Foucault ou o niilismo de catedra

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José Guilherme Merquior

MIŒEL

OUCAULT oNiûismodeCátedra Tradução de Donaldson M. Garschagen

eO TORA NOVA F R O N iE iR A

Em Michel Foucault ou o niilismo de cátedra, José Guilherme M erquior oferece uma desinibida avaliação crítica da contribuição global de Fou­ cault com o ‘"historiador do presente”. Seu estudo abrange todos os livros do filósofo, inclusi ve os úl­ tim os volumes de sua inacabada História da se­ xualidade.

T lT U L O O R IG IN A L ; F m jjiu U ^ ® J .C . M e rq u io r, I98S

Cubiicado originalmente em ingl&> pela William CoUns Sons & Co. U d./l'oniana P a p e rb a ck s

Dirciioí de cdiffio da obra cni tlnsua ponusucsa no Brasil adquiridas peia l-DITORA NOVA FRONTEIRA S/A Rua Maria Angélica, I6R — t^goa — CEP; 22.461 Tel.: 2S6-7822 Endereço tcTcgránco: NEOFRONT — TcJ«: 34695 ENFS BR Riüde Janeiro. RJ. Rcvisflo Ijpogr&fíca: N a ir DA.Mr.Tro UM ttI:Kro FlOUt^lKtlM P lM O C a k l o s A l d e r io M e o e if o s

CIP'Brafil. Catalog^ao-na>fome Sindicato Nacional dm Ediiores de Livros. RJ.

M567m

Merquior, Jo&é Guilherme, 1941* Mivhcl Foucault, ou o niilismo dc c â i^ n i / J.G . M erquior; traduçAode Donaldvon M. Carschagcn. i9R4.2. Filosona francesa-sic. XX. 3. Niilismo (Pilosolls). I. Titulo. II. Título: O niilismo dc cíitedra. 85.0890

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SUM ÁRIO

Aos incautos ........................................ ............................ 9 I. O historiador do presente .............................. II II. A G rande Internação, ou du côté de la fo lie ................................................................... 27 III. Uma arqueologia das ciências h u m a n a s ................................................................ 49 IV. Da prosa do mundo à m orte do homem .... 63 V. A “ arqueologia” a v a lia d a ............................... 83 VI. O arquivo ir ô n ic o .............................................. 115 VII. M apeando a sociedade c a rc e rá ria ................. 129 VIII. A “ cratologia” de Foucault: sua teoria do p o d e r ................................................................ 165 IX. Políticas do corpo, técnicas da alma: a his­ tória da sexualidade segundo Foucault ....... 183 X. R etrato do n e o -a n a rq u ista ............................... 217

Notas .....................................................................................249 Bibliografia ........................................................................... 261 índice de autores citados ................................................ 273

Uma cultura superior tem com o carac­ terística prezar rnais as peqi4enas verda­ des despretensiosas, descobertas através de m étodo rigoroso, que os erros des­ lumbrantes e deleitosos que brotam de épocas e p o vo s metafísicos e artísticos. N ie t z s c h e

AOS INCAU IO S

A idéia de publicar no Brasil, concom itanlem ente com a edição original inglesa, este antipanegírico de F o jcault nasceu dc um a co nstatação irritante: a de que, na maioria esm agadora dos casos, a tribo foucaldiana (entre nós, barbaram ente autodesignada com o “ foucaiiltiana") tem o hábito de ignorar sistem atica­ mente o volum e e qualidade das críticas feitas ãs pro­ ezas histórico-filosóficas de seu ídolo. Portanto, quem quiser brincar de foucaldolatria fará melhor se passar ao largo destas páginas. Porém o caso Foucaull decerto apresenta suficiente interesse para justificar uma aná­ lise extensa (em bora não exaustiva) de sua am biciosa denúncia da cultura m oderna. Sebastião L acerda acom panhou o projeto desie li­ vro. desde sua nascente inglesa, com secreta volúpia. Se, porventura, o sofisticado Partido Epistém ico Fou­ caldiano (PEF) ou o inculto M ovimento Foucauitiano Pró-Anarquia e Perversão (M OFAP), om em curso de registro na N ova República, vierem a tom ar o poder, digo, 0 poder-saber, o u . pior ainda, o saber-poder edi­ toriais, desconfio que meu amigo Sebastião estará frito: só lhe restaria refugiar-se dc vez na carreira operística

e nos clar o Sim one Boccanegra dc século, cantado em G lyndeboum e sob a batuta sans pareil do m aestro Mauricio M agnavita. Eu bem que avisei. M arília Pes­ soa e Roberto L acerda tam bém são muito culpados, pois com andaram a editoração do livro com a mais bem -hum orada com petência. Devo ainda especiais agradecim entos ao consciencioso tradutor, Donaldson G arschagen, e a meu velho cúmplice José Mario Pe­ reira Filho, que ajudou a transpor a num erologia das notas para as referências adequadas nas m uitas trdduçôes brasileiras do calvo N ietzsche de Saint-Germ aindes-Prés, Q ue, aliás — confesso com prazer —, m orreu em franca evolução intelectual. J G M Londres, agosto de 1985

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I. o H IS T O R IA D O R DO PRLSIHNTE

N unca fu i freudiano, nunea Jui niarxisla e nunca fu \ eslruturalistu. M ic h el Fo u c a u l t

Q uando M ichel Foucault m orreu sm Paris, viti­ mado por um tum or cereb ral, em ju n h o de 1984, o jo r­ nal Le M onde publicou um necrológio assinado por Paul V eyne, em inente historiador clássico e colega de Foucault no Collège de France. Para V eyne. a obra dc Foucault era " o acontecim enio intelectual nuüs imf)ortante do nossif sé c u lo " êvènenw nt de pen sée le plus im portant de notre siècle*').Ÿo\icos concordarão com essa afirm ação bom bástica. N o enlanto, está fora dc dúvida que. ao falecer, o herói dc Veyne era um dos mais influentes pensadores dc nosso tempo. Foucault pode não ter sido o maior pensador de nossa era, mas foi. certam ente, a figura central d a filo­ sofia francesa desde S artre. O ra, desde muito a m a­ neira francesa de fazer filosofia m oderna tem sido bas­ tante diferente daquela que norm alm ente é tida com o habitual no m undo anglo-saxônico — ao m enos até há pouco tem po. N os países de ex p ressão inglesa, a filo­ sofia “ norm al” é geralm ente acadêm ica no estilo e ana­ lítica no m étodo. Vale a pena ressaltar esse ponto por­ que algumas vertentes continentais do m oderno pen­ sam ento filosófico, principalm ente em áreas de expres-

bào ulciliã. iciri sidu (ãu acaüciiiicub — c , cuin freqüên­ cia, de m aneira pesada — quanto sua contraparte ingle­ sa, sem , entretanlo, serem rigorosam ente analíticas no seniido em que o foram Russell e W iitgenstein ou Ryle e A ustin, ou em que ainda o são, na m aioria, pensado­ res anglo-saxônicos vivos, com o Quine. Em co n traste, a mais prestigiosa corrente filosófica da França seguiu um cam inho muito diferente. É lícito dizer que ludo com eçou com Henri Berg­ son. N ascido em 1859, Bergson foi exatam ente con­ tem porâneo do iniciador da filosofa m oderna na Ale­ m anha. Edm und H usserl. E, com o este, exerceu uma longa carreira no magistério — m as suas obras adquiri­ ram form a cada vez mais ensaística. enquanto multi­ dões com pareciam às suas conferências e ele próprio se tornava uma espécie de ídolo. Logo após sua m orte, em 1941. surgiu um novo guru filosófico, dono de um estilo altam ente litenirio, na pessoa de Jean-Paul Sartre (1905-1980), o inigualável supcrsíur (m as, nem por isso, incontestado) do pensam ento francês até a década de 1960. Tal com o Bergson, Sartre aliava a brilhantes do­ tes literários um a teorização desbragadam ente liberta de disciplina analítica. Foi a essa tradição de gUinioitr. antes que de rigor filosófico, que pertenceu Foucaull. Seria grosseira iryustiça sugerir que toda a filosofia gaulesa do século XX deriva d essa sedutora prática li­ vre e solta, a que som os tentados a cham ar iíte ro fiilosofia” . N ão o b stante, em nenhum a outra cultura filosòtica m oderna encontram os esse lipo dc pensador em lal preem inência. A dem ais, a lítero-filosofia fran­ cesa foi um gênero misto, de qualidade vária. Rara12

mente se revestiu de um a form a literária ostensiva, como a que N ietzsche ousou em pregar. Em vez disso, assumiu em geral o aspecto de investigações circuns­ pectas, com o em A evolução criadora (1907), de Berg­ son, ou até de tratado s, com o O ser e o nada (1943). de Sartre, ou Fenom enologia da percepção (1945), de M erleau-Ponty. C onludo, aos olhos de leitores de filo­ sofia educados dentro da m oldura analítica (ou ainda nos solenes jargões do padrão teórico alemão), o resul­ tado finai era praticam ente o mesmo. O ra, o ponto de partida de Foucault parece ligado a uma m udança sutil no destino da lítero-fílosofta. Foi como se, após o esgotam ento do existencialism o (e da mal orientada tentativa do último Sarlre de com biná-lo com o m arxism o), a lítero-filosofía passasse por um pe ríodo de dúvidas interiores. Ao que parece, a maré va­ zante da síndrom e de angústia-e-engajam ento, na a t­ mosfera intelectual mais détachée da Quinta República de de G aulle, lançou esse género teórico numa conside­ rável desordem . Em conseqüência disso, a filosofia francesa veio a defrontar-se, por assim dizer, com uma opção: ou sc convertia ã analiticidade (uma vez que a apropriação dc tem as alem ães, sobretudo tom ados a Husserl e a H eidegger, já havia sido realizada pelo existencialism o) ou im aginava uma nova estratégia pani sua própria sobrevivência. Os mais brilhantes dentre os jovens filósofos optaram pela segunda alternativa. Em vez de tornarem a filosofia mais rigorosa, resolveram fazer com quc cia sc nutrisse do crcsccntc prestígio das “ ciências hum anas” (e.g., a lingüística, a antropologia estrutural, os estudos históricos da escola dos Annales. 13

a psicologia frendiana) hem com o da arte e Ütei'atura de vanguarda. A ssim , a h'iero-filosofia logrou recuperar sua vitalidade pela anexaçà prio com o objeto de possível saber?” ). Isso, p o r sua vez, deve ser buscado sem perder de vista todo um “cofijunio de elem entos com plexos, desconcertantes'", que envolvem ‘'jogo instiíttcional. relações de classe, co.njíitos profissionais, m odalidades de saber e (...) toda um a história do sujeito da razão*’: pois tais sâo, diz Foucault, os fenôm enos heterogêneos que ele 'Uentou rem iificd r"’’ à m edida que elaborava seu m apa con­ ceituai para uma história em profundidade de nosso im passe cultural. Foucault foi o prim eiro a reconhecer que tal pro­ gram a é, com efeito» colossal, talvez de im possível cum prim ento. N o entanto, parece-m e que, ao menos etn principio, o program a foucaldiano lem um mérito: ele tenta abertam ente desfazer-se da idéia nebulosa de uma razão unitária» eco do Sujeito transcendental da m etafísica do idealism o clássico. E por que é tão im­ portante rejeitar tal m etafísica? É im portante, até im pe­ rativo, porque ela representa um a visão dem asiado antropomórfJca do mundo. O princípio básico da metafí­ sica idealista é , nas felizes palavras de M aurice Mandeibaum . a crença de que “ dentro da experiência hu­ mana natural pode-se en co n trar a chave para a com ­ preensão da natureza suprem a da realidade” / N ote-se que a longo prazo, na história da filosofia m oderna, essa posição antropocêntrica veio a ser muito mais in­ fluente do que o oulro com ponenie, um tanto óbvio, de qualquer definição mínima do idealismo clássico» ou se­ ja , a crença de que o homem — a chave para nossa apreensão da realidade — é um ser espiritual. Pois, 24

logo após a m orte de Hegel (1831), o elem ento espiritual do idealism o sucum biu ao assalto do difuso secularism o do pensam ento do século X IX, ao passo que o ponto de vista antropocêntrico da metafí­ sica idealista sobreviveu vigorosam ente, desde Scho­ penhauer e N ietzsche até Bergson. Heidegger e W itt­ genstein — todos eles filósofos da experiência do ho­ mem e intérpretes do ser em lerm os dem asiado huma­ nos (com o a V ontade de Schopenhauer ou — ironica­ mente — o “jogo*’ de N ietzsche). Aquilo que Gellner disse de Hegel — que ele nos deu uma metafísica acon­ chegante, caseira, “ um A bsoluto de suspensórios” '* — poderia na verdade ser estendido a lodo um ánim o filo­ sófico que foi o principal legado do idealismo alem ão à no.ssa ciiltiir». Às vésperas da ascensão do estruiuralism o. a filo­ sofia continental ainda estava im pregnada dessa visão aconchegante, hum anizada, da realidade. Por exem plo. 0 sujeito transcendental levava um a existência mimada, no colo do hisioricism o m oderno, isto é. do marxismo restaurado à sua pristina fonte hegeliana por Lukács, com a práxis, ébria de totalidade, no lugar do Esvpírito: e ele vicejava tam bém no tem a fenomenológico da ra­ zão ” viva” com o o fundam ento a que, superando ” a crise das ciências européias” (título do testam ento do próprio H usserl), a filosofia m oderna era instada a re ­ tornar. regenerando assim o espírito ocidental. É des­ necessário dizer que. pelas razões que acabam os de tnencionar, esse sujeito transcendental náo era dc modo algum “ transcen d en tal” num sentido sobrenatu­ ral, mas apenas no sentido de ser uma pista de base 25

para a interpretação da realidade. Falando à revista Tclos em 1983, Foucault confessou que, por volta dc 1960, ele nam orara am bas as escolas de pensam en­ to, o marxi.smo luckacsiano e a fenomenoJogia, aníe.s de .se em penhar em seus próprios estudos histórico-filosófícos. Mas ucabou escolhendo uma posição a partir da qual pudesse lançar uma clara investigação não-idealista da história da m oderna racionalidade. T erá sua obra correspondido a essa intenção ou terá m alogrado, cedendo, em seu fracasso, a novas formas de cripto-idealism o? A ntes de sugerir alguma res­ posta a essa pergunta, devem os exam inar cada um dos principais estudos de Foucault com o hisloriador-filósofo.

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II. A G R A N D E IN T E R N A Ç Ã O , O V DU CÔ TÉ DE LA FOLIE

O prim eiro livro influente de Foucault, publicado e n 1961, foi um alentado volume intitulado H istória du h u vu ra na uUtdv viùssica. N essa obra, Foucault de­ monstra que o “ discurso sobre a lou cu ra" conheceu no O cidente quatro fases distintas desde a Idade Média. Enquanto no m edicvo a dem ência era vista com o sagrada, na Renascença ela passou a ser identificada com uma form a especial de irônica razâo superior — a sabedoria da loucura, do famoso elogio de Erasm o, também presente nos personagens enlouquecidos de Shakespeare ou no cavaleiro tantas vezes sublime de C ervantes. A am bivalência pré-m oderna em relaçào à i nsània foi bem expressa no topos da Nau dos Insensatos, que prendeu a im aginação popular na Renascença. Por um lado, por meio do simbolismo da Nau dos Insensatos, o O cidente pré-m oderno exorcizava a loucura, “ despa­ chando" seus m alucos. Por outro lado. ao que parece, cssas em barcações eram vagam ente vistas com o “naus dc pcrcgrinaçcio, navios altam ente sim bólicos dc doidi)x rm busrn da ra7Ú o'\ A loucura, quc não era te ­ mida socialm ente, e que m uitas vezes (como na sátira humanista ou na pintura de Brueghel) desnudava o ab­ 27

surdo do m undo, apontava para um reino de significa­ ção além da razão — e assim a loucura era expulsa m as nào am putada da sociedade: ao aU'ibuir um papel fun­ cional à insânia, o espírito renascentista se m antinha bastante fam iliarizado com ela. Eram m uitas as pontes, sociais e intelectuais, entre a razão e o desvario. Para o homem do Renascim ento, a loucura participava da verdade. De repente, por volta de m eados do século X V II, "a loucura deixou de scr — nos Ihiites do m undo, do hom em e da m orte — um a fig u ra escatológica". O na­ vio imaginário transform ou-se num lugubre hospital, e a E uropa converteu seus leprosários, há muito d eser­ tos, em hospícios. Desde o fim das C ruzadas, o declí­ nio da leprft havia esvaziado os lazaretos — mas agora leprosos m orais seriam seus internos: Ao fin a l da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. As m argens da com unidade, às portas das cidades, abrem-se com o que grandes praias que es.se m al deixou de assom brar, m as que tam bém deixou estéreis e inabitáveis durante m uito tem po. D urante séculos, essas extensões pertencerão ao desum ano. Do século X V I ao X V II, vão esperar e .solicitar, através de estra­ nhas encantações, um a nova encarnação do mal, um outro esgar de m edo, m ágicas renovadas de purificação e exclusão. (...) A lepra se retira, deixundo sem utilidade esses lugares obscuros c es­ ses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, m as sim a m anté-la a um a distância sacram enta­ is

da, a fíxá~la nt4ma exaltação inversa. Aquilo quc sem dúvida vai perm anecer por muito m ais tem po que a lepra, e que sc m anterá ainda num a época em que, há anos, o s leprosários estavam vazios, sâo o s valores e as im agens que tinham aderido à personalidade do leproso; é o sev.tido dessa exclu­ são, a im portância no grupo social dessa figura insistente c tem ida que nào se pòe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado.^^ As frases que acabam os de citar foram extraídas do prim eiro capítulo de H istória da loucura. Dão uma boa idéia do estilo de Foucault, mescla peculiar de eru ­ dição e patos. O brilho literário de sua prosa dem onstra aquilo quc clc quei au nicsm u tem po narrar e denun­ ciar: o G rand Renferm em ent {segundo a linguagem bar­ roca da época), a G rande Internação, que procurou dom ar a insanidade pela segregação dos loucos com o categoria associai. Isto porque, durante a "id ad e clás­ sica", no sentido francês (e foucaldiano). que co rres­ ponde aos séculos XVII e X V III. a loucura foi drasti­ cam ente isolada da saúde mental. Os lunáticos não eram mais expulsos da sociedade como pessoas " d ife ­ ren te s". Passaram a ser confinados em locais espe­ ciais, e tratados cm coi^unto com outros tipos de transviados — m endigos e crim inosos, até m esm o de­ socupados. Na visão de Foucault, a ética puritana do trabalho não está m uito longe de ser apenas uma espécic num gênero: a nova gravidade d a burguesia clássi­ ca. Para a R enascença, a loucura ainda não constituía uma doença; na idade clássica, ela se tornou uma m.o29

Icstiu ociosa. A razáo racíonalista lançava sobre a lou­ cura uma m aldição "p a to ló g ic a ", carregada de co n o ta­ ções éticas. O clássico hospital psiquiátrico náo tinha objetivos psicoterapéuticos: sua preocupação principal, diz Fou­ cault (capítulo VI), era "a p a rta r n 'corrigir"'. Mas, fora dos hospitais, a idade clássica deu expansão a mui­ tas "c u ra s físicas" da loucura, notáveis por sua bruta­ lidade disfarçada em ciência. Os mais graves resultados derivavam de tentativas tão odientas quanto engenho­ sas de procrastinar ou d estru ir a "co rru p ção dos hum o­ re s " . A loucura, vista com o uma fo rn a de deterioração corporal, era atacada por m étodos que procuravam ou desviar, externam ente, substâncias corruptas ou dis­ solver, internam ente, as substâncias corruptoras. Entre as prim eiras estava o O lcum ccphalicum . de um certo doutor Fallowes. A creditava ele que na loucura " v a p o ­ res escun>s tam pam os vasos m uito Jlnos peltts quais os espíritos anim ais devem passar. Com isso, o sangue se vê privado de direção, entupindo as veias do cére­ bro. onde estagna, a m enos que .seja agitado por um m ovim ento confuso que ‘em baralha as idéias'. O Oleum cephalicum lem a vantagem de provocar 'p e ­ quenas pústulas na cabeça', untadas com óleo para im pedir que sequem , de m odo a perm anecer aberta a saída 'para os vapores negros estabelecidos no cére­ bro'. M as as queim aduras e cauterizaçóes por todõ o corpo produzem o m esm o efeito. Supõe-se m esm o que as doenças de pele. com o u su m a . o ei. zem a c a varío­ la. poderiam acabar com um acesso de loucura. N esse caso, a corrupção abandona as vísceras e o cérebro a 30

fim de csptdhar-üv pvUi superficie do corpo e liheriurse m> exterior. A o fin a l do .século, adquiriu-se o ftáhiti? dc inoculur sarna nos casos m ais renitentes de m ania. Em sua Instruction de 1785, D oublet, dirigindo-se aos diretores dc hospitais, recom enda, caso as sangrias, banhos e duchas níu) acabem com a mania, que recor­ ram uos 'cautérios, aos sedcnhos, aos abscessos superficiais, à inoculação da sa rn a '." Nem iodos os tnitam cntos durante a idade clássica eram tão cruéis c tão tolos. Ao lado das “ terap ias” fí­ sicas, havia m uitas receitas m orais, bem docum entadas no fartam ente ilustrado capítulo “ Médicos e d o en tes” de I/istória da loucura — verdadeira façanha de erudi­ ção descritiva. E n tretanto, o ponto principal ressalta cristalino: no O cidente clássico, nos albores dc sua m odernidade, a loucura lornou-se apenas uma doença — perdeu a dignidade de ser vista com o um desvario significativo. E ntão, cm fins do século X V IIl e durante a maior píirte do século .seguinte, as reform as psíquiátrícus, que tiveram com o pioneiros o quaker William T uke, no York R etreat, e Philippe Pinel, em Pi»ris, isolaram os loucos da com panhia de m endigos e crim inosos. Se­ gundo a visão m arxista de Foucaull, os pobres deixa­ ram de ser confinados porque o florescente industrialismo necessitava de m ão-de-obra e de um exército de reserva. Q uanto aos dem entes, definidos com o pessoas enferm as, seres hum anos que padeciam de um desen­ volvim ento psíquico bloqueado, foram fisicam ente li­ bertados (Pinei quebrou as co rren tes que os prendiam no nosocôm io de Bicêtre. durante o T error, com o um 31

gC 8to sim bólico) e colocados sob um regime educacio­

nal benigno. N o enlanto FoucauU está convencido de que isso só foi feito para m elhor capturar-lhes a m ente — tarefa confiada à instituição do asilo. Uma vez no asilo, o insano, agora um paciente posto sob a autori­ dade do discurso psiquiátrico, passa por um “ju lg a ­ m e n to " profundam ente psicológico, do qual "n u n va se é liheríuiio (...) exceto (...) pelo rem orso"'^ — a loriura moral torna-se a lei da tirania da raiiâo sobre a loucura. N o m undo do hospício, argum enta FoucauU, antes das reform as psiquiátricas de Pine) e outros, os doidos na verdade gozavam de mais liberdade do que as terapias m odernas lhes perm item , um a vez que o tratam ento pela “ internação clássica” nâo visava a m udar-lhes a consciência. Seus corpos estavam presos por co rren ­ tes, m as suas m entes tinham asas — mais larde cor­ tadas pelo despotism o da razão. Assim , o pensam ento ocidental passou a separar firm em ente a razáo da desrazào. Nas palavras de Fou­ cauU. a conversão da loucura em doença, no fim do sé­ culo XVIIJ, “ rom peu o diálogo” entre a razão e a in­ sânia. " A lingnagem da psiquiatria. (...) um m onó­ logo (ía razão sobre o loucura, só veto a ser estaheleciilo com hase em tal silên cio ." A partir daí, " a vida da d esrazào" só brilhou nos fulgores da literatura dis­ sidente, com o a de H ölderlin. N erval, N ietzsche ou Ar­ taud. Q uanto à psiquiatria hum anitária, na esteira de Pinei e T uke. ela representou nada m enos que “ um gi­ gantesco encaiL ciam cnio m oral". Alem do mais. o asilo espelha toda uma estru tu ra autoritária — a da so­ ciedade burguesa. Constitui "n m m icrocosm o no qual 32

cstavant sirnholizados a vasía estrutura da sociedade burguesa e seus valores: relações Familia-Criança, eeniradas m> lem a da autoridade paw rna: relações Tniiisgressâo-Castigo. centradas no tema da ju stiça im ediata: relações Loucura-D esordem , centradas no tem a da ordem social e mt>ral. Fra dessas relações que o médico derivava seu poder de cu ra r.” ’* Por fím. em nossa própria época, surgiu uma quarta maneira de conceituar a relação razão/loucura. Freud obscureceu a distinção entre saúde mental e in­ sânia ao considerar que a polaridade entre as duas coí> sas era m ediada pelo fenôm eno da neurose. N o entan­ to, apesar de sua decisiva suplantação da m entalidade do asilo. Freud conservou um traço autoritário crucial Uü cniregar os m enialm enie perturbados ao poder dos médicos da alma. Por certo, H istória da loucura abre uma legítima ãrca de pesquisa: a investigação dos pressupostos cul­ turais subjacentes às diferentes maneiras históricas de lidar com uma área altam ente perturbadora do com porlamento hum ano. Num a crítica simpática ao livro, o imaginativo epistem ólogo M ichel Serres disse ser ele uma “ arqueologia da psiquiatria” , provavelm ente uma das prim eiras vezes cm que o term o foi em pregado com referência a Foucault (que o usou. ele próprio, no sub­ título ou título de seus trés livros seguintes). Para S er­ res. H istória da loucura representa para a cultura da idade clássica “ muito precisamente** (,v« )o que O nas­ cim ento da tragédia, de N ielzsche. representou para a cultura grega antiga: lança luz sobre o elem ento dioni­ síaco reprim ido sob a ordem apolínea — “on sait enfin 33

dc quelles nuUs les jo u rs sont vu'.ourés*’, conciui clc, em lírico enlusiasm o.' ' N aturalm ente, a câlida acolhida que Foucault recebeu do m ovim ento da antipsiquiatria (Laing et al.) foi uma resposta direta a esse com po­ nente orgiástico. N os E stados Unidos, os críticos logo notaram o parentesco, em espírito, se não em tom ou m étodo, com a obra de N orm an Brown {Life A guinst D eath, 1959) e seu eloqüente hino ao id prim itivo.'^ Além disso. H istória da loucura gerou toda uma prole de justificações da psicose, todas escritas com forte ánim o **contraculturar\ a mais conhecida das quais continua a ser o Aiiti-Edipo: capitalism o e esquizofre­ nia (1972), de Gilles Deleuze e Felix G ualtari. Ao exam inarm os o prim eiro estudo históriconiosófico im portante de FoucauU. cabe-nos perguntar: a história contada por ele é acurada? Há quem diga que fazer essa pergunta é um equívoco, pois Foucault veio a concordar inteiram ente com a rejeição, por N ietzs­ che, das pretensões da história a alcançar uma objeti­ vidade neutra. Em “ N ietzsche, genealogia, história" (1971),'^ ele despeja um desprezo niet/sch ian o sobre “ a história dos histo riad o res", que, buscando a neuiralidade, imaginam um implausível “ ponto de apoio fora do tem po". Quão mais sábia, diz FoucauU, é a ' “genea­ logia" de N ietzsche, que "n ã o reme ser um conheci­ m ento perspectivado": ela assum e ousadam ente "o sis­ tem a da síta própria injustiça". Entretanto, afirm ar o direUo de fazer uma história “ presentista" ou m esm o de praticar uma história e n ­ gagée náo isenta o historiador de seus deveres em píri­ cos em relaçáo aos dados. Pelo contrário: a fim de 34

m ostrar o que deseja, a histoire à thèse, orientada para o presente, deve ten tar convencer-nos da exati­ dão de sua interpretação do passado. Afinal de contas, o próprio Foucault descreveu seu livro como "u m a his­ tória das condições económ icas, políticas, ideológicas e institucionais de acordo com as quais se realizou a segregação dos insanos durante o período clássico. No prefácio à edição original de seu livro. Foucault dispôs'se a escrever uma história “ da própria loucura, em sua vivacidade, antes de qualquer captura pelo sa­ ber ‘psiquiátrico” ' — uma larefa, segundo a ju s ta obser­ vação de AIlan Megill, não muito diferente da historio­ grafia ortodoxa.*’ É verdade que, mais tarde, Foucaull veio a negar que estivesse visando a uma reconstitui­ ção da loucuru com o um rcfcrcnctal histórico indepen­ dente** — mas não há com o desm entir que, na época, ele tinha em mente um objetivo historiográfíco “ nor­ mal” ao escrever H istória da loucura. Foucault d ese­ jav a questionar os relatos históricos anteriores, e não duvidar da legitim idade, para não falar da possibilida­ de, de fazer pesquisa histórica. Podemos concluir, en­ lâo, que no jovem Foucaull o “ anti-historiador” ainda nào existe em plenitude. Em seu lugar havia apenas um íw í/ríi-historiador, quer dizer, um historiador que de­ safiava as interpretações prevalecentes de uma dada parle de nosso passado. Por conseguinte, lem os, afinal, o direilo de perguntar: a história contada por Foucault é acurada? N u m a lucdida iinpoitaute, é. Alc m esm o um dc seus principais críticos, L aw rence Stone, adm ite que Foucault tende a estar certo ao pensar que a internação 35

generalizada no fim do século XVII c no século XVIII representou um retro cesso , sujeitando pessoas men­ talm ente perturbadas, indiscrim inadam ente, a um tra ­ tam ento drástico antes só dispensado a psicóticos peri­ gosos.*’ O problem a com eça quando Foucault (a) sa­ lienta o "d iálo g o ” medieval e renascentista com a lou­ cura, em contraste com a atitude segregadora em rela­ ção a ela nos tem pos m odernos, isto é , racionalistas; (b) insiste em (ratar a ” idade clássica’' — a época da G rande Internação — com o sem precedentes na natu­ reza, e não apenas na escala, de sua atitude cm relação à dem ência, dando grande im portância à conversão dos leprosários em hospitais m entais e ao surgim ento de um a concepçào "fisiológica” da loucura com o doença: e (c) considera as terapias Tuke-Pinel com o m étodos novos em folha para enfrentar a doença m ental, denun­ ciando seus procedim entos morais com o totalm ente repressores. No capítulo V de seu esplêndido livro Psycho Poli­ tics (1982), o falecido P eter Sedgwick desm entiu vários pressupostos básicos do quadro histórico dc Foucault. D em onstrou, por exem plo, que m jito antes da G rande Internação m uitas pessoas insanas tinham sido postas sob custódia e subm etidas a terapia (por mais primitiva que fosse) na Europa. A ntes da era clássica dc Fou­ cault. havia por lodo o vale do Reno vários hospitais com acom odações especiais para dem entes. H avia, desde o sêctdo X V . uma cadeia nacional de asüos de caridade, principalm ente para os loucos, na Espanha — sociedade da qual não se poderia dizer que fosse muito propensa a aceitar o racioralism o .m oderno. Da 36

mcbina form a, várías técnicas atestando uma concep çào físiológica rudim entar da doença mental, que. no modelo de Foucaull, são atributos da Idade da Razão, na verdade já abundavam na E uropa pré-racionalista. muitas delas sendo oriundas de sociedades m uçulm a­ nas. D ietas, jeju n s, sangrias e a branda rotação (o luná­ tico era levado ao esquecim ento mediante a centrifuga­ ção por meios m ecânicos) eram algumas dessas técni­ cas, a m aioria das quais rem ontava ã medicina aiiíiga (uma época, dc qualquer form a, fora do cam po de es* tudo de Foucault). Com m uita perspicácia, Sedgwick acentua a continuidade nas artes médicas no decurso das eras. N ão nega a expansão da “ atitude m édica“ durante a fase inicial do raciunall^ino m odcm o, mas observa nào ser possível derivar a concepção da lou­ cura sim plesm ente de um dissem inado "racionalism o burocrático” em rUptura com uma suposta longa tradi­ ção dc perm issividade frente à insanidade. H. C. Erick Midelfort reuniu vários aspectos hislóricos que solapam , ainda m ais, grande parte dos fundam entos de História da lo u c u ra .^ Midelfort não se coloca, em princípio, contra a desm itificação do llum i­ nismo por Foucault. Está longe de se posicionar com o tm indignado defensor de qualquer relato benevolente sobre os heróicos progressos terapêuticos. Mas exibe um im pressionante domínio de fontes escritas sobre a história da loucura e da psiquiatria. Convido o leitor interessado a fazer sua própria colheita na brilhante síntese de Midelfort e a tirar par­ tido de seu abundante suporte bibliográfico. Contudo, 37

convém salientar desde logo alguns pontos: 1) há muitas com provações de crueldade na Idade M édia co n tra os dem entes; 2) no fím d a Idade Média e na R enascença, os loucos já sc encontravam com freqüência confinados, em celas, prisões e até jau las; 3) com ou sem ‘’diálo­ go” , durante aqueles tem pos, a loucura era freqüentem ente ligada ao pecado — m e sn o na mitologia da N au dos Insensatos; e , nessa m edida.era vista sob uma luz muito m enos benévola do que sugere Foucauit (as m entes pré-m odernas aceitavam a realidade da loucura — “ loucura com o parte da verdade” —, da m esm a form a que aceitavam a realidade do pecado; mas isso náo q u er dizer que prezassem a loucura, assim com o nào prezavam o pecado); 4) com o dem onstrou Martin Scliiciik (clc pió p iiu uni bcveio ciílico de Foucault). os prim eiros hospícios m odernos surgiram a partir de hos­ pitais e m osteiros m edievais, e não da reabertura dos leprosários; 5) a G rande Internação teve com o objetivo prim ordial não a m arginalidade, mas sim a pobreza — a pobreza crim inosa, a pobreza louca ou a pobreza pura e simples; a idéia de que ela prenunciava (em nome da burguesia ascendente) uma segregação monii não su­ porta exam e alento; 6) de qualquer form a, tal com o fri­ sou Klaus D oerner (outro crítico dc Foucaull), não houve confm am cnto. de controle estatal, uniforme: o modelo inglês e o alem ão, por exem plo, afastaram -se muito do G rand Renferm em ent de Luís XIV; 7) a pe­ riodização de Foucault parece errônea. Em fins do século X V III. a internação dos pobres já era vista, dc m aneira geral, com o um fracasso: mas foi então que a internação dos loucos realm ente ganhou im pulso, com o 38

tnostram conclusivam ente as estatísticas referentes à Inglaterra, à F rança e aos E stados Unidos; 8) Tuke e Pinei não “ inventaram ” a doença mental. Em vez disso, devem muito a terapias anteriores e com fre­ qüência utilizavam tam bém seus métodos; 9) adem ais, na Inglaterra oitocentista, o tratam ento moral náo constituía um elem ento tão central na medicalização da loucura. Longe disso; com o m ostra Andrew Scull, os médicos encararam a terapia m oral de Tuke com o um am eaça leiga à sua arte e se esforçaram para evitá-la ou para adaptá-la à sua própria atuação. Mats uma vez, os monólitos cronológicos de Foucault desabam ante a abundância de provas históricas que os contradizem . Com efeito, essa sinistra crónica de arrogante tira­ nia médica nâo e de m aneira aiguina apoiada pclus da­ dos reais sobre a terapia na era do asilo. David Rothman {The D iscovery o f A sylum , 1971), historiador so­ cial quc realizou pesquisas inovadoras sobre o desen­ volvimento das instituições m entais nos E stados Uni­ dos à época de Jackson, docum entou que. em m eados do século XIX, verificou-se um afastam ento dos m éto­ dos psiquiátricos em favor de m étodos apenas custo­ diais. O relato de Rothm an coincide à perfeição com o ‘niilismo terapêutico” da época — a relutância médica a passar do diagnóstico ao tratam ento, com base numa concepção pessim ista dos poderes da medicina (meio século mais tarde, o jovem Freud ainda teve de com ba­ ter essa ideologia m édica, muito arraigada em Viena).*' \íf. bom notar que Kothman nao esta de modo algum su­ gerindo quc o asilo custodiai (em contraposição ao psi­ quiátrico) fosse boa coisa. Pelo contrário, para ele o 39

espírito custodiai estav a ligado ao controle burguês das categorias sociais “ perigosas” . Mas. se ele tem razão, o que estav a na ordem do dia com o fenôm eno rep res­ sivo em relação à Insânia era a passivUladc medica, e não a psiquiatria aJtam ente introm etida que Foucauit q u er apresen tar com o serva de uma Razão despotica­ m ente intervencionista e arregim entadora. Em essência, o livro de Foucault é um a argum en­ tação passional contra aquilo que aprendem os a ver com o sendo o hum anitarism o do lluminismo. Por con­ seguinte. os especialistas sobrc aquele período, com o L aw rence Stone, dificilmente poderiam ter deixado de se opor a tal desafio às suas concepções mais equili­ b rad as.“ E que devem os pensar da idéia da criação da psiquiatria com o "u m gigantesco encarceram ento m oral” ? A verdade é que os hospícios particulares e os velhos asilos estatais costum avam ser escandalosa­ m ente m al-adm inistrados, e que as reform as de pionei­ ros com o Tuke e Pinei, conducentes ao surgim ento dos prim eiros hospitais psiquiátricos m odernos, em bora náo fossem tão angelicais com o no passado se pensou, repre­ sentaram atos genuínos de filantropia esclarecida. A acusação de “ sadism o m oralizante” . aplicada p o r Fou­ cault à infância da psiquiatria, é um exem plo de m elo­ dram a ideológico. É muito bom tcm ar posição du cótv de la fo lie — só que, na ânsia de se colocarem os insanos no papel dc vítim as da sociedadc, pode-se facilmente esquecer que m uitas vezes eles sáo profundam ente in­ felizes e que o Magelo de que padeciam exigia terapia. A idéia de que a atitude cducação-e-não-grilhões fosse apenas um artifício carcerário repressivo (ainda que in40

conscienie) não resiste ao exam e crítico. A fobia antiburguesa de Foucault tende a fazê-lo rejeitar a filan­ tropia vitoriana//I Umtne. mas um hum anitário de classe média m enos tendencioso, cham ado Charles Dickens, que se escandalizara com os asilos de pobres em Lon­ dres, ficou vivam ente im pressionado — observa o Dr. J. K. Wing em Reasoning ahottí M a ih ess'^ — «com a atmosfera humana dos pequenos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos, onde m édicos e aiendentes chega­ vam a partilhar a m esa com os pacientes. Seria incorreto extrapolar daí. e, na verdade, de m uitos o u tro s testem u­ nhos positivos contem porâneos, e pintar um retrato idí­ lico de hum anitarism o psiquiátrico. C ontudo, tam ­ pouco há qualquer m otivo forte, apoiado nos fatos, para chegarm os à conclusão oposta c declararm os a plena m edicalização da loucura durants a prim eira era da psiquiatria “ burguesa” parte integrante de uma me­ donha sociedade (para usarm os um adjetivo mais tarde transform ado por Foucault em slogan) "cu rcçrá n ã ". N a realidade, desde 1969 dispom os do corretivo natural ao quadro m aniqueísta de Foucault — a bem pesquisada “ história social da insanidade e da psiquia­ tria” na sociedade burguesa, realizada por K laus Docrner. Seu livro Os loucos e a burguesia, um estudo com parativo das experiências britânica, francesa e iilcmã. está longe de discordar inteiram ente de F ou­ cault na descrição da alvorada da psicoterapia (ainda quc lhe aponte a tendência pani generalizar excessiva­ mente a partir do caso francês). Onde D oerner real­ mente se afasta de História da loucura é na avaliação do fenômeno. 41

Tom em os seu conciso capítulo sobre Pinei (11,2). ou ainda o capítulo (1,2) sobre o m édico londrino que ele. com ju stiça, resgata das som bras do esquecim ento com o tendo sido o prim eiro a oferecer uma abordagem global da psiquiatria, abarcando a teoria, a terapia e o asilo: William Battie (1704-1776). Os m étodos de alienistas esclarecidos, com o Pinei, provocaram um a m udança decisiva — do isolam ento dos dem entes a um retorno da loucura à visibilidade social, em asilos abertos à contem plação de parentes, psiquiatras e estudantes de medicina. Mas enquanto Foucault prontam ente vitupéra a tendência ''o b jetifi­ ca n te ” da contem plação médica no regime de observa­ ção sob o qual os pacientes eram colocados. D oerner frisa que a prim azia dos "tratam en to s m orais" foi uma das grandes causas do abandono de m étodos terapeuticos tradicionais; e, nessa medida, representou uma considerável rejeição d a “ atitude de distanciam ento” (lem brem o-nos do hospital am ericano de Dickens). Da m esm a form a, D oerner. que capta com agu­ deza a influência de idéias rousseaunianas sobre a edu­ cação moral náo-autoritária (Pinei era devoto de JeanJacques) e não despreza a difusão da sensibilidade pré-rom ántica às vésperas das reform as psiquiátricas, julga profundam ente hum anitário o program a cura-enão-assisténcia dc Battie na Londres dc m eados do sé­ culo XVIIL N ào foi à loa que o livro de Battie, Tre­ atise on M adness (1758), constituiu um ataque (pron­ tam ente repelido) contra o niilismo terapêutico da famí­ lia M onro, cujos m em bros tinham sido proprietários c adm inistradores do H ospital Bedlam durante dois sécu42



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Uxs. Alem disso, ao ressaltar o aspecto dc alienação da insânia, com o com prova o próprio título de seu í ^ / | ^ ^ m éifico-phihsophU fuc sur raliénaíton m eníule oii~yiT'* manie (1801), Pinei recolocou a loucura dentro do ho­ mem — fosse na m enie ou no corpo. No entanto, ao fazé-lo. ele destacou m enos a loucura-com o^doença (a h tie noire de Foucaull) do que a insânia t om o caso indi­ vidualizado. O ra, esse foco no indivíduo (um prenuncio dc Freud) constituía» patentem ente, ura extraordinário progresso — paralelo, na verdade, a uma m udança se­ melhante ocorrida na m edicina física contem porânea, a qual, com o verem os mais adiante, viria a ser brilhanicmente exposta por Foucault em seu livro seguinte. IXierner só pode concluir que Foucaull, a despeito de tci sidu o criadui da "p riiiiciia atilude iiiipuilanlc” ein relação ã sociologia da psiquiatria, oferece um relato "dem asiado unilateraP ’ — um relato onde a dialética do llum inism o é "reso lv id a unilateralm ente em term os dc seu aspecto d estru tiv o ” . Em O nascim ento da clínica (1963), Foucaull examinou um período muito mais breve, a rica história da m edicina entre o últim o terço do século XVIII e a R estauração Francesa (1815-1830). Concentrando-se cm velhos (ratados m édicos, dos quais faz fascinantes interpretações, o livro, encom endado por Canguilhem , exuma diferentes "estruturas p erceptivas” que sustenliiram três tipos sucessivos de teoria e prática da medici­ na. D esiacam -se duas m udanças principais. N a pri­ meira, uma m edicina das espécies, que ainda prevaleciíi pela altura de 1770. cedeu lugar ao primeiro estágio 43

da mcdícina í ltnk a. A m edicina das espécies fazia na nosologia o que Lineu fez na botânica: classificava as doenças com o espécies. Supunha que as doenças fos­ sem entidades sem qualquer ligação necessária com o corpo. A transm issão das doenças ocorria quando al­ gum as de suas “ qualidades” m isturavam -se. atrav és de “ afinidade” , com o tipo de tem peram ento do paciente (ainda se estav a próxim o de Galeno e suas concepções hum orais). Julgava-se que “ am bientes não natu rais” favorecessem a dissem inação da doença, e por isso se acreditava que os cam poneses padeciam de m enos en­ ferm idades que as classes urbanas (as epidem ias, ao contrário das doenças, náo eram lidas com o entidades fixas« mas sim com o produtos do clim a, da fome e de outros fatores externos). Em contraste, em seus pri­ m órdios a m edicina clínica foi uma nicJicina d o s sin­ tom as: encarava as doenças com o fenôm enos dinâm i­ cos. Em vez de entidades fixas, as doenças eram con­ sideradas m isturas de sintom as. E stes, por sua vez, eram tom ados com o sinais de ocorrências patológicas. Com o resultado disso, os quadros taxionôm icos da m edicina clássica foram substituídos, na leoria medica, por contínuos tem porais, que perm itiam , em particular, um maior estudo de casos. Por fim. no limiar do século XIX. surgiu oulro pa­ radigm a médico: a m ente clínica substituiu a medicina dos sintom as p o r um a " m edicina Jos tecid o s" — a te­ oria anãtom o-clínica. As doenças já nào denotavam es­ pécies nem conjuntos de sintom as. Em vez disso, agora indicavam lesões em tecidos específicos. Os mé­ dicos passaram a concenlrar-se muilo mais — na tenta44

liva Uc adquirir conhecim entos sobre a patologia — no paciente individual. A mirada médica transform ou-sc num olhar, o equivalente visual do taur, os m édicos passaram a buscar causas ocultas e não apenas sinto­ mas específicos. A m orte — vista como um processo vital — tom ou-se a grande m estra da anatom ia clínica, revelando, através da decom posição dos corpos, as verdades invisíveis procuradas pela ciência médica. Para Foucault, a morte e o indivíduo — ju stam ente os tem as da grande arte e da literatura rom ânticas — agora fundam entavam tam bém o novo “ código perceptivo” da m edicina — um código que encontrou seu evangelho na A natom ia geral (1901) de X avier Bichat (1771-1802). Q uando François Broussais (1772-1838; Lxam ínation o f M edicai D octrines. 1816), partindo da histologia dc Bichat, baseou o saber médico na fisiolo­ gia e não sim plesm ente na anatom ia, e explicou as fe­ bres com o reações patológicas provocadas por lesões em tecidos, com pletou-se o círculo: a medicina clássica morreu nas mãos dos m édicos científicos. A medicina clássica linha um objeto — a doença — e uma meta — a saúde. Ao atingir a m aioridade, a medicina clínica substituiu a doença pelo corpo doente com o objeto de percepção m édica, e a saúde pela norm alidade com o o desiderato da arte de curar. A ssim , o ideal de normaliiliide, desm ascarado com o um expediente repressivo cm História da loucura, volta a ser exam inado com hostilidade por Foucault ao fim de sua história do n as­ cim ento da medicina moderna. D essa vez, porém , o quadro se apresenta muito mcnos carregado de preconceito antim odem o e anti45

burguês. Em sua prim eira obra, o pequeno Hvro intitu> lado D oença m en ta í e psicologia (1954), Foucault havia muitas vezes raciocinado com o um psicanalista d a “ es­ cola cultural” » atribuindo o distúrbio mental à socie­ dade capitalista, dom inada por contlitos. Em H istória Ja loucura ele se colocou, mais ousadam ente, ao lado da loucura (mítica) contra a razão burguesa. E m bora seja pouco provável que ele adm itisse qualquer dessas influências, dir>se*ia que ele passou da posição de um Erich From m para a de um Norman Brown — trocou uma ênfase no bloqueio sociai d a felicidade hum ana por um a exortação à liberação do id dionisíaco. Em O nascim ento da clínica não se percebem tais tran sp o r­ tes de em oção. O livro é muito bem escrito — na ver­ dade. com posto com grande habilidade literária, mus seu tom não está muito distante d a sóbria elegância dos ensaios do próprio Canguilhem sobre a história das idéias científicas. O que O nascim ento da clínica fez foi colocar Foucault mais perto do estruturalism o. Um ensaio que fala de códigos e estruturas de percepçáo, que descreve as “ espacializaçôes do patológico” e insiste numa ex­ posição não-linear da história intelectual — na “ ar­ queologia” com o um relato cesurai, á m aneira de K uhn, de m udanças paradigm áticas no pensam ento mé­ dico — nào podia deixar de ser com parado ao estilo te­ órico que então prevalecia na França. Uma talentosa com entadora, Pam ela M ajor-Poetzl, observou com ra­ zão que, enquanto História da loucura ten tav a uiudai nossa percepção corrente da loucura, mas não nossa m aneira convencional de pensar a respeito da história» 46

o nascim cnto da vh'nica fazia exatam ente isto:2^ o li­ vro introduz vários conceitos espaciais caros ao espí­ rito estruturalista. Por fim, deve-se tam bém observar que o livro inaugura, na obra foucaldiana, a problem ática do modo de inserçãíf social dos discursos. Foucault concede um razoável grau de autonom ia à form ação do discurso. No entanto, isto não é tudo. Elc tam bém deseja inves­ tigar a m aneira coucreta com o um dado discurso (por exem plo, o pensam ento m édico) se articula com outras práticas sociais que lhe são externas. Ao mesmo tem ­ po, lenta com afinco evitar grosseiros dichòs determ i­ nistas, com o as ‘'ex p licaçõ e s" generalistas do tipo base'supereslrutura do marxismo (vulgar); e se esforça pur imaginar padrões de explicaçãu mais ílexíveis sem Cíiír nas nebulosas abstrações com uns no m arxism o esirutural de A lthusser e de seus seguidores, que falam muito dc "so b red eterm in ação “ , “ causação e stru tu ra l" e “efeito estru tu ra l" , mas raram ente, ou nunca, se em ­ penham num corpo-a-corpo com qualquer m aterial em ­ pírico (como se náo gostassem de sujar as m ãos com a análise da história real). Em O nascim ento da clinica há capítulos sobre o contexto social de grandes m udanças na teoria e na prálica médicas. Por exem plo, o livro m ostra com o o governo, durante toda a Revolução Francesa, coagido pelo aum ento da população enferm a em tem po de guer­ ra. relutantem ente abriu clínicas para com pensar a falta de hospitais e de m édicos com petentes. A clínica, por sua vez, possibilitou con to rn ar as guildas m édicas e seu saber tradicional, favorecendo assim o lançamento de no­ 47

vas “ estruturas perceptivas“ r a medicina. Vemos, pois, que a relação causai entre o contexto social e a mudunça paradigm ática no discurso médico tem um ca­ ráte r indireto, até oblíquo. É tudo uma questão de m os­ tra r "co m o o discurso m édico, enquanto prática rela­ cionada com um cam po particular dc objetos, ena m tra n d o -se nas m ã o s de um certo núm ero de indi­ víduos designados estatutariam ente e com certas fun-^ ções a exercer na sociedade, está articulado em práti­ ca s que lhe são externas e que não são, elas próprias, de ordem discursiva**.^ “ A rticulado” : eis a palavra estra­ tégica. Com o Roland B arthes gostava de dizer, o estru ­ turalism o am a **artrologias” — disquisiçôes elaboradas sobre elos e conexões.

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III. U M A AR Q U E O LO G IA D A S C IÊ N C IA S H U M A N A S

O título deste capítulo é, literalm ente, o subtítulo da obra-prim a de Foucault, A s paiavros e as coisas. Surpreendentem ente, porém , o livro nâo retom a o pro­ blema da articulação das práticas sociais e intelectuais. Antes se com praz num a descrição exuberante e perspi­ caz destas últim as. Foucault sim plesm ente utiliza os discursos ocidentais sobre a vida, a nqueza e a lingua­ gem a fim de apreender o pano de fundo conceituai contra o qual, durante o século X IX, surgiram as ciên­ cias do hom em . O arco dc tem po é aproxim adam ente o mesmo de H istória da {oucura: do Renascim ento até o presente, estendido até o período contem porâneo para que se possam dizer algumas palavras não só sobre Freud, com o lam bém sobre a fenomenologia e a an tro ­ pologia estrutural. A inspiração para escrever A s palavras e as coi­ sas. diz Foucault em seu prefácio, occrreu-!he ao ler um conto de Borges, no qual o irônico argentino se re­ fere a “ certa enciclopédia ch in esa’* na qual " o s ani­ mais .sc dividem cm : {a) pcrtcncentcs uo imperador, (h) em halsam ados, (c) dom esticados, (d) leitões, (e) se­ reias, (f) fabulosos, (g) câes em liberdade, (h) incluídos 49

n / l pri'.u'nte rla.sxiJireiÇíU). (i) que se agitam rí>m{f louvos. (/) 'mumerávcis. (k) líesenhados vom um pincel m uifo Jino dc pêlo dc cam elo, (',) et caetera, (m ) que acabam de quebrar a bilha, (n) aue de longe parecem m o sc a s” . A absurda estran h eza de tal classificação su­ gere a Foucault. atrav és do "en canto exótico de um outro sistem a de p e n sa m e n to ", " o limite do n o sso ’\ Em üutras palavras: a enciclopédia im aginária de Bor­ ges pode ser vista com o símbolo de padrões alheios de categorízaçáo; a fábula aponta para sistem as incom en­ suráveis dc ordenar coisas. Surge, pois» naturalm ente a pergunta: quais são as fronteiras de nosso modo dc pensar? Com o é que nós, ocidentais m odernos, orde­ nam os os fenôm enos? A arqueologia foucaldiana das ciências hum anas é uma tentativa de o ferecer uma res­ posta, apresentada cm perspectiva histórica, a essa pergunta. O assu n to dc scu livro são os códigos cuhurais fu n d a m en ta is que impõem ordem à experiência. Foucaull em pregou o rótulo “ arqueologia” para denotar "a história daquilo que torna necessária uma certa fo rm a dc p en sa m en ttt". A “ arqueologia” lida com formas de pensam ento necessárias, inconscientes e anônim as, a que Foucaull cham a " e p iste m e s '’. Uma “ epistem e” é o " a priori histórico” que, "n u m dado p e­ ríodo, delim ita na lelo hum ano, de encarar a realidade. S e, sob a epis­ tem e clássica, faltava o homem com o o sujeito central do saber — tal com o o modelo real cm L as M eninas —, a episteme moderna fez muito mais do que restau­ rar o equilíbrio: ela carregou nas tintas, esquecendo-se de que o hom em , com o o fulcro do saber, através de sua finitude pessoal ou coletiva, nâo passa de uma fi­ gura transitória no desfile inescrutável das epistem es: "Corno a arqtn'idogia dc nosso pensam ento m o s­ tra fiicihnente, o honw m é uma invenção de data recente. E talvez esteja aproxim ando-se do Jim. 76

S c aqtu'Uis c/ispttsiçõcs vic.ssc/u « dcsaparcccr tai vom o apareceram , se, p o r algum acontecim ento de que pod em o s quando m uito pressentir a possi­ bilidade, m as de que n clássictf — en ­ tão se pode apostar que o hom em desvaneceria, com o. na orla do m ar, um rosu) desenhado na are ia .’ E ssas frases om inosas formam as últimas linhas de As palavras e a s coisas. N ão foi esta, exatam ente, a prim eira vez que o estruturalism o protestou co n tra o poniu dc vÍ2»la liunianu no Nubcr. Jú nãu havia LcviStrauss tranqüilam ente proposto a dissolução do homem com o m ela da ciência social? N ão obstante, a despeito dc algum as sugestões com uns, os dois pensa­ dores não estão dizendo a m esm a coisa. Enquanto Lévi-Strauss enunciava um desejo em nome da ciência, 0 que fez Foucaull. num de seus m om entos mais crípti­ cos, foi algo inteiram ente diferente: ele aludiu a uma perspectiva que mais se assem elha a um destino do sa­ ber. Q uando chegar a maré da próxima epistem e, o homem, com o espaço do saber, será levado pelas águas. Qual o significado d esse estranho oráculo? Façam os uma breve recapitulação. A epistem e moderna, a d a história e não a da ordem , desdobra-se com o uma analítica da finitude humana. O homem é um ser tal que é nele — por meio dele — que com pre­ endem os o que torna o saber possível. Sem dúvida. 77

adm ite Foucault» a natureza humana já desem penhava papel sem elhante no século XVIII. Na época, contudo, aquilo em que em piristas com o Condillac se concen­ travam eram apenas as propriedades de representação — as faculdades m entais — que possibilitavam a exis­ tência do saber: a consciência que o homem tinha de si m esm o, a m em ória, a im aginação. Para um a análise do hom em a m crcío , com o o tem a do saber pós-cíássico, isso não bastava. Em vez de um a ab«.trata “ natureza hum ana“ , deu-se lugar central ao homem com o uma "realidade espessa** e . com o tal, um “ objeto d iíT cir"' — nada de facilm ente captado na transparência das re­ presentações estáticas, na epistem e cristalina da ordem e de suas árvores tabuiares claras e precisas. Uma ana­ lítica da finitudu exigia que as prccondiçõe.s do saber fossem esclarecidas por meio dos próprios conteúdos em píricos dados na vida hum ana: o corpo do homem, as relações sociais desse hom em , suas norm as e valo!C S .

O ra. isso colocou o hom em , do ponto de vista epistem ológico, num a p>osiçào canhestra. Por um lado, conhecer o homem resum ia-se em apreender as d eter­ m inações da existência hum ana concreta nos fatos da vida, do trabalho e da linguagem, todos os quais mol­ dam o hom em , antes m esm o de s e t nascim ento, com o indivíduo. De o u lro lado, porém , a pesquisa sobre a na­ tureza físiológica e sobre a história social do saber, preocupada em desnudar o conteúdo em pírico da saga do homem na terra, não podia deixar de pressupor um certo nível de razáo transcendental, uma vez q u e, a fim de separar a verdade do erro, e a ciência da ideologia, 78

o saber necessita de um critério crítico com algum apoio externo. Em conseqüência, o homem — o fulcro do saber na epistem e m oderna — está fadado a ser "um estranho duplo em pírico-transcendental'' — um requisito epistem ológico quase impossível de atender de m odo satisfatório. N ão surpreende, portanto, que essa am bígua figura de s a b e r " esteja am eaçada pela perspectiva de dissolução. As reflexões de Foucault sobre esse tópico, vital na econom ia de A s palavras e as coisas, sào extrem a­ mente breves. O que q uererá ele dizer, exatam ente, com a am bigüidade (sua própria expressão) do duplo humano? Seja o que for, trata-se j»em dúvida de um enigma estritam ente epistem ológico. Nào há higar aqui para o scmi-anjo, scmifcra dc I’ascal, nem para a duali­ dade kantiana de liberdade moral e determ inism o natu­ ral. N a verdade o que Foucault parece ter cm mente é a atividade fenom enológica. A fenomenologia, afirm a d e . prom ete ap reen d er a um só tempo o em pírico e o transcendental, pois essa é a m eta de seu program a, a análise da experiência vivida (Erlehnis, vècu). O feno* monólogo concentra-se na experiência porque a ex­ periência vivida é ao m esm o tem po o espaço onde to­ dos os conteúdos em píricos sào dados à consciência e a matriz original que lhes d á sentido. A fenom enologia, acrescenta Foucault, urdiu um "d iscu rso m isto " numa última tentativa de resolver o problem a em píricotranscendental. Mas a tentativa malogrou, uma vez que os fenom enólogos não enfrentaram a verdadeira ques­ tão: o hom em , epistem ologicam ente falando, existe de verdade? 79

Q uanto ao próprio problem a do “ d u p lo ” , Foucault não se alonga — o que é deveras lam entável, já que se pode considerar essa noção o coração filosófico de A s paiavras e as voisas, a sede de seu principal argum ento contra a herança do saber m oderno. Foucault apenas adm ite a enigm ática “ obscuridade’’ da questão e , dei­ xando as coisas assim , prefere aludir, na m esm a breve seção do livro, a um dilema correlato mas claram ente distinto: a oscilação, no saber m oderno, en tre o “ posi­ tiv ism o " (a redução da verdade dfo homem ao em píri­ co) e a “ escatologia" (a antecipação da verdade num discurso de prom essa). Positivismo e escatologia sào cham ados de “ arqueologicam ente indissociáveis". Sua alternância, bem visível em pensadores com o C om te e M arx, esiá, na opinião de Foucault, fadada a o c u jje r no âm ago do sab er enquanto prevalecer a epistem e m oderna, antropológica. N o entanto ela é um sinal se­ guro da “ ingenuidade p ré-crítica" do pensam ento m o­ derno — um a inocência teórica que a fenom enologia só eliminou ao preço de seu próprio fracasso. E que d izer das ciências hum anas propriam ente ditas em ludo Isso? O livro nào pretende ser um a ar­ queologia delas? Em A s palavras e as coisas, as ciên­ cias hum anas lêm com o função exam inar o significado do homem para si mesm o. Biologia, econom ia e filolo­ gia esm iuçam a vida. o Irabalho e a linguagem em si m esm os, não naquilo que representam para o homem. M as a psicologia, a sociologia e o estudo da cultura in­ vestigam os motios dados da significação em seus pro­ cessos e atividades.'■* 80

Mas isso não é lu d o .’’ As ciências hum anas, que tratam das significações hum anas, são constantem ente autocríticas: assim que tom am um conjunto de signifi­ cações norm alm ente em pregado pelo homem com o animal vívente, produtivo ou falante, tratam -no com o a superficie de algum sentido mais profundo. A s ciências humanas nutrem -se da crítica da consciência hum ana. Sua função mais au tên tica é desm istificadora. Sua vo­ cação não é 0 increm ento do saber rigoroso, preciso (as ciências hum anas não sáo ciências, diz Foucault), mas nm ir-e-vir crítico entre a consciência e a inconsciên­ cia: " (...) há ciência hum ana náo onde quer que o honwm esteja em questão, m as onde quer que se anahscm, na dim ensão própria do inconsciente, norm as, n 'ira s, conjuntos significantcs que desvelam à cons­ ciência as condições de suas fo rm a s e de seus co n ­ teúdos:'^^ O inconsciente tem im portância crucial para a te­ oria do conhecim ento de Foucault. A episteme do ho­ mem é tam bém reino de seu duplo: do O utro ou do "im pensado" {impensê), rótulo aplicado por Foucault i\ ludo que recaia fora d a auto-representação do homem c n qualquer ponto dado do saber. Para o hom em , " o O utro” é "n á o so m en te um irmão, m as um g êm eo ": está ligado a ele num a "inevitável dualidade” . O ra, existem certos saberes — a psicanálise, a etnologia — que se especializam em m anter em sua força m áxim a o impclo autocrítico das ciências humanas. Sáo "co n tiuciciicius” em plena cuça au O u tio , uo im pensado. l'in sum a, ao inconsciente, esteja ele no homem (psiCitnálise) ou na cultura (etnologia). E acim a e aJém des81

sas abordagens do im pensado, eis que chcga agora à m aioridade um a disciplina que oferece um a decifração ainda mais fundam ental: a lingüística estrutural. É a terceira e a mais forte das contraciências, porque seu objeto espraia-se por todo o cam po do homem e porque é a única das trés suscetível dc formalização.*^ Resga­ tando assim essas contraciéncias do depreciado ” sono antropológico” do saber m oderno, Foucault rendia preito à essência da “ revolução estruturalista” : a pro­ víncia de S aussure, Lévi-Strauss e Lacan. O cum prim ento logo foi devolvido, ao m enos pela ala mais jo v em d a brigada estruturalista. C ham ando a arqueologia de Foucault de um a “ heterologia” , Michel S erres descreveu-a com o um a “ etnologia do saber eu­ ropeu” .^* Um sab er descrito com o o antípoda do ideal do lluminism o: preso à cultura cm vez de universal, re­ lativo à cpoca em vez de cum ulativo, e erodido não por uma dúvida saudável, m as pela inum ana capacidade deslruidora do tem po. Um saber em que as ciências hum anas não são ciências, e em que a própria ciência não possui qualquer estabilidade lógica, nenhum crité* rio duradouro de verdade e de validade. O que A s p a ­ lavras e as coisas proclam a é o eclipse do homem com o um solo de pensam ento; o que realiza é um a per­ turbadora sugestão de que o próprio saber talvez não seja mais que nossa persistente auto-ilusão.

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V A "A R Q U E O L O G IA ’' A V A L IA D A

palavras e as coisas c um livro longo, admiravclmemc bem escrilo, cheio dc observações penetran­ tes c que levanta todo um conjunto de relevantes ques­ tões em epistem ologia e história do pensam ento. É tnrnbém, m uitas vezes, uma prosa filosófica dem asiado ■‘literária’', salpicada de afirm ações gnõm icas, suges­ tões tantalizantes e um a propensão para efeitos dram á­ ticos em lugar de argum entação lógica.'’ Há uma fa­ chada de precisão, até m esm o um apego ã sim etria (“ o i|iiudrilátero da linguagem ” , " o trilátero do sab er” rtc.). pt)rém o efeito geral é bastante aparatoso: iembra iim mestre do gênero apocalíptico que vez por o u tra se ilcdicasse a escrever "m ore g eom etrico", um Spengler hiincando com o estilo de Spinoza. Como avaliarm os sniis idéias e, sobretudo, sua visão? O projeto de Foucault consiste em fazer um relato histórico, em profundidade, do surgim ento das ciências humanas. Com o vim os, o livro resum e uma busca dos \(n lig o s fim d a m e n ía is" de nossa cultura, que goverMitni declara o prefácio — "su a Im guagem , seu s estpn'mas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas p rá tica s". E ra intuito de 83

F oucault, naturalm ente, desvelar os códigos cultiiríus, ao descrevê-los em suas form as c articulações, iniiepvnilentem vníi' lic suas refcrcm h s vxperienciais na realidade social e física , o que pôs a arqueologia de Foucault, quisesse ele ou não, na com panhia do estru ­ iuralism o e levou m uitos a com pararem sua em presa aos m odelos teóricos de Lévi-Strauss (as redes exten­ sas da mente selvagem) ou de Barthes (os minicódigos sem ióticos que sustentam as significações literárias “ intransitivas” ). No enlanto toda a escavação histórica foi execu­ tada com o fito de elucidar o im passe do saber/«í/í/c^rno. N esse sentido. A s palavras e as coisas, “ um a ex­ ploração parcial de uma região lim itada” , que, nào obslantCf form a, cm suas próprias palavras, juntam ente com H istória da loucura e O nascim ento da clínica, o esboço de ” um coryunto de experitnentos dcscriíivs'\^^ representa um a prim eira tentativa de realizar aquela histórica crítica do presente que defme o am bi­ cioso propósito de Foucault com o um filósofo para ho­ je . A anatom ia das m utações epistêm icas era um prérequisito para com preender a ascensão e queda do ho­ mem com o sustentáculo de um a certa espécie histórica de saber. A m edida que nossa m udança sísm ica na cam ada de pensam ento ganhar ím peto, afirma Foucault, o sa­ ber contem porâneo provavelm ente nào só deixará de ficar inebriado de história, com o se livrará tam bém dc seu entranhado antropucciiirisuio. Com toda a ccrtcza, os “’hum anistas” , inclusive os radicais m unidos de um equipam ento cognitivo arcaico, protestarão co n tra tal 84

diagnóstico e tal perspectiva. Mas que clamem em vão. Os arqueólogos não tém tem po para sentim entos eletííaci>s — devem revestir-se de coragem para cum prir seus penosos deveres com o prim itifs d'un savoir nonv(vn. É essa, em linhas gerais, a mensagem do F ou­ cault da m elhor safra, a de 1966. Por acaso, podem os dizer dela — com o tem sido dito dos excelentes Méilocs e Pom erols do m esm o ano — que tenha chegado ao mãximo dc sua qualidade por volta de 1985? A resposta depende muito do que encontram os ao descerm os da visão ã tarefa prosaica, mas indispensá­ vel, de averiguar o valor real de suas concepções particvílares. C olocar M arx ju n to de R icardo parece ser b as­ tante convincente, A afirm ativa de Foucault de que o marxismo está na epistem e do século XIX “ com o |)cixe na água” (/l.y paiavras e as coisas^ cap. V III, 2) só poderia provocar p rotestos numa cullura intelectual lao im pregnada de Marx com o era a da F rança na dé­ cada de 60 (Sarlre: o m arxism o é ” a filosofia insuperá­ vel de nosso tem p o ” ); mesm o assim , ele acertou o alvo L'in cheio. Pois além de partilhar com o pessim ista RiciuxU) a historicização da econom ia, por força de c ate­ gorias com o a escassez e a produção, M arx, o revolufiom irio, partilha lam bém com seu século, com o vi­ mos, a aliança ím pia entre o positivismo e a escatologia. Hã m aneiras bem piores de apreender a essência lilosófica do marxism o. Infelizm ente, porém , a m aior parte das ousadas upíniõc» históricas dc Foucault está longe dc scr tão exala. Por exem plo, ele minimiza a diferença entre o penMimcnto racional e a magia na Renascença. Para ele, 85

a magia e a ciência hum anista üa época eram par­ tes integrantes da m esm a epistem e — a norma da sem e­ lhança e da assinalação. N o entanto, com o os especiaiistas em magia hum anista são os prim eiros a admitir, a linguagem das assinalaçôes jam ais abrangeu todo o sa* ber renascentista» nem mesm o — observa um crítico — naquele m om ento, em fins do século X VI. em que mais se escreveu sobre ela.** N ão som ente o predom ínio da analogia sobre a análise não era total, com o muitas vezes encontrou ferrenha oposição. N a F rança, por exem plo, havia durante a R enascença uma tradição hum anista dom inante que escarnecia d a magia, do herm etism o e da mixórdia das arengas de Paracelso, das profecias astrológicas e de lodo brU -à-hrac das “ «ssinalaçoes” e "co rresp o n d ên cia s". Os literatos da geração de M ontaigne eram um cxem pio disso: longe de com binarem a erudição e o ocultism o, condenavam a "(livintítio" em nome da "erm litio". O próprio Montaigtie troçava dos alm anaques astrológicos e da m entahdade horoscópica {Ensaios, tivro 1, cap. X I, *‘Des prognostications").*^ T am pouco, é claro, a oposição se limitava ã França: o fundador da anatom ia, A ndréas V esalius (1514-1564), que nascera em Bruxelas e ensi­ nava em Piídua. m ostrava-se igualmente obstinado na rejeição de todas as doutrinas de assinalaçôes. A dem ais, ao insistir num a cesuni absoluta en tre o pensam ento renascentista e a epistem e clássica, a par­ tir de m eados do século X V II, Foucault torna quase ininteligível a evidente e decisiva continuidade entre os esforços de C opérnico (um inovador científico que não d esprezava crenças herm éticas) e a linha de K epler86

(iiilíleii. que foi a fonte cia ciência moderna. Contudo, continuidade houve, a despeito da diferença entre as distintas inclinações epistêm icas desses hom ens. De um lado, os historiadores da ciência lêm ressaltado a im portância do neoplatonism o florentino do final do sé­ culo XV para o heliocentrísm o de Copérnico, sendo o neoplatonism o, na época, o transm issor normal das im diçôes herm ética e cabalística da alia magia e do hilozoísmo — inclusive a m ística do Sol. De o u tro lado, siibemos, estribados na autoridade insuspeita dos me­ lhores intérpretes das idéias hermético-cabah^sticas da Renascença, que C opérnico realizou sua revolução as­ tronómica (publicada em 1543, o mesmo ano de Dc hiunani corpíjris fabrica , de V esalius) através de puros cálculos m atem áticos, sein ajiuUt de crenças mágicas', c que um século mais tarde K epler — que ainda consi­ derava sua descoberta das órbitas planetárias um a con­ firmação d a “ m úsica das esferas” — estabelecia nítida ilistinçâo entre a verdadeira m atem ática e as m aneiras niisticas (pitagórica ou herm ética) de lidar com os núm eros.^’ A conclusão é simples: tocados ou nào p o r crenças í.f>ropriadas ao espírito analógico, os cientistas da Re­ nascença, de C opérnico a K epler, realizaram seus avanços em substancial continuidade com a m atem ati/ução galileana da natureza. Com efeito, o “ ocu lto ” lOfUinuou a atuar com o uma boa m otivação ocasional pitia a análise m atem ática até pelo menos um século e meio depois dc K cplcr. Com o nos recordou rcccntcnicnte Richard W estfall, o velho interesse de N ew ton pela alquimia ensinou-lhe a considerar as idéias dc ação 87

e de força suscetíveis de tratam ento m alem álico, em contraposição a um a descrição m ecanicista do céu.*^ Em sum a, a “ análise” nâo foi prejudicada — quanto mais tragada — pela “ analogia” ; e o saber em píricodem onstrativo encontrou seu próprio cam inho sem se escravizar à “ in terp retação ” especulativa. 0 cresci­ m ento da m atem ática na astronom ia e na física foi a es­ trada real desse progresso cognitivo. 0 problem a é que Foucault se im porta pouco (multo m enos, por exem plo, que K oyré) com a matem atização do m undo desde os prim eiros passos da ciência m oderna. Em seu quadro da epistem e clássica, definido com o sendo de m athesis-cum Aax\nom \íi, logo se to m a óbvio que sua idéia predileta era antes a tabu­ lação que a m edida. Se GalUeu, D escartes e N ew ton não têm grande peso em A s palavras c as coisas, nâo é apenas devido ao partis-pris anil-” heróico” da obra — é tam bém porque, segundo entende Foucault, o mecanicism o e a m atem ática não eram genuínas estru tu ras epistêm icas, que tudo im pregnassem no sab er d a épo­ ca. N a verdade, en tretanto, a darm os crédito a relatos clássicos com o Science and lhe M odern World, dc W hitehead, a m atem ática ocupou um lugar crucial na ascensão e na consolidação da ciência m oderna. Esta última pòs-se ao lado de Pitágoras e de Platáo contra A ristóteles, porque este era o gênio da taxinom ia e porque o avanço do saber necessitava de alguma coisa alem dc classificações mais ou menos precisas; necessi­ tava do poder gcncralizante que só podia vser propor­ cionado pelos núm eros e por aquela generalização da 88

própria ariim éiica que é a álgebra. O iriunfo da cícncia moderna foi uma vingança dc Eucüdes e Arquim edes contra o longo predom ínio da física aristoiéiica. Dü­ n n te séculos» os círculos eruditos julgaram que, en ­ quanto a física qualitativa de A ristóteles ' ‘explicava“' a natureza, as teorias m atem áticas (como a astronom ia ptolemaica) m eram ente “ salvaguardavam as aparên­ cias*'. Sobreveio enlâo a revoluçáo copem icana. Em sua esteira, G aüleu exaltou A rquim edes e criticou a fí­ sica aristotélica precisam ente por seu caráter não-matcmático. E ntrem entes, a antiga controvérsia entre a Icoria m atem ática e a paleofísica já havia sido resolvi­ da, em favor da prim eira, por K epler, exímio m atem á­ tico que atribuía duas m etas à astronom ia: “ salvaguar­ dar as aparên cias" c "co n tem p la r a csn u íta u ilo uni­ verso". vale dizer, explicar a natureza.*^ O título com ­ pleto da obra m áxim a de N ew ton diz ludo: “ Princípios matem áticos de filoso fia natural'". N a verdade, nas áreas investigadas em A s pala­ vras e as coisas, o m ecanicism o e a m atem ática nâo rrurn em nenhum sentido preem inentes: eram irrele­ vantes para a gram ática e a filologia, e prim avam pela miscncia na história natural e ha biologia; quanto à matcmática na econom ia, não com o pura estatística, mas com forte função analítica, data de uma form ação te­ órica bastante tardia na cpistem c moderna: a escola neoclássica liderada por Jevons, Monger, W alras e Mitrshall, cujo núcleo — a teoria da uiilidade marginal • foi exposlo pela prim eira vez por Jevons, num enMM' iido em Cam bridge, cm 1862. com o título N oticia 89

sohre um a teoria m atetuátiva fferal Ja econom ia poUti va. A história natural pcrm anecsu, é claro, obstina­ dam ente taxinóm ica durante a idíide áurea da m atem á­ tica francesa — a eni de L agrangee Laplace. de Monge e C arnot. M as a questão é a seguinte: será que Fou­ cault tinha o direito — depois de restringir tanlo a faixa de ciências sob exam e — de apresentar com o univer­ salm ente válida uma epistem e cuja descrição repousava em base tão estreita? De qualquer m aneira, não se pode ignorar uma quesiáo im portante: com o foi que, no d eco rrer de dois séculos de puro gênio m atem ático (desde D escartes, N ew ton, Leibniz e dos Bernouillis até G auss. Boole, Riemann e Cantor), o solo incons­ ciente du ciéncin ocidental pcrm ancccu basicam cntc taxinôm ico? Com o observou Piaget, enquanto a taxi­ nomia — a epistem e tabular da idade clássica de Fou­ caull — ocupa lugar relativam ente m odesto na escala do pensam ento lógico, o cálculo ncw toniano pressupõe um grau bem mais elevado de sofisticação lógica.*^’ Com o pode a mesma epistem e sustentar tão distintos níveis de pensam ento? Até mesmo Canguilhem . sem ­ pre sim pático ao projeto de Foucault, preocupou-se com o m enosprezo pela física na bela arquitetura de A s palavras e as coisas — e percebeu que um exam e pró­ prio da física haveria de solapar a teoria foucaldiana do cesunüism o estrito. A objeção de Canguilhem pa­ rece bastante válida: a seqüência Galileu-Newton-M axw eil-ninstcin não ofcrecc luptuius Ncinclhanlcs às que podem ser en contradas entre, digam os, Buffon c Darwin. N oulras palavras. N ew ton nâo é refutado por 90

Rinstein, com o Darwin não c desm entido por Meiidci. Logo, não hã muito sentido na rígida cesura inserída por Foucault en lre a epistem e clássica c a m oderna. Na verdadeira história da ciência» alguns discursos clássiCOS (por exem plo, N ew ion) integ raran -se na episteme subseqüente: outros (por exem plo, a história natural), não. T am pouco essa dificuldade para a arqueologia pode ser descartada m ediante sua simples d esconside­ ração, a pretexto de que pertence a outro lipo de es­ tudo — única desculpa dada por Foucault. N ão posso lieixar de subscrever a dúvida de Canguilhem: é real­ mente possível, no caso do saber tcària>, no sentido científico, apreender suas especificidades conceituais s n n rcfcrvm ia a um a norma, isto e, sem levar em contu seu sucesso ou fracasso com o leoría científica?'^* Dificilmente o problem a leria surgido se Foucault iião houvesse insistido em que "num a t uUura v num aado m om vnto, nunca ha mais que uma epistem e que (Icjhie as condições de possibilidade de lodo sa b er". Lm outras palavras, as epistem es são monólitos — são, cnfaticam ente. blocos unitários de saber. C onseqüen­ tem ente, a cada m utação epistêm ica as coisas sim ples­ mente deixam , de súbito, de ser "percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidus do m esm o m odt)" que an tes.’o Tam bém em seu prefácio Foucault solicita que vejam os a história natunil de Lineu e de BufTon com o relacionadas, não com os trabalhos posteriores de C uvier ou Darwin, mas com c«iuj>05s diMiiiios. porém contem ponineos, com o a "gram ática genil’* clássica ou a análise das riquezas de h iw ou T urgot... C om parada com as ‘vastas m udan­ 91

ç a s ” na estru tu ra epistêm ica ao fim do século X V III, diz Foucault, a "q u ase-co n tin u id ad e" dc idéias entre as duas épocas é apenas um “ efeito superficial” . A bem dizer, em ArqucoUtgia t h saher ele nos adverte que as epistem es não devem ser consideradas conceitos “ to talitário s” , isto é, holísticos: o predom í­ nio de um a epistem e não significa que todas as cabeças pensavam segundo as m esm as linhas numa dada era e cultura. Em A s paUivros e as coiscs, FoucauU escrev e, quase a modo de desculpas: " a atísência de halizam enio tneiodolófiico pode ter deixado a im pressão de que (...) a a/iãlise estivesse sendo conduzida em term os de totalUlade cultural"'^' — mas na realidade um a epis­ tem e não é nada disso. C ontudo, a ressalva náo é de m odo algum satisfa­ tória. ao m enos por duas razões. Em prim eiro lugar, é difícil perceber com o o conceito de epistem e em A s p a ­ lavras e as coisas poderia te r sido interpretado erra­ dam ente com o holístico: na verdade, é o próprio texto que o faz p arecer assim — um tsx to que. diga-se de passagem . FoucauU nunca se deu ao trabalho de corri­ gir. Em segundo lugar, e isto é mais im portante, as coi­ sas não poderiam m esm o se p assa: de outra forma: isto porque, se se com eça atribuindo às epistem es um a fle­ xibilidade e uma heterogeneidade excessivas, se elas se tornam verdadeiram ente pluralísticas, então o que se ganha cm exatidão fatual. h istó ri:a. perde-se do lado interpretativo. Já que. ã força de sofrer qualificações, dificilmente cada epistem e ainda poderia m anter o sta­ tus de infra-estrutura cognitiva compulsória. 92

Com binada com um a visão esianque dos cortes epislem ológicos, a exposição que FoucauU faz das epistem es com o m onóliios obriga sua arqueologia a desdenhar, gritantem enie. pelo menos seis espécies de fenômenos. Prim eiro, o retrato das epistem es com o monólitos lotalm ente desligados entre si leva à desconsideração dos fluxos dc pensam ento transcpistcm icos. N o en tan ­ to, se a abordagem epistêm ica se recusa a considerar esses fenôm enos, ela é acom etida de um sério proble­ ma. cujo nome é (uiacronism o. E, na verdade, parece que, quanto mais nos atem os ã periodização de Fou­ cauU. m enos suas epistem es resistem ao exam e: pois cm todas elas há “ anacronism os” em abundância. M cncioncm os apenas quatro exem plos evidentes. N o capítulo sobre a epistem e da Renascença, Fou­ cauU dá grande valor à Grantmairc do hum anista Peirus Ramus (Pierre de la Ram ée), publicada originariamente em 1572. Tom ando a obra de Ram us com o e s ­ plêndido espécim e da inclinação analógica da epistem e das correspondências, clc alega que. para Ram us, as “ p ropriedades" intrínsecas das letras, das sílabas c das palavras eram estudadas com o marcas sobrenaturais de forças “ m ágicas" com o sim patia e antipatia. O ra, Georgc H uppert, professor da Universidade de Illinois e m em bro do círculo de Chicago, dem onstrou ser a Graoiatica de Ramus “ uma obra extraordinariam ente lijcida (...) de m aneira alguma m aculada por filosofia hci nictica ou cs|>ccuíação cscolástica ü»obre a qualidade tias p alav ras". A teoria da linguagem de Ramus u ‘vcla-se muito em pírica e racional: assim , quando ele 93

fala cias ' ‘p ro p ried ad es" das palavras, refere-se U. som ente àquiio que lhes é cia ra n e n te apropriado, com o os artigos precederem substantivos e pronom es, etc. Ironicam ente, enquanto o cartesiano M arsenne, que escreveu meio século depois de Ram us, ainda se perguntava, em bora com relutância, se haveria co rres­ pondências ocultas entre as palavras e as coisas, signi­ ficados conhecidos por Adão c perdidos desde a Q ue­ da. Ramus era claro: para ele, as palavras não passa* vam de transcrições fonéticas: daí suas propostas para que fossem abandonadas letras m ortas com o o em ung ou o .V cm tesrnoifínvr.^' Definitivam ente, com a devida vênia de Foucault, não existe aí nenhum traço de interpretações mágicas, nenhum a propensão para o oculto. O utro exem plo notável de m á interpretação de Fou­ cault é o tratam ento que ele dispensa ao om itólogo re­ nascentista Pierre Belon, cuja História da natureza dos pássaros foi publicada em 1555. Até A s palavras e as coisas, todos eram acordes cm considerar o Iralado de Belon — obra de um homem que realizou« sozinho, m uitas dissecçôes. além de haver batizado 170 espécies de aves européias, ganhando com isso a adm iração dos naturalistas que se lhe seguiram — com o um notável exem plo de anatom ia com parada. Publicada na década seguinte ã da grande o b ra dc Vesalius, sua H istoire des o yseaux continha, em texto e em gravuras, a prim eira com paração porm enorizada dos esqueletos do homem c das aves. Foucault sabe disso, mas se recusa a deixar-se em bair pelas piedosas lendas da ideologia do progresso científico: com um verdadeiro esprii de sys94

tim e , ele afirm a laxativam ente que, apesar de toda a sua precisão, a análise de Belon só pode ser vista com o anatom ia com parada " p o r um oUtar niunUío dos con h rvim a iío s do séctdo XI X. Ocorre que o vrívo pelo quid deixam os chefiar ao nosso soher as ftíiuras da sx’m elhança recolyre nesse ponto (e quase som ente nesse ponto) aquele que o saber do sévulo X V ! dispu­ sera sohre as coisas*’, Pobre Buffon. que com lanta freqüência cita Belon em sua própria H istória das aves... T alvez ele não soubesse distinguir uma mera “ coincidência” epistêm ica de um a genuína anatom ia com parada. O u, quem sabe. ocorresse, com o argu­ menta H u p p ert.’^ que Belon fosse de fato um magnífico observador, um arguto taxinom ista (já lhe foi alé credi­ tado haver im aginado um a nom enclatura binária, com o a de Lineu), um extraordinário pioneiro da história na­ tural — de modo que negar a seu trabalho um propósito científico e ao m esm o tem po com pará-lo, em “ nível arqueológico” , à fantástica teratologic de Aldrovandi não passa de bobagem ? O utro anacronism o em term os epistêmicos: Fou­ cault fala da estru tu ra orgânica com o um conceito per­ tencente ao pensam ento biológico na epistem e pósclássica. N ada disso, diz o renom ado erudito George Sebastian R ousseau, au to r de Orfiunic Form: the Life ttf an Idea (1972), Tivesse Foucault lido a literatura moderna sobre os naturalistas do século X V Ill (por cxcm plo, o estudo de Philip Ritterbush, publicado em I9M). e teria p*:rcebido que a estru tu ra orgânica, com o pressuposto metafísico, não era de nx>do algum uma novidade cm C uvier, e sim um conceito de longa es9.S

tirpc e, cm particular, com uma rica história na E ra do llum inism o.’* Ao que parecc, a rigidez de sua noção arquicesural de epistem e levou Foucault a interpretar de modo muito errôneo figuras e tendências do pensam ento da expressão de um R am us, de um Belon e do organicismo. Em contraste» no nosso exem plo final dc an acro ­ nismo epistêm ico. tam bém destacado vigorosam ente por G. S. R ousseau, o problem a não foi de má com pre­ ensão, e sim de inform ação deficiente. Em A s palavras V as coisas, as obras dos lógicos e gram áticos de Port-Royal receberam destaque na descrição da epis­ teme clássica. Com efeito, a Lófiica de Port-Royal (1662) ocupa posição especial na análise de Foucault, pois aparece com o um curioso caso de consciência cognitiva entre regras epistêm icas, norm alm ente in­ conscientes. Assim , 0 regime semiótico clássico, que Foucaull Julga atu ar inconscientem ente em todos os dem ais cam pos do saber clássico, foi na realidade enunciado por Arnauld e N icole, lógicos de Port-Royal, e não — com o as outras coordenadas principais da epistem e clássica — inferido do discurso clá.ssico por Foucault. Q uanto ã G ram m aire générale el raisítnée (1660), de Port-R oyal, atribuída a A rnauld e Lancelot, trata-se. naturalm ente, de um dos mais puros exem plos do saber clássico. O pensam ento gram atical de PortRoyal, centrado com o está num a teoria da representa­ ção, é lido por Foucaull com o uma Jóia na epistem e da ordem e da clareza — um perfeito p fm ln n t pani a filo­ sofia cartesiana. Infelizm ente, porém , sucede que o grande modelo dos gram áticos dc Port-Royal. segundo 96

o lesienuinho do próprio Lancelol, não foi D escartes, mas um certo Sanclius. O ra, Sanctíus, aliás Francisco Sjnche?. de Ias Brozas (1523-1601), publicou sua sum a tie mil páginas, Xíincrva, seu Je l ausis li/iguae itiíhuie. cm ... 1585, ou seja. no apogeu da voga d a doutrina das nssinalações e da literatuni herm ética.’* Eis um grande enigma para o elegante quadro das epistem es foucaldiunas; pois a M inerva deve mais a Quintíliano que a qiiiilquer antecipação da filosofia m oderna: e, no entan­ to. foi Sanctius. e não D escartes, que a gram ática de IMrt-Royal exaltou com o sua principal fonte teórica. S,uictius e, com o outros já observaram , o velho ScaliUcr (Julius C aesar Scaliger), cujo próprio trabalho grainaíical foi publicado consideravelm ente mais cedo, em IMO.” A segunda categoria de fenómer.os sistem atica­ mente desdenhados pela arqueologia de Foucault sào oH hiaios epistêm icos. O ra, a história da ciência está cheia de debates entre, por um lado. defensores de concepções antiquadas e, por outro lado, desbravado­ res c seus seguidores: e mais de uma vez o choque enh r eles pôs em oposição diferentes propensões epistê­ micas dentro do período de vida que Foucault atribui a unui epistem e. Jan Miei apontou um exem plo revela­ dor: a correspondência entre Pascal e o padre Noël a icspeito do vácuo.’“ O padre Noël linha sobre o vácuo ulcias confusas, que envolviam com parações arbitráiMs 0, de modo geral, uma inclinação para a pirotecnia aiialógica, utilizando princípios **anim;stas'’ com o as doutrinas dos quatro elem entos e dos humores. Pascal defendia um em pregô m enos equívoco dos term os e 97

umu vi&ão mcnob uiUrüpumóiríca üa nuiurc^;ançam dúvida sobre a ju ste z a da descrição que iMuicaull faz das realidades intracpistêm icas. vas". Em “ N ietzsche, genealogia, história” — seu prin­ cipal escrito sobre N ietzsche — o próprio Foucault de­ clara que o que distingue o "g en ealo g ista“ do historia­ d o r crítico c a consciência de que o verdadeiro segredo das coisas é o fato de não possuírem qualquer essência 110

sccreia, nenhum a origem oculla, nenhum fundam ento numénico.’* A história goza de etern a juventude (como giwiava dc dizer W ebcr em seus mom entos nieizschiunos); equivale a um a perpétua criação, não conhe­ cendo nem leis causais nem m etas fínais. O nietzschíanismo dc Foucauit, em bora tardiam ente confessado« ujLda a explicar sua perspectiva “ dispersiva*’ — seu m enosprezo por qualquer pesquisa estruturalista de un versais invariantes. Com efeito, já em 1967, ele dife­ renciava sua investigação do paradigm a estruturalista: "Difíro daqueles que são cham ados estruturalistas por niuf estar grandem ente interessado pelas possibilida­ des fo rm a is apresentadas p o r um sistem a com o a linH U d i i e m . " '* '’

N ao obstante, nunca haverá cautela excessiva quíindo se trata de usar N ietzsche com o esteio de uma teoria da história com o saber. Isso porque N ietzsche nãü se satisfaz em criticar, em nom e dos interesses vi­ tais do presente, a historiografia “ filológica” , “ museológica” , a história feita com ânim o dissecador. im pes­ soal. com espírito de antiquário. Foi bem mais adiante, vergastando toda a concepção da própria objetividade histórica, a idéia — com o ele formulou — da história como um “ esp elh o ” dos acontecim entos (G enealogia, 111, 26). N ietzsche atacava duas espécie» de historio­ grafia “ especular” : as narrativas académ icas “ ascéti­ c a s” e as evocações “ e stética s” do passado; o método de Ranke e a arte de Renan. Em am bos os casos, po­ rem, depreciava a objetividade especular, vendo-a como niilismo — o pior dos pecados no código de vida nietzschiano. Por conseguinte, o resultado de seu ataIII

que conira o “ peso Ua lilsióiía'* tbi um dcsdém voluntá­ rio por toda preocupação historiográfica com a verdade do passado — uma preocupação que, com preensivelm entc, Veyne nào está disposto a jogar fora. N ietzsche pode libertar a história da metafísica determ inista, mas ele tam bém m ala a busca de objetividade em nome dos direitos superiores da “ vida” . Não ensinou que a ver­ dade nào é objetividade, e sim uma vontade de “ju sti­ ç a ” {Cífnsiclerações inaiurais. 11, 6)? Justiça, decerto, nas m ãos de ju izes sem perdão, personalidades fortes cuja própria vitalidade os coloca acim a da m assa da hum anidade. Em tal clima dc pensam ento, a verdade é suplantada pela vontade arbitrária — e a história com o saber vira tão-som ente um ''free fo r a li" para perspec­ tivas antagônicas. Para resum ir, N ietzsche, o antideterm inista, pode servir ao historiador; mas N ietzsche, o pcrspectivi.sta, tira o tapete de sob os pés do historia­ d o r ao destruir a justificativa de seu ofício: a apreensão fidedigna do passado. N esse sentido, não é de surpreender que Foucault pareça mais nietzschiano que Veyne. A nalisem os sua prim eira discussão sobre o m estre, “ N ietzsche, Freud, M arx” (1964), escrita com o uma com unicação para um sim pósio em R oyaum onl. Já se disse com acerto que, nesse ensaio, Foucault atribui ao trio uma posição que pertence em inentem ente a N ielzsche. A posição con­ siste cm considerar que todo iníerpre/anihini já c uma interpretação. A morte da interpretação, diz Foucaull, é a crença dc que e.xistem sinais de alguma coisa, vale dizer, algum a essência oculta, ã nossa esp era no fim de nossas jo rn ad a s interpreiativas; ‘ a vida da interpreta112

Oio. ffi'Uf i fKitrário, co/isistc cm acrcdifur quv sò vxisícm im c r p n u iç ô v s " . O saber m oderno, crítico, é deccrlo um a hcrm encutica d a profundidade; mas isso não deve ser visto com o um a procura de estruturas profun­ das; em lugar disso, devem os com preender o pleno im­ pacto analítico do que viu N ietzsche: que a interpretaVào “ tornou-se (...) uma tarefa infinita*'.^* Isso foi lido na atm osfera prestigiosa e elegante dos sim pósios de Koyaumont — na cara da estrela ascendente do estruluralismo: e o lexto e quase contem porâneo da elabo­ ração de A s paltívrüs e as coisas. O tem a nietzschiano tam bém nos ajuda a com pre­ ender m elhor com o Foucault pode prezar as ciências humanas ao m esm o tem po cm quc lhes nega cícnlifícidaile. Ele não está dizendo apenas, é claro, que as ciências hum anas não conseguem produzir ciência da maneira com o sào em geral praticadas, isto é, com co n ­ ceitos nebulosos e m étodos frouxos; o que ele nega é que possam dia ser científicas. Ao mesmo tem ­ po, entretanto, não considera isso um a deficiência. As ciências hum anas nâo são absolutam ente científicas e o homem, de qualquer form a, é um a base epistêm ica em cxiinção. N o máximo, algum as delas — as hipercríticas “ contraciências” , que se dedicam a observar o incons­ ciente — se justificam , nào pelo que afirmam, mas pre­ cisam ente por desfazerem as interpretações parciais da ciência social “ norm al” . No entanto, longe de se de^c^pelar face a esse a p e n o cognitivo, Foucault rejubilu-se. Para ele. o conhecim ento não está voltado para a verdade, mas sim para a perpétua skepsis de íntermi113

náveis inierpretaçòes fortuitas — e sua alma nietzs­ chiana recusa>se a sentir-se deprim ida por isso. N ão o b stan te, em últim a análise o efeito ideológico causado por A s palavras e as coisas, conquanto não tão desalenlador com o o supuseram vários hum anistas irritados com a idéia do aviltam ento do hom em , não foi, por outro lado, exatam ente estim ulante. C onsti­ tuindo uma m oderna Fcnoderes ridicularizados e os crimim)st>s transft>rmados em heróis."*^ Sem pre dado — com o bom estruturalista — a *‘in133

vcrsóes sim étricas” , Foucault dcciara que **o corpo dos conden ad o s” (título do prim eiro capítulo) era o pólo oposto do “ corpo do Rei” . Refere-se aqui ao con­ ceito legal e político medieval analisado por E m st Kantorow icz (1895-1963) no clássico Os dais corpos do rei (1957, e náo, com o inform a Foucault. 1959). De acordo com o mito do rei “ nascido” génieo, supunha-se que os soberanos tivessem dois corpos. Um era o corpo na­ tural, sujeito a decom posição. O outro era o aevum : um corpo eterno, sagrado e místico, uma perpetuidade secular por meio da qual a dignidade da realeza sobre­ vivia a toda fragilidade hum ana e vicissitude m onárqui­ ca. K antorow icz dem onstrou quão profundam ente essa idéia mítica penetrou no pensam ento legal inglês. Na vcidade. aiiidu eslava viva iia liteialu ia lealisla da In­ glaterra crom w elliana. Alguns exem plares do Eikon Basilikc incluem um longo poem a, “ M ci!ü, o crim e veio a ser encarado não mais com o um ataque ao soberano, e sim com o uma quebra da aliança social, com o que am eaçava a sociedade em seu todo. IVopuseram-se novos m étodos de punição, que a um só lempo reparariam o agravo feito à com unidade e rein­ tegrariam o delinqüente em seu próprio lugar dentro del;i. Por conseguinte, a principal preocupação da autori­ dade penal tornou-se a m ente, e nào o corpo, do crim i­ noso. Enquanto a to rtu ra deveria ser abolida, ima­ ginou-se " to d a itma teciutlogUi dc reprexentações" (lembremo-nos do cará ter representacional da epistem e clássica); sua finalidade era persuadir os prisioneiros da lógica do castigo que lhes era imposto. Houve muito cuidado em estabelecer um a correspondcncia racional entre os tipos de delito e os graus de punição; as sen­ tenças deveriam evitar, a todo custo, ser arbitrárias. Os reform adores do século X V lll partilharam plena­ 135

m ente da propensão taxinòm ica de sua era: procura­ vam traçar uma tabela em que cada crim e e sua pena fossem perfeitam ente legíveis. Conceberam uma classi­ ficação porm enorizada de crim es e crim inosos, dentro de um horizonte de tratam ento individualizado a cada transgressor da lei. E o objetivo preponderante de seu humanitarismo foi uma consideração de utilidade so­ cial. A punição nào deveria gerar terror, e sim penitên­ cia. As sanções deveriam ser tão didáticas quanio bem fundadas e im parciais, pois de outra form a a m eta de reintegração social se perderia. Assim , várias vertentes do pensam ento clássico — a teoria do contrato social, o utilitarism o, a sem iótica da representação — com ­ binaram -se numa nova justificação do castigo. De­ senvolvendo teorias de representações m entais relacio­ nadas com uma doutrina de interesse esclarecido, pen­ sadores de fins do século X V lll, como os hléologiws, deram ao O cidente, às vésperas da difusão do indusIrialismo, "u m a espécie de recei(a geral para o exercí­ cio do poder sobre os hom ens: o 'cspírifo' com o um a superJJcie dc inscrição para o poder a subm issão dos corpos pel(f controle das idcias'\\-» Foucault é claro: no fundo, o humanitarism o, o lluminismo, contava m enos quc a vontade do poder. Por baixo dc seus nobres ideais de em ancipação hum a­ na. o llum inism o definia novas “ tecnologias m o rais", conducentes a um grau de controle social muito maior do que o existente nas sociedades tradicionais. Mais do que punir m enos, os reform adores sociais desejavam “punir m elhor: punir talvez com uma severidade atenuada. m as (...) punir com m ais universalidade e ne136

fcssidíuU': inserir ntais profundam ente no corpo social 0 direito de p u n ir". Em geral, a imagem convencional do lluminismo acenlua seus com ponentes utópicos. Foucaull concor­ da. A única diferença é que ele tem uma concepção di­ ferente da utopia do lluminism o. Para ele, tratava-se üe um esquem a totalitário: “ O sonho de uma sociedade perfeita é fa c il­ m ente atribuído pelos historiadores aos fttô so fo s c ju rista s do século X V III: m as héi tam bém um so ­ nho m ilitar da sociedade; sua referência fu n d a ­ m ental era não ao estado da natureza, m as às e n ­ grenagens cuidadosam ente subordinadas de um a mciquina, não ao cím trato primitivo, m as às coerç()es perm anentes, não aos direitos fu n d a m en ta is, m as aos treinam entos indefinidam ente progressi­ vos, não ã vontade geral, m as ã docilidade a u to ­ m á tic a ."'^^

T oda um a série dc miragens disciplinares, desde o império-“ m áquina‘’ baseado na disciplina nacional, so­ nhado pelo (ático G uibert, até o am or de N apoleào pelo porm enor organizacional, teria prefigurado a ordem burguesa na sociedade ocidental do século XIX. O ho­ mem m oderno, escreve Foucault, nasceu em meio a uma pnxuirada He regulam entos: meticulosas regras e sub-regras, inspeções m inuciosas, supervisão do m enor fra g m en to da vida e do corpo (...) no conte.xto du escola, do quartel, do hospital ou da oficin a" É 137

claro que essa som bria utopia do lluminismo não se concretizou inteiram ente. No entanto Foucault julga que ela logrou im pregnar grandes áreas da cultura m o­ derna. e a prisão foi o cam po por excelência de sua aplicação. Vigiar le individual fu n cionam num d u ­ plo nuído: o da divisão binária e da m arcação (louc tre a crônica, com sua ênfase no heróico e no m em orá­ vel, e o arquivo, que mede a obediência com o o desvio da norma. A rgum entando que os métodos disciplinares abaixaram "o limití' tia iniUvidualitiadv d e s v r itiv v r \ ao substituírem o ancestral digno de memória pelo homem calculável, sugere por duas vezes que a ciência social ascendeu em conluio com a contem plação objetificante do exam e disciplinar, norm alizador. O berço das ciên­ cias do homem, conjetura ele, talvez esteja nos vis ar­ quivos da observação clínica e penal: os m étodos pa> nópticos, na sociedade disciplinar, tornaram possível um a ciência do hom em . " O hom em conhecivcl (alma, individualitlade, ct>nsciência, com portam ento, aqtii pouco hnporta )e o efcito-ohjeto desse investim ento ana­ lítico. dessa thntinaçâo-ohservação."'^^ O objetivo de Foucault. em scu capítulo final sobre o nascim ento da prisão (isto é, a prisão na prim eira m e­ tade do século XIX), consiste em olhar a penitenciária do ponto de vista dessa sócio-epistem ologia da disci­ plina. FoucauU nos convida a uma pausa para pensar nas m onótonas críticas dirigidas ao fracasso das prisões em coibir a crim inalidade e corrigir os crim inosos. Nào (44

dcvvimiiiob, pciguiUu ele, inverter a consideração do problem a? Q uando uma pergunta perm anece por tanto icmpo sem resposta, vai-se ver e descobre-se que a própria questão é que era errada. É possível, pois. que. afinal, a prisão não tenha falhado: apenas seu êxito e s ­ lava onde ninguém o procurou. Em ve2 de fracassarem n.i elim inação do crim e, as prisões tivvm m succsso em prtHlnzir tfeiinqOênciít: não apenas no sentido em pírico dc fom entar tantas socieiníes scelerís quando se esp e­ rava reabilitação, mas precisam ente m perspectiva de l>oder/saber. As prisões encerram sistem as punitivos que, segundo afirm a Foucaull. têm mcnos por função eliminar os delitos do que "distingui-los, disíribuí-los, iisü'liis" e. ao assim proceder, "ten d em a assim ilar as tfíinsfiressões da lei num a tática acrai de sujeiçíut".'^'* Foucault é claro: vivem os — como herdeiros direlos dos impulsos e das instituições que se m anifestaram |v la prim eira vez na ascensão da sociedade burguesa — sob um "reinado universal do norm ativo" dom inado por agentes da norm alidade e da vigilância: o professor-juiz, o m édico-juiz. o educador-juiz, o assistente Hocial-juiz. E tal m undo é nitidam ente "u m a rede carcrrária" em "fo rm a s concentradas ou d issem in a d a s". Ao passo que, o u tro ra, o crim inoso, tal com o o peca­ dor, cni um proscrito, no reino da disciplina o delin­ qüente não se acha exatam ente fora da lei: ele está "desde o início, dentro dela. na própria essência da lei ervisionados, corrigidos e controlados. A alma. MdHcida da disciplina e d a coerção, é a um só tem po "i jrito e instrum ento de um a anatom ia política: a al­ ma, prisão df^ c (fr p o " y ^ O trocadilho favorito dos angnósticos era som a sem a , o corpcMúmulo (da aliim). 1’oucault, o anarquista libertino — bom compa* nhoiio dc Roland Barthes, o libertino anarquista — in­

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verte a frase; na sociedade carccrária. c a alm a que aprisiona o corpo. N ossa liberdade é nossa vida corpo­ ral, não colonizada por disciplinas ííociais. H ouve um m om ento em que Foucault não esteve muito distante das “ m áquinas d eseja n tes" de outro destacado neonielzschiano, Gilles Deleuze {Aníi-Hdipo, 1972). E ssa ênfase na idéia de que a sociedade fabrica alm as (que Foucault iguala a psique, consciência, su b ­ jetividade, personalidade, individualidade, percepção e tc., etc.) reafirm a o culturalism o de Foucault no âm ago de seu radicalism o político. Vigiar v punir foi publicado quando seu aulor já se havia afirm ado como reform ador militante de prisões e teórico sim pático ã rebelião gauchiste. quando esta irrompeu em 1968. No enlanto. m esm o perm anecendo à esquerda da esquer­ da, ele deu um jeito de m anter uma perspectiva nietzs­ chiana; a despeito das im plicações libertinas de sua linguagem, não há nada de “ nattrista* ' em Foucault: sua crítica da cultura disciplinar não pressupõe nenhum homem natural, nenhum hon sauvage. Ao contrário de M arcuse. Foucaull não trava sua cam panha de K ul‘ lurkritik em nome dos instintos naturais. Reside aí a grande diferença enlre o conlra-ilum inism o rom ântico e o nietzschiano — e a prim eira grande inovação na crí­ tica cultural de Foucault.

O segundo ponto origina! é sua preocupação com o saber, agora sob o disfarce de poder/saber. Escutem olo: "Temos (...) que adm itir ifue o poder produz saher (e nào sim plesm ente favorecend S C , portanto, pode-se dizer que Foucault está aplicando it lição de N ietzsche a uma coisa com que nos familiari/am os por causa do ím peto geral do cham ado m ar­ xismo ocidental (principalm ente o marxismo de Lukàcs c da prim eira escola de Frankfurt): ou seja, a fusão de cniica social (isto é , a denúncia da sociedade burguesa) Ci>m uma postura contracultural (a G rande R ecusa da civilização moderna). A um exam e mais atento, porém, il imagem é m enos simples. N ietzsche e os velhos nielzschianos (por exem plo, Spengler) atacaram a cullura m oderna com o decadente. Os novos nietzschianos ii.i França, m arcados com o estão pelo im pacto do m ar­ xismo, atacam -na com o repressora. O que para N ietzs­ che definia a cultura m oderna era sua falta de vitalidadi?; o que a caracteriza para Foucault — com o também )»uu Adorno ou M arcuse — é a coerção. Foucault. vomo os m arxistas, tom a o lado das vítimas — uma po^(ç»o pouquíssim o nietzschiana. Ademais, N ietzsche 11.(0 linha aversão pelo llum inism o. Longe disso. Em l»-*lo m enos três livros. H um ano, dem asiado hum atw ( IK7S). Atirora (1881) e A gaia ciência (1882), ele presl(Mi iributo ao espírito crítico da era das Luzes. Foum uli. por o utro lado. m ostrou ser. em Vigiar e pimir, iiiimigo ferrenho do llum inism o, retom ando a hostilitl idt* já dem onstrada em H istória da loucura (enquanto i|iic As palavras e as coisas, sem dúvida porque esta 153

obra tratav a da idade classica em bloco, exibe uma neutralidade bem maior). A ssim , no fundo, Foucault acom panha N ietzsche em sua visão da realidade (não existe verdade, apenas interpretações), m as não cm sua visão da história. Ou m elhor, o que ele pede em prestado a N ietzsche, no que tange à história, é apenas uma perspectiva form al: a genealogia, ou seja. o problem a do surgim ento e da descendência dos fenôm enos culturais. N a genealogia, velhas form as culturais recebem novas funções, com o os lazaretos transform ados em asilos psiquiátricos ou as celas monásticas convertidas em cárceres. A genealogia lança luza sobre o pragm atism o da história, sobre a capacidade hum ana de v erter vinho novo em velhas gar­ rafas culturais. E vê tudo, naturalm ente, do ponto dc vista do poder, ficando a verdade degradada ao papel de um adjutório — ou m áscara — da dom inação. Lido com o um m anifesto contracultural nietzschi­ ano ou neonietzschiano. Vigiar e punir proporciona uma absorvente leitura engíyada; mas com o se m ostra com o história tout court'i C onsiderem os o ju ízo dos historiadores. Tom em os uma obra recente e muito bem pesquisada sobre execuções e a evolução da repressão: The Spectacle o f Suffering (198^), de Pieter Spieren* burg, da U niversidade Erasm o de R otterdam . Seguindo a abordagem pioneira de N orbert Elias, que correla­ ciona m udanças m orais e institucionais. Spierenburg afirm a, logo no pórtico de seu livro, que, em Vigiar e punir, Foucault náo exam ina a transição de um sistem a penal para ou tro , não explica as m udanças dos modos de repressão relacionando-as a outros processos de 154

ttansform açâo sociai c não baseia sua análise de cxeciiçôcs públicas em fontes arquivais. O bservando que “ fí luihilo de injlifiir a dor e t> caráíer público do c í/ .v tf^»o nifo desapareceram da noite para o d ia " . Spierenhiirg julga " o qtuidro pintado por F criou-se o substantivo “ socialismo", ligado à idéia de uma regulação central da econom ia). A questão, po­ rém , e que o principal reform ador penal era um libertá­ rio igualitarista: por conseguinte, dificilmente se pode rtccitar a idcia de que o IluminisTio concebesse a puni­ ção com o uma horrível doutrina divsciplinar. Julgava Diderot que os planos de Beccaria não passavam de uma ineficaz utopia (na verdade, muitos deles foram proniam ente postos em prática, especialm ente nos ter­ ritórios do Im pério A ustríaco, em bora não na França). D 'A lem bert louvou o profundo humanismo da penologia de Beccaria. Paradoxalm ente, ao restringir seu pu­ nhado de citações ao lado utilitário de O ci tlcliJti c dellc pene. Foucaull coloca-se ao lado daqueles que. como Voltaire, se esforçaram por dar uma rígida interpreta­ ção “ lécnica*’ e não sociológica (quanto mais “ socia­ lista " ) a um livro tão fecundo e influente. No entanto o utilitarism o de Beccaria. bastante forte para situar cssc auto r entre os principais p reju rso res reconhecidos de Bentham . não era de modo algum incompatível (como lam bém não era, aliás, o de Beniham) com po160

»lorosus linhas dc pensam ento libertárias e filanirópiciis. Como reconhece V cnluri, na prática a maioria dos pl.inos de reform a penal do fim do século XVIII exil»i-t uma mistura de humanitarismo, cálculo econònnco e resquícios de antiga crueldade, transm utados ci.i formas novas e mais racio n ais.’'® Mas nem por um inslanle ele, ou qualquer outro historiador renom ado dsi(|uela eni, sugere que o lluminism o possa ser identiiKudo com um m utilante impulso disciplinar tão geneiiili/.ado quanio repressivo. l*or fim. um terceiro tipo dc falha em Vigiar e puitif. enquanto obra de história, reside na natureza das l'iplicaçôrs que oferece. Por exem plo, um dos objctiVi»s centrais de Foucault é dem onstrar por que o encarccnimento em penitenciárias veio a scr univcrsalm cnlc •iilolado em muito pouco tem po. A reclusão, afinal de nMUas, tinha sido rejeitada por vários reform adores pciiais: por que terá triunfado tão depressa em toda jtmtc? A resposta de Foucault é dupla. Alega ele que (iii a prisão disciplinar transform ava seus internos III n)ii útil forga de trabalho: e (b) de qualquer modo, iiiHlituivões disciplinadoras sem elhantes já atuavam cm iM líiis áreas (as forças arm adas, a fábrica, o hospital, a cHCola). A prim eira resposta lança a culpa pelo controle lie classe na burguesia ascendente; a segunda põe a viilpa pela “ sociedade carcerária” na cultura m oderna idim i um todo, m odelada pela ideologia iluminista. Muh o problem a é: se a prisão nasce d t dom inação de cl.iNsc, cuiiipic cxpiicar com o foi que ela se tornou uma iiMluliide. quase sim ultaneam ente, em países com esiniiuniN de classe m uitíssim o diferentes.'^' P o rq u e , em 16 1

particular, ela apareceu prim eiro, em fins do século XVI l i e com eço do século XIX, nos E stados Unidos, onde obviam ente o conflito de :;lasses era m enos in­ tenso e generalizado do que na E jro p a? Por outro lado. na feliz o bservação dc Robert Brow n, Foucaull, ao descrever o sistem a “ carcerário ’*, não dá qualquer ex­ plicação pura sua introdução em diferentes áreas insti­ tucionais e, cspccifícam enle, naquelas que — com o a escola c a fábrica — normalmente não constituem “ ins­ tituições to ta is” no sentido dado a essa ex p ressão por Erving G offm an; isto é. naquelas instituições que não são. em princípio, espaços institucionais apartados da sociedade m aior. C ríticos com o Brown dispõem -se in­ teiram ente a adm itir que, em última análise, Foucaull não está em penhado numa tarefa explanatóría. N esse caso, replicam , tam pouco ele deveria levantar o tipo de questão que levanta a respeito das causas da expansão dos padrões disciplinares na sociedade moderna. De qualquer m aneira, precisão histórica à parte, as explicações de Foucault são viciadas em si mesm as. Com o observou argutam ente Karel W illiams, o tipo de análise que ele realiza tende co rstan tem en te a ser cir­ cular; suas conclusões já estão presentes logo de saí­ da.'^* N outras palavras, seu método é em inentem ente a petição de princípio. Jon E lster dem onstrou que Fou­ cault incorre naquela “ busca obsessiva de significa­ ç ã o ” que m uitas vezes esteia pseudo-explicações va­ zadas cm term os de conseqüências. Dc acordo com E lster, uma das raízes da busca dc significação a todo custo é teológica, e pode se r encontrada na teodicéia de Leibniz, cuja essência é a afirm ativa de que o mal e 162

a d o r devem ser considerados com o condições causais necessárias para o m elhor de todos os m undos possí­ veis. Q uando, por exem plo, a escola funcionalista. na teoria sociológica do conflito, declara que o conflito dentro das estruturas burocráticas (e entre elas) as pro­ tege contra o ritualism o e a esclerose, tem os a mesma espécie de argum ento falacioso, inferido de conseqüên­ cias. O ra, com o vim os, Foucault afirma que devería­ mos deixar de nos surpreender com o malogro da pri­ são em deter o crim e e corrigir os crim inosos, e com ­ preender que a finalidade real das prisões é precisa­ mente m anter e produzir a delinqüência, ao, implicita­ mente, incentivarem a reincidência e converterem o transgressor ocasional em crim inoso contum az. Em bora o estilo retórico de Foucault antes sugira mais que afirme a conseqüência-explicação,.seu raciocínio acar­ reta necessariam ente a presunção de que uma pergunta vui bono? — para o que serve a prisão? — nâo constitui apenas um guia heurístico (entre outros) e sim um cam i­ nho privilegiado para chegarm os à verdadeira raison ifè n v das prisões.'^’ O ra, a questão é que explicações teleológicas desse tipo não representam , naturalm ente, uma legítima análise causai; elas tão-som ente supõem causas sem dem onstrarem qualquer mecanismo causai; daí a circularidade e a petição de princípio. N otoriam ente, Foucaull náo reveste suas explica­ ções teleológicas em term os de agência. Mas tam pouco rejeita de lodo a possibilidade de ação planejada. Mais de um ciíticu já u(>oiUou u am plo uso que clc faz de verbos pronom inais, do vago pronom e e de outros artifícios verbais, m ediante os quais evita especifica­ 163

m ente im putar processos sociais a quaisquer seres hu­ m anos, sem , no enianto, excluir inteiram ente a açào planejada. O com entário de Léonard acerta em cheio: " N à o se sahe ao certo se M . Foucault descreve um m ecanism o ou um a rnaquinação/*^^* Perto do tlnal dc Vigiar e punir, *'o carcerário ’* ou “ o arquipélago car­ cerário'* (sem dúvida um eco de Soljenitsin) reapare­ ce de modo personalizado. Tais prosopopéias são a nêm esis de uma inveterada fraqueza estruturalista: evi­ tar a análise que parte do reconhecim ento da ação e da intenção. A rejeição do fator agência é sentida com o inescapHvel. por m edo de cair na m etafísica do sujeito (com o se as duas coisas andassem necessariam ente de braços dados). Em term os rigorosos, no en tan to , no foucaldianism o gauchiste de 1975, a ação hum ana c a um só tem po evitada e não desm entida — um agrado conciliador, por assim dizer, ao gosto radical por te ­ orias conspiratórias da história.

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VIII. A "C R A T O L O G IA " D E FO U C AU LT: SU A TEO RIA DO PO D ER

N a última página de Vigiar c punir, Foucault res­ salta que o “ poder de norm alização” não é exercido apenas pela prisão, mas tam bém pelos nossos m eca­ nismos sociais para a produção de saúde> sab er e bem -estar. Portanto, acrescenta ele, "a fab ricação do irxdividuo disciplinar" nào está entregue apenas a insti­ tuições de repressão, rejeição e marginalização. O car­ cerário transcende o cárcere. Por conseguinte, o estudo da prisão teria fatalm ente de se desdobrar num a ana­ tomia do poder social em geral — assim com o, inevita­ velm ente, numa reconsideração de nosso próprio con­ ceito de poder. N ão adm ira que tantos textos e en tre­ vistas de Foucault. desde m eados da década de 1970. discorram sobre o problem a das m odernas form as de dominação. Ao procurar uma genealogia do siyeito m oderno. Foucault estava autom aticam ente definindo um ângulo em que o saber está entrelaçado com o poder. A ssim , sua investigação do siyeito m oderno, por meio das for­ mas de saber, bem com o de práticas e discursos, tinha de se concentrar no que ele cham a de poder^saber {pouvoir-savoir)s um a perspectiva nietzschiana em que toda a vontade de verdade já constitui uma vontade de 165

poder. E quanto mais sc aprofundava cm esferas do saber prático sobre o sujeito, mais ele encontrava, à espera de análise, íecnologias do vu. Ao tlm e ao cabo, com o nota Colin G ordon. Foucaull elaborou um co n ­ ceito de poder “ tão capaz de tom ar a forma de subjetivização quanto de uma objetivizaçâo".'^^ O eu com o instrum ento de poder, um produto Ja dom inação, antes que com o instrum ento de liberdade pessoal — este tor­ nou-se o lem a principal de Foucault depois de Vigiar e punir. Com o já foi indicado, toda essa problem ática pres­ supunha um a reform ulação do conceito de poder. Em resum o, exigia um a teoria do poder produiivo. A teoria das práticas discursivas em A arqueologia do saher e cm L'O rdre du discours pcrmunccia presa a um a con­ cepção de poder dem asiado negativa, que destacava a coerção, a proibição e a exclusão. Depois de Vigiar e punir, Foucault mudou seu foco, Agora advertia: ‘'T e­ m os de deixar dc descrever sempre 4>s efeitos do poder em term os negativos: ele ‘exclu i’, 'repritne*. 'censura', ‘recalca’, 'ahstrai', 'm ascara', 'esvo n d e’. N a verdade o poder produz: ele produz realidade: produz cam pos de objetos e rituais da verdade. O Individuo e o co n h e­ cim ento que dele se pode ter se originam nessa produçao. r,l)6 Foucault apóia sua argum entação contra as teorias repressivas do poder com uma pergunta retórica cuja estrutura lógica e análoga à de sua pseudo-explicação teíeológica da sobreviéncia das prisões a despeito de terem m alogrado na prevenção do crime: se o p o d e ré , de falo. m eram ente repressivo, indaga ele, por que as re­ 166

lações de poder nâo são muito mais instáveis? T radu­ zindo: a causa do poder é sua capacidade dc fazer algo mais do que repressão, tanto quanio a causa da sobreviência da prisão é sua capacidade de fazer aigo mais do que m alograr em impedir o crime. Em “ O sujeito e o p o d er’* (publicado com o posfá­ cio ao livro de Dreyfus e Rabinow a seu respeito), Foucaull enunciou sua intenção: desejava estu d ar o “ co m o " do poder, não no sentido dc “ com o ele se m anitesla?", mas de " p o r qttv m eios é cxvrvu lo ? ". En­ tretanto, grande parte do que ele acrescentou a isso Já era rotineiro para aqueles familiarizados com a litera­ tura analítica sobre o poder, desde W cber até diversos íilósofos, cientistas políticos e sociólogos contem porâ­ neos. For exem plo, Foucault revela, um tanto pom po­ sam ente. que o poder é exercido sohrv outras pessoas, e nào sobre coisas — é uma questão de dom inação, e não de capacidade. Tam bém se dá ao trabalho de frisar que o poder atua sobre nossos atos, e nào — com o a pura violência física — sobre nossos corpos. " O poder só ê exercido sobre sujeitos livres e apenas na nu'dida em que são livres." Que grande novidade... N a lingua­ gem do direito rom ano: coactus tam en vnfiS' sâo. Isso signifu a qae o vristianismria de ser aceita cn${c oráneo. E libertarism o, com efeito, é o m elhor rótulo para a perspectiva de Foucault enquanto teórico social. Mais precisam ente, ele foi (em bora nào tenha em pre­ gado a palavra) um anarquista m oderno; nào é de .se adm irar que, de todos os pensadores um dia ligados ao estruturalism o, lenha sido ele quem perm aneceu mais próxim o ao espírito de 1968. Existem ao m enos três pontos em que Foucaull es­ lava dc acordo com o fogoso anarquism o que inspirou a revolta dos estudantes (c literalm ente hasteou a ban­ deira negra da anarquia na Sorbonne ocupada, em maio de 1968), Prim eiro, com o a maioria dos participantes ou sim patizantes da célebre chicnliii Foucault preferia m ovim entos revolucionários descentralizados e não unificados, quanto mais disciplinados. N ão só era um espontaneísta. bem mais próxim o de Rosa Luxem bourg do que de Lenin e T rotsky, com o lambém não acredi­ tava em esquem as socialistas ou na construção do so­ cialism o cm geral. p o ssível", argum entava ele, “que o coní4>ruo geral de um a futura sociedade seja fornecido pelas recentes experiências com drogas, sc~ xo, com unas e (tutras fo rm a s de co/ísciência e de indi‘ vidualidade. Se no século X IX o socialismo cientifico em ergiu das U topias, ê ptfssivel que. no século X X . um a verdadeira socializaçãtí venha a em ergir de expe­ r iê n c ia s /'“ ’ 238

Segundo, com o a m aioria dos Iideies du cspírilu de rebelião dos anos 60, Foucault sentia mais entusiasm o por com bates parlicularistas do que pela luta de classes no seu clássico sentido econôm ico. Na edição de Hs~ prií. o periódico cristão de esquerda, de maio de 1968, Foucault exaltou a luta de “m ulheres. prisUmeiros, soldados conscritos, pacienies de hospitais e hom os­ sexuais" com o radical e revolucionária, em pé de igualdade com “ o m ovim ento revolucionário do prole­ tariado” .^^ Em bora considerasse que am bos os fenô­ menos eram dirigidos contra " o m esm o sistem a de po­ der". não era difícil perceber para que lado pendia seu coração. Ainda em 1983, numa conversa com o líder sindical não-com unista Edm ond M aire,ele conjeturava a respeito dc m aneiras de contoiiiar os m étodos “ fron­ tais" de luta de classes. Por fim, e em harm onia ainda maior com a mais pura tradição anarquista. Foucault obslinava-se cm suspeitar das instituições, por mais revolucionárias que pretendessem ser. Seu debate com os maoístas france­ ses sobre "ju stiç a po p u lar", estam pado em L es Tem ps M idernes, em 1972. é um exem plo perfeito. Os maoís­ tas, na época apoiados por S arlre, desejavam criar tri­ bunais revolucionários. Foucault objetou que a justiça revolucionária deveria dispensar inteiram ente os tribu­ nais, uma vez que estes são, enquanto tais, um a insti­ tuição burguesa, ou melhor: são "b u rg u eses" porque são um a in stitu iç ã o .^ Mas Foucault não se limitou a "seg u ir” o anarquis­ mo. Na realidade, o que o tornou um //ív»-anarquista foi a adição de dois novos aspectos à teoria clássica do 239

anarquism o. Príineíto, seu rígido antiutopism o. Os príncipais pensadores anarquistas do século XIX eram tam bém grandes utópicos. A inda que se m ostrassem profundam ente suspicazes cm relação às instituições im pessoais, faziam questão de propor novas form as de vida econôm ica e social, com o o mutualismo de Prou­ dhon ou as cooperativas de K ropotkin. O neo-anarquismo de hoje, em co n traste, soa rigorosam ente nega­ tivo. Parece não possuir qualquer pars construens: suas crenças consistem inteiram ente naquilo que ele recusa, não em quaisquer ideais positivos. Segundo, em sua doutrina clássica, o anarquism o nào estav a absolutam ente com prom etido com o irracionalismo» com o hoje (ao m enos desde M arcuse) parece ser o ca ­ so. Pelu contrário: no m aior de seus teóricos, K ropot­ kin, 0 anarquism o até se orgulhava de sua base científi­ ca. A ssim , Foucault aparece com o sendo altam ente re­ presentativo de am bos os elem entos definidores do neo-anarquism o: ncgaíivism o e irrarionalism o. Se essa m udança na essência do anarquism o foi para m elhor ou para pior, é uma questão que deixarei ao julgam ento do próprio leitor. Será possível que o m oderno niilismo tenha im posto essas características àquela ingênua mas nobre tradição do pensam ento social? T erá o espectro de Bakunin — o agitador que era, no fundo da alma, um voluptuoso da destruição — term inado por prevale­ cer sobre o espírito sadio e humanista de K ropotkin? A meu ver, a principal vítima do m ergulho neo-anarquista no irracionalism o foi a própria crítica do po­ d er — justam ente o núcleo da teoria anarquista. O mais forte argum ento do anarquism o clássico, quaisquer que 240

fossem suas ilcficicncias sociológicas, eiu arguta percepção do poder social do poder, isto é, o reconhe­ cim ento de que tam bém as relações de poder são gran­ des forças plasm adoras da história, e não apenas um epifenòm eno de fatores tecnológicos c econôm icos. Desde o com eço, o anarquism o não confiou na idéia m arxista de que o poder pudesse ser inocente e inócuo, u(na vez despido de seus apoios na estrutura de clas> ses e na exploração social. O ra, os m aneirism os conceituais da “ cratologia** de Foucault não parecem ter-se firmado no realism o desses discernim entos. Pelo contrário: por enxergar o poder cm toda parte e por identificar ina m aior parte dc sua obra) cultura com dom inação, Foucault, com o vimos, rcdu/.iu cin muito a força explanatóría de seus conceitos de poder. O s radicais de esquerda elogiam com freqüência a análise de Foucault por sua capaci­ dade de apontar form as c níveis de poder que passaram despercebidos ao m arxism o; mas a verdade é que, em lerm os gerais, a obsessão dc Foucault com o poder em pouco contribuiu para aum entar nossa apreensáo obje­ tiva dos m ecanism os de poder, no passado ou no pre­ sente. M uito se pretendeu, pouquíssim o se dem ons­ trou. Ao se tornar “ con tracu ltu ral* \ o anarquism o de­ certo se fez mais glam ouroso — mas nem por isso suas garras cognitivas ficaram mais afiadas. E Foucault — depois de M arcuse — foi o grão-sacerdote que oficiou as núpcias do anarquism o com a contracultura. O estruiuralism o, com o clim a ideológico, fez o pensam ento francês capitular ante o credo contracultural. Um a das bases da cam panha contracultural foi a 24!

dem olição “ c n t i c a " d a h e ra n ç a do llum inismo. Michel

Foucaull desem penhou um papel fundam ental nessa esIraiégia, pois devem os a ele o golpe final da investida contra o lluminism o. Lévi-Strauss, o fundador do esiruluralism o francês é seu primeiro grande Kuhurkriíiker, ainda preza o ideai da ciência e abom ina um dos principais ídolos da contnicuhura: a arte m oderna, apocalíptica e enigm ática. Foucaull, o m odernista nietzschiano, acabou com esses resíduos positivistas. N ão muito antes de maio de 1968, em conversa com Paolo C aruso, um hábil entrevistador que o escu­ tou atentam ente, com o a Lévi-Strauss e a L acan, Fou­ cault estabeleceu uma distinção entre dois tipos histó­ ricos de filosona. Segundo ele, dc Hegel a H usserl, a filosofia pretendeu alcançar uma apreensão global da realidade. D esde S artre, no enlanto, ela renunciou a essa am bição e voltou-se para a ação política.*® Dez anos. depois, a im prensa italiana ainda achava Jeito de se referir a Foucault com o “ il nuovo S a r i r c " .^ Isso pode parecer puro jo rn alés — mas não me parece nada longe da verdade. B claro que Foucaull não com partilhava das idéias de S artre. Em B arthes (para citar outro m estre dos anos 60) ainda havia uma linha, ou tendência oculta, sartriana. nada desprezível. Em Foucault não há, em minha opinião, nenhum eco forte de Sartre — mas existe todo um etos criplo-sartriano, bem sintetizado naquelas palavras a C aruso. Em seu necrológio para o Lrk Review itf Buoks), in Diacrilicx 1 (outono de 1971). p. 60. 17 Mcgill 1979. p. 478. 18 F oucaull 1972. ca p . II. 3. 19 S lo n e. M adnes. The New York /if’viVir t i f Btfoks, ! 6 d ez. 1982. p. 36. 20 M idclfon in M alam enl (org.). 1980. 21 Sobre esse ponio. ver Jo h n sto n 1972. p. 223*229. 22 P ara a c n lic a de o u tro especialista, v e r a recen são dc ft;ic r G ay in Comnienrary 40 (oui. 1965). 23 Wing 1978, p. 116. 24 M jyor-P ocll/ 1983. p. 148. 25 F oucault 1972, cap . IV. 4. 26 Prcfâciu ù trad u ção inglesa dc /4.v palavras e a.\ eoisas. 27 S obre cssc ponto, v e r D reyfus & Rabinow 1982. p. 70, c M ajor-P octl/ 1983. p. 90. 28 C om o frisado por S tove 1982. p. 6. 29 Papineau 1979, p. 42. 30 Bachelarxl 1949, p. 38. 31 C anguilhem l% 8 . p. 204-205. 32 C f. B achelard 1939. cap. VI (L'epistcm ologie non-carlésienne). 33 C f. Sorel. De Tutilité du pragm atism e (1921): ex c e rlo s in S tanley (erg .) 1976, ca p . 8. 34 C f. H yppolile 1954. 35 V er, sobre esse ponto, os judicio so s com en tário s d e Paola Kabelli na introdução a K oyrc l% 7 , p. 37ss. 36 K oyrc 1966, p. 284-296. 37 Die Zeit d es W cslbildes (1938). publicado com o o segundo en saio dc scu livro fía lz^ rg i' (1950); trad, inglesa in H eidegger 1977. 38 D ilthey 1905, ca p . 1. 39 F oucault 1981. cap . HI. 2. 40 E sse punto havia side tam bém ressaltado p o r H eidegger (v er nota 46). 41 Sobre a ev o lu çã o estilística de V elazquez, v er o e s tu d o do

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rrnornJido especialista E. L utuenic F errari I96C. princip. p. K9-9I e 02-113. 42 Segundo o biógrafo de V clásqucz d o séc. X V III, A ntonio Pa­ lomino, citado cm Jo h n R upert M artin 1977, p. 167. 43 E ssu s especulações foram sugeridas por J. R. M arlin, up. cit.. p. 124. 44 Sobre lodü esse pano dc fundo histórico, ver Lassaigne 1952, p. 6()-65. 45 Foucault 1981, cap. I. in Une. 46 [d. ibid., cap. Il, 1. 47 Id. ibid.. cap . V, 7. 48 Id, ibid.. cap . V II. 1. 49 Id. ibid.. cap. VI, 7. 50 Id. ibid.. cap . IX. 2. 5Ï Id. ibid., p. 404. 52 Para cssas e x p re ssõ es (e o u tra s sem elhantes), ver Foucault 1981, cap , IX. 2. 53 Para lodo esse parágrafo, ver Foucauh 1981. cap . IX. 4. 54 Foucault I9SI. cap. X. 2. 55 Id. ibid.. cap . X. 3. 56 Id. ibid.. cap. X, 3. 57 Id. ibid.. cap. X. 5. 58 S e r tis 1968, p. 193 c 198. 59 R esta ap en as d i/e r d u as palavras sobre uma co isa que Ilea iiuctsc q u e nas en trelin h as do livro: as observ açõ es de Foucault so3re o status d a literatu ra ao longo dc ioda a seqüência de suas rp'sU'mvs. N a v erdade, elc tem d u as m aneiras tie a p re se n ta r a li­ teratu ra cm term os ' ‘arqueológicos ". Por um lado, a liieraiiMa preenche os interstícios en lre as t'pixwmes: itssim. d a m esm a forma que Dom Quixote assinalou a m o rle d o s.»bcr d a R enascen­ ça, em S ade a violência do desejo m arcou o fim vpisivrnv c lás­ sica. Por ou tro lado, a arqueologia do sa b e r deu ã literatu ra “ um a nova m aneira de ser*'. M allarm é, ao atribuir it poesia um a reflexão sobre a linguagem , co n v e rten d o a literatura cm lorm ahsm o, náo trcuxe nenhum a ru p tu ra com lifp is w n w m oderna. A ntes, levou à consum ação um " re to rn o da linguagem ", inscrito na pr»)pria natu-

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rc /ii do dcalino q u e u cu ltu ra o cidental abraçou d csd c o raia r do scculo X IX . Puru FuucuuU , M allarm é seguiu um cam inho paralelo ;h> de N ietzsche q u ando sublinhou convincentem ente n urgente q u estão da linguagem . D epois que M allarm é prom oveu o casa* m ento du literatu ra com a linguagem intransitiva, a arte literária só póde alca n ça r seus g randes m om entos num a ex p erícn cía intensifi* ca d a de limKes ex istenciais, com o em KaDca ou A ilaud. A idéia — e o ideal — lòucaldianos dc literatu ra m o d ern a co m eçam com Blnnchot (a literatura com o um a m aterialidade intransitiva d c lin* guagem ) e term ina com Bataille (u literatura com o a e sié tic a dn transgressão). T ais n o çõ e s náo e s lâ o distan tes da ideologia d o estruturalism o literário. Além disso, o próprio F oucault dedicou-se ocasionalm ente ã crítica liter;íría. co m o atestam seu p equeno v o ­ lume sobre R aym ond R oussel (1963). um rom ancista exp erim en tal m enor, seu brilhante ensaio sobre lUiin dv Oiam'. d e K lossow ski (in Critique. 1964) e scu perspicaz ensaio sobre F laubert (F an tasia o F th e library, !% 7. in Foticaiill 1977, p. 87-109). F sse úllim n tra ­ balho e m uilo e scla re ce d o r sobrc as relações en tre a im aginação e aquilo que a crítica literária cstru tu ralista cham a de intertextuali* dade. F oucaull tiunlicm escrev e u sobre Bataille (v er A preface to transgression |1 9 6 3 ‘ in F oucaull 1977) e sobre Blanchol (cf. seu en saio L a pensée du d eh o rs in Cridque 229, jun. 1966). 60 Cf. FoucauU R éponse au cercle d ’épistém ologic. Coiners fH>ur iA n a lyse 9 (vcrâo do 1968). 61 V er G. S. R ousseau 1972. p. 241. R ousseau alega apoio em Y ates 1964. 62 H uppert 1974. p. 205-206. 6.1 Sobre tudo isso, v er K oyré 1961, p 61-69. c Y ates. op. cit., p. 153, 155 c 440-443. 64 Cf. W estfall 19«0, p. 407. 65 Sobre a história dc lodo cssc fundu teórico , cf. M ittelsirass 1979. princip. p. 43-53. A s palavras le x tu iis dc K ep ler (in tlpUome astronunùue eopenùeum ic) são: eantem pfori i^enitimim form am ae