. A respeito dos outros, pode-se dizer, em função de seus respectivos princípios, que o primeiro incarna a “ pureza” do sá bio, o segundo “ seu senso das responsabilidades” , o terceiro seu car á ter “ acomodatício” . Mas Mé ncio n ão tem nada para dizer em particular sobre Confucio. Ele só pode caracterizálo com uma palavra ( mas que n ão diz nada sobre seu car á’ ter): o “ momento” n (V, B, 1 ) . De Confucio (o Sá bio) , n ão 3

Cf. Le détour et l’accès, op. cit., p. 278 e ss.

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poder á dizer sen áo isto: “ Ele é o momento da sabedoria” . Ele náo oferece traço definido porque é o que cada ocasião exige dele , o que cada situação implica por ela mesma; mas é por esta razão que ele é o sá bio completo o “ concerto” de todas as virtudes -, como o mostra Meneio em seguida: aquele cuja consciê ncia nunca está em falta e cuja conduta nunca falha. Oportunista com pleno discernimento.

se



VIII HUMANIDADE, SOLIDARIEDADE

1. A despeito da distâ ncia entre as é pocas e da diferença entre as culturas, constata-se de in ício uma mesma experiê n cia, de uma parte e de outra, e sem que um lado possa ter influenciado o outro: vimos a reação ao insuportável evocada por Mé ncio ser reencontrada na piedade rousseau ísta . E , pelo menos por uma vez, h á a í mais do que uma aproximação (à qual geralmente chega o trabalho do tradutor, por meio de um jogo de equivalê ncia) . Por trás da diferença entre as palavras, dos procedimentos retóricos, das justificações filosóficas, aflora repentinamente um fundo comum , apreende-se ao vivo a mesma reação, ouve-se a mesma linguagem: este grito de emoção de revolta e de compaixão que se espalhou em todo o mundo, quaisquer que fossem os lugares e os tempos, qualquer que fosse a l íngua, diante do que ameaçasse o outro. Resisto contudo a essa ideia de uma identidade de essê ncia , posta como uma base, e da qual as diferentes civilizações não seriam sen ão variações, das quais todos os homens não seriam sen ão uma ilustração. Pois mesmo uma aproximação entre pensamentos t ão distantes (como o de Mé ncio e de Rousseau) , nela mesma , não prova nada. Não é porque se pode pôr enfim lado a lado a Europa e a China, até mesmo a antiguidade de uma e a modernidade de outra, que te-





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mos o direito de invocar uma universalidade; não é nem mesmo porque ter íamos abolido assim toda dist â ncia , no espaço e no tempo, que podemos pretender ter atingido o “ homem” (supondo antes que isto tenha algum sentido) e transcendido a ideologia. Nada é mais suspeito, sabe-se bem , que este homem de sempre e de todo lugar, definido como uma ess ê ncia eterna ou pelo menos por um denominador comum , para o qual estamos de acordo em definir uma norma, do qual se diz que deve ser assim : já que se sabe bem que ao fazer este tipo de ju ízo, todo humanismo cometeu continuamente a mesma petição de princípio, a de supor que um tal homem existe (o Homem com H maiusculo) , que ele pode ser abstrato e definido a este ponto. Mesmo um recorte com pleto das posições não poderia ser uma garantia a este respeito . Ora, se não posso enunciar uma proposição a respeito do homem em geral , també m não posso fundar a moral. Mas justamente aquilo que, para alé m da reação de piedade, aproxima Mé ncio de Rousseau nos manté m em recuo em rela ção a qualquer definição ( referindo-se ao homem em geral ) , nos reté m para aqu é m de qualquer norma (que sirva para codificar a moral) . Pelo menos na medida em que tanto um quanto outro contentam -se em dizer isto: o que é pró prio do “ homem” é “ ser humano” . Pois, ao dizer somente que o que é pró prio do homem é ser humano, afasto o menos possível o predicado do sujeito o “ humano” do “ homem” . Aí n ã o há verdadeiramente lugar para uma proposição, n ão poderia tratar-se de um verdadeiro julgamento, eu começo apenas a extrair um sentido. Portanto, corro um risco menor (devido à generalidade de uma defini ção) . Ao mesmo tempo, basta este ú nico desvio - este sentido que aparece é imenso. Permane ço no n í vel de toda asser çã o , e , contudo , tudo est á implicado , o propósito é completo. Pois, ao mesmo tempo em que beiramos a tautologia , estamos



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mais longe da banalidade de um repetição: o predicado n ão redobra o sujeito, mas prové m inteiramente dele; enquanto não se separa do sujeito , ele remete o homem à sua natureza ( mas sem ter de defini-la), ele descobre sua vocação ( mas sem precisar codificá-la) . Em outras palavras , todo o dever ser do lomem é compreendido em seu ser, seu valor nada acrescentou . Escapamos assim ao parti pris ideológico de um julgamento sobre o “ Homem” ; n ão pronunciamos nada , nem forçamos nada: estaria a í, abortando qualquer proposição, a proposição fundadora da moral. Ao dizer que o ser humano deve ser humano , eu não afirmo nada, e tudo j á est á dito. Cabe a Rousseau, entre nós, ter feito aparecer este efeito de congruê ncia (a da nossa natureza) , pondo nisto toda sua veem ê ncia orató ria (E., p. 62) . “ Homens, sede humanos , é vosso primeiro dever, sede humanos em todos os estados, em todas as idades, em tudo o que não é estranho ao homem . Que sabedoria existira para vós fora da humanidade? ” Ser humano, nos ensina por sua vez o pensamento chinês, é ser homem em rela ção ao outro: a noção de ren ° , que , desde os jesu ítas, n ós traduzimos por virtude da “ humanidade” , é simplesmente composta da grafia de homem e do n ú mero dois. Nada mais, nenhuma injunção de sentido. Toda a virtude do homem está no homem e se manifesta desde que haja dois. No ensinamento confuciano que a elaborou , e do qual ela é o centro , esta noção remete à experiê ncia mais comum , indica o que est á mais ao nosso alcance (cf. “ Eu desejo o ren, e ei-lo aqui ” , Conversações, VII , 29) ; ao mesmo tempo que n ão poderíamos limitar o seu sentido, n ão podemos mostrar sen ão sua “ direção” , ela ultrapassa toda experiê ncia . N ão acabamos nunca de sermos humanos, este ideal sempre nos ultrapassa (cf. “ Pretender o ren, como eu ousaria ? ” , ibid., VII , 33). E por isto que, no seio do Mencius, esta capacidade se mani-

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princípio, esta virtude da humanidade dirigese à humanidade inteira (VII, A, 45): de um lado , o homem de bem “ cuida” de tudo o que existe, de outro, ele “ ama” seus pais; entre estes dois limites, em relaçáo ao conjunto dos homens, ele é “ humano”

festa na menor experiê ncia (como diante da criança caindo no poço) , mas nós só apreendemos na ocasião a sua “ ponta” . É ela que está na base de todas as virtudes e lhes permite desenvolver-se; é nela, conseqiientemente, que se resume toda a moralidade; todas as virtudes, postas em sé rie (de duas em duas, de quatro em quatro1) serão sempre apenas a difração desta mesma intensidade. “ O homem de bem é humano e isto é tudo” (VI , B, 6); ou , dito ao inverso, “ ser humano, é o homem mesmo” (VII , B, 16). J á que é a menos presentiva (levando- nos somente a tomar consciê ncia de nossa consciê ncia) , ela nos pede apenas que coincidamos com nossa natureza (o que, finalmente, n ão é um mandamento, mas é evidente por si) , a moral de Mé ncio n ão poderia, no fundo,

tanto, em seu

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dizer nada a não ser que o dever do homem é ser homem juntamente com os outros. Essa aptid ão para o humano está na fonte de toda moralidade. Sozinha, ela é a “ consciência” do homem, enquanto a eq ü idade é a via “ reta” que se desenvolve a partir dela (VI, A, 11) ; ou ainda, ela é a “ morada” , ú nico lugar em que o homem pode encontrar a “ paz” (IV, A, 10). Em relação à exigê ncia de “ respeito” que a completa (este respeito que im plica a hierarquia social: diante dos mais velhos ou diante do pr íncipe) , seu valor afetivo aparece melhor ainda: ela se manifesta pois mais concretamente no amor pelos “ pr óximos” , pelos nossos “ pais” (IV, B, 28; VII , A, 15, 46) . Entre-

De dois em dois: a humanidade e a eq ü idade ( ren e yi). De quatro em quatro: a humanidade, a eq ü idade, o sentido das conveniê ncias (a capacidade de respeitar as prioridades é ticas) , a aptid ão para julgar os valores (ren, yi, li, zhi). Estas sé ries constituem as diferenciaçõ es progressivas, mas sempre relativas, a partir de um fundo comum que é a virtude da humanidade; e os pensadores Songs insistirão no fato de que as outras virtudes remetem todas a ela.

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2. Fica ainda a questão de que se deve assumir enfim o problema que foi descoberto pela piedade: o que é que me liga aos outros e funda nossa “ humanidade” ? Pois há o “ outro” e há o “ eu” - dois indivíduos distintos. E a questão é inevitável: o que é que permite ser sensível, em mim mesmo, ao que acontece com os outros, fora de mim , que faz com que eu me sinta tocado por eles? Pois , se a rea ção ao insuport ável é imediata, diante da ameaça ao outro, isto supõe, de certo modo, que o outro já esteja presente em mim . Um par á grafo do Mencius orienta-nos neste sentido ( VII , A, 4): “ Méncio diz: todos os existentes encontram -se implicados em mim . Se me volto para mim mesmo e percebo que isto é verdadeiramente assim , n ão h á alegria maior. Que eu me esforce para desenvolver esta consciê ncia dos outros em minha conduta: para atingir o humano, não há nada mais próximo” . De in ício , é preciso afastar duas pistas falsas. Em primeiro lugar, esta presença do mundo em mim n ão poderia ser interpretada no sentido de um idealismo ( como o faz Couvreur, que traduz remetendo a frase para a perspectiva da filosofia ocidental , p. 609: “ Temos em nós os princípios de todos os conhecimentos” ) . Pois Mé ncio n ão está preocupado com uma teoria do conhecimento - o problema nem se coloca para ele -, mas com a conduta2. Ela não se justifica i;

! 2

Pode-se ver de que modo Meneio , aflorando o problema do conheciinten çã o de desenvolvê-lo em VI , A, 15: “ Os ó rgãos

mento , n ão tem

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tamb é m por um misticismo (contrariamente ao que diz Legge, p. 450: “ Este parágrafo é m ístico” ; e “ quando queremos avançar, ficamos embaraçados” ; este julgamento aliás foi retomado no século XX pelos próprios chineses, como Feng Youlan ) . Ou, antes, se este pensamento do Mencius pode prestar-se ao misticismo, é somente sob a influê ncia do budismo (vindo da India) e quase mil e quinhentos anos mais tarde (sob os Songs, principalmente em Cheng Hao, que o lê no sentido de uma fusão í ntima com o mundo) . Em si mesma , a frase de Mé ncio não fala de um desprendimento de si (dos sentidos ou da razão) , nem de um ultrapassamento do mundo como “ diante de si ” p , ela não trata nem de êxtase nem de comunh ão. Sua ambição declarada é atingir o “ humano” e nos mostra o caminho para isto: devo apenas me esforçar para desenvolver, em minha conduta , a consciê ncia que tomo daquilo que afeta o outro (no sentido de shu 3 , segundo duas glosas: “ julgar a consciê ncia dos outros a partir da sua pró pria consciê ncia” e ao mesmo tempo “ promover seu sentido do humano para estendê-lo aos outros” ). Méncio, preocupado em evitar qualquer formulação redutora , contenta-se em indicar o que se aproxima do sentido do humano, porque este sentido, nele mesmo , é inesgotável e ultrapassa toda definição. Mas n ão estamos diante de um culto do inefável: o fato de que todos os existentes sejam considerados “ implicados” em mim (que eu esteja comple-

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tamente “ munido” no in ício; sentido de bei 1 ) significa plesmente - mas isto é imenso - que me encontro em

sim -

rela-

ção radical com eles (ou seja, que me prende à raiz de meu ser) ligado neles; logo , originariamente eles concernem a mim. E, quando, voltando- me para mim mesmo, verifico que sou efetivamente sensível a tudo o que afeta o outro, tomo consciê ncia imediatamente que estou de acordo com minha natureza (sentido de chengs ) , e é por isto que não há “ alegria maior do que essa” . Que todos os seres que existem fora de mim encontrem-se també m implicados em mim , que me encontro pois implicitamente implicado neles, isto basta para pensar o humano: a moral consistir á simplesmente em desenvolver por meio de minha conduta esta implicação inicial , em tornar explícita em minha existência a integração que está no princípio da vida; mostrar-se humano, como se deve ser, é tornar efetiva em torno de mim esta sensibilidade aos outros que é virtual em mim . Os comentadores ulteriores n ão acharão maneira melhor de caracterizar este sentido do humano senão ilustrando-o em rela ção ao corpo: nos tratados m édicos chineses, o mesmo termo ren (composto do homem e o n ú mero dois) , empregado de forma negativa , serve para designar, o entorpecimento dos membros, m ãos ou pés. Como a energia vital “ n ão passa mais através deles” , tem -se ent ão a impressão de que “ eles não nos pertencem mais” , não os sentimos mais. Ser não- ren é estar entorpecido. Ser renf ao contrá rio, mostrar-se humano, é tirar sua consciê ncia do entorpecimento em relação aos outros, ser receptivo ao que lhes acontece, sentir reforçado o seu la ço vital com eles3.



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dos sentidos não tomam consciê ncia, mas são recobertos pelas realidades de fora. Quando uma realidade encontra outra, ela o arrasta, e é tudo” . Méncio não explora mais como os sentidos são “ recobertos” ou “ velados” (obscurecidos) pelas realidades exteriores e a perspectiva do parágrafo é estritamente moral (opondo o que tem mais e o que tem menos valor em nós: cf. supra, Cap. XI ). A ideia de uma crítica do conhecimento aparece em contrapartida em Xunzi (Cap. “ Jie bi” ) e nos mohistas tardios.

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Cf. Mou Zongsan retomando as análises dos pensadores Songs, Xintiyu xingti. Taipé e Hong Kong, Zhengzhong shuju, 1968, Vol. II, p. 218 e ss.

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Se o homem não se mostra mais humano, é porque sua natureza ficou entorpecida, sua consciê ncia se paralisou. Ao explorar a metáfora, os comentadores chineses souberam mostrar bem o sentimento de interdependê ncia entre mim e o outro, daquilo que se passa originalmente de consciência a consciê ncia ( no que concerne à emoção, à vitalidade) e as manté m solid á rias (assim como os “ membros” de uma comunidade). Do mesmo modo que o influxo circula até as menores extremidades do corpo, exceto quando estas se paralisam , cada consciê ncia está continuamente em relação sensível com as outras, salvo quando ela se enrijece. Assim , n ão há por que se perguntar de que modo, na reação de piedade, pode apagar-se repentinamente a “ barreira” entre o eu e o outro. Pois tal barreira só é estabelecida de in ício por nossa constru ção individualista que se funda no sentimento de si ( assim como em Rousseau; e o problema que ela suscita no plano psicológico revela-se então insol úvel). Mas, de outro lado, també m n ão h á por que invocar qualquer fusão, denunciar a individualização, sem outra saída sen ão a m ística (aquela na qual cai Schopenhauer ao voltar-se para a índia). Quanto a Mé ncio , ele n ão partiu do sentimento de si, mas do sentimento que se tem dos outros em si; ele não nega o indivíduo (ele fala, sim , do “ eu” ) . Em outras palavras, o indivíduo existe, mas não é passível de ser isolado. É por isto que não é um problema o fato de um indivíduo ser sensível aos outros , como ocorre na reação de piedade: ser humano é promover esta dimensão transindividual própria da existência; ser desumano é romper com ela. Para reconhecer esta interdependê ncia radical das existências, e porque nossa psicologia é pouco adequada para isto, tivemos necessidade, recentemente, na Europa, de projetá-la no plano dos valores: nós a transformamos em “ solidariedade” . Ora, esta noção ,

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como se vê , está na base do Mencius; creio que sua reflexão pode esclarecê-la.

3. Com efeito, é uma tal solidariedade entre mim e o outro, fundando-se de um lado acima de nossas existê ncias individuais e me tornando imediatamente - porque originariamente sensível ao outro, que nos revelava a reação de piedade diante do que ameaça o outro. É por esta razão que esta reação, por mais fugaz que ela seja, não é por isto menos crucial. Pois, ao ser repentinamente tocado por outro , sinto de novo que sua existê ncia concerne a mim , tomo consciê ncia do laço que nos une radicalmente - entre existências - de nosso fundo comum de humanidade . Irrompendo de modo imprevisto, pela emoção que suscita em nós, esta reação abala a consciência e a tira de sua apatia; no sentido inverso, tão logo perde de vista esta sua dimensão transindividual da existê ncia , desde que seu horizonte se retrai em fun ção apenas da individualidade, a consciência condena-se a si mesma à esclerose. A reação de piedade pois não é boa em si mesma, e Kant tinha razão de assinalar seu cará ter cego e limitado , mas ela é a “ ponta” de um fio que, aparecendo de repente, me liga a esta comunidade de existê ncia e me permite ter acesso a ela; ela é o ind ício, que surge apesar de mim mesmo, e conseq íientemente inegável, que pode me assegurar este fundo de humanidade. Quanto à moral , ela consiste em partir desta ponta , tal como aflora na experiência, para remontar a seu ponto de partida, a dependê ncia original das existê ncias; em desenvolver esta reação de piedade, que desentorpece de repente a consciê ncia, em virtude da “ humanidade” de tal modo que eu possa encontrar minha “ estabilidade” * permanentemente e aí “ permanecer” (cf. IV, A, 10). Resta tornar mais preciso em que, se ela não é colocada no início, a barreira entre mim e o outro deve instaurar-



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se. Pois, de ordiná rio, não se vê senão eia, a ponto de que acreditamos que ela seja natural. Duvida-se de que esta separa ção seja provocada pelo “ interesse” : o contr ário do bem é a busca do que se crê ser vantajoso para si mesmo, sem mais nenhuma preocupação com o outro ( noção de liu ; cf. VII, A, 25). O Mencius inicia-se mesmo sobre esta oposição: falemos somente da moralidade , e antes de tudo de humanidade, diz o sá bio ao pr íncipe , mais do que do pretenso proveito (I , A, 1 ) . Pois é sobretudo o pr íncipe que, certo de seu poder, arrisca-se a não mais pensar a n ão ser em si mesmo; e é sobretudo por sua posição, vista a incid ê ncia que tem sobre os outros, que este egoísmo é perigoso. É por esta razão que Mé ncio, conselheiro dos príncipes, se permite de ser in sistente (em I, B, 1 a 7): o pr íncipe não deve romper com seu povo, mas “ partilhar” com ele; em vez de viver à custa dos outros, deve pôr em comum suas riquezas; em vez de procurar apenas seu prazer, deve “ alegrar-se com as alegrias de seu povo , assim como preocupar-se com suas preocupações” (e o povo também, por sua vez, n ão deixar á de tomar parte em sua felicidade assim como em suas penas) . Basta que o pr í ncipe seja humano , repete sempre Mé ncio, para que a boa ordem se instaure: que o príncipe desenvolva com pletamente a reação de piedade que sentiu diante do boi que era conduzido ao sacrifício, e o mundo inteiro ficará em paz.

A virtude da humanidade seria suficiente para assegupol ítica ? Parece que, pelo menos uma vez, Mé ncio duvida disto (em IV, A, 1 e 2) . Mesmo com a excelente visão de um Li Lou , reconhece, mesmo com toda a habilidade de um Gongshu, se não se recorre ao compasso e ao esquadro, não poder íamos fazer quadrados e cí rculos; mesmo com os ouvidos de Mestre Kuang, sem o emprego dos seis tubos, não se poderiam determinar corretamente as cinco notas: a que se deve recorrer para fazer reinar a ordem no rar a ordem

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mundo ? Pois n ão pode acontecer que um “ coração cheio de humanidade” não seja suficiente para isto ? “ E por isto que se diz: a virtude sozinha n ão basta para bem governar, do mesmo modo que ( no sentido inverso) a norma sozinha n ão basta para bem se conduzir” . Méncio , contudo, n ão vai mais longe. Pois, se ele reconhece que a política não se reduz à moral e exige uma norma que lhe seja própria, ele n ão pode determinar de que norma se trata. Ele a evoca somente sob um modo emblem á tico: a “ via” dos “ Antigos reis” . Por isto, n ão chegando a nenhuma forma pol í tica , a reflexão fatalmente vacila , e Mé ncio é conduzido a voltar atrás: uma vez “ esgotada” sua acuidade visual , o s á bio a prolonga recorrendo ao compasso e ao esquadro, para poder traçar as figuras, e o uso destes instrumentos ent ão é “ inesgotável ” ; do mesmo modo, continua M é ncio, uma vez esgotada sua capacidade de consciê ncia , o sá bio a prolonga por meio de uma pol ítica “ humana” (a mesma que prové m da reação ao “ insuport ável ” diante do que ameaça o outro) , e “ sua humanidade cobre então o mundo inteiro” . É claro que Mé ncio n ão pôde sustentar a analogia: ele n ão encontrou nada que con siderasse o instrumento sobre o plano político. E por isto que retorna apenas ao sentimento de humanidade. E o an álogo do compasso e do esquadro, no plano social, não é outro , finalmente , do que a personalidade do “ sá bio” (IV, A, 2, início) . O erro do contraditor de Mé ncio (Xunzi — e que lhe vinha do autoritarismo legista) era n ão pensar a moral a não ser em termos de instrumento e de normas comuns; o erro de Mé ncio, em contrapartida (e que é o do confucianismo em geral) , é não pensar o instrumento pol í tico. É por isto que ele n ão pode sen ão se repetir: que o pr íncipe seja humano, e o mundo conhecer á a paz. O limite contra o qual tanto um quanto outro vê m se chocar, em sentido inverso , d á o

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que pensar sobre o que permaneceu inconsistente na ideologia chinesa, pelo menos tal como ela nos aparece vista da Europa. Não descobrindo na natureza nenhum laço originá rio entre os indivíduos, ou pelo menos que fosse suficien te, ou n ão tivesse sido perdido, a Europa precisou limitar a moral ao uso privado e , em contrapartida , estruturar a ordem p ú blica (sobre a base de um contrato) , conceber uma instrumentalidade política - da ordem das instituições e da lei. Ao fundar-se em compensação sobre a virtude da humanidade, acreditando que ela fosse suficiente para assegurar a solidariedade entre os homens, os chineses nunca pensaram verdadeiramente em constituição política. De um lado (o do confucianismo), os “ ritos” (li) n ão são senão uma formalização social da moral; de outro ( na tradição autoritarista) , as “ normas” ( fa: fixando as recompensas e os castigos) não são sen ã o um instrumento de opressão nas m ãos dos dirigentes. Entre os dois, n ão h á nada: nem leis, nem instituições propriamente ditas, mas apenas as engrenagens do poder (a m áquina estatal). E este vazio se vê ainda hoje.

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1. Mesmo quando remonta ao mais longí nquo passado , quando evoca o início do mundo, Méncio situa-se num plano puramente humano. Apenas o homem (o sá bio) intervé m , e sua humanidade basta para dirigir sua conduta; ela lhe serve como virtude prá tica, tornando-o preocupado com a sorte dos homens. Nesses tempos mais recuados, as águas cobriam a terra , mas este dil úvio não traz a marca de Deus, não é sinal de nada. Aliás, Meneio n ão se interroga sobre a origem nem sobre o fim das coisas; o tempo, para ele, começa com os primeiros soberanos ( “ no tempo de Yao” , III, A, 4; ou III , B, 9) , e seu transcurso corresponde ao da civilização. “ No tempo de Yao, o mundo ainda n ão havia encontrado seu equil íbrio; as águas corriam em todos os sentidos e submergiam o mundo. A vegetação era luxuriante e os animais abundavam , as diversas espécies de gr ãos não podiam crescer e os animais impediam os homens de se multiplicar...” Ora , “ Yao apenas preocupou-se com isto” . Promoveu Shun ao papel de ministro e tomou medidas para instaurar a ordem . Shun encarregou Yi de pô r fogo nas montanhas e nos pâ ntanos para expulsar os animais, Yu cavou o leito dos rios para permitir o escoamento das á guas. A agricultura começa então a se difundir, os homens t ê m com que se alimentar. Mas, “ sem instru ção, o homem se assemelha aos ac-

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mais” , pois as necessidades materiais n ão são as ú nicas” - e o sá bio cuidou també m disto. Nomeia um “ ministro da instru ção” para ensinar aos homens seus deveres m ú tuos; e a ordem enfim aparece . O que caracteriza o sá bio é o “ cuidado” v que tem com o mundo (este mundo “ abaixo do cé u” , tian xia); e seu cuidado é ao mesmo tempo material e moral. Pois, longe de se desinteressar pela realidade que o envolve, de aspirar a ultrapassá-la, o sá bio decididamente se encarrega dela, enfrentan do as dificuldades: este mundo sendo para ele a ú nica realidade, ele esforça-se para orden á-lo ( por meio de ministros: tem in ício o funcionariato à chinesa) . Ao mesmo tempo, o cuidado que o guia n ão tem em vista um puro sucesso tem poral, mas exprime uma exigê ncia interior. Prova disto é o que Meneio nos conta sobre o segundo soberano (Shun , em V, A, 1 ) . Este acabou por ser cumulado de tudo o que poderia desejar. Desejo de reconhecimento: todos os letrados do mundo o apreciavam tanto, que vieram até ele; desejo dos

sentidos: casou -se com as duas filhas do imperador; desejo de riqueza: possuiu o mundo inteiro ; enfim , desejo de honra: o imperador escolheu-o como herdeiro. Mas falta-lhe o amor de seus pais - de onde seu “ cuidado” , do qual nada poderia livrá-lo. Se nada pode libert á-lo do cuidado, não é porque ele estaria decepcionado em seus desejos. Sua satisfação não é vã, sua busca não é ilusória. Ele não se sente em falta ao experimentá-las , nem põe em d ú vida o mundo ao qual elas nos ligam . A falta com a qual sofre n ão é pois metafísica, mas moral: ela deve-se ao fato de n ão ter podido cumprir completamente seu dever ( j á que n ão conseguiu , pela piedade filial, fazer-se amado por seus pais). Se permanece “ cuidadoso” é simplesmente porque n ão ampliou suficientemente sua virtude de humanidade em sua conduta.

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Esse cuidado aparece apenas ao olhar da consciê ncia, quando ele “ volta-se para si mesmo” . Se é alvo de maus-tratos, “ o homem de bem deve voltar-se para si mesmo” , para concluir a partir da í que “ lhe deve ter faltado humanidade” (IV, B, 28) ; e, se continua a ser maltratado , deve de novo examinar-se para verificar se experimenta este sentimento de humanidade com toda a autenticidade requerida ( noção de zhongw ) . Para assinalar definitivamente seu cará ter interior, Mé ncio chega até a opor esta forma de preocupação à “ agitação” 3* que nos vem do mundo e que, como tal , não concerne a n ão ser aos bens de fora1. Assim, o homem de bem passa toda a sua vida no cuidado , mas não conhece nenhuma manh ã de agitação” . Ele só experimenta o cuidado interior, mas este cuidado é sem fim: pois, comparando-se ao grande sábio do passado , que , depois, serve de “ modelo” ao mundo (sempre Shun , o soberano precedente) , ele não sossega até ter conseguido imit á-lo. 2. Esta consciê ncia cuidadosa , que serve para caracterizar a moral , não est á somente no Mencius. Pensadores chineses 2 contemporâ neos (Xu Fuguan , Mou Zongsan) assinalam seu aparecimento no início do pensamento chinês ; consideram mesmo que o pensamento chinês lhe deve seus primeiros de-

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Esta valorizaçã o de um sentido positivo dt you como cuidado do mundo nao se limita ao Mencius (cf. principalmente o Zhouyi, “ Xici” , A, §5) ; ela també m n ã o é sistem á tica no Mencius, no qual you pode ser associado a huan, a “ agitação” , em vez de lhe ser oposto (cf., por exemplo, VI , B, 15). Xu Fuguan , Histoire de la théorie chinoise de la nature humaine, op. cit., p. 15 e ss; e Mou Zongsan , De la spécificité de la philosophie chinoise, op. cit. , p. 14 e ss.

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senvolvimentos e que sua originalidade viria dela. Pois, com parada com as formas de consciê ncia que marcaram as grandes tradições religiosas, esta consciência cuidadosa distinguese claramente delas. Na fonte da tradi ção judaico-crist ã encontra-se o abandono o homem sente-se exilado sobre a terra e n ão vê sentido em sua vida. Ao mergulhar neste sen-



timento, ele se abre para a transcendê ncia do Outro, descobre o amor infinito. Por esta razão, sua consciê ncia moral está no fundo ligada à consciê ncia da falta e da carê ncia (cf. o pecado original) . A tradição budista, por sua vez, foi de in ício sensível à inconstâ ncia que afeta toda exist ê ncia, assim como ao sofrimento que nasce de nossas afeições: sua consciê ncia moral está sob o peso do encadeamento sem fim das causas e das retribuições (cf. o karma). Para escapar ao nada, a consciê ncia “ angustiada” do cristianismo refugia-se na esperança da salvação ; para romper com a ilusão , seja a do mundo, seja a do eu, a consciência “ sofredora” do budismo libera-se no nirvana. Tanto de um modo quanto de outro, nos diz Mou Zongsan , o homem , quer tenha partido da experiência do pecado ou de sua aflição, começou por fazer um julgamento “ negativo” sobre a existê ncia; no confucianismo, ao contrá rio, o cuidado que d á forma à consciê ncia n ão é manchado por nenhuma fraqueza, e só ele permite enfrentar o mundo “ positivamente” . Quer nos orientem em direção a um Deus salvador, quer nos façam aspirar à liberação de si, estas tradições religiosas nos conduzem a suspeitar do mundo; mas, para o confucianismo, não há outro mundo sen ão este , e o cuidado que se tem com ele é, do seu ponto de vista, pienamente justificado. Não somente este cuidado é legítimo, mas é ele que leva o homem a progredir, é por ele que o homem pode desenvolver sua “ humanidade” . Este cuidado basta para constituir seu eu moral. Por esta razão, ao beber apenas nas fontes de nosso fundo de humanidade,

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ao valorizar uma consciê ncia cuidadosa, e não uma consciê ncia sofredora ou angustiada, o confucianismo seria, entre as grandes opções conhecidas, a mais apropriada para fundar a moral . Pois enquanto as religiões n ão fazem sen ão recobrir a moral ( j á que suas preocupações est ão alhures) , o confucianismo parte dela. Ele é oriundo tão-somente da exigência moral e não visa a n ão ser desenvolvê-la. De um ponto de vista histó rico, vê-se bem de onde vem esta originalidade. A particularidade daquilo que denominamos tradicionalmente confucianismo deve-se ao fato de que ele n ão é mais verdadeiramente uma religião; pois , em bora proceda de um fundo religioso, assim como as outras tradições do pensamento , não procurou aprofundá-lo. Com efeito, ocorreu uma virada , e bem antes de Confucio , que, em vez de orientar os cultos primitivos no sentido de uma aspiração interior, fê-los passar, na China , por uma formalização ritual: a prá tica divinatoria toma ent ão o lugar da prece; do culto a um Deus pessoal , que comanda soberanamen te o mundo , que se venera e teme (o “ Senhor das alturas” ) , passa-se à apreensão “ respeitosa” ^ da regulação do mundo (simbolizada pela “ Via do Cé u” ). O advento de uma nova dinastia (a dos Zhous, no fim do segundo milénio antes de nossa era) favoreceu esta evolu ção na medida em que conduziu à justificação do sucesso dos dirigentes a partir de sua virtude pessoal: o mandato só é concedido pelo Cé u se for merecido pelo homem , e todo pr íncipe que se entrega a exageros provoca com isto a sua queda. Cabe ent ão ao pr íncipe ser “ esclarecido” 2 . N ão somente ele deve prestar uma escrupulosa aten ção à sua conduta, ficar atento ao menor desvio, como també m abordar cada situação com uma circunspecção reverenciosa: para não perturbar imprudentemente a ordem das coisas, mas conformar-se ao seu princípio e favorecer mas tanto mais eficazmente - a sua evolu ção. A tarefa



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que assume coloca-o portanto no mesmo nível da função do “ Cé u e da Terra” . É por isto que esta função o deixa constantemente cuidadoso; e é este cuidado do mundo desenvolvido pelo soberano (principalmente o rei Wen , fundador dos Zhous) que faz dele a encarnação da regulação do Cé u e o erige como modelo absoluto do mundo humano.

3. Este paralelo entre o confucianismo e nossa tradição religiosa nos faz pensar em dois modos diferentes de responsabilidade: a que nasce do cuidado que se tem do mundo e a que nos vem do sentimento do pecado. A primeira é aquela que é valorizada por M é ncio, e que, na sua opinião, é ilustrada pelos fundadores das civilizações. Para acabar com o dil ú vio e cavar os rios, o grande Yu viveu oito anos fora de casa; três vezes ele passou diante de sua porta, mas não teve tempo de entrar. “ Pois ele considerava que , se houvesse um afogado no mundo, era por sua causa que se tinha afogado” (IV, B , 29) . Mé ncio diz, do mesmo modo, a respeito de um outro ministro dos primeiros tempos (Yi Yin , V, A, 7) que , se o indivíduo mais inferior do mundo n ão gozasse dos benefícios de sua política , ele considerava que era como se fosse ele que “ o havia pessoalmente empurrado numa fossa” . “ Tal era o peso do qual se sentia encarregado em relação ao mundo” (cf. també m V, B, 1 ). A responsabilidade preconizada por Mé ncio é a da tarefa assumida - e que nunca o é suficientemente. Quando ele evoca a necessidade de “ voltarse para si mesmo” para examinar sua conduta, é para que nós percebamos em que medida ainda n ão cumprimos completamente a tarefa que nos incumbe em relação ao outro: para que tomemos consciê ncia de nossa insuficiê ncia, com o fim de progredir, mas sem que haja suspeita de pecado. A hist ó ria de Ad ão, ao contrá rio, torna a responsabilidade insepar ável do sentimento do pecado; e esta histó ria é

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sempre a nossa , mesmo se assume um valor de mito (em Kant: para esclarecer o cará ter insondável de um puro começo) . Pois, para ser posta , a responsabilidade kantiana pressupõe que, cada vez que o homem comete uma falta, esta n ão tem origem , no sentido de causa antecedente, e que o homem sai diretamente do estado de inocência (figurado na Bíblia pelo jardim do Éden) ; ela pressupõe que ele teria podido agir de outra forma, quaisquer que fossem as razoes que o tenham levado a cometer a falta, sem o que ela não lhe seria imput á vel. Minha responsabilidade só é pensável se minha culpabilidade for possível ( considerando o homem ao mesmo tempo como sujeito autó nomo, estabelecendo a lei da razão como sua pró pria lei , e como responsável do mal , quando transgride esta mesma lei). Ela só é pois pensável a partir de uma ruptura de planos, invocando uma causalidade que n ão é natural (esta , podendo explicar tudo empiricamente, torna o homem irresponsá vel) . Ela exige portanto o reatamento com a metafísica ( “ postulando” a liberdade) . Começa-se a ver ao largo de que complica ção (contradição ?) passou o pensamento chinês - ou de que complicação ela se livrou - ao considerar a responsabilidade apenas sobre a base do cuidado do mundo, como tarefa a ser assumida. Eis que a questão da culpabilidade que se impunha a Kant , ao passar para a China, dissolve-se repentinamente. Ao mesmo tempo , mede-se melhor qual é sua dependê ncia em relação a todo um contexto, tanto ideológico quanto con ceituai. Ou seja , ser íamos tentados a dizer de novo , de fora da China , aquilo que Nietzsche disse de dentro: ao continuar a veicular, sob uma roupagem racionalista , o dogma cristão do pecado original, Kant n ão seria senão um representante do “ ideal ascé tico” (graças ao qual , dizia Nietzsche, os padres souberam envenenar a consciê ncia e nos fazer perder o gosto pelo mundo). Nosso sentimento de culpabilida-





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de é sempre m ágico, pela associação que efetua (entre o sofrimento e a falta, por meio do castigo) ; e nossa responsabilidade é sempre fantasmá tica , j á que é ligada à ilus ão do livrearbítrio: como se o forte tivesse assim a escolha de manifestar sua força ou suspendê-la (em outras palavras, como se uma força pudesse ser separada de seu poder) . Mesmo hoje em dia , e sem precisarmos nos referir a Nietzsche, fundando-se somente na tradiçáo confuciana , filósofos chineses, como Mou Zongsan , desenvolveram esta cr ítica: ao manter o homem numa rela ção de depend ê ncia, a religião crist ã o teria impedido de “ afirmar” pienamente sua pró pria existência , de apropriar-se completamente de sua “ natureza” , de aceder a uma “ subjetividade autê ntica” ; ao torná-lo passivo em relação a Deus, ela teria entravado seu sentimento de responsabilidade em relação ao mundo. Mas, ao fazer isto , os filósofos chineses parecem n ão medir o quanto o discurso que sustentam para reexprimir em termos modernos (a saber, os nossos) a originalidade da tradição chinesa, principalmente em face do cristianismo, permanece dependente de noções crist ãs ( pelo menos quando falam de “ subjetividade” a propósito de Mé ncio; estou pen sando aqui em Du Weiming) : como se a antropologia que nos vem do cristianismo pudesse ser a este ponto dissociada do dogma e se apresentasse com a neutralidade de um instrumento; como se o empréstimo que fazem hoje n ão fizesse supor a considera ção de uma outra experiê ncia. Pois foi ao atribuir-se uma livre escolha, ao inventar-se enquanto pecador, ao sonhar com a inocência, que se tornou visível , ao mesmo tempo o “ infinito da reflexão” (cf. Hegel) e as condições de possibilidade de uma subjetividade moral, que se descobriram as contradições da consciê ncia , a ambig üidade de suas motivações, a sinceridade na introspecção (que n ão se reduz ao exame do progresso da conduta) a for ça do re-



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morso ao mesmo tempo que o poder libertador da confissão. Lembremo-nos da cena do lenço roubado por Rousseau (Confissões, II , final). Se Rousseau acusa Marion de ter roubado o lenço, é porque ela ocupava seu pensamento. Diante dos outros, na urgência do acontecimento , o dom se converte em seu contr á rio ; mas sua “ maldade” revela um amor, ela está, como Rousseau o afirma, muito longe de uma maldade verdadeira. “ Eu a acusei [....] de me ter dado o lenço porque minha inten ção era a de dá-lo a ela .” Depois disto, ele passa a buscar sempre a inocê ncia através da falta, e a consciê ncia de sua responsabilidade se aprofunda, na noite do remorso, com aquilo que pôs em perigo n ão tanto o destino de uma vida do que a vida de uma alma para a eternidade. Ao cultivar o sentido do pecado, o cristianismo n ão somente afinou nossa consciê ncia moral , tornando-a mais “ sutil ” , como disse Nietzsche; ele també m no-la revelou sobre o fundo do desejo de Deus: uma aspiração a “ Deus” que nos permite encontrar o outro a partir do interior e do infinito. Esta página de Rousseau não é somente notável pela “ fineza” de sua an álise “ psicológica” como geralmente se diz, ou pela arte de defender. Pois vejo a í, do meu ponto de vista, mais sentimento de responsabilidade do que em todos os relatos de “ reparação” do mundo, do que em todos os esforços que foram feitos contra os dil úvios; eu não conheço mesmo, em toda a literatura chinesa, nada que tenha atingido



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profundidade de “ humanidade” .

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1. A vontade est á no centro da antropologia que nos vem do cristianismo. Rousseau e Kant estão de acordo ao pensar o homem a partir dela. É a vontade que, no Emílio, introduz a primeira separação - aquela a partir da qual tudo se encadeia e da qual resultar á a compreensão do mundo em geral: h á, nos corpos, duas espécies de movimento , o movimento “ comunicado” e o movimento “ espontâneo ou volunt á rio” ; mas apenas o segundo movimento est á na origem de uma a ção verdadeira: “ quero agir e ajo; quero mover meu corpo , e meu corpo se move” , a experiê ncia é irrecusável. Do mesmo modo, em Kant , a vontade é o primeiro termo para órmula de introdução está em pensar a moral. Aí também a f busca de um começo verdadeiro e que se quer o mais geral: “ De tudo o que é possível conceber no mundo, e mesmo em geral fora do mundo, não h á nada que possa sem restrição ser considerado bom , a n ão ser uma BOA VONTADE ” (início da Metafisica dos costumes). Ora, o que faz com que a vontade possa ser boa, “ n ão são as suas obras ou seus sucessos” , não é sua aptid ão para atingir um fim proposto, « e somente o querer” . O querer “ em si” , no estado “ puro” , ú nico absoluto. A noção se impôs t ão bem , que atualmente o pensamento chinês a fez sua ( noção dtyizhi). Entretanto, não en/

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contraremos nada, na tradição chinesa, que tenha permitido que a noção de vontade adquirisse consistê ncia. E, antes de tudo , a China não desenvolveu nenhuma análise das “ facul dades” num plano psicológico. N ão se vê explicitada na China a distin ção entre o que fazemos “ de bom grado” ( ekôn ) ou “ malgrado nós mesmos” , tal como Aristó teles a desenvolve a partir da reflexão que é, na Grécia , ao mesmo tempo a do teatro (Fedro entregue contra sua vontade à sua paixão) , e a da atividade judiciá ria e pol í tica ( para chegar a esta quest ão: em que medida sou responsável do ato cometido ?) . E sobre esta base que Aristó teles distingue o simples desejo do ato cometido “ por preferê ncia” (proairesis) que implica uma deliberação e desemboca num julgamento (que toma a forma de um imperativo) 1. Pode-se retroceder mais ainda na diferença: quase não se vê na China a teorização da idéia de causalidade, tanto no plano da lógica quanto no plano físico ( nem també m , a de finalidade , que lhe corresponde) ; ora, é a partir dela , do lado ocidental , que é compreendida esta capacidade de escolher e de decidir e que a vontade foi definida . Rousseau: deve se sempre “ retroceder a alguma vontade como primeira causa” , eu conheço esta vontade como uma “ causa motriz” . E Kant: a vontade dos seres racionais é a “ faculdade de determinar sua causalidade pela representação de

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Pode-se considerar, como o faz Ren é-A. Gauthier, que “ em Arist óteles a vontade n ão existe” j á que para ele “ o vício é a perversão da inteligê ncia” (La morale d’Aristote. Paris, PUF, 1958, p. 81) . Isto nao impede que, pelas distinçõ es estabelecidas, a ética de Aristóteles tenha pre parado o advento da noção de vontade e este aspecto da tradição aparece ainda mais claramente visto da China ( para um estudo de con junto das distin ções fundadoras, cf. Anthony Kenny, Aristotle’s theory of the will. Londres, Duckworth , 1979) .



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regras” ; ela é uma “ causalidade da razão” , concebida sob o modo da causalidade natural , mas de uma outra ordem . Acabamos também de ver que o pensamento chinês nao conheceu a experiê ncia do pecado. Ora, é sobre o fundo de uma meditação sobre o pecado que a psicologia da vontade aprofundou -se no Ocidente cristianizado e de in ício a vontade foi apreendida como infinita. A voluntas revela-se em sua terr ível grandeza ao mostrar o poder do homem de dizer não, de afastar-se de Deus e de desertar (este modus defective de Agostinho que marca a tomada de consciê ncia da vontade pelo reconhecimento da capacidade do homem de fazer o mal , posse peccare). Enfim , só se pôde dar toda a sua consistê ncia à ideia de vontade desdobrando a psicologia humana numa psicologia divina que lhe serve de modelo (a partir do qual a fmitude do homem se apresenta ao pensamento; cf. em Rousseau: “ Deus pode porque quer, sua vontade faz seu poder” . E em Kant: a vontade de Deus não é somente uma vontade pura , ela é uma vontade santa) . Ora , acabamos de ver que o pensamento chinês muito cedo afastou -se da preocupação com um Deus pessoal e n ão desenvolveu a cosmologia primitiva no sentido de uma teologia. Só isto bastaria a nos fazer duvidar da evidê ncia com a a qual vontade se apresenta aos nossos olhos. Aliás, considerando as coisas de mais perto, percebemos que, ao mesmo tempo em que nossos filósofos n ã o dispõem de outro ponto de partida a n ão ser a vontade, eles são conscientes de que sua “ natureza” nos escapa. Quero mover meu corpo e meu corpo se move , mas não posso “ conceber” como “ isto se faz” (isto é, como a vontade pode “ produzir uma ação física” ): ao mesmo tempo a experimenta de um modo inegá vel, Rousseau vê na vontade um “ mist ério” . Esta evidê ncia é um enigma. Do mesmo modo, para Kant, a liberdade da qual a von tade se prevalece é inexplicável ( já que toda explicação nos



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remete a uma determinação segundo

as leis da natureza e que nossa vontade de seres racionais nos torna independentes delas). Uma “ suspeita” , admite ele, poderia se levantar: e se a ideia de um “ valor absoluto da simples vontade” não fosse senão uma “ quimera transcendente” (M.C., p. 90) - e n ão esta pura “ joia” da moral ? Sabia-se que a noção de vontade era o produto de uma histó ria cultural que, ao nos fazer passar pela Grécia e pelo cristianismo, devia ser, ao final das contas, particular. Mas não sei se j á se tentou imaginar como se poderia dispensá-la ( porque ent ão n ão pertencer íamos mais a esta hist ó ria) . Alé m disto, que incidência pode ter sobre o resto de nosso pensamento o fato de ter assim recortado e destacado progressivamente esta noção de vontade ? Em Kant e em Rousseau , esta histó ria terminou t ão bem, que nos esquecemos dela; a vontade acaba por impor-se de in ício: ela é princípio primeiro, o resto se segue. Jamais acabaremos de medir tudo o que se segue dela.

2. Novamente Nietzsche nos faz pressentir de dentro o que uma passagem pela China nos conduz a descobrir de fora. Pois Nietzsche soube deter-se na “ suspeita” que Kant menciona de passagem. Ele , que levou a noção de vontade ao seu paroxismo (a vontade de poder) , soube ao mesmo tempo ver que não se tratava aí de uma coisa simples, mas “ complexa” de “ uma coisa que não tem unidade senão no nome” ( Para além de bem e mal\ §19). Mais precisamente, o que faz com que acreditemos ser simples uma coisa tão complexa quanto o “ querer” é que dispomos , em nossas l ínguas, de um só nome para dizê-la; e os filósofos, “ mais uma vez” , só fizeram explorar e “ levar ao extremo” este preconceito da l íngua ( mas que, como tal, permanece impensado) . Uma vez mais també m , o que reteremos de Nietzsche é seu talento de filólogo

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(e n ão suas derivações ideológicas sobre o rebanho ou o super-homem ...): a atenção nova que ele dedica ao que a l íngua nos faz pensar, desde os parti pris sem â nticos e gramaticais que são os seus, e que constitui em seguida o quadro “ at ávico” da filosofia (poder-se-ia dizer que h á um ecossistema nocional , a partir das possibilidades oferecidas pela l íngua, à imagem dos ecossistemas da natureza, tal como o da “ fauna” que povoa tal ou qual continente). No caso presente, este “ atavismo” nos vem de uma raiz comum ao indo-europeu e valoriza um sema ú nico, e isolado, do “ querer ” (boulesthai em grego , velie em latim , wollen em alem ão, etc.) . Ora , é precisamente este semantismo do querer que n ão encontramos na China. Meneio fala em “ prestar-se a” , “ consentir” , “ desejar” . O distinguo operado para pensar a sabedoria é o da “ for ça” investida no que diz respeito à “ perspicácia” (V, B, 1 ) ; a virtude louvada na resolu ção é a “ coragem” (II, A, 2). Um termo foi traduzido de modo infeliz por “ vontade” (cf. Legge) , mas seu campo sem â ntico é por demais indeterminado ( noção de zhi * ): ele designa o mais freq íientemente em Meneio a resolução tomada e na qual se persiste; mas pode designar também aquilo a que se aspira moralmente ( “ elevando suas aspirações” , cf. VII, B, 15) , o que é objeto de sua ambição (quer se obtenha ou não, cf. VII, A, 9) , ou mesmo a simples inten ção (oposta à realização efetiva, cf. Ill, B, 4) , ou ainda a implicação de um sentimento interior ( por exemplo , na ocasi ão de uma oferenda, cf. VI, B, 5; e este é “ alimentado” , como se alimenta o corpo, cf. IV, A, 19). Este termo só é explicitado uma vez em Meneio, para designar o que deve “ comandar” a energia de nosso corpo (II, A, 2; “ O espírito deve comandar a sensibilidade” , traduz Couvreur, p. 63). Estas duas funções são então definidas apenas pela sua relação hierá rquica; acrescenta-se, a propósito da primeira, que é preciso “ mantê-la firme” e,

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da segunda, que náo se deve “ fazer-lhe violência” . Quando a instâ ncia que dirige “ unifìca-se” (concentra-se) , ela “ põe em movimento a energia vital ” , mas quando é esta que se concentra , ela põe ent ão em movimento a outra: assim , quando um homem “ d á um passo em falso ou cai , e que a energia vital “ reage” sobre sua função diretora. Finalmente, Meneio assimila esta função diretora à “ consciência” (xin). Em sua análise, n ão intervé m nenhum dos procedimentos explicitados por Aristó teles: nem escolha preferencial , nem deliberação, nem decisão. De imediato, reencontramos Nietzsche. O que se deixa identificar-se mais precisamente, nos diz ele com efeito , no seio desta “ coisa complexa” que é o querer, é a relação de hierarquia. “ Trata-se simplesmente de comandar e obedecer” , mas esta relação, eminentemente simples em si mesma, opera-se “ no interior de uma estrutura coletiva complexa” (que é a de nosso corpo e de sua “ pluralidade de almas” ). O que, a partir da í, sobre a base desta relação hier á rquica, permitiu organizar como noção global a “ vontade” é o que Nietzsche denomina o conceito sintético do eu e que corresponde bem , efetivamente, ao pressuposto da filosofia ocidental: é este pressuposto que absorveu na identidade do eusujeito ( posto como unitá rio e simples) esta dualidade de funções de comando e obediê ncia — e, nos “ enganando a este respeito” , nos faz atribuir a execu ção do querer ao próprio querer. Assim , fica reduzida a um procedimento ú nico , no nível da consciê ncia de si , a diversidade dos processos que se encontram então em ação em todos os n íveis da pessoa. Desde então, disse-se “ eu quero” como se disse “ eu penso” (fazendo exercer pienamente a fun ção sujeito que as l í nguas europeias valorizam de modo mais particular) ; acreditou-se que se tinha a certeza imediata de sua “ vontade” assim como de seu “ pensamento” (lembremo- nos de Rousseau, E., p. " íJ

330: “ Como esta vontade produz uma ação física ou corporal ? Eu não sei , mas experimento em mim que ela a produz. Quero agir e ajo...” ). No final desta perspectiva está o “ livrearbítrio” : sou livre de querer ou não isto. Mas isto n ão significa interpretar o funcionamento em questão, estabelecendo um tal “ eu” que quer, como sujeito ativo, e que seja causa (da qual creio ter uma clara intuição) e, por isto mesmo, desligar a realidade deste processo ? Pelo menos é patente que, na reflexão de Mé ncio , apenas a relação hier á rquica est á em ação, nenhum eu sujeito intervé m para sintetizar a experiê ncia nem mesmo cobrir seu transcurso. Mé ncio e aí está, na minha opinião, o principal interesse do pensamento chinês - ficaria o mais próximo possível do processo. Aliás , não é somente a noção de vontade que está ausente do Mencius, mas, mais radicalmente , a categoria do querer. Verificar-se-á que falta sistematicamente esta oposição esperada: Mé ncio não diz “ poder ” , ou “ querer” , mas “ poder” ou “ fazer” b . Um pr íncipe se perguntava se ele era capaz de desenvolver o fundo de humanidade que, graças ao filósofo, havia descoberto em si. Se vós não o desenvolveis, responde Mé ncio , é porque vós n ão o fazeis, e não porque n ão quereis (I, A, 7) . E para que a distin ção seja “ formalmente” bem estabelecida , M é ncio prossegue: se vos pedirem que pegais uma montanha nos braços e atravesseis o mar do Norte, é legítimo dizer que n ão podeis fazê-lo ; mas, se vos pedirem que colhais um ramo para oferecer a algué m mais velho (a quem deveis respeito) , n ão é verdade que não o “ podeis” fazer, simplesmente não o “ fazeis” . ( N ão podendo conservar esta posição tal e qual, julgando que ela é ilógica, Couvreur sente a necessidade de acrescentar: é “ por falta de ação ou de vontade” . ) Esta oposição entre o poder e o fazer é que estrutura , do in ício ao fim do Mencius, todo o campo sem â ntico que se relaciona com a conduta; pois o ú nico critério que







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Mé ncio leva em consideração, no que diz respeito à capacidade, é o da ação efetiva. Todo o mundo, afirma ele, pode tornar-se o sá bio mais perfeito (Yao ou Shun ) . Basta se conduzir como ele, para sê-lo também e “ isto é tudo” (VI, B, 2) . Levantai o peso de um atleta , e sereis um segundo atleta. Se os homens em geral “ queixam -se por n ão conseguir” , é simplesmente “ porque não o fazem” . “ Se vestirdes as roupas do Sá bio, pronunciais e executais os mesmos atos que ele” , sereis novamente ele .







3. O que dispensa Méncio de usar a categoria do querer ou que o conduz a pensar assim porque ele n ão dispõe dela é que ele concebe a moralidade em termos de potencial de atualização (a partir do fundo de humanidade que tende a se desenvolver em nós, depois fora de nós) , não em termos de escolha e de ação (escolha “ deliberada” -ação “ desejada” ) . Existe a í uma diferença de modelo: do lado chinês, o modelo do crescimento vegetal a partir do germe - sobre o qual voltaremos a falar ; e, do lado grego, a tradição de representar o homem “ enquanto age” , que nos vem da epopé ia e do teatro gê neros que a China n ão conheceu (a Bíblia é també m , em larga medida, um relato de agentes). A primeira conseqiiê ncia, que j á percebemos, é que , n ão passando pela categoria do valor, Mé ncio n ão depara com a questão do mal . Ou pelo menos de maneira frontal: n ão há (e nem pode haver) para ele, diferentemente de Kant, mal “ radical ” . Na sua opinião, a ú nica alternativa é ajudar a se desenvolver a propensão que está em nós (eminentemente positiva: a de nossa natureza) ou deixar que ela se perca. N ão h á necessidade que de deliberação (a China não desenvolveu o monólogo interior) entre o vício e a virtude, Deus ou Satã, o bem e o mal , H é rcules hesitando no encruzilhada dos caminhos, Adão e Eva experimentando a tentação no jardim do Éden .

Pois, na representação chinesa, não há encruzilhada que possa ser abstra ída e isolada a este ponto para criar uma situação limitey heroica, de uma escolha decisiva (e esta antiga simbólica ocidental não foi desenvolvida na China) ; tam bé m não há a prova da tentação que, diante do abismo aberto pela possibilidade do nada , nos faça encontrar o infinito. Temas tr ágicos e m íticos ao mesmo tempo (que são a essência do trágico - que a China n ão conhece e que não se pode representar sen ão de maneira m ítica mesmo em Kant) . É por isto que, a despeito dos efeitos retó ricos do paralelismo, a alternativa moral posta por Meneio, na realidade, n ão é exatamente uma alternativa: ela é de antem ão oblíqua: o mal, para ele, é somente um “ n ão-bem” , como ele diz sempre, e não tem consistê ncia teó rica*. Em suma , poderse-ia dizer que o pensamento chinês n ão procurou esclarecer aquilo que o pensamento ocidental , por sua vez, descobriu de insond ável (“ ... des fur uns Unergründlicheri’ dirá Kant). O pensamento chinês não tem vertigem - ao ponto de ser desesperante**. Mas nos segura pela coerê ncia. Pois ele preocupou-se em esclarecer, em contrapartida , de que modo ,

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Este não-bem n ão é mais um erro, como no intelectualismo filosófico (grego) do “ ningué m é mau voluntariamente” , do que o pecado (como na consci ê ncia religiosa - principalmente judaico-crist ã - da culpabilidade) . De modo gerai , os chineses n ão pensam a falta sen ão como desregulação; eles evitam fazer disto um problema metafísico. ** Ausê ncia de enigma de vertigem , de fascinação: o pensamento chin ês - e creio que isto ultrapassa seu fundo ritualista e confuciano não fala ao nosso desejo de desconhecido. Mais simplesmente, ele não fala a nosso desejo - e isto at é na sua frase. Enquanto pelo seu jogo complexo , sua capacidade de hipó tese, e até seu rigor de sistema constantemente em risco, a frase grega não incita sempre o espírito e , em seu cará ter de exercício , torna possível a jubilação, a frase de Mé ncio , por

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pela atenção que dedica aos processos, como o fenômeno da propensão, que concerne à moralidade, poderia ser bloqueado ou favorecido. Em vez de colocar a questão, fascinante mas insol ú vel ( porque é insol úvel) , da possibilidade de querer o mal, ela nos oferece uma an álise minuciosa dos efeitos do condicionamento. Esse condicionamento deve ser considerado de um duplo ponto de vista , individual e coletivo. Quanto ao primeiro aspecto, a posição de Mé ncio recobre abertamente a de Rousseau (E., p. 292: “ moderação, poucas necessidades” ): recobrimento lógico, já que Rousseau também funda a moralidade sobre a bondade natural e, diferentemente de Kant , não quer acreditar no mal radical ( mas recobrimento somente , pois Rousseau permanece marcado pela consci ê ncia crist ã do pecado) . Se Mé ncio proclama a redução dos desejos, n ã o é porque os desejos, em si mesmos, seriam um mal , mas porque eles podem atrapalhar o desenvolvimento moral da pessoa. A expressão , a este respeito , deve ser lida de perto: “ Para alimentar sua consci ê ncia , de nada adianta reduzir os desejos. Se um homem tem poucos desejos, pode bem acontecer que ele deixe sua consciê ncia moral subsistir, mas ser á raro; se um homem , ao contrá rio, tem muitos desejos, pode bem acontecer que ele deixe subsistir sua consciê ncia moral , mas será igualmente raro” (VII , B, 35) . N ão há exclusão de princípio entre os desejos e a consciê ncia, e a fó rmula, uma vez mais , n ão é prescritiva ( diferentemente de Kant , por exemplo, para quem as impressões sensíveis vão, por princí-

sua vez, n ão é precipitada por nenhuma irrupção se sentido; ela estabelece, é em si mesma regulada. É por isto que ela não é uma festa do pensamento. No que ela frustra uma certa expectativa filosófica ao mesmo tempo que faz aparecer a investigação filosófica como aberração.



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pio, no sentido contrá rio da lei; diferentemente do budismo també m , e o confucionismo posterior, que, influenciado pelo budismo, será bem mais rigorista) ; mas h á, entre os desejos e a consciê ncia moral , uma difícil compatibilidade de fato - que nos contentamos em constatar. Um n ão impede o outro, mas , o florescimento de um ocorrendo “ raramente” junto com o desenvolvimento do outro, a redu ção dos desejos constitui um fator favorável. No plano social, a recomendação de Meneio dirige-se prioritariamente ao príncipe: se ele quiser desenvolver a moralidade em seu pa ís, deve começar por assegurar ao seu povo a suficiê ncia em bens materiais (e para isto Mé ncio desce aos detalhes sobre as medidas que devem ser tomadas: aliviar os impostos, respeitar os trabalhos de estação, economizar os recursos, cuidar de sua repartição em função das necessidades, etc., cf. I , A, 3 e 7) . É apenas quando o povo n ão sente sua vida constantemente ameaçada que ele pode prestar atenção aos deveres de uns para com os outros; é apenas quando não está totalmente ocupado com o cuidado de sua subsistê ncia que pode ter o “ lazer” de cultivar a virtude . Convé m portanto em primeiro lugar assegurar a sua sobrevivência - e esta é a “ base” à qual é preciso voltar - e somente em seguida abrir escolas. Pois hoje vivemos o inverso: ao criar uma situação de afli ção e de insegurança , as m ás condições econó micas rompem os laços de solidariedade, “ separam” os homens uns dos outros e fraturam a sociedade (I, A, 5) . Mé ncio sonharia com um para íso comunista ? Se bateis à casa das pessoas à noite e lhes pedis água e fogo, diz ele como exemplo (VII , A, 23) , elas n ão recusar ão, se estes bens forem abundantes: se os víveres fossem tão abundantes quanto a água e o fogo , a “ desumanidade” ainda teria lugar entre os homens ?

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4. Ao insistir sobre a import â ncia do condicionamento , Meneio associa-se ao mais comum pensamento chin ês no que concerne à eficácia: n áo se deve pretender diretamente o efeito desejado ( pois isto implica forçar, e o resultado ser á precá rio) , mas, antes, fazer com que este efeito possa decorrer, sponte sua, como simples conseq üê ncia , das condições preparadas. Assim , não se deve querer tornar o povo moral for çando-o a corresponder a um ideal imposto, e toda política repressiva é in ú til (ela só serve para prender o povo na “ malha” dos castigos, cf. Ill , A, 3) ; mas, interferindo no processo de evolu çã o, isto é, no está gio de suas condições socioeconô micas, é preciso fazer com que, graças à sua sufici ê ncia, a moralidade decorra disto naturalmente . Contudo, isto n ão conduz Meneio a conceber de maneira determinista a rela ção entre as condições socioeconômicas e a moral (e um pensador chin ês contempor â neo, como Xu Fuguan , foi aten2 to a este ponto, por uma reação contra o marxismo ) . De um lado , trata-se a í de fatores favoráveis , n ão absolutamente necessá rios. Prova disto o caso particular do “ letrado” : se é verdade que, sem condições de vida suficientemente “ est á• » veis , o povo n ão poderia ter moralidade “ est ável ” , o “ letrado” (entendamos aqui o homem da moralidade) pode guardar uma consciê ncia “ estável a despeito da maior misé ria ’ (I , A, 7). De outro lado, os fatores econó micos favor á veis tam bé m n ão são suficientes: um segundo condicionamento é requerido, propriamente moral , que é a educação ( III, A, 4) . Um modelo habita toda essa reflexão sobre a moralidade: o do crescimento vegetal. Pois a experiê ncia que . temos dela é generalizá vel: n ão se pode for çar o crescimento, •A

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Histoire de la théorie chinoise de la nature humaine, op. cit., p. 176.

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“ puxando” a planta para cima; també m n ão se pode desinteressar-se dela, não capinando à sua volta. O primeiro erro é querer obter diretamente o efeito desejado, o segundo é negligenciar o efeito indireto do condicionamento ( II , A, 2): o progresso moral exige, para se realizar, que permaneçamos “ preocupados” (como ao capinar em torno da planta) ao mesmo tempo em que deixamos ao processo o tempo de se desenvolver por si mesmo (sem “ puxar para cima” ) . Esta im port â ncia do condicionamento é medida, aliás, pela diferença dos casos encontrados. Nos anos em que a colheita é boa, observa Mé ncio, os jovens na maioria se conduzem bem ; nos anos em que a colheita é m á, eles tornam -se na maioria violentos: n ão é que seu natural seja diferente, mas as circunst â ncias são tais, ent ão , que vê m a “ devorar” a consciê ncia. É como a imagem dos grãos de cevada ou de trigo: se sã o se-

meados no mesmo terreno, no mesmo momento, e desenvolvem -se diferentemente, é porque o solo é mais ou menos rico e eles não receberam em igual medida a chuva , o orvalho e os cuidados do homem (VI , A, 7). Mé ncio aplica a lição a si mesmo para se justificar ( pois por que ele fracassa em tornar s á bio o pr í ncipe ?). “ Mesmo a planta que mais cresce mais facilmente no mundo só pode crescer, ele constata, se for exposta um dia ao calor, depois dez dias ao frio. Ora , Mé ncio raramente está na presen ça do pr í ncipe, e, logo que se retira, os outros vê m para “ esfriar” o ardor dos bons sentimentos que ele fez germinar (VI , A, 9) . Em geral , esta imagem da “ maturação” da moralidade (VI, A, 19) é interpretada ao contrá rio e veicula um sentido otimista: condições desfavor áveis podem abafar a moralidade, como durante uma can ícula; mas tão logo venha uma chuva, o crescimento é irresistível ( I, A, 6) . Essa import â ncia atribuída ao condicionamento leva a pensar a moralidade em termos de ambiente, ou sob o modo

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de uma influência. Méncio insiste, após Confucio, sobre a qualidade da vizinhança (II, A, 7; a própria m ãe de Meneio teria mudado de casa três vezes para que seu filho estivesse num bom bairro...) . Pois a influê ncia é tanto mais determinante quanto se exerce quotidianamente e sem que nós dela nos apercebamos ( VII, A, 13) . A forma çáo moral, por sim ples freqiientação, se parece com a aprendizagem de uma l íngua ( III , B, 6): a melhor pedagogia, como se sabe, consiste em enviar a crian ça a um lugar onde esta língua seja a mais correntemente falada; pois o condicionamento do meio ser á tal , que, ao final de alguns anos, n ão se poder á obter dela,

nem mesmo à for ça , que fale diferentemente. O mesmo ocorre com o banho moral que o ambiente constitui para nós. M é ncio leva t ão longe este ideal de estimula ção indireta, que chega a inverter a rela ção (II , A, 8) . O primeiro estágio da sabedoria é quando um outro nos informa de um defeito, e “ ficamos contentes com isto” ; o segundo é quando “ agradecemos” à menor palavra de bem que escutamos. Mas o grande sá bio (sempre Shun) compartilha t ã o pienamente o bem com os outros, que prefere “ seguir” o exemplo dos outros para fazer o bem . Pois, ao “ tomar emprestado” dos outros o bem que eles fazem , nós os incitamos por isto mesmo a fazê-lo. A lógica do condicionamento atinge aqui sua profundidade m áxima: porque, ao segui-lo, eu deixo o outro em situação de servir de exemplo, este se sente naturalmente encorajado a se conduzir bem . Em vez de se apresentar a si mesmo como modelo , em vista de influenciar o outro, e de fazer de sua sabedoria um apan ágio, o sá bio mant é m -se retirado; mas esta discrição é a condi ção de uma ver-

dadeira eficácia. Essa boa influência, contudo, seria suficiente para vencer o mal ? Em qualquer lugar, para representar o mal , costumale pô r em cena irm ãos inimigos (Atreu e Tiestes, Etéocles

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e Polinice; ou Cairn e Abel, Isaías e Jacó, Absalão e Amon...). Um grande sá bio (Shun mais uma vez) estava às voltas, nos conta M é ncio (V, A, 2) , com a hostilidade de seu irm ão caçula, em cumplicidade com seus pais. Quando é mandado arrumar um celeiro, algu é m retira a escada, crendo que ele ainda está l á , e ateia fogo; quando o mandam limpar um poço, n ão sabendo que ele já saiu de l á, joga-se terra para soterr á-lo. Este ca ç ula até se vangloria destas façanhas, e pretende apropriar-se de seus bens. Mas eis que, ao entrar no quarto de seu irm ão, encontra-o sentado em seu leito tocando ala úde; ele se diz ent ão preocupado com o irm ão e enrubesce de vergonha; e o outro, magn â nimo, lhe confia uma tarefa... A história é edificante , mas o discípulo de Mé ncio se interroga: o sá bio na ocasi ão sabia que seu irm ão desejava sua morte ? “ Como o teria ignorado , responde Mé ncio, ele compartilhava suas alegrias e tristezas... Mas, ent ão, a alegria que o sá bio mostra a seu irm ão n ão é fingida?” O irm ão, responde Mé ncio, veio a ele “ como se ama a um irm ão” . É por isto que o sá bio confia nele e se alegra . Como haveria aí a menor hipocrisia do sá bio ? M é ncio não diz mais nada; a histó ria terminou logo e não respondeu verdadeiramente à quest ão. Uma vez que, em lugar de enunciar preceitos, contamos uma histó ria , esta é a de um mau comportamento. Mas , em vez de extrair consequê ncias , Méncio faz rodeios com a dificuldade: ele ignora a m á vontade tanto quanto a boa; depois de tanta e cont ínua perversidade, tudo se resolve de modo fácil demais; em relação ao que se poderia tirar do tema, tal como ele é tratado nas outras tradiçõ es, o desenlace da luta fratricida aqui é fact ício (e o discípulo, por meio de suas questões, parece estar consciente disto) . Ora , este problema é o que normalmente nós encontramos no pensamento chinês: ele n ão reconhece o mal enquanto tal (em nome da bondade natural),



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ele absorve sem mais a dificuldade ( na logica da regulação). É certo que eie dispensa o mito da ang ùstia e da vertigem da interrogação; ele n ão tem necessidade de Ad ão. Mas isto també m n ão vai sem um certo escamoteamento.



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1. H á uma outra conseqiiê ncia capital para o fato de se ter isolado a vontade: ser obrigado a pensar na liberdade. Deste ponto de vista, o raciocínio, com efeito , n ão deixa nenhuma d ú vida. N ão h á “ verdadeira vontade sem liberdade” , diz Rousseau ( E., p. 340). E Kant: a vontade é uma espécie de “ causalidade dos seres vivos” , enquanto são racionais , dos quais a liberdade é uma “ propriedade” (M .C., p. 179) . O acordo é t ão geral quanto a definição: negativamente, a liberdade é pensada como independ ência (Kant: poder agir “ independentemente de causas exteriores” ) ; e , positivamente , como autonomia (sempre Kant: uma “ vontade livre” e uma vontade “ submissa a leis morais” s ão uma só e mesma coisa). A liberdade n ão consiste somente em não ser submisso a nada de exterior, ela consiste, de modo mais essencial, em dar-se a si mesmo sua pró pria lei. Estamos aqui diante de uma espécie de evidência , com a qual a cultura ocidental se identificou . Toda a nossa reflexão moral acaba chegando na liberdade - de tal modo o Ocidente a erige como um valor, e até mesmo um ideal . É por isto que, neste ponto, mas que é o ponto central de sua reflexão, Kant e Rousseau são forçados a se reunir. O conceito de liberdade constitui a chave do sistema da razão pura, incluindo a especulativa, e, em Kant, o conceito determinado

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da moralidade remete à liberdade. Para Rousseau, o fato de o homem poder fazer o bem por escolha é que confere moralidade as suas ações, e é por isto que nós fomos “ colocados” sobre a terra “ dotados de liberdade” . A posição — sem fissura deixa pouca margem à crítica. Tão compacto é o acordo, que n ão conseguimos introduzir aí nenhuma contradição; tão difundido também , que não nos beneficiamos de nenhum recuo para interrogá-lo. Pelo menos a partir do interior de nossa tradição (e , a este respeito, existe sim uma “ tradição” - a do “ Ocidente” ). Pois não encontramos a noção de liberdade em Meneio nem no pensamento chin ês ulterior (a ponto de ter sido necessá rio criar um neologismo, ao final do século passado, para traduzir a noção “ ocidental ” de liberdade: ziyouc , “ a partir de si” ) . Meneio, ocasionalmente , tem a idé ia de um homem “ submisso” por sua falta de moralidade (cf. II, A, 7); ou da serenidade do sá bio que é devida ao seu desprendimento em relação aos julgamentos do mundo ou das posições ocupadas (cf. VII , A, 9) . Mas em nenhum lugar de sua reflexão aparece uma concepção positiva de liberdade: não somente lhe falta o termo, mas també m todo o seu pano de fundo , nocional e ideológico. Somos assim conduzidos a aumentar a distâ ncia entre as duas culturas. Se, do lado ocidental, a noção de liberdade foi sempre se enriquecendo e adquirindo consistê ncia, a ponto de se impor como uma evidê ncia no sé culo das Luzes, é porque vinha de experiê ncias que se mostraram decisivas. A Grécia descobriu a liberdade pol ítica, vivida pelos próprios gregos como uma conquista exaltante: de início, como independê ncia em relação ao invasor estrangeiro (os persas) , depois, no interior, como organização democrá tica da cidade (Atenas). O escravo obedece ao homem , o homem livre obedece à lei (nomos). Quando começa o tempo da reflexão a



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este respeito e são elaborados os grandes sistemas , no século IV antes de nossa era (que é também o século de Meneio) , este ideal de liberdade se interioriza: a liberdade n ão é so mente a do cidad ão, mas , enquanto obedi ê ncia à razão, ela

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assume uma dimensã o moral. Ora , a China antiga n ão opôs o estatuto de homem livre ao de escravo; do ponto de vista do exterior, ela não concebeu sua superioridade sobre os vizinhos em termos de liberdade assim como os gregos o fizeram em rela ção aos s ú ditos do Grande Rei , mas em termos de costumes e de educação; do ponto de vista do interior, ela n ão pensou o mau governo em termos de tirania que deve ser derrubada , mas de desordem a ser corrigida. Pois a China não conheceu - nem mesmo concebeu - outra organização polí tica que n ão fosse a realeza; ela era ent ão constitu ída de principados rivais, e n ão de cidades. Num outro plano, metafísico , e n ão mais pol í tico, a partir de uma outra fonte també m , crist ã e n ão mais grega , a liberdade serviu para regular nossas relações com Deus: sua providê ncia deve dar lugar à escolha humana , e o homem é absolutamente livre como ele. Ora, a China , como sabemos, nao aprofundou a noção de um Deus pessoal e n ão concebeu uma modeliza-





ção teológica.

Uma vez grosseiramente delimitada a diferença, restanos tentar dar conta dela do ponto de vista dos parti-pris filosóficos; e , para isto, devemos voltar às oposições que havíamos começado a identificar a propósito da vontade. Se fomos conduzidos a pensar na liberdade , é que concebemos o homem “ enquanto ele age” (Aristó teles, Poética 48 a) , e que , conseqiientemente , desde a epopé ia e a tragédia gregas, colocou-se para n ós a quest ão de saber como o homem se comprometia em sua ação; e é esta categoria da ação, na qual o homem é “ sujeito” , que nós consideramos privilegiada para pensar a moral, tanto em Kant quanto em Rousseau (eles >

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buscam um “ princípio” da “ ação” ; “ O princípio de toda ação de um ser livre” , cf. Rousseau; é preciso pensar o princípio de determinação subjetivamente suficiente da ação” , cf. Kant). O homem é pois livre em relação ao seu est á na vontade

ato. Se n ã o se tivesse pensado a ação como unidade possível do fazer humano, e passível de ser isolada, n ão ter íamos pensado na liberdade. O mesmo se pode dizer do fato de termos explicado a realidade, incluindo a realidade moral, em termos de causalidade (da causa da ação) , e de maneira física. Lembremo- nos de Rousseau ao iniciar a sua reflexão moral: “ Percebo nos corpos duas espécies de movimento, o movimento comunicado e o movimento espont â neo ou volunt á rio. No primeiro, a causa motriz é estranha ao corpo que se move... ” Remetamos esta oposição ao homem: o que torna o homem livre é que “ a causa determinante est á nele mesmo” . “ Para al é m disto , n ão compreendo mais nada. ” Kant , por sua vez, fala da vontade como uma “ causalidade” , da liberdade como uma “ propriedade” (desta causalidade) , concebe as “ leis” morais a partir do modelo das leis naturais ( de uma parte, as leis do mecanismo, “ segundo as quais tudo acontece ” ; de outra , as “ leis” da liberdade, “ segundo as quais tudo deve acontecer” ) . Na jun ção das duas noções, o homem livre, enquanto ser racional , n ão pode pois ser definido a não ser como “ dotado da consciê ncia de sua causalidade em relação às suas a ções” (M.C. , p. 184). Ora, o pensamento chin ês considerou a moralidade n ão sob o â ngulo da ação, mas da conduta , concebida como uma evolu ção cont ínua (enquanto processo: fala-se do curso da conduta como se fala do curso do cé ud ) ; ele n ã o explica a conduta sob o â ngulo da causa (que produz um efeito) , mas da condi ção (que chega a um resultado) . Sua reflexão tem como objeto o como , e não o porquê; seu modelo, como vimos, não é o movimento dos corpos, mas o crescimento vegetal. É por isto que seu

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ideal é a espontaneidade ( no sentido daquilo que ocorre por si, sponte sua) e que ele n ão descobriu a liberdade ( nem seu contrá rio, o determinismo; esta oposição n ão se põe) . O sábio, para os chineses , é aquele que segue a moral “ facilmente” , sem esforço, sem tê-la como objetivo, até mesmo sem pensar nela ( IV, A, 12 ou VII, B, 33; cf Zhongyong, final do §20) . De modo absolutamente natural (ou seja, coincidindo completamente com sua natureza, desposando perfeitamen te a sua propensão) , do mesmo modo que o “ Cé u” ( natureza) , que, seguindo seu curso , n ão cessa de engendrar e de desenvolver a vida. A reflexão moral , na Europa , també m partiu da idé ia de espontaneidade , mas logo a situou do lado da liberdade (a idéia de liberdade “ enquanto poder de espontaneidade absoluta” , cf Kant , R.P., p. 62; “ movimento espont â neo ou voluntá rio” , cf. Rousseau , supra) . Esta reflexão situou a espontaneidade do lado da independê ncia mais do que do lado da imanê ncia, porque a pensou em rela ção ao ato, do ponto de vista da causa, na perspectiva da vontade. É por isto que, na opiniã o do fil ósofo das Luzes, todo ser racional só pode agir “ sob a idéia de liberdade ” (Kant repete vá rias vezes esta fórmula , M.C., p. 183-4) . Cabe a nós considerar, por contraste, como se concebeu a moral na China , sem a id é ia de liberdade , e quais são as conseqiiê ncias disto. 2. M é ncio e Kant compartilham contudo a mesma experiê ncia dos valores: há alguma coisa, afirmam simplesmente , tanto um como o outro, que pode, na nossa opini ão, ser mais importante do que tudo, e pela qual estamos prontos a sacrificar até mesmo nossa vida. Uma coisa, comenta Kant, “ que n ão é absolutamente a vida” , “ coisa que, quando a com paramos ou opomos à vida, esta com todo o seu encanto, perde todo o seu valor” ( R.P., p. 100) . Ora , é exatamente o 3

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que diz Mé ncio (VI, A, 10): “ Amo o peixe e a pata de urso [ prato muito apreciado na China] . Se não posso ter os dois ao mesmo tempo, deixarei o peixe e pegarei as patas de urso. Do mesmo modo, amo a vida e amo a eq ü idade; se n ão posso ter as duas ao mesmo tempo, deixarei a vida e ficarei com a eq ü idade” . É certo que dou valor à vida , mas h á alguma coisa “ à qual dou mais valor do que à vida” , o que faz com que eu não esteja disposto a conservar a vida a qualquer preço; do mesmo modo, temo a morte, mas há alguma coisa “ que temo mais do que a morte ” , o que faz com que haja males que n ão procurarei evitar, mesmo que perdesse a vida . Ora, esta “ consciê ncia” de algo que vale mais do que a vida, n ão é apenas o sá bio que a possui ( mas somente ele é “ capaz de não a perder” ) . Uma prova desta comunh ão de sentimen tos: eis algu é m esfomeado , para quem uma tigela de arroz, um prato de sopa bastariam para manter a vida; mas se nós lhe oferecermos isto de maneira injuriosa, diz Meneio, mesmo se estiver l á de passagem , ele n ão aceitar á recebê-los. As mesmas noções servem a M é ncio e a Kant para exprimir a transcendê ncia dos valores morais. O que faz com que um homem esteja pronto a sacrificar sua vida , em vez de transgredir seus deveres, nos diz Kant na mesma página , é que ele tem consciê ncia de “ manter ” e “ honrar” em sua pessoa a “ dignidade da humanidade” . Reencontramos a noção do lado chinês . Pois h á duas espécies de “ dignidades” , diz Mé ncio ( VI, A, 16): as dignidades naturais, “ conferidas pelo Cé u ” (a humanidade, o sentido do dever, a lealdade...) , e as dignidades sociais, “ conferidas pelo homem” ( pr í ncipe , ministro, grande prefeito.. .) . Se o homem n ão pode suportar parecer aos seus pró prios olhos como indigno de viver, prossegue Kant , é porque ele pode renunciar completamente ao “ valor de sua condição” (material e social) , mas n ão ao valor - de sua “ pessoa” . Do mesmo modo, diz Mé ncio (§17) ,

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desejo daquilo que tem valor ” é partilhado por todos os homens; mas aquilo ao qual os homens normalmente atribuem valor, tais como as honras que o príncipe nos concede “o

ou nos retira , n ão tê m “ valor autê ntico” . Com efeito, todos os homens “ tê m valor neles mesmos” 6 , mas poucos se aper cebem disto. De uma parte e de outra , reconhecemos a mes ma experiê ncia axiol ógica (e Kant nos auxilia assim a 1er Méncio) . Pois, tanto para um como para outro, o que faz o valor de um homem , e que vale até mais do que sua existê ncia, é, em termos kantianos, que a moral lhe permite cumprir sua “ destinação” (conforme a “ sublimidade de sua natureza” ) e o liga ao incondicionado ( ali ás , o “ Cé u” menciano) .

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De modo an á logo, o que, na opinião de ambos, manifesta a transcendê ncia dos valores morais é sua universalidade — tanto no espaço como no tempo. Um primeiro sábio, Shun, veio do leste da China; um outro , Wen , do oeste deste império, e , entre os dois, decorreram mais de mil anos; contudo, suas aspirações concordam perfeitamente. “ S á bios de antes, sá bios de depois, são os mesmos” ( IV, B, 1). Com efeito, todos os homens são “ iguais” do ponto de vista de sua aptid ão para a moralidade (VI , A, 15) . Ningu é m tem um dom particular, nem recebeu favor: os mais sá bios do passado eram homens como eu ; aquele que se conduz como eles só poderá se lhes assemelhar (III, A, 1). É in ú til vir me espionar, replica M é ncio ao enviado do pr íncipe ( IV, B , 32): pois como eu poderia ser diferente dos outros homens ?* *

Para Méncio , este ponto de vista igualit á rio só vale no plano moral - e n ão no plano social. Com efeito , M éncio opoe-se àqueles que, no seu tempo , tendem a apagar as diferenças entre as coisas e as condições, e querem colocar tudo “ num pé de igualdade” ( “ A desigualdade está na natureza das coisas” , sustenta ao contrá rio Mé ncio , contra a corrente tao ísta dos seguidores de Xu Xing que desejavam retornar a uma eco-

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Em outras palavras, todos os homens possuem a mesma virtualidade moral; a diferença entre eles deve-se ao seu grau de atualização. No tempo em que era apenas um sim ples particular e vivia retirado no fundo das montanhas, entre os rochedos e os animais selvagens , o grande Shun quase n ão se distinguia dos montanheses incultos que estavam à sua volta. Mas quando ele escutava uma palavra boa , quando percebia uma boa ação , ent ão, ele ficava “ como um rio cujos diques tivessem sido rompidos” , como uma corrente “ irresist ível ” ( VII , A, 16 ) . Ao se desenvolver, este “ quase nada” ^ pode chegar a um grande efeito. Pode-se verificar isto pondo em paralelo uma outra fó rmula: “ O que difere os homens dos animais é quase nada: a massa das pessoas o perde, o homem de bem o manté m presente ” (IV, B , 19; com parar com IV, B, 28, cf. supra, Cap. VII ) . Entre o homem e o animal a diferença é menos de essê ncia (o que ocorre quan do o homem é concebido à imagem de Deus) , do que de possibilidade. Ela n ão é onto ou teo-lógica , ela é moral e tudo depende do modo como é explorada. Quando o homem n ão toma consciê ncia de sua consciê ncia, ele volta a ser animal; quando ele a manté m presente, ao contr á rio, e é ent ão o sá bio completo, atinge o absoluto do Cé u . Esta di-

nomia primitiva; cf. Ill , A, 4) ; ele opõe-se també m aos que gostariam que tivéssemos uma afei ção igual por todos os seres (os mohistas, que iam contra a preferê ncia familiar que os confucianos sustentam ; cf. III , A, 5 ) . Ao preconizar uma divisão apropriada do trabalho entre trabalhadores “ intelectuais” e trabalhadores “ físicos” , entre aqueles cuja tarefa é governar a sociedade e aqueles cuja tarefa é aliment á-la, Meneio nos remete à divisão bem comum de Aristó teles ( Política, I . 5) . Ele chega mesmo, por meio de um raciocínio duvidoso (cf. Ill, B, 4) , a defender o estatuto privilegiado do letrado em nome de sua contribuiçã o moral para a coletividade.

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feren ça é “ quase nada” , mas pode se tornar abissal. Este ínfimo é infinito; ele tem a infinitude da moral.

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3. O fato de o homem estar pronto a sacrificar até sua vida para “ manter ” e “ honrar” a “ dignidade” humana em sua pessoa, e que haja portanto uma transcendê ncia dos valores morais que confere à nossa natureza sua “ sublimidade” (“ segundo sua destinação” ) , conduz Kant ao dualismo: esta sublimidade de nossa natureza que a lei moral nos faz experimentar, ele conclui em seguida, é a sublimidade de “ nossa existê ncia supra-sensível ” . Pois o raciocí nio é claro a este respeito. Ao estabelecer a vontade como causalidade dos seres racionais, Kant é levado a estabelecer a liberdade que é a propriedade que teria esta causalidade de poder agir independentemente de causas exteriores; e, para que seja possível esta causalidade, de uma ordem diferente da necessidade natural ( j á que esta nega qualquer possibilidade de liberdade por seu determinismo) , Kant é conduzido a supor uma natureza de um outro tipo, que seja independente da experiê ncia e do sens ível: a liberdade, “ se ela nos é atribu ída” , “ nos transporta para a ordem das coisas inteligíveis” ( R. P., p. 56) . Se afirmamos a lei moral e a liberdade, uma repousando sobre a outra, n ão há nenhum outro meio para sair do círculo vicioso a não ser invocando um outro ponto de vista possível e duplicando a realidade (M.C., p. 187) . O resultado é bem conhecido. E o inevitável retorno à distinção entre o sensível e o inteligível, fenô meno e coisa em si, esta atr ás da outra. Ora, esta duplicação da realidade vale para o homem , ele també m pertence a “ dois mundos” , está nos dois lados: “ de um lado” , enquanto pertence ao mundo sensível, est á submetido ao determinismo das leis da natureza ( por seus desejos e suas inclinações) ; “ do outro lado” , enquanto pertence ao mundo inteligível, est á submetido a leis cuja causalidade, independente das leis

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empí ricas, tem como condição a liberdade (as leis morais, nas quais consiste a autonomia da vontade). Por detr ás de seu eu fenomenal, o ú nico que é cognoscível e cujas ações s ão fisicamente condicionadas, somos conduzidos a supor um outro eu, que é incondicionado e lhe serve de funda mento: para sair do condicionamento físico e tornar a liber dade possível, não h á outra saída que não seja metafísica (a da “ metafísica dos costumes” ) . Por esta razão, quaisquer que sejam as denegações de Kant a este respeito (e mesmo quaisquer que sejam , ali ás, seus esforços para fundar a moral a partir dela mesma) , este fundamento da moral permanece um fundamento idealista. Kant pode se vangloriar de ter libertado o pensamento de um mundo inteligível das especu lações que se amontoavam sobre ele até ent ão (estabelecendo-o sobre bases rigorosas, a partir do reconhecimento de uma idealidade do espa ço e do tempo) , mas nunca saiu do

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platonismo. A associação é clara també m em Rousseau . Partindo do princípio demma vontade livre , ele é obrigado , para escapar do determinismo da natureza, a opor duas “ subst â ncias” , uma material e outra espiritual. “ O homem é pois livre em suas ações, e, como tal , animado por uma substância imaterial , eis meu terceiro artigo de fé ” , aquele do qual se “ deduzem” em seguida todos os outros (E., p. 340) . Para justificar a vocação moral do homem , Rousseau deve passar pela refu taçã o do materialismo. “ N ão , o homem n ã o é um” : diante da lei do corpo, há a voz da alma; um é submetido ao “ im pé rio dos sentidos” , a outra aspira às “ verdades eternas” . Eis seguramente mais de um século que se procura ostensivamente tomar dist â ncia em rela ção a tal idealismo (com este sorriso de desprezo, pós-nietzschiano, que fez a humanidade despertar das velhas ilusões com as quais se consolava) ; mas n ão sei até que ponto, no interior da filosofia

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europeia, uma vez que foram estabelecidas a vontade e a liberdade, conseguimos evitar este idealismo. Pelo menos, do ponto de vista lógico. Ora, quanto a Meneio, ele pensa a transcend ê ncia da moral dispensando qualquer posição dualista — ele n ão parece nem mesmo imaginar esta possibilidade. Ele considera o fato de que estejamos prontos para sacrificar a vida em nome da dignidade humana, mas n ão tem necessidade, para isto, de duplicar o mundo (entre o sensível e o inteligível) , nem de opor o homem a si mesmo (a alma afastando-se do corpo) . Ele guarda o ideal da moral , mas sem o idealismo que , entre nós , est á subentendido (sem ser materialista: esta oposi ção , para ele, nã o tem sentido) . Vale portanto a pena ver de que modo ele o faz. Para examinar a diferen ça entre o “ bem” e o “ n ãobem” , nos diz Meneio (VI, A, 14), n ão h á nada a fazer sen ão considerá-la a partir de nosso pró prio ser constitutivo. Assim , descubro em mim que “ h á aquilo que tem mais valor ” , “ que é maior” , “ que é menor ” ; portanto , o que tem menos valor n ã o pode prejudicar o que tem mais, ou o menor n ão pode prejudicar o maior. Pois aquele que alimenta em si o que é pequeno ser á um “ pequeno homem” e aquele que alimenta em si o que é grande será um “ grande homem . Meneio se deté m aí. Ele introduz no seio da realidade hu mana t ão-somente uma diferen ça de valor n ão de essê ncia ou de princípio; a separação que ele opera é puramente axiológica, sem suporte metafísico. Prova disto é a comparação que se segue: um diretor de jardins que negligenciasse os pl átanos para cuidar dos jujubeiros selvagens seria um mau horticultor ( pois ele estaria deixando de lado o que tem mais valor - os pl á tanos - em proveito do que tem menos os jujubeiros). A comparação parece evidente (e os comentadores chineses n ão se demoram nela) , mas, vista de fora , do lado da metafísica ocidental, torna-se reveladora: pois os plà-





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tanos e os jujubeiros, entre os quais a diferença é estabelecida , são igualmente á rvores, e pertencem à mesma categoria. Segundo nossos termos, existe aí apenas uma “ essência” . Uma segunda comparação confirma isto: aquele que cuidasse de um de seus dedos e negligenciasse seus ombros e suas costas, e sem se aperceber disto, estaria se conduzindo como um lobo furioso” . Mais uma vez, o dedo, os ombros e as costas pertencem ao mesmo plano: n ão aparece a menor separação entre o que seria o “ sensível ” e o “ inteligível ” ou a “ alma” ( “ imaterial ” ) em relação ao corpo. Se os homens são iguais do ponto de vista de sua aptidão para a moralidade, pergunta-se a M é ncio (ibid., §13) , de onde vem o fato de que uns, seguindo o que é pequeno neles, tornam -se pequenos, enquanto outros, seguindo o que é grande neles mesmos, tornam -se grandes homens ? Os ó rgãos dos sentidos, como os ouvidos e a vista , responde Mé ncio, n ão tê m por fun ção perceber e pensar: “ recobertos” pelas coisas exteriores , seu com é rcio com elas os conduz somente a serem “ arrastados” por elas. Quanto ao ó rgão da consciê ncia , ele tem por função perceber e pensar: “ se ele pensa , atinge seu objeto, se n ão pensa , n ão o atinge” ; em outras palavras, segundo se exer ça ou n ão , a consci ê ncia “ toma” ou “ n ão toma” consciê ncia” . Poder íamos crer que esta oposição entre os sentidos e a consciê ncia, remetendo ao que tem mais ou menos valor, leva Mé ncio ao dualismo; mas, uma vez mais, os dois termos da oposição pertencem a uma mesma entidade: a consciê ncia é um “ órgão” g , que exerce uma função particular (a de tomar consciência) , no mesmo plano que os outros órgãos (somente sua função é superior) . É por isto que Méncio pode concluir que tudo, em nós, tanto o que tem menos valor quanto o que tem mais, nos é “ conferido” pelo Cé u-natureza; é por isto també m que ele podia iniciar esta reflexão afirmando que tudo, “ ao mesmo tem -

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po” , em nosso ser, deve ser “ amado” , e, conseqiientemente, não se pode deixar de lado a menor parcela de pele. No ser do homem , nada deve ser rejeitado mas convé m estabelecer uma prioridade. Meneio vai mais longe. A integração é tal entre os sentidos e a consciência , que, longe de nos distanciar do corpo, a atividade da consciê ncia vem reforçar nossa unidade essencial . Mé ncio tem esta fó rmula marcante ( VII , A, 38) : “ Nossa constituição física é nossa natureza que emana do Cé u . Mas somente o sá bio pode manter pienamente sua constituição física” . Mé ncio n ão se contenta em afirmar que a natureza humana é una , em nós, e que sua constitui ção física não é desprez ível (pois tudo nos vem do “ Cé u” , este Fundo sem fundo do real) ; a ú ltima expressão vem , por acr éscimo, barrar qualquer eventual dualismo (e é por isto que ela nos parece tão compacta e resiste à tradu ção) . O verbo que traduzo por “ manter ” significa ao mesmo tempo pisar (como se diz pisar num caminho; sempre o motivo chin ês da “ Via” , isto é, da viabilidade) , chegar até o fim (como se diz chegar ao trono) , assim como ser fiel a seu compromisso: o sá bio “ mant é m” sua constituição fisica 11 assim como se mant é m sua promessa ( cf . Zhu Xi ) . Muito longe de qualquer ascetismo, a imagem nos diz que só o sá bio pode desenvolver completamente sua consciê ncia, porque só ele pode empregar seu “ físico” . Ele é o ú nico que pode verdadeiramente “ exercitar” seu corpo ( isto é , gra ças à inteira consciê ncia que ele tem do real) , e, por este meio, levar todo o seu ser ao seu pleno regime*. N ão somente Mé ncio evita assim duplicar o



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Mencius, que retoma estas principais noções, mostra bem esta unificação do ser do homem pela moral e seu desabrochar físico: “ O que o homem de bem mant ém , por sua natureza” ,

* Uma outra passagem do

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homem , mas indica també m a tendência de sua unidade: o





compromisso concreto com a realidade ( um pensador neoconfuciano contemporâ neo como Xu Fuguan julgou que se deveria insistir sobre este ponto, para reagir à budização ulterior do pensamento chinês 1). Pois, longe de ser levado a se desinteressar pelo mundo, a procurar se desvencilhar dele , o sá bio chinês, como veremos, é levado a triunfar no mundo.

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r são as quatro virtudes morais (cf. as quatro “ pontas” da moralidade que afloram na experiência) ; “ estas se enra ízam na consci ê ncia , crescem e se manifestam impregnando com sua harmonia o ar da face , se desenvolvem em toda a amplitude das costas e se espalham pelos quatro membros, tão bem que estes apreendem sem que se tenha de lhes dizer

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nada” (VII , A, 21) . “ O conjunto desta discussão , comenta Legge, fiel ao dualismo ocidental, é muito forçado” (p. 460). Ibid., p. 185.

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1. M é ncio representa aqui o papel de um turista estrangeiro , tal como o persa que lança o olhar novo, porque do exterior, sobre nossos pensamentos ( mas um ‘‘persa” que teria vindo de mais longe - que seria mais estrangeiro ainda). Em sua companhia , revisitamos a moral. Ora , falta ainda um ponto para que completemos a volta do horizonte: a quest ão da felicidade, ou, mais exatamente, da retribuição da virtude por

meio de uma felicidade proporcional a ela. Ainda aqui, Kant tem o m é rito de esclarecer a questão. De in ício , mostrando como felicidade e virtude est ão necessariamente ligadas no seio do soberano bem (a priori e sem que isto derive da experiê ncia): a virtude é o bem supremo, sem nenhuma outra condição acima dela , mas n ão é o bem completo; é necessária, alé m dela, a felicidade que se merece, e isto mesmo do ponto de vista de um querer racional e perfeitamente desinteressado. Em seguida, analisando a natureza do laço entre elas: j á que virtude e felicidade são dois elementos completamente diferentes um do outro, este laço n ão pode ser uma relação de identidade (a virtude reduzindo-se à felicidade, ou vice-versa) , e só pode ser a relação de causa e efeito; e, como é absolutamente impossível que o desejo de felicidade pessoal conduza à virtude, somente a hipótese inversa, de que a virtude conduz à felicidade , permanece logicamente passível

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de ser considerada. Mas esta hipótese é desmentida pela experiê ncia, pois é só “ acidentalmente” que, neste mundo, a intenção moral é efetivamente recompensada. O encadeamento de ideias é o mesmo em Rousseau , no qual encontramos a exigê ncia de uma retribuiçã o da moralidade (E., p. 343-5): “ Quanto mais entro em mim , quanto mais me consulto, mais leio estas palavras escritas em minha alma: Sê justo e serás feliz” ); encontramos igualmente em Rousseau, logo em seguida , uma constatação negativa em relação ao mundo (“ ... Mas isto n ão acontece, contudo, se considerarmos o estado presente das coisas; o mau prospera e o justo é oprimido” ) . Ora , é importante sair dessa contradi ção (a antinomia da razão pr á tica) , tanto mais que ela põ e em quest ão o fundamento da moral ( já que a felicidade necessariamente faz parte do soberano bem e que a impossibilidade de o soberano bem n ã o ocorrer comprometeria a lei moral, tornando-a “ fant ástica” , R.P., p. 128). Mas a solu çã o estava prevista de antem ão e n ós mesmos já a conhecemos. Ela est á na duplicação do mundo à qual conduzia a ideia de liberdade. Se n ão é verdade que, neste mundo, a inten ção virtuosa produza necessariamente a felicidade, isto será possível num outro mundo (e numa outra vida). Basta “ procurá-la bem longe da possibilidade” , diz Kant - “ muito longe” , ou seja, para al é m de nossa experiê ncia , num “ mundo inteligível ” . Basta estabelecer Deus. Pois, na idéia de Deus, encontro ao mesmo tempo, graças ao seu poder absoluto, a idéia de uma causa da natureza que, como causa suprema, é distinta da natureza (de suas determina ções recíprocas) ; e, graças à perfei ção de seu querer, a certeza de uma concordâ ncia exata entre a felicidade e a moralidade (ou seja, existe neste mundo uma causalidade que é conforme à intenção moral).

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Novamente, Kant e Rousseau estão de acordo (eles só podem estar de acordo) ; é por isto que um caminha sobre os passos do outro) . Um “ postula” a existê ncia de Deus para que o soberano bem seja possível, o outro “ presume” que a alma receberá de Deus a felicidade que mereceu . Tanto para um quanto para outro , a solu ção é “ mediata” , como diz Kant, ela só é possível num outro lugar e depois ( num outro mundo, após a morte, cf. Rousseau: “ Oh! Sejamos primeiramente bons, e depois seremos felizes!” ) . De um lado, a solução “ ultrapassa nosso entendimento” , mas, de outro, ela n ão tem nada de “ irracional” , diz Rousseau ; é uma “ cren ça racional ” , afirma Kant. Ora, Mé ncio destrói esse quadro. Pois ele n ão pode escapar da questão da conexão entre a felicidade e a virtude, e é nisto que o quadro teórico elaborado por Kant nos ajuda a 1er com mais rigor o pensador chin ês (fazendo aparecer inelhor seus desafios e sua l ógica original) . Ao mesmo tempo, Mé ncio n ão ocupa nenhuma posição considerada até aqui. (1 ) Assim como Kant , ele considera que felicidade e virtude s ão coisas distintas , que, conseqiientemente , uma deve produzir à outra, e que for çosamente a virtude é que deve produzir a felicidade (ao contr á rio dos epicuristas e dos estoicos, que, como diz Kant, assimilam uma à outra , seja reduzindo a virtude ao m áximo de felicidade, seja confundindo a felicidade com a consciência da virtude) . ( 2) Mas , diferentemente de Kant, M é ncio considera que esta ligação necessária entre a felicidade e a virtude deve realizar-se de modo imediato , neste mundo j á que ele n ão concebe nenhum outro.



Novamente podemos medir a dist â ncia entre as representa ções culturais. Quando resolve a antinomia da felicidade e da virtude postulando a existência de Deus, ou seja , passando pela intermediação de um “ autor inteligível da na-

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144 tureza” ,

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Kant retorna à solução crista (R.P., p. 141) ; do mesmo modo, a profissão de fé do Emilio continua a ser a de um “ vigá rio savoiano” ; Rousseau reitera a queixa de J ó e copia o Salmo. Ora, a tradição cultural à qual Mencio pertence permaneceu alheia às cren ças na salvação e na imortalidade da alma ( cren ças que encontramos , no seio de nossa tradição filosófica, desde os mitos plató nicos); ele n ão pode, portanto, imaginar uma duplica ção do mundo , segundo a qual um mundo viria compensar o outro e nos consolar, nem recorrer à media çã o de um Deus justiceiro. E já que, para recompensar a virtude, ele não dispõe desta comodidade teó rica de um para íso , e não pode pois esperar uma “ com pensação” numa outra vida , a ú nica solu ção que lhe resta é afirmar que a virtude é recompensada neste mundo - o ú nico — de maneira imediata. Nã o há outra escolha , a n ão ser provar que a retribuição da moral é imanente: a justiça reina sobre a terra e não tem necessidade do além . Na falta de uma fé possível , Meneio deve limitar-se a esta linha: a conduta moral leva ao sucesso temporal. A tese deve verificar-se na histó ria, e em princípio negativamente: “ Aquele que oprime seu povo da maneira mais violenta perecer á de morte violenta e seu reino ser á destru ído; se a opressão n ão for muito violenta, sua pessoa estar á em perigo e seu reino será diminu ído” ( IV, A, 2) . Prova disto é a ascensão e queda das dinastias: é pela sua virtude de humanidade que as três dinastias passadas ganharam o mundo, e por sua falta de humanidade é que o perderam (ibid., §3) . Mas isto n ão vale apenas para o soberano, e, de alto a baixo da escala social , todas as condições são submetidas ao mesmo princípio: “ Se o Filho do Cé u n ão é humano, n ão poder á conservar o mundo; se um prí ncipe n ão é humano, n ão poder á conservar os altares de seu reino; se um grande oficial não é humano, não poderá conservar seu templo ancestral; e se um

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homem comum, enfim , não é humano, não poder á conservar seus quatro membros” . Este princípio retributivo n ão é somente pol ítico , mas vale també m no plano pessoal e convida a todos a voltarem-se para si mesmos (ibid., §4). “ Se algué m ama os outros, mas os outros n ão lhe testemunham nenhuma afeição” , que então se interrogue sobre sua própria “ virtude de humanidade ” ; “ se algué m quer fazer reinar a ordem , mas n ão consegue” , que se pergunte então sobre sua “ sagacidade” ; “ se algué m é polido com os outros e não é recompensado” , que se interrogue sobre seu “ respeito” . Da í vem a generalidade de uma m áxima: “ Quando , em sua conduta, alguém n ão obté m alguma coisa , deve sempre voltarse para si mesmo e procurar qual a razão disto” . Meneio resolve a questão levando a contradi ção às suas raízes: é o pró prio homem que atrai para si a infelicidade; esta se deve à imoralidade de sua conduta. 2. Poder-se-ia dizer que Meneio apenas mudou de idealismo, ou melhor, que ele nos oferece somente um sucedâ neo. N ão podendo apoiar-se sobre um idealismo metaf ísico, rigorosamente definido (a partir da oposição entre o sensível e o inteligível , entre a vida terrestre e o paraíso) , ele se contentaria com o idealismo vulgar que é a facilidade do moralismo (o mundo é conduzido por bons sentimentos) . Não podendo imaginar um outro mundo, no qual a justiça se realizasse, ele teria feito deste mundo uma utopia. Ora , n ão é isto que acontece, pelo menos num primeiro momento. O sucesso temporal da virtude não é, para Meneio, um desejo piedoso; ele sustenta esta tese de uma maneira pragm ática e por meio de argumentos realistas: os que visam seu interesse pessoal , ele demonstra, vão de fato contra seu pró prio interesse; a busca do proveito, no fundo, não é proveitosa. Meneio não defende a virtude em nome de um dever ser imagi-

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ná rio , mas por causa de sua eficácia no mundo: se quiserdes estender vosso poder, diz Meneio ao pr íncipe, vós podereis fazê-lo muito menos recorrendo à força cujo sucesso é sem pre precá rio e limitado - do que deixando simplesmente agir vosso sentimento de humanidade. A posi ção é por demais paradoxal , numa primeira abordagem, para que não a questionemos. Pois, de nossa parte, havíamos distinguido, desde sua origem , dois sentidos da palavra virtude. O primeiro designa a disposição interior que nos leva a fazer o bem (como quando se fala em virtude da eq ü idade ou de humanidade) , o segundo designa uma qualidade que torna próprio a um certo efeito - dá a força de produzi-lo (como quando se fala da virtude curativa de uma planta ou quando dizemos “ em virtude de” ). O primeiro sentido, moral , quase não ousamos mais utilizá-lo hoje em dia, j á notava Valéry; quanto ao segundo, nós nos limitamos a empregos prá ticos. Ora, o termo chinês que traduzimos por virtude conserva estes dois sentidos indissociados. Segundo a glosa mais clássica, de, a virtude moral, é interpretada pelo verbo, hom ó nimo tornando-se sinó nimo, que significa “ obter ” 1 : ser “ virtuoso” em seu foro interior permite “ obter ” no mundo. Se, do lado europeu , tivemos que man ter separados os dois sentidos do termo, é porque aumentamos a dist â ncia entre o subjetivo e o objetivo, a alma e o mundo de um lado, as aspirações da consciê ncia, e, de outro , o curso das coisas como ele é (e esta dist â ncia , que se pode aumentar ao infinito , sempre fecundou nosso pensamento) . Ora , creio que o pensamento chin ês explorou a possibilidade inversa e extraiu daí uma outra fecundidade: todo o real é por ele concebido em termos de processo (cf. o tema comum da “ via” , o tao), e esta categoria ú nica tendeu a reduzir a distâ ncia entre o domínio moral e o físico. Desde que exista em mim , de um modo invisível, a capacidade moral

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tende a manifestar-se para fora, de modo sensível. O sensível está no prolongamento do invisível como simples consequê ncia , e n ão separado dele (como ocorre em nossa ontologia ) ; é por isto que o cumprimento da virtude ( no sentido em que se fala de uma virtude realizada) confundese com sua objetivação. Ou , como diz Méncio (IV, A, 12; cf. Zhongyong, §23), desde que eu coincida perfeitamente com minha natureza , esta n ão pode deixar de exercer seu efeito naturante e, conseq üentemente, não pode deixar de “ colocar” (os outros e eu mesmo) “ em movimento” . O Mencius inicia-se com este diálogo. Se vós haveis feito todo este caminho para me ver, diz o príncipe ao filósofo , é porque sabeis certamente como servir aos meus interesses. “ Por que falar de interesse ? ” , lhe responde Mé ncio. Pois se pensais em vossos interesses, que concernem a vosso principado, vossos maiores oficiais então pensarão no interesse de suas casas e os homens comuns pensar ão no interesse de suas pessoas. De alto a baixo , todas as rela ções serão fundadas no interesse e vosso principado estar á em perigo. Pois cada um vai querer mais do que j á possui e terá inveja dos que estiverem acima dele. Se colocais o interesse na frente, este se voltar á contra vós; pois as pessoas nunca ficarão satisfeitas “ enquanto não tiverem tirado tudo de vós” . Mas, se colocardes a moralidade antes de tudo, sereis recompensado (cf. també m IV, B, 3). O mesmo debate ocorre entre Mé ncio e um conselheiro dos pr íncipes para convencê-los a n ão se engajarem em hostilidades (VI, B, 4); não desaconselhais um príncipe a guerra em nome de seu interesse, mas em nome da humanidade, pois sen ão todo mundo, em seu reino, qualquer que seja sua posição, não pensará senão em seu pró prio interesse, e o reino, fundado em tais relações, correrá para sua ru í na.







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Mencio não censura o principe por procurar estender seu poder, o que é objeto de seu “ grande desejo” , como ele o faz confessar, mas leva-o a reconhecer que ele n ão está tomando o bom caminho. Pois existe uma contradição entre seu desejo e os meios empregados: um principado que , para impor-se, recorre à força, sempre estará em minoria, pois todos os outros se aliarão contra ele, e a relação de força só poder á se exercer em seu detrimento (I, A, 7). A respeito desta contradição pró pria a toda conduta interessada, Meneio varia à vontade as imagens: é como subir em galhos para procurar peixes, ou como detestar a embriaguez e beber como um buraco (IV, A, 3) ; ou como ter horror da umidade e habitar em porões (II, A, 4) ... Pois neste caso procura-se um proveito naquilo que far á nosso desastre. Ficaremos pois com esta conclusã o: n ã o é o homem de bem , mas o homem interessado que, do pr óprio ponto de vista dos interesses mais tangíveis, revela-se irrealista.

3. Vê-se assim que o egoísmo, ao erigir os outros contra nós, contribui para nos enfraquecer. Mas o que confere ao altruísmo seu impé rio sobre outrem ? Mé ncio concebe o poder pró prio da virtude de humanidade segundo duas l ógicas complementares - de propagação e de atração. A primeira deve-se à for ça da exemplaridade, pois o exemplo, como vimos, exerce um condicionamento tanto mais forte quanto mais discreto for. A partir da personalidade do pr íncipe, ele difunde-se progressivamente, por contaminação do bem , até o fim do mundo (cf. IV, B, 5; VII, B, 20; VII, B, 32) . Ora , longe de ser m ágica, esta transmissão da moralidade em cadeia explica-se pela estrutura imbricada do real. Com efeito , os diferentes graus da sociedade - a partir do indivíduo até chegar ao mundo inteiro, passando por estágios intermediários da fam ília e do reino n ão são justapostos uns aos ou-



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mas cada ordem mais ampla “ enra íza-se” no est ágio precedente, portanto, comunica-se internamente com ele e tende a desenvolvê-lo mais ampiamente (IV, A, 5; cf. também o in ício do Grande estudo, Daxue, que sistematiza este encadeamento) . Logo, a influê ncia difunde-se por si mesma , a partir do indivíduo , percorrendo esta escala em sentido inverso. A ponto de podermos tirar daí uma gest ão polí tica (IV, A, 6) . Não é tão difícil governar, diz Mé ncio, basta não ofender as grandes fam ílias; pois quando um príncipe é ligado às grandes fam ílias, ter á todo o principado ligado a ele: “ sua virtude e seu ensino difundir-se-ão por todos os lugares - inundan do-os” . Ou ainda, esta propagação é mais rá pida do que uma ordem transmitida pelo correio (II, A, 1 ): pois a ordem nos é exterior, como qualquer palavra, e sua injunção nos constrange por sua rigidez; enquanto a influ ê ncia nos impregna em segredo, e , misturando-se o mais intimamente possível em nossa existê ncia , lhe d á uma inflexão sem violentá-la. Outra imagem desta difusão invisível mas invasiva, ao mesmo tempo leve e penetrante, que é contí nua , mas que não se gasta , que nos orienta sem pesar sobre nós a do vento (cf. j á as Conversações de Confucio, XII, 19) . “ A virtude do homem de bem é como o vento, a das pessoas comuns como a erva: quando o vento passa, a erva se inclina” ( III , A, 2; cf. VII , B, 15) . N ão poderemos compreender a influê ncia determinante que os chineses atribuem à exemplaridade se n ão levarmos em conta a import â ncia que atribu íram , de modo mais geral, de par com sua preocupação com o processo, ao fenô meno da transformação. E, novamente, o contraste com a Europa é eloq üente. Pois, a partir do modelo é pico, por tradição heroico, concebemos a eficácia a partir da açaoy que, como tal, é a de um sujeito autó nomo e voluntá rio. Mas esta açã o, nos dizem os pensadores chineses, t ão-somente pelo tros,



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fato de intervir no curso das coisas , está sempre numa relação de ingerê ncia em rela ção a este curso; como ela n ão se desfaz de uma certa exterioridade, ela est á sempre numa posi ção em falso em relação a ele; portanto, esta a ção é sempre, numa certa medida, arbitrá ria. De outro lado, ela intervé m aqui, e n ão l á, é sempre local e momentâ nea ( mesmo que durasse dez anos, como a Guerra de Tróia...) , sua incidência é pontual . Como intervé m arbitrariamente e é isolada, esta a ção se demarca e se salienta no curso das coisas, logo, é observada; mas seu aspecto espetacular n ão é sen ão a contrapartida de seu pouco poder - e do fato de que ela é ao mesmo tempo arti e super-fidai . Ao contrá rio , a transformação caracteriza-se pelo fato de que ela n ão é nem design á vel ( a uma vontade particular) , nem localizável ( num ponto e num momento dados) , desenvolve-se na dura ção e sobre todos os pontos ao mesmo tempo: n ão é pois isolá vel , n ão se demarca , logo, n ão é vista. Ao mesmo tempo difusa e discreta , im percept ível em seu curso, mas manifesta por seus efeitos. E por esta razão que os chineses acreditam mais na iman ência da transformação do que na transcendê ncia da ação: não nos vemos envelhecer, nã o se vê o rio cavar seu leito, e, contudo, é este desenrolar-se impercept ível que faz a realidade da natureza e da vida. O sá bio age pois o menos possível ( projetando seu plano sobre o mundo, de maneira “ ativista” ) ; mas, pela sua influê ncia, transforma naturalmente. Sob a influência do homem de bem , diz Mé ncio (VII , A, 13), “ o povo progride dia a dia sem perceber que progride. Onde passa o homem de bem , opera-se uma transformação; onde ele fica, uma eficiê ncia invisível se exerce” ( noção de shen ] ) : esta dimens ão invisível não é senão a contrapartida do car á ter ilimitado do processo. A atração exercida pelo sá bio age em sentido inverso ; aqui també m , o fenô meno n ão é m ágico, n ão se deve a ne-

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nhum efeito de fascinação ou de magnetismo mas se explica de modo pragm á tico. Se as pessoas se juntam por si mesmas ao redor de um bom príncipe, é porque aí encontram seu bem . Ali ás , o poder de atração é tanto maior quanto, na China do final da Antiguidade, como conseqiiê ncia da decomposição das antigas estruturas feudais , a população goza então de uma maior mobilidade e pode ir mais facilmente aonde quiser ; e como a China neste tempo é dividida em principados rivais e a popula ção, que é empregada para cultivar a terra ou fazer a guerra, constitui um dos principais fatores de poder, cada pr íncipe tem todo o interesse em atrair para si o maior n ú mero de pessoas. Para conseguir isto, basta ter “ cuidado” com o povo tomando medidas humanit á rias que se impõem , principalmente, como vimos, no plano economico ( I , A, 7) . Meneio mostra mesmo em detalhes como a população pode ser incitada a vir, se o pr í ncipe se dedica a melhorar a sua condição ( II , A, 5). Se honrais os homens de valor, todos os letrados do império desejar ão ser da vossa corte (cf. també m VI , B , 13): basta que o pr íncipe ame o bem para que a ordem seja assegurada , pois ele atrair á bons conselheiros; senão , atrairá bajuladores que , procurando apenas seu interesse pessoal, conduzi-lo-ão à sua perda; do mesmo modo, se, no mercado, exigirdes o aluguel das lojas e não impuserdes direitos sobre as mercadorias, ou melhor, se vos contentardes em estabelecer regulamentos e n ão exigirdes nem mesmo o aluguel, todos os mercadores do im pério desejar ão comercializar seus bens em vossos mercados; se, nas fronteiras, controlardes as pessoas, mas n ão exigirdes impostos, todos os viajantes do impé rio desejar ão passar por vossas estradas. Se dos camponeses só exigirdes a ajuda necessá ria ( no cultivo do campo comum ) , mas nenhum imposto particular, todos os cultivadores do impé rio desejarão cultivar vossas terras ; se , enfim , isentardes os mercadores de

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taxas ordin á rias ,

todos os habitantes do impé rio desejarão ser vossos s úditos. Ao tratar as diferentes categorias sociais com humanidade, o príncipe aumenta proporcionalmente o seu poder. Pois todos os que vêm a ele o beneficiam com sua competê ncia e riqueza; e, como o fazem por si mesmos , levados pela lógica da situação, sua adesão é confiável e seu concurso é efetivo. Longe de ser um desejo piedoso ou a expressão de um bom sentimento, a for ça de atração objetiva exercida pela liberalidade do pr íncipe remete à economia pol ítica; ela se aproxima até mesmo , por meio da supressão dos entraves e das imposi ções , do liberalismo.

4. A eficácia da virtude participa pois da for ça das coisas, ela tem sua razão na histó ria . H á uma imagem que expressa esta espontaneidade desta tend ê ncia que decorre da situação: o povo tende para um príncipe mais humano da mesma maneira que a á gua corre para baixo. “ Tender ” k significa ir aonde n ão se pode evitar de ir, em fun ção de uma propen são natural ( como vimos, a imagem serve para exprimir a propensão de nossa natureza para o bem ) - ao mesmo tem po capacidade de imanê ncia e legitimidade de sua realização. O bom príncipe, com efeito , é tanto o ref úgio quanto o recurso (I , A, 6 e II, A, 1 ) ; pois, inversamente , os príncipes egoístas e tirâ nicos fazem os s úditos fugirem: assim como a lontra faz os peixes fugirem para o fundo das á guas ou o gavi ão faz fugirem os pardais para o mato (IV, A, 9) . Se um príncipe consentisse em ser humano, conclui Mé ncio, todos os outros príncipes expulsariam tão bem as populações para ele, que, mesmo que desejasse não exercer a realeza, n ão poderia contudo deixar de fazê-lo. Méncio insiste sobre o car á ter irresist ível do processo que conduziria um príncipe humano a superar os outros e reinar sobre o mundo. Este sucesso n ão é aleatório, é inelu-

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pode deixar de acontecer” , “ nada o poderia impedir” . Ele chega até a fixar um prazo para este triunfo: se um príncipe, mesmo de um pequeno reino , realizasse a política do rei Wen , em sete anos exerceria seu poder sobre todo o impé rio ( IV, A, 7 e 13) . Uma vez mais, para justificar este sucesso, encontramos a idéia de que o verdadeiro efeito é indireto, que é da ordem da conseq üê ncia, e não da visada. Pois o erro de um homem interessado é que ele aspira diretamente ao sucesso temporal: colocando-o como objetivo, ele deve for çar a situação para aproximar-se dele, nunca está seguro de alcançá-lo, e, obtido pela força e de maneira pontual, este sucesso permanece precá rio e tem pouco alcance. Ao contrá rio, o que torna seguro o triunfo do homem de bem e lhe permite desenvolver-se sem limites é que ele decorre naturalmente da situação engajada: em vez de ser casual, como todo plano que é projetado, ele est á implicado em condições de evolução; em vez de ser voluntarista, ele é levado pelo jogo dos fatores favor áveis; como n ão foi obtido (como um objeto) , não pode pois ser perdido. Ele é o fruto maduro , prestes a cair. “ Submeter os homens com o bem” ( IV, B , 16 ) , diz Mé ncio , não poder íamos conseguir isto. Nem mesmo o bem pode servir de meio para um dado fim . “ Mas , se, com o bem, alimentam-se (educam-se) os homens, pode-se em seguida submeter o mundo inteiro” : sob o efeito da influência favorável, esta submissão é fácil , como resultado; e este, decorrendo de uma verdadeira adesão, é ilimitado (cf. II, A, 3) . É por isto que o sucesso temporal da virtude, em definitivo , é simples. Virtuosos como eram , os grandes príncipes do passado souberam se impor “ sem dificuldade” (II, B, 2). Este triunfo nunca foi tão fácil quanto hoje, diz Méncio, já que jamais um bom governo foi tão raro, jamais os povos sofreram tantas medidas desumanas, e que portanto jamais t ável, “ n ão

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eles aspiraram tanto a submeter-se a um prí ncipe que desejasse o seu bem . Mas, então, por que este insucesso ? O triunfo da humanidade sobre a desumanidade, responde Meneio (VI, A, 18) , é t ão inelut ável quanto o da á gua sobre o fogo. Mas o que ocorre hoje é que quereis apagar uma “ charrete em fogo” somente com “ um copo d’ àgua” (vossa pouca humanidade) .

XIII A TERRA É IGUAL AO CÉU

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1. Bastou que part íssemos de uma outra ideia da eficácia , que esta fosse concebida como um resultado indireto, mas decorrendo naturalmente, e não em função de um fim estabelecido, que nos esforçaríamos por atingir, numa relação de meio e fim , para que víssemos logo serem apagadas as distinçoes de base que nos serviram para pensar a moral. Com efeito , Meneio tem consciê ncia da exigê ncia categórica da moral , no sentido kantiano do termo: a conduta moral deve ser desinteressada , remete a uma necessidade incondicionada ; ela é boa em si, e n ão como meio em vista de um fim qualquer, vale por sua “ inten ção” ( um dos sentidos de zhiX para M é ncio e “ quaisquer que sejam as conseqii ê ncias” (M.C., p. 128). Ao mesmo tempo, esta exigê ncia moral é , para Mé ncio , como vimos, a melhor maneira de vencer no mundo, n ão se distingue dos “ conselhos de prudê ncia” que conduzem à felicidade temporal . Estaria então dissolvida a oposição entre, de um lado , o ponto de vista moral, “ categó rico” , que sacrifica os interesses do mundo ao absoluto dos valores, e, de outro, o ponto de vista pragmático que é a “ precau ção” tomada pelo “ bem -estar ém geral ” . Uma história é composta “ pragmaticamente” , afirma Kant numa nota da Metafísica dos costumes ( p. 129) , “ quando ela torna prudente” , ou seja, “ quando ela ensina ao mundo de hoje como

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ele pode cuidar de seus interesses de um modo melhor ou tão bem quanto o mundo de outrora” . Ora , é esta histó ria pragm á tica que Meneio sempre compõe , dirigindo-a aos pr íncipes, relacionando o presente ao passado. Mas , ao fazer isto, ele não se desfaz de sua pura ambição moral . Existe a í mais do que um paradoxo. Meneio gostaria de nos fazer conciliar o inconciliá vel. J á que se dirige ao pr íncipe e que sua perspectiva é pol ítica, pode-se representar assim a contradição: todo o esfor ço de Mé ncio seria fundir a virtude kantiana , voltada para o absoluto do bem , e a virtù maquiaveliana, que dá poder sobre o mundo e permite triunfar nele. Pois o problema, para Meneio, é o mesmo que Maquiavel tinha em vista: como “ adquirir ” e “ conservar” seu poder, no seio dos principados, pela instauração de uma “ ordem nova” . Engajado nesta via, Meneio vai o mais longe possível para tentar o impossível. Pois pode-se imaginar fazer coincidir a exigê ncia moral com o sucesso estraté gico ? Ou bem far íamos mal em aumentar a dist â ncia entre virtude e virtù? O ponto é tanto mais notá vel quando se sabe que na China do final da Antiguidade, na época dos “ reinos com batentes” , desenvolveu-se uma reflexão estratégica completa. Ora, Mé ncio prefere responder aos teó ricos da estraté gia tomando-lhes emprestadas suas armas ( II , B , 1 ) . Entre os crit é rios que nos servem para avaliar as rela ções de for ça , colocai a “ via” em primeiro lugar: se o povo é solid á rio com seus dirigentes e compartilha suas aspirações, ele está pronto para morrer por eles e não teme o perigo (cf. Sunzi, Cap. 1 ). Vem em seguida o “ Cé u” , isto é, as condições clim á ticas (que decidem pela escolha do momento) , assim como a “ Terra” , isto é, as condições topográficas (das quais dependem as van tagens no terreno) . Ora, efetivamente, retoma M é ncio, tomando como exemplo a guerra de cerco, o fato de que se

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tenha podido sitiar um lugar, vem de que se soube aproveitar o bom momento (cf. o “ Cé u” ) ; mas se n ão conseguimos sitiar um lugar, isto se deve ao fato de que as condições do terreno n ão contribu í ram (cf. a “ Terra” ) . Imaginai agora uma praça forte cujas muralhas são altas e os fossos profundos, cujos defensores são bem armados e as provisões abundantes ; pode contudo acontecer que seus habitantes a abandonem e fujam: é a prova de que as vantagens oferecidas pelo terreno t ê m menos import â ncia do que a concó rdia entre as pessoas. Vós mesmos reconheceis, pois o colocais em primeiro lugar, que o fator moral é preponderante. Aquele que, seguindo a via moral, consegue o apoio un â nime da população é “ muito mais ajudado” ; no extremo , o mundo inteiro o apoiar á . Enquanto aquele que perde o apoio popular será abandonado por seus pró prios pais. Uma tal relação de for ça n ão pode deixar d ú vida sobre o resultado do conflito. O que, graças ao acordo moral , se beneficia do apoio de todo o im pé rio, ataca aquele cujos pr ó prios pais abandonaram , n ão tem necessidade de combater, ou , ent ão, se combate , est á certo de que vai ganhar. Pois, ao contrá rio da tradição guerreira que nos é mais familiar na Europa , que consiste no confronto dos exé rcitos e na “ batalha organizada” , toda a “ arte” estraté gica na China consiste em fazer a relação de força tender a seu favor, antes mesmo que se inicie o combate, de modo que, quando este se inicia , esteja ganho de antem ão; assim, o combate não é aleató rio nem destrutor. Por isso é que se diz, nos antigos tratados militares chineses, que o bom general só conquista vitórias “ fá ceis” ; e que, conseqiientemente , ele n ão tem grandes feitos para celebrar (a China , como j á se notou, não compôs epopé ia). Como ele soube operar de antem ão o processo an tagonista, pela ordenação de condições favor á veis (cansando e paralisando o inimigo) , a evolu ção que termina na vit ó ria

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parece assim ocorrer por si mesma. Ora, longe de refutá-la, Mencio aplica esta concepção da eficácia indireta, radicalizando-a. O fator moral pesou tão bem em favor do príncipe humano, cuja ú nica ambição é a solidariedade que o une ao seu povo, que este fator, exercendo-se previamente em relação aos outros, vem suprimir até mesmo a possibilidade do conflito. Ao levar ao extremo a lógica estratégica, Meneio chega a poder dispensar qualquer estratégia. A arte de dispor as tropas ou de conduzir a batalha torna-se in ú til (cf. VII, B, 4) , e a virtude de humanidade, antecipando-se às outras condições, basta para vencer. Mas se, vendo que, ao seguir a via moral , começais a vos fortalecer graças à adesão da qual vos beneficiais os principados vizinhos, mais poderosos, decidissem tomar a frente e vos atacar (III, B, 5) ? Mé ncio responde a esta questão pelo modo como outrora a dinastia dos Shangs se instaurou . Tang, seu fundador, tinha como vizinho um príncipe corrupto que chegava até a negligenciar os sacrifícios, sob o pretexto de que n ão tinha nada para sacrificar. Tang lhe envia então bois e carneiros, mas este pr íncipe devasso os come, em vez de fazer a oferenda; depois Tang lhe envia provisões, mas o outro manda matar uma das crianças que traziam os víveres. Por isso, quando , depois deste assassinato , Tang manda uma expedição punitiva contra ele, ningué m , em todo o império , considerou que ele tinha feito isto “ para se enriquecer” , mas sim para “ vingar os pais desta criança” . Neste caso, a guerra é “ justa” (VII , B , 2) ; é porque esta expedição punitiva não encontrou nenhuma resistê ncia que Tang pôde, a partir daí, estender sua autoridade sobre o mundo inteiro (cf. também I , B, 11). Os povos, de um lado a outro do mundo, são impacientes para aproveitar de um bom governo. Num mundo entregue à crueldade, a chegada de um príncipe humano é tão ardentemente esperada quanto se es-

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pera a chuva no tempo da canícula. Meneio chega até a dizer, no extremo (I, A, 5) , que um prí ncipe verdadeiramente humano poderia, “ com simples bastões” , resistir aos exércitos mais bem equipados. 2. Assim como a virtù maquiaveliana , a virtude menciana conduz a triunfar mas exatamente ao contrá rio. Pois, quando refletimos a este respeito, Maquiavel também, no caso dos fundadores de impé rio, gosta de mostrar que estes sem pre recorreram à violê ncia e ao crime; depois como conseguiam impor-se, esta viol ê ncia foi esquecida, foi aureolada de virtude, e seu poder tornou-se legítimo. Maquiavel desmistifica a histó ria mostrando sobre qual golpe de for ça, cuidadosamente escondido em seguida, repousou a nova ordem. Mé ncio , ao contrá rio, faz questão de reduzir ao m í nimo este recurso à for ça (principalmente a propósito do rei Wu , sucessor do rei Wen , o fundador dos Zhous, contudo chamado de “ Guerreiro” ) ; a moral não procederia de uma idealização posterior, sua influência é inicial. Todavia , Maquiavel e Méncio estariam de acordo num ponto. Maquiavel reconhece que os grandes fundadores obtiveram êxito porque aproveitaram de um “ momento favorá vel ” . Mas, como d á mais importâ ncia à virtù do príncipe, às voltas com a fortuna, ele permanece relativamente impreciso a respeito da ocasi ão do ponto de partida: Ciro encontra os medos submetidos; Teseu re ú ne de novo os atenienses que estavam dispersos; Rô mulo apóia-se sobre errantes e banidos do Lácio. Para o homem da Renascença, o fundador trabalha uma maté ria humana defeituosa ou caó tica, propriamente anô mica, e por isto tanto mais receptiva, à qual ele se propõe a dar uma forma, imprimindo-lhe for ça , em função de seu plano inovador. Eis- nos de novo do lado (europeu ) do ato criador, demi ù rgico, originado de uma idéia e



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sustentado gra ças à vontade, pela qual o homem enfrenta o mundo - até quebrar-se contra ele (como César Borgia). Do lado chinês, ao contr á rio, n ão se encontra em nenhum lugar a relação entre uma forma e uma matéria, o bom príncipe não projeta nenhum plano sobre o mundo e quase n ão toma iniciativa ( basta-lhe deixar q ú e sua humanidade opere) ; a fundação da nova ordem se parece menos com a categoria do ato e mais com a de processo. É por isso que, para Mé ncio, o ponto de partida para as grandes dinastias é muito mais do que uma ocasião oferecida pela fortuna , ocasi ão que o príncipe aproveita com habilidade; ele é, sozinho, por seu car á ter de carê ncia (carê ncia de humanidade) , a condi ção de possibilidade da evolução que vai se seguir. Uma vez mais, a ógica inelutável da conseq üê ncia (do lado chin ês) , substitui a ordem - provável somente — da finalidade (do lado grego) . Por esta razão , a virtude pode ser um fator suficiente na determinação do curso das coisas e dispensa a virtuosidade, e a autoridade, adquirida espontaneamente graças ao condicionamento moral , reduz ao m ínimo o recurso à força*.

* O interesse do pensamento de Mê ncio , quando ele toma a direção contrá ria à de Maquiavel , manifesta-se com tanto mais clareza quando o comparamos à nossa própria crítica moral do maquiavelismo, e principalmente ao Anti Maquiavel de Frederico II , particularmente representativo do espírito das Luzes ( prefaciado e publicado por Voltaire em 1740). Assim como Mêncio, Frederico II opõe a “ humanidade” à violê ncia e pretende mostrar que a conduta de um príncipe imoral voltase facilmente contra ele. Mas, diferentemente do que encontramos em Mê ncio, sua diatribe contra o imoralismo em pol ítica não repousa sobre nenhuma an álise da eficácia indireta e dos processos de condicionamento. E por isso que sua apologia da virtude não diminui em nada a posi ção pragm á tica de Maquiavel e limita se o mais freqiientemente aos lugares-comuns da retó rica humanista.

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O m é rito de Meneio, definitivamente, é ter conseguido, talvez melhor do qualquer outro, integrar o ascendente moral no seio das rela ções de força , até mesmo ter feito deste ascendente moral um fator mais eficaz do que a força; ter assinalado a importâ ncia , discreta , mas decisiva, do assentimento (sempre em fun ção da atenção em relação aos processos de condicionamento) . Segundo as categorias pol íticas de seu tempo , o triunfo pela força , “ hegem ó nica” , é sempre temporá rio e limitado , e só o triunfo pela moralidade é verdadeiramente “ real” e pode durar (II , A, 3) . Isto não impede que seu pensamento pareça marcado por um importante trabalho de denegação. Normalmente tão respeitoso para com as tradições, Meneio não pode “ crer” nas batalhas sangrentas que são relatadas , nos antigos livros de documentos, a propósito da fundação das dinastias (VII , B, 3); mas também n ão permite que se “ duvide” ( I , A, 5) desta afirma ção, da qual chegar á a fazer sua divisa pol ítica , repetindo sempre: “ Um pr í ncipe humano n ão poderia ter adversá rio no mun do inteiro” ( traduzimos por adversá rio, em vez de inimigo, já que se trata menos do desaparecimento de todo sentimen to hostil , por purifica ção interior do que, em termos de força, como acabamos de ver, da impossibilidade de uma resistê ncia ) . Ora , dada sua generalidade , este princípio , que n ão poderia mais ser garantido pelos fatos (pois os fatos, à primeira vista, n ão testemunhariam antes o contrá rio?) , parece desafiar a experiê ncia e transformar -se em artigo de fé. Pois, j á que n ão se trata somente de uma hipérbole, e sua formula çã o, no centro do propósito menciano, faz mais do que simplesmente abrir uma escapada retó rica, ou ent ão lhe servir de linha de fuga , devemos lhe atribuir um fundamento absoluto: de onde vem então esta autoridade, em nome de que - ou antes, sobre qual fundo Mé ncio pode afirm á-lo ?



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3. Seu fundamento absoluto n ão é dado de imediato, nos fatos, mas també m nao vem de um verdadeiro alhures, e é nisto que consiste sua originalidade. Não podendo efetuar uma duplica çã o do mundo, Meneio não poderia conceber um pano de fundo metafísico em que ancorar a moral ; n ão dispondo de nenhum suporte ontoteológico ( nem mesmo o verbo “ ser” existe no chinês clássico) , não pode assentar o dever ser sobre um Ser eterno e verdadeiro , nem fixar a noção do bem em Deus. Em contrapartida , é na ideia do Cé u , tal como lhe é fornecida pela tradição religiosa, que ele encon tra o termo incondicionado que lhe permite radicalizar sua concepção e atingir o absoluto. Estendendo-se ao infinito, mas já cintilante à proximidade de nossos olhos, de uma profundidade abissal, mas integrada à natureza (cf. Zhongyongy §26) , o Cé u est á para alé m do horizonte , onde toda experi ê ncia é ultrapassada. O fundo sem fundo do mundo, mas que não é separado dele; do mesmo modo que o lugar de alargamento de todos os fenô menos, mas que não é objeto de nenhuma especulação teó rica — que també m n ão é preenchido por nenhum conte ú do dogm á tico ( diferentemente da id é ia de Deus). E por isso que a experi ê ncia se ultrapassa nele , mas sem consumar a ruptura com sua manifesta ção sens ível e sem se distanciar da l ógica do processo . Verificamos isso retomando a argumenta ção iniciada. Se todas as categorias da população vê m a vós porque encontram sua felicidade em vossa humanidade, diz Mé ncio ao pr íncipe (II , A, 5) , os pa íses vizinhos n ão poderiam vos atacar, e “ vós n ão tereis nenhum adversá rio sob o cé u ” ; ora , aquele que n ão tem nenhum adversá rio sob o cé u é o “ em pregado” do Cé u 111 : “ Nestas condições, não pode acontecer que não se seja rei” . J á que o Cé u n ão é exterior aos processos do mundo, mas é sua totalização regulada, a conduta humana , desde que não tenha nada mais de parcial ou egoísta

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e que coincida completamente com o interesse comum , en contra a l ógica do Cé u e assume uma outra dimensã o: o ho mem é ent ão seu “ empregado” (mas n ão seu enviado: a no ção é funcional , e n ão messi â nica) ; e como se beneficia do

apoio do mundo e está na convergê ncia de todos estes processos, seu “ reino” , no sentido mais forte do termo, est á aí implicado. Por isso os chineses o denominavam tradicionalmente “ o Filho do Cé u” . Existe sim a transcend ê ncia — o “ Cé u” para alé m de nosso horizonte -, mas na medida em que o curso regulado que é o seu n ão se constitui como um outro mundo em rela çã o ao mundo humano, esta transcend ê ncia do Cé u se converte num fundo de imanência. Fundo sem fundo da re gulação das coisas, ela confunde-se finalmente com o natu ral . Lembremo- nos de que M é ncio havia distinguido dois tipos de “ dignidades” : as dignidades naturais que nos são conferidas pelo Cé u ( humanidade, senso de dever, lealdade , etc. ) e as dignidades sociais que são conferidas pelo homem ( pr í ncipe , ministro, grande prefeito...) . M é ncio prossegue (VI , A, 16) : “ Os homens de outrora cultivavam as dignida des conferidas pelo Céu e as dignidades humanas vinham em seguida. Enquanto os homens do tempo presente cultivam as dignidades conferidas pelo Cé u tendo em vista obter as dignidades humanas; e quando as obt êm , negligenciam as que s ão recebidas do Cé u” . Isto é o c ú mulo da cegueira, conclui Mé ncio; e sua aniquila ção, finalmente, é inevitável. Esse desenvolvimento é h á bil , pois permite conciliar ao mesmo tempo a transcend ê ncia dos valores morais (a das dignidades conferidas pelo Cé u) e sua eficácia de um ponto de vista pragm á tico (que consagra , em seguida , a atribui ção das dignidades sociais) . Com efeito, é porque se cultivam os valores morais por si mesmos que se obtém indiretamente um poder sobre o mundo ; as virtudes t ê m a virtude de nos

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conduzir ao sucesso. Enquanto, se cultivamos os valores morais de modo interessado, em vista de um sucesso temporal, este sucesso é precá rio e nada tem de autê ntico. Ele é ao mesmo tempo imoral ( já que é interessado) e artificial ( já que é intencional e produto de uma habilidade) , e portanto, de antem ão, condenado. Ao contrá rio, ao mesmo tempo em que é perfeitamente moral ( já que nã o é posto como objetivo, como no caso do imperativo hipoté tico) , o sucesso indireto da virtude é absolutamente natural (e reencontra ent ão o absoluto do “ Cé u ” : já que decorre somente da situação , pela simples via da conseq üê ncia ; uma vez mais, é o indireto que torna possível um efeito verdadeiro). Este sucesso tem poral é justo e , ao mesmo tempo, somente ele é real e dur ável. Pois, em vez de ser um epifenomeno, est á ancorado no curso das coisas; em vez de procurar for çar a situa çã o ( por meio de um projeto individual) , ele resulta dela sponte suay sob um modo impessoal , imanente , e exclusivamente pela lógica do processo engajado. Ora, a conseq üê ncia de conseguir assim associar o natural e o moral é capital (ali ás, podemos medir esta conseq üê ncia por contraste, do ponto de vista exterior que é o nosso) . Pois , em vez de opor a terra ao Cé u , de supor um reino dos cé us que vem compensar a in justiça humana , M é ncio manté m os dois planos emparelhados: a terra , que é o est ágio de atualização das coisas, promove a ordem que emana do Cé u (tianmingn ), tornando-a concreta; condicionando ( j á que é o lugar de individua ção) , o terrestre prolonga o incondicionado. Este “ terrestre ” é legitimado. Mas o que faremos então com os desencadeamentos da violê ncia sobre a terra, com as situações injustas ? Mé ncio precisa distinguir entre os dois estados do mundo - quando está em ordem de quando n ão est á em ordem , quando é moral de quando não o é ; mas ele se recusa a dissociá-los.



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“ Quando o mundo segue a via, aquele que tem menos vir tude submete-se a quem tem mais virtude; o que tem menos sabedoria submete-se ao que tem mais sabedoria; quando o mundo não segue a via, o menor se submete ao maior e o mais fraco ao mais forte” . Mas os dois casos, afirma Mé ncio, “ devem-se igualmente ao Cé u” (IV, A, 7) . Mesmo as puras rela ções de força integram -se na ló gica do conjunto da realidade (que encerra a noção de Cé u como totalidade do Processo ) ; por mais decepcionantes que sejam , eles n ão deixam de constituir um m ínimo de ordem (à moda chinesa: pela hierarquia) e não implicam que se procure alhures uma outra ordem . É por isso que M é ncio pode concluir da maneira mais abrupta e sem deixar que apare ça o menor estado de alma: “ Quem se conforma ao Cé u ( mesmo nos casos de puras rela ções de força) , este sobrevive; e quem a ele se opõe , perece” . Ou , como ele diz com mais precisão em outra passagem , a propósito dos príncipes, mas recorrendo a formula ções que são menos decantadas em rela ção ao seu antigo fundo religioso, “ quando o mais poderoso serve o que é menos, ele d á prazer ao Cé u; quando o menos poderoso serve algué m que o é mais, ele teme o Céu: quem d á prazer ao Cé u conserva o mundo inteiro e quem teme o Cé u conserva o principado” . Pois o primeiro é pienamente “ humano” e o segundo somente “ alerta” (I , B , 3) . Mas as duas atitudes são igualmente justificadas; submeter-se aos casos de força maior é també m ser moral . Pois , se eu não posso comandar outro, Méncio manda dizer a um príncipe, e, ao mesmo tempo, n ão aceito receber ordem dele, eu me “ separo” então da realidade. E a ru ína é merecida. Vós n ã o tendes, com efeito, nenhuma outra possibilidade, conclui Mé ncio: seja consentir em obedecer a algué m mais poderoso que vós , seja fazer como os reis sá bios do passado e estender progressivamente vosso impé rio graças

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à moral. Por meio desta alternativa, Mencio manté m as duas coisas: ao mostrar que as relações de for ça també m fazem parte da razão das coisas , ele exclui de antem ão tudo o que poderia romper a coerê ncia do conjunto do mundo e apelasse para outro mundo (implicando duplicá-lo para com pensá-lo) ; ao mesmo tempo, ele n ão põe em questão a eficácia da moral e sua virtude pragm á tica.

4. Ao final de sua racionaliza ção filosófica ( mas que nunca é completamente acabada) , e como manifesta ção de sua união com a terra no seio de uma mesma l ógica reguladora, o Cé u de M é ncio é levado a encontrar no “ povo” seu correspon dente terrestre . Nós també m temos o ad ágio segundo o qual “ voxpopuli, vox dei” ; mas M é ncio constrói a teoria do ad ágio (em V, A, 5). Pois, segundo ele afirma, n ão é o imperador que confia o impé rio ao seu sucessor, ele se contenta em propor seu candidato ao agrado do Cé u (do mesmo modo que se propõ e um ministro ao agrado do pr íncipe) . Mas como o Cé u “ n ão fala” , seu agrado se traduz nos fatos, pela aprova ção do povo. Se, quando o herdeiro presuntivo preside aos sacrifícios , estes s ão recebidos favoravelmente; se quando dirige os negócios, estes ficam em ordem e o povo encontra nisto a paz, isto significa que o cé u efetivamente o designou . Mé ncio d á toda sua for ça à antiga fó rmula: “ O Cé u vê a partir daquilo que meu povo vê — o Cé u escuta a partir do que meu povo escuta” . Quando morreu o imperador Yao, Shun, designado por ele para sucedê-lo, retirou-se à parte para deixar o lugar ao filho do falecido; mas todos os príncipes voltaram -se para ele, e n ão para o filho do imperador, todos os defensores dirigiram -se a ele e lhe fizeram elogios: este assentimento espontâneo do povo mostrava suficientemente para quem ficaria o impé rio.

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Ora, esta aprova ção do povo , enquanto expressão do “ Cé u” , n ão seria sen ão uma ficção, pertenceria ao passado longínquo, e Meneio procura lhe atribuir um conte ú do positivo. Se , a propósito de uma promoçã o, ou , inversamente , de uma condenação, todos os que estão à vossa volta se mostram de acordo , se até mesmo os oficiais també m concordam , isto n ão é suficiente , diz Meneio ao pr íncipe ( I , B, 7). Deveis examinar a quest ão e estatuir t ão-somente quando todo o povo estiver de acordo. A opinião do povo é o critério ú ltimo e mais decisivo , é ao pró prio povo que cabe decidir como o ú ltimo recurso. Um pr íncipe que , ao final de uma grande campanha , conquistou um país vizinho hesita em anexá-lo (I , B, 10) . Se ele n ão se apropria deste território, diz Mé ncio, é porque teme que o Cé u , que ostensivamente favoreceu a expedi ção, faça cair um flagelo; se se apropria dele , teme a resposta dos outros pr í ncipes. N ão é difícil decidir, responde M é ncio , basta ver se agradais ao povo e se este povo deseja vossa chegada. Se tal for o caso , podeis reinar ; se n ã o, a situa ção vai “ virar ” ainda , e esta conquista vai vos escapar *. Mé ncio n ão teme levar até as ú ltimas conseqiiê ncias este princí pio de uma opini ão popular que é garantida pelo Cé u . Ela conduz à destituição do príncipe quando este a merece. Mé ncio aborda o arrogante pr íncipe de Qi falando obliquamente ( I , B, 6) . Suponhamos que um de vossos s ú-

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No par ágrafo seguinte, Meneio acrescenta que será necessá rio , para dar um pr íncipe a este povo recentemente conquistado , “ entrar em acordo” com estas massas (ou “ em presen ça destas massas” , mou yu Yan zhong) A escolha de seu pr íncipe concerne ao povo, mas a expressão de Meneio permanece imprecisa, já que esta ideia de uma consulta popular n ão recebeu na China nenhuma forma institucional.

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ditos, partindo em viagem , confie sua fam ília a um amigo e, ao voltar, encontra-a doente de frio e fome. O que ele far á ? Ele abandonará este amigo. ” Suponhamos agora que o chefe de vossos oficiais não possa fazer reinar o ordem entre eles, o que fareis ? “ Eu o destituirei.” Mas se for no interior de vosso reino que a ordem n ão reina ? O príncipe ent ã o “ desviou o olhar e falou de outra coisa” , pois ele captou muito bem a tendê ncia da insinuação. Uma outra vez, é o pr íncipe que tenta pô r Meneio em dificuldades (I , B , 8) . Entre os santos fundadores, um deles não baniu seu antigo soberano, outro n ã o tomou as armas contra ele ? Meneio n ão o contesta . “ Mas é permitido a um s údito matar seu príncipe? ” Meneio, como sempre, n ão se deixa desconcertar: os que violam a virtude da humanidade , retruca ele, são bandidos, e, como tais, n ão sã o sen ã o simples particulares. Estes santos fundadores castigaram simples particulares - e não seu antigo soberano*. Na China, Meneio foi o mais longe possível para fazer do povo o “ fundamento” da realidade pol ítica, e este fundamento é tanto mais legítimo quanto corresponde ao Cé u de onde procede toda a realidade . Se , contudo, ele n ão pôde ir mais longe ainda para pensar um sistema pol í tico no qual o povo n ão se contentaria em ser apenas a “ base ” , mas seria

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també m o “ soberano” ( no sentido de Rousseau; cf. zhu e nao mais ben 1 ° ) , é porque na China nunca se concebeu nenhuma outra forma política que nao fosse a monarquia. A com paração entre os diversos regimes, que nos é tã o familiar desde os gregos, não aflorou no espírito dos chineses. Mé ncio portanto n ã o tem a menor ideia do que seriam as instituições democrá ticas ( tais como as que foram estabelecidas e discutidas na Grécia de sua é poca , quer se trate de eleições ou do sistema de assembl éias) . A opini ã o do povo n ã o goza portanto de nenhum estatuto definido, ela n ão é traduzida em poder regular. É por isso que esta opiniã o do povo , que representa nada menos do que a opinião do Cé u , nunca foi consultada durante toda a histó ria chinesa. E o pró prio Meneio, depois de ter ido t ão longe para pensar um fundamento autó nomo da moral , é obrigado a recuar.



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O que conduz Meneio a estabelecer esta hierarquia ( VII , B, 14 ): o povo é o que há de mais “ precioso” , em seguida vêm os altares tutelares, o soberano é o ultimo , ele é o mais “ leve” . É portanto no povo, segundo somos tentados a interpretar, que está a fonte ú ltima da autoridade. Pois, do mesmo modo que algué m se torna príncipe, “ obtendo isso do Filho do Cé u , que algu é m se torna ministro “ obtendo isso do Príncipe” , algué m se torna Filho do Cé u “ obtendo isso do povo dos campos” . Donde se vê que pode-se substituir um príncipe quando este põe em perigo os altares tutelares; pode-se at é mesmo substituir esses altares se eles não conseguem mais afastar as calamidades.

Em La pensée politique confucéenne, liberté démocratique et droits de l’homme, Rujia zhengzhi sixiangyu minzhu ziyou renquan, Taipé, Edições dos Anos 80, 1979 , p. 117 e ss., Xu Fuguan tenta mostrar que há um in ício de instituição democr á tica em Mé ncio. Mas sua demonstração não consegue avançar mais.

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XIV ISTO N ÃO É UM CATECISMO CHIN ÊS

1. Retornemos ao princípio estabelecido no in ício. Se amo os outros, diz Meneio, e os outros nao me testemunham a mesma afeição, devo voltar-me para mim mesmo e me interrogar sobre minha virtude de “ humanidade” ; ou, se me conduzo corretamente em relação aos outros e os outros n ão correspondem à minha conduta, devo voltar-me para mim mesmo e me interrogar sobre o “ respeito” que lhes testemunhei (IV, A, 4) . Meneio, a este respeito, não teme generalizar: quando, em sua conduta, “ n ão se obt é m” (o resultado que deve dela decorrer no mundo) , “ deve-se sempre voltarse para si mesmo para procurar a razão” . A afirmaçã o é feita sem reservas, e o propósito se interrompe a í; fecha-se confortavelmente sobre esta adequação entre a virtude e seu resultado. Ora, numa outra passagem , Meneio retoma o princípio , mas, interroga-se sobre ele ( IV, B , 28) . Como regra “ constante” , quem ama os outros é amado por eles , quem respeita os outros é respeitado por eles. Mas suponhamos que algué m me trate de modo contr á rio: se sou um homem de bem , devo “ voltar- me para mim mesmo” , e dizer a mim mesmo que devo ter faltado com a humanidade ou com a correção a seu respeito. Pois , de outro modo, como isto poderia ter acontecido ? Mas eis que, ao fazer o retorno a mim mesmo, vejo que fui humano e me conduzi como devia; ora,

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o outro nao deixa por isso de me tratar com hostilidade . Segue-se um novo retorno a mim mesmo, digo a mim mesmo que devo não ter desenvolvido completamente meus bons sentimentos. Mas se descubro que os desenvolvi compietamente, e que o outro continua a me maltratar ? Tendo chegado a este ponto, Meneio poderia, diante da perversidade do outro, reconhecer o mal (como “ mal radical ” ) ; poderia recorrer a uma outra inst â ncia ( num outro mundo , uma outra vida) que viesse reparar pelo seu julgamento a injustiça da qual é vítima o homem de bem . Colocando repentinamente o eu diante de si mesmo, fazendo um discurso interior ( tão comum na tradição ocidental, mas raro na China , pelo menos na China pré-budista) , portanto, começando a reconhecer um campo da subjetividade, Meneio parece estar em condições de descobrir novas exigências (as que nascem da consciê ncia infeliz e aprofundam a interioridade) . Ora , sua reflexão segue uma outra via. Em face do homem de bem , este indivíduo não é sen ão um “ homem perdido” , prossegue ele, ele não vale mais do que um “ animal ” , por que se preocupar com ele? A solução passar á pois pela oposição à qual já nos referimos: o homem de bem estará , até o fim de sua vida, “ no cuidado” , mas n ão ter á “ uma manhã de tormento” ; pois, se tiver uma manh ã assim , conclui abruptamente Méncio, “ ele n ão se preveniu contra o tormento” . O ú nico “ cuidado” do homem de bem é pois , diz Mé ncio agora, com o seu aperfeiçoamento interior, o cuidado moral; o “ tormento” que ele não experimenta é o que viria da reação dos outros e da sorte que o mundo reserva para a sua conduta. Ao perseguir seu propósito, não teria Mé ncio mudado o seu discurso ? Mudança sub-rept ícia que nunca é indicada por nenhuma concessão -, mas que não deixa de corresponder a um recuo importante. Sob a tese mais geral ,



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a da adequação necess ária neste mundo — o ú nico — entre a felicidade e a virtude, surgiu o risco de uma exceção: minha virtude pode fracassar em influenciar os outros e emendálos. No século XVIII, era comum compor “ catecismos chineses” , nos quais os “ letrados” , confiantes na regula ção do Cé u, n ão tendo necessidade de nenhum dogma, teriam seguido a moral como uma solução natural. Mas este catecismo chinês, à moda de Voltaire , não existe - não pode existir. E verdade que os chineses não procuraram valorizar as contradições do espírito, como o fez nossa lógica formal, que nos conduziu a fazê-lo, principalmente na época cl ássica (entre a fé e a razão, erigidas uma contra a outra: este conflito dilacerante, mas que fazia pensar) ; isto n ão impede que as concepções sucessivamente apresentadas aqui, mesmo que nunca sejam confrontadas uma à outra (esse jogo que asse-

gura normalmente ao pensamento chinês sua fecundidade) , n ão sejam por isso inconciliáveis ; e que a continuidade do discurso , que constitui o charme dos propósitos de sabedoria, n ão poderia esconder por muito tempo sua falha: aquela que vimos ser esboçada a partir do problema do mal e que, enquanto eram recusadas as soluções dualistas inventadas pelo Ocidente (e que, entre nós, organizavam metodicamente a fratura: passando pela vontade, por Deus e pela liberdade) , n ão deixou por isso de continuar a se abrir até tornar insustentável a posição que havia sido estabelecida. Quando Mé ncio não sustenta mais sua tese ofensiva segundo a qual a virtude tem a virtude de “ obter ” , e promete sucesso, ele se volta, como o fazia já Confucio (cf. V, A, 8 ) , para o argumento do “ destino” . A tá tica nos é familiar: este recuo é estoico. Ela nos é familiar pelo tipo de distin ção que utiliza: o ú nico valor, aquele com o qual devemos nos “ preocupar ” , é o bem moral; quanto ao tormento que nos vem do mundo, ou quanto ao desenlace dos acontecimen-

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n ão deveríamos “ nos atormentar com eles” . (Mas Mê ncio não desenvolve, para justificá-lo, a teoria do assentimen to que poderíamos esperar; e, desta vez, é o estoicismo que, a partir da psicologia , a do trabalho sobre as “ representações” , phantasiai, permite elucidar a experiê ncia .) Ela nos é familiar també m pelo discurso de que faz uso: excepcionalmente o homem de Mé ncio debate aqui com suas representações e se fala a si mesmo. Mas este discurso interior, que conduz ao julgamento, que n ão deixa lugar para os estados de alma, e serve sobretudo para contê-los, é també m estoico. Tornando-se estoico para enfrentar o insucesso da virtude, M é ncio chega logicamente a reconduzir a oposição fundamental entre o que depende de mim e o que n ão depende (ta eph’emoi). “ Mé ncio diz: quando procurar nos permite obter e quando deixar nos faz perder, neste caso, a busca serve à obten ção e repousa em mim mesmo; enquanto, quando a busca tem suas regras, mas a obten ção depende do destino, ela n ão serve à obten ção e repousa fora de mim” (VII , A, 3) . “ Em mim” significa que os primeiros bens procurados, que são as virtudes morais, encontram-se presentes em minha natureza a t í tulo virtual e que , conseqíientemente, tomar posse delas é uma quest ão de minha responsabilidade; em contrapartida, não sou senhor da obtenção de bens exteriores, tais como a riqueza e o poder, por mais metodicamente que eu os procure . O que conduz Mé ncio a inverter a oposi ção tradicional entre estes termos (VII , B, 24) . Normalmente se diz que os desejos dos sentidos são “ natu• r> rais , mas que , de fato , comportam uma parte de destino ( j á que sua satisfeção depende das condições exteriores). É por isto que o homem de bem “ n ão faz deles sua natureza” ; dizse ao contrá rio que as virtudes morais dependem do destino (segundo tenhamos recebido um temperamento melhor ou pior) , mas de fato há algo natural nelas ( j á que elas existem tos,

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todos nós como virtualidades). É por isso que o homem de bem “ n ão faz delas seu destino” : pois, com efeito, é certo que ele pode, por si mesmo, alcançá-las. Em contrapartida, entende-se que o que não depende de nós deve ser aceito como nos cabe. Meneio chega a definir a moral pelo consentimento à ordem das coisas: o homem de bem contenta-se em “ realizar a vida” na “ espera de seu destino” ( VII, B, 33). A noção de “ lei” que aparece excepcionalmente aqui parece próxima da grande lei natural , expressão da Razão, que é o nomos dos estoicos. Contudo, esta efetivação aplicada n ão poderia constituir, do lado chinês, o ideal de humanidade; como assinalam os comentadores, trata-se aqui do homem de bem , procurando encontrar a sua natureza profunda, e n ã o do Sá bio, cuja moralidade, ao final desta elevação, tornou-se espont â nea e n ão depende mais de nenhuma norma. Do mesmo modo, a noção de destino é ambígua. Ela pode significar o que nos acontece vindo do exterior, o que “ se espera” e que n ão depende de nós, tanto quanto a voca ção à qual somos chamados a cumprir e que constitui nossa destinação ( Bestimmung, e não mais Schicksal). Para Meneio, esta destinação é da nossa natureza tal como ela nos vem do Grande processo do real (o mandato do Cé u ) , e que nos incumbe assumir. Meneio associa assim os dois sentidos, mas introduz uma progressão de um a outro (VII , A, 1) . “ Que morramos prematuramente ou gozemos de uma longa vida , isto não é causa de perplexidade: cultivemos nossa personalidade moral na espera (deste prazo) e poderemos estabelecer nosso destino” . Para ressaltar esta acepção positiva do destino, para que nós não o concebamos mais somente como uma herança que nos cabe apesar de nós mesmos, mas que descobrimos de in ício em nossa natureza e que nos apela a desenvolvê-la, Meneio fala então do destino “ reto” ou “ correto” p em

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(VII, A, 2). Do Fundo do real nos vem uma injunção que atravessa toda a nossa vida e tende a promovê-la: cabe a cada um saber “ conformar-se” e “ recebê-la” de maneira “ correta” , ou seja , sem lhe opor obst áculos, sem deixá-la perder-se ou desviar-se, desenvolvendo portanto “ at é o fim” a “ via” que se abre, em função dela, à nossa capacidade de exist ê ncia . O que não faz, por exemplo, aquele que, permanecendo ao pé do muro que ameaça ruir, arrisca-se inutilmente; ainda menos o criminoso que, por sua falta, perece nas correntes. A respeito do destino , Mé ncio não se coloca o problema da liberdade diante do determinismo; mas , ao nos pedir que cumpramos este destino (como se cumpre uma miss ão) , ele visa que tenhamos a maior responsabilidade nesta realização de nosso destino.

2. Este “ estoicismo” de Mé ncio é duplamente instrutivo. Ele nos esclarece de in ício sobre a maneira de conceber a dist â ncia entre os pensamentos que se desenvolveram de uma parte e de outra (e sem nenhuma relação entre uma e outra) . Em vez de repousar sobre uma diferença de espírito ou de mentalidade, que n ão são sen ão sempre sucedâ neos da natureza (os chineses teriam o espí rito mais “ concreto” , etc.) , esta dist â ncia deve-se somente à diferença entre as lógicas exploradas para tornar o real inteligível - algumas delas tendo sido mais desenvolvidas aqui , recobertas ou opostas l á . Mas desde que os gregos, com os estoicos, renunciando a duplicar o mundo, n ão opuseram mais o Ser ao Devir e que a natureza, physis, tornando-se na sua opinião toda a realidade, determinava como uma causa exterior, pelo entrelaçamento de suas conexões, todo o curso dos acontecimentos; desde també m qlie um pensador como M é ncio, de seu lado, não sustentava mais t ão sistematicamente a tese da eficácia temporal - inelutável - da virtude, mas fazia o sucesso da conduta depen-

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der de um curso exterior das coisas, onde reaparece a transcend ê ncia do grande Processo do mundo (e a determinação insondável do “ Cé u” ) , seus pontos de vista foram conduzidos a coincidir. Por isso mesmo, este “ estoicismo” de Méncio nos esclarece acerca de um eventual universalidade do estoicismo (pelo menos, em relação à parte é tica) . Com o seu m ínimo de a priori teó ricos e porque seu primeiro cuidado, num mundo em perigo, é com a urgê ncia da conduta (a Grécia e a China, neste final de Antiguidade, são dois mundos em crise) , o estoicismo representaria a forma menos dogm á tica, a mais economica , a mais utilitá ria també m da autonomia moral. Ao mesmo tempo mais simples e mais prá tica. Aliás, os mission á rios cristãos que evangelizaram a China, nos séculos XVII-XVIII, evidentemente perceberam isto: dentre todas as obras propostas aos letrados chineses, aquelas inspiradas no estoicismo foram mais bem acolhidas. Entre Mé ncio e os estoicos, do ponto de vista das opções , operam -se, com efeito , muitas convergê ncias. Tanto uns quanto outros compartilham uma visão din â mica e unit á ria da realidade a “ natureza” ( natureza “ exterior” e “ interior” para os estoicos, o “ Cé u” do qual procede a natureza humana para os chineses) ; eles estão de acordo a respeito da id é ia de uma regulação natural (entre os estoicos també m a Razão que governa o mundo n ão é exterior à sua obra, mas se desenvolve como um princípio ao mesmo tempo impessoal e imanente). Tanto uns quanto outros consagram o Sábio como norma transcendente da humanidade (como tal, ele é excepcional) e lhe reconhecem a capacidade de elevarse por si mesmo ao absoluto; enfim , considerando a conduta humana como participação no todo do mundo, concebem o bem moral como aquele feito pela comunidade dos homens pela superação do interesse individual e para o bem

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de todos ( koinonikon, em grego; tong, em Meneio , gong, em seguida q ) . Por essa razão, desde que recua em relação à sua tese de um sucesso temporal da virtude, Mé ncio recorre , como uma solu ção substitutiva, às virtudes eternas do “ estoicismo” . N ão duplicando o mundo, ele resolve duplicar os casos correspondendo a versão estoica a uma reserva calculada. Seja que a virtude “ obtenha” seu efeito no mundo e beneficie toda a humanidade; seja que o homem de bem permaneça na misé ria e ignorado pelos outros, ele “ obté m” pelo menos seu “ eu” r , porque não se afasta de seu dever (VII, A, 9). N ão dispondo do rico instrumental da psicologia grega, Mé ncio n ão pode, como podiam fazer os estoicos, desenvolver a id éia de uma “ delimitação” do eu que o edifica como uma “ cidadela interior” e o torna “ inexpugn á vel ” (em função de um princípio diretor da alma, protegida em sua liberdade de ju ízo , hegemonikon); ele não d á o menor sinal em direção a uma autarquia moral . Do mesmo modo, ele chega perto da id é ia estoica da “ submissão” do homem privado de moralidade, mas, n ão podendo assent á-la sobre a idéia de liberdade, n ão poderia desenvolvê-la mais (II , A, 7). Em contrapartida , é tratado ampiamente um tema propriamente estoico, o da impassibilidade interior (bu dongxins : a “ ataraxia” , II, A, 2). Se obtiverdes o posto de primeiro- ministro do poderoso principado de Qi, lhe diz um discípulo, de sorte que , pondo em ação vossos princípios , podeis reger o mundo, isto não vos perturbaria ? Desde a idade de 40 anos, nada mais me perturba , responde o filósofo. Seria ainda preciso compreender em que consiste essa impassibilidade. O estágio mais elementar da “ coragem” é responder à menor ofensa sem levar em conta o estatuto e o poder de quem nos ofendeu ; um grau superior é enfrentar o adversá rio forte, por resolu ção própria, e sem se preocupar com o resultado do

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combate, na medida em que este n ão depende de si; mas o est ágio supremo, o da “ grande coragem” , é o de ser capaz, voltando-se para si mesmo, de reconhecer seus erros em relação aos mais humildes tanto quanto o de defender a retid ão de sua posição diante dos outros aliados. Quanto mais nos elevamos na escala da coragem , quanto menos esta coragem depender de outro, mais ela é interior e conseq íientemente mais ela é coragem moral. Entre todos os exemplos possíveis, dizia Kant , o próprio do estoicismo é que o sentimento de felicidade encon tra-se contido na consciê ncia da virtude ( R. P., p.127) . Meneio també m chega a isto quando n ão sustenta mais t ão fortemente a ideia da virtude que conduz necessariamente à felicidade temporal; e ele denomina “ alegria” 1 esta felicidade que nada mais é do que a consciê ncia da moralidade. Assim como no pensamento estoico, esta alegria nasce quando se descobre que estamos em conformidade com nossa natu reza (cf. em chinês, a noção de chengu , VII , A, 4) e seguimos nosso dever (VII, A, 9) . Tanto de um lado quanto de outro, esta alegria é para o homem seu ú nico “ repouso” , ela é associada à “ via reta” . De uma parte e de outra també m , ela repousa sobre a idé ia de que tudo o que n ão concerne aos valores morais e portanto n ão depende de n ós nos deve ser “ indiferente” . Os letrados de outrora, diz M é ncio ( VII, A, 8) , “ encontravam a alegria na via que seguiam e eram indiferentes em relação ao poder de outro” . Se um pr í ncipe reconhece vossos m é ritos e vos emprega, diz ele ainda a um conselheiro dos príncipes ( VII , A, 9) , “ ficai contente” ; mas, se isto não acontece, “ ficai igualmente contente” . Pois o sábio permanece sereno e desprendido, ele não poderia encontrar sua satisfação no poder ou na riqueza (VII , A, 11 e 20) . Shun , o sá bio rei de outrora , teria abandonado o trono assim como se abandonam “ sapatos usados” (VII, A, 35; cf.

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III , A, 4). Pondo seu pai sobre suas costas, ele teria fugido para a beira do mar e teria terminado feliz os seus dias, “ es, quecendo o império > . Pois , para Meneio , assim como para os estoicos, a vida humana integra-se num Todo muito mais vasto, e é somente nessa escala que ela assume sua verdadeira dimensão. Para alé m da cidade dos homens est á a cidade do mundo, diz o estoico; esta cidade universal é o cosmos. E Mé ncio diz: ocupar uma posição de pr í ncipe basta para mudar a fisionomia, “ com mais forte razão isto ocorreria com quem pudesse ocupar a grande habitação do mundo” v (VII, A, 36). Ou , ain da , o grande homem não é aquele que faria tremer o mundo sob sua cólera, mas aquele que ocupa a “ vasta morada do mundo” , manté m -se no “ lugar justo” e segue o “ grande caminho” .

3. Esse recuo estoico não concerne somente à vida pessoal, mas podemos també m encontr á-lo no plano pol ítico, na vida dos principados. O pequeno principado de Teng fica confinado entre dois pa íses poderosos, Chu e Qi, e seu pr ín cipe interroga Mé ncio sobre a melhor maneira de assegurar sua sobrevivê ncia ( I , B , 13, 14, 15) . Os problemas com as alian ças me ultrapassam , responde o filósofo. De minha parte, n ão vejo outra solu ção a n ão ser a de cavar as fossas e construir muralhas; se as guardais com o auxílio de todo o vosso povo, enfrentando a morte, “ podem -se superar as dificuldades” . A resposta é alusiva. Posto ao pé do muro, numa situação de urgê ncia , Mé ncio não responde tão peremptoriamente que a virtude basta para desarmar o adversá rio e permitir vencer com segurança. Pois, mesmo respeitando as relações de força e submetendo-me o melhor que puder às grandes potências, queixa-se o pr íncipe, vejo-me condenado. Méncio, como simples resposta, lhe cita o exemplo de

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um soberano de outrora que , vendo-se oprimido por seus vizinhos, resolve partir; como era humano, seu povo o seguiu em seu êxodo. Mas talvez ele devesse ter enfrentado a morte em vez de aceitar abandonar a terra de seus ancestrais, se pergunta Meneio . Fugir ou morrer, “ cabe a vós escolher ” . Meneio ainda tem palavras de esperança ( no que concerne à eficá cia da virtude): se fazeis o bem , vossos descendentes “ de qualquer modo reinarão” ; herdada pela posteridade, a obra começada “ poder á ser prosseguida” . Mas , desta vez, Meneio permanece evasivo quanto ao resultado final: este sucesso n ão depende mais de nós, ele depende do “ Cé u” . Sua conclusão n ão manifesta mais a confian ça ordin á ria: “ Esfor çaivos em fazer o bem , e isto é tudo” . Essa refer ência ao Cé u n ão tem precisamente o mesmo sentido que tinha antes. Trata-se menos aqui do grande princípio de regulação das coisas do que de uma pot ê ncia mais religiosa e pessoalmente determinante do destino humano em ú ltima inst â ncia. M é ncio o invoca bem particularmente para dar conta de seu pró prio fracasso junto aos príncipes. O pr íncipe de Lu estava pronto para visitar Mé n cio e seguir suas lições quando um intrigante da corte o dissuade de fazê-lo sob um mau pretexto. E certo, diz Méncio , quando nos beneficiamos de uma “ promoção” , é que outros ajudaram ; e, quando esta promoção é interrompida, é que outros impuseram obstáculos. Mas, quanto à pró pria promoção, ou à sua interrupção, ela escapa ao poder dos homens: se não pude encontrar o pr íncipe de Lu , é por causa do Cé u , e n ão do intrigante. A reação é ao mesmo tempo de orgulho e de humildade: M éncio recusa a idé ia de que um favorito vulgar tenha podido fazer fracassar seus projetos políticos; mas reconhece també m que , qualquer que seja a moralidade de sua conduta , seu sucesso em última instâ ncia lhe escapa.

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Outra confissão de impotência, quando Meneio se encontra no caminho de volta , depois de ter fracassado na corte de Qi. Do mesmo modo que no episódio precedente (que

por sua vez dava seq üência à evocação da situação desesperada na qual o pequeno principado de Teng se encontrava acuado) , esta anedota está situada no fim de um capítulo (II , B, 13) , como se ele tivesse escolhido deixar para o fim tudo o que n ão podia entrar na lógica de conjunto das argumenta ções: como se houvesse l á um resíduo de incerteza ou de ambigiiidade, inassimilável pela teoria , que não se podia expurgar nem integrar*. Este resto é, no caso presente, o gosto amargo que deixa em Meneio a desilusão pol ítica que ele acaba de experimentar. Vós pareceis decepcionado, diz o discípulo; contudo, antes eu vos havia ouvido dizer que o homem de bem “ não se queixava do Cé u” nem “ queria mal aos homens” . “ Isto era num certo momento, agora é outro” , responde Mencio, como se a continuidade da experiência tivesse sido rompida ( pelo menos tal como tinha sido constru ída) e que ele n ão conseguisse juntar de novo as duas pontas.

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O Mencius sc apresenta como uma sequê ncia de par ágrafos, repartidos em sete capítulos, sem transi ção nem lugar assinalado. Todavia , sou levado a pensar que, sem possuir um plano definido, eles foram agrupados em ma ços, em função do ponto de vista ou da questão abordada , e foram objeto de uma certa organização (que não é devida somente nem ao interlocutor ou à situa çã o mencionada ); é por isto que eu tive de levar em conta estes encadeamentos tem á ticos assim como os efeitos de coerê ncia, impl ícitos, que se devia extrair desta descontinuidade (ou, ao contrá rio, como aqui, daquilo que era somente acrescentado) . Mas isto mereceria um estudo sistem á tico, como, de uma maneira mais geral, a prop ósito dos tipos de ordenação da obra em todos os corpus chineses. Mesmo para um texto como o Mencius, um dos mais bem estabelecidos da Antiguidade, ainda resta muito trabalho para os filólogos...

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Ou, como se, pelo menos, era-lhe necessá rio reconhecer algumas exceções à regra. Normalmente, “ a cada quinhentos anos” um príncipe chega à plena realeza graças ao seu mé rito , e, no intervalo, há pessoas que conseguem ilustrar-se. Ora, h á mais de setecentos anos que a presente dinastia estabeleceu-se; o prazo ordin á rio portanto passou , e a situação se mostra efetivamente pronta para uma renova ção. Ora, nada acontece, “ o Cé u n ão quer (ainda) fazer reinar a ordem no mundo” . Pois , se o quisesse, “ que outro sen ão eu poderia contribuir para isto ? ” Diante de seu fracasso , Mé ncio n ão parece mais certo de uma ordem imanente que se possa facilmente deduzir, na qual se possa imediatamente confiar: ao duvidar de seu pró prio destino, ele chega a interrogar-se sobre a grande regulação das coisas. Resta todavia uma maneira de se tranquilizar (sempre relegada, porque inclassificável , ao final do capítulo, VI, B, 15) : se o “ Cé u” nos experimenta, é para nos fortalecer e nos fazer progredir. H á muitos grandes homens , com efeito, que as honras vão procurar no seio da mais humilde condição. Entregando seu coração ao sofrimento e seu corpo ao esgotamento , reduzindo-os à misé ria e derrubando os seus projetos, o Cé u suscitou sua consci ê ncia e aumentou sua aptid ão. Ele os tornou ao mesmo tempo mais sensíveis (em sua humanidade) e mais resistentes ( para enfrentar as provações). Pois, do mesmo modo que o erro permite corrigir-se, os obst á culos encontrados nos obrigam a nos superar. A li ção é a mesma no plano político. Se um reino tem necessidade, em seu interior, do apoio de antigas fam ílias e de bons ministros ele precisa també m , no exterior, da ameaça de países hostis; senão, segundo a regra “ constante” , não poder á subsistir. Em vez de ser simplesmente chamado a se dissolver (sob o efeito da virtude) , eis enfim que o antagonismo (e junto o negativo) se manifesta como positividade.

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Kant mesmo não disse algo diferente disto: o sofrimento é o “ aguilh ão da atividade” ; sem ele, “ a letargia instalar-se- ia” (Antropologia, §60). Ao concluir pelo menos por uma vez que “ a vida se passa no desassossego e no sofrimento” , mas que se morre sempre “ no repouso e na serenidade” , Meneio se associa in extremis àquilo que a tradição europeia , bebendo na dupla fonte do estoicismo e do cristianismo , sempre disse: o sofrimento tem seu “ bom uso” , ele faz parte dos desígnios da Providência. Por meio de uma expressão ambígua ( pois a morte aqui marca o termo da sabedoria adquirida ou constitui um ref úgio em relação às tribulações vividas ? ) , numa fó rmula com acentos repentinamente mais íntimos, recuando em rela ção à sua tese e como se fosse algo à parte, Meneio tenta uma outra solu çã o que, de nossa parte, sempre exploramos. Ele pareceria enfim , ao abandonar temporariamente a lógica dos processos, perto de se colocar a quest ã o que se impõe para nós, mas que até aqui ele n ão considerou - a do “ sentido” da vida*.

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Sem d úvida, um dos interesses do pensamento chin ês é , com efeito, o de nos dispensar de ter de pensar na questão do “ sentido” - e principalmente no “ sentido da vida” . Primeiramente, porque o pensamento chin ês não espera nenhuma mensagem ( nã o há Revelação) e porque n ão espera salvação que se afaste da ordem da natureza: na China , n ão se produziu a ruptura a partir da qual a quest ã o do sentido pode (arbi trariamente) ser colocada (e nos fascinar). Há aí apenas efeitos de congruência que precisam ser pacientemente elucidados. Em seguida, a l ó gica do processo que domina o pensamento chinês conduz a pensar todo o real como um curso que sempre evolui em fun ção de suas propensões, logo, como fruto de um condicionamento - e n ã o a pensar seu desenlace. A propensão leva à conseq üê ncia por implicação - e n ã o estabelecendo um fim-objetivo-modelo , sem que haja nada para o qual ela tende.

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Mesmo a leitura, na China, cuja arte é contudo tão desenvolvida, n ão é uma explicação do sentido (a China n ão tem hermen ê utica): se gundo as met áforas mais comuns , ela consiste em deixar “ dissolver ” o texto no esp í rito , em “ impregnar ” com ele sua consci ê ncia , em “ saboreá- lo” ; aqui , mais uma vez, a leitura n ão é concebida como uma constru ção teó rica , portanto hipoté tica (como ação deliberada ) , mas é vivida como um processo (de familiarização e de assimila ção ) .

XV A CONSCIÊ NCIA MORAL DÁ ACESSO AO IN CONDICIONADO ( o CéU )

1. E m princípio, a retribuição da virtude é o resultado de um processo inelut ável, que é verificado pela experiê ncia, mas é preciso também acolher com uma indiferença estoica se ela n ão acontece. Meneio chegou a vislumbrar a consciê ncia infeliz mas n ão quis ir mais longe. Isto basta contudo para que, sistematicamente anunciado como puro produto da moralidade no seio do mundo e como seu resultado previsível (o triunfo pela realeza), o absoluto não possa mais ser assegurado sobre este plano. Ele n ão mais se manifestou completamente na história; ressurge in fine, o insond ável do



L,eu

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Mas é precisamente a í que Mé ncio se aproxima melhor de nossos filósofos e que o diálogo iniciado se justifica retrospectivamente ( Nietzsche, no fundo, não estava t ão errado quando chamava Kant de “ o grande chin ês” ...): só a consciê ncia moral, concluem juntos, nos permite aceder ao incondicionado. Sabe-se que o essencial do pensamento de Kant situa-se aí ( na junção das duas críticas). Se não posso, pela minha razão especulativa, elevar-me até as verdades primeiras, do tipo metafísico ou religioso, e se devo , para que ela permaneça objetiva (isto é, para que tenha um objeto) ,

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A CONSCI Ê NCIA MORAL DÁ ACESSO AO.

limitar meu conhecimento aos fenô menos, posso, em contrapartida, baseando- me apenas na lei moral , tal como ela se impõe indubitavelmente a nós na conduta, tornar-me consciente da liberdade que é a sua condição; e, a partir dela , j á que por princípio a liberdade deve permanecer exterior ao mecanismo da natureza, admitir a necessidade de uma outra natureza, fun ção de uma outra causalidade, a do mundo inteligível (que é o mundo verdadeiro ) . Pois, se , como diz Kant (R.P., p. 17) , a liberdade é aquilo ao qual a moral deve sua exist ê ncia , garantindo sua autonomia, a lei moral é, em contrapartida, aquilo pelo qual se “ toma conhecimento” da liberdade (sua ratio cognoscendi). Ora , a liberdade, descoberta na experiê ncia da lei moral , nos faz descobrir por sua vez um outro mundo (que compreende Deus e a imortalidade); já que n ão pode ser física (sen ão seria negada pelo determinismo da natureza) , ela nos força a dar o salto em direção à metafísica: a partir da exigência da conduta, a da lei moral , da qual tenho a experiência na autonomia de minha vontade, a existê ncia de um mundo supra-sensível se encontra , na falta de ser conhecida , pelo menos objetivamente revelada; e , pelos postulados que ela autoriza , a razão prá tica justifica a fé na religi ão ( pelo menos nos limites da “ simples razão” ) . De um modo geral , o mesmo acontece em Rousseau . Pois, por mais contraditó ria que possa parecer às vezes sua “ religião” , invocando alternadamente a razão ou o instinto, contudo, parece que, como mostrou Cassirer, Rousseau tam bé m nunca abandonou este raciocínio: n ão é por um saber que lhe foi revelado, ou por razões que poderiam ser provadas, mas pela experiê ncia que se tem da espontaneidade do eu , quando escolhe fazer o bem sem ceder à tentação dos sentidos, que o homem toma consciê ncia de sua liberdade da liberdade da vontade, no começo de sua pessoa — e, a partir dela , pode elevar-se até Deus. N ão somente é em função



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da certeza moral, a ú nica possível, que posso julgar a verdade religiosa , a moral serve de base à fé, e n ão o contrá rio. Mas també m é pela conduta moral que, sem me preocupar com nenhum dogma , posso servir melhor a Deus: “ bem agir ” , como diz a nova Heloísa, é “ o verdadeiro culto que Deus quer” . Ao pretender fundar assim a crença a partir da lei moral, cuja exigência nos é fornecida pela razão, Kant contudo n ão conseguiu livrar seu pensamento de toda ambigiiidade ( e Rousseau menos ainda): na partida, pela maneira pela qual se considera que ela se impõe a nós por meio de uma obrigação a priori, a lei moral pode sempre ser suspeita de representar de novo o papel , repousando sobre a submissão e o constrangimento , que antes era exercido pelo mandamento divino. E, na chegada , ao reconhecer a felicidade, da qual se sabe que é acessível t ão-somente num outro mundo, como complemento necessá rio da virtude, Kant acabaria por reintroduzir a dependê ncia da moral em relação à teologia (da qual ele havia tido tanto cuidado de se libertar, mas que, suspeita-se ent ão, n ão teria deixado de guiar sua dedução como um suporte, por maior que tenha sido seu esfor ço para racionalizar este velho fundo religioso) : por mais que a obrigação moral se funde apenas sobre a autonomia da razão, ela não se deixa pensar inteiramente ( no seio da totalidade necess ária do soberano bem ) sem a esperan ça de uma recompensa e, conseqiientemente, sem o retorno ao velho sonho de um para íso. A fó rmula de Méncio espanta , ao contrá rio, por sua simplicidade. Seu atalho a torna impermeável: ela não se deixa de resto atingir nem é passível de suspeita de compromisso. Sem fissura nem extensão isolada como uma bolha. Mé ncio se contenta em dizer (VII, A, 1) : “ Quem desenvolve completamente sua consciê ncia toma consciê ncia de sua



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natureza, e quem toma consciê ncia de sua natureza, ent ão toma consciê ncia do Cé u. Manter sua consciê ncia e alimentar sua natureza é servir o Cé u” . Da tomada de consciê ncia de sua consciência até o absoluto (o Cé u) , a subida n ão tem falhas, a coerência é mantida. Desenvolvendo até o fim as

virtualidades que repentinamente deixaram aparecer tais reações de vergonha ou de piedade , realizo completamente o que posso ser ( no duplo sentido do verbo realizar: como fazer acontecer e dar-se conta de algo) e tomo consciê ncia , ao mesmo tempo, do que constitui minha destina ção natural; e, partindo daquilo que reconheço ser então a vocação de minha natureza, tomo igualmente consciê ncia , pela simples via da conseqiiê ncia, daquilo do qual esta natureza tira sua origem , o “ Cé u” (enquanto natura naturans), que é o fundo sem fundo do real ( nã o para esgotar seu conhecimento, j á que ele permanece insondável , mas para que eu perceba , por meio de minha natureza , a sua injunção; cf. Confucio: “ Aos 50 anos, eu me apercebi da inj unção do Cé u” ) . Partindo desta “ ponta” vis ível, aflorando inopinadamente em minha experiê ncia, mas como tal inegável , que são minhas reações de vergonha e de piedade, posso elevar-me continuamente, seguindo este fio, para alé m de toda experiê ncia até chegar ao fundamento incondicionado. Pois, em sentido inverso, minha natureza não pode ser sen ão uma individuação do grande Processo do mundo e minha reação moral sua manifestação imediata; é por isto que a espontaneidade desta emoção me faz comunicar diretamente com aquilo que, em seu princípio, sempre move e anima a realidade. Encerrada em si mesma , global e definitiva, a fó rmula de Mé ncio retira-se de imediato da discussão; polida como uma senten ça, ela permanece imune ao trabalho da dialé tica e não pode servir de tese ou valer como argumento ( no que permanece uma fó rmula de “ sabedoria” diferente do diseur-

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so filosófico) . Isto n ão impede que ela produza um efeito maior, que é o de abrir um acesso ao incondicionado sem recorrer à fé , sem mesmo ter necessidade de postulado. E por esta razão que, em sua pró pria discrição, de modo eficaz, ela dá um sinal para a filosofia*. Com um m áximo de economia, ela consegue nos fazer remontar a via da imanê ncia, tal como nossas reações de vergonha ou piedade a faziam sobressair ocasionalmente, até o seu fundo transcendente ( minha “ natureza” exercendo então a mesma função mediadora, do lado chinês, que, em Kant ou Rousseau, é exercida por minha “ liberdade” ) . A fó rmula de Méncio consegue também dizer, de um ponto de vista prá tico, que obrigação nos liga à transcendência. Basta “ manter (presente) sua consciê ncia” , e “ alimentar sua natureza , diz Mé ncio, para “ servir o Cé u” . Do mesmo modo que nossa consciê ncia da transcendê ncia dispensa o dogma ou o postulado, o culto que se lhe rende n ão

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Mou Zonsan interpretou a aproximação em benefício do pensamento chinês: Kant n ã o teria se libertado da teologia moral, e somente os confucianos teriam concebido uma verdadeira metafísica dos costumes. Mas: (1 ) a rigor, n ão vejo “ metafísica” do lado chin ês ( já que n ão há duplicaçã o do mundo - sensível/inteí igível , tal como ocorre com Kant para pensar a liberdade) , e desconfio da tentação dos pensadores chineses do século XX, principalmente desde Feng Youlan, de exprimir diretamente em termos ocidentais sua tradi ção de pensamento , para fazê-la reconhecida ( pois desde que a referê ncia da experiê ncia não é mais dada, a transição de um quadro a outro deve ser efetuada; ( 2) a fó rmula de Mé ncio que acabamos de citar, e que funda, na tradição chinesa, o acesso à transcend ência a partir da moral, n ão deve ser lida da mesma maneira que se lê a demonstração kantiana . O que temos na China é a elucidação de uma intuição fundamental, e n ão um raciocínio articulado. Podemos aproximar os procedimentos, organizandoos em torno de uma questão comum , e, a partir daí, fazê-las reagir e trabalhar, mas n ão as considerar de imediato sobre o mesmo plano.



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é submetido a nenhuma exigê ncia suplementar. Voltamos sempre à recomenda ção do in ício: basta tomar consciê ncia. Simplesmente, basta manter atual sua consciê ncia pela sua conduta basta deixá-la existir.



2. Ocorre que Mé ncio desta vez é mais preciso: n ão se trata apenas de “ manter sua consciê ncia” , mas també m de “ alimentar sua natureza” . Longe portanto de exigir que se renuncie ao que naturalmente somos, “ servir o Cé u” tem como condição seu florescimento. Mas em que nossa “ natureza” , cujo princípio é moral (apreendido pelo desenvolvimento da consciê ncia) , precisa ser “ alimentada” ? Diante de seus advers á rios da escola naturalista ( principalmente Gaozi ) , cuja grande preocupação é levar a vitalidade do indivíduo ao seu pleno regime, sem se importar, e até mesmo em oposição aos princípios morais que vê m artificialmente entravá-lo, Mé ncio, longe de contradizer esta ambição, quer mostrar que só a moral pode satisfazê-la. O progresso moral devido ao desenvolvimento da consciê ncia n ão permite somente elevarse ao incondicionado, mas reage igualmente sobre nossa personalidade e a leva à sua plenitude. Na opinião de Méncio, este é um ponto forte de seu ensinamento, mesmo com o risco, ele reconhece, de que seja “ difícil de explicar” (II, A, 2). Contrariamente à id é ia de que a moralidade viria constranger nossa energia vital , ela a libera e serve para promovê-la. Pois, em vez de se deixar fechar pelo ego ísmo do indivíduo e, em seguida, enfraquecer-se, a energia vital, sob o efeito da moralidade, é estimulada em seu florescimento e se expande sem limites. É o contr á rio de uma atrofia: graças à moralidade , diz Mé ncio, esta energia é ao mesmo tempo “ a mais ampla” e “ a mais firme” (é por isto que ela pode nos tornar estoicamente impassíveis); “ alimentada pela retid ão” e não “ sofrendo nenhum dano” , ela é como um oceano cujo

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fluxo nao cessa de “ se desdobrar” . É por esta razão que ela chega até a “ preencher tudo que h á entre a Terra e o Cé u” . Transbordante quando “ vai de par com a moralidade” , esta vitalidade, se não for assim , perece; pois uma “ insatisfação” pressiona a consciência. Uma vez mais, Mé ncio nos adverte: este desenvolvimento da vitalidade n ão pode ser objeto de visada, posto como objetivo, e obtido como um efeito planejado. També m não se pode desenvolvê-la intencionalmente do mesmo modo que n ão se pode puxar as plantas para cima para que cresçam . Mas, do mesmo modo que é nos contentando em carpir em volta dos pés das plantas que elas podem crescer naturalmente (e este trabalho enquanto tal é indispensável) , assim també m é somente à força de “ acumular em nós a retidão” que este desenvolvimento da vitalidade chega, enfim , sponte sua. Uma vez mais, o resultado é obtido indiretamente sob o efeito de um condicionamento favorável; em vez de ser tomado de assalto, fazendo dele objeto de intervenção, este resultado, como diz Méncio, prové m de uma transformação - é objeto de uma maturação. E precisamente o que torna aqui o propósito tão difícil . Pois ele n ão pode ser nem completamente literal nem decididamente metafó rico; deve ser tomado ao mesmo tempo no sentido literal e no sentido figurado. Trata-se de uma transformação concreta, com efeito, que chega ao fortalecimento da vitalidade, mas cuja fonte n ão o é (a retid ão da consciê ncia) . Quando se diz assim “ alimentar sua natureza” , situamo-nos nesta delicada fronteira: na jun ção entre o físico e o moral , neste estágio transitó rio, e como tal indiscern ível no seio do processo (e portanto t ão difícil de se exprimir) , no qual a atitude moral vem a se traduzir fisicamente (em termos de energia vital) , no qual a exigê ncia interior se transforma em força exterior (pois , libertando a individualidade de seu isolamento, ela a faz irradiar-se). Nao que se tra-

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de negar a individuação (inventando uma metafísica ad hoc; cf. Schopenhauer), mas, trata-se de, seguindo simplesmente a moral , ultrapassá-la. Ao final dessa transformação, o incondicionado n ão é mais uma pura idéia e torna-se sens ível. Não em nome de alguma intuição m ística, de algum êxtase, mas tão-somente pelo efeito de um desenvolvimento cuja energia nos é fornecida pela moralidade. Ao ultrapassar os limites de sua individualidade, a personalidade moral abre-se para o ilimitado, ela “ preenche tudo entre a Terra e o Cé u” . Ou, como diz Mé ncio em outra passagem (VII , A, 13), estendendo-se “ de alto a baixo, ela flui concertadamente com o Cé u e a Terra” . É Rousseau que, entre nós, soube explicar melhor o fenômeno, e n ão devemos nos espantar de que suas formulações aproximam -se aqui das do Mencius. O que de melhor deveríamos fazer para educar o Em ílio, sen ão oferecer-lhe “ objetos sobre os quais possa agir a força expansiva de seu coração, que o dilatem , que o estendam sobre os outros seres, fazendo com que em todo lugar se encontre fora de si mesmo” ? Inversamente, deve-se “ afastar com cuidado aqueles objetos que o estreitam , que o concentram , e tornam tensa a corda do eu humano” ( E., p. 262). A temá tica é a mesma de uma parte e de outra: à expansão da personalidade moral opõe-se seu estreitamento egoísta. Em ílio sentir-se-á então “ neste estado de força que nos estende para além de nós mesmos e nos faz levar para fora a atividade supé rflua ao nosso bem-estar (p. 270; uma “ sensibilidade superabundante” , diz ainda Rousseau , o que me parece traduzir melhor a expressão haoran zhi qi ) . Até mesmo Nietzsche, que se dedicou tanto em solaa par moral, junta-se a nós aqui. E isto é menos surpreendente do que possa parecer. Pois, se ele critica o “ altruísmo” como por demais complacente em relação ao culto da dor,

que, na nossa tradição ideológica, contaminou a “ piedade” , e també m como muito marcado pela boa consciê ncia (que é a m á consciê ncia invertida) , assim como todas as prescrições e constrangimentos do moralismo, nem por isto ele deixa de reconhecer que o “ egoísmo” també m “ é um erro” do próprio ponto de vista da vida ( Vontade de potência, IV, 613) . Pois a própria vida, em seu élan, tende ao incondicionado. Não como uma idé ia abstrata , num mundo inteligível (e isto contra Kant) , mas como experiê ncia (e novamente nos aproximamos do estoicismo) . “ Ultrapassar o ‘Eu e o ‘Tu’!” , prossegue ele. “ Sentir de maneira cósmica. ” Esta fó rmula pelo menos corresponde ao Mencius.

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3. Que o “ bem” não seja uma norma que nos é imposta de fora , que ameaçe atrofiar nossa natureza ao constrangê-la; que, ao contr á rio, ele esteja implicado nela e seja o ponto de partida de uma maturação interior que, abrindo-a para o incondicionado , conduza-a ao seu florescimento. Méncio mostra isto mais metodicamente construindo esta grada ção (VII , B, 25). “ O desejável é o bem” ( n ão somente o que se pode, mas o que se deve desejarx ) ; e “ possu í-lo em si mesmo” torna o homem “ autenticamente” moral (ou seja, a partir deste momento, pode-se confiar na sua moralidade, ela é efetiva nele): o primeiro est ágio é aquele no qual o bem é somente objeto de aspiração, o segundo aquele no qual o homem realmente realizou esta aspiração em sua conduta . Desde ent ão, prossegue M é ncio, quando esta autenticidade moral é levada à sua “ plenitude” , ela constitui a “ beleza” ; e, irradiando-se para fora , faz a “ grandeza” do indivíduo. Quando este , enfim , tendo chegado ao estado de grandeza, “ transforma isto” , pode - se dizer que ele é o “ S á bio” ; tornando -se “ incognoscível ” , confunde-se com a dimens ão da “ eficiê ncia invisível ” que conduz o mundo.

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No in ício do raciocínio, o fato de que o bem seja o que se pode desejar nos lembra que eie corresponde à inclinação de nossa natureza; e, no tempo adequado, o fato de que o ideal humano esteja na “ transformação” deixa enten der que a sabedoria n ão constitui algo à parte de nossa natureza, mas, ao contrá rio, identif íca-se com a sua renovação espont â nea . Do começo ao Fim , portanto, a moral é natural. Entre as duas, Meneio explica a maturação da personalidade moral: a partir do momento em que o bem n ão é somente desejado , mas que nos dedicamos realmente a ele e o realizamos em nossa conduta, segue-se um desenvolvimento contí nuo ( passando pelos estágios da “ plenitude” , “ irradia ção” , “ grandeza” , até chegar à “ sabedoria” ). O personagem a respeito do qual Mé ncio é interrogado, e a propósito do qual ele desenvolve esta gradação, teria permanecido, de sua parte , entre o primeiro e o segundo est ágios: porque n ão soube dedicar-se constantemente à sua conduta (cf. supra , “ acumular a retid ão” ) , pode-se concluir que, a este respeito , um tal processo de matura ção n ão pôde ser realizado. Os comentadores insistem , com efeito, nessa oposição. No in ício desta eleva ção moral , para expandir o bem em sua conduta , não se deve cessar de investir e fazer esfor ços; mas, no ú ltimo est ágio da sabedoria , n ão há mais aplica ção possível e todo “ traço” desaparece: tornando-se “ irreconhecível ” , o sá bio n ão se caracteriza mais sen ão pela sua “ eficiê ncia invisível ” ( no ção de sheny ) . O termo que Meneio utiliza aqui é o mesmo que serve para designar, na tradição religiosa, o mundo dos espí ritos ( assim como se fala do espí rito dos mortos) e as potê ncias do alé m . Mas aqui, n ã o se trata mais a rigor de uma noção religiosa, ou , antes, só se trata disto no limite , pois o termo serve para qualificar o homem , ou pelo menos o homem que se eleva ao est ágio ideal (o “ sá bio” ) . O invisível que ele evoca é pois o de uma eficácia que n ão mais

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deixa “ traços” , porque o esforço ao qual esta eficácia era devida no início, tendo sido levado ao seu grau m áximo, ao termo de uma maturação , acabou convertendo-se no seu contrá rio — o natural. Como acontece em qualquer aprendizagem , nós nos aplicamos tanto tempo , que, no final, o talento aparece, e o resto vem sozinho. Não sendo então discern ível nem delimitá vel, esta eficácia n ão é por isso menos concreta em seus efeitos, e é ela que vemos exercer-se no plano pol ítico (como poder de atra ção e de propaga ção devido à exemplaridade do príncipe): “ Onde ele passa” , diz Mé n cio, “ o homem de bem transforma; onde ele fica, exerce uma influê ncia invisível ” (VII, A, 13) . Existe portanto uma transcendê ncia do sá bio em relação aos outros homens, ao final desta elevação, e é nisto que o sá bio se junta ao insond ável do Cé u. Mas, do mesmo modo que, no que diz respeito ao Cé u , esta transcendê ncia n ão se deve a uma exterioridade radical, aqui també m ela não implica uma alteridade de princípio (diferentemente da transcend ê ncia que é aprofundada na B íblia a respeito de Deus) . Ao contrá rio, é a imanê ncia que , levada ao seu pleno desenvolvimento e tornando-se absoluta, nos aparece como transcendente (de nosso ponto de vista limitado; mas aqui não se trata da aparê ncia oposta à realidade - logo, n ão h á lugar para a metafísica) . Pois a transcendê ncia, na China, pelo menos em seu princípio filosófico, não é senão a absolutização e a totalização - da imanê ncia em a ção. É por isto que a dimensão insondável do sá bio vai de par com sua perfeita espontaneidade; e que a transcendê ncia que é alcançada ao termo da maturação moral n ão é nada mais do que o natural. “ Ser grande, e alé m disto, transformar isso” z , dissemos antes . Este “ isso” conté m tudo. Pode-se compreender que o sá bio transforme os outros tanto quanto ele transforma a si mesmo ( pois, neste ú ltimo est ágio, a oposi ção entre mim e

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os outros não age mais) . E també m , mais literalmente , voltando simplesmente a expressão sobre ela mesma, pode-se compreender que o sá bio “ transforme sua própria grandeza” . O que é próprio do sá bio, definitivamente, é que ele não se imobiliza em sua “ grandeza” , que ele não a enrijece como uma norma, que não a oferece como um modelo mas que sempre a transforma. Assim como a natureza , ele est á sempre em processo ; é por isto que, ao se transformar segundo as situações, sua grandeza não tem contornos, portanto ela n ão tem rigidez. Lembramo-nos de Confucio , ao qual Meneio não conseguia atribuir qualidade, que ele n ão conseguia nem mesmo qualificar, mas do qual dizia que ele era “ um momento” . Meneio n ã o pode dizer nada mais , porque a “ grandeza” do sá bio, em seu apogeu, é por demais globalmente eficaz para que se possa ainda atribuir-lhe “ m é rito” ( VII , A, 13); ela confunde-se t ão bem com a regula ção das coisas - em todo momento -, que não a discernimos mais. Ela é a mais simples e a mais discreta. Em vez de se ostentar - que “ S á bio” ! -, ela é natural.

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