Forças militares no Brasil Colonial 9788576502050

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Forças militares no Brasil Colonial
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Christiane Figueiredo Pagano de Mello

Forças Militares no Brasil Colonial Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na Segunda Metade do Século XVIII

Rio de Janeiro, 2009

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© Christiane Figueiredo Pagano de Mello/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2009. Todos os direitos reservados a Christiane Figueiredo Pagano de Mello/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores. Impresso no Brasil. ISBN 978-85-7650-205-0 Projeto gráfico, diagramação, foto e layout de capa Livia Krykhtine Revisão Elisa Sankuevitz Esta publicação encontra-se à venda no site da E-papers Serviços Editoriais. http://www.e-papers.com.br E-papers Serviços Editoriais Ltda. Rua Mariz e Barros, 72, sala 202 Praça da Bandeira – Rio de Janeiro CEP: 20.270-006 Rio de Janeiro – Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M447f Mello, Christiane Figueiredo Pagano de Forças militares no Brasil Colonial: Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do Século XVIII / Christiane Figueiredo Pagano de Mello. - Rio de Janeiro: E-Papers, 2009. 258 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-205-0 1. Brasil. Exército - História. 2. Brasil - História militar. 3. Brasil História - Período colonial, 1500-1822. I. Título. 09-1839.

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CDD: 355.00981 CDU: 355(81)

A Maria de Fátima da Silva Gouvêa (in memorian)

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LISTA DE ABREVIATURAS

AHU

Arquivo Histórico Ultramarino

ANRJ

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

BNL

Biblioteca Nacional de Lisboa

DIHSP

Documentos Interessantes da História de São Paulo

RIHGB

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

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AGRADECIMENTOS

Este livro é resultado da minha tese de doutoramento no programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Agradeço à Capes, por ter financiado parte do processo das pesquisas no Brasil e pela bolsa-sanduíche, que me viabilizou as decisivas investigações em Portugal. Agradeço à minha orientadora, professora Maria Fernanda Bicalho, pelo cuidado e atenção com que acompanhou o desenvolvimento da pesquisa, sem os quais este trabalho não chegaria a seu bom termo. À professora Maria de Fátima Gouvêa, pelo carinho e interesse com que acompanhou o trabalho desde seus primeiros passos. Grata, ainda, por sua participação, juntamente com o professor Ronaldo Vainfas, professor Pedro Puntoni e a professora Heloísa Liberalli Bellotto na minha banca examinadora de doutorado onde pude contar com as suas fundamentais observações sobre o trabalho. Ao professor Paulo Knaussi sou grata por suas enriquecedoras observações acerca do tema. Ao professor Renato Venâncio, que encontrei em Lisboa, pelas dicas e sugestões essenciais nos Arquivos portugueses. E, posteriormente, por ter me possibilitado a oportunidade de aprofundar minhas pesquisas em Minas Gerais na Ufop através da bolsa que obtive do CNPq de recém-doutora. Agradeço, ainda, a sua orientação nas pesquisas e na prática docente enquanto estive na Ufop, bem como ao seu Departamento de História e ao CNPq. Em Portugal, dos bem-vindos e produtivos contatos com professores e investigadores portugueses, contatos esses vitais e insubstituíveis para o trabalho em sua fase de desenvolvimento, devo mencionar o professor doutor Nuno Gonçalo Monteiro que me orientou. Ao professor Fernando Dores Costa, sou muito grata pelas várias conversas e artigos sugeridos que foram de fundamental importância para o trabalho. Ao general Silvino da Cruz Curado, pesquisador português da história

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militar do Brasil colonial, que conheci no Arquivo Histórico Ultramarino, pelo imenso material que me disponibilizou para fotocópia, seja em volumes de legislação militar, seja em artigos. Aos meus amigos: À minha querida amiga Cecília Dourado, grande saudade. À amiga Carmen Luz pela poesia e amizade constantes e indispensáveis. Aos amigos William de Souza Martins e Sérgio Chahon, pelas leituras e sugestões sempre pertinentes. À Zenaide Silva pela leitura atenta e crítica de todo o trabalho. Aos meus amigos desde o mestrado da PUC-Rio: Ricardo Mariella, Cristina Cabral, Sérgio Alcides e Mauro Coelho, muito queridos. A Tereza Balman, amiga que fiz nesse período, obrigada pelo estímulo e carinho. Ao Rui, a Isabel e a Marta, amigos portugueses que em muito me orientaram nas Bibliotecas e Arquivos portugueses, e nas divertidas noites em Lisboa. Aos amigos: Fátima, Alexandre, Edwin, Paulo, Kittya, Alberto, Pratima, Cândida e José Miguel, todos pesquisadores em Lisboa: formávamos um grande e divertido grupo, a cuja companhia, que tornou esse período inesquecível, sou grata. À minha família: À minha mãe Daisy Figueiredo pela força e estímulo constantes, à minha irmã Denise Figueiredo Pagano de Mello, aos meus sobrinhos Luana e Allain de Mello Gomes, muito queridos.

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Sumário

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INTRODUÇÃO

PARTE I 29

CAPÍTULO 1 – Apresentação das Forças 29 33 40 43

51

1.1. A Reordenação Militar: A Lei das Armas 1.2. A Reordenação Militar: O Regimento das Ordenanças 1.3. A Provisão das Ordenanças 1.4. As Tropas de Auxiliares

CAPÍTULO 2 – Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII 51 56 60 67 79 86

2.1. As Concepções Corporativa e Voluntarista 2.2. A Centralização: As Câmaras e as Elites Locais 2.3. A disputa pelos principais e mais distintos moradores 2.4. Os Lugares dos Corpos de Auxiliares e Ordenanças 2.5. A Pedagogia militar 2.6. A Dinâmica das Relações

PARTE II 95

CAPÍTULO 3 – A Importância e a Vulnerabilidade da Cidade do Rio de Janeiro: A Colônia do Sacramento e o Ouro das Minas 95

3.1. A Cidade do Rio de Janeiro e a Fundação da Colônia do Sacramento

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110 119 126

133

CAPÍTULO 4 – 1763: O Vice-Reino 133 143 157

167

4.1. A Política de intensa militarização: A reordenação do social 4.2. As Principais Forças de defesa da América portuguesa 4.3. Os povos do Sertão

CAPÍTULO 5 – As Debilidades e as Adaptações do Poder Central 167 174 186 192 201

209

3.2. A Defesa da Praça do Rio de Janeiro: As Invasões Francesas e a Paz de Utrecht 3.3. Gomes Freire de Andrade a Estratégia políticomilitar 3.4. O Tratado de Santo Ildefonso: A perda da Colônia do Sacramento e o Território português ao Sul da América

5.1. As Recorrentes Carências Militares e a Presença dos Negociantes 5.2. O Recurso às Estratégias Locais 5.3. As prescrições centralizadoras e o recrutamento militar 5.4. O Confronto com as Estratégias locais 5.5. O Jogo das Negociações e o Recrutamento Militar

CAPÍTULO 6 – A Capitania de Minas e a Dinâmica do Bem Comum 209 214 222 227 231

6.1. A Arregimentação militar e seus vários alvos 6.2. A Cooperação militar condicionada 6.3. O Ouro e os Domínios 6.4. As Tropas de Minas Gerais: o Sul e o Rio de Janeiro 6.5. O Desassossego das Minas

241

ÚLTIMAS PALAVRAS...

245

FONTES E BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

Este livro apresenta um estudo sobre o funcionamento das organizações militares encarregadas da prestação de serviços gratuitos nas várias Capitanias do Estado do Brasil. Vamos nos transportar para a segunda metade do século XVIII e percorrer as Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde todos os súditos em condições de pegar em armas estavam obrigatoriamente ligados a uma das organizações militares da Colônia: os Corpos de Auxiliares e os Corpos de Ordenanças. O interesse pela história militar do Brasil colonial parece pequeno: poucos trabalhos são dedicados a esse tema na produção historiográfica brasileira, e menor ainda é o número daqueles especificamente consagrados ao estudo das organizações militares denominadas de Auxiliares e de Ordenanças,1 muito embora estas últimas sejam reconhecidas como instituições de grande relevância na sociedade colonial por historiadores como Caio Prado Junior, Raymundo Faoro e Nelson Werneck Sodré. Pensando em contribuir para o estudo do tema, orientamos nossa pesquisa para o desenvolvimento de uma reflexão sobre a dinâmica do pacto que se estabelecia entre a Metrópole e a Colônia. Para isso, aprofundamos a investigação do funcionamento das organizações militares na Colônia, procurando reconhecê-las como espaços de construção das negociações que fundamentavam o relacionamento político entre o Reino de Portugal e o Estado do Brasil. 1. Em razão da carência de trabalhos sobre nosso tema, devemos citar a contribuição da professora doutora Nanci Leonzo, que há muito tempo chama a atenção para a importância das Ordenanças e dos Auxiliares na sociedade colonial; como, por exemplo, em sua dissertação de Mestrado: “As Companhias de Ordenanças na Capitania de São Paulo – Das origens ao Governo de Morgado de Matheus”, bem como em sua tese de doutoramento “Defesa Militar e Controle na Capitania de São Paulo: As Milícias”. Também sobre a Capitania de São Paulo encontramos o trabalho de Enrique Peregalli “Recrutamento Militar no Brasil Colônial”. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Um de nossos princípios norteadores está na formulação de que os vínculos políticos entre Metrópole e Colônia se estabeleciam a partir de uma lógica contratual, cuja dinâmica de negociações e trocas realimentava continuamente um pacto entre forças complementares e, em função da hierarquia, naturalmente assimétricas. Essa rede de relações e negociações, responsável pela sustentação dos vínculos entre a Metrópole e a Colônia, era determinada por regras e princípios de uma sociedade estamental, com valores que regulavam os interesses de ambas as partes, inclusive na busca de um consenso. É nessa perspectiva que buscamos compreender a inserção dos Corpos de Ordenanças e de Auxiliares no contexto da sociedade colonial. Trabalhamos com a ideia de pacto como o resultado político das negociações geradas pelo jogo de interesses entre dois poderes: o poder central metropolitano e o das elites locais coloniais, que em nosso caso era formada por homens a quem se destinavam os postos de comando dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças. Partimos do pressuposto de que esses Corpos militares tiveram um papel fundamental na dinâmica da sociedade colonial e na relação dessa com a Metrópole; em nossa análise, tais Corpos militares são vistos como centros de poder local ou periférico, constituindo-se em canais que efetivavam a interlocução tanto de encontro e colaboração entre o centro metropolitano e as comunidades locais, quanto de negociação de conflitos e divergências, inevitáveis na densa rede de relações entre os diferentes níveis de poder.2 Nesse sentido, consideramos de extrema importância teórica o trabalho Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII, de Xavier Gil Pujol.3 Além de inúmeras indicações bibliográficas, o texto contém uma importante revisão do tema, analisando as diversas interpretações sugeridas por uma historiografia renovada em escolhas teóricas. Pujol discute – e atualiza – tanto a questão do poder no antigo regime quanto a dos efeitos produzidos pelo fortalecimento dos órgãos centrais da monarquia. O estudo da relação entre governo central e comunidades locais, tema principal do seu trabalho, provoca a sensação 2. Pujol, Gil Xavier. “Centralismo e Localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII”. In: Penélope – Fazer e desfazer a História, n. 6, 1991, p. 136. 3. Idem. 12 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

de que é crescente o interesse dos historiadores em se debruçar sobre as várias facetas do Estado Monárquico. Para o autor, é necessário procurar uma análise que se afaste das generalizações recorrentes e relativize termos como “absolutista e centralizador”, atribuídos ao poder central monárquico. Ele propõe valorizar a complexidade e a interatividade existentes na dinâmica política estabelecida entre os poderes central e local, ressaltando que eles se complementavam nas tarefas políticas e econômicas, devido aos frequentes limites da capacidade de ação de cada um. Para ele, mais do que um simples interesse de ambas as partes, essa colaboração mútua era uma necessidade.4 Pujol entende a comunidade local como um complexo tecido de relações internas e externas, sendo esta perspectiva, segundo advertência dele próprio, a que melhor permite captar a diversidade das formas de contato (comunicação, relacionamento, convívio) e os limites cotidianos do poder absolutista com as comunidades locais.5 Em decorrência desses limites, e também da necessidade de contar com a colaboração dos centros de poder local, a Coroa se torna menos centralizadora do que se costuma afirmar, além de portadora de uma prática política menos absolutista e mais participativa.6 Pujol também critica o reducionismo decorrente das visões verticais e dicotômicas das relações políticas estabelecidas entre os poderes central e local. Ele chama a atenção para as análises construídas exclusivamente a partir de uma única direção, seja descendente ou ascendente. No caso da primeira, partindo do governo central para as comunidades, o autor observa a tendência ao exagero no dirigismo e na eficácia da ação do governo central sobre as comunidades, que, como consequência, acentua a visão de um centro ativo e de uma comunidade passiva. Já as análises que tomam a direção ascendente, inclinam-se a minimizar o alcance do poder central, chegando a ponto de conceber as comunidades como autossuficientes e fechadas sobre si mesmas, verdadeiras “reservas” de autenticidade.7 Não podemos considerar os Corpos militares como simples correias de transmissão dos ditames centrais e nem tampouco como for4. Idem,p. 121. 5. Idem. 6. Idem,p. 127. 7. Idem,p. 121-123. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ças autônomas e autossuficientes. Os Corpos militares eram um lugar de negociação dos interesses de ambas as partes. É primordial valorizar a importância das relações entre o poder central e as comunidades locais, mantendo em perspectiva que é a relação de interdependência que completa o sentido e o significado dos dois níveis de poder, central e local. Na historiografia brasileira, devemos ressaltar a clássica contribuição feita por Caio Prado Júnior e Raimundo Faoro ao estudo da administração colonial em Formação do Brasil Contemporâneo8 e Os donos do poder,9 respectivamente. Por trás das argumentações e análises dos autores sobre a história administrativa, podemos perceber o posicionamento deles a respeito do caráter das relações políticas travadas entre Metrópole e Colônia, bem como acerca dos órgãos de administração colonial e seu funcionamento. Ainda que divergentes nas conclusões, é possível identificar alguns pontos em comum entre Caio Prado e Faoro. A semelhança inicial entre as análises é a visão essencialmente descendente das relações entre Metrópole e Colônia, ou seja, do Reino de Portugal para o Estado do Brasil; ambas atribuem à Metrópole, como centro ativo, a incumbência de ser portadora de uma determinada “ordem, integração e centralização” a ser instalada naquele “rebelde mundo atlântico”.10 Essas referências são recorrentes nos dois autores, mas enquanto Faoro afirma a existência de uma ordem na Colônia, implementada e regulada com eficiência pela Metrópole, Caio Prado não reconhece a presença de qualquer ordem e vê nessa situação o resultado da ineficácia dos órgãos administrativos coloniais transplantados da Metrópole. Apesar de alguns pontos de partida análogos, os dois autores traçam destinos diversos para suas argumentações. A visão vertical e unívoca compartilhada por ambos os autores permite duas outras leituras sobre os órgãos administrativos existentes na Colônia, aqui definidos como centros de poder local. A primeira dessas leituras pode ser feita a partir de momentos diversos da análise dos autores sobre o papel dos órgãos de administração colonial. O caminho inicial adotado por eles leva-os a considerar esses órgãos como simples cumpridores de determinações superiores, ou seja, em perfeita sintonia com o paradigma descendente em que estruturam suas interpretações. É o que acontece quando os autores 8. Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1940. 9. Faoro, Raimundo. Os Donos do Poder. Rio de Janeiro: Globo, 1984. 10. Idem, p. 177. 14 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

reconhecem que alguns centros de poder local tiveram considerável contribuição e importância na administração colonial, caso, por exemplo, das forças militares: os Corpos de Auxiliares e, sobretudo, os de Ordenanças, merecedores de grande relevo na apreciação de ambos os autores. Considerados basicamente como forças portadoras da ordem e da integração em meio à turbulência social do mundo colonial,11 esses Corpos são vistos como forças fundamentais na integração da Colônia à ordem Metropolitana.12 Caio Prado chega a reputá-los como forças de extrema importância, e até decisivas, na veiculação e propagação da ordem administrativa por toda a Colônia: “estenderam com elas, sobre todo aquele território, as malhas da administração, cujos elos teria sido incapaz de atar, por si só, o parco funcionalismo oficial (...)”.13 Entretanto, tais forças são qualificadas dessa forma apenas na medida em que esses autores as consideraram, fundamentalmente, como instrumentos passivos dos governadores; forças que “servião ao comando dos governadores”,14 como escreve Faoro, e como já havia afirmado Caio Prado.15 Os Corpos de Ordenanças e de Auxiliares são reduzidos a meros executantes dos interesses dos governadores, representantes ultramarinos do poder central e destituídos da função de agentes representativos de interesses da esfera local, isto é, de interlocutores no espaço que dominam e que lhes é próprio, a comunidade local. Variante da primeira, a segunda leitura resulta em uma polarização que Faoro e Caio Prado constroem entre o poder régio e os órgãos de administração colonial. Em termos gerais, essa polarização é consequência dos autores trabalharem basicamente com uma referência dicotômica: um centro ativo e forças locais passivas. Dessa forma, quando essas forças se revelam como agentes ativos e portadores de interesses, desautorizam o modelo original utilizado pelos autores, e se transformam, na argumentação deles, em forças marcadas pela contradição e oposição ao poder central e seus representantes ultramarinos. Como se a dicotomia definisse um quadro de forças excludentes, no qual a ação e os interesses de uma anulassem os da outra.

11. Idem, p. 194. 12. Idem. 13. Prado Jr., Caio. Op. cit., p. 324. 14. Faoro, Raymundo. Op. cit., p. 192. 15. Prado Jr., Caio. Op. cit., p. 327. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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No caso de Caio Prado, a situação chega ao extremo: os papéis são invertidos a tal ponto que, para desespero dele, o centro não é ativo como deveria e as forças locais deixam de ser passivas. Reconhecendo seu modelo invertido e sem controle, o que o autor vê no mundo administrativo colonial é a projeção de um modelo ou mundo invertido, onde “o espírito de indisciplina reina por toda parte e em todos os setores”.16 Como a Metrópole não consegue manter um desempenho ativo e eficiente na composição e supervisão dos órgãos de administração colonial, o efeito inevitável não poderia ser outro senão “o solapamento da autoridade pública, a dissolução de seus poderes que se anulam muitas vezes diante de uma desobediência e indisciplina sistemáticas”.17 Já Faoro, em termos gerais, faz prevalecer a ordem na Colônia, em vez do caos visualizado por Caio Prado. Fiel e leal à concepção de um centro ativo, Faoro está longe de conceber qualquer inversão no modelo original descendente na história da administração colonial. Diante da hipótese de considerar as administrações locais como ativas e não como “simples executoras das ordens superiores”,18 como no caso citado por ele das Câmaras Municipais, o autor afirma que “o estudo das fontes a desacredita”.19 Quando muito, Faoro caracteriza o episódio como isolado e localizado nos primórdios da formação delas: “um efêmero momento”,20 insuficiente para definir com fidelidade o desempenho das Câmaras Municipais,21 órgão da administração que “se submete ao papel de braço administrativo da centralização monárquica”.22 Outra contribuição importante para o tema de nosso livro foi feita pelo professor Ilmar Rohloff de Mattos, na década de 1980, em O tempo saquarema – A formação do Estado Imperial.23 No capítulo Moeda colonial o professor realiza um avanço na historiografia ao chamar a atenção para a importância do que denominou de região colonial e seus particularismos, afirmando a necessidade de não se menosprezar 16. Idem, p. 309. 17. Idem. 18. Faoro, Raimundo. Op. cit., p. 186. 19. Idem, p. 187. 20. Idem. 21. Idem. 22. Idem, p. 183. 23. Mattos, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema – A Formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: Access, 3. ed., 1994. 16 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

o particular, a região colonial, e levar em conta a relação desta com a Metrópole. Entretanto, é necessário tecer alguns comentários sobre o capítulo Moeda Colonial, especialmente no tocante a duas questões: a chave interpretativa para análise da natureza da relação Metrópole-Colônia e as consequências dessa análise na construção de uma concepção da região Colonial. Apesar do respeito ao valoroso trabalho do professor e pesquisador, entendemos que as relações sociais e políticas estabelecidas entre Metrópole e Colônia eram mais amplas e complexas, permeadas por valores e princípios que transcendiam aqueles que regulam a lógica utilizada em Moeda Colonial. Falamos da lógica do “monopólio”, eixo central da análise contida no capítulo: “O monopólio (...) em seus múltiplos aspectos e desdobramentos.”24 entendido tanto na forma econômica como, principalmente, na de qualificador das relações sociais e políticas estabelecidas entre Metrópole e Colônia. O próprio conceito de “monopólio”, empregado recorrentemente no capítulo para se referir as questões econômicas, quando é transferido para a esfera social e política, recurso também frequentemente utilizado pelo historiador, deixa transparecer dois aspectos: um certo determinismo econômico, com o pressuposto básico de ver a questão econômica como balizadora de todas as relações que se estabelecem entre os agentes sociais; e uma tendência a maximizar a eficácia do Estado Monárquico na capacidade de estender e impor sua vontade e poder, isto é, seu monopólio, sobre as relações sociais e políticas do período colonial: “A unificação e o fortalecimento do Estado absolutista implicava o monopólio do Soberano sobre os súditos, incluindo aqueles que habitavam as regiões coloniais (…).”25 Mais adiante, Mattos chega a afirmar que “a figura do rei simbolizava o monopólio (...) dos corações e mentes dos habitantes do reino e suas possessões”.26 Esse tipo de análise se desenvolve a partir de dois polos: o primeiro, acima apresentado, fundamenta-se na concepção das relações sociais e políticas estabelecidas com a Metrópole a partir do viés “monopolista”; o segundo busca afirmar a existência de uma dinâmica nas relações sociais internas da colônia e, portanto, a necessidade de um estudo que 24. Idem, p. 20. 25. Idem. 26. Idem, p. 21. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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não despreze o particular, ou seja, a região colonial, e considere a relação desta região com a Metrópole. Como o professor Ilmar diz, (...) o monopólio se constitui no elemento que une as duas faces da moeda colonial, assim como lhe confere valor. De um lado a “cara” ou a face metropolitana (...); de outro, a “coroa” ou a face colonial, sob a forma da região, face geralmente oculta, impossível de ser pensada isoladamente da primeira, mas guardando também uma existência própria, um processo particular que não se restringe à mera reprodução da História metropolitana ou dos sucessos de outra região qualquer.27

Podemos então perguntar como o autor realiza a conciliação de tais preocupações, numa análise que valorize a dinâmica das relações sociais considerando tanto os elementos internos à região colonial quanto os que lhe são externos, conforme à sua própria proposta, com a concepção de uma prática social e política entendida como “monopolista”. Esta qualificação presumiria uma visão unidimensional e descendente das relações, como se o pacto colonial obedecesse a uma partitura unívoca de poder, conduzindo, consequentemente, a um processo de desqualificação e esmaecimento do particular pela força do Estado por meio de sua ação “monopolizadora” sobre aquele. Contradição, portanto. Ou será que, de acordo com a perspectiva do professor Ilmar, a ação política e social dos agentes coloniais existiria de forma apenas potencial no período colonial, passando a adquirir movimento e vida no período da “Formação do Estado Imperial”, cuja análise é desenvolvida nos capítulos posteriores do texto? Mantendo no centro da análise a ideia de “monopólio”, conforme sugere o professor, para interpretar as relações sociais entre Metrópole e Colônia, que ele denomina de região colonial, chegamos à seguinte, e excludente, conclusão: Ou os poderes locais são desvalorizados, vistos como uma força inerte em vez de ativa, sendo determinados e pautados apenas pelos interesses “monopolistas”, e desqualificados em suas características e interesses particulares; ou se opta por uma análise que deixe em segundo plano as relações da região colonial com a Metrópole. Parece ser esta, 27. Idem, p. 19. 18 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

de acordo com o autor, a forma mais adequada de assegurar um estudo que valorize e potencialize as particularidades locais. Porém, se abandonássemos a concepção monopolista das relações sociais e políticas proposta por Mattos, e interpretássemos essas relações com uma chave de leitura que tivesse por eixo a “negociação” como prática fundamental das relações sociais e políticas entre o poder central e o local, poderíamos caracterizar a natureza dinâmica desses poderes no período colonial com mais tranquilidade e fluidez. Seria uma dinâmica com movimento de mão dupla, envolvendo interesses e poderes tanto da esfera local quanto da relação dessa com o centro. Esse raciocínio é uma forma, das relações sociais e políticas não serem reduzidas a uma visão dicotômica, como uma moeda e seus dois lados: um da “dominação”, outro da “exploração”. Uma vez que se pretende trabalhar com a dinâmica das relações políticas e sociais estabelecidas no período colonial, entendemos que essa moeda deve ser posta em movimento para que revele outras faces além das duas básicas, devemos fazer essa moeda girar e transfigurar-se em um prisma de diversas faces. Embora tenha avançado em relação à historiografia da época, chamando a atenção para a importância da região colonial e de seus particularismos, Ilmar de Mattos parece esbarrar em limites conceituais que o impedem de desenvolver uma análise com uma perspectiva das relações sociais estabelecidas no interior da região, e também entre essa região e a Metrópole. Também devemos analisar as mudanças nos padrões portugueses de organização social produzidas pelas características específicas da realidade social da Colônia, e considerar algumas questões levantadas por Caio Prado Junior a esse respeito. É possível observar que na questão das adaptações, o autor parte do pressuposto básico de que a Metrópole – centro ativo – deveria conduzir e regular, com normas legais, o processo de ajustamento dos órgãos de administração às condições do meio colonial,28 atuando como o agente das mudanças. Em sua análise, Caio Prado constata a ausência de qualquer plano preestabelecido pela Metrópole que pudesse considerar efetivamente uma organização administrativa adaptada às peculiaridades da Colônia, e tende a desqualificar as soluções criativas e inovadoras que foram produzidas. Ele as interpreta como “adaptações forçadas”, 28. Prado Jr., Caio. Formação... Op. cit., p. 334. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ou como resultado do “arbítrio das autoridades”,29 estado de desordem ou caos, uma vez que as soluções encontradas não eram regidas por normas legais do reino. De acordo com Caio Prado, para não colocar em risco a harmonia do sistema administrativo, qualquer tipo de mudança nos padrões deveria ser feito de forma descendente, implementado por decreto, totalmente sob o controle da Metrópole: uma “originalidade deliberada”,30 e não construída e reconstruída dentro da dinâmica do dia-a-dia na Colônia e da relação dessa com o reino. Porém, na realidade colonial, não parece ser a Metrópole que introduz as mudanças, é o processo da prática cotidiana que leva as diferenciações adaptativas. O historiador C. R. Boxer atribui um papel importante à noção de adaptação. Em seus trabalhos O Império Colonial Português (1415-1825)31 e Portuguese Society in the Tropics –The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda (1510-1800),32 ao estudar as Câmaras coloniais, ele aponta para múltiplos e inter-relacionados aspectos que envolvem o processo de reciprocidade entre o modelo das instituições metropolitanas e as variações presentes nas colônias portuguesas. Diferentemente de Caio Prado Junior, Boxer não considera o processo de adaptação como “resultado do arbítrio das autoridades”, ou mesmo de “adaptações forçadas”.33 Para ele, esse processo é regido por uma fértil e necessária combinação entre os matizes portugueses e as especificidades locais existentes nas Colônias, proporcionando aos órgãos de administração colonial uma identidade original. Em C. R. Boxer, vemos o funcionamento da administração colonial ser regulado e informado a partir de dois níveis: o primeiro, do padrão metropolitano, é o que fornece o modelo, um repertório regulador de ações e de condutas para os órgãos de administração colonial; e o segundo é o que se estabelece no contato com a diversidade das condições sociais, culturais e geográficas nas diferentes localizações – África, Ásia e América – desses órgãos administrativos, consequentemente, na inevitabilidade da intervenção local que dá origem a mudanças. É o conjunto de características particulares de cada espaço que 29. Idem, p. 324. 30. Idem, p. 334. 31. Boxer, C.R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981. 32. Boxer, C.R. Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda (1510-1800), Medison, University of Wisconsin Press, 1965. 33. Prado Jr., Caio. Formação... Op. cit., p. 324. 20 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

constitui o segundo nível de influência sobre a orientação da prática de cada órgão. Através da análise de Boxer acerca da administração colonial, que comporta um quadro de múltiplos cenários, como Goa, Macau e Bahia, podemos concluir que as instituições coloniais não se orientam somente pelas determinações da Metrópole, nem tampouco se regulam apenas pelas características de cada Colônia; na verdade, a orientação das instituições coloniais é obtida pelo resultado da conjugação das duas interferências citadas. Essa é uma questão básica, que ajuda na compreensão da necessidade de considerar sempre a relação entre o poder e o território do seu exercício: na realidade, os agentes do poder real constituem apenas um entre os vários poderes em jogo. A proposta de nosso livro não é realizar uma análise criteriosa das singularidades de cada uma das três Capitanias em estudo: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. O objetivo é ressaltar as particularidades que formaram um conjunto de aspectos definitivos para a estratégia de defesa do território colonial. Podemos citar os exemplos dos “aventureiros paulistas, dos negros e mulatos e dos vadios” – utilizados em larga escala como forças militares decisivas –, que tinham formas peculiares de combate na guerra então travada contra a Espanha nas zonas limítrofes no extremo sul do Estado do Brasil. E também a apreciável flexibilização ocorrida nas categorias tradicionais de preenchimento dos postos militares, inclusive através de caminhos bastante originais produzidos pelas urgências da defesa militar. Devemos ainda fazer duas considerações sobre a questão das particularidades e das estratégias locais de combate utilizadas pelas forças militares da Colônia, no contexto da segunda metade do século XVIII, na guerra contra os espanhóis. A primeira refere-se à tática, há muito conhecida pelos portugueses, de utilização do elemento diferencial como fator estrategicamente importante no embate das potências inimigas. É preciso notar que a importância de tais particularidades acentuava-se perante a tendência de padronização militar das forças europeias da época,34 inclusive a Espanha. Dessa forma, considerava-se que se as estratégias locais de combate fossem totalmente desconhecidas do inimigo, atuariam como 34. Costa, Fernando Dores. “A Guerra no Tempo de Lippe e de Pombal”. In: Nova História Militar de Portugal. Dir. Antonio Manuel Hespanha, v. II – séculos XVI-XVIII. Lisboa: Círculo de Leitores, s/p. (no prelo). INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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“elemento surpresa” e desmantelariam, com esse ineditismo, as táticas e estratégias de defesa previamente armadas pelo oponente. A segunda consideração também é de extrema importância: por mais decisivas que fossem as particularidades no contexto militar da segunda metade do século XVIII, elas devem ser reconsideradas. As forças militares da Colônia seriam incapazes de sustentar uma guerra por conta própria; elas tinham de ser providas de maneira minimamente adequada, quantitativa e qualitativamente, para o enfrentamento com armamentos bélicos, pólvora e munições. Aquelas particularidades e diferenças estratégicas só resultariam favoráveis se tivessem os efetivos devidamente aparelhados com os armamentos que só poderiam vir da Metrópole, à qual cabia o dever de abastecer as tropas coloniais. Em tempos de guerra, a ausência dessa condição básica é absolutamente inconcebível, tornando a catástrofe praticamente inevitável. Um dos motivos da escolha das capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais para o estudo do funcionamento dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças, durante a segunda metade do século XVIII, é o interesse estratégico que essas capitanias representavam para a manutenção do Império português na América. Esse fato lhes conferia uma grande relevância social, política e militar, sobretudo se considerarmos as disputas armadas do Prata, a importância econômica de Minas Gerais e a necessidade de defesa contra possíveis ataques de potências estrangeiras na região Centro-Sul. A própria necessidade de cooperação entre as Capitanias do Estado do Brasil, prevista e constantemente reiterada pela nova estrutura militar era maior entre as Capitanias de São Paulo, Minas Gerais e a capital do Rio de Janeiro, que naquele momento constituía-se no centro político-administrativo e militar do Império português na América. São também necessárias observações sobre a posição adotada por nós tanto em relação ao período a ser estudado, quanto às novas exigências que a política ultramarina então colocava. Nossa perspectiva fundamental para a análise da segunda metade do século XVIII na Colônia tem a presença de duas dimensões do entendimento de ordem social coexistentes na mesma realidade temporal. Há duas diferentes concepções constantemente compelidas a dialogar entre si, na busca de consonâncias possíveis, quando estão inseridas nas necessidades práticas da efetivação de planos e interesses das novas exigências que a política ultramarina então colocava. Uma delas, 22 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

a corporativa, fornecida pela concepção e prática organicista acerca do poder político e da sociedade; a outra, a voluntarista, fornecida pela concepção política e social enquadrada nos postulados de centralização e racionalidade do absolutismo pombalino. Esta última é representada pelos vice-reis e governadores-generais, através das instruções que recebiam da Coroa portuguesa e que deviam colocar em prática em uma sociedade ainda fundamentalmente corporativa. A partir desses pressupostos, questionamos a natureza do poder Absolutista e a extensão dos mecanismos centralizadores no âmbito local. Para nós, a política intervencionista implementada pela Coroa portuguesa na América colonial não produz relações verticais e dicotômicas bem definidas, e sim uma nova articulação entre o central e o local, a partir da qual procuramos demonstrar que as organizações militares – as Ordenanças e os Auxiliares – se converteram em um dos lugares centrais de integração do Império com as particularidades locais. Quanto à estrutura do livro: a primeira parte do trabalho é constituída dos Capítulos 1 e 2; no primeiro, está a apresentação das forças militares: os Corpos de Ordenanças e de Auxiliares, e também uma análise sobre seus respectivos Regimentos, onde interpretamos as modificações introduzidas nesses regimentos a partir das Provisões expedidas. No Capítulo 2, para caracterizar melhor a natureza e as relações dos Corpos militares no nível local, procuramos evidenciar as relações que se estabeleciam entre os Corpos Militares e os outros centros de poder local, mais especificamente as Câmaras Municipais na Capitania do Rio de Janeiro. A Parte II do livro se inicia no Capítulo 3. Vamos rememorar a fundação da Colônia do Sacramento e tecer um histórico com o objetivo de analisar a importância política e econômica que essa colônia representou para a Coroa de Portugal. Situada no extremo Sul da América, em uma zona de intenso conflito devido à indefinição dos limites territoriais entre os domínios das Coroas de Espanha e de Portugal, a história de Sacramento é repleta de intensas disputas militares e diplomáticas que marcaram de forma intensa toda a política-militar das Cortes Ibéricas na segunda metade do século XVIII. Para traçar o percurso histórico da importância da Colônia do Sacramento, mantivemos como referência básica a Capitania do Rio de Janeiro, base de sustentação da ação militar na região Platina. Quanto à questão militar da Capitania do Rio de Janeiro, analisamos, ainda no INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Capítulo 3, os fatores que levaram ao recorrente desfalque de tropas, apesar da crescente importância estratégica do seu porto. O Capítulo 4 é destinado ao estudo da Capitania do Rio de Janeiro na qualidade de sede do vice-reino do Brasil. Analisamos o período do governo do Conde da Cunha, especialmente interessante por conter o início do estabelecimento das novas diretrizes militares impostas à Colônia pela Coroa. Tentamos determinar as conexões existentes entre a perspectiva adotada pela administração régia, que apontava para uma política de intensa militarização imposta à população civil masculina, e a crescente importância do papel das organizações militares – os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças – no seio da sociedade colonial. Passamos ao Capítulo 5, no qual é focalizado mais especialmente a Capitania de São Paulo. Apesar de perceber o grande destaque dado à utilização, nas diretrizes militares régias, dos “aventureiros paulistas”, com suas estratégias particulares de combate para a guerra então travada com a Espanha pela disputa dos territórios ao Sul da América, preferimos analisar o lugar que essas particularidades ocupavam no âmbito estratégico-militar traçado pela Coroa portuguesa para o enfrentamento com as forças adversárias. Também vamos examinar o recrutamento e suas diversas formas de resistência, com a atenção voltada para a forte presença de uma sociedade organizada de acordo com uma lógica fundamentalmente corporativa, contrária a certas pressões do centro. A Capitania de Minas Gerais está presente no Capítulo 6. Vamos analisar, principalmente, o paradoxo em que vivia essa Capitania: a defesa do ouro ou a dos domínios. Nosso estudo é realizado com a referência do bem comum, ou seja, a Capitania inserida no bem comum do Império português: por um lado, as exigências que se impunham devido ao êxodo de um grande efetivo de homens para a defesa dos reais domínios ao Sul; por outro, o bem comum no interior da Capitania, centro gerador da riqueza do Império. Observamos que o êxodo forçado de um grande contingente dos encarregados da extração do ouro e da vigilância contra os extravios era uma medida que, embora atendesse ao bem comum do Império, atingia e comprometia diretamente o Tesouro Real. A escolha da documentação utilizada em nossa pesquisa teve em vista o objetivo de trabalhar com as Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais na forma de conjunto, e demonstrar a intensa articulação militar delas com a defesa das regiões no extremo Sul do Estado do Brasil. Definimos como prioritária a correspondência ativa 24 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

INTRODUÇÃO

e passiva, em duas vertentes que se entrecruzam: a primeira, estabelecida entre capitães-generais e vice-rei, e a segunda, entre esses e a Metrópole; seja através de Ofícios e Instruções emanados da Secretaria de Negócios da Marinha e Ultramar, “Pareceres” e “Consultas” do Conselho Ultramarino, ou mesmo das respectivas respostas enviadas pelos administradores coloniais através de Cartas e Ofícios, que informavam à Coroa o andamento e as atividades de seus governos. Na primeira vertente de correspondência estão documentos encontrados na seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, seja na Coleção Pombalina ou nos Códices, ou ainda na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Na segunda, referente à correspondência ativa e passiva estabelecida entre os capitães-generais e o vice-rei com a Metrópole, os documentos selecionados pertencem ao Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. No Brasil, há uma enorme carência de uma bibliografia específica para o estudo das instituições militares do período colonial. Pudemos constatar tal fato na fase brasileira de nossa pesquisa, iniciada na cidade do Rio de Janeiro, especialmente quando verificamos como são raros os livros sobre esse tema em nossas bibliotecas. No sentido de sanar tal carência, devemos ressaltar a grata oportunidade viabilizada por uma “bolsa sanduíche” de seis meses de duração, patrocinada pela Capes, para os estudos e pesquisas em Lisboa. Duas fontes constituíram-se em imprescindíveis recursos de consulta: o Arquivo Histórico Militar de Lisboa, que dispõe de enorme acervo bibliográfico especificamente voltado para as questões militares, e a Biblioteca Nacional de Lisboa, com suas importantes publicações – livros, artigos de revistas especializadas e até teses inéditas – tanto da historiografia portuguesa mais antiga quanto da mais recente. As investigações bibliográficas realizadas nessas instituições, e também na Sociedade de Geografia de Lisboa, mostraram-se de imenso valor, uma vez que se complementaram na diversidade das obras encontradas. Temos a esperança de que esse trabalho venha a contribuir para uma melhor compreensão dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças, mostrando-os como centros de poder local, lugares de negociação entre os interesses da Metrópole e os da Colônia; com a valorização da importância das relações estabelecidas entre o poder central e as comunidades locais, procuramos evidenciar a relação de interdependência na qual esses dois níveis de poder completam seu sentido e significado. INTRODUÇÃO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Acrescentamos ainda que, para a publicação deste livro, foi mantido o texto original, o que explica a eventual ausência de uma bibliografia produzida a partir de então.

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INTRODUÇÃO

PARTE I

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CAPÍTULO 1 Apresentação das Forças

1.1. A Reordenação Militar: A Lei das Armas Em 9 de dezembro de 1569, D. Sebastião promulgou a “Lei das Armas”, firmando que sempre houvesse em seus reinos gente armada, a pé e a cavalo. Foi um avanço em relação à legislação criada por D. João III, em 7 de agosto de 1549, quando as obrigações militares da população do reino foram estabelecidas de acordo com as províncias, a propriedade territorial, os bens móveis, as categorias sociais e as profissões, mas não foi uma medida suficiente. Ainda era preciso imprimir naquela população, teoricamente armada, uma forma militar mais definida, com comandos, oficiais, exercícios periódicos e processos de instrução. Com esse objetivo, em 10 de dezembro de 1570, foi criado o “Regimento dos capitães-mores e mais oficiais das companhias de gente de cavalo e de pé, e da ordem que devem ter em se exercitarem ou, simplesmente, Regimento das Companhias de Ordenanças (Ordenanças Sebásticas)”.35 A reorganização militar do Reino de Portugal, incluindo terras além-mar, era uma necessidade urgente. A partir da segunda metade do século XVI, houve um considerável aumento da ação de corso36 nos mares e costas marítimas do Reino de Portugal, infestados de piratas franceses, ingleses e mouros,37 e era preciso dar maior proteção ao tráfego comercial português em portos e navios, bem como aos seus 35. Selvagem, Carlos. Portugal Militar. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d, p. 324-325. Coelho, José Maria Latino. História Militar e Política de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891, tomo III, p. 8-10. 36. O corso está submetido a um Estado que lhe outorgou a sua patente ou carta de corso e procede com autorização deste, dirigindo-se somente contra navios de outros Estados que sejam inimigos da sua pátria. [Guerreiro, Luís R. O grande livro da pirataria e do corso. Lisboa: Circulo de Leitores, 1996, p. 55] 37. Macedo, Borges de. História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, s/d., p. 103. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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domínios ultramarinos, onde o ataque de corsários colocava em risco a manutenção de várias possessões.38 Para a segurança do reino, também era imprescindível salvaguardar as fronteiras com a Espanha, então “a maior e mais rica potência europeia, isto é, aquela que podia mobilizar imediatamente soldados para várias frentes e que dominava os mares”.39 Portugal devia se precaver, tanto na disputa diplomática quanto na defesa militar, contra quaisquer manobras da Espanha, a fim de evitar o perigo de ser conquistado pelo Reino Espanhol. Embora as relações entre as Coroas estivessem se pautando por um cordial entendimento, inclusive estabelecendo alianças para a defesa comum contra investidas das novas potências marítimas representadas pelo corso e pela pirataria, as relações entre Portugal e Espanha não podem ser consideradas tranquilas.40 No norte da África, o avanço turco era outro problema aos planos estratégicos de D. Sebastião.41 A perda de poder nessa região, segundo Borges de Macedo, traria grandes ameaças para Portugal: além de deixar a segurança do tráfego transatlântico português em risco na costa do Marrocos e na Península Ibérica, provocaria uma considerável diminuição da influência portuguesa sobre a Espanha. Era indispensável que Portugal enfrentasse a tentativa de hegemonia turca nessa área.42 Todos esses fatores pesaram nas reformas militares implementadas pelo governo de D. Sebastião no Reino de Portugal e em seus domínios ultramarinos. A Lei das Armas, de 1569,43 era basicamente uma 38. Assinalam-se entre outros acometimentos sofridos nos domínios ultramarinos portugueses: a invasão do Rio de Janeiro, em 1555, pelos franceses, e a permanência destes até o ano de 1567; em 1566, uma frota de corsários franceses desembarcou em Funchal, tomando a vila de assalto, saqueando-a e fazendo prisioneiro o governador; na Índia, dentre os ataques sofridos por terra, podemos citar o ataque dos mouros ao forte de Assarim, em Baçaim, 1569, e o das tropas do Grão-Mogol de Delhi ao território de Damão, 1565. Os ingleses lançavam-se ao contrabando nas costas da Mina e da Guiné, e havia ainda a interminável guerra marítima com os corsários e os navios árabes de contrabando e de guerra. [Selvagem, Carlos, Portugal Militar. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d, p. 320.] 39. Idem, p. 112. 40. Idem, p. 103. 41. Macedo, Borges de. História Diplomática Portuguesa... Op. cit., p. 113. 42. Idem,p. 114-115. 43. “Lei das Armas de 9/12/1569”, In Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes da Formação Administrativa do Brasil, tomo I, IHGB. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 145-151. 30

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nova tentativa de impor aos vassalos, em função de uma determinada base censitária, a obrigação de ter cavalos e armas. Fazia parte de uma longa tradição de leis e tinha por objetivo aprimorar a Lei das Armas, de D. João III, criada 20 anos antes. Fundamentado sobre disposições anteriores e carente de conteúdo inovador, D. Sebastião afirmava, ao iniciar sua Lei das Armas: Faço saber aos que esta lei virem que, considerando eu quanto convem ao serviço de nosso senhor e bem de meus reinos e senhorios terem cavalos e armas todos meus vassalos que tiverem fazenda [conjunto de bens ou rendimentos] e idade para isso, e como assim o ordenaram os reis destes reinos meus antecessores, e particularmente El-Rei meu Senhor e avô que santa glória aja em huma ordenaçam que sobre isso fez no ano de 1549 (...).44

A Lei das Armas estabelecia deveres militares para todos os vassalos com idade entre 20 e 60 anos: deveriam dispor de armas e cavalos, ou somente armas, na razão direta dos bens ou rendimentos que possuíssem. Aos mais abastados, conforme o patrimônio e o montante de rendimentos, obrigava-se possuir um número variável de cavalos, lanças, espadas e arcabuzes; além disso, tinham que, às próprias custas, armar de arcabuzes um determinado número de homens a pé ou a cavalo.45 Aqueles com bens e rendimentos inferiores ao exigido para adquirir um cavalo, deviam se armar, na proporção das respectivas posses, de arcabuzes ou espingardas. Os despossuídos de bens ou rendimentos haviam de ter lança, meia-lança ou, ao menos, dardo.46 A lei também estipulava as penalidades de acordo com os rendimentos do infrator. Se um fidalgo, cavaleiro ou escudeiro estivesse em falta com as obrigações impostas, a Lei das Armas previa multas em dinheiro, e mais: “não gozará do privilégio que tiver pela qualidade de sua pessoa, enquanto não tiver o dito cavalo, e todas as ditas coisas”.47 Os moradores das Ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e os do Brasil, mesmo que possuidores de bens ou rendimentos compatíveis, eram isentos da posse de cavalos, mas obrigados a manter 44. Idem, item 1. 45. Idem, item 4. 46. Idem, itens 18 e 19. 47. Idem, item 2. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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armamento em dobro: “mais dous arcabuzes, um pique ou lança, e uma rodela ou adaga por cada cavalo que assim hoveram de ter”.48 Os prazos exigidos para o cumprimento da Lei das Armas eram diferenciados: para os que já dispusessem de cavalos, um ano (dezembro de 1570); para aqueles que viriam a ser submetidos à avaliação de bens, caso incidisse a obrigatoriedade da posse de cavalo(s), dois anos (dezembro de 1571); e todos os vassalos, indistintamente, teriam de providenciar as armas em um ano e meio (junho de 1571).49 Segundo a lei, a determinação do número de animais e armas para cada vassalo seria feita a partir da avaliação dos “bens de raíz, móveis e semoventes, dinheiro e valia de ofício de justiça ou fazenda”.50 Após o mês de julho de 1570, caberia ao Corregedor, Juiz de fora ou Ouvidor, assistidos por uma “pessoa de confiança” dos oficiais da Câmara, iniciar o processo de avaliação das “rendas e fazenda de cada uma pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja” que estivesse sob sua jurisdição.51 Para que a lei fosse devidamente cumprida, definiu-se uma fiscalização anual, no mês de maio, pelos alcaides-mores, corregedores, juízes de fora ou Ouvidores, em suas respectivas jurisdições. Aqueles que não estivessem conforme as exatas determinações legais seriam submetidos às penas estabelecidas.52 Na lei, D. Sebastião oferecia certas vantagens: “hei por bem que todo o homem, de qualquer qualidade ou condição que seja, que tiver cavalo de marca, seja escuso de ter pena vil, posto que nela seja condenado, assim ele como sua mulher e filhos que debaixo de seu poder estiverem”,53 com a exceção daqueles que fossem condenados por roubo, feitiçaria, alcovitagem, falsificação de moedas ou falso testemunho. O alvo do privilégio concedido pela lei não foi destinado aqueles que pertenciam as famílias nobres ou, mais especificamente, aqueles a quem a Lei das Armas se refere – fidalgos, cavaleiros e escudeiros – e muito menos entre os que pertenciam à plebe. De uma forma geral, o grupo beneficiado pelo privilégio situava-se em uma camada intermediária da sociedade, em uma certa faixa de rendimentos considerados 48. Idem, item 5. 49. Idem, item 11. 50. Idem, item 14. 51. Idem, item 13. 52. Idem, item 12. 53. Idem, item 16. 32

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suficientes para a aquisição de cavalo e armas: todos os que ganhavam 250 mil réis ou mais, inclusive os mais abastados, com renda além de um conto e meio de réis. O privilégio não englobava todos os integrantes da dita camada intermediária, apenas os que dispunham de bens e rendimentos suficientes para a posse de “cavalo(s) de marca”. Além de estabelecer a obrigatoriedade do armamento para todos os vassalos, a Lei das Armas buscava atrair aqueles elementos com maior poder aquisitivo, sem levar em conta a origem deles. Os grandes privilegiados eram justamente os que não pertenciam às famílias nobres; agora eles tinham acesso, pela riqueza, a uma ascenção social que, originalmente, não seria possível. Por exemplo: fazer parte da cavalaria, tradicionalmente alocada aos nobres, e ingressar “na parte mais reservada, naquela dos que não podiam ser castigados com pena vil”.54 A Lei das Armas, ao conferir aos ricos os privilégios de servir na cavalaria e usufruir do indulto, equiparava a riqueza à nobreza, fazendo com que os homens de determinada fortuna – aqueles que podiam possuir “cavalo de marca” –, passassem a pertencer a uma elite, e até a almejar um futuro enobrecimento.

1.2. A Reordenação Militar: O Regimento das Ordenanças Definidas as obrigações dos vassalos e das armas que haveriam de possuir de acordo com seu patrimônio, o passo seguinte era integrar esses homens e equipamentos em um corpo militar. Assim, em sequência à Lei das Armas, e com ela se articulando, “O Regimento das Ordenanças”, de 10 de dezembro de 1570, trazia a disposição legislativa apresentada por D. Sebastião com o objetivo de aprimorar a vida militar em Portugal e em seus domínios ultramarinos. Diz o rei, ao abrir seu Regimento: Faço saber que Eu fiz uma lei no mês de dezembro do ano passado de quinhentos sessenta e nove, sôbre os cavalos e armas, que hão de ter os meus vassalos, e para se com elas exercitarem, como cumpre a meu serviço, e bem de meus reinos e senhorios, e dos ditos meus vassalos.55

54. Magalhães, Joaquim Romero de, “A Guerra: Os Homens e as Armas”. In: História de Portugal. No Alvorecer da Modernidade, v. 3. Dir. José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 108. 55. Regimento das Ordenanças de 1570, item 1. In: Antonio Ferreira da Costa Verissimo. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, tomo IV. “Leis Pertencentes às Ordenanças”. Lisboa: Impressão Regia, 1816. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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O Regimento das Ordenanças, disposto em 46 itens, descreve minuciosamente a hierarquia de comando, o processo e o critério eletivo, as obrigações de cada posto, a composição das companhias, o adestramento militar, os exercícios periódicos e a organização territorial. Ao determinar obrigações militares gerais, declara recrutáveis todos os homens entre 18 e 60 anos de idade56 capazes de combater, não podendo estes, a partir de então, eximirem-se do serviço militar não remunerado. Todos os súditos deveriam estar em condições de pegar em armas, sempre treinados e aptos a servir na defesa da terra em caso de necessidade. O Regimento das Ordenanças dividia em Companhias a força militar existente nas cidades e vilas do reino. Cada uma seria comandada por um capitão, composta idealmente por 250 homens (minimamente por 100) e dividida em 10 esquadras de igual número sob a responsabilidade de um cabo. Como o reino havia sido dividido em capitaniasmores, semelhantes a concelhos, o comando geral das Companhias de Ordenanças seria entregue aos capitães-mores, únicos comandantes em cada distrito de recrutamento. Segundo o Regimento, os senhores dos lugares seriam os capitães-mores, “onde forem presentes”.57 No caso de ausência deles, que era o mais comum, os capitães-mores seriam eleitos pelos oficiais das Câmaras e, na expressão utilizada pelo Regimento, pelas “pessoas que costumam andar na governança”.58 O corregedor ou o provedor da Comarca onde estivesse a vila ou cidade deveria estar presente à eleição; era deles a responsabilidade de enviar ao monarca informações do eleito entre as “pessoas principais das terras” e de suas “partes e qualidades para o dito cargo”.59 Além das funções do comando militar, o capitão-mor, auxiliado por um sargento-mor de Ordenança também eleito em Câmara tinha a importante função de alistar a população sujeita ao serviço militar, o que deveria ser feito “com muita diligência e brevidade”. Para este fim, o capitão-mor deveria registrar em um livro especial os nomes de 56. De acordo com o item 9 do Regimento das Ordenanças de 1570, “nem dezoito anos para baixo, nem sessenta para cima, não parecendo ao Capitão-Mor que destas idades devem também entrar na Ordenança algumas pessoas, por terem aspecto e disposição para isso, porque neste caso entrarão”. In: Antonio Ferreira da Costa Verissimo. Op. cit., 1816. 57. Idem, item 1. 58. Idem, item 2. 59. Idem. 34

CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS

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todos os homens em quem recaíam as obrigações de posse de armas e integração nas Companhias de Ordenanças.60 Após o levantamento de moradores e respectivos armamentos, seriam formadas as Companhias de Ordenanças, com os seguintes oficiais: um capitão, um alferes e um sargento, e seus respectivos subalternos: um meirinho, um escrivão e 10 cabos de esquadra. O capitãomor seria assistido pelo sargento-mor, encarregado de auxiliá-lo e de verificar o cumprimento de suas ordens. A eleição de capitães e demais oficiais das Companhias de Ordenanças era feita em Câmara, na presença dos capitães-mores;61 no ato da posse, era prestado o “juramento aos Santos Evangelhos”,62 onde os oficiais afirmavam que obedeceriam às ordens do rei e não usariam para fins particulares os poderes públicos delegados por Sua Majestade. A instrução tática – exercícios de tiro, manobras de campanha etc. – era dirigida pelos oficiais de cada Companhia. Todos os domingos e dias santos havia exercícios, a pé e a cavalo, com prêmios para os que mais se destacassem e penalidades pecuniárias para os ausentes.63 Duas vezes por ano, todas as Companhias de Ordenanças deveriam ser passadas em revista geral pelos capitães-mores ou sargento-mores dos respectivos distritos. Eram inspecionados o grau de instrução, a disciplina, o estado do armamento etc.64 As despesas com pólvora e chumbo gastos nos exercícios de tiro dos arcabuzeiros e espingardeiros, e ainda outras, eram cobertas pelas rendas dos concelhos e pelo próprio fundo de cada Companhia, proveniente das penalidades pecuniárias.65 Os regulamentos para as povoações litorâneas estavam no capítulo “Vigias”, do Regimento das Ordenanças. Esses locais precisavam estar prevenidos contra as surpresas “das contínuas Armadas dos Cossários”.66 O serviço de vigilância era organizado em Companhias de Ordenanças e, por eleição em Câmara, eram escolhidos entre os moradores dois homens para vigiar de dia “nas pontas, que mais descobrirem ao mar” e três homens à noite “nos portos, calhetas, praias, ou pedras em que 60. Idem, item n. 9. 61. Idem, item n. 1. 62. Idem, item 6 e 7 63. Idem, item 16, 20 e 23. 64. Idem, item 22. 65. Idem, item 27. 66. Idem, item 33. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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parecer que os ditos inimigos poderão desembarcar”.67 Esses vigias eram os responsáveis por avisar o capitão-mor sobre casos de invasão de corsários e de qualquer aproximação de embarcação inimiga. Deveriam ter “sempre um arcabuz (...) com fogo aceso, para com ele darem sinal quando for necessário”.68 O Regimento ainda criava um corpo especial, diretamente subordinado ao capitão-mor, denominado de “Sobre-Roldas”, cuja função era fiscalizar os vigias diurnos e noturnos, por se considerar a vigilância “cousa de tão grande importância e em que é tão perigoso qualquer descuido”.69 O serviço militar geral e obrigatório instituído por D. Sebastião trouxe algumas conveniências para a Coroa portuguesa. Como as Ordenanças eram uma força militar não soldada, não haveria despesa com a manutenção de um eventual exército. A forma de recrutamento foi simplificada: ao estabelecer pelo Regimento o vínculo das Ordenanças com o órgão de administração local – as Câmaras Municipais –, D. Sebastião, segundo Joaquim Romero de Magalhães, consolidava uma forma de recrutamento militar que era uma excelente alternativa ao recrutamento feito por aqueles que tradicionalmente desempenhavam um papel fundamental e decisivo na constituição das forças militares: os senhores de vassalos.70 Ao delegar às Câmaras Municipais a autoridade de eleger aqueles que teriam o poder de conclamar os homens para a guerra, o Regimento fortalecia as elites locais, mais especificamente, os integrantes das vereações camarárias. D. Sebastião tinha por objetivo a redução do peso e do papel dos senhores de vassalos no processo de organização militar do reino.71 Nesse sentido, a supervisão da eleição e a nomeação dos postos das Ordenanças não eram dadas aos senhorios das terras onde não residissem. A mudança na forma de recrutamento militar, questão de grande importância estratégica, contribuiu para o processo de fortalecimento do poder central régio, que então seria exercido por meio de 67. Idem, item 34 e 36. 68. Idem, item 39. 69. Idem, item 41 e 43. 70. Magalhães, Joaquim Romero de. “A Guerra: Os Homens e as Armas”. In: História de Portugal. No Alvorecer da Modernidade, v. 3. Dir. José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 110. 71. Idem.. 36

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uma rede de poder local diretamente subordinado ao rei, formada pelas Câmaras Municipais. Houve um reforço nas ligações formais entre o aparelho régio e as localidades por intermédio da elite local. Devemos considerar que “em termos administrativos, se durante a Idade Média o poder de decisão local emanava da influência que alguém (ou um grupo) desfrutava sobre uma aldeia, o domínio local passou gradualmente a depender cada vez mais do grau de influência que esse alguém usufruía junto à Coroa”.72 Desse modo, a Câmara Municipal assumia o papel de interlocutora confiável, atuando como uma força mediadora entre o distante poder régio e as populações locais. Uma comunicação estabelecida e viabilizada mediante um “sistema de administração intermédia”,73 como classifica Antonio Manuel Hespanha, “em que a Coroa deixava permanecerem em funcionamento todas as estruturas políticas periféricas, assegurando através delas a realização dos seus objetivos políticos globais”.74 Essa intermediação não deve ser vista como uma simples correia de transmissão dos ditames do poder central: “o complexo sistema político-administrativo local distingue-se pela sua capacidade reguladora, quer quando servia de intermediário em relação ao poder central, quer quando influenciava, pelas suas próprias competências e ações mediadoras, a ação Estatal”.75 Por essas razões, as Ordenanças assumem, a partir do Regimento de 1570, um papel de grande relevância local, com uma rede de influência da maior importância “pois os capitães-mores e os capitães das companhias locais ficavam com um poder imenso de escolha dos aptos e não aptos para o serviço militar”.76 Apesar da ligação institucional com as Câmaras, as Ordenanças vão se converter em canais de poder local ou periférico, isto é, pontos de encontro e colaboração entre o centro

72. Vidigal, Luis. “No Microcosmo Social Português”. In: O Município no Mundo Português. Seminário Internacional. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, p. 140. 73. Hespanha, António Manoel. As Vesperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal Século XVII. Coimbra: Livraria Almeida, 1994, v. I, p. 381-382. Apud Costa, Fernando Dores. “Os Problemas do Recrutamento Militar no Final do Século XVIII e as Questões da Construção do Estado e da Nação”. In: Análise Social. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1995, v. XXX, p. 124. 74. Idem. 75. Vidigal, Luis, “No Microcosmo Social Português”, Op.cit., p.143. 76. Magalhães, Joaquim Romero de, “A Guerra: Os Homens e as Armas”, Op.cit., p.110. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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e as localidades, bem como de negociação de conflitos e divergências inerentes à densa rede de relações entre aqueles níveis de poder.77 Além de ampliar o poder de atuação dos governos municipais, concedendo-lhes relevantes competências no domínio militar, o Regimento das Ordenanças reforçava a autoridade local. Não só por delegar às Câmaras Municipais o poder de escolha, sob determinados critérios, daqueles que viriam a ocupar os altos postos do oficialato no Corpo das Ordenanças, mas também por estabelecer um instrumento de nobilitação: “Para que os capitães das companhias, e os alfferes, e sargentos delas folguem mais de servir os ditos cargos, e por lhes fazer mercê, hei por bem, que cada um deles goze e use do privilégio de Cavaleiro, posto que o não seja.”78 Luiz da Silva Pereira Oliveira, em Privilegios da nobreza e fidalguia de Portugal, no capítulo chamado “Das pessoas que gozão neste reino do privilégio da nobreza, posto que a não tenhão”,79 cita vários exemplos em que o poder régio concede esse privilégio. Entre eles, aquele proveniente do desempenho dos postos das Ordenanças, mais especificamente, o “privilégio de cavaleiro, posto que o não seja”. Oliveira afirma que os contemplados “gozão sim do privilegio de nobres, mas não adquirem nobreza. He largo o espaço que ha entre o Nobre, e o privilegiado”. Apesar de não serem juridicamente nobres, os oficiais de patente dos Corpos das Ordenanças adquiriam, pela mercê régia, uma “nobreza” denominada de “civil ou política”, segundo a qual “aquelle a quem o rei concede fruição do privilégio de nobre não fica por isso sendo Nobre”, este só pode ser por meio de nobreza hereditária ou natural. António Manuel Hespanha, em seu estudo sobre as classificações na sociedade do Antigo Regime em Portugal, também distingue a nobreza “natural” da “política”: na primeira, a pertença ao estatuto decorre da natureza das coisas e prova-se pelos diversos modos de manifestação da tradição, é também transmissível por geração. Já a nobreza “política” decorre, não da natureza mas de normas 77. Pujol, Gil Xavier, “Ceéiantralismo e Localismo? Sobre as relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europs dos Séculos XVI e XVII” In Penélope Fazer e Desfazer a História, n. 6, 1991, p.136. 78. Regimeto das Ordenanças, Op.cit., item 44. 79. Oliveira, Luiz da Silva Pereira. Privilegios da Nobreza e Fidalguia de Portugal. Lisboa: Officina de João Rodrigues Neves, 1806, p. 164. 38

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do direito positivo, dos costumes da cidade. Desse tipo é a nobreza que se obtém pela ciência, pela milícia, pelo exercício de certos ofícios.80

A nobreza, como condição adquirida, se configura “pelo desempenho de funções nobilitantes (pertencer ao corpo de oficiais do exército de primeira linha ou das ordenanças, à magistratura ou simplesmente a uma câmara municipal etc.)”.81 Essa “nobreza” de caráter político há muito tempo estava associada ao exercício de cargos e funções, tanto em Câmaras Municipais quanto em outras instituições,82 e as Ordenanças passaram a dispor das prerrogativas dessa “nobreza” a partir do Regimento de 1570. Aqueles que se candidatavam a ocupar tais cargos e funções, civil ou militar, como nos casos em estudo, situavam-se normalmente nos níveis superiores de uma camada intermediária da sociedade, vivendo “de seus bens e rendas” de origem fundiária.83 Como disse Vitorino Godinho, formavam um grupo que se arroga a nobreza – e que, em muito casos, usufrui mesmo dos privilégios desse estatuto – que podemos enquadrar as “nobrezas camarárias”, nessa zona de contato entre o peão e a pessoa de “mor qualidade”.84

Da mesma zona intermediária saíam os que tinham condições de ocupar postos de comando nas Ordenanças. Muitas vezes, a escolha desses oficiais militares recaía sobre os que “costumam andar na gover80. Hespanha, António Manuel. História de Portugal Moderno – Político e Institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 43. 81. Monteiro, Nuno Gonçalo. “Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia”. In: José Matoso (dir.). História de Portugal, v. IV. O Antigo Regime (1629-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 43. 82. Por exemplo: o acesso ao hábito de uma Ordem Militar, a aquisição do título de Familiar do Santo Ofício, a integração em Misericórdias ou em Irmandades. 83. Com relação à ‘nobreza camarária’ dos Seiscentos, afirmará Joaquim Romero de Magalhães: “Os homens nobres [das Vereações] eram proprietários rurais, tinham lagares e mínhos, vendiam os produtos das suas terras e maquias se as tivessem”, em O Algarve Econômico. 1600-1773. Coimbra, 1984, t. 1, p. 873, citado por Luis Vidigal “No Microcosmo Social Português”. Op. cit., p. 129. 84. Godinho, Vitorino Magalhães. A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa, 1971. Citado por Luis Vidigal “No Microcosmo Social Português”. In: O Município no Mundo Português. Seminário Internacional. Coimbra: Edição Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, p. 121. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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nança”, provocando o acúmulo de poderes municipais e militares em um mesmo homem, fator que servirá ao reforço dos governos municipais, conferindo-lhes maior poder de mando e melhor controle sobre a população.85 A “nobreza” local, por não possuir herança que lhe garantisse uma posição proeminente no seio da sociedade aristocrata, buscava ascender na hierarquia social através dos cargos da administração municipal e/ou de patente das Ordenanças, fontes de prestígio e fatores legais de nobilitação (nos casos em estudo). Por essas vias de ascenção social, a elite local se afirmava em nível político e/ou militar, articulada com o poder central que a legitimava.

1.3. A Provisão das Ordenanças Em 1574, D. Sebastião foi compelido a fazer alterações, esclarecimentos e complementações em algumas das disposições impressas na Lei das Armas, de 1569, e no Regimento das Ordenanças, de 1570. As modificações implementadas pelo monarca foram reunidas na Provisão das Ordenanças, motivada pela “experiência [que] foi mostrando que era necessário para melhor execução do dito Regimento e para se conservar a Ordenança nos ditos reinos, como cumpre a meu serviço, e ao bem deles”.86 Para viabilizar os propósitos de armar a população e organizá-la em Corpos de Ordenanças, era necessário solucionar algumas dificuldades que diziam respeito, essencialmente, ao “grande inconveniente e opressão para o povo” causados por determinadas imposições legais. Portanto, D. Sebastião pretendia, com as alterações efetivadas pela Provisão das Ordenanças, reduzir os constrangimentos que aquelas obrigatoriedades acarretaram aos vassalos. A ordem do rei era que “(...) este negocio da Ordenança se faça o mais a contentamento de todos, e com menos escandalo que puder ser”.87 Tendo tomado conhecimento da “opressão e trabalho ao povo”88 que resultava da obrigação de todas as Companhias de Ordenanças 85. Magalhães, Joaquim Romero de. “A Guerra: Os Homens e as Armas”. Op. cit., p. 110 86. Provisão das Ordenanças de 1574, item 47. In: Antonio Ferreira da Costa Verissimo. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, tomo IV. “Leis Pertencentes às Ordenanças”. Lisboa: Impressão Regia, 1816. 87. Idem, item 49. 88. Idem, item 48. 40

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comparecerem a três alardos gerais por ano – revista de tropas –, D. Sebastião ordenou a extinção do fixado pela Lei das Armas, mantendo apenas os dois alardos anuais estipulados pelo Regimento das Ordenanças de 1570.89 Os exercícios obrigatórios de cada Companhia, realizados durante dias santos e domingos, não foram modificados, assim como as penalidades impostas aos ausentes, passíveis de multa, prisão e até mesmo degredo de seis meses. O rei estava ciente de que as obrigações militares não estavam sendo de fato cumpridas, mas descartou a possibilidade de ser uma imposição excessiva. Os envolvidos no descumprimento da ordem régia eram justamente os que tinham a responsabilidade de zelar pelo bom desempenho das determinações do Regimento das Ordenanças: os capitães-mores, os capitães das companhias e demais oficiais. A prática demonstrava que escusam algumas pessoas de ir na Ordenança, que conforme o Regimento devam ir nela, ou lhes levam peitas, ou dádivas, ou fazem em seus cargos outras cousas que não devam, e dão opressão ao povo, e que há disto escandalo.90

Esse exemplo evidencia a amplitude do poder dos capitães-mores e demais oficiais em suas localidades. O conhecimento detalhado da população militarmente útil a sofrer a imposição do treino militar representava um considerável poder, que era largamente utilizado. Como o exemplo acima mostra, esse poder nem sempre seria exercido para o cumprimento das ordens régias, consideradas excessivas na esfera local; os oficiais, valendo-se da “opressão do povo”, utilizavam tal poder em benefício próprio, inclusive como fonte de renda. Os oficiais das Ordenanças que aceitassem suborno em troca da dispensa dos exercícios militares, ou que abusassem de alguma outra forma do poder delegado pelo rei, cometendo infrações ao Regimento, seriam punidos. A Provisão das Ordenanças de 1574 determinou que os corregedores ou provedores das comarcas, quando informados desses desvios de conduta por parte dos oficiais das Ordenanças, deveriam convocar testemunhas para a averiguação do fato. Se os culpados fos-

89. Idem, item 52. 90. Idem, item 64. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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sem alcaides-mores, o processo poderia até ser enviado ao monarca para o estabelecimento das punições. Um outro encargo militar pesava sobre os homens válidos de todas as camadas sociais: a obrigação de possuírem armas a expensas do próprio patrimônio. Porém, cinco anos após essa determinação da Lei das Armas, de 1569, a avaliação de bens ainda não havia sido feita em muitos lugares do reino. Segundo a Provisão das Ordenanças, essa demora devia-se ao fato de os corregedores ou provedores das comarcas, a quem tal tarefa fora entregue, estarem “ocupados noutra diligência, e cousas de meu interesse, e da obrigação de seu cargo”.91 Ao que parece, o rei não considerava a demora no trabalho de avaliação de bens como uma expressão de resistência, consequência de possíveis opressões sofridas pelos moradores. Com encargos e penalidades mantidos, o que veio a ser alterado pela Provisão foram as autoridades responsáveis pela tarefa, que seriam então os juízes de fora e, na falta destes, os capitães-mores das Ordenanças. O prazo de seis meses92 para que os vassalos providenciassem suas respectivas armas também foi adiado. As Ordenanças ainda geravam outros inconvenientes, mas a maioria podia ser facilmente solucionada porque não implicava em alteração substancial dos princípios básicos do Regimento ou da Lei das Armas. Como o caso dos “criados reais e outras pessoas de qualidade” que, por pobreza, não podiam sustentar cavalos e eram vítimas de constrangimentos resultantes do fato de os “Capitães-mores obrigarem as tais pessoas a irem na Ordenança a pé, juntamente com outra gente do povo”.93 Como em qualquer organização social ostensivamente hierarquizada, todos aqueles com algum peso social e/ou mesmo econômico, recusavam-se a participar ao lado dos que eram ainda menos que eles, e ficavam ressentidos na desonrosa classificação junto à gente baixa, ao popular, vulgo. Nessa situação, apresentaram queixa ao rei, que prontamente os atendeu, determinando que os “criados meus, e infantes, ou outras pessoas, que sejam escudeiros de linhagem, e daí para cima”, fossem agrupados em esquadras especiais, que deveriam estar dispostas “sempre no melhor e mais honrado lugar da Companhia”,94 comandadas pelo próprio capitão. 91. Idem, item 53. 92. Idem. 93. Idem, item 49. 94. Idem. 42

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Porém, definidas as seleções no Corpo das Ordenanças, não deveriam os “criados reais e outras pessoas de qualidade”, ainda que tentados, almejar outras posições, como as da Cavalaria, “por não terem a quantia da fazenda que a Lei dispõe” para fazer parte da tropa estimada como a mais nobre do corpo militar. No final deste mesmo item da Provisão, o rei também advertia que não seria incluído nas Companhias de Ordenanças de Cavalaria quem tivesse cavalos utilizados no transporte de carga, esses seriam “obrigados a ir na Ordenanças de pé, como se não tiveram cavalos”.95 Em outros itens da Provisão, D. Sebastião faz outras alterações: modifica a maneira de arrecadação das penas anteriormente dispostas pelo Regimento e detalha as formas que teriam os capitães para impor condenações pecuniárias aos oficiais e soldados das respectivas Companhias; estabelece que nas vilas onde houvesse apenas uma Companhia de Ordenança ficaria suprimido o posto de capitão-mor, a não ser que, sobre o mesmo, recaísse também o de alcaide-mor; substitui o posto de sargento-mor pelo de sargento da Companhia; determina que tabeliães, escrivães, oficiais de justiça e de fazenda não mais ocupem postos de Ordenanças, mas sim “outras pessoas desimpedidas e sem ofícios”; exige que os capitães-mores obriguem os soldados das Companhias de Ordenanças sob sua jurisdição a sempre ter pólvora, especialmente nas povoações litorâneas, e os penalize pelo descumprimento da ordem com as mesmas punições aplicáveis aos faltosos nos exercícios das Ordenanças.96 Sem dúvida, a Provisão de 1574 fundamentava-se na “experiência [que] foi mostrando o que era necessário para melhor execução” do Regimento das Ordenanças e da Lei das Armas. O rei buscava resolver algumas particularidades práticas, para assim obter maior eficácia e controle na execução das ordens expressas. Contudo, a pretensão régia era filtrada pelos oficiais de Ordenanças, e o sentido das exigências da Provisão poderia ser desvirtuado em função da realidade de cada vila.

1.4. As Tropas de Auxiliares A restauração da independência de Portugal, no ano de 1640, após o período de dominação espanhola, levou o reino a novas situações de guer95. Idem. 96. Idem, item 57. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ra, fossem na defesa contra a ameaça espanhola ou na manutenção de seus domínios ultramarinos. A primeira providência militar de D. João IV foi criar, por decreto de 11 de dezembro de 1640, um novo órgão: o Conselho de Guerra, que centralizaria a supervisão de assuntos militares do reino. Competia ao Conselho a função de emitir pareceres sobre os assuntos militares, inclusive os meios materiais de defesa, a serem apresentados ao rei.97 Para as questões de reparação e artilhamento das fortalezas fronteiriças, D. João IV instituiu, a 28 de dezembro, o cargo de “tenente-general da Artilharia” do reino, com jurisdição tanto sobre a fortificação e defesa das praças, quanto sobre o material de guerra: armas, munição e artilharia.98 Dois anos e meio depois, em decreto de 14 julho de 1643, foi criado o Conselho Ultramarino, que funcionava junto ao monarca. Órgão especializado nas questões ultramarinas do governo, deveria consagrar-se ao estudo, à execução, à fiscalização e à jurisdição contenciosa,99 assim como à supervisão geral de matérias e negócios. Deveria também propor ao rei a nomeação de autoridades e oficiais para o Ultramar100 e responder pelo envio de cartas, provisões, despachos e patentes de vice-reis, governadores e capitães.101 A partir de sua criação, o Conselho Ultramarino foi o órgão que centralizou todos os assuntos militares do Brasil e dos outros domínios portugueses no além-mar.102 D. João IV restabeleceu as principais leis militares de D. Sebastião: a Lei das Armas de 1569, o Regimento das Ordenanças de 1570 e a 97. Selvagem, Carlos. Portugal Militar. Op. cit., p. 383-384; Coelho, J. M. Latino. História Militar e Política de Portugal. Op. cit., p. 16-17. 98. Idem. 99. Serrão, Joel. Dicionário de História de Portugal, v. VI. Porto: Editora Figueirinhas, [s./d.]. 100. Com relação à escolha dos vice-reis e governadores da Índia e do Brasil, ver Nuno Gonçalo Monteiro “Tragetórias sociais e governo das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”. In: O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguêsa (séculos XVI-XVIII). Org. João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 256-258. 101. Idem. 102. Portugal sofreu invasões em seus domínios coloniais, principalmente de holandeses, desde a união ibérica até o período após a Restauração do Reino. Como bem assinala Borges de Macedo sobre a difícil situação dos domínios portugueses após 1640: “a situação do Brasil, em parte ocupado por holandeses, que, igualmente, atacavam os portugueses, no mar, no Oceano Índico e em África”, onde conquistaram Luanda, em Angola, por ser a cidade um importante elo do sistema econômico do Brasil, como principal mercado dos escravos necessários à agricultura. [Macedo, Borges de. História Diplomática Portuguesa. Op. cit., p. 169.] 44

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Provisão sobre as Ordenanças de 1574, mas era imprescindível providenciar um exército de caráter permanente. Antes de 1640, mesmo durante o reinado de D. Sebastião, as forças militares existiam apenas em função de uma situação particular de defesa ou ataque, isto é, para uma campanha específica, dissolvendo-se em seguida.103 O primeiro exército permanente de Portugal104 foi organizado após as cortes gerais de janeiro de 1641, quando foi aprovado um imposto extraordinário para as despesas de guerra e manutenção de um exército de primeira linha. Em agosto de 1645, o rei instituiu o Regimento de Fronteiras, destinado às tropas regulares, estipulando o pagamento de soldos, os encargos da alimentação, as concessões de licenças, os castigos, além das normas regulares de promoção na hierarquia militar de acordo com a senhorilidade e as capacidades demonstradas etc.105 Para assegurar o recrutamento e unificar a ação militar do reino, o território foi repartido em circunscrições de diferentes tamanhos: as províncias foram divididas em Comarcas, e estas em Companhias. D. João IV instituiu governadores para as Províncias e Comarcas, sendo que cada Comarca disporia de um capitão-mor, um sargento-mor e dois ajudantes; conforme estabelecido pelo Regimento das Ordenanças de 1570, cada Companhia contaria com um capitão e demais oficiais. Assim, no reinado de D. João IV, as Ordenanças conservaram basicamente a mesma organização interna que lhes imprimira D. Sebastião.106 Mediante a opressão causada aos vassalos pelos sucessivos recrutamentos indistintamente efetivados entre todos os homens válidos para lutarem nas fronteiras, a 7 de janeiro de 1645, D. João IV, com o intuito de “aliviar a meus vassalos de todas as molestias”,107 cria um Corpo militar não remunerado, denominado de Auxiliar. Apesar de civis, as Tropas de Auxiliares seriam treinadas e armadas de modo a ser, como segundo escalão da força militar, um contingente preparado para auxi103. Costa, Fernando Dores. “As Forças Sociais Perante a Guerra – O Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, V. II, s/p. (no prelo). 104. Selvagem, Carlos. Portugal Militar. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d, p. 384. 105. “Regimento de Fronteiras, Lisboa, 29/8/1645”. In: Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa. Op. cit., p. 275-288. 106. Coelho, José Maria Latino, História Militar e Política de Portugal, Imprensa Nacional, Lisboa, 1891, tomo III, p. 17-18. 107. “Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645”. In: Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa compilada por José Justino de Andrade e Silva, volume de 1640 a 1647, p. 271-272. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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liar a Tropa de Linha. Segundo as ordens régias, uma força “disciplinada e pronta para que havendo ocasião em que seja precisamente necessário valer-me dela”,108 mas composta apenas “de gente desobrigada e capaz de se poder ocupar em meu serviço”, diminuindo a opressão acima mencionada.109 A população do reino foi militarizada em três escalões de Tropas: o primeiro, as Regulares, ou pagas; o segundo, as Auxiliares; e o terceiro, as Ordenanças. A seleção dos componentes foi feita a partir dos seguintes critérios: as Tropas Regulares, ou de linha, constituídas por soldados pagos, eram formadas por filhos segundos das famílias, com exceção dos de mãe viúva e pais lavradores, que comporiam as Tropas Auxiliares110 junto aos casados em idade militar; todos os homens válidos restantes estariam inscritos nas Companhias de Ordenanças, sendo submetidos a treino militar e a duas mostras gerais por ano, para que a população militarmente útil se mantivesse habituada às ordens de combate. As Tropas Regulares, ou pagas, eram as que se destinavam especialmente às operações de grande guerra, incluindo as manobras nas fronteiras. Entretanto, as tropas de Auxiliares também eram obrigadas a acudir às fronteiras para as quais estivessem designadas quando fosse necessário; nesse caso, enquanto nelas permanecessem mobilizadas, receberiam soldo e munição como os soldados pagos, “pagando-se-lhe mui pontualmente seus socorros”.111 As tropas de Ordenanças foram isentas de servirem nas fronteiras ou praças de guerra em Alvará de 13 de março de 1646,112 ficando restritas, basicamente, à participação nas pequenas guerras locais. Porém, em casos de perigo evidente, “que conhecidamente se não possa rebater com soldados pagos e Auxiliares”,113 poderiam ser obrigadas a guarnecer as praças que lhes fossem mais vizinhas. A organização dos dois primeiros escalões das tropas era baseada no sistema militar da Espanha, a grande potência militar da época, cuja 108. Idem. 109. Idem. 110. Martins, Ferreira, História do Exército Português, Editorial Inquérito, Lisboa, 1945, p. 145. 111. “Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645” Op. cit, p. 271-272. 112. Alvará de 13/3/1646. In: Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa compilada por José Justino de Andrade e Silva, volume de 1640 a 1647, p. 313. 113. Idem. 46

CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS

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estrutura havia sido estudada por oficiais portugueses. Dessa forma, os Auxiliares constituíam-se em Terços,114 posteriormente denominados de Regimentos, com cerca de 600 homens, que se subdividiam em 10 companhias de 60 homens. Cada Terço de Auxiliar, de cada Comarca, era comandado por um mestre de campo; os homens eram instruídos e disciplinados por oficiais hábeis e experimentados da Tropa de Linha: sargentos-mores e ajudantes. Os oficiais de patente das Companhias eram o capitão, o tenente e o alferes; seus subalternos, o sargento, o furriel, o porta-estandarte, no máximo quatro cabos por Companhia e, finalmente, soldados.115Por um lado é possível perceber que no reinado de D. João IV se insinua uma preocupação com a questão do saber especializado no exercício de funções militares, por outro vê-se que o fato não gerou mudança na natureza dos postos de comando, ainda reservados aos “principais da terra”. No caso dos Terços de Auxiliares, a questão da especialização é manifesta pela definição de que os postos de sargento-mor e ajudante seriam exclusivamente ocupados por aqueles que servissem nas Tropas de Linha, isto é, oficiais detentores de um saber técnico específico, habilitados a conduzir e treinar devidamente os soldados. Os governadores das províncias eram os responsáveis pela indicação ao rei dos mestres de campo e capitães das companhias, postos de comando dos Terços de Auxiliares. Escolhidos pelo próprio rei, os governadores estavam entre as pessoas mais notáveis e de maiores recursos que houvesse em cada Comarca, assim porque delles se deve esperar que, por serem de qualidade e afazendados, acudam com maior vontade a defensão da sua Patria, e meu Serviço, como por assentarem melhor nellas as mercês que espero fazer aos que assim me servirem.116

114. A expressão Terço tem origem na Alemanha e na Itália, que dividiam a infantaria em frações. Enquanto na Alemanha, essas tropas eram chamadas de regimentos e compostas por três mil homens, na Península Ibérica, eram chamadas de coronelias ou terços por contarem com mil homens, a terça parte do regimento alemão. In Coelho, José Maria Latino, História Militar e Política de Portugal – Desde os Fins do XVIII século até 1814, tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891, p. 15. 115. Idem. 116. “Criação dos Soldados Auxiliares”. Lisboa, 7/1/1645. Op. cit, p. 271-272. CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Além de dispor de atributos à altura das régias mercês, eram considerados os mais capazes a exercer o comando. Como observa Nuno Gonçalo Monteiro: Supunha-se que os membros das famílias localmente mais prestigiadas e antigas dispunham de uma autoridade natural, ou seja, sedimentada pelo tempo, que mais facilmente seria acatada pelos de baixo. Pensava-se também que os mais nobres e ricos seriam igualmente os que davam maiores garantias de isenção (desinteresse) e independência no desempenho dos seus oficios, no sentido de poderem viver para eles sem deles viverem.117

Assim, com o intuito de atrair os mais prestigiados habitantes das Comarcas ao real serviço, o rei concedia valiosas regalias, honras, liberdades, isenções e franquezas aos oficiais do Terço de Auxiliares: a patente e os privilégios de pagos. Anunciava o rei: mandarei passar patentes assignadas por mim – e além de gozarem de todas as honras e preeminencias de capitães pagos, lhes terei por particular serviço o que nesta forma me fizerem, para as occasiões de sua honra e accrescentamento.118

Pelo Alvará dos Privilégios dos Auxiliares, de 24 de novembro de 1645, além de usufruir de todos os privilégios do estanque do tabaco, os oficiais agraciados pelo rei estavam isentos de todo e qualquer encargo ou contribuição, inclusive alardos das Ordenanças.119 117. Monteiro, Nuno Gonçalo. “Poderes Municipais e Elites Sociais Locais”. In: História de Portugal – O Antigo Regime, v. 4. Dir. José Mattoso. Coord. António Manuel Hespanha. Editorial Estampa, 1994, p. 324. 118. “Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645” Op. cit, p. 271-272. 119. De acordo com o Alvará de 24 de novembro de 1645, eram os seguintes os privilégios dos Auxiliares: gozavam da isenção de contribuir com peitas, fintas, talhas, pedidos, serviços, empréstimos e outros encargos das Câmaras Municipais; nem lhes tomem casas, adegas, estrebarias, pão, vinho, palha, cevada, lenha, galinhas e outras aves, e gados e assim bestas de cella , não as trazendo a ganho, usufruiam de todos os privilégios do estanco do tabaco; os que tivessem um ano de serviço nas fronteiras poderiam eximir-se de para ali retornar; os que mais se distinguissem dentro de suas funções poderiam filiar-se aos foros da Casa Real e enquanto alistados gozavam das regalias concedidas às tropas remuneradas. “Alvará dos Privilégios dos Auxiliares, de 24/11/1645”. In: Systema ou Collecção dos Regimentos Reais, compilados por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, tomo V, Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1789. 48

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Durante o reinado de D. Sebastião, as normas de recrutamento foram estendidas para todo o reino, abrangendo os homens válidos dos 18 aos 60 anos de idade, armados segundo sua origem e riqueza. Para alcançar esse objetivo, D. Sebastião promoveu a participação dos órgão que formavam uma rede de poder por todo o território do reino: as Câmaras Municipais. Como precisava fortalecer o poder central régio nas questões militares, o rei delegou a esse antigo e influente órgão de administração local um papel relevante na organização militar do reino, vinculando-o institucionalmente, pelo Regimento de 1570, às novas forças militares, então chamadas de Ordenanças. Após o fim do domínio dos Felipes,120 no reinado de D. João IV, a necessidade de recomposição do poder do Estado, sua autoridade e capacidade de defesa, conduz à reestruturação da força militar. Nesse contexto de necessária acentuação do poder real, as novas forças militares – as Tropas de Linha e mesmo as Auxiliares – surgem diretamente vinculadas ao rei. Já os Terços de Auxiliares, objetos de nosso interesse, formam uma força militar que se constitue autonomamente, isto é, sem qualquer vínculo com outro centro de poder local. No que se refere às questões de defesa e recrutamento militar, os Terços de Auxiliares representaram uma sensível mudança na forma de relação do poder central: como os oficiais que ocupavam os mais altos postos das Tropas não eram escolhidos pelos homens das governanças, o esquema militar não dependia mais exclusivamente das Câmaras Municipais para ser acionado. O poder central podia mobilizar diretamente as elites locais que estivessem nos postos de comando das novas forças criadas, sem necessitar de mediação das Câmaras, e é provável que essa mudança tenha produzido um reequlíbrio de forças nos núcleos das elites locais. O Regimento das Ordenanças de 1570 inseriu as Câmaras Municipais em uma nova correlação de forças, estabelecida com novos polos de autoridade militar. O fato provocou repercussão social porque as Câmaras ganharam um poderio considerável na esfera local, não só por passarem a deter a exclusividade de escolha dos oficiais de Ordenanças, mas principalmente por disporem de um cobiçado instrumento de nobilitação, cujos portadores eram agraciados com os privilégios de Cavaleiro. Analisando a relevância social do poder conferido às Câma120. De 1580 até 1640, o rei da Espanha passou a ser, ao mesmo tempo, rei de Portugal, dando origem ao período conhecido como “União Ibérica” CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DAS FORÇAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ras, afirma Joaquim Romero, “essa feição militarizada enxertada nos municípios contribuiu de um modo decisivo para a nova importância que eles obtêm no controle da população”.121 Na nova disposição militar, as Câmaras Municipais, que antes detinham o controle da força militar – as Ordenanças – no nível local, deviam partilhar esse poder com órgãos que não estavam vinculados a elas: os Corpos Regulares e de Auxiliares. Nesse sentido, as Câmaras Municipais, e seus oficias de Ordenanças, perderam o enorme poder resultante da exclusividade de ação militar. Os oficiais de Auxiliares recebiam a indicação para a concessão real de privilégios dos próprios governadores de província, sem necessidade de mediação da Câmara Municipal. Mesmo o recrutamento não era mais uma tarefa apenas dos oficiais de Ordenanças: os oficiais de Auxiliares eram os responsáveis pelo alistamento de seus próprios Corpos militares. Em muitos casos, as listas de Ordenanças nem foram levadas em conta, embora fossem o lugar onde deveriam estar registrados os nomes de todos os homens incumbidos da obrigação militar. Apesar disso, tanto as listas de Ordenanças quanto os oficiais desses Corpos continuaram a ser consideráveis instrumentos de recrutamento. A reestruturação militar, implementada após 1640, fez emergir uma nova rede de poder militar, produzindo repercussões na estrutura social e no ordenamento dos poderes locais. As novas forças militares, sem a influência direta das Câmaras, usaram todo o alcance do poder de que dispunham para interferir no nível local, não somente no domínio militar, mas também como observou Joaquim Romero, no que esse poder representava na vida social. À medida que o poder ia se centralizando, o papel das Câmaras Municipais no âmbito militar, especificamente nas Ordenanças, tendia a ser progressivamente reduzido. No próximo capítulo, veremos importantes alterações efetuadas no Regimento das Ordenanças, durante o reinado de D. João V, que restringiram a atuação das Câmaras no processo de eleição dos oficiais das Ordenanças.

121. Magalhães, Joaquim Romero de. “A Guerra: Os Homens e as Armas”. Op. cit., p. 110. 50

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CAPÍTULO 2 Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII

2.1. As Concepções Corporativa e Voluntarista A hipótese básica na análise da segunda metade do século XVIII na América colonial apresenta a existência simultânea de duas diferentes concepções de sociedade e poder que, inseridas na prática do jogo de interesses, são constantemente compelidas a dialogar entre si na busca de consonâncias possíveis: as concepções corporativa e voluntarista. A concepção corporativa, fruto de uma visão organicista do poder político, caracterizava a estrutura social do Antigo Regime, em que o poder régio se distribuía pelos centros de poder local de cada comunidade. Esses centros constituíam-se nos principais agentes de ordenamento político-administrativo. Um dos princípios orientadores da prática política do Estado Absolutista português, até meados do século XVIII, postulava a delegação de poderes militares, administrativos e políticos como um dos fundamentos sobre os quais repousavam uma sociedade bem governada; mas, para que houvesse esse respeito pela “autonomia” da jurisdição das comunidades locais, elas deviam estar harmonizadas com as diretrizes da jurisdição real. A sociedade era vista como um organismo hierárquico, com funcionamento análogo ao do corpo humano, com a necessária integração dos pés – os pobres – à cabeça – o rei. Princípio regente do corpo social, o rei era considerado como o cérebro, a razão suprema, que dirigia o corpo em função da integração de todas as suas partes e atividades, em suma, de sua ordem e harmonia.

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Faz parte desse patrimonio doutrinal a ideia de que cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua própria função, de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que a possa desempenhar. Tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade que todo o poder político estivesse concentrado no soberano.(...) A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social, o funcionamento próprio de cada uma das partes do corpo, mas por outro lado, a de representar a unidade do corpo, e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada qual o seu estatuto (“foro”, “direito”, “privilégio”) (...).122

O poder central representado pela Coroa era caracterizado não pela exclusividade de poder, mas pela condição de instância superior, figurando como a cabeça à qual cabia, segundo Antonio Manoel Hespanha, uma “organização passiva”: a tarefa primordial era a harmonização de todas as partes do corpo social, visando a manutenção da “paz” e da “justiça”, assim como a reconstituição de uma ordem eventualmente perturbada.123 Caracterizada a monarquia portuguesa como corporativa, o poder central seria “como apenas uma parte do poder que se exerce na sociedade”124 e que, na prática, tornaria-se viável através dos centros de poder local, acesso pelo qual o poder central conseguiria de fato chegar às comunidades.125 Se por um lado, o poder real utiliza os poderes locais como força intermediária para fazer sentir sua ação sobre a população, por outro lado, deve aceitar regras e usos locais para fundamentar o próprio exercício do poder real. Nessa visão, a orientação da prática política e administrativa, no que concerne ao Ultramar, não poderia obedecer a esquemas rígidos que buscassem uma uniformidade nas soluções para as diversas e distantes regiões que compunham o Império português. Mesmo dentro do próprio Reino de Portugal, o poder régio não era suficientemente 122. Hespanha, António Manoel. História de Portugal Moderno Político e Institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 29 123. Idem,p. 67. 124. Hespanha, Antonio Manoel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calustre Gulbenkian, 1982, p. 45. 125. Idem, p. 71. 52

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centralizado para conseguir uma intervenção capaz de padronizar as particularidades que o constituíam. Consequentemente, “a margem de centralização ainda é mais desajustada quando aplicada ao Império Ultramarino”,126 sendo possível considerar que “para o Ultramar não se copiou, portanto, servilmente, a legislação metropolitana. Recebeu-se, sim, mas adaptou-se às realidades locais. Daí o sistema administrativo apresentar várias fórmulas, de acordo com a latitude e as potencialidades econômicas e demográficas dos domínios”.127 Se o sistema administrativo metropolitano português forneceu o modelo das instituições das províncias ultramarinas, a necessidade de intervenção local obrigou a diferenciações da ação política, fazendo com que o modelo original fosse inevitavelmente modificado, e enriquecido, com a experiência proveniente da vida local. A outra concepção de poder citada no início deste capítulo, a voluntarista, passou a vigorar a partir da segunda metade do século XVIII em Portugal, e também se estendeu a seus domínios ultramarinos. A concepção voluntarista era formada por ideias e práticas político-administrativas do período pombalino, o “apogeu do Estado absolutista em Portugal”.128 A ideia corporativa do poder real, com seu locus na comunidade, transformou-se então numa nova concepção, denominada “voluntarista”, onde o poder político é concedido diretamente por Deus ao Rei e não mais pela comunidade.129 Esse deslocamento provocou a concentração institucional e efetiva do poder político na Coroa, assim como a exclusão da participação da comunidade nesse poder. De acordo com a concepção voluntarista, a execução das tarefas referentes ao ordenamento social, em função do bem comum, cabia exclusivamente ao poder central.

126. Hespanha, A. Manuel, “A Constituição do Império Português. Revisão de alguns enviesamentos correntes.” In: O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguêsa (séculos XVI-XVIII). Org. João Fragoso, Fernanda Bicalho e Fátima Gouvêa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167. 127. Couto, Carlos. Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 25. 128. Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal – Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996, p. 44. 129. Hespanha, Antonio M. e Angela B. Xavier. “A Representação da Sociedade e do Poder”. In: Mattoso, José (dir.). História de Portugal, v. 4. O Antigo Regime (1629-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 137-144. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Dessa forma, a ação do poder régio se intensificou na direção da centralização administrativa por meio do enfraquecimento e redução dos outros poderes, no âmbito civil e religioso. Os centros de poder local perderam atribuições e competências em várias instâncias, sendo submetidos ao controle político imediato e direto do soberano e seu governo.130 Em nenhum outro documento da época se encontra mais claramente formulada e justificada a doutrina do direito divino dos monarcas, e a onipotência da monarquia pura, do que na Deducção Chronologica e Analytica. A pena de José de Seabra da Silva é incisiva ao sustentar a legitimidade da unidade e a indivisibilidade da soberania: Em razão de que a dita Magestade he unica, e individua, de sorte que não pode separar-se em partes, sem se destruir na sua propria essencia, como bem disse Asinio Gallo a Tiberio: manda, proibe, concede, e castiga: reside em toda a parte, onde se acha o Soberano: o que fez dizer a hum antigo Douto: Roma he em toda a parte, onde se acha o Imperador; e não admite igual, nem superior, que possão limitar o seu pleno poder.131

Ao teorizar sobre o poder absoluto do soberano como direito divino, Seabra da Silva repudiou as interpretações políticas corporativas da tradição católica até então vigente em Portugal, segundo as quais o poder político pertencia, a priori, ao povo. Em função disso, o processo de caracterização e legitimação da “Monarquia política e civil”,132 como nomeia Ribeiro Sanches, um dos inspiradores da administração pombalina, foi permeado por um intenso debate com juristas da segunda escolástica, que se desenvolveu em uma série de inversões a serem re-

130. É possível perceber um processo de centralização da Coroa portuguesa ainda antes do período pombalino, quando o poder central retirou atribuições e competências dos centros de poder local. No entanto, o crescimento do âmbito de ação do poder central coexistia tranquilamente com uma concepção ‘pluralista’ de poder, isto é, corporativista, na qual o Rei aumentava seu poder e ao mesmo tempo admitia e respeitava a concorrência de outros poderes. [Antonio Manoel Hespanha. Poder e Instituições... Op. cit, p. 45.] 131. Silva, José de Seabra. Deducção Chronologica, e Analytica, Parte Primeira, v. II. Lisboa, 1768, div. XII, item 605. 132. Sanches, António Nunes Ribeiro, Cartas sobre a Educação da Mocidade[1759], prefácio e notas de Joaquim Ferreira, Editorial Domingos Barreira, Porto, s/d., p.97. 54

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posicionadas “em prol da afirmação de uma autoridade real, civil, laica, sobre uma autoridade eclesiástica”.133 Além do antagonismo Império versus Sacerdócio, existiam outras oposições em Portugal, na segunda metade do século XVIII: luzes x paixões, e suas variantes, como razão x tradição (ou superstição) e civilização x barbárie; concentração de poder x pluralismo de poder; direitos iguais134 x privilégios; justiça x fraude. Criticando a concepção corporativa da sociedade, o poder voluntarista toma o partido dos primeiros termos das oposições. A legislação constituída era a representação simbólica de uma ordem social que, em uma relação dialética entre continuidades e descontinuidades, se construía como nova, apesar de permanecer alicerçada na essência de um modelo hierarquizado e na ordem política do privilégio. Como afirma Francisco Falcon: “A estrutura social característica das formações sociais ibéricas, durante todo o século XVIII, é ainda, em que pesem as transformações que então ocorreram, a estrutura do Antigo Regime, na qual, o mais aparente é a divisão em estados ou ordens; divisão jurídica por um lado, divisão de valores e de comportamentos, por outro (...).”135 Se por um lado pode-se constatar que a legislação promulgada pelo Estado absoluto estimulava a mobilidade social, por outro ela mantinha valores hierárquicos da sociedade tradicional, como, por exemplo, a concessão de privilégios da nobreza aos comerciantes. “A maior preocupação, em termos sociais, foi promover não apenas econômica ou financeiramente mas também socialmente o grupo mercantil mais rico. A mentalidade aristocrática mesmo assim prevaleceu e foi capaz de fazer triunfar os seus valores, conforme se comprova pelo Alvará de 15/1/1759, declarando e ampliando a Lei de Tratamento, fixada no Alvará de 1739.”136 133. Falcon, Francisco José Calazans, A Época Pombalina – Política Econômica e Monarquia Ilustrada. São Paulo: Editora Ática, 1982, p. 429. 134. “Não se trata, bem entendido, de uma política de nivelamento perante a lei, segundo princípios igualitários; mas antes de uma política de eliminação de todos os resíduos de limites ao poder central dos governos monárquicos.” Austuti, Guido. “O Absolutismo Esclarecido em Itália e o Estado de Polícia”. In: Hespanha, A. M. Poder e Instituições... Op. cit., p. 294. Podemos citar, também, a esse respeito A. M. Hespanha, quando se refere à existência, neste período, de um movimento no sentido de uma integração social pela “abolição e atenuação dos privilégios de nascimento ou, pelo menos, pela modificação do seu sistema no sentido de os tornar disponíveis em geral (...)”. In: Para uma Teoria da História Institucional do Antigo Regime, in Poder e Instituições... Op. cit., p. 64. 135. Falcon, F.C. Op. cit., p. 180. 136. Idem, p. 409. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Como afirmou Francisco Falcon sobre o caráter das reformas implementadas no período pombalino, “as ideias e práticas político-administrativas, jurídicas e culturais cujo caráter ‘iluminista’ depende bem mais da respectiva retórica, sempre presente nas práticas discursivas do reformismo de então, que, propriamente, do conteúdo intrínseco das reformas de fato implementadas”.137

2.2. A Centralização: As Câmaras e as Elites Locais A política de reorganização metropolitana implementada por D. José, que seguia os princípios de centralização e racionalidade, também se estendeu pelos domínios coloniais do Império português, entre eles o Estado do Brasil. Em termos gerais, pode-se afirmar que as reformas políticoadministrativas de cunho centralizador visavam, inclusive na América portuguesa, “(...) exterminar todas as manifestações de pluralismos políticos, reduzindo os anteriores polos políticos (pelo menos os mais visíveis) a simples delegações do poder do centro.”138 A principal reforma político-administrativa durante o consulado pombalino foi a implementação de um conjunto de novas medidas que tinham por objetivo a reorganização do órgão municipal mais importante da Colônia, as Câmaras Municipais. Essas medidas, que pretendiam uma maior eficácia na administração regional, inseriam-se nos planos centralizadores do Marquês de Pombal, segundo os quais podem ser traduzidas como o apogeu do processo de redução da importância e independência de que dispunham os concelhos colonias, “quer no governo político dos colonos, quer nas suas funções administrativas e financeiras”.139 O lugar ocupado pelas Câmaras na sociedade colonial era significativo, visto “que constituíam a verdadeira e quase única administração da colônia”.140 Consequentemente, as Câmaras tinham considerável 137. Falcon, Francisco José C. “A Época Pombalina e as Luzes”. In: Congresso Internacional – Portugal no Século XVIII de D. João V à Revolução Francesa. Lisboa: Universitária Editora, 1991, p. 142. 138. Hespanha, António M. História de Portugal Moderno-político e institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 168. 139. Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro... Op. cit., p. 382. 140. Prado, Caio Jr. A Evolução Política do Brasil e outros Estudos. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 29. 56

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poder de influência e prestígio, tanto em relação ao poder local quanto ao central, a Coroa. Maria Fernanda Bicalho descreve a relevância das atribuições desse órgão no nível local: “(...) as Câmaras coloniais foram, durante todo o século XVII, órgãos fundamentais no gerenciamento de boa parcela das rendas – tributos e donativos – coloniais”.141 A dimensão da influência que as Câmaras coloniais tinham sobre o poder central142 é revelada por Caio Prado Jr.: “vemos as câmaras (...) proporem e recusarem tributos reais, (...) chegam a suspender governadores e capitães, nomeando-lhes substitutos, e prender e por a ferro funcionários e delegados régios”.143 A análise de Boxer mostra a atuação das Câmaras no mesmo sentido: “raramente se tornaram meros carimbos de borracha e acríticos perante os funcionários superiores do governo, quer se tratasse de vice-reis ou de juízes do supremo”.144 Dessa forma, fica evidente o “poder incontrastável das Câmaras”145 dentro das normas da administração colonial. Entretanto, no fim do século XVII já é possível constatar que a Coroa portuguesa pretendia diminuir o significado e a independência do principal órgão municipal da Colônia. Uma das primeiras medidas com esse objetivo foi a instituição, em 1699, do cargo de Juiz de Fora nas principais cidades marítimas. Para Maria Fernanda Bicalho, a medida refletia “a necessidade sentida pela Coroa de intervir nas funções administrativas e financeiras – especificamente tributárias – das Câmaras coloniais – no sentido de controlar os ‘descaminhos’ e os possíveis prejuízos da Real Fazenda (...)”.146 Maria Fernanda ainda afirma que a redução do poder das Câmaras coloniais147 se acentuou devido “à pro141. Bicalho, M. Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro... Op. cit., p. 331. 142. Sobre esta questão, nos informa Dauril Alden. In: Royal Government... Op. cit., p. 423: “The Câmaras responded to their opportunities by arrogating many privileges and powers to which they had dubious right. While posing as champions of the people, they repeatedly ousted unpopular missionaries and royal official, and sometimes even lectured royal governors on their duties.” Cita como exemplo: “The Câmaras expelled the unpopular Jesuits from São Paulo and Santos (1640-1651), the hated Sá dynasty from Rio de Janeiro (1660), the governor of Pernambuco in 1666, and removed circuit judges (ouvidores) from Espírito Santo (1659), Itamaracá (1664), and Itanhaén (1670).” 143. Prado, Caio Jr. Evolução Política... Op. cit., p. 29. 144. Boxer, C.R. Império Colonial... Op. cit., p. 318. 145. Prado, Caio Jr. Evolução... Op. cit., p. 30. 146. Bicalho, M. Fernanda. A Cidade e o Império... Op. cit., p. 331. 147. Acerca desse ponto ver, também, Dauril Alden. Royal Government... Op. cit., Capítulo XV. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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gressiva perda que sofrera a Câmara ao longo do século XVIII da ‘propriedade’ que anteriormente detivera sobre os chãos urbanos [o que] significava por um lado, a diminuição de seus rendimentos em foros, laudêmios e cobranças de taxas municipais; e por outro, a perda de um poder concreto – um dos únicos que lhe restara – de controle, regulação, administração e ‘polícia’ não apenas do espaço físico da cidade, mas ainda das suas atividades econômicas”.148 O conjunto de medidas implementadas pela Coroa representou um processo que iria culminar, durante o século XVIII, com novas e sucessivas medidas, entre elas a passagem da grande maioria dos contratos e tributos administrativos pelas municipalidades para a jurisdição da Fazenda Real.149

A partir da segunda metade do século XVIII, as reformas pombalinas atingiram sua maior expressão e intensidade, alcançando os municípios através dos capitães-generais e de três instituições que, apesar da antiguidade, atuavam com pleno vigor: o juiz de fora, o corregedor e o vice-rei. Conforme destaca Hespanha, no relacionamento entre as Câmaras e o poder central, ao longo dos séculos XVI-XVIII, não podemos descurar o avanço das concepções monistas acerca do poder político. Assim, a concepção segundo a qual os concelhos eram cargos políticos autônomos, dotados de um poder originário e não dependente da outorga ou da superintendência régia vai cedendo, progressivamente, espaço à teoria da origem delegada de toda a jurisdição.150

Caio Prado sintetiza o ápice das mudanças político-administrativas durante o reinado de D. José: As figuras dos governadores e demais funcionários reais começam a emergir do segundo plano a que até então tinham sido relegadas. Em sentido inverso e corres148. Bicalho, M. Fernanda. A Cidade e o Império... Op. cit., p. 382. 149. Idem, p. 332. 150. Hespanha, A. M. História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna, Coimbra, Livraria Almeida Editora, 1982, p. 251. 58

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pondendo a esta consolidação crescente da autoridade real cerceiam-se as atribuições das câmaras municipais, até então soberanas. O poder delas vai dando lugar ao da metrópole.151

No entanto, as Câmaras eram o centro nervoso sobre o qual, segundo Boxer, se sustentava o Império português na América.152 As Câmaras formavam o espaço privilegiado de negociação com o poder real, na qual se viabilizava concretamente o pacto, a relação bilateral – naturalmente assimétrica pela diferença de escala – de troca entre o compromisso de obediência e fidelidade dos súditos à Coroa, e a proteção e manutenção das propriedades e privilégios da elite local, agente político da sociedade colonial. Apesar do programa de centralização político-administrativa da Coroa portuguesa, ter enfraquecido o poder dos governos municipais, as elites locais não perderam completamente o poder sobre as comunidades e continuaram a desempenhar um papel político de primeiro plano, conservando, dessa forma, um apreciável grau de autonomia. Embora seja indiscutível a intervenção política mais acentuada do governo português na administração colonial, os centros de poder local mantiveram sua especificidade de agentes mediadores dos interesses da comunidade local, portanto não devem ser considerados como meros executantes dos ditames do poder central. A política intervencionista implementada pela Coroa portuguesa na América colonial não gerou relações verticais e dicotômicas muito bem definidas, mas sim uma nova articulação entre o local e o central, potencializando, inclusive, um outro centro de poder local – o militar –, capaz de englobar grande parte dos membros que compunham as elites coloniais espalhadas por todo o território. Os centros de poder local configuravam-se como lugares de encontro e colaboração, ou mesmo de conflitos e divergências, entre os interesses das elites locais e os do poder central. Nessa perspectiva, os Corpos militares, mais especificamente os de Ordenanças e os de Auxiliares, tornaram-se, a partir da segunda metade do século XVIII, centros de poder local privilegiados . 151. Prado, Caio Jr. Evolução... Op. cit., p. 40. 152. Boxer, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969, p. 305329 e Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda (1510-1800). Madison and Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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2.3. A disputa pelos principais e mais distintos moradores De um lado, a crescente importância da preservação dos territórios ultramarinos na aguerrida disputa travada entre as potências europeias pela hegemonia mundial; de outro, a progressiva consolidação da autoridade metropolitana na administração colonial, que provocou a diminuição do poder político das Câmaras Municipais. Estes dois fatores geraram um processo de ativação, pelo poder central, das organizações militares coloniais: os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças, locus em que os interesses das elites da colônia ganhariam maior destaque, revestindo os oficiais de alta patente de um maior poder de barganha frente ao governo português. Os conflitos europeus pela conquista, ou manutenção, de mercados no além-mar – principalmente a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), momento em que “as competições coloniais, foram então levadas ao climax”153 – conduziram Portugal a uma necessidade de aumento sensível na capacidade defensiva de seus domínios na América. A Guerra dos Sete Anos, disputa entre as duas maiores potências da época, Inglaterra e França, pelo controle de territórios na América e na Índia, também envolveu as nações ibéricas: a Espanha aliada à França, Portugal subordinado à esfera de influência inglesa. Após o estabelecimento dos Estados Ibéricos em campos opostos nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha logo se prolongou, avançando para as indefinidas regiões fronteiriças do sul. Como observa Fernando Novais, “ao lado das zonas de tensão entre as potências dominantes em luta pela hegemonia, França e Inglaterra, entre os países coloniais ibéricos se vão formando ao mesmo tempo outras zonas de tensão (sobretudo a região platina). Os dois tipos de conflitos correm paralelos, e se inter-relacionam continuamente (...)”.154 O conflito com a Espanha pelos territórios às margens do rio Uruguai havia demonstrado claramente a precária capacidade de resistência do exército português, sobretudo durante a invasão e conquista espanhola da Colônia do Sacramento, em dezembro de 1762, bem como da vila do Rio Grande e da margem norte do canal que ligava a Lagoa dos Patos ao mar. O Tratado de Paz de 1763, que encerrou a Guerra dos Sete Anos, restituiu a Colônia do Sacramento a Portugal, mas os espa153. Novais, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1983, p. 47. 154. Idem., p. 51. 60

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nhóis continuaram a sustentar que os territórios em volta da Colônia lhes pertenciam. Assim, Portugal perdeu o Rio Grande de São Pedro com seu território, e também as ilhas de Martim Garcia e das Duas Irmãs. Uma série de medidas foi implementada para aumentar a capacidade defensiva de Portugal na América, entre elas: a transferência, em 1763, da capital do Estado do Brasil para o Rio de Janeiro,155 mais próximo das regiões auríferas e em melhores condições de coordenar as ações militares que se prefiguravam ao Sul do Estado; o envio de regimentos militares portugueses para o Rio de Janeiro e posteriormente para o Sul; e a recriação da Capitania de São Paulo. Apesar da Coroa portuguesa estar atenta à necessidade de construção e reparo de fortalezas, quartéis e armazéns, pode-se verificar uma maior ênfase na criação e ampliação de Corpos Militares constituídos basicamente da população colonial, como os de Auxiliares e de Ordenanças, cada vez mais reputados pela Coroa como elementos indispensáveis na defesa e manutenção dos domínios portugueses.156 Em meio ao clima de crescente antagonismo entre as potências, a Coroa portuguesa também precisava assegurar a fidelidade de seus súditos coloniais para a manutenção de seus domínios ultramarinos. Nesse contexto, os Corpos de Auxiliares e Ordenanças se tornaram o principal canal de colaboração entre o poder local e o governo central. Os vínculos políticos entre Metrópole e Colônia se estabeleciam a partir de uma lógica contratual com uma dinâmica de negociações e trocas que realimentava continuamente o pacto entre essas forças assimétricas e complementares. A rede de relações e negociações responsável pela sustentação dos vínculos entre a Metrópole e a Colônia era determinada por regras e princípios marcados pelos valores de uma sociedade estamental, valores que regulavam os interesses de ambas as partes, inclusive na busca de um consenso. E é nesse contexto que se inserem os Corpos de Ordenanças e de Auxiliares. 155. A transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro e, mais especificamente, a inserção da cidade no tenso contexto político internacional vivido na segunda metade do século XVIII, quando a disputa ultramarina acirrava-se entre os Estados europeus, pode ser verificada na tese de doutoramento de Maria Fernanda Bicalho: A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII, USP, p. 77-84. 156. A análise da política defensiva implementada pela Coroa portuguesa a partir da segunda metade do século XVIII, mostra uma valorização das ‘forças da colônia’, consideradas estrategicamente mais fundamentais para a segurança do território colonial do que as estruturas de fortificação, até então preponderante. Ver Maria Fernanda Bicalho. A Cidade e o Império... Op. cit., p. 92-95. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Por isso, é importante ressaltar os privilégios de que dispunham os eleitos para os postos de oficiais dos Corpos de Ordenança e de Auxiliares. Concedidos pela Coroa, os privilégios podem ser constatados nas palavras das patentes dos oficiais: “E com esta gozarão todas as honras, liberdades, franquesas, privilegios e izenções que lhes pertencem”. Equivale a dizer que “Todo o Militar goza de nobreza pelo privilegio de foro, que lhe pertence por Direito Civil; e quando he oficial de patente, escritas as palavras referidas nellas declaradas, e assignadas pela Real Mão, tem toda a graduação de nobreza.”157 Além do título de nobreza de que desfrutavam os oficiais de Ordenanças e de Auxiliares, a estes últimos ainda eram concedidos os mesmos privilégios e imunidades das tropas pagas no reino. Entre os privilégios para os oficiais das Ordenanças, estava estabelecido “que os capitães-mores, e mais capitães lograssem os privilégios de Cavaleiros Fidalgos”,158 ou seja: não deviam ser obrigados a servir nos “cargos da República de menos qualidade”, nem a “darem alojamento”159, estavam isentos do encargo de “ir às fronteiras”, e não podiam “ser prezos em ferros senão por crime que por ele mereção morte civil, ou natural”.160 Para os oficiais dos Corpos de Auxiliares, entre as vantagens concedidas, podemos citar: recompensas, como hábitos e tenças, aos que prestassem serviços militares; proteção contra injunções tributárias: “serão isentos de contribuírem com fintas, taxas, e outros engargos, ou tributos impostos pela Câmara”;161 e a prerrogativa de usufruírem de maior segurança econômica: “estes não podem ser penhorados por bens do seu uso nem presos por dívidas”.162 Também desfrutavam de regalias nas questões judiciais: “só os poderão prender imediatamente nos casos de flagrante delito”, e com a garantia de que qualquer um deles não seria “prezo na enchovia e dar-se-lhe-há sempre prizão mais decente”.163 157. “Das Honras e dos Privilégios”. In: Verissimo, Antonio Ferreira da Costa. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal. Lisboa: Impressão Regia, 1816, v. 3. “Leis Pertencentes aos Milicianos”, p. 60. 158. “Dos Privilégios”. In: Verissimo, Antonio Ferreira da Costa. Collecção Systematica... Op. cit., v. 4. “Leis Pertencentes às Ordenanças”, p. 61. 159. Idem. 160. Idem. 161. Idem. 162. Idem. 163. Idem. 62

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Em casos criminais, deveriam ser julgados apenas em tribunais especiais.164 Esses e outros privilégios foram concedidos através do “Alvará dos Privilégios dos Auxiliares de 1645”, e confirmados pelo “Decreto ao Desembargo do Paço em que Sua Magestade ordena se observem inviolavelmente os privilegios dos Auxiliares de 1751”.165 Embora o decreto emitido no ano de 1751 confirme todos os privilégios concedidos pelo Alvará de 1645 aos oficiais das Tropas de Auxiliares, o Decreto, ao contrário do Alvará, se detém mais especificamente em um dos privilégios concedidos: a isenção de servirem nos cargos da República. A reiteração desse privilégio parece indicar que ele não vinha sendo devidamente respeitado, e que a Coroa estava disposta a impor seu cumprimento imediato, em razão da importância do bom funcionamento dos corpos militares para a conservação e a segurança das conquistas ultramarinas portuguesas. Dessa forma, o decreto é absolutamente categórico ao determinar que oficiais de auxiliares ocupantes de cargos da República se retirassem destes cargos para servir exclusivamente em suas respectivas tropas: mando recolher os ditos oficiais [de Auxiliares] e soldados [pagos] aos seus respectivos corpos para os exercitarem com a disciplina militar, que he tão necessária para a conservação e reputação das tropas e para a segurança dos meus reinos e vassalos delles.166

Assim estabeleceu-se a impropriedade do exercício simultâneo nas funções civil e militar, ficando os oficiais Auxiliares livres da coação sofrida para que servissem em cargos da República, com a afirmação da primazia da função militar sobre a civil. Diz o Decreto Régio, datado de 23 de março de 1751, que Hei por bem ordenar, que os ditos oficiaes e soldados assim pagos como auxiliares sejão isentos de todos os empregos civis e cargos da Republica, para não serem constrangidos

164. Idem. 165. “Decreto ao Desembargo do Paço em que Sua Magestade ordena se observem inviolavelmente os privilegios dos Auxiliares de 23/3/ 1751”. In: Regimentos Militares – A que se ajuntão as resoluções de Sua Magestade desde o ano de 1710 até o presente. Lisboa: Offic. Antonio Rodrigues Galhardo, 1777, p. 260-267. 166. Decreto... de 1751. Op. Cit., p. 266-267. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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a servirem nelles involuntariamente, e restituindo a toda a sua integridade os privilégios dos sobreditos (...).167

Apesar da confirmação dos privilégios dos Auxiliares em 1751, inúmeras tensões entre as Câmaras e os Corpos Militares tiveram origem na convocação dos oficiais Auxiliares para os cargos concelhios. Apoiados em seus privilégios, muitos deles se negavam a servir nas Câmaras, como mostra, por exemplo, o requerimento feito por um oficial de Auxiliar da Capitania de São Paulo a D. José I: (...) querem obrigar ao Supp.e a todos os cargos da Republica, sem atenderem a q’ o posto de Sargto mor q’ exercita hé izento de semelhante ocupação (...), querendo por este modo enterromper, os privilégios, Liberdades e izenções, q’ V. Mage foi servido conçeder a todos os melitares q’ os servem parecendo talves aos ditos Menistros, e Officiaes das Cameras, q’ os postos de Auxiliares não logrão os mesmos predicados, q’ os Officiais pagos (…).168

Através das inúmeras representações feitas por várias Câmaras ao Rei D. José I, por causa desse privilégio, percebe-se a tentativa dos camaristas deterem as ameaças que pairavam sobre a composição interna dos governos concelhios, por causa da formação de vários Corpos de Auxiliares – justificada pelas necessidades bélicas – e dos privilégios deles decorrentes. Entre as inúmeras razões das críticas de vereadores ao privilégio de isenção dos Auxiliares, a mais comum era a falta de pessoas qualificadas a ocupar os “cargos da República”, já que a disputa que se abria entre as Câmaras e os Corpos de Auxiliares pelos “principais e mais distintos moradores”169 tornava evidente a nítida preferência destes pelos cargos militares. Um exemplo disso é o protesto da Câmara de Angra dos Reis contra o requerimento de um oficial auxiliar, do Rio de Janeiro, que solicita isenção do cargo de vereador. Em representação ao vice-rei, a Câmara alega que 167. Idem. 168. “Requerimento do sargento-mor de Auxiliares a D. José, 24/4/1751”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 20, Doc. 1.923. 169. Representação dos oficiais da Câmara de Santa Ana de Moji das Cruzes, 3/7/1777”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.762. 64

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(...) hé costume nesta Villa servirem os Officiaes Auxiliares nos cargos deste Senado por ser terra piquena, e não aver quem posa servir os cargos da Republica, concorrendo serem presiso servirem sem que sejam parentez alem das pesoas mais condecoradas Republicanas da mesma Villa serem a maior parte Officiaes Auxiliares.

Entretanto, em despacho real, vê-se que D. José não atendeu ao apelo: “Seja serv.do attendendo ao privil.o concedido ao Sup.e, como Off.al Aux.ar havelo por escuso, em dar em seo Lugar outro nome como he estilo”.170 Em outra representação ao Rei D. José, os oficiais da Câmara de Santa Ana de Mogi das Cruzes, em São Paulo, protestam contra as desordens e o desprezo pelas leis que reinam na vila, argumentando que E porque o remedio desta dezordem só consiste com que V. Magde determine por Sua Real Ordem, que os tais auxiliares se não valhão dos privilegios a que se pejão para serem os cazos de exercer os cargos da Camara da Republica desta Villa (...).171

Do outro lado, o capitão-general de São Paulo, Morgado de Mateus, se empenhou em demonstrar que as Câmaras da Capitania concentravam os que “se utilizão, descanção, e governão”, enquanto as Companhias e Regimentos militares abrigavam os que “gastão, trabalhão e obedecem”.172 Apesar de extremada, a conduta do capitão-general indica a disposição da Coroa e de seus representantes ultramarinos em relação às Câmaras. Visando inda mais reforçar a identidade das hierarquias social e a militar, afirma o Morgado de Mateus: (...) entre todos os serviços hé o das Armas o mais distinto, em o qual sempre se ganharão as mayores glorias, e os

170. “Senado da Câmara do Rio de Janeiro, Angra dos Reis, 20/9/1794”. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, (ANRJ), Avulsos, Cx. 500, Doc. 1. 171. “Representação dos oficiais da Câmara de Santa Ana de Moji das Cruzes, 3/7/1777”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.762. 172. “Carta de D. Luis Antonio de Souza para o Conde de Oeiras sobre a conservação das tropas Auxiliares. São Paulo, 12 de novembro de 1767.” DIHSP, v. XIX, p. 81 a 83. Apud Leonzo, p. 228. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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mayores premios, e quem nelle se emprega deve ser preferido nas honras, e nas recompensas.173

O Ministro e Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do Reino de Portugal, D. Luiz da Cunha, em suas “Maximas Discretas, sobre a Reforma necessária da Agricultura, Comercio, Milicia, Marinha, Tribunáis, Fabricas de Portugal”,174 comparou Inglaterra e França, analisando suas diferentes formas de governo e o lugar em que nelas ocupavam as organizações militares. Para D. Luiz, os ingleses não formaram sequer um bom general “por q’ o seu ponto de vista hé de serem Parlamentarios p.a talvez forçarem o Principe, q’ delles depende a lhes dar empregos Civis q’ dezejão”;175 já na França, onde o Parlamem.to não tem mais influências, q’ nos processos q’ julga, e as armas são preferidas as Letras, de tal sorte q’ a mulher do primr.o Presid.te não tem lugar na Corte (...) q.do a de qualquer Official se pode apresentar as Mag.es, e por isso estão os seus exércitos cheios de m.tos bons Generaes.176

Diante das afirmações acima sobre os Corpos de Auxiliares, é possível verificar no Estado do Brasil, na segunda metade do século XVIII, um progressivo deslocamento da preferência pelos cargos de vereança, até então os mais cobiçados pelos senhores locais, em direção a uma “lenta militarização dos valores sociais”.177 Essa tendência reforça a perspectiva que revela os Corpos Militares como o espaço potencializado no qual acontecem as principais e fundamentais negociações entre o governo central e as elites locais. Entretanto, apesar de serem interlocutores privilegiados pelo poder central, os Corpos Militares não substituíram as Câmaras na qualidade de agentes de negociação em nome da comunidade, isto é, como representantes do bem comum do povo 173. “Circular de D. Luiz Antonio de Souza para as Câmaras da Capitania sobre as preferências que os militares devem ter para os postos da Milicia. SP, 16 de janeiro de 1767”, DIHSP, v. XXIII, p. 132. Apud Leonzo, p. 229. 174. Cunha, D. Luiz da. “Maximas Discretas, sobre a Reforma necessária da Agricultura, Comercio, Milicia, Marinha, Tribunais, Fabricas de Portugal-Representadas e dirigidas ao Serenissimo Senhor D. José”, s/d, BNL. Reservados, Coleção Pombalina, PBA. 460, p. 204. 175. Idem. 176. Idem. 177. Pujol, Gil Xavier. “Centralismo e Localismo? Sobre as relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europeias dos Séculos XVI e XVII”. In: Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 6, 1991, p. 121. 66

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frente ao poder régio; por sua própria natureza, os Corpos militares representavam o poder régio na defesa dos domínios americanos frente às sérias ameaças da época. As novas diretrizes político-militares de intensa militarização da população masculina evidenciam que o objetivo primordial da negociação citada acima, entre o poder central e as elites locais, era a maciça arregimentação de homens para os novos Corpos de Auxiliares e a consequente distribuição dos cargos de oficiais. Os senhores locais que ocupassem esses cargos teriam, em contrapartida, a concessão do cobiçado título de nobreza, além dos amplos privilégios e imunidades semelhantes aos desfrutados pela tropa paga no Reino de Portugal. A política régia de estímulo ao serviço militar, especialmente ao não remunerado – Auxiliares e Ordenanças –, e a preferência das elites locais por esse serviço, em detrimento da representação apenas política, não representaram o controle total do poder central sobre as comunidades e elites locais. Porém, a sociedade colonial também não estava fechada em si mesma, funcionando de forma autossuficiente. As evidências mostram um complexo tecido de relações internas e externas.178 Quando se conjuga a política de militarização da Coroa com a motivação dos senhores locais a ocuparem os postos militares, não se verifica a completa adesão por parte das elites locais à política adotada pela Coroa. Se é preciso sublinhar a grandeza do poder conferido pelo título de oficial na esfera local, também é necessário reconhecer que era no interior do próprio espaço militar que se manifestavam as resistências mais persistentes, e eficazes, à indicação de forças para as longínquas fronteiras do sul.

2.4. Os Lugares dos Corpos de Auxiliares e Ordenanças Um outro aspecto contribuiu para o prestígio e poder que os oficiais superiores dos Corpos de Ordenanças e de Auxiliares desfrutaram no seio da sociedade colonial: além de serem responsáveis pelas atribuições de caráter militar, esses oficiais colaboravam com a administração colonial em inúmeras outras tarefas que não eram estabelecidas pela legislação vigente. As palavras de Caio Prado Junior expressam bem a dimensão da importância de todas essas atribuições quando ele afirma: “estenderam-se com elas, sobre todo aquele território imenso, de popu178. Pujol, Xavier Gil. Op. cit., p. 121. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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lação dispersa, as malhas da administração cujos elos teria sido incapaz de atar, por si, o parco funcionalismo oficial (...)”.179 Na Capitania do Rio de Janeiro, os oficiais de alta patente, especialmente dos Auxiliares, tinham ordens expressas do vice-rei para realizar diversos serviços com seus comandados: arrecadar tributos, como o imposto para o Hospital dos Lázaros;180 verificar se os moradores das vilas cultivavam mandioca e legumes em suas terras;181 vistoriar caminhos e pontes, coordenando eventuais consertos;182 garantir que as madeiras de Peroba e Tapinhorá, utilizadas para a construção das naus, estavam sendo preservadas pelos donos de terras;183 capturar escravos foragidos;184 afugentar os gentios responsáveis por matar, roubar e destruir fazendas e lavouras185 etc. Evidentemente, a execução dessas tarefas pelos Corpos Militares gerou inúmeros conflitos entre os oficiais e os homens da governança. E as desavenças não se deveram unicamente à disputa de competências ou jurisdições; os governos concelhios desenvolveram resistência aos 179. Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. SP, Brasiliense, 1977, p. 324. 180. “(...) encarregando assim a mesma cobrança para que a mande fazer no Destricto da sua jurisdição pellos officiaes ou soldados do seu terço (...)”, Carta Circular para todos os Mestres de Campo, RJ, 8/3/1770, ANRJ, Correspondências dos vice-reis com diversas autoridades. Cod. 70, v. 5, p. 24. 181. “(...) dar execução a ordem que lhe dirigi, para promover nessa villa e em todo o seo termo a plantação das mandiocas, e mais legumes precizos, para a sustentação dos povos (...)”, Carta ao M.e de Campo Bartolomeu Jose Vahia, R.J, 5/4/1773, ANRJ, Op. cit., Cod. 70, v. 7, p. 144. 182. “(...) continue com a factura das pontes, até as concluir ainda fora do seo destricto, e assim feito mandará tambem abrir e fazer navegavel o canal do rio do Pillar (...)”, Carta ao M.e de Campo João Velho, R.J, 14/10/1771, ANRJ, Op. cit., p. 235. e “(...) a respeito da grande ruina com que se acha o caminho que desta cidade vai para Minas, para que Vm.ce com alguns Officiaes do seo Terço, passe logo a examinar o estado em que se acha o referido caminho, e estando intratavel, ordenará aos rosseiros o fação concertar dentro do termo que parecer conveniente (...)”, Carta ao M.e de Campo Bartolomeu Jose Vahia, R.J, 8/1/1772, ANRJ. Op. cit. Cod. 70, v. 7, p. 235. 183. “Como El Rey Meo Snr’ recomenda tanto as madeiras de Peroba e Tapinhará, por serem preciosissimas, para a construção das suas Naos: Vm.ce ordenará de Ordem minha a todos os possuidores de terrras do seo Desdricto, não só cuidem na conservação dessas arvores (...) mas taobem nas plantações das mesmas (...) ficando ao seo cuidado o vigiar sempre se esta ordem tem, ou não a sua devida observancia (...)”, Carta Circular para todos os Mestres de Campo, RJ, 4/9/1772”, ANRJ. Op. cit. Cod. 70, v. 7, p. 97. 184. “(...) na serra de Tinguá se acha hu Quilombo, no qual fará Vm.ce logo dar, para o demolir, e prender os negros fugidos, que se acharem no mesmo (...)”, Carta ao Cap.am Luiz Barbosa, R.J, 13/11/1771, ANRJ. Op. cit., Cod. 70, v. 7, p. 15. 185. “Vm.ce com todos os seos doldados, e mais pessoas desse paiz, que puder ajuntar armados da melhor forma lhe dará assalto, de forma que intimide e faça afugentar dessas vezinhanças”, Carta ao Cap.am Antonio de Queiroz Masc.as, RJ, 18/9/1771, ANRJ. Op. cit. Cod. 70, v. 5, p. 228. 68

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Corpos militares por causa da concorrência que estes representavam na busca de poder, privilégio e prestígio, em função do papel desempenhado pelos militares no seio da comunidade local. Um documento de 1794 revela algumas das inúmeras tensões e desordens provocadas pelos ataques mútuos entre o Corpo do Senado e o de Auxiliares. Intitulado “Indagasam feita por Ordem do Ilm. e Exm.o Snr’ Conde Vice Rey Sobre a origem das disenssoens entre o Corpo Auxiliar, e o Senado da Camera”,186 o texto expõe, com diversidade de informações e expressivo número de depoentes, problemas ocorridos na Cidade de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. Segundo os relatos, um dos motivos mais comuns da discórdia entre os dois Corpos era o fato da Câmara da Cidade de Cabo Frio não reconhecer os Auxiliares como responsáveis por determinadas atribuições, ainda que estas tivessem sido especificamente ordenadas pelo vice-rei. Essa resistência da Câmara era uma tentativa de preservar a sua parcela de poder contra os efeitos do fortalecimento do poder central que, às vezes, favorecia os oficiais militares no interior da comunidade local em detrimento dos camaristas. Um depoimento aponta a provável razão para a oposição feita pelo Senado aos Auxiliares: (...) parecendo-lhes [a corporasam da Justiça] que elles só sam os que devem mandar, e que os comandantes [sargento-mor de Auxiliar] sendo encarregados de algumas Ordens dos Ilmos Vice-Reis e dando comprimento a ellas isto hé bastante para os istimular na inteligencia de que só elles sam os que devem governar (...).187

A cobrança de dívidas realizada pelos Auxiliares por ordem do vice-rei é um bom exemplo da situação observada acima. No mesmo documento citado, um dos depoentes responde à indagação sobre a dissensão entre os Corpos do Senado e de Auxiliares, dizendo que ela Procede do ciume que há no corpo do Senado respeito as ordens que sam dirigidas aos Sargentos Mores deste destricto por cuja cauza dizem os do Senado que os ditos Sargentos 186. “Indagasam feita por Ordem do Ilm. e Exm.o Snr’ Conde Vice Rey Sobre a origem das disenssoens entre o Corpo Auxiliar, e o Senado da Camera em 14/9/1794”, ANRJ. “Senado da Câmara do Rio de Janeiro”. Cx. 500, Pc. 1. 187. Idem. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Mores entrometerem com a jurisdisoens da Justisa, como cobrar dividas.188

Ainda na “Indagasam” de 1794, outros dois exemplos são bastante ilustrativos do conflito entre as Câmaras Municipais e os Corpos militares. O primeiro é uma ordem, recebida pelo oficial de Auxiliares, determinando que os moradores daquele recôncavo plantassem mandioca: Como também aconteceu que avendo falta de farinha, neste continente (...) e tendo vindo Ordem ao Sargendo Mor para dar providência em mandar plantar mandioca o que logo mandou executar (...) repartindo-se a dita plantasam conforme o n.o de escravos que cada hum possuia disto mesmo se queixaram os do Senado dizendo que o Sargento Mor se metia com a jurisdisam da Justisa (...).189

O último exemplo das tensões ocorridas entre essas instituições é a queixa sobre o processo eletivo das Ordenanças: a Câmara Municipal, se sentia desautorizada pelos Corpos de Auxiliares, porque (...) todas as propostas que sam feitas em Camera para se proverem os postos vagos do Corpo da Ordenança os senhores vice-reis se mandam informar destes pelos mesmos Sargentos-Mores [Auxiliares] (...).190

Diversamente do Corpo das Ordenanças, o provimento dos postos de oficiais do Corpo de Auxiliares não se efetivava em Câmara. Era o governador da Capitania quem nomeava o comandante maior dos Auxiliares, o Mestre de Campo, que devia ser escolhido entre os “moradores principais destta Capitania”.191 A orientação está na Carta Régia sobre a Criação dos Soldados Auxiliares, de 1645, que exalta a participação dos “moradores principais (...) porque delles se deve esperar que, por serem de qualidade, e afazendados, acudam com maior vontade a defesão da sua

188. Idem. 189. Idem. 190. Idem. 191. “Carta do Conde de Oeiras para o Conde da Cunha, 26/1/1765”. In: Mendonça, Marcos Carneiro de, Século XVIII – Século Pombalino do Brasil, R.J., Xerox do Brasil SA, 1989, p. 426. 70

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Patria, e meu Serviço”.192 O governador também nomeava os capitães das companhias de Auxiliares a partir do mesmo requisito exigido para Mestre de Campo, mas os capitães de companhia tinham os nomes propostos inicialmente pelos mestres de campo.193 Os postos de sargentomor e ajudante seriam ocupados exclusivamente por oficiais vindos da tropa de linha. A seleção de oficiais inferiores dos auxiliares – sargento, furriel, porta-bandeira e cabos – era incumbência dos capitães das companhias, que os nomeavam por “nombramento”, ou seja, escolhendo as pessoas mais dignas e capazes da própria companhia, que ainda deveriam ser aprovadas pelo mestre de campo. Finalmente, este último remeteria ao governador da Capitania as mesmas patentes de todos a esta secretaria de Estado, para por ela se expedir a ordem necessária ao Conselho Ultramarino, para nele se pasarem as de confirmação, e subirem à Real assinatuara do mesmo Senhor.194

Os Auxiliares eram Corpos Militares diretamente ligado ao governador da Capitania, não só pelo processo de provimento de postos de oficiais, mas também por se constituírem em forças essencialmente móveis, tropas usadas nos deslocamentos que atendiam as necessidades estratégicas de governo. Já os Corpos de Ordenanças formavam uma força basicamente fixa e local, que não deveria ser deslocada da sede para defender outras áreas. O Regimento de 1570 de D. Sebastião estabelecia um vínculo muito estreito das Ordenanças com as Câmaras Municipais, mas ao longo do tempo o governo central, através de disposições legislativas, restringiu de forma acentuada o poder de ingerência das Câmaras naquele corpo militar. Progressivamente, o controle das Ordenanças foi passando para os governadores das Capitanias, processo que atingiu o ápice no reinado de D. José I.

192. “Carta Régia sobre a Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645”. In: Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa compilada por José Justino de Andrade e Silva, volume de 1640 a 1647, p. 271-272. 193. Carta do Marquês do Lavradio para o Mestre de Campo Fernando José Mascarenhas, RJ, 3/7/1772”: “Vmce me proporá para o posto de Capitão da nova Compa de Auxiliar, que mandei formar no seo Terço, as pessoas q’ lhe parecerem mais capazes, e assistidas do requizitos necessários (...)” ANRJ. Correspondências dos Vice-Reis... Op. cit., Cod. 70, v. 7, p. 80. 194. “Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Conde da Cunha, 19/6/1767” Século XVIII – Século Pombalino... Op. cit., p. 139. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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A diminuição significativa da presença e do poder das Câmaras sobre as Ordenanças resultou em um aumento considerável no exercício do poder dos oficiais dessas forças militares. Eles passaram a dispor de uma acentuada margem de autonomia em relação aos órgãos de administração local, as Câmaras Municipais; quanto mais as Ordenanças se vinculavam aos governadores das Capitanias, mais se tornavam independentes das Câmaras Municipais e mais se sobressaíam na esfera local. A primeira disposição legislativa que produziu significativas alterações nas regras estabelecidas por D. Sebastião para as eleições dos Corpos de Ordenanças, em 1570, aconteceu mais de um século depois. Em 18 de outubro de 1709, no reinado de D. João V, foram feitas modificações com o objetivo de impedir as notórias, e crescentes, irregularidades praticadas pelas Câmaras Municipais no processo de eleição dos postos das Ordenanças. A situação era considerada preocupante: “achando-se a maior parte dos Concelhos divididos em parcialidades com grande escandalo da Justiça e perturbação do bom governo”,195 porque o resultado era a eleição de pessoas muito pouco “dignas de ocupar os postos militares” superiores dos Corpos das Ordenanças. O Alvará de 1709196 veio “extinguir as ditas eleições dos postos da Milicia, derrogando nesta parte o dito Regimento [das Ordenanças de 1570], ficando em seu vigor as mais dispoisições dele”,197 estabelecendo uma nova forma para a eleição dos capitães-mores, sargentos-mores, capitães das companhias e demais oficiais das Ordenanças. Mesmo sem retirar a jurisdição de que as Câmaras dispunham “em se fazerem nelas as taes eleições, concorrendo para elas com seus votos”,198 as medidas determinadas pelo Alvará contribuíram para uma significativa redução do poder dos oficias das Câmaras. Por outro lado, a Coroa aumentou o controle e a fiscalização sobre o processo eletivo no Corpo das Ordenanças, inclusive com a presença mais constante do capitão-mor, que sofria firme vigilância do poder central. Figura fundamental das eleições, o capitão-mor acumulava as funções de indicar, confirmar e nomear os oficiais, sempre em conformidade com o posto a ser ocupado. 195. Alvará de 18/10/1709. In: Verissimo, Antonio Ferreira da Costa. Op. cit. “Leis Pertencentes às Ordenanças”, v. 4, p. 48-50. 196. Embora o Alvará não mencione especificamente o Brasil, suas determinações devem ser observadas “nas Cidades, Villas, e Concelhos destes meus Reinos.” 197. Idem. 198. Idem. 72

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Na vacância do posto de capitão-mor das Ordenanças, os oficiais da Câmara, em conjunto com o corregedor ou provedor da comarca, indicavam três pessoas “da melhor nobreza, christandade e desinteresse”.199 Depois, os camaristas deviam reunir as informações necessárias sobre cada homem selecionado e transmiti-las ao general ou ao cabo encarregado das tropas da província. Este último, através do Conselho de Guerra,200 sugeria ao rei uma decisão final sobre a ocupação dos postos. Regras idênticas deveriam ser observadas para o provimento do sargento-mor e capitães das Companhias, com uma diferença lógica no colegiado composto para a escolha dos indicados, que neste caso era formado pelos oficiais da Câmara ao lado do alcaide donatário ou do capitão-mor. Para os postos de alferes e sargentos das companhias de Ordenanças, seus capitães poderiam nomear as pessoas “mais dignas, e capazes das suas companhias para os ocuparem”,201 selecionando por “nombramento”, e submetendo sua escolha à aprovação do capitão-mor e confirmação do Governador das Armas. Os ajudantes das ordenanças – posto que não constava no Regimento –, segundo o Alvará, “também erão providos por eleição”,202 e doravante nomeados pelo capitãomor, responsável pela escolha da pessoa “que lhe parecer mais habil, e benemerita”.203 O Alvará também determinou que os homens indicados para as Ordenanças haviam de residir no mesmo distrito dos postos ocupados e, através do Conselho de Guerra, o rei requereu que as patentes dos capitães-mores, sargentos-mores e capitães das companhias de Ordenanças fossem “assinadas de minha real mão, e não por provisão como até agora o forão”.204

199. Idem. 200. “O Conselho de Guerra, criado por decreto de 11/12/1640, exercia jurisdição apenas nos negócios militares do Estado português, já as questões ultramarinas orientavam-se pelas decisões do Conselho Ultramarino, também criado logo após a Restauração por decreto de 14/7/1642, a quem competia, entre outras atribuições, a confirmação de todas as patentes militares concedidas pelos governadores das capitanias dos Estados do Brasil e Maranhão.” Apud Nanci Leonzo. As Companhias de Ordenanças na Capitania de São Paulo. São Paulo: Coleção Museo Paulista, Série História, v. 6, 1977, p. 166. 201. Idem. 202. Idem. 203. Idem. 204. Idem. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Em referência direta ao Estado do Brasil e Maranhão,205 outra lei seria expedida em 21 de abril de 1739. O objetivo era cessar a desordem, que nasce da multiplicidade de postos militares, que neste Estado do Brasil e Maranhão/de que resulta a multiplicidade de requerimentos/ se regule nas Capitanias o número dos officiais da Ordenança.206

Portanto, em cada vila deveria haver apenas um capitão-mor, com seu sargento-mor e ajudantes, e os capitães das companhias; entre estas, as que contassem com menos de cem integrantes se absteriam de capitão-mor, cabendo ao capitão da companhia o comando militar. A Lei de 1739 também confirmou as mesmas práticas de até então para o provimento dos postos das Ordenanças no Brasil, ou seja, conservou a responsabilidade do provimento nas mãos dos governadores. No entanto, o Conselho Ultramarino, encarregado das confirmações de patente, só as faria na medida estabelecida pela lei. Igualmente dirigida ao Brasil, a Lei de 12 de dezembro de 1749 decretava que “os governadores do Brasil escolherão o mais digno dos propostos e proverão logo, mandando-lhe passar patente(...)”.207 A lei reiterava a ordem de que “não se provão os postos das ditas Ordenanças, sem precederem propostas das Camaras como se pratica no reino”, tentando corrigir a “diferença no modo de prover os postos della [das Ordenanças]”,208 normalmente sem as indicações das Câmaras. Outra determinação da mesma Lei de 1749 representou uma mudança radical para o posto de capitão-mor: “que os capitães-mores das 205. “O Estado do Maranhão, com governo à parte abrangia o Ceará e o Pará, toda a costa do Brasil, desde o cabo de São Roque até a fronteira setentrional ainda não demarcada do Pará. Formavam o Estado do Brasil, a Capitania da Bahia e suas anexas: Sergipe, Ilheus e Porto Seguro, a Capitania de Pernambuco e seus subalternas: Paraíba, Rio Grande do Norte, a Capitania do Espírito Santo todas constituindo a repartição norte daquel Estado. A repartição sul compreendia a Capitania geral do Rio de Janeiro e a Capitania de São Vicente, mais tarde de São Paulo. Esta divisão prevaleceu até 1613. No século XVIII, novas capitanias foram criadas. A de Minas Gerais, no Centro-Sul brasileiro, em 1720, a do Rio Grande do Sul, ao Sul, em 1742, dependente do Rio de Janeiro e a de Goiás e a de Mato Grosso, a Oeste, em 1748”. Myriam Ellis. “O Monopólio do Sal no Estado do Brasil”, p. 23-25. (Apud Nanci Leonzo, As Companhias de Ordenanças...Op. cit., p. 167.) 206. “Lei de 21 de abril de 1739” In: Systema ou Collecção dos Regimentos Reais, compilados por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, tomo V. Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1789, p. 534. 207. Idem. 208. Idem. 74

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Ordenanças do Brasil sejão vitalicios, e não trienais”.209 Essa determinação régia demonstra a intenção de promover um afastamento político do capitão-mor, e do Corpo de Ordenanças, em relação ao órgão de administração local, as Câmaras Municipais. Em última instância, a medida tinha por finalidade tornar esse Corpo Militar o mais diretamente possível subordinado às ordens do poder central. Em virtude da determinação de vitaliciedade no posto de capitão-mor, houve uma significativa redução da ingerência das Câmaras nas Ordenanças. A participação camarista diminuiu, porque a eleição perdeu o caráter regular, ficando restrita aos casos de vacância do posto – geralmente, por morte – e de criação de um novo Corpo de Ordenanças. Assim, a independência do capitão-mor em relação a seus eleitores foi reforçada pela diferença de tempo entre os mandatos: os camaristas dispunham de apenas um ano contra a vitaliciedade dos capitães-mores. Além disso, as reuniões em Câmara destinadas à eleição de outros postos das Ordenanças – de sargentos-mores e capitães das companhias –, passaram a ser decididas pelos próprios capitães-mores, deixando os vereadores sem qualquer autonomia no âmbito militar. As leis dispostas no reinado de D. João V (1706-1750) reduziram o poder das Câmaras nas questões militares, principalmente sobre as Ordenanças, e reforçaram a figura do capitão-mor. Esse conjunto de leis é a chave do entendimento de boa parte das tensões produzidas entre os vereadores das Câmaras e os oficiais das Ordenanças. Um caso significativo teve lugar na vila de Santo Antonio de Sá, no Rio de Janeiro, em 1768, quando o Vice-Rei Conde de Azambuja ordenou que se fizessem indicações para sargento-mor e capitães dos distritos. A tarefa foi cumprida pela (na) Câmara, “com a prezidencia do juiz, e asistencia do capitão-mor”,210 mas o capitão-mor aceitou apenas o resultado da eleição para o posto de sargento-mor, e “ouve por nula a de capitaens por asestir o juiz, mandando fazer outra o que se observou”.211 Apesar de acatar a exigência do capitão-mor, a Câmara manifestou seu desagrado em representação ao Rei D. José I, alegando que “parece impraticavel a falta de asistencia de Juiz, quando a lei do reino o obriga

209. “Lei de 12 de dezembro de 1749” In: Systema ou Collecção dos Regimentos Reais... Op. cit, p. 537. 210. Idem. 211. Idem. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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a hir sempre as vereansas, e não pode tratarse materia grave sem a sua asistencia”.212 Em São Paulo, também em 1768, há outro exemplo das rusgas entre camaristas e ordenanças, representantes de dois pólos de poder local. Durante a revista geral das Ordenanças, feita pelo capitão-mor na vila de Taubaté, um capitão de uma de suas Companhias pretendeu obrigar ao veriador mais velho desta Camera Ignacio Ferreira Coutinho a hir a d.a mostra geral com sua arma as costas no corpo da d.a comp.a (...) a cuja deligençia repugnou o d.o veriador em razão de estar ocupado no Real Serv.o pello cargo que exercia nesta Camera (...).213

Os oficiais da Câmara da vila protestaram em representação ao Rei D. José I, indignados com a pretensão e o atrevimento do capitão, por não conceberem que “os off.es da Camera a cabessa da Rep.ca fazendo o lugar q’ reprezenta haja de se sugeitar ao mandatto de hum Capp.am”.214 Embora existisse um vínculo entre as Ordenanças e as Câmaras Municipais, as duas instituições se transformavam em redes cada vez mais distintas de autoridade, aumentando o número de desavenças e disputas de poder entre esses dois centros de poder local. O Regimento das Ordenanças de D. Sebastião ainda sofreria outras alterações depois da lei de dezembro de 1749. Pela Resolução de 27 de junho de 1757, D. José determinou ao Conselho Ultramarino que fossem enviadas para o Estado do Brasil cópias do Regimento das Ordenanças de 1570, da Provisão das Ordenanças de 1574 e das leis decretadas durante o reinado de D. João V, acrescidas de suas próprias disposições, depois reunidas na compilação legislativa a Provisão das Ordenanças de 1758, que visavam atualizar alguns itens dispostos na legislação anterior. As cláusulas alteradas por D. José I fortaleceram a influência dos governadores das Capitanias nas questões militares dos Corpos de Ordenanças; por exemplo, uma alteração determinava que, no Estado do Brasil, o “juramento aos Santos Evangelhos” fosse feito pelos capitães-mores na presença do governador da Capitania, e somente após a confirmação da

212. Idem. 213. “Representação dos oficiais da Câmara da Vila de Taubaté a D. José, 4/11/1768”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 26, Doc. 2.450. 214. Idem. 76

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patente pelo Conselho Ultramarino.215 Até então, o item 4 do “Regimento das Ordenanças de 1570” determinava que o juramento fosse feito em Câmara, perante os oficiais. A política de D. José I também reafirmou necessidade da aprovação do rei no processo eletivo. A eleição de capitães-mores continuou a observar o disposto pelo Alvará de 18 de outubro de 1709: em caso de vaga, as propostas seriam feitas em Câmara e encaminhadas ao governador da Capitania para a escolha final e a concessão da patente, ainda sujeita à confirmação régia.216 D. José confiou novas responsabilidades aos governadores das Capitanias, que passaram a controlar o sistema de vigias nas localidades marítimas e a fixar data e local para a realização dos exercícios das Ordenanças. O monarca também atualizou o uso do armamento prescrito no “Regimento de 1570”, ordenando que arcabuzes, flechas e lanças – posse obrigatória de todos os moradores – fossem entendidos como espingardas de pederneira, por estarem aqueles em desuso na prática militar. Por determinação de D. José, até mesmo recursos judiciais passaram a ser encaminhados aos governadores das Capitanias. Juntamente com o auditor-geral e o cabo de maior patente, os governadores dariam a sentença da ação.217 A determinação anterior, de 1570, estabelecia que tanto a representação dos corregedores contra os oficiais das Ordenanças, quanto a subsequente apelação, deveria ser julgada na corte. Os propósitos que nortearam o envio desta súmula legislativa para a Colônia estavam na parte introdutória da “Provisão das Ordenanças de 1758”: (...) sendo-me presente a disformidade, com que no Estado do Brazil se costumam prôver Officiaes Cabos das Ordenanças, passando-se em alguns governos as patentes, e nombramentos muito contrario ao que dispõe as minhas Reaes Ordens, nascendo esta desigualdade da ignorância, que della tem alguns governadores e capitães-mores, como

215. Idem, item 72. 216. “Provisão da Ordenanças de 1758”. In: Systema ou Collecção dos Regimentos Reais, compilados por José Roberto de Campos Coelho e Sousa, tomo V. Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1789, item 71. 217. Idem, item 77. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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também alguns ministros, e os officiaes das Camaras das Cidades, e Villas do dito Estado, e os da Milicia (...).218

A “ignorância” citada acima é atribuída não só a “alguns” dos notáveis locais – “capitães-mores, oficiais das Câmaras e da Milícia” –, mas também a “alguns” dos representantes diretos da administração régia – governadores. Inserido no “complexo mundo de comportamentos e compromissos inerentes às relações entre centro e localidades”,219 o termo “ignorância”, visto como índice do acontecimento transgressor das normas vigentes, aponta para a interpretação de que a prática política de alguns governadores se fez em conivência com interesses locais; prática que estaria envolvida e influenciada por favores e subornos, relações de parentesco, e dos notáveis locais, naturalmente, socialmente comprometida com uma densa rede de relações pessoais, permeada de corporativismo e clientelismo. Ao tentar sanar as irregularidades praticadas no provimento dos postos das Ordenanças, a preocupação de D. José era dispor de uma conveniente e fundamental participação dos habitantes da América portuguesa na defesa do patrimônio colonial.220 Havia um perigoso crescimento das tensões entre as Cortes de Madri e Lisboa, proveniente das inegáveis dificuldades de demarcação dos limites estabelecidos pelo Tratado de 1750. Em 1758, ano da Provisão das Ordenanças, além de Portugal se defrontar com a notória instabilidade das fronteiras na América entre os dois reinos, convivia com o segundo ano da Guerra dos Sete Anos, que trazia a iminência de um envolvimento dos países ibéricos em milícias opostas. Esses fatos foram decisivos para a Corte portuguesa confirmar 218. “Provisão das Ordenanças de 30 de abril de 1758”. Op. cit., p. 516. 219. Pujol. Op. cit., p. 130. 220. A esse respeito, é interessante registrar as questões colocadas por Fernando Novais: “A defesa do patrimônio, isto é, a preservação das colônias, é, evidente, na ordem lógica, a primeira tarefa que enfrenta sempre uma metrópole colonizadora. O que, no caso português, e em especial em relação ao Brasil, tornava essa manutenção territorial um problema, era, de um lado, a defasagem no ritmo de desenvolvimento econômico da metrópole em relação às principais potências europeias; de outro lado, a desproporção entre a imensidão dos domínios e a pequenez da metrópole. Assim, durante o consulado pombalino, que é quando se estrutura de forma mais sistemática todo um esquema de ação política de índole ilustrada, lançaram-se as grandes linhas de definição territorial e preservação das fronteiras.” Já quanto à participação de colonos na defesa do patrimônio metropolitano, o autor cita o ministro português Martinho de Mello e Castro: “nenhuma potência, por mais formidável que seja, pode, nem intentou até o presente, defender as suas colônias com as únicas forças do país dominante ou do seu próprio continente”. Fernando Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Editora Hucitec, 1983, p. 136 e 139. 78

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a necessidade de se precaver contra possíveis investidas dos espanhóis aos territórios portugueses ao sul do Estado do Brasil. Outra preocupação de D. José era destacar a importância da confirmação régia no processo eletivo de oficiais das Ordenanças. Com possibilidade de intervenção reguladora, a confirmação régia funcionava como um dispositivo de supervisão e distribuição hierárquica: corrigia excessos e desvios, valorizando as concessões de cargos e os privilégios resultantes do recebimento de altas patentes nos corpos militares. As concessões régias podem ser vistas como a fonte vital do Estado Absoluto; valorizadas e almejadas, se constituíam da substância indispensável para o fortalecimento do vínculo de fidelidade entre os súditos e o poder real. Através da Provisão das Ordenanças de 1758, D. José I pretendia, não apenas aumentar a eficácia na fiscalização régia do provimento dos postos de Ordenanças, mas também conseguir uma efetiva subordinação do posto de capitão-mor aos representantes ultramarinos do poder régio, os governadores das capitanias. As leis do reinado de D. João V, da mesma forma que a Provisão de D. José, convergiam no sentido da centralização régia das questões militares, no caso em estudo, relativas às Ordenanças. O plano era enfraquecer as Câmaras Municipais e conferir ao comandante das Ordenanças um maior poder. As alterações efetivadas por D. José representam o ápice da ingerência régia nas Ordenanças no âmbito legislativo, e o distanciamento máximo entre esse corpo militar e as Câmaras Municipais.

2.5. A Pedagogia Militar Durante a segunda metade do século XVIII, a existência dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças revestiu-se de suma importância, não somente em função da imprescindível manutenção e defesa da posse territorial, que os definia como força fundamental, mas também devido ao relevante papel que assumiam na potencialidade simbólica de expressão e representação de uma ordem social que se construía. Ribeiro Sanches, um dos inspiradores da administração pombalina, em seu livro Cartas sobre a Educação da Mocidade,221 elabora propostas para a ordenação social de Portugal com uma concepção ampla do papel das organizações militares, vendo-as como um paradigma de 221. Sanches, António Nunes Ribeiro, Cartas sobre a Educação da Mocidade [1759]. Prefácio e notas de Joaquim Ferreira. Porto: Editorial Domingos Barreira, [s./d.]. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ordem também para o âmbito do civil. Pela análise do Relatório do Marquês do Lavradio, destinado ao seu sucessor no vice-reino do Estado do Brasil, pode-se verificar claramente a utilização dessa concepção militarista durante sua administração (1769-1779). Durante a segunda metade do século XVIII, a busca do governo português por uma maior centralização político-administrativa provocou mudanças nas instituições políticas e militares outrora dotadas de certa autonomia. Uma política régia que se estendeu pelos domínios ultramarinos portugueses e, no Estado do Brasil, foi implementada por seus representantes: o vice-rei, os capitães-generais e os governadores das capitanias, todos comprometidos em seguir com obediência às instruções da Metrópole. Consequência da nova organização político-social do poder absoluto, e evidenciada no processo de “afirmação do caráter ‘absoluto’ (não partilhado) do poder político da coroa”,222 a exigência da subordinação e obediência de todos os súditos perante a autoridade da Coroa tornou-se uma questão primordial para o estabelecimento e consolidação do governo régio. Subordinação e obediência – reunidas em disciplina – deveriam atuar como forças centrípetas e integrativas, capazes de reverter o efeito centrífugo representado pela ordem política tradicional ou corporativa. Na sociedade tradicional, a Igreja representava importante papel no processo de disciplinamento e ordenação social, não só no âmbito da religião, mas também nos da educação e da política, orientando todos os membros no sentido da univocidade, e pastoreando o funcionamento correto de cada uma das partes para a boa integração do todo, o então corpo místico do Estado. Nada mais emblemático do que os padres da Cia. de Jesus, com sua imperiosa disciplina e irrestrita obediência ao superior religioso: espalhados por todos os recantos da sociedade, sem dúvida eram os mais fiéis soldados de Cristo. Aquele disciplinamento social, outrora dirigido pelos padres, só era viável naquela sociedade tradicional, onde o Estado “não é jamais objeto autônomo de política, mas objeto de teologia política”.223 222. Hespanha, A. M. Poder e Instituição na Europa do Antigo Regime. Op. cit., p. 43. 223. Pécora, Alcir, Teatro do Sacramento, S.P., Edusp, 1994, p. 131. Esta afirmação do autor, feita e desenvolvida em seu livro sobre o Padre Antonio Vieira, está em total acordo com a concepção do Estado português vigente na época, que era defendida pela doutrina teológico-política denominada neotomista: um conjunto de premissas políticas que orientavam a lógica da ação e do pensamento político, principalmente nos países católicos como Portu80

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A “des-teologização” da política exigiu uma nova mecânica de instauração da disciplina social, porque as autoridades do governo já não confiavam mais à Igreja grande ingerência na sociedade. Os métodos que alicerçaram a disciplina dessa nova ordem política estão descritos por Ribeiro Sanches em seu livro Cartas sobre a Educação da Mocidade, onde faz uma criteriosa análise da situação de Portugal, localizando as mazelas provocadas pela estrutura social e apontando possíveis saídas. Para Sanches, a instrução da mocidade devia ser oferecida no que chamou de “Escola Militar ou dos Nobres”. A proposta de uma “escola militar governada pela disciplina mi224 litar” está intimamente ligada ao processo de deslocamento da disciplina social, indo do domínio eclesiástico para o governamental. Portanto, a proposta era criar um educandário laico, e colocá-lo a serviço da nova ordem política do Estado absolutista. Ora, que outra instituição além da militar, onde a ordem é efetivada com autoridade e obediência, traduziria melhor a disciplina a ser imposta? Ao propor a criação da “Escola Militar ou dos Nobres” ao Marquês de Pombal, Ribeiro Sanches afirma entusiasmado: Que me concedam que os generais, os almirantes, os magistrados e todos os cargos sejam administrados por homens educados em uma escola [neste molde] estou certo que será um reino bem governado.225

A proposta de Ribeiro Sanches para a utilização da pedagogia militar foi construída a partir de uma concepção abrangente da instituição militar, em que esta instituição não estaria apenas identificada com as – não menos importantes – atividades de guerra ou combate, mas também com um processo educacional pleno do sentido de disciplina e ordem presente na nova fundamentação teórica do poder do Estado. Para Sanches, dessa forma “As leis teriam vigor, porque os súditos as

gal e Espanha. Nesse sentido, baseia sua argumentação em Quentin Skinner, As Fundações do Pensamento Político Moderno [São Paulo: Cia. das Letras, 1999], especialmente no capítulo “O Ressurgimento do Tomismo”, p. 414-450. João Adolfo Hansen, em A Sátira e o Engenho [São Paulo: Cia. das Letras, 1986], ao trabalhar com Gregório de Matos para inserir a obra deste no contexto político do século XVII, também se utiliza da obra acima citada. 224. Sanches, António Nunes Ribeiro. Op. cit., p. 208. 225. Idem, p. 65. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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executariam; e estando autorizados, as observariam, conhecendo interiormente terem superior e que são nascidos súditos”.226 As questões ligadas às funções de guerra e combate não são desprestigiadas pelo autor. Operando com a contraposição entre uma ordem antiga e outra nova, por ele chamadas de Monarquia Gótica e Monarquia civil ou política, Ribeiro Sanches adverte sobre mudanças necessárias na organização militar em prol do estabelecimento da nova ordem:227 A força, o ânimo ousado e a valentia já não são bastantes para vencer, como quando fazíamos a guerra expulsando os mouros da pátria. A arte da guerra, hoje, é ciência fundada em princípios que se aprendem e devem aprender antes que se veja o inimigo, necessita de estudo, de aplicação, de atenção e reflexão.228

Ribeiro Sanches constata e critica os objetivos limitados e efêmeros da antiga administração militar na Monarquia Gótica, e afirma a necessidade de uma perspectiva mais ampla: A constituição da nossa monarquia, sendo só para guerrear e conquistar, era força que acabasse logo que uma paz durasse por oitenta ou cem anos; porque nenhuma lei nem educação da mocidade havia para se empregar neste tempo do descanso. Esta foi a causa por que chegaram os vícios ao cume de toda a perversidade.229

A segunda metade do século XVIII assiste a um alargamento da concepção da disciplina militar, que se efetiva como paradigma também para o âmbito civil. Ampliam-se a concepção do soldado e da guerra: esta, não mais limitada à função de conquista, mas também à de conservação dos territórios conquistados; e o soldado não mais reduzido ao exercício da força e da violência, sendo inserido no aprendizado da ciência em que se convertera a guerra. 226. Idem, p. 209. 227. A missão de instaurar a modernização no exército português coube ao conde alemão de Lippe-Schaumburg, contratado para a tarefa em 1762. “O Regulamento para o exercício, e disciplina dos Regimentos de Infantaria dos Exércitos de Sua Magestade Fidelissima” é fruto desse trabalho. 228. Idem, p. 174. 229. Idem, p. 122. 82

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A “Escola Militar ou dos Nobres” foi criada230 “Para se educarem os moços nobres destinados a servir nos exércitos e nos cargos civis”,231 mas apesar de Ribeiro Sanches ter um público idealmente determinado para sua escola, o paradigma da educação militar rompeu os muros da “Escola dos Nobres” e foi levado à população em geral. Uma Lei de 1765 é um bom exemplo desta concepção abrangente do método militar ao determinar que todos os individuos se reunissem todos os domingos nos movimentos, e evoluções militares, e sendo preciso para este importante fim dar uma certa ordem a numerosa população desta Cidade, a qual sirva ao mesmo tempo, para que sem confusão possão acudir em Corpos aos diferentes pontos.232

A Coroa portuguesa também se utilizou da pedagogia militar para impor uma nova disciplina aos habitantes das colônias no Ultramar, empregando-a mais explicitamente na administração do vice-rei do Estado do Brasil, Marquês do Lavradio. O sistema utilizado pelo Marquês do Lavradio durante seu governo no Brasil (1769-1779), descrito no Relatório233 ao vice-rei que o substituiria, opera com a promoção de precisas regras hierárquicas. O objetivo era assegurar a unidade política da República e do Império, submetendo a pluralidade de membros a um único fim: a felicidade do bem comum, postulada como a força capaz de reunir, ou reduzir, todos os indivíduos a um só corpo. O sistema trazia uma concepção de ordem social que almejava integrar “os povos” – “negros, mulatos, cabras, mestiços” – e “outras

230. Pela carta de Lei do dia 7/7/1761, promulgada por Pombal, foi fundada em Portugal a Escola Militar ou dos Nobres. Ribeiro Sanches utilizou a Escola Militar de S. Petersburgo como modelo para a escola proposta nas Cartas sobre a Educação da Mocidade. Lá, Ribeiro foi nomeado médico pela imperatriz Ana Ivanowna, tendo permanecido na posição por muitos anos e conhecido profundamente a organicidade daquela instituição. 231. Sanches, António Nunes Ribeiro. Op. cit., p. 162. 232. “Collecção Sistemática das Leis Militares, que desde o reinado do Senhor Rey D. José o I, se tem promulgado até ao presente ano de 1794”, p. 38, Citado por Silviano da Cruz Curado, “O Recrutamento Militar no Brasil Pombalino. In: VII Colóquio “O Recruamento Militar em Portugal”. Lisboa: Comissão Potuguesa de História Militar, 1996, p. 257. 233. “Relatório do Marquês do Lavradio”. In: Armitage, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1943. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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gentes semelhantes”234 – índios, forros, homens brancos livres e pobres – ao corpo político do Estado, tornando-os igualmente súditos, sabedores “que são depositários das leis e ordem do Soberano”.235 A meta era conseguir que toda a população se apropriasse dessa concepção, adaptandoa a seu padrão de conduta, pois “fica sendo impossível o governar sem socego e sujeição a uns povos semelhantes”.236 Para o Marquês do Lavradio, o sistema de “milícias” – Auxiliares e Ordenanças – era a melhor forma de acomodar no corpo do Estado os “povos”, porque esses “gradualmente se vão pondo no costume da subordinação, até chegarem a conhecê-la todos na pessoa que S. M. tem determinado para os governar”.237 A organização militar, capaz de englobar amplas camadas da população, definiria para cada morador o seu lugar na hierarquia do corpo militar, e o seu lugar na República, subordinando todos à univocidade da vontade do soberano. O contraste entre a exuberante riqueza da terra e o caráter geral da população é flagrante na visão do marquês: estes povos em um paíz tão dilatado, tão abundante, tão rico; compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes da pior educação, de caráter libertino, como são os negros, mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhantes.238

Para ele, os libertinos, fora de qualquer controle ou ordenação, “povos criados em toda a liberdade, sem estarem acostumados a sujeição nenhuma”,239 eram os responsáveis pela desagregação da ordem social. Partes imunes à lei, eram os inatos corruptores da unidade do bem comum, um perigo político que ameaçava as engrenagens da máquina do governo. No sistema do marquês, as “milícias” – Auxiliares e Ordenanças – representavam um princípio ordenador; um plano para fazer com que a cabeça da República fosse conquistando gradualmente o controle sobre a parte inferior do seu corpo. Na hierarquia do comando, pari passo, 234. Idem, p. 424. 235. Idem. 236. Idem. 237. Idem. 238. Idem. 239. Idem,p. 241. 84

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temos na primeira instância a sujeição aos capitães, na segunda aos comandantes das respectivas tropas, na terceira ao vice-rei e capitãogeneral, e finalmente ao rei, a capital hierárquica, cabeça de todo o corpo constituído pelo Estado. As propostas estratégias deste sistema eram de incorporação e intervenção: por um lado, a integração da população aos corpos militares através de um conjunto de medidas para os recrutamentos; por outro, a repressão pura e simples de qualquer desordem: ataques de quilombos, invasão de engenhos por gentios, captura de criminosos, fuga de presos, deserção de soldados etc. Dessa forma, incorporando e intervindo, o sistema manteria o controle sobre a população nas armas e pelas armas. No Relatório, apresenta-se a oposição entre socego e sujeição, valores da unidade de todos no bem comum, e desordens e inquietações,240 desvios considerados comportamentos, atos e gestos desfiguradores da máquina política, sinais de mau funcionamento: os ajuntamentos e desordens que naqueles dias costumam fazer os pretos e os mulatos, sendo raro o dia em que não houvesem algumas mortes (...) e roubos, que faziam pelas estradas, assassínios e outras desordens.241

As resistências e protestos da população contra o serviço nos Terços de Auxiliares aos domingos, dias santos, e em horas noturnas, também eram objetos constantes da crítica do Marquês do Lavradio: É certo que com isso os reduzia à maior sujeição; muitos se queixavam, porém, quando examinadas as queixas, se conhecia serem estas sem outro fundamento mais que os caprichos (...) que nunca estas devem merecer atenção, principalmente quando do que se pratica o Estado recebe utilidade.242

O ideal de unidade de todos no bem comum está presente na evidência de que queixas e caprichos “não devem merecer atenção” por 240. Idem. “(...) porque em todas as partes aonde tem havido de(faltado)reduzir os povos a esta ordem, têm sido as desordens e inquietações imensas(...)e pelo contrario se tem visto que naquellas partes aonde os povos estão reduzidos a esta ordem, tudo se conserva com muito maior socego, e são menos frequentes as desordens, e são mais respeitaveis as leis” 241. Idem, p. 330. 242. Idem, p. 325. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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serem fatos irrelevantes diante da unidade maior, mantenedora da harmonia e da ordem; para o bem e utilidade de todo o Estado,243 as queixas deviam ser controladas, reduzidas e anuladas. A falta da unidade, da subordinação de todos a uma vontade capital e soberana, seria a causa da desagregação social e do esfacelamento da ordem, que fatalmente dividem a cidade, a República e o Império.

2.6. A Dinâmica das Relações O estudo do conjunto de documentos da administração do Marquês do Lavradio, vice-rei do Estado do Brasil (1769-1779), reunidos nas “Correspondências dos vice-reis com diversas autoridades” tem confirmado a enorme potencialidade destes documentos fornecerem informações preciosas sobre a dinâmica das relações estabelecidas entre as elites locais e o poder central, respectivamente, os oficiais superiores dos Corpos Militares – Ordenanças e Auxiliares – e os representantes da Metrópole na Colônia – capitães-generais e vice-rei. Nas “Correspondências”, é imensa a quantidade de cartas do vicerei dirigidas às autoridades militares, mais especificamente aos Mestres de Campo, comandantes das Tropas Auxiliares. Também são grandes a quantidade e diversidade de requerimentos enviados ao vice-rei, solicitando resoluções das mais variadas competências; desde problemas específicos, mesmo familiares, entre moradores das comunidades locais, até aqueles em que houvesse interesse público. Pela prática da época, o Marquês lia os requerimentos e os enviava a determinadas autoridades para avaliar a veracidade do conteúdo. Devidamente informado sobre o assunto, e fundamentado pela interpretação que as autoridades davam aos fatos, só então o marquês tomava a decisão final. As autoridades mais solicitadas pelo Marquês para as averiguações são os mestres de campo,244 que tinham atribuições tanto em assuntos militares quanto em civis. Havia uma necessária colaboração entre o vice-rei e as elites locais, cujo lugar político, hierarquicamente 243. Idem, p. 345.“Foi meu sistema sobre todos estes pontos, em primeiro lugar, assentar tudo que podia contribuir para a felicidade, socego, defesa e conservação destes povos e deste Estado.” 244. Dauril Alden em seu livro Royal Government in Colonial Brasil, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1968, p. 445, se refere aos Mestres de Campo como sendo “the eyes and ears of the viceroy in the countryside” e acrescenta “the mestre de campo played a vital role in the administration of the Brazilian countryside.” 86

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superior ao de outros segmentos da sociedade colonial, implicava em maior abrangência e eficácia na manutenção da boa ordem política. O conhecimento das elites – no caso, os mestres de campo – sobre a realidade que as cercava, fazia delas grupos primordiais na dinâmica do funcionamento do poder político. Um exemplo da valorização desse saber local é a opinião do marquês sobre o perfil ideal de comandante dos Auxiliares: “hum oficial prudente, e com conhecimento do genio dos povos dessa Capitania”.245 Eis os critérios eletivos que norteavam as nomeações dos oficiais de alta patente das Tropas Auxiliares: o posto de mestre de campo – comandante dos Auxiliares – seria ocupado por homem que estivesse entre os “principais da terra”; os postos de sargentos-mores e ajudantes recairiam em oficiais provenientes das tropas de linha, destinados à instrução e disciplina das companhias, e com soldo equivalente ao das tropas regulares. Esses critérios eletivos são confirmados nas nomeações efetuadas pelo Marquês do Lavradio em 1777. O Mestre de Campo Fernando Dias Paes Leme, por exemplo, é eleito por ser “das pessoas mais destinctas desta Capitania, e ter alguns conhecimentos Militares”. Uma escolha que evidencia a priorização do valor social das “pessoas das mais distintas”, consideradas as mais aptas a exercer um cargo de comando porque possuíam “bastante renda para viver independente dos seus subditos, ficando por esta forma sem perigo de que elle abuze da sua jurisdição”. Em outro Terço, o nomeado para Mestre de Campo é Inácio de Andrade Sotomaior, “tambem das principais famílias desta Capitania, homem de muita honra e probidade, e ainda q’ não tem muitos conhecimentos militares tem bastante capacidade para governar a Tropa do seu Terço”. Mais uma vez, a associação entre o valor social e a capacidade de comando. O marquês ainda conclui: “e como tem bom sargento-maior e ajudante, e estes são os que de ordinário trabalhão nos Corpos Auxiliares poderá sempre conservar aquelle Corpo em muito boa Ordem”. Ao assumirem a função de intermediários do vice-rei com as comunidades locais, os militares de alta patente tornaram-se imprescindíveis ao marquês, informando-o (ou não) de intrigas e desvios ocorridos nos interesses em jogo, inclusive o público. A prática política adequada supunha, necessariamente, um desdobramento satisfatório nas nego245. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopes Lobo de Saldanha, 7/8/1776” AHU, RJ, Avulsos, Cx. 109, Doc. 75. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ciações entre o vice-rei e a elite local, ocasiões em que o poder político embora, “concentrado” nas mãos do vice-rei era na prática “distribuído” entre os oficiais militares. O maquês a priori, reputava bom conceito aos mestres de campo, a ponto de lhes confiar a tarefa de avaliar os vários impasses que se apresentavam através dos requerimentos. Essa visão apriorística decorria de uma concepção hierárquica da sociedade, que creditava àqueles que ocupavam os altos postos a categoria de pessoas “honradas” e “nobres”; homens que deveriam acudir “com maior vontade á defesão da sua Patria, e meu Serviço”, e portanto, receber as régias mercês.246 Na prática, esses valores levaram à formação de um quadro de enorme complexidade, onde os denunciantes de determinados desvios eram os transgressores das regras em outros processos. É o caso, por exemplo, do capitão-mor de Macacú. Ele denunciou ao marquês o procedimento da Câmara, que ordenara a preparação do terço para a procissão de Corpus Christi,247 sem a prévia autorização do vice-rei. Investido da função de “comandante supremo de todas as forças armadas de sua capitania, bem com das subalternas”,248 o marquês imediatamente escreve indignado à Câmara: Estranho severamente a Vmce escreverem ao Cap.am Mor dessa Villa para este fazer apromptar o seo Terço (...), sem primeiro me darem parte, pois não podendo mover-se este Terço, sem Ordem minha.249 246. “Carta Régia sobre a Criação de Soldados Auxiliares. Lisboa, 7/1/1645”. In: Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa compilada por José Justino de Andrade e Silva”, volume de 1645 a 1640, p. 271 e 272. 247. Necessário lembrar que as Câmaras tinham, até então – antes do cerceamento que ocorre a partir da segunda metade do século XVIII –, a total exclusividade na organização das festividades religiosas, dentre as quais “a principal era a festa do Corpo de Deus, vindo a seguir a do santo patrono da cidade.” [C. R. Boxer. O Império Colonial Português... Op. cit., p. 309]. A propósito dos privilégios das Câmaras, Maria Fernanda Bicalho destaca: “Sua mais nobre atribuição, no entanto – aquela que lhe conferia, segundo os códigos do Antigo Regime, maiores honras e visibilidade – era a organização de festividades e procissões, dentre elas – revestida da maior importância e solenidade – a procissão do Corpo de Deus, na qual esvaiam boa parte de seus parcos rendimentos.” [A Cidade e o Império – O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial... Op. cit., p. 382.] Para um estudo mais aprofundado sobre as festas religiosas, especialmente as procissões, no século XIX, ver William de Souza Martins, Arraiais e Procissões na Corte – Civilização e Festas na Cidade do Rio de Janeiro (1828-1860). Dissertação de Mestrado, UFF, 1996 (mimeo). 248. Prado, Caio Jr. Formação do Brasil... Op. cit., p. 306. 249. “Carta a Câmara de Macacú. Rio de Janeiro, 28/5/1770”. Correspondências dos vicereis com diversas Autoridades, ANRJ. Códice 70, v. 5, p. 51. 88

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O capitão-mor recebe elogios do vice-rei pelo ato de fiel e atento vassalo: “Obrou Vmce bem em o não apromptar, Sem primeiro me dar parte, por não dever este Terço mover-se sem Ordem minha (…).”250 No entanto, dois meses depois a situação é outra. O capitão-mor tenta ludibriar o vice-rei através de um requerimento com falsas indicações, mas é descoberto e repreendido severamente: Como pelas Cartas que Vmce me aprezentou de José Maciel Gago da Camara vejo ter me enganado com o requerimento que me fez, Vmce deixará de continuar na Suspenção da minha Ordem, antes fará executar na forma que lhe foi determinada.251

Fidelidades provisórias moviam-se de acordo com circunstâncias diversas, uma vez que, como esclarece Pujol, as “lealdades à Coroa dependeram muitas vezes dos pequenos conflitos e desordens dentro da esfera local”; e reitera: “Uma vez mais se constata que as relações – entre poder central e local – não eram facilmente dicotômicas.”252 A partir da perspectiva do vice-rei e de sua função, é possível identificar na situação acima um outro elemento importante para o entendimento da lógica política do Estado Absolutista: o significado das punições e negociações. Como já havia observado o Conde da Cunha, “(...)o premio e o castigo são os dous polos em que se firmam as Monarquias”, e sem o equilíbrio entre ambos “não é possível haver boa ordem ou regularidade no governo (...)”.253 A eloquência das repreensões do Marquês, acima observadas, não representa a ausência de negociação entre vice-rei e súdito, mas a busca do compromisso da outra parte em retribuir com a obrigação de lealdade e fidelidade. A mesma lógica política está na Carta Circular enviada, no ano de 1773, a todos os mestres de campo das vilas da Capitania do Rio de Janeiro. Nela, o vice-rei informa “Ser da mente de El Rei Meo Senhor” que 250. “Carta ao Cap.am Mor de Macacú”, Idem. 251. “Carta ao Cap.am Mor de Macacú. Rio de Janeiro, 27/7/1770”, idem, p. 68. 252. Pujol, Gil Xavier. “Centralismo e Localismo? Sobre as relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europeias dos Séculos XVI e XVII”. In: Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 6, 1991, p. 126. 253. “Carta do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, Rio de Janeiro, 24/5/1767”. In: Mendonça, Marcos Carneiro de. Século XVIII... Op. cit., p. 457. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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todas as vilas da Capitania fizessem contribuições para o Hospital dos Lázaros, porque delas “tem concorrido bastantes enfermos para elle” e, como os rendimentos eram insuficientes, nada mais justo que pagassem “todos os que gozam do beneficio publico (...) a qual fará Vmce cobrar nessa villa e em todo o seo termo, pellos Officiaes do seu Terso”.254 Percebendo a predisposição de não pagamento do imposto e a alegação de miséria dos povos das vilas, o marquês se antecipa a esse discurso, expondo as razões da ruína local e a causa da própria miséria, quando declara estar informado de que “os moradores de todas as Villas pertencentes a este Estado, não tem cuidado athe agora na cultura das terras”.255 E censura o não cumprimento dos deveres dos colonos, obrigados por uma relação de compromisso recíproco com o rei: ...tendo-lhe El Rey Meo Senhor concedido de graça as terras, que possuem de Sesmarias, não para outro fim mais, que para as cultivarem e plantarem todo o genero de legume, tanto para as suas utilidades (...) como para a sustentação dos povos.256

Insistindo na desobediência, tais “povos” se tornam maus súditos, merecedores do devido castigo, a fim de que retornem ao lugar de bons súditos e cumpram com as respectivas obrigações: “Se não cultivarem os moradores dessa Villa todas as terras na forma acima dita (...) me dará Vmce conta, para eu as dar por devolutas, a quem as cultive.”257 Os mestres de campo, presença e força local, têm a tarefa fundamental de supervisionar o processo de reconduzir aqueles “povos” à condição de súditos obedientes: ficando ao cuidado de Vmce remeter annualmente a esta Secretaria huma Relação distinta da plantação, que fizerem os ditos moradores nas Suas terras (...) para por ella me Ser presente os mantimentos, que se tiverem recolhido em

254. “Carta Circullar aos Mestres de Campos das Villas de S. Antonio de Sá, e S. Salvador dos Campos Goytacazes, e aos Sargentos Mayores de Cabo Frio, Ilha Garande e Paraty. Rio de Janeiro 12/2/1773”. In: Correspondências dos vice-reis com diversas Autoridades, ANRJ. Cod. 70, v. 7, p. 133-134. 255. Idem. 256. Idem. 257. Idem. 90

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observancia desta minha ordem, que espero do seo zelo, e eficacia tenha a sua devida e inviolavel execução.258

As reações a essas medidas logo se fizeram sentir, através de representações feitas ao vice-rei pelas Câmaras de Parati e Cabo Frio, onde se expunha a impossibilidade de pagamento das contribuições devido a “a pobreza, e miseria em que se acha essa villa”.259 Porém, o marquês responde severamente, acusando a própria Câmara de não cumprir com seu devido papel de representante do bem comum daquele povo ao “não obrigarem aos moradores della a cuidarem na cultura das terras”.260 Mais adiante, censura com palavras enérgicas o procedimento da Câmara: Vmce com frivolos pretextos querem persuadir, sendo os primeiros, que se quizeram izentar della, Sem advertirem, que a mesma Contribuição foi determinada na conformidade da Mente de El Rey Meo Senhor, que a mandou estabelecer em benefício público, de todos os Seos Vassalos (...) me parece inattendivel a Sua representação.261

O marquês critica os que ainda permanecem aferrados à cobiça invencível e à prática facciosa, indiferentes ao bem comum, apesar da boa vontade régia, e mesmo “sendo a Real Mão tão liberal em beneficiar a todos os seos vassallos”.262

258. Idem. 259. “Carta aos Officiaes da Camara da V.a de Paratty, Rio de Janeiro, 17/5/1773”, Idem., p. 155 260. Idem. 261. Idem. 262. “Carta aos Juizes Ordinarios, e mais Officiaes da Camara da Cidade de Cabo Frio. Rio de Janeiro, 14/4/1773”, Idem, p. 144. CAPÍTULO 2 – OS CORPOS DE AUXILIARES ... DO SÉCULO XVIII Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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PARTE II

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CAPÍTULO 3 A Importância e a Vulnerabilidade da Cidade do Rio de Janeiro: A Colônia do Sacramento e o Ouro das Minas

3.1. A Cidade do Rio de Janeiro e a Fundação da Colônia do Sacramento Estrategicamente situado, o Rio de Janeiro era fundamental tanto para a manutenção quanto para a expansão do território português ao sul da América. O porto da cidade era o mais próximo da região Sul da Colônia, e de lá saíram os recursos necessários para a fundação de Sacramento, na região Meridional da América do Sul, zona de intensos conflitos gerados pela indefinição de limites territoriais entre os domínios das Coroas da Espanha e de Portugal. Em abril de 1679, ao assumir o governo do Rio de Janeiro, D. Manoel Lobo já trazia um plano de governo: após tomar de posse, D. Manoel se deslocaria até o rio do Prata para fundar uma colônia devidamente fortificada, junto às ilhas de São Gabriel. Consolidada no fim de 1679, a colônia recebeu o nome de Santíssimo Sacramento. Ao mesmo tempo, um decreto do Príncipe Regente D. Pedro II, com a intenção de garantir a execução das ordens régias, transformou o Rio de Janeiro na sede do governo geral das capitanias do Sul, deixando estas capitanias sujeitas àquela jurisdição, “sob o fundamento de não ser possível, sem essa subordinação, executarem-se as ordens reais (...)”.263 Além disso, no Regimento de 7 de janeiro de 1679, as atribuições do Rio de

263. “Decreto de 12/11/1769”. Citado por Felisbello Freire em História da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1912, p. 254; Max Fleiuss. História do Rio de Janeiro. São Paulo: Melhoramentos, 1928, p. 83. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Janeiro já haviam aumentado consideravelmente, deixando o governo do Rio com maior autonomia264 em relação ao governo-geral da Bahia. A Colônia americana atravessava um momento economicamente crítico, com a crescente perda de mercados sofrida pelo açúcar brasileiro, principalmente após a expulsão dos holandeses, em 1654. Com a fundação de um estabelecimento fixo na orla do rio do Prata, incrementando a vida econômica da Colônia, a Coroa portuguesa visava superar a grave crise que ameaçava sua economia.265 Dessa forma, o intento de Portugal com a fundação de Sacramento se inseriu, segundo Sergio Buarque de Holanda, em um amplo programa que visava a valorizar a colônia americana. A ruína progressiva da principal fonte de riqueza do Brasil era tão alarmante nesses tempos, que se impunha, cada vez mais, o inventário, o aproveitamento e a multiplicação de todas as possibilidades atuais e latentes na colônia.266

O objetivo econômico português era retomar o comércio platino, bastante rentável no período dos Felipes (1580-1640), interrompido após a Restauração de Portugal, em 1640, com terríveis consequências tanto para a economia da Colônia, especialmente a do Rio de Janeiro, quanto para a da Metrópole. A resolução régia de estabelecer a Colônia do Sacramento na margem direita do Prata, também atendia às antigas e recorrentes solicitações da Câmara do Rio de Janeiro, que planejava revigorar suas já tradicionais relações comerciais com as províncias do domínio espanhol267 através da criação de um entreposto no estuário platino. Ponto estratégico situado perto de Buenos Aires, um dos prin264. D. Manoel Lobo, responsável pela fundação da Colônia do Sacramento, foi o primeiro governador do Rio de Janeiro autorizado a administrar as capitanias do Sul “com relativa autonomia em relação ao Governo-Geral da Bahia”. [Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 202.] 265. Holanda, Sérgio Buarque, “A Colônia do Sacramento e a Expansão no Extremo Sul”. In: História Geral da Civilização Brasileira, tomo 1. São Paulo: Difel, 1976, p. 343-344. Segundo o autor, o açúcar brasileiro sofria a concorrência nos mercados britânicos do açúcar de Barbados desde 1640 e desde 1660. A partir de 1699 a produção de Barbados se intensifica, acarretando um acentuado declínio da exportação do açúcar brasileiro. A baixa continuaria nos anos seguintes, quando o açúcar das Antilhas inglesas impediu o brasileiro de entrar na Grã-Bretanha e em toda a Europa Setentrional. Idem. 266. Idem, p. 343. 267. Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVII. Tese de Doutoramento. USP, 1997, p. 198. 96

CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS

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cipais portos de saída da prata castelhana, a Colônia do Sacramento também deveria atuar como base de apoio para a exploração, parcial que fosse, da ambicionada prata de Potosi. Por causa do direito de “asiento”, que vigorou até a restauração de seu reino, Portugal podia vender apenas um número limitado de escravos para a América Espanhola. Entretanto, segundo Boxer, o “asiento” constituía-se, na verdade, em “uma brecha através da qual prosperava cada vez mais um intenso contrabando no tráfico de escravos de Angola e do Brasil com o Rio da Prata”.268 Grande parte do metal esvaía-se através do comércio ilegal, fosse devido à importação de um contingente de escravos além do permitido pelo direito de “asiento”, fosse com as mercadorias de todo gênero contrabandeadas à bordo dos navios negreiros. Os moradores das províncias do Prata se abasteciam com o contrabando por preços inferiores aos cobrados pelo comércio oficial de Castela, em “flagrante violação das ordens régias e do monopólio comercial espanhol”.269 A Capitania do Rio de Janeiro tinha papel de destaque nessas transações comerciais: “sua posição meridional lhe conferiu (...) condições excepcionais de trânsito entre as possessões espanholas do estuário do Prata e os enclaves negreiros na África (...)”.270 Dos negros que chegavam ao Rio de Janeiro provenientes da África, grande parte era destinada ao contrabando para o vice-reino do Prata. Além dos escravos, o contrabando incluía vários artigos europeus que entravam na região Platina através do porto de Buenos Aires, de onde saía a prata de Potosi destinada aos comerciantes do Rio de Janeiro e de Lisboa. Entretanto, se a fundação e manutenção da Colônia do Sacramento em 1679 eram de fundamental importância estratégica para a reativação do comércio português271 na região platina, também eram 268. Boxer, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional, 1973, p. 90. 269. Idem,p. 92. 270. Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de doutorado. USP, 1997, p. 185. 271. Os ingleses também estavam presentes na região platina, praticando em larga escala o comércio ilícito com as colônias espanholas. Segundo Olga Pantaleão (A penetração comercial da Inglaterra na América Espanhola, p. 157-61. Apud Belloto, Heloísa Liberalli. Autoridade e Conflito no Brasil Colonial: O Governo do Morgado de Mateus em São Paulo. São Paulo: Secretaria Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979, p. 41 e nota 59). Desde sua fundação “Os ingleses utilizavam-se da Colônia do Sacramento para as suas transações com o mundo hispano-americano, aproveitando-se de Tratados anglo-lusitanos que permitiram a sua participação no comércio colonial português (....)”. Seus navios uniam-se às frotas portugueCAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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evidentes os sérios prejuízos que o estabelecimento português representava aos interesses comerciais da Coroa de Castela. De fato, os espanhóis logo invadiram a Colônia do Sacramento: em 1680, ainda durante a construção, a fortaleza foi tomada de assalto e destruída pelas tropas espanholas sob o comando de D. José de Garro, governador de Buenos Aires. As ruínas só foram devolvidas a Portugal em 1683, após o Tratado Provisório de 1681, estabelecido entre o Regente D. Pedro e o Rei Carlos II da Espanha, até que pudessem chegar a uma conclusão final daquela disputa à luz do Tratado de Tordesilhas. No entanto, como observa Ferrand de Almeida, embora o Tratado Provisório de 1681 proibisse o comércio português e castelhano em Buenos Aires, por mar e por terra, na realidade, porém, os estímulos econômicos e a convergência de interesses venciam com frequência as imposições e ameaças da lei. Não eram só os habitantes da Colônia e de Buenos Aires, os mercadores do Rio de Janeiro ou de Lisboa: até alguns governadores procuravam fazer o seu negócio.272

Além de chamar a atenção para os interesses econômicos determinantes na Colônia de Sacramento, Ferrand de Almeida aponta outros interesses da Coroa de Portugal naquela região, que diziam respeito a questão geopolítica: a dilatação de seus domínios americanos; no caso em estudo, o extremo sul da América. Para o autor, a fundação da Colônia do Sacramento seria “o resultado de um conjunto complexo de fatores econômicos e políticos”.273 Ferrand inicia sua argumentação demonstrando a tradição então presente na cartografia e na literatura histórica e geográfica portuguesa, anterior ao período da fundação da Colônia, que já projetava a fixação meridional do Brasil no rio Prata. Considerado pelos portugueses como a fronteira do Brasil ao sul, o rio do Prata representava o limite definidor da divisão política entre os dois reinos,274 mas tinha sas em Lisboa; do Rio de Janeiro, seguiam para a Colônia: “empório de tráfico e contrabando do Rio do Prata”, no dizer de João Lúcio de Azevedo (Apud Belloto, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 41 e nota 59). 272. Almeida, Luís Ferrand. A Colonia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973, p. 80. 273. Idem, p. 153. 274. Idem, p. 153 a 156. 98

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esse valor contestado pelos espanhóis, que viam na presença portuguesa uma séria ameaça ao domínio na região Platina, reputada como território espanhol. Na perspectiva da manutenção e ampliação das fronteiras ao sul do território luso-americano, o empreendimento da Colônia do Sacramento tornou-se um obstáculo para a estratégia política espanhola de expansão pela margem direita do Prata, sendo uma “permanente ameaça aos interesses de Sua Magestade Católica”, por estar “justamente no eixo vital da penetração espanhola”275. Os portugueses haviam de se antecipar aos castelhanos na posse efetiva daquelas terras, e se apressar no estabelecimento desse posto avançado e solitário, a Colônia do Sacramento, porque se fossem esperar que a colonização portuguesa ao longo do litoral atingisse o Prata para então estabelecer aí uma fortaleza seria correr sério risco de atraso relativamente aos espanhóis, que entretanto poderiam fixar-se na banda oriental.276

O empenho da política portuguesa em fundar e manter a Colônia do Sacramento, marco-limite a definir uma fronteira “ideal” de divisão política, pode ser compreendido como pensava Capistrano de Abreu: a melhor maneira de afirmar e sustentar direitos estava em levá-los ao extremo, certo é que a nova povoação ia ficar isolada, a grande distância das bases brasileiras, com as quais só poderia manter difíceis comunicações.277

Para a total consolidação da posse da Colônia pelos portugueses – que envolveu intensas disputas diplomáticas entre as Cortes Ibéricas –, era preciso tornar Sacramento um reduto muito bem fortificado e guarnecido, tanto para a defesa de ataques espanhóis, quanto para convertê-la em ponto de irradiação da conquista portuguesa do imenso território ao redor. 275. Moraes, C. Dante. Colônia do Sacramento e Rio Grande de São Pedro, p. 65. Apud, Ferrand de Almeida. A Colônia do Sacramento...Op. cit., p. 158. 276. Almeida, Luís Ferrand de. A Colônia do Sacramento... Op. cit., p. 157. 277. Abreu, J. Capistrano. “Sobre a Colônia do Sacramento”. In: Ensaios e Estudos (Crítica e História), 3. série, RJ, 1938, p. 73. Apud Ferrand de Almeida. A Colônia do Sacramento... Op. cit., p. 156. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Eram urgentes a restauração das ruínas deixadas pelos espanhóis em 1680, a construção de uma nova e mais robusta fortaleza, e um melhor guarnecimento da praça militar da Colônia com tropas suficientes para sua defesa. Nos anos subsequentes à segunda fundação de Sacramento, o Rio de Janeiro278 foi a base de sustentação da ação militar na região Platina, conservando a Colônia279 com seus próprios recursos. Em decorrência da situação se tornar cada vez mais onerosa para o Rio de Janeiro, esta Capitania teve as defesas de sua barra em constante desfalque de mantimentos e de guarnição. Devido à precária situação militar, não foram poucos os governadores do Rio de Janeiro que remeteram constantes queixas e advertências à Coroa sobre o perigo ao qual a cidade estava exposta. Em 1692, o Governador Paes de Sande observou a tendência da política régia em priorizar as exigências militares da Colônia do Sacramento280 em detrimento das necessidades da Capitania do Rio de Janeiro, uma praça que se encontrava constantemente desfalcada “dos melhores soldados e officiaes”281 por causa das frequentes demandas da Colônia, ficando com a defesa perigosamente prejudicada “por serem os soldados poucos e muitos delles inuteis”.282 O governador chama a atenção para a fundamental importância estratégica da Capitania do Rio de Janeiro, advertindo que sua defesa não deveria ser negligenciada, porque de sua “conçervação 278. Almeida, Luís Ferrand de. A Colônia do Sacramento...Op. cit., p. 83. 279. Fleiuss, Max. Op. cit., p. 92; Freire, Felisbello. História da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunaes, 1912, p. 256. 280. Embora a Colônia do Sacramento, não estivesse sob a total jurisdição do Rio de Janeiro nesse período, e dispusesse de seu próprio governador, D.Francisco Naper de Alencastro, com patente do ano de 1689, Sacramento estava sob a jurisdição militar daquela Capitania, segundo determinação da Carta Régia de 2/3/1689, que delegara a seus governadores, entre outras incumbências, o poder de proverem os postos militares e definirem as medidas julgadas necessárias para a fortificação e defesa militar desde a praça do Rio de Janeiro até a Colônia do Sacramento, no extremo sul. [Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Op. cit., p. 208; Max Fleiuss. História do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 93]. Nesse sentido, era comum o envio de auxílio a Sacramento, não só em homens como também em dinheiro. Em 1694, o Governador do Rio de Janeiro, Paes de Sande, remeteu carta à Coroa, informando sobre a convocação que fizera para ajustar com os oficiais da Câmara a melhor forma de conseguir o lançamento e a cobrança de um novo imposto para a conservação da Colônia do Sacramento [AHU, Avulsos, Cx. 10, Doc. 1.931]. No ano de 1696, foram enviados para aquela praça 8.000 cruzados [AHU, Avulsos, Cx. 27, Doc. 6.107, Anexo]. Em 1697, a Coroa deteminou que “sahissem 5000 cruzados com que essa Capitania hade contribuir cada anno para os socorros da nova Colonia das agoas ardentes da terra (...)” [AHU, Avulsos, Cx. 27, Doc. 6.107, Anexo]. 281. Idem. 282. Idem. 100

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dependia a de todas as mais capitanias que V. Mg.de tem no Brasil da parte do Sul”.283 Com as solicitações do governador negadas, a situação militar da cidade do Rio de Janeiro só tendia a se agravar. As demandas de soldados para a Colônia do Sacramento eram incessantes devido ao alto índice de deserção, em razão das péssimas condições de vida e do reduzido e atrasado soldo recebido pela tropa – quando recebido. Contudo, essa política do Conselho Ultramarino, segundo Vivaldo Coaracy,284 foi mantida por muitos anos, com a Capitania do Rio de Janeiro sendo responsável por grande parte da manutenção de Sacramento. No entanto, se os constantes recrutamentos militares realizados na Capitania do Rio de Janeiro para as tropas de Sacramento fragilizavam a capacidade defensiva da cidade contra possíveis ataques externos, é possível verificar que o mesmo recrutamento funcionava como agente de saneamento social. Através do recrutamento, as comunidades locais puderam “eliminar” elementos indesejáveis, “por serem danozos aos Povos” ou “pernisiozos nas terras onde assistem”;285 classificados também como “vagabundos”,286 eles foram convertidos em soldados e levados para a defesa da longínqua Colônia do Sacramento, sempre tão sedenta de tropas. Em 1700, o Governador da Colônia do Sacramento, Sebastião da Veiga Cabral,287 acusou o Governador do Rio de Janeiro de enviar soldados impróprios para o serviço militar naquela praça “por se fazerem estes daquella gente a que ahi chamão pesrapados (...)”;288 o Governador do Rio, 283. Idem. 284. Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Op. cit., p. 201. 285. “Carta do Governador Arthur de Sá e Menezes para a Coroa, acerca da reclamação do Governador da Colonia do Sacramento sobre o recrutamento dos soldados, RJ, 26/5/1700” AHU, Cx. 12, Doc. 2.369-2.370. 286. Idem. 287. De acordo com a documentação e a bibliografia consultadas, podemos registrar que a Colônia do Sacramento, ao ser restituída em 1683, passou a ser governada por Christovão Ornellas até 1689, quando assumiu o governo D. Francisco Naper de Alencastro. Entretanto, pela Carta Régia de 2/3/1689, a jurisdição militar da Colônia pertencia aos governadores do Rio de Janeiro. O governo de D. Francisco Naper de Alencastro marcou o início de uma nova política com a Colônia, tentando transformar o estabelecimento militar em foco de colonização [Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Op. cit., p. 208; Max Fleiuss. História do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 87; Freire, Felisbello. História da Cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 263; Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil. Coord. Maria Beatriz Nizza da Silva. “Colônia do Sacramento”. Luís Ferrand de Almeida. Lisboa/SP: Editora Verbo, 1994, 180; AHU, RJ, Avulsos, Cx. 13, Doc. 1.567 e 2.604]. 288. “Carta do Governador Arthur de Sá e Menezes para a Coroa, RJ, 26/5/1700”. Op. cit. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Arthur de Sá e Menezes, respondeu ao colega dizendo não haver qualquer impropriedade nos pesrapados ou vagabundos que os impedisse de servir como soldados. Assim, afirmava “que os socorros da Infantaria que vão para aquella Praça são pesrapados, não posso duvidar que assim lhe chamão (...) e este nome lhes não tira a serventia de soldados (...)”.289 O Rio de Janeiro necessitava de um cuidado especial, mas as atenções militares estavam voltadas para a Colônia do Sacramento. A costa do Rio de Janeiro já vinha sendo frequentemente visitada por corsários, sobretudo franceses, gerando inquietações nas autoridades pela possibilidade de comércio ilegal, bem como pelo temor específico de que uma invasão encontrasse a cidade despreparada para sua defesa. Já no ano de 1695, a cidade havia vivido momentos de pânico por causa da aproximação de uma esquadra de cinco navios franceses, comandada por De Gennes, que solicitou a entrada na barra para refresco de sua tripulação e aprovisionamento de seus navios290. Durante a presença francesa no Rio de Janeiro, a população permaneceu em estado de alerta, tendo o então governador Sebastião de Castro Caldas procurado tomar todas as providências militares cabíveis, precavendo-se de uma possível invasão. O medo em relação aos estrangeiros assolou a cidade como um todo, e as desconfianças “(...) não eram prerrogativas exclusivas das autoridades governamentais, sendo igualmente partilhadas pela população”291 que, diante daqueles inesperados e ameaçadores visitantes, viveu dias de intensa insegurança, geradora de perturbações e inquietações entre os moradores da cidade.292 As crescentes tensões e ameaças representadas pelas constantes aparições de navios franceses na costa do Rio de Janeiro, assim como a indecisa política diplomática de Portugal em relação à França,293 deixa289. Idem. 290. Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de doutorado. USP, 1997, p. 270. 291. Idem, p. 269. 292. Maiores detalhes sobre a reação da população do Rio de Janeiro, bem como as medidas militares tomadas pelo governador Sebastião de Castro Caldas no episódio da entrada da esquadra comandada por De Gennes no porto do Rio de Janeiro, ver Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império... Op. cit., p. 208-211 e 269-272. 293. Essa situação, exposta mais detalhadamente logo a seguir, diz respeito à posição que Portugal poderia vir a tomar frente ao conflito que se prenunciava, a Guerra de Sucessão de Espanha. A favor da coroação de Felipe de Bourbon, seria aliada da França e da Espanha; contrária à coroação, a coligação seria com a Grande Aliança, tendo a Inglaterra como potência mais representativa. 102

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ram o Governador Artur de Sá e Menezes em situação bastante delicada, obrigado a tomar as providências adequadas e imediatas no sentido de garantir a defesa da cidade. Diante da possível necessidade de novas ações militares, uma das tarefas do governador era organizar militarmente a população, fosse através de processos iniciados por seus antecessores ou de novas estratégias de compromisso com os habitantes. Para facilitar o recrutamento de todos em idade militar, Artur de Sá (1697-1702) deu prosseguimento a um projeto de 1692, que dividia o Rio de Janeiro em capitanias de ordenanças, também chamadas de distritos – termo utilizado genericamente para designar unidades de recrutamento294 –, por onde seriam distribuídas as diversas Companhias de Ordenanças295. O governador também deu continuidade ao cumprimento das determinações da Carta Régia de 1695, que recomendavam, ao então Governador Castro Caldas, congregar os habitantes dispersos pelos sertões em centros organizados e regulares de povoamento no interior da Capitania, para submetê-los mais facilmente às autoridades e às leis constituídas.296 A dispersão da população havia sido reflexo da descoberta de ouro realizada pelos bandeirantes em São Paulo, cuja notícia se alastrou pela Capitania do Rio de Janeiro, levando ao nomadismo um grande contingente de habitantes que euforicamente emigrou para a zona aurífera. Os Corpos de Ordenanças seriam destacados a partir destas circunscrições militares – os distritos – que, desde 1692, constituíam-se nos seguintes: Guaxindiba, Irajá, Maricá, Icarí, Taipú, Piratininga, São Bento, Campo Grande, Inhomirim, Sarapuí, Iguassú, S. João de Tapacurá, Macacú, Itambí, Jacarepaguá, Botafogo, Tarairaponga, Guapimirim, Guapiguassú e Marubaí, Surui.297 294. Podemos claramente perceber a utilização do termo distrito enquanto circunscrição militar ou unidade de recrutamento vinculada às Companhias de Ordenanças nos documentos ora citados: “(...) passou ao posto de Capitão de infantaria das Ordenanças do Destricto de Tapacurá por patente de 1692 o qual posto exercitou athe 11/5/1701 (...)”. Requerimento de João Gomes da Silva, anterior a 2/3/1703, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 13, Doc. 2.701; “(...) e assim obrigareis aos tais moedeiros e familiares que se agreguem as ordenanças dos seus destritos (...)”. Provisão Régia de 1/3/1727, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 39, Doc. 9.133-9.1432.; “Faço saber aos que esta minha carta patente virem que atendendo a se achar vago o posto de Cap.am de Infantaria da ordenança do destricto da freguesia de N.S. da Candelaria desta cidade (...)”. Carta patente, RJ, 4/7/1729, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 27, Doc. 6.326-6.327. 295. Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1944, p. 213. 296. Idem. p. 222 297. Idem.p. 213. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Estimulando os assentamentos da população e organizando as Ordenanças em distritos, a tarefa de compor os Corpos tornou-se menos árdua, já que os capitães de Ordenanças passaram a recrutar seus efetivos entre os moradores das respectivas circunscrições militares, os distritos. Essa forma de organização foi aprimorada no governo de Artur de Sá, que também se empenhou na fundação de novas vilas nos distritos.298 Em 1699, a fim de integrar uma camada social da população da cidade do Rio de Janeiro resistente ao serviço militar, Artur de Sá criou duas companhias de privilegiados,299 para que “se não possão o escuzar de acudir quando para isso seião chamados (…)”.300 Os privilégios desses habitantes provinham do fato de terem o título de cidadãos que “servem no Senado da Camera, e ficão logrando o tal previlegio”,301 obtido em 1642, quando a cidade do Rio de Janeiro recebeu o título de “Leal”.302 Entretanto, a isenção do serviço militar desfrutada pelos oficiais das Câmaras referia-se ao serviço nas tropas remuneradas e não nas de Ordenanças; nestes corpos, até os classificados como cidadãos deveriam estar agregados, porque mesmo no reino “nenhum privilegio ha por maior que seja, que livre de que possão matricular os previlegiados nas companhias de ordenança”.303 Diante da representação de Artur de Sá sobre os motivos que o levaram à criação das companhias, a Coroa não só louvou sua conduta como determinou que se criassem mais duas companhias de privilegiados. As classificações de posição social, característica racial e condição jurídica dos súditos constituíam-se em critérios de distinção nas 298. Idem. 299. Sobre os recorrentes conflitos verificados entre as autoridades militares da Capitania do Rio de Janeiro e aqueles que detinham os privilégios de cidadão, ver Bicalho, Maria Fernanda. “Os Privilégios dos Cidadãos”. In: A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de doutorado. USP, 1997, p. 215-228. 300. Carta régia dirigida ao Governador do Rio de Janeiro sobre a organização das companhias dos privilegiados. Lisboa, 25/9/1699. (AHU, Cx. 39, Doc. 9.137.) 301. Idem. 302. Pelo decreto de 6 de julho de 1647, D. João IV concedia o título de Leal à cidade do Rio de Janeiro, ampliando as prerrogativas da Câmara, dentre as quais o direito – ou o poder – de, “em ausência do governador e do Alcaide-Mor daquela praça, faça a Câmara da dita Cidade o ofício de Capitão-Mor e tenha as chaves dela”. In: Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade do Rio de Janeiro e a Articulação da Região em torno do Atlântico-Sul. Séculos XVII e XVIII. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 1998. 303. Carta régia dirigida ao Governador do Rio de Janeiro sobre a organização das companhias dos privilegiados. Lisboa, 25/9/1699 (AHU, Cx. 39, Doc. 9.137). 104

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Companhias de Ordenanças. As forças da cidade eram selecionadas pelos lugares que os habitantes ocupavam na hierarquia social da Colônia, resultado da conjugação dos matizes hierárquicos do Estado Absolutista português com as especificidades sociais da Colônia.304 No próprio exemplo acima, cidadãos são distinguidos dos demais no serviço militar através do nome criado para a Companhia – de privilegiados; além disso, eles ocupavam todos os postos de comando em todas as Companhia de Ordenanças. Em 1725, o Governador do Rio de Janeiro foi encarregado, por Provisão Régia, de organizar uma Companhia de moedeiros e outra de familiares do Santo Ofício, devendo também agregá-las ao Regimento ou Terço da Nobreza ou dos Privilegiados.305 O mesmo sentido hierárquico agrupava nas posições mais inferiores da ordem social os negros forros e os pardos, constituindo suas respectivas Companhias de Ordenanças, nomeadas conforme a cor da pele – Companhias de pardos e de pretos – e de acordo com a condição jurídica – de forros ou de bastardos.306 O comando dessas Companhias era exercido por homens brancos que possuíam os requisitos para o posto: os “principais da terra”, aqueles de “melhor nobreza, christiandade e desinteresse”.307 ***

304. Stuart Schwartz, em seu livro Segredos Internos, afirma que embora a sociedade colonial brasileira tivesse herdado os princípios portugueses de organização hierárquica da sociedade, foi impelida a criar e ampliar seus próprios sistemas de graduações hierárquicas, decorrentes das especificidades vividas na realidade social da Colônia. Stuart Schwartz. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1985, p. 209-215. 305. Provisão Régia. Lisboa, 17/4/1725 (AHU, Cx. 39, Doc. 9.133-9.137). 306. O mapa do Terço da Ordenança da parte da cidade do Rio de Janeiro, em 1703, apresenta uma Companhia dos Pardos, com 96 soldados, sob o comando de Chrispim da Cunha Tenreiro; e o mapa do Terço da Ordenança da banda d´além mar, da parte de São Gonçalo, exibe uma Companhia dos Pretos Forros, com 62 soldados, sob o comando de Balthazar de Abreu Cardoso. “Carta do Governador D. Alvaro da Silveira”. RJ, 23/8/1703”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 14, Doc. 2.760-2.772. Entretanto, até 1731, a tendência foi separar os pardos e bastardos em companhias específicas excluídas das de Ordenanças. Esse arranjo viria a ser alterado pela Ordem Régia de 13/1/1731, dirigida ao Governador Luiz Vahia Monteiro, que determinou a agregação de corpos de pardos e bastardos às demais Companhias de Ordenanças existentes em seus distritos, juntamente com os outros moradores. Ordem Régia de 13/1/1731, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 55, Doc. 12.945-12.949. 307. “Regimento das Ordenanças e dos Capitães-Mores de 1570”, itens 2 e 67. In: Mendonça, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB/ Conselho Federal de Cultura, 1972, T. I. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Um outro aspecto relevante era fator de fragilização da Capitania do Rio de Janeiro: o constante deslocamento dos governadores, devido à manutenção das possessões ao Sul, até 1683, e à supervisão das jazidas de ouro na região das Minas, até 1709. Em função da frequência, às vezes essas viagens se tornavam uma questão bastante delicada para a Capitania, principalmente para aqueles que a governavam. D. Manuel Lobo, empossado em 1679, e com jurisdição sobre as demais Capitanias do Sul até a fronteira do Prata, assim que chegou ao Rio dirigiu-se ao Sul para cumprir a determinação régia de erguer uma povoação fortificada na Colônia do Sacramento. A prolongada ausência deste governador, devido à enorme tarefa, levou à interinidade os Mestres de Campo João Tavares Roldon, de 1679 a 1680, e Pedro Gomes, de 1681 a 1682. O sucessor de D. Manuel Lobo foi D. Duarte Teixeira, que governou o Rio de Janeiro de 1682 até 1686, com igual jurisdição sobre as Capitanias do Sul. Após ter sido conquistada pelos espanhóis, a Colônia do Sacramento foi restituída aos portugueses em 1683, provocando outro período de ausência no Rio, porque o governador “trazia a incumbência especial de receber dos espanhóis a Colonia do Sacramento e restaurá-la, povoando de novo”.308 Enquanto isso, o governo da capitania estava entregue aos oficiais do Senado da Câmara do Rio de Janeiro. As ordens régias de supervisão da região aurífera também provocavam a ausência dos governadores da sede do Rio de Janeiro. Artur de Sá e Menezes, governador e capitão-general309 da Capitania do Rio de Janeiro, e também administrador das Minas, por exemplo, foi à região do ouro algumas vezes. Como essas viagens se tornaram frequentes, o Conselho Ultramarino determinou, por decreto de 7 de novembro de 1699, que o encarregado do governo da Capitania do Rio de Janeiro, na ausência ou falta do governador, seria o mestre de campo remunerado. Assim, o governo interino do Rio, assim como o das Capitanias subordi-

308. Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Op. cit., p. 196; Max Fleiuss. História do Rio de Janeiro. Op. cit, p. 86; Freire, Felisbello. História da Cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 259. 309. O primeiro governador a quem foi concedida a patente de Capitão-General, “importando isso em uma superioridade administrativa e política em que colocava a Capitania, em relação aos governos anteriores”. Essa situação decorria do fato de que “Artur de Sá vinha tratar de um ramo de serviço – a exploração das minas do sul, que lhe exigia uma lata soma de autoridade militar e civil” (Freire, Felisbello. Op. cit., p. 285). 106

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nadas à sua jurisdição, foi exercido pelo Mestre de Campo Francisco de Castro e Moraes.310 O Conselho dispôs sobre as providências a serem tomadas tanto em face das necessárias ausências do Governador Artur de Sá e Menezes, e dos próximos governadores eleitos, quanto da forma de governo que deveria ser suguida na cidade do Rio de Janeiro. O decreto confirma a ausência constante do governador: O Conselho Ultramarino mandará passar as ordens necessarias, para que nas auzencias do governador do Rio de Janeiro Artur de Sá e Menezes fique governando o Mestre de Campo do 3º pago Francisco de Castro e Moraes (...) e para o fazer se mandarão dar a mesma providencia, para que os mestres de campo pagos governem nas auzencias ou faltas dos governadores.311

Entretanto, logo houve um evidente conflito de poder entre o governador interino e o Capitão-General Sá e Menezes. Para a Coroa, este último estava requerendo o direito indevido de prover os cargos militares312 do Rio de Janeiro mesmo durante sua ausência, em detrimento das funções de Francisco de Castro e Moraes, “que substituhio esse governo, na auzencia que fizestes as Minas (...)”.313 A Coroa responde ao capitão-general reconhecendo os argumentos dele, mas justificando que: “não o podendo fazer por esta jurisdição e regalia vos tocar a vos como governador principal”.314 E como a função de árbitro era atribuída ao rei, sendo sua vontade soberana, determinou:

310. Francisco de Castro e Moraes era o Mestre de Campo do chamado Terço Velho (tropa paga), já existente na cidade do Rio de Janeiro. No ano de 1700, diante dos fortes indícios de ameaças francesas na região, organizou-se outra unidade, denominada Terço Novo, distinguindo-a deste modo da anterior. 311. Decreto pelo qual se determinou que o governo da Capitania do Rio de Janeiro seria exercido pelos Mestres de Campo pagos, nas ausências ou faltas dos governadores. Lisboa, 7/11/1699. (AHU, Cx. 42, Doc. 9.840-9.849.) 312. A partir da Carta Régia de 2/3/1689, os governadores do Rio de Janeiro dispunham da “liberdade de provimento dos postos de milícias, das medidas concernentes à fortificação e defesa da praça, na amplitude de jurisdição, que se estendia até a Colonia do Sacramento” (Fleiuss, Max. Op. cit., p. 92). 313. Carta régia dirigida ao Governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, sobre as propostas para os provimentos dos postos militares que vagassem. Lisboa, 22/11/1701. (AHU, Cx. 42, Doc. 9.840-9.849.) 314. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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como Francisco de Castro e Moraes se achava na cabeça principal desse governo a elle pertenciam as taes nomeações e assim o tende entendido e isto mesmo se deve observar daqui em diante e para que não haja a menor duvida neste particular fareis registar esta ordem nas partes necessarias.315

A presença dos Mestres de Campo do Terço da Guarnição da cidade – tropa paga – como governador interino era mais frequente que a dos próprios governadores providos pelo rei. Por ser “(...) nas zonas mineiras e no Sul ameaçado pelos espanhóis que se concentrava a atenção da Metrópole”,316 os governadores principais da cidade do Rio de Janeiro tinham a obrigação de fazer constantes deslocamentos. Em 1705, devido a conflitos nas Minas que logo levariam à “Guerra dos Emboabas”,317 o Governador do Rio, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, viu-se forçado a seguir para aquela região. Para administrar a cidade em seu lugar, deixou o Bispo D. Francisco de São Jerônimo, os Mestres de Campo Martim Corrêa Vasques e Gregório de Castro e Moraes, este último um dos mais requisitados para a função de governador interino. Em junho de 1709, o Capitão-General Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi empossado no cargo de governador da Capitania do Rio de Janeiro, e também logo se retirou para as Minas, com a missão de dar um fim à “Guerra dos Emboabas”, que havia se agravado. Como substituto interino, ficaria novamente o Mestre de Campo Gregório de Castro e Moraes. Diante dos descaminhos do ouro e das graves tensões ocorridas na região das Minas, o governo da Metrópole reconheceu a necessidade de dar à região mineira uma administração independente da do Rio de Janeiro. Assim, pela Carta Régia de 9 de novembro de 1709, foi criada a Capitania de São Paulo e Minas Gerais.318 Seu primeiro governador foi o 315. Idem. 316. Bellotto, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 29. 317. Conflito armado ocorrido na região das minas entre paulistas – os primeiros a descobrir o ouro – e forasteiros – muitos naturais do Reino –, a quem chamavam de “emboabas”, que procuravam o mesmo metal. Esses conflitos culminaram com a chamada Guerra dos Emboabas em 1708. Maiores detalhes, ver Boxer, C. R. A Idade de Ouro do Brasil – Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1963, p. 84-105. 318. “Fazia-se urgente, ao menos aos olhos de Lisboa, a separação das duas áreas. Concentrando a região mineira numa Capitania autônoma, solidamente vigiada e controlada, o governo faria diminuir as possibilidades de fraude aos quintos reais” (Belloto, Heloísa Liberalli. Op. 108

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mesmo Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que entrou para o governo do Rio de Janeiro em junho daquele ano, tendo governado a Capitania por apenas seis meses. Mais uma vez, Gregório de Castro e Moraes assumiu interinamente o governo do Rio de Janeiro, mas por pouco tempo. Como determinado em patente de novembro de 1709,319 em abril de 1710 entregaria o governo da cidade a seu irmão, o Mestre de Campo Francisco de Castro e Moraes. Apesar de fragilizada política e militarmente pelo despovoamento das tropas e pela constante ausência do governador, a Cidade do Rio de Janeiro crescia em importância estratégica. Ponto de apoio para a fundação e manutenção da Colônia do Sacramento, o Rio também se transformou, no fim do século XVII, em escoadouro aurífero para a Metrópole320. Mesmo assim, a defesa da cidade ocupava um papel secundário nas necessidades político-militares que se impunham nas regiões do Sul e das Minas. Em suma, pelo fato de as atenções e preocupações régias de mais alta importância político-administrativa e militar se concentrarem na Colônia do Sacramento e na região das Minas, os governadores do Rio de Janeiro e grande parte das tropas militares da Capitania estariam naquelas regiões sempre que fosse necessário321. Um deslocamento que provocava uma proporcional, mas paradoxal, vulnerabilização militar do Rio de Janeiro, que crescia em importância estratégica e diminuía em capacidade de defesa.

cit., p. 28). No entanto, como a solução não surtiu o efeito esperado pela Coroa com relação aos descaminhos do ouro, em 1720 São Paulo e Minas são separados. “Para esta última área (...) é que se voltou toda a atenção governamental” (Ibid.). 319. Fleiuss, Max. História do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 82-88; Freire, Felisbello. História da Cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 414-420. 320. Quando o ouro foi descoberto nos planaltos centrais na virada do século XVII para o XVIII, durante a primeira fase da mineração, as vilas de São Paulo e os portos do litoral norte paulista foram beneficiados, porque as comunicações entre o Rio de Janeiro e o planalto eram feitas por Parati. Foi por essa via indireta que o Rio de Janeiro recebeu os primeiros carregamentos de ouro das Minas Gerais. O transporte de Parati ao Rio de Janeiro era feito por mar, e corria o risco de ser pilhado por piratas. Esses perigos levaram as autoridades a cuidar da abertura de um “caminho novo”, ligação direta do Rio de Janeiro às Minas Gerais, terminado por volta de 1725. Em poucos anos, o Rio de Janeiro tornou-se tanto o escoadouro quanto o centro de abastecimento do planalto. In Corcino Medeiros dos Santos. O Rio de Janeiro e a Conjuntura Atlântica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993, p. 20. 321. A região das Minas foi amparada militarmente pelo Rio de Janeiro apenas até 1709, ano em que se tornou independente desta jurisdição. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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3.2. A Defesa da Praça do Rio de Janeiro: As Invasões Francesas e a Paz de Utrecht A situação política entre as Coroas de Portugal e Espanha tornou-se ainda mais crítica em 1701, com o início da guerra pela sucessão do trono da Espanha, um conflito que se prolongou por 13 anos. Após a morte de Carlos II, que não tinha descendentes e legou por testamento cetro e coroa a Felipe de Bourbon, neto de Luiz XIV, o trono espanhol veio a ser disputado, a despeito do documento real, entre o herdeiro Felipe e o arquiduque da Áustria, Carlos. Holanda, Áustria e Inglaterra – esta última, a potência mais representativa – eram contrárias à coroação de Felipe de Bourbon, e formaram a Grande Aliança “com o objetivo mais amplo de acabar com a hegemonia francesa na Europa”.322 Contudo, a guerra ultrapassou os limites europeus. Como bem sintetiza Fernando Novais sobre os conflitos que marcaram as relações internacionais durante a Época Moderna, a Guerra de Sucessão da Espanha representou a disputa pela exploração colonial – e, pois, a posição das colônias no quadro do equilíbrio das potências – vai adquirindo importância crescente, para assumir, enfim, no século XVIII o papel de elemento primordial deflagrador das hostilidades e consagrador das preponderâncias (...).323

Dessa forma: A concorrência colonial se entrelaçava com as questões europeias e esse entrelaçamento foi se acentuando no correr da segunda metade do século XVII, engendrando tensões que se generalizaram nos conflitos da guerra de Sucessão da Espanha.324

A participação de Portugal na Guerra de Sucessão da Espanha era inevitável, mas oscilava entre o apoio à França e à Inglaterra. O dilema é bem analisado e expresso por Fernando Novais, que observa 322. Macedo, Borges de. História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, s/d., p. 225. 323. Novais, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1983, p. 32. 324. Novais, Fernando. Op. cit., p. 39. 110

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as consequências das possíveis posições de Portugal frente ao conflito iminente: Inglaterra ou França, salvaguardar os domínios ultramarinos pondo em risco a sobrevivência da metrópole européia ou abandonar as colônias, aderindo à aliança continental para preservar Portugal.325

No entanto, a corte de Lisboa logo verificou que: os interesses representados pela união da Espanha com a França por meio de uma dinastia comum tinham muito pouco de tranquilizadores tanto para a fronteira peninsular como para a defesa das rotas e do tráfego comercial português (...).326

Assim, a preservação dos interesses continentais portugueses, e principalmente dos ultramarinos, estaria melhor garantida através do acordo com a Inglaterra: Todo um novo conjunto de medidas aceites pela Grande Aliança tendia a favorecer os interesses marítimos e comerciais de Portugal, em troca das vantagens comerciais, políticas e estratégicas que ele mesmo representava. É neste contexto que se inserem os tratados de Methuen, um de natureza política e diplomática, outro comercial, mas complementares, na intenção de reter Portugal do lado do bloco atlântico.327

Em maio de 1703, ao assinar os tratados de Methuen, Portugal reiterou a aliança política e comercial com a Inglaterra, assegurando a intervenção portuguesa na guerra a favor de Carlos da Áustria. Fazendo parte da Grande Aliança, Portugal estava comprometido, perante Inglaterra e Holanda, a expulsar os Bourbons da Espanha. A situação exigia da Coroa portuguesa uma atenção especial a seu próprio território, inclusive os domínios ultramarinos que, em razão da Guerra de Sucessão da Espanha, poderiam ser atacados a qual325. Novais, Fernando. Op. cit., p. 29. 326. Macedo, Borges de. Op. cit., p. 237. 327. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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quer momento. E efetivamente, a Espanha invadiu a Colônia do Sacramento em outubro de 1704, e a França investiu contra o Rio de Janeiro em 1710 e 1711. Apesar dos reforços que iam sendo sucessivamente enviados do Rio de Janeiro para a Colônia do Sacramento, a inferioridade com relação às tropas da Espanha era evidente. A Colônia resistiu bravamente até março de 1705, quando foi tomada pelos espanhóis e novamente destruída. Somente em 1713, após muitas batalhas, Inglaterra e França acenaram com a trégua, definindo posições através do Tratado de Paz de Utrecht. Por um lado, Felipe V de Bourbon é reconhecido no trono espanhol, consolidando a aliança hispano-francesa; por outro, as vantagens comerciais pertencem à Inglaterra, que nos tratados de Utrecht se reserva o asiento para abastecer em escravos as Índias de Castela: Espanha, como Portugal, era pois obrigada a mercadejar com as vantagens da exploração do ultramar, para garantir a independência da metrópole e preservar o Império.328

D. João V, Rei de Portugal, tratou das negociações de paz com os Bourbons, organizadas sob a égide da Inglaterra, e que devolveram a Colônia do Sacramento a Portugal em outubro de 1716. As invasões francesas ao Rio aconteceram seis anos após a invasão da Colônia do Sacramento pelos espanhóis. A cidade do Rio de Janeiro era conhecida por toda a Europa pela riqueza proveniente do ouro das Minas, e sofreu duas invasões de corsários franceses: na primeira, ocorrida em 1710, a cidade foi vitoriosa, mas na segunda, em 1711,329 capitulou. As condições de defesa da cidade, especialmente a de sua desfalcada guarnição, eram muito precárias. As contínuas investidas de 328. Novais, Fernando. Op. cit., p. 26. 329. Para maiores detalhes sobre a primeira e a segunda invasões francesas, ver, entre outros: Boxer, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 106-127; Bicalho, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: ...Op. cit., p. 286-300; Frota, Guilherme de Andréia. Corsários franceses na Guanabara do Século XVIII. Separata da Revista ‘Ocidente’, v. LXXIII. Lisboa, 1967, p. 1-11; Fleiuss, Max. Op. cit., p. 98-115; Araújo, Pizzarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, v. 4, 1945, p. 109-114; Passos, Alexandre. O Rio no tempo do ‘Onça’. Rio de Janeiro: São José, 1965, p. 71-79; Andrade, Ivone. “A Resistência dos Habitantes do Rio de Janeiro às Invasões Francesas de 1710 a 1711.” Bulletin des Études Portugaises et Brèsiliennes, Nouvelle Série, Tomes Trente-Sept et Trente-Huit, 1977-78, p. 127-142; Freire, Felisbello. Op. cit., v. 1, p. 421-446. 112

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corsários na costa da cidade levaram o então Governador Francisco de Castro e Morais, em carta de 15 de abril de 1710, a reclamar ao rei uma urgente melhoria das defesas do Rio.330 Desde o episódio com De Gennes em 1695, poucas providências reais haviam sido tomadas, limitando-se Portugal a enviar ao Rio de Janeiro nada mais que um Regimento de Infantaria331 e um pouco de munição. Após a dramática experiência das invasões francesas no Rio de Janeiro, a Coroa ficou mais preocupada com as questões de defesa da cidade, tão alardeadas pelos governos anteriores. Finalmente, na administração de D. Francisco Távora (1713-1716), os trabalhos de reparo e construção das fortificações332 tiveram início. Em 1712, a Metrópole enviou um engenheiro militar, o brigadeiro Massé, encarregado de desenhar e edificar as fortificações que fossem necessárias para a defesa da cidade, além de reformar as já existentes. Canhões também chegaram ao Rio. Cogitou-se de estenderem-se grossas correntes de ferro desde a fortaleza de Santa Cruz à de São João. Para a segurança interna da cidade, o brigadeiro iniciou a construção de um muro que iria do morro da Conceição ao morro do Castelo, passando antes pelo de Santo Antonio.333 Já a organização das forças militares da cidade havia de dedicar especial atenção às tropas não-remuneradas: os Corpos de Ordenanças e de Auxiliares. Em virtude das dificuldades da Coroa enviar e manter soldados pagos, ou de pagar os altos custos com soldos que o aumento das tropas regulares demandaria ao Rio de Janeiro, Ordenanças e Auxiliares 330. “Carta de 15/4/1710. Consulta do Conselho Ultramarino”. Manuscrito do IHGB, v. 10. Apud, Frota, Guilherme de Andréia. Op. cit., p. 2. 331. “Provisão de 27/4/1709”, Idem. 332. O governador do Rio de Janeiro, Brito de Menezes (1716-1719), por carta de 2/3/1718, informava ao Rei acerca das melhorias efetivadas nas fortificações do Rio de Janeiro, pelo seu antecessor, o governador Francisco de Távora (1713-1716): “A Barra é defendida por tres fortalezas, Santa Cruz, S. João da Barra e Lage. A primeira está melhorada com a muralha nova que se fez, da parte da cidade, restando todas os terraplanos e algunas obras interiores. A de S. João tem duas baterias. A de Lage acha-se hoje com muito differente planta da que foi dada pelo brigadeiro Massé. (...). As fortificações da cidade são a da Conceição e do Castelo. A muralha da cidade, da Conceição ao morro do Castelo acha-se nesta extensão com 8 palmos de altura e em alguns pontos 10”. Citada por Felisbello Freire. História da Cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 470. 333. “Quanto à corrente, nunca chegou a ser posta. E a muralha não foi concluída; pareceu oneroso e dispensável pela Câmara”. Frota, Guilherme de Andréia. Op. cit., p. 23-24. Maiores detalhes sobre os planos e projetos de fortificações para a melhor defesa da cidade, bem como da polêmica em torno do projeto do brigadeiro Massé para a construção de uma muralha que circundasse a cidade do Rio de Janeiro, ver “O Espaço Urbano Enclausurado”. In: Bicalho, Maria Fernanda. Op. cit. p. 241-260. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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se transformaram em forças fundamentais na defesa da Capitania. Não foi por outro motivo que, em Carta Régia de 1718 enviada ao governador interino Manoel de Almeida Castello Branco, D. João ordenou que lhe remetessem “listas da Infantaria, cavalaria, Artilharia e auxiliares com distinção, e examinando quaes são os auxiliares e quaes as ordenanças”.334 Embora houvesse referências às Tropas de Auxiliares no Regimento do Governador do Rio de Janeiro de 1663, Pedro de Mello, mais especificamente no quinto artigo – no qual dispunha que “proporá pessoa idonea para preencher as vagas da infanteria paga, das Ordenanças ou Auxiliares (...)”335 –, a Capitania do Rio era guarnecida, até então, exclusivamente pelos Corpos de Ordenanças. Das forças militares encarregadas de serviços gratuitos, a que estavam obrigados todos os súditos válidos, existiam apenas as Ordenanças no Rio de Janeiro, em 1694, como pode ser verificado pela afirmação do governador Paes de Sande: “Os postos militares desta Cap.nia sam os da guarnição da Praça (...) todos os mais postos são da ordenança (…).”336 No governo de Castro e Caldas, em 1697, a situação era a mesma. Exatamente por esta razão – e nenhuma outra –, as Ordenanças receberam os mesmos privilégios dos Auxiliares no reino, “pois as ordenanças no Rio de Janeiro servem naquella Cap.nia assim como aqui os Auxiliares”.337 No governo de D. Alvaro da Silveira de Albuquerque, em 1703, há referência aos Auxiliares na Capitania do Rio de Janeiro no documento intitulado Mapas da gente das Ordenanças e dos Auxiliares da Cidade do Rio de Janeiro,338 mas a despeito da indicação de dois Terços de Auxiliares e dois de Ordenanças, quatro no total, não há diferenciação entre eles. A distribuição dos comandos era curiosa: um Terço de Ordenanças e um outro, de Auxiliares, era chefiado por Crispim da Cunha Tenreiro; os dois restantes, por Baltazar de Abreu Cardoso. Os mapas ainda mostram que, além de os Terços de Auxiliar e de Ordenança terem o mesmo coman334. “Carta Régia de 20/6/1718”, AHU, Cx. 21, Doc. 4.715-4.716. 335. “Regimento para o Governador do Rio de Janeiro, expedido em 10/10/1663 pelo Conde de Óbido para Pedro de Mello”. Apud Freire, Felisbello. Op. cit., p. 300. 336. “Carta do governador Antonio Paes de Sande, sobre o préstimo, comportamento e serviços dos oficiais da guarnição militar. RJ, 10/6/1694”, AHU, Cx. 10, Doc. 1.934. 337. “Consulta do Conselho Ultramarino em que propõe que os oficiais das ordenanças gozassem dos mesmos privilégios dos auxiliares do Reino. Lisboa, 2/9/1697”, AHU, Cx. 11, Doc. 2.062. 338. “Carta do Governador D. Alvaro da Silveira sobre a guarnição militar da praça do Rio de Janeiro, RJ, 23/8/1703”, AHU, Cx. 14, Doc. 2.760-2.772. 114

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do máximo, os capitães de todas as companhias eram praticamente os mesmos. Na prática, os Terços existentes na cidade eram apenas dois, e não quatro, como consta nos mapas. Também não havia distinção entre os Terços de Ordenanças e Auxiliares na composição dos efetivos. Portanto, não é de se estranhar que se encontrem nas cartas patentes dos postos desses Terços registros de “ordenança auxiliar”, forma conjugada, como se houvesse apenas um mesmo Terço.339 Como exemplo, a carta patente para o provimento do posto de Ajudante, feito pelo Governador Brito de Menezes em 1718, no Terço de que era comandante Crispim da Cunha Tenreiro: Faço saber aos que esta minha carta pattente virem, q’ havendo respeito ao serviço de S. Mg.e, que as companhias das ordenanças auxiliares tenhão officiaes de ordens capazes e necessários (...).340

A documentação consultada mostra a referência aos Auxiliares somente dessa forma; por outro lado, as cartas patentes das Ordenanças eram redigidas, na maior parte das vezes, sem referência aos Auxiliares. Essa situação só mudou a partir de 1725, no governo de Vahia Monteiro, que se empenhou em organizar os Corpos Militares da mesma forma que se praticava no reino, “p.a se fazer milhor o serv.ço de V. Mag.de”.341 Em carta ao rei, o governador menciona a Carta Régia de 20 de junho de 1718, na qual “foi V. Mag.de servido ordenar q’ se lhe remetecem listas da Infantaria, cavalaria, Artilharia e auxiliares com distinção, e examinando quaes são os auxiliares e quaes as ordenanças (...)”.342 Todavia, o que Vahia Monteiro encontrou na Capitania do Rio de Janeiro, sete anos após a ordem do rei, era muito diferente do que então se praticava 339. Em 1723, época do falecimento de Crispim da Cunha Tenreiro, foi substituído por Manoel Pimenta Tello, que assumiu o comando da “ordenança auxiliar da Capitania do Rio de Janeiro” – como consta na confirmação de sua carta patente. “Carta patente pela qual se fez mercê a Manuel Pimenta Tello de o confirmar no posto de Coronel do Regimento da Ordenança auxiliar da Capitania do Rio de Janeiro. Lisboa, 30/4/1723”, AHU, Cx. 40, Doc. 9.367-9.379. 340. “Carta patente pela qual o Governador do Rio de Janeiro, Antonio de Brito de Menezes, fez mercê a Francisco Esteves de o prover no posto de Ajudante supra da Infantaria da Ordenança Auxiliar. RJ, 24/12/1718”, AHU, Cx. 19, Doc. 4.190-4.191. 341. “Consulta do Conselho Ultramarino sobre a informação do Governador do RJ acerca da forma como estavam organizados os terços de Auxiliares e de Ordenanças. Tem anexa a respectiva informação do Governador Luiz Vahia Monteiro. Lisboa, 27/8/1725”, AHU, Cx. 21, Doc. 4.715-4.716. 342. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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no reino: “(...) os capitães são os mesmos, e a gente a mesma; e assim nem são auxiliares, nem ordenanças: Creio q’ esta dezordem procedeo de se não entenderem as ordens de V. Mag.de (...)”.343 A ordem régia, que não estava vigorando, exigia uma distinção básica que deveria orientar a constituição de cada um dos Terços de Ordenanças e de Auxiliares “(...) devião criar terços, como os auxiliares do R.no da gente maes escolhida, e a outra ficar nas ordenanças, a ordem do capitão-mor: parece-me não só conviniente, mas precizo ao serviço de V. Mg.de q’ tome esta forma (...)”.344 Os Terços de Auxiliares deveriam ser compostos pelos homens “mais capazes” da população civil, que dispusessem de razoável instrução, armamento e disciplina, porque “(...) não admite V.Mage p.a o posto de sargento-mor de auxiliares se não capitaes de Infantaria paga, e pa Ajud.es, Alferes da mesma Infantaria”.345 Já os Terços de Ordenanças eram forças locais, não sendo deslocados de suas sedes, e basicamente formados por homens pouco instruídos e mal equipados. A maior responsabilidade dos Terços de Auxiliares era a defesa militar do território, e essas tropas deveriam estar bem preparadas, porque não sam outra couza q’ sua infantaria paga q’ não vence soldo por estarem com licença em suas cazas, mas sempre q’ são puchados para a fronteira, se lhes paga.346

Os Auxiliares, não pagos, estavam habilitados a substituir e auxiliar a tropa soldada quando necessário, e nesses casos seus oficiais receberiam soldos iguais aos dos oficiais pagos: (...) me parece nos termos precisos de V. Mag.e querer conservar com utilidade do seo Real Serviço p.a deffença desta capitania estes corpos de auxiliares na sua devida forma destroindo o labirinto e confusão de postos (...).347 343. “Consulta do Conselho Ultramarino, sobre a informação do Governador do RJ acerca da forma como estavam organizados os terços de Auxiliares e de Ordenanças. Tem anexa a respectiva informação do Governador Luiz Vahia Monteiro Lisboa, 27/8/1725”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 21, doc. 4.715-4.716. 344. Idem. 345. “Informação do Governador Luiz Vahia Monteiro sobre o que se devia observar a respeito do governo dos auxiliares e das ordenanças daquela Capitania, RJ, 6/8/1729” AHU, RJ, Avulsos, Cx 35, Doc. 8.238-8.240. 346. Idem. 347. Idem. 116

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Já as Ordenanças da cidade do Rio de Janeiro surpreendem o governador Vahia Monteiro com o excesso de oficiais em cada Terço: “não sei qual foi o fundamento q’ tiverão para fazerem (...) quatro Ajudantes, q’ conforme o arregimentado não devia ser mais q’ hum.” O governador conhecia a ordem régia: no governo das Ordenanças conforme o regimento do Rei D. Seb.am inalteravel athe agora, não há mais q’ hum Cap.m Mor, hum sargento-mor, e hum Ajudante em cada destricto de Villa ou Cidade com os Cap.es e Alferez das companhias (...).348

O governador procurou organizar os Corpos Militares adequadamente, inclusive na localização geográfica que cada um deles deveria ocupar na Capitania. Após quatro anos de governo, relatou o resultado do trabalho na organização e disposição dos Auxiliares: (...) formei nesta cidade e seo destricto e villa de Santo Antonio de Sáa 3 Regimentos de auxiliares de 600 homens cada hum em 10 comp.as de 70 homens cada huma com os officiaes da gente mais vigoroza e escolhida e capaz de tomar armas em qualquer occazião (...).349

Devido à natureza distinta dos dois tipos de Tropas, o governador procurou formá-las da maneira mais apropriada para a defesa da Capitania, conservando o papel de forças estacionárias para as Ordenanças e atribuindo aos Auxiliares a função dos maiores deslocamentos: (...) não alistei, p.a os ditos auxiliares gente nas costas e vizinhanças das praias, a fim de ficarem as comp.as da Ordenança daquelles citios mais fortes quando acodirem os auxiliares a defença desta cidade, ou de outras p.es (...).350

As tropas regulares realizavam a fiscalização do ouro vindo das Minas ao Rio de Janeiro, mas apesar de o Governador Luiz Vahia Monteiro manter uma severa política de vigilância sobre a cobrança dos quintos reais, o contrabando era notório e praticado em larga escala. 348. Idem. 349. Idem. 350. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Descobrir os descaminhos do ouro era uma diligência normalmente atribuída às Tropas pagas. Entretanto, o Governador Luiz Vahia Monteiro se viu forçado a transferir a fiscalização para as Tropas de Auxiliares, confiando essa importante tarefa a uma Tropa de segunda linha. Como estava invertendo a hierarquia das Tropas militares, o governador expôs os motivos que o levaram à decisão: Os roubos q’ se tem feito a Real fazenda de S. Mag.e nos reais do ouro sam publicos e ainda continuam com dezaforado escandalo desprezando todas as deligencias Reais q’ frustam com sumo descredito das tropas pagas q’ sua Mage sustenta nesta guarnisam. Esta circunstancia me obriga a recorrer as que criei de auxiliares q’ em outras deligencias me tem dezempenhado (...).351

No exercício da fiscalização, os Auxiliares deveriam receber os mesmos soldos das tropas pagas, conforme ordem real. Durante o governo de Vahia Monteiro, a cidade do Rio de Janeiro passou a contar com maiores cuidados régios na questão militar, tanto nas fortificações quanto na organização das forças militares. Essas melhorias aconteceram por causa da conjunção de dois fatores: o primeiro foi a grave impressão deixada pela invasão francesa de Duguay-Troin, em 1711,352 que fez as autoridades régias perceberem a importância353 estra351. “Carta do governador Luiz Vahia Monteiro para o Coronel Manuel Pimenta Tello, sobre serviços relativos a fiscalização dos descaminhos do ouro, RJ 17/12/1730”. AHU, RJ, Avulsos, Cx. 40, Doc. 9.367-9.379. 352. Maria Fernanda Bicalho chama a atenção para o fato de que após as invasões francesas, sobretudo em 1711, ocorreu um período de intensa inquietação dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, no qual os “funcionários régios encontraram dificuldades em manter a ordem e o controle social da cidade”, podendo a inquietação se converter em grande perigo, no caso de eclosão de uma revolta. Dessa forma “a conjunção entre medo e tensão, invasão e motim, ameaça externa e perigo interno, levou os responsáveis pelos assuntos ultramarianos no Reino e nas Conquistas a redefinirem os mecanismos de controle dos homens e de ordenação do espaço urbanos das cidades coloniais” [Bicalho, Maria Fernanda, “Invasões e Motins: Uma Aliança Perigosa”. In: A Cidade e o Império... Op. cit., 286-320]. 353. A situação da cidade do Rio de Janeiro era precária por consequência da política régia anterior, que negligenciou as questões de defesa. Porém, a urgência em defender melhor a cidade foi percebida após as invasões francesas: “E para prevenção do futuro e defesa daquella praça, que é a parte para as minas, que se considera ser o mais rico thesouro que se conhece na América, além do novo Governador que V. M. deve mandar (...) parece conveniente que elle parta com toda brevidade e que com elle vão alguns cabos e officiaes de guerra de conhecido valor e que tenham visto operações militares de alguns engenheiros que reparem e façam as fortificações que forem necessarias” (grifo nosso). Parecer de 11/3/1712 do Conselheiro português Antonio Rodrigues da Costa. Citado por Felisbello Freire. Op. cit., p. 450. 118

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tégica da cidade; o segundo fator foi a redução do conflito luso-espanhol na região Platina após o Tratado de paz de Utrech, em 1713, que proporcionou ao Rio a recuperação de suas forças militares, estando livre das demandas da Colônia do Sacramento. O armistício possibilitou que os governadores do Rio de Janeiro pudessem cuidar de questões específicas da cidade com mais zelo, principalmente nas necessidades de guarnicão, manutenção de fortificações e melhor organização militar defensiva.

3.3. Gomes Freire de Andrade a Estratégia Políticomilitar De 1733 a 1763, o Rio de Janeiro foi administrado por Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, sob a patente de capitão-general e governador da Capitania. No terceiro ano de governo, a tensão entre as Cortes de Madri e Lisboa motivaram o capitão-general a sugerir à Coroa portuguesa uma estratégia político-militar de unificação bélica, como outrora sucedera.354 A proposta era integrar todo o litoral sul à administração do governo do Rio de Janeiro para melhor organizar a defesa no sul do Estado do Brasil: “(...) seria conveniente estar subordinada a esta Capitania toda a marinha athé a Colonia por ser esta a cabeça que em qualquer novidade socorre as partes que o necessitam (...)”.355 Aceito por Lisboa, este pensamento estratégico levou à incorporação de todas as Capitanias do Sul à jurisdição do Rio de Janeiro, sob o comando de Gomes Freire. Portanto, as Capitanias de Minas Gerais356 e de São Paulo357 também foram subordinadas ao Rio de Janeiro. A 354. Desde a fundação da Colônia do Sacramento até o período de governo de Gomes Freire de Andrade, foram dois os governadores do Rio de Janeiro que detiveram a jurisdição sobre as demais Capitanias do Sul iincluindo a fronteira do Prata: D. Manuel Lobo (16791682) e D. Duarte Teixeira (1682-1686). Entretanto, a Carta Régia de 2/3/1689 delegou aos governadores do Rio de Janeiro o poder de proverem os postos militares e de determinarem as medidas necessárias para a fortificação e defesa militar da praça do Rio de Janeiro até a Colônia do Sacramento, no extremo sul. [Coaracy, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII., Op. cit. p.208; Max Fleiuss, História do Rio de Janeiro Op. cit, p. 93]. 355. Apud, Freire, Felisbello. Op. cit., v. I, p. 585. 356. Gomes Freire justifica à Coroa a necessidade de anexar a Capitania de Minas Gerais à jurisdição do Rio de Janeiro: “(....) e o não ter S. Magestade em ellas [Minas Gerais] official capaz, que sem entrar nos seus interesses olhe para o seu real serviço e fazenda me obrigarão a passar e fazer a minha assistencia em Villa Rica como cabeça de um tão importante Governo (...).” (Apud Freire, Felisberto. Op. cit., p. 584.) 357. Pelo Alvará de 9/5/1748, a Capitania de São Paulo perdia sua autonomia política, ficando unida ao Rio de Janeiro, como já o eram os governos do Rio Grande e da Ilha de Santa Catarina. Considerava o Rei, pelo mesmo Alvará, “ser desnecessário que haja mais em S. Paulo governador com patente de capitão-general”. Um Parecer do Conselho Ultramarino, CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Colônia do Sacramento e as Capitanias subordinadas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro, também carentes de especial atenção devido às ameaças espanholas, já se encontravam sob jurisdição do Rio. Além da centralização administrativa das Capitanias do Sul na cidade do Rio de Janeiro, houve uma concentração ainda mais acentuada das decisões consideradas estratégicas – especialmente as de caráter militar – nas mãos do governador Gomes Freire de Andrade, e a consequente redução substancial do poder exercido pelos governos interinos, que voltaria a ser um ponto bastante polêmico nesse período. Anteriormente, delegava-se ao governador interino a mesma jurisdição sobre a qual regia o efetivo, e a própria Coroa determinava a situação, como comprova a Carta Régia de 1701 dirigida a Artur de Sá e Menezes, resposta às queixas que este apresentou a respeito do interino haver provido postos militares que vagaram em sua ausência: “como Francisco de Castro e Moraes se achava na cabeça principal desse governo a elle pertencia as taes nomeações e assim o tende entendido (...)”.358 Esta norma régia foi mantida até o governo de Gomes Freire, quando a jurisdição do governo interino perdeu grande parte do poder de que dispunha até então. Quando Silva Paes assumiu pela segunda vez a interinidade do governo do Rio de Janeiro em 1738, deparou-se com as Instruções deixadas por Gomes Freire, que limitavam as funções que os governadores interinos deveriam exercer. Como todos os ocupantes precedentes gozaram da mesma jurisdição do governo efetivo, inclusive ele próprio durante sua primeira interinidade em 1736, Silva Paes não encontrou outra explicação plausível para o procedimento de Gomes Freire, interpretando as restrições como uma questão de caráter pessoal, uma perda de confiança “(...) que bem se deixa ver a diminuição do conceito, que fazia do seu pouco préstimo”.359 de 29/1/1748, explicita ainda mais o pensamento da Metrópole com relação a São Paulo: “(....) o governo de S. Paulo não se erigio porque se reputasse necessário (....) senão porque sendo então S. Paulo o Caminho e Comunicação das Minas Geraes pareceu preciso crear naquella parte, Governador que podesse mais facilmente acudir às ditas Minas quando os negocios dellas o requeressem (....).” (Apud Bellotto, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 31.) 358. “Carta régia dirigida ao Governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, sobre as propostas para os provimentos dos postos militares que vagassem. Lisboa, 22/11/1701”, AHU, Cx. 42, Doc. 9.840-9.849. 359. “Consulta do Conselho Ultramarino, sobre a informação do Governador Gomes Freire de Andrada acerca das instruções que deixara ao Brigadeiro José da Silva Paes para o 120

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Porém, quando Gomes Freire constituiu as ditas Instruções para o exercício do governo interino, argumentou que estava apenas cumprindo as ordens reais que regulamentavam as matérias do governo efetivo, e não do interino. O capitão-general expôs as atribuições que ficariam sob o seu controle, mesmo durante suas ausências, ratificando “que o governo ordinario da capitania não incluia em si propostas de postos militares por ser huma das materias de maior confiança e mais relevante que V. Mag.e concede aos seos governadores (...)”.360 Gomes Freire também avisava que mesmo os militares providos na primeira interinidade de Silva Paes “(...) pedem novas patentes declarando não fora S. M. servido approva las não sendo por mim passadas (...)”.361 Os frequentes governos interinos da Capitania do Rio de Janeiro deviam seguir um conjunto de 18 instruções, oito delas dedicadas a matérias militares, que continham orientações sobre as normas de provisão dos postos militares vagos na ausência do titular. Os despachos seriam feitos da seguinte forma: Os postos que vagarem dos officiaes pagos, auxiliares e ordenanças mandará V. S., logo ao Secretario do governo faça por edital para no termo de hum mez apresentarem os pretendentes em esta secretaria ou na do governo onde me achar, os serviços ou petições, e as que neste se entregarem me serão remettidas (...) o que se executa estando eu na cidade de São Paulo ou na Capitania das Minas, porque havendo de passar aos Goyazes avisarei a V. S. do expediente que há de seguir.362

Pensando em uma melhor defesa contra possíveis investidas dos espanhóis, que se prefiguravam com o reinício das tensões entre as governo interino da Capitania do Rio de Janeiro e as queixas que este apresentara das extraordinárias restrições que tais instruções continham. Lisboa, 29/8/1738”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 42, Doc. 9.840-9.849. 360. “Informação do Governador Gomes Freire de Andrada, em cumprimento da Provisão régia pela qual se ordenou ao Governador que declarasse qual a jurisdição que delegara ao Brigadeiro José da Silva Paes quando da entrega do governo da Capitania do RJ, Lisboa, 12/8/1736”, AHU, Cx. 42, Doc. 9.840-9.849. 361. “Carta de Gomes Freire de Andrada para o Brigadeiro Silva Paes. Vila Rica, 5/3/1738”. (Ibid.) 362. “Instrução que o Governador Gomes Freire de Andrade deixou ao Mestre de Campo Mathias Coelho de Sousa ou a qualquer oficial de maior ou menor patente, em que recaísse o governo da capitania do Rio de Janeiro durante sua ausência. RJ, 11/11/1737”. (Ibid.) CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Coroas Ibéricas, Gomes Freire assumiu o total controle político-administrativo da região Sul, mantendo um rígido domínio sobre os governos a ele subordinados e, principalmente, centralizando em si a decisão de maior importância estratégica: a militar. Contudo, quando as conjunturas político-diplomáticas entre Portugal e Espanha levaram a Colônia do Sacramento a sofrer mais dois ataques, o segundo deles resultou em rendição. E a despeito dos planos políticos-militares de Gomes Freire, Sacramento foi conquistada pelas forças espanholas sem que estas encontrassem maiores resistências. Apesar da paz de Utrecht, em 1713, a pressão espanhola não havia cessado. Após um período de relativa tranquilidade na Colônia do Sacramento e nos demais domínios portugueses, novas crises entre as Coroas trariam novos estremecimentos em 1735. Logo que a crise se desencadeou, por causa de um incidente com um diplomata de Portugal em Madri, a Coroa portuguesa advertiu os governadores do Brasil “sobre a prevenção com que devião estar todos os portos do Brasil (...)”363 – a fim de rechaçar uma eventual invasão – “e com muita mais razão no do Rio de Janeiro por ser o mais importante de todos elles”.364 O governo do Rio era então ocupado interinamente por José da Silva Paes, porque o então governador, Gomes Freire, encontrava-se na Capitania de Minas Gerais, onde também governava. Mesmo estando em Minas, o capitão-general do Rio de Janeiro tomou as providências pedidas pela Coroa, informando ao Conselho Ultramarino as forças que havia destacado naquela cidade para o socorro do porto do Rio em caso de ataque: “4 Corpos de 500 Cav.os cada hum, com os quais e com 4 mil mulatos e negros bem armados intento em cazo de precizão passar ao Rio com a n.cia de algua invazão”.365 As providências cabíveis e necessárias para a segurança no Rio de Janeiro foram tomadas, como informou Gomes Freire, mas a cidade estava desfalcada de grande parte dos efetivos remunerados – tropas regulares transferidas para o Sul – que, a princípio, deveriam guarnecer sua praça. Assim, as incumbências militares recaíram sobre os paisanos

363. “Consulta do Conselho Ultramarino sobre as informações enviadas pelos governadores Gomes Freire de Andrade e José da Silva Paes. Lisboa, 3/11/1736”, AHU, Cx. 39, Doc. 9.133-9.143. 364. Idem. 365. “Carta do Governador Gomes Freire de Andrade, em que transmitte as informações a que se refere a consulta antecedente. Vila Rica, 24/8/1736”, AHU, Cx. 39, Doc. 9133-9143. 122

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armados, os Corpos de Auxiliares, fato constatado no requerimento feito pelos capitães da Infantaria Auxiliar: (...) E como os suplicantes há muitos mezes a esta parte se achão actualmente goarnecendo esta praça fazendo as obrigaçõens de soldados pagos, nam só entrando de goarda com a promptidade que hé notorio (...) mas fazendo todas as deligencias que se lhe ordenão (...).366

Em 1750, o Tratado de Madrid cedia à Espanha a Colônia do Sacramento, sem a qual “a coroa espanhola não teria o domínio da bacia da Prata”.367 Em compensação, Portugal recebia o território denominado Siete Pueblos, onde se localizavam os aldeamentos jesuíticos com suas vastas estâncias, territórios de criação de gado na margem oriental do rio Uruguai, que impuseram o deslocamento das tribos de cerca de 30 mil índios para a outra margem.368 Entretanto, as comissões destinadas a aplicar o Tratado dos Limites – a portuguesa tinha como primeiro e principal comissário Gomes Freire – não conseguiram o imediato deslocamento de todos os povos. As dificuldades deflagraram a chamada Guerra Guaranítica, quando os índios se coligaram para melhor combater os exércitos português, comandado por Gomes Freire, e espanhol, a cargo do governador de Buenos Aires. Após duas desgastantes campanhas, e a rendição dos povos que haviam se rebelado, “nada porém indicava que a zona ficaria pacificada o que, aliado a dificuldades surgidas nas demarcações dos limites foi protelada a entrega da Colônia do Sacramento”.369 Reconhecendo os inconvenientes da situação, ambas as Coroas assinaram o Tratado de Pardo em 1761, anulando os compromissos firmados pelo Tratado de Madrid em 1750. Em 1761, as condições na Europa também estavam sendo alteradas pela celebração do Pacto de Família, em que os vários Bourbons reinantes na Europa se comprometiam a defender mutuamente seus Estados. Apesar das dificuldades, ao longo de todo o período em que a Europa testemunhava o desencadear de sucessivas guerras na disputa 366. “Requerimento dos capitães de Infantaria Auxiliar e mais oficiais da guarnição da Praça do Rio de Janeiro, em que pedem o pagamento de soldos. RJ, Anterior a 20/12/1737”, AHU, Cx. 41, Doc. 9.562-9.564. 367. Serrão, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa: Verbo, 1980, v. V, p. 172. 368. Curado, Silviano da Cruz. Op. cit., p. 21. 369. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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pela hegemonia entre potências rivais na exploração colonial, ou seja, toda a primeira metade do Setecentos, a diplomacia portuguesa conseguiu manter a neutralidade.370 Até a formação do Pacto de Família, em 1761, o consulado pombalino havia conseguido manter a mesma linha política, eximindo-se do confronto generalizado, principalmente durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). De fato, com o envolvimento da Espanha na guerra, Portugal logo foi intimado pela aliança franco-espanhola a permitir que tropas dos Bourbons se instalassem nos portos lusitanos, a fim de impedir um possível desembarque inglês. A recusa de Portugal em colaborar com o Pacto de Família teria como provável consequência a invasão de seus domínios pelas duas grandes nações aliadas.371 Forçada a sair da posição de neutralidade na fase final da Guerra dos Sete Anos, a Coroa portuguesa teve o inevitável confronto com seu próprio despreparo para um conflito de dimensões europeias. Havia uma defasagem militar de meio século, devido ao afastamento português dos teatros bélicos desde o término da Guerra de Sucessão da Coroa de Espanha. Quando o governo do Conde de Oeiras fixa o alinhamento diplomático com a Grã-Bretanha, logo solicita o imprescindível auxílio para organizar a resistência militar contra a aliança franco-espanhola. A aquisição dos meios materiais indispensáveis para a preparação das ações bélicas e o próprio apoio dos dirigentes militares portugueses viriam através da aliança política com o Rei da Inglaterra, expressa na permanente abertura dos portos aos navios britânicos. A dimensão mais visível dessa colaboração foi a presença do Conde Reinante Guilherme de Schaumburg Lippe, militar prussiano já consagrado por sua carreira, que comandou a urgente reorganização de um exército português que permanecia na retaguarda do sistema militar europeu, visivelmente inadequado para a guerra daquele tempo.372 Um ano após os Estados Ibéricos se estabelecerem em campos opostos na Guerra dos Sete Anos, a Coroa espanhola, consciente de sua 370. “Em 1719, resistiu à pressão britânica eximindo-se de entrar para a Quadrupla Aliança (Inglaterra, França, Holanda e Império) contra as pretensões de Felipe V na Itália; em 1733, igualmente, ficava à margem dos debates e conflitos em torno da sucessão polonesa; finalmente, conseguira manter a neutralidade em face da guerra de Sucessão da Áustria, que já era um conflito europeu e envolvia mais de perto os problemas colonais”. [Fernado Novais. Portugal e Brasil na Crise... Op. cit., p. 47]. 371. Novais, Fernando. Op. cit., p. 45-48. 372. Costa, Fernando Dores. “Guerra no Tempo de Lippe e Pombal”. In: Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, v. II, s/p. (no prelo). 124

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força militar, ordenava a D. Pedro de Cevallos, governador de Buenos Aires, o ataque à Sacramento. E na primeira investida espanhola, em dezembro de 1762, a Colônia de Sacramento foi subjugada sem maiores resistências. A notória fragilidade defensiva portuguesa na região meridional era cada vez mais evidente, e “a marcha castelhana de recuperação do território perdido seria interrompida apenas com a chegada tardia do Tratado de Paris”.373 Em abril de 1763, dois meses após a assinatura do Tratado de Paz entre França/Espanha e Inglaterra, do qual Portugal também participou, o exército espanhol invadiu o Rio Grande de São Pedro. O único argumento do Governador Cevallos para justificar a invasão e ocupação foi afirmar que a Espanha nada havia comunicado sobre a adesão portuguesa ao convênio de Paris.374 Durante quase 30 anos de governo, Gomes Freire esteve por longas temporadas ausente do Rio de Janeiro, atendendo às demandas político-militares e administrativas da vasta região Sul que estava sob sua gerência. Ele tentou submeter um rígido controle aos governos subordinados, outorgou a si próprio a exclusividade na decisão de determinadas matérias, como as de caráter militar, mas a sua administração no governo do Rio foi bastante prejudicada, porque “tinha outras preocupações além de administrar a cidade do Rio de Janeiro, sendo mais relevantes e sérias a da Nova Colônia do Sacramento e a das Minas Gerais”.375 A tomada da Colônia do Sacramento, em 1762, e a invasão do Rio Grande, no ano seguinte, pelas tropas de Cevallos, demonstraram “a precariedade do sistema de defesa ao Sul do Estado do Brasil”,376 encontrando-se “o Sul completamente despreparado diante da eficiência da ação espanhola com sua superioridade numérica (...)”.377 As enormes dificuldades de administrar em conjunto toda a Repartição Sul ficaram evidentes, inclusive sob o ponto de vista da estratégia político-militar no extremo Sul, uma das grandes prioridades do governo de Gomes Freire. A ausência constante do governador da cidade do Rio de Janeiro foi avaliada por seu sucessor, o Vice-Rei Conde da Cunha, como um dos 373. Goulin, Tao. A Guerra Guaranítica. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade Federal do RGS, 1999, p. 45. 374. Idem. 375. Ferrez, Gilberto. O Rio de Janeiro e a Defesa do seu Porto – 1555-1800. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1972, p. 87. 376. Bellotto, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 42. 377. Idem. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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fatores que mais contribuíram para prejudicar a boa administração da Capitania. O Conde da Cunha considerava que “a urigem desta confuzão, e dezordem naceo no tempo do Conde de Bobadela (...) os m.tos annos deste g.or e a sua uzencia as Miçoes (…)”,378 resultando “pouca vegilancia e de muita liberdade que nessas Capitanias houve (...)”.379 As desordens na esfera militar estavam entre as mais graves consequências verificadas pelo vice-rei na cidade do Rio de Janeiro: “(...) meu antecessor teve os Regim.tos m.to mais numerosos, porem p.a assim o conseguir conservava com praça nelles os velhos, e entrevados, os doentes incuráveis, e as crianças de menor idade (...)”.380 Sempre que o Sul estava em perigo, era merecedor das principais atenções régias, e por conseguinte dos maiores cuidados dos governadores do Rio de Janeiro. A defesa desta cidade era negligenciada, com suas tropas regulares convergindo para aquela região, assim como o próprio Governador Gomes Freire, que concentrava lá a maior atenção político-militar. A força militar de sua praça era colocada em segundo plano, abaixo das necessidades bélicas do sul, estando constantemente desfalcada em suas defesas.

3.4. O Tratado de Santo Ildefonso: A Perda da Colônia do Sacramento e o Território Português ao Sul da América Em 1763, após a morte do Conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrade, o Tratado de Paz foi assinado. Estava encerrada a Guerra dos Sete Anos, sendo restituídas a Portugal todas as áreas tomadas pelos espanhóis. Entretanto, D. Pedro de Cevallos devolveu apenas a Praça, impedindo a Colônia de qualquer contato com o território contíguo, e acirrando as tensões. A Corte de Lisboa mantinha-se em permanente estado de alerta, tanto em relação a seu território europeu quanto a seus domínios americanos. A tensão político-militar pode ser vista em um ofício de 1763, enviado a Francisco Xavier Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar pelo governo interino do Rio de Janeiro:

378. “Carta do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado. RJ, 21/4/1767”, AHU, Cx. 88, Doc. 15. 379. “Carta do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado. RJ, 9/9/1767”, AHU, Cx. 89, Doc. 60. 380. “Carta do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado RJ, 16/6/1764”, AHU, Cx. 77, Doc. 77. 126

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(...) não obstante, continua, e continuará sempre o mesmo Senhor em conservar sobre pé o seu Exército, e muito bem municiadas, e guarnecidas as suas Praças, como se estivesse na mais viva guerra, e que a mesma cautela ordena o mesmo Senhor se pratique nestas Capitanias a respeito dos vezinhos, cujas intenções as tem manifestado por tão aleivozo modo (...).381

O governo de D. José I tomou medidas decisivas para aumentar a eficiência da defesa dos territórios ultramarinos portugueses na América. Em 1763, determinou a transferência da capital do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, e em outubro do mesmo ano, o Conde da Cunha assumiu como vice-rei. A já reconhecida posição estratégica que o Rio representava para a manutenção do Império luso na América conferia à cidade relevância social, política e militar, tanto pelas disputas armadas do Prata, atuando “como centro de articulação e base de apoio indispensável à sustentação de qualquer ação militar no sul do país”,382 quanto pela importância econômica das Minas Gerais, para a qual a cidade do Rio de Janeiro “era a porta de entrada das mercadorias para as minas e de saída do ouro para o comércio internacional”.383 A importância estratégica da cidade impunha uma defesa condizente com os possíveis ataques de potências estrangeiras. No entanto, já em 30 de janeiro de 1763, o governo interino do Rio de Janeiro avisava sobre as deficiências militares da Praça da cidade, sobretudo com relação à insuficiência de tropas regulares. Segundo o governo, as fortalezas consomem muita parte desta tropa, e vem ficar curto numero para a guarnição desta cidade, e ainda della, no caso de precisão, se deve tirar, como se tirão, os destacamentos, para a Ilha Grande (...) e por consequencia vem a ficar muito limitado corpo de tropa reglada, para a defesa desta Praça.384

381. “Ofício do Governo Interino do Rio de Janeiro ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier Mendonça Furtado. RJ, 30/1/1763”, AHU, Cx. 72, Doc. 17. 382. Santos, Corcino Medeiros dos. Op. cit., p. 17. 383. Idem., p. 16. 384. “Ofício do Governo Interino do Rio de Janeiro para Francisco Xavier Mendonça Furtado. RJ, 30/1/1763”, AHU, Cx. 72, Doc. 17. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Tentando remediar uma perigosa fragilidade, o governador solicitava à Coroa que enviasse “dessa Corte alguñs dos muitos officiaes estrangeiros, que servem no exército de S. Mag.e, seria utilissimo, tanto para o precizo augmento destas tropas, como para a melhor instrucção das mesmas a exemplo das desse Reyno (...)”.385 Em outubro de 1763, o Vice-Rei Conde da Cunha, ao tomar posse do governo da nova capital do Estado do Brasil, faria à Coroa as mesmas advertências e solicitações. Ele havia encontrado as tropas da guarnição do Rio de Janeiro em estado funesto, reduzidíssimas, sem forças regulares, e compostas por homens indisciplinados. Todas as fortalezas necessitavam de urgentes reparos nas muralhas e nas peças de artilharia. Diante do quadro, o vice-rei solicitou um reforço de tropas do reino, tanto para a defesa da nova capital, quanto para as lutas contra os espanhóis que teriam lugar no Sul. Em virtude das solicitações do Vice-Rei Conde da Cunha, durante o primeiro semestre de 1767, chegaram ao Rio de Janeiro, forças expedicionárias vindas de Portugal, constituídas por três regimentos de Infantaria – Moura, Estremoz e Bragança – e um trem de artilharia. Os Regimentos eram comandados, respectivamente, pelo Brigadeiro Antonio Carlos Furtado de Mendonça e pelos Coronéis José Raimundo Chichorro e Francisco de Lima da Silva. Em junho de 1767, vários oficiais embarcaram rumo ao Brasil, entre eles o Brigadeiro Diogo Jacques Funck, inspetor da Artilharia e Fortificações, e o General João Henrique Böhm, encarregado do comando geral de todas as tropas existentes no Brasil, que devia unificá-las e organizá-las de acordo com as instruções estabelecidas pelo Conde de Lippe.386 A trégua foi acordada e firmada entre as Coroas Ibéricas no Tratado de Paz de 1763, mas as tensões e os incidentes fronteiriços na região Sul perduravam. A situação se agravou em maio de 1767, quando José Custódio de Sá e Faria, então governador do Rio Grande,387 tentou conquistar a vila do mesmo nome, que estava em poder dos espanhóis, 385. Id. 386. Rodrigues, Manuel A. Ribeiro. “O Tenente-General Böhm e as Forças Expedicionárias para o Brasil em 1767”. In: Jornal do Exército. Lisboa, ano XLI, n. 484, abril, 2000, p. 16. 387. José Custódio de Sá e Faria foi nomeado governador do Rio Grande pelo Vice-Rei conde da Cunha, através do termo de 24/2/1764, tomando posse em 16/6/1764 na Câmara de Vimão. Enviado com a missão de reorganizar a administração, fortificar o território em poder luso-brasileiro, e sistematizar processualmente a reconquista da região em poder dos espanhóis, inclusive a vila do Rio Grande de São Pedro. O território correspondente ao Rio Grande do Sul, logo reconquistado em seu governo, foi demonstrado por José 128

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e, tendo falhado, tomou a margem norte do canal que liga a Lagoa dos Patos ao mar. A conquista parcial coincidiu com a chegada ao Brasil de ordens que ratificavam a paz e a reaproximação entre as duas Coroas Ibéricas, tendo em vista o combate aos jesuítas e a suspeição de interesse dos ingleses por territórios americanos, portugueses e espanhóis. Logo que foi notificada do ocorrido na Lagoa dos Patos, a diplomacia portuguesa desculpou-se perante a Coroa espanhola, classificando a ofensiva como um ato isolado e isento da chancela da Corte.388 Contudo, apesar de assumir o compromisso de devolver o território conquistado, renovando as promessas de trégua, Portugal não o fez. As tensões permaneciam latentes na região, até que em 1774, Vertis e Salcedo, governador de Buenos Aires, partiu de Montevideu “juntando todas as forças, assim de tropa regular como de índios, sem deixar em Buenos Aires, Montevidéo e Maldonato alguma guarnição, e tirando quase toda a gente que havia no bloqueio da colonia (...),”389 marchou pela antiga estrada das Missões, instalou-se a duas léguas do Rio Pardo e, ameaçando o emprego da força, intimou os portugueses a abandonar os territórios que então ocupavam. Para assumir maior controle da campanha, Vertis e Salcedo também ordenou a construção do forte de Santa Tecla e a reconstrução da fortaleza de Santa Tereza.390 Quando a notícia chegou à corte, a metrópole ordenou a imediata nomeação do alemão Tenente-General João Henrique de Böhn como Comandante-General das tropas no Rio Grande. E remeteu uma esquadra com precisas instruções sob o comando do Capitão de Mar e Guerra Guilherme Mac Dowel. A Corte determinava ao então Vice-Rei, Marquês do Lavradio, que assistisse perfeitamente a Böhm, não lhe deixando faltar recursos nem tropas. Assim, as tropas arregimentadas em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina391 foram destinadas ao Rio Grande Custódio de Sá e Faria, no mapa Exemplo Geographico do Terreno que corre desde a V.a do R.o Grande de S. Padro, thé o destrito de Viamão (1763) [Tao Golin. Op. cit., p. 48-49]. 388. Golin Tau. A Guerra Guaranítica. Rio Grande do Sul: Passo Fundo, Editora UF-RGS, 1999, p. 67. 389. Carta do governador da Colônia do Sacramento, coronel José Marcelino de Figueiredo, ao marquês do Lavradio, 22/10/1774 (Revista do Instituto Histórico e Geográfico, v. 27, p. 240. Apud Freire, Felisbello, Op.cit., p.742.) 390. Golin Tau, Op.cit., p.79. 391. A partir do governo do Conde da Cunha, instalou-se uma política de intensa militarização da população masculina, resultando na criação de algumas Companhias de Aventureiros paulistas e de numerosos Corpos de Auxiliares, tropas não-remuneradas que CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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de São Pedro, onde os regimentos de Moura, Estremoz e Bragança – contingentes europeus melhor adestrados – também estariam. O ataque principal aconteceu em abril de 1776, sob o comando do General Böhm, que tomou posse da vila do Rio Grande e de toda a margem sul do canal da Lagoa dos Patos.392 Mais uma vez a reação espanhola estava a caminho: chegavam notícias da Europa sobre a formação de uma poderosa expedição comandada por Cevallos. Inicialmente, os representantes diplomáticos portugueses em Madri e Cádiz ventilaram algumas informações fragmentadas, mas em agosto de 1776 o embaixador português em Madrid, Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, relatou ao seu governo os preparativos da ação. A análise do itinerário dava sinais de possíveis ataques a povoações do litoral brasileiro, e as atenções metropolitanas voltaram-se para Salvador, que estava com as defesas enfraquecidas devido ao envio de dois Regimentos para o Rio de Janeiro. No mesmo mês de agosto, o Marquês de Pombal enviou ordens ao Marquês de Lavradio para restabelecer o sistema de defesa da Bahia, remetendo suas tropas de volta, e nomeando para o seu comando militar José Custódio de Sá e Faria.393 Informações mais precisas mostraram a Pombal e a seus assessores militares que os espanhóis dirigiam-se efetivamente para a Ilha de Santa Catarina, considerando-a como o melhor ponto estratégico da costa meridional. De posse da Ilha, a Espanha teria um porto seguro para contato direto com a Europa, e também poderia se aventurar pela conquista do Sul. As instruções de Pombal para Lavradio, datadas de 9 de setembro de 1776, informavam o propósito da Espanha, descreviam o plano de defesa de Santa Catarina e traziam a ordem de transferência do Brigadeiro José Custódio394 para aquele porto. deveriam dispor de razoável instrução, disciplina e armamento, participando do exército comandado pelo general Böhm. 392. Golin Tau. Op. cit., p. 79. 393. Carta do Marquês de Pombal ao Marquês do Lavradio. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 13/8/1776 (Campaña del Brasil. Antecedentes coloniales. Buenos Aires: Arquivo General dela Nacion, 1941, t. 3, p. 436-437. Apud Golin Tau. Op. cit., p. 96). 394. “(...) a Ilha de Santa Catarina oferece uma amplíssima baía e um tranquilo porto, capazes de receberem não só a fastosa expedição, que está para sair de Cádiz, mas também todas quantas outras armadas e esquadras quiser [a] Espanha mandar ao mar do Sul. Tendo o mesmo D.Pedro de Cevallos acabado de fazer compreender a Corte de Madri todo o referido. Sabemos que leva dela por principal instrução, e por primeiro objeto das aparatosas forças de que se acha armado, a conquista da referida Ilha de Santa Catarina.” No décimo parágrafo da instrução, Pombal ordenava a Lavradio: “Faça passar imediatamente, e sem a menor 130

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No fim de fevereiro de 1777, a formidável expedição comandada pelo Marquês de Casa Tilly e por D. Pedro de Cevallos aportava no litoral de Santa Catarina sem encontrar resistência ao desembarque. Diante da visível superioridade da armada espanhola, a esquadra lusa comandada por Robert Mac Dowal havia se deslocado para o Rio de Janeiro. Dando prosseguimento a seus planos, Cevallos logo atacou a Colônia do Sacramento, conseguindo sem grandes dificuldades a capitulação portuguesa. Nesse período, D. Maria assumiu a Coroa portuguesa com a morte de seu pai, D. José I, e o Marquês de Pombal foi demitido do cargo de Secretário dos Negócios do Reino, estando o marquês afastado do poder nos últimos reveses militares e geopolíticos. Posteriormente, quando Cevallos se preparava para avançar em direção ao Rio Grande, recebeu a notícia do armistício apressadamente negociado por D. Maria I, que teve sequência no Tratado de Santo Ildefonso, em 1 de outubro de 1777. Portugal perdia a Colônia do Sacramento e o Território das Missões, mas retomava a posse da Ilha de Santa Catarina. Considerando o empreendimento da Colônia do Sacramento no sentido estratégico-político da manutenção das conquistas do território luso-americano no sul, pode-se constatar, e concluir com Caio Prado Junior, que os portugueses acabariam por perder a Colonia, mas a localização do conflito naquele ponto afastado, lhes permitiria ocupar com mais folga o território que lhes fica para trás, mais para o norte e que se incorporará assim ao Brasil.395

interrupção de tempo, o brigadeiro José Custódio de Sá para a referida Ilha de Santa Catarina (...) para ajudar utilmente com os grandes conhecimentos que tem por tão largas experiências (...) na guerra com os nossos infestos vizinhos castelhanos (...)”. Carta de Pombal a Lavradio, Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 9/8/1776. (Campaña del Brasil... Op. cit., t. 3, p. 438. Apud Golin Tau. Op. cit., p. 97-99). 395. Prado Junior, Caio. História Econômica do Brasil, 8a ed., p. 96, Apud, Ferrad de Almeida, A Colônia do Sacramento... Op. cit., p. 157. CAPÍTULO 3 – A IMPORTÂNCIA E A VULNERABILIDADE ... E O OURO DAS MINAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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CAPÍTULO 4 1763: O Vice-Reino

4.1. A Política de Intensa Militarização: A Reordenação do Social Após a Espanha conquistar a Colônia do Sacramento e a região do Rio Grande, em dezembro de 1762, novas e importantes questões no sul do Estado deveriam ser consideradas pelo sistema defensivo português. Ora, a Colônia do Sacramento era um dos principais focos de atenção militar da Coroa portuguesa na América, e acreditava-se que a política bélica seria capaz de atender, pelo menos, às questões de defesa e manutenção daquela praça contra as inevitáveis invasões espanholas. Entretanto, a Colônia não conseguiu sequer uma resistência prolongada: no primeiro cerco, Sacramento se rendeu aos espanhóis. Em fevereiro de 1763, um tratado de paz encerrava a Guerra dos Sete Anos. Pelo firmado, Portugal deveria ser restituído de todos os territórios ocupados pelos espanhóis, mas D. Pedro de Cevallos dispôs-se a devolver, 10 meses após assinado o Tratado, apenas a Praça da Colônia. Todo o território restante foi retido – as ilhas de São Gabriel, Martim Garcia e das Duas Irmãs e o Rio Grande de São Pedro com suas margens –, e a Colônia do Sacramento ficou proibida de qualquer contato com áreas próximas. A delimitação de fronteiras nas possessões portuguesas ao sul da América provocaram grandes tensões com os espanhóis; a perspectiva de guerra era flagrante e a necessidade de adequar o sistema defensivo era urgente: Administrativamente independentes, as capitanias de São Paulo e Minas Gerais, juntamente com a capital do Rio de Janeiro, ficariam submetidas a uma política militar de cooperação e união recí-

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proca direcionada a atender às questões de defesa ao Sul do Estado396. Cada uma das três capitanias teve uma função específica na estratégica militar traçada e implementada pela Coroa para a ofensiva no Prata: a de São Paulo viria a “constituir um tampão defensivo entre a área hispano-americana e a região da mineração. Paralelamente cobriria a defesa da Capital recém-transferida”;397 a de Minas Gerais deveria dispor de um corpo militar pronto para defender os domínios meridionais e a Capital do Rio de Janeiro em caso de necessidade. Esta última, teria as funções de supervisionar a organização militar da defesa da região do Prata, enviar suas tropas para aquela região e acudir militarmente as outras duas capitanias se fosse necessário. E a fim de tornar as forças coloniais uniformes e aptas ao confronto que então se anunciava, a organização imposta deveria ser moldada nas novas diretrizes militar que o Conde Lippe398 imprimira ao exército português. A estratégia de organização militar da Colônia imposta pelo governo de D. José I ao Estado do Brasil representava uma parte complementar das reformas implementadas “na realização concreta de todo um plano político-administrativo geral”.399 As metas principais eram a defesa do território, a expansão econômica e, sobretudo, o fortalecimento do poder central. As medidas centralizadoras da política territorial concretizaram-se sob uma estratégia militar em que “o problema da defesa perde o seu caráter local e se torna geral”,400 razão da intensa militarização da população masculina. Em consonância com as demais diretrizes político-administrativas do governo de D. José, a intenção régia era empreender uma nova estratégia militar: Não se tratava mais de organizar corpos militares locaes, com as suas leis próprias, como sucedia até então, sem a 396. Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadella, já havia implementado uma unificação administrativa das Capitanias do litoral, tentando melhorar a organização da defesa da região do prata; entretanto, a unificação adotada por Bobadella submetia as capitanias do sul à jurisdição do Rio de Janeiro. 397. Bellotto, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 47. 398. Conde de Schaumbourg Lippe, militar prussiano consagrado; em 1762, foi contratado pelo marquês de Pombal, que lhe confiou a missão de modernizar o exército português, na época, um dos menos desenvolvidos da Europa. 399. Machado, Lourival Gomes. “Política e Administração sob os Últimos Vice-Reis.” In: História Geral da Civilização Brasileira. Dir. Sérgio Buarque de Holanda. A Época Colonial, v. 2. São Paulo: Editora Difel, 1960, p. 360. 400. Idem. 134 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

maior ligação entre si, sem um traço comum (...) mas sim, inspirada nos mesmos princípios e sob o mesmo comando. Não se tratava mais de um sentimento de defesa local dos governos das capitanias, criando suas guarnições, debaixo das impressões do momento, como sucedia no Rio, Bahia e Pernambuco. Tratava-se de organizar um exército debaixo das mesmas leis, da mesma direção e da mesma disciplina (...).401

Esta preocupação de padronizar as tropas coloniais está expressa na Instrução Régia dirigida pelo Conde de Oeiras ao Vice-Rei Conde da Cunha: Havendo Sua Magestade resolvido que as tropas deste reino girem com as desse Estado; e que todas ellas constituam um, e unico Exército debaixo das mesmas regras, e da mesma identica disciplina, sem diferença alguma.402

Especificamente com relação à capital do Rio de Janeiro, as instruções recomendavam uma particular cautela, mesmo diante da importante defesa da região Sul do Estado, E ainda assim no caso de marchar contra ella uma Expedição, não deve Vossa Excellencia enfraquecer o Rio de Janeiro, para se empenhar em socorrel-a de sorte que enfraqueça essa força, de que tanto necessita para deffender esse Porto, e a Cidade que a tudo deve preferir (...).403

Segundo as mesmas Instruções, a defesa do Rio era fundamental, porque, além de ser a “porta principal do preciosissimo Tesouro da América”,404 há muito tempo a Capitania havia assumido uma importância estratégica na defesa do Império português na América: “(...) o

401. Freire, Felisbello. Op. cit., p. 705. 402. Instrução do Conde de Oeiras ao Conde da Cunha, 20/6/1767”. In: Mendonça, Marcos Carneiro de. Século XVIII – Século Pombalino do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil SA, 1989, p. 463. 403. Idem. 404. Idem.. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Rio de Janeiro, tem conservado e sustentado o Brasil”,405 e admitiam “que o mesmo Brasil ficaria perdido, logo que se perdesse o Rio de Janeiro”.406 O Vice-Rei Conde da Cunha iniciou seu governo na Capitania do Rio de Janeiro, então a nova sede do vice-reino do Brasil, em um momento de dificuldades políticas e militares. A documentação referente a este momento tem mostrado que o período do vice-reinado do Conde da Cunha é especialmente interessante, porque fornece um panorama expressivo dos efeitos da política régia e de suas diversas consequências sociais no nível local, revelando o impacto que as novas diretrizes de militarização da população colonial produziram na sociedade. A realização dos planos militares portugueses desencadeou uma série de novas e diferentes dificuldades a serem resolvidas no nível local, produzindo uma reordenação política, social e geográfica na Colônia. Há uma clara conexão entre a perspectiva adotada pela administração régia – em sua política de intensa militarização da população civil masculina – e a crescente importância dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças no seio da sociedade colonial. Pondo em prática as Instruções régias de militarização da Capitania, o Conde da Cunha passou em revista as tropas já existentes. O resultado da avaliação da situação militar que o vice-rei encontrou na Capitania, enviado em Ofício ao Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, conclui: “Em pr.o lugar digo q’ estão dezordenadas as tropas, o q’ succede por dous motivos, o p.o por falta de deceplina, e o seg.o por falta de homens (...).”407 Em relação ao estado das fortalezas o Conde da Cunha observou: “todas carecem de se lhe regular a sua defença, e de se lhe montar a Artilharia em reparos com as suas justas proporções(...)”.408 De acordo com as diretrizes político-militares fixadas pela Coroa, o Conde da Cunha devia tomar providências imediatas para incrementar o recrutamento dos homens válidos ao serviço militar, e estabelecer uma maior regularidade no contingente das tropas. Porém, o vice-rei se deparou com sérios obstáculos ao iniciar sua tarefa de recrutamento para a Tropa paga. Inicialmente, ele chamou a atenção para dois aspectos sociais – típicos de uma sociedade do antigo regime – que se apre405. Idem. 406. Idem. 407. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 16/6/1764”, AHU, Cx. 77, Doc. 77. 408. Idem. 136 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

sentavam em proporções excessivas: um deles era a existência de uma densa rede de privilégios “que em todas estas terras se tinhão permittido aos seus abitantes”;409 o outro aspecto que dificultava o recrutamento era a incidência de uma enorme quantidade de jovens na carreira religiosa: “he o grande numero de Frades que querem ter estas tres religiões que aqui ha de Bentos, Carmelitas e Franciscanos (...)”.410 O vice-rei sintetiza o quadro inicial dos obstáculos encontrados para o recrutamento de homens “ativos e capazes”, reclamando que “todos tem privilegios, ou metem-se nas Religiões, e ordenão-se Clericos”,411 e só “os homens ignuteis, são os que se podem meter nos Regimentos”.412 Diante das circunstâncias, o conde vice-rei tentou criar condições sociais propícias para a disponibilização da população masculina ao serviço militar. Para dispor dos homens, era preciso interferir no âmbito dos privilégios civis e religiosos, procurando eliminar abusos e excessos até então impunemente praticados, que causavam prejuízo ao serviço real pelo grande “consumo de homens hábeis”.413 Com relação aos privilégios civis, o vice-rei denunciou ao secretário de Estado da Marinha e do Ultramar: “encontro no dos Moedeiros algumas sircunstancias dignas de se porem na prezença de S. Mag.e (...)”.414 Entre os excessos praticados, o desrespeito ao número permitido pela ordem régia, “q’ só poderão ser 40 os Moedeiros do nº, e não 64, como prezentem.te ha, sem haver ordem, ou regim.to q’ os permita”,415 e a inclusão de alguns privilegiados que não poderiam usufruir desses direitos: se mostra q’ este previlegio de Moedeiro, só se deve comprehender aos q’ estiverem actualm.te com exercício na caza da Moeda, e não em todos os Moedeiros do nº, pois q’ alguns delles nunca servirão nella.416 409. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 10/7/1764”, AHU, Cx. 78, Doc. 4. 410. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, RJ. 16/6/1764”, AHU, Cx. 77, Doc. 77. 411. Idem. 412. Idem. 413. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 23/9/1764”, AHU, Cx. 79, Doc. 24. 414. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 10/7/1764”, AHU, Cx. 78, Doc. 4. 415. Idem. 416. Idem. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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O vice-rei determinou então que “todos os homens que tem officios e Previlegios, para não poderem ser soldados”417 deveriam estar casados para exercerem seus privilégios, justificando que “por este modo se poderá multiplicar a gente branca, e averá sold.os sem embaraços, e com honra (...)”.418 A intenção dele era modificar uma realidade social onde “todos se amancebão com negras e mulatas, com estas gastão tudo o que adquirem e não se multiplica a gente branca”.419 Em sua estratégia, o Vice-Rei Conde da Cunha parecia associar o serviço militar com a ideia de castigo, ou ao menos de punição: “Pelo que tenho feito publico, que os officiaes mecanicos, e previlegiados que forem moços e não cazarem os ei de fazer Soldados.”420 Ele próprio observa o sucesso da nova regra: vesse que athe o tempo prezente pedião os homens grandes dotes para cazarem, e que agora são as mulheres as que duvidão contrair matrimonio sem que se lhe segure os dotes de seus maridos, e parece me que nesta parte tenho feito hum serviço agradavel a Deus e util a S. Magestade.421

O problema representado pelo enorme número de homens devotados ao serviço religioso naquele tempo, “q.o se não achão nesta Cid.e homens moços p.a recruta das tropas; e havendo tantos clérigos (...)”,422 foi enfrentado com duas medidas principais, em função do “prejuízo q’ resulta à Republica”.423 A primeira foi a proibição expressa de novos clérigos, interrompendo as ordenações pelo período de 10 anos, ou até que houvesse “nova ordem do mesmo Senhor”;424 a segunda medida foi a exigência de realização de um censo que apresentasse a relação total e 417. Idem. 418. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 23/9/1764”, AHU, Cx. 79, Doc. 24. 419. Idem. 420. Idem. 421. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 29/1/1765”, AHU, Cx. 80, Doc. 32. 422. “Ofício do Bispo do Rio de Janeiro, Frei Antonio do Desterro, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 22/12/1766”, AHU, Cx. 86, Doc. 60. 423. Idem. 424. “Ofício do Provincial da Ordem de N. S. do Monte do Carmo do Rio de Janeiro, Frei Manoel Angelo, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 20/8/1764”, AHU, Cx. 78, Doc. 21. 138 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

exata de “Sacerdotes, Choristas, Leigos e Donatos”425 existentes em todos os “Mosteiros, Cazas e Residencias”.426 Apesar de serem apresentadas com rigor, as ordens não foram cumpridas, e um número excessivo de ordenações continuou a ser efetivado. Só restava ao vice-rei queixar-se à Coroa e pedir as devidas providências: E ainda que vejo estar prohibido ao Bisbo o puder Ordenar, aos Prelados das Religiões o tomarem Noviços com tudo ainda são necessarios maiores providencias p.a que os naturaes desta terra, e os milhores della sirvão nas Tropas ao Seu Rei e a Sua Patria.(...).427

Quanto aos corpos de Auxiliares da Capitania do Rio de Janeiro, o vice-rei – que já havia passado as tropas em revista – avaliava que os Auxiliares de cavalaria “he o q’ pode ser m.to necess.o e o mais util p. a defença, e segurança do Rio de Janr.o”;428 mas de forma geral observava “a dezordem em q’ achei este Regim.to”.429 A ausência de ordem era resultado da própria natureza de formação do Corpo dos Auxiliares, especialmente no que diz respeito à péssima distribuição espacial dos oficiais, que tornava o Corpo inoperacional, porque “nenhum (oficial) assestia na freg.a em q’ tinha o seu posto, nem conhecia de vista o território em q’ ella estava, pelo q’ não tenha nenhum genero de exercicio, nem conhecião os seus soldados, nem estes os seus off.es”.430 O Conde da Cunha procurou tomar providências imediatas no sentido de tornar o Corpo de Auxiliares útil à defesa da Capitania: “fazendo trocar a todos, p.a q’ cada hum ficasse dentro do territorio de sua comp.a, o q’ se executou com grd.e satisfação e aprovação de todos”.431 Entretanto, se o vice-rei conseguia remediar algumas das “desordens” militares da Capitania do Rio de Janeiro, outras dificuldades ti425. Idem. 426. Idem. 427. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 27/7/1767”, AHU, Cx. 88, Doc. 66. 428. Carta do Vice-Rei Conde da Cunha ao Rei D. José I. RJ, 1/6/1764”, AHU, Cx. 77, Doc. 59. 429. Idem. 430. Idem. 431. Idem. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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nham soluções além de seu alcance. Ao tentar regularizar as tropas dos Auxiliares a cavalo, o vice-rei se deparou com um sério obstáculo que provinha da própria Coroa: a falta de fornecimento dos armamentos necessários para guarnecer as tropas; no caso específico dos Auxiliares e Ordenanças, estes deveriam custear seus próprios armamentos. O vicerei constatava que “o regim.to dos Auxiliares de Cavallo, não estão bem armados, e não tem a onde compre estes generos; os quaes se lhe poderião vender nos mesmos Armazeis Reais, com utelid.e grande (...)”432 e solicitava que a Coroa, com toda a brevidade possível, enviasse as armas para essa tropa fundamental na defesa da Capitania do Rio de Janeiro. Apesar dos inúmeros apelos do vice-rei, os armamentos e munições solicitados à Coroa não chegavam. Assim, o Conde da Cunha decidiu reiterar a urgência do pedido de forma mais contundente, enviando um Ofício ao Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, em que apresentava um quadro de grande risco para o Brasil. Ele contrapunha as péssimas condições de defesa à exuberante e conhecida riqueza do território, e chamava a atenção para a situação de perigo iminente no Estado do Brasil, que era “invejado de muitas Nações, e dezejado de todas”.433 E conclui, afirmando com veemência: Delle não ha pessoa alguma q’ não conheça a sua grandeza e thezouros, e q’ são os maiores q’ no mundo athe o prezente se tem descuberto. Este Estado do Brazil Ex.mo S.r q’ he o mais importante da R.l Coroa de S. Mag.e (...) e se devia segurar (...).434

O vice-rei constatou as precárias – ou mesmo trágicas – condições das organizações militares do Rio de Janeiro, percebendo inúmeras carências em todos os aspectos de defesa da Capitania: nem achei Fortaleza neste Porto que pudece ter este nome, nem tropas que competentes foçem a sua extenção, assim na qualidade, como no nº, e porque tão bem nem armam.tos achei para guarnecer os Auxiliares e Or-

432. Carta do Vice-Rei Conde da Cunha ao Rei D. José I. RJ, 18/6/1764”AHU, Cx. 77, Doc. 86. 433. “Minuta escrita pelo Vice-Rei Conde da Cunha. RJ, 1767”, AHU, Cx. 90, Doc. 76. 434. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 3/11/1765”, AHU, Cx. 83, Doc. 1. 140 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

denanças, tudo pedi logo que aqui cheguei, e nem resposta tive esta materia (...).435

As deficiências militares na Capitania do Rio de Janeiro ganhavam proporções tão intensas quanto graves, considerando a visibilidade da cidade. O porto do Rio era “quase que escala obrigatória dos navios nas viagens para o extremo sul da Colônia e do continente”,436 e também a porta de saída do ouro das Minas Gerais, por isso a cidade havia se tornado especialmente cobiçada. O vice-rei considerava que a importante posição estratégica do Rio era decisiva para o Estado do Brasil: Que a Capital deste Estado, de cuja conservação depende a existencia de Minas Geraes, hé o Rio de Janeiro; he que perdida huã vez esta Capital, se perdem consecutivamente as Minas e se pode tambem conciderar perdido todo o resto do Brazil.437

Assim, “(...) pello que se ve esta cidade, que pella sua situação e porto, deve ser a cabeça do Brazil (...)”,438 não seria nada recomendável deixar transparecer às outras Nações as insuficiências militares existentes na Capitania do Rio de Janeiro, porque, se a cabeça está vulnerável, o que vão pensar sobre as outras partes desse corpo? O vice-rei demonstrou preocupação e esforço contínuos na tentativa de resolver as deficiências militares da cidade; se não conseguia concretamente superá-las, pelo menos deveria manter a aparência militar em razoável estado, a fim de preservar não só a segurança do porto e da cidade, mas também a de todo o Estado. As inquietações do vice-rei, especialmente com a imagem da cidade perante as outras Nações, eram significativas. Ele considerava, por exemplo, o estado dos quartéis: A mudança dos quarteis melitares se puder conseguir poderei fazer huma obra digna de ser vista pelas Nações estra-

435. Idem. 436. Santos, Corcino dos. Op. cit., p. 16. 437. “Minuta escrita pelo Vice-Rei Conde da Cunha. RJ, 1767”, AHU, Cx. 90, Doc. 76 438. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 24/3/1767”, AHU, Cx. 87, Doc. 78. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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nhas q’ aqui vem tanto a miudo; e é perciza pelo mizerável estado em q’ estão os antigos (...).439

Há preocupações semelhantes no relato sobre o treinamento dos novos soldados, que não podiam realizar a aprendizagem militar em lugares visíveis na cidade: “(...) o fazem nas Fortalezas em q’ os tenho, p.a q’ os espanhões não vejão a sua desprezível figura, pois estão nus, e descalços o q’ vou remediando como posso”.440 Mesmo ocultando as graves deficiências militares da cidade, o vice-rei tinha diante de si a concreta realidade da Capitania do Rio de Janeiro e do Estado do Brasil. E em sua avaliação, tanto o Rio de Janeiro – a cabeça do Estado – quanto todo o resto do Brasil estavam incapacitados da defesa militar, ficando expostos em eventuais invasões. Ao concluir sua avaliação geral, o Conde da Cunha advertia especificamente a Coroa portuguesa sobre o perigo em que encontravam os domínios ao Sul do Estado, que dispunham apenas de um frágil e minguado sistema defensivo para o tão temido enfrentamento com os espanhóis na região do Prata: Esta minha conta só se derige a por com toda a clareza na Real prezença de S. Mag.e q’ nesta Cap.nia/assim como nas mais do Brazil/não há tropas, nem armamentos, nem Naus, nem forças que se possão upor as grandes que os Castelhanos prezentemente tem ajuntado no R.o da Prata (…).441

A determinação dos propósitos régios para a defesa da principal Colônia, especialmente em sua região meridional, precisava se traduzir objetivamente na regularização das tropas militares coloniais. Os planos da Coroa eram claros e precisos, mas os limites de seus recursos militares e financeiros pareciam estar aquém do necessário para atingir os objetivos por ela mesma traçados. A Coroa reconhecia a absoluta importância das tropas coloniais, e admitia a necessidade delas estarem devidamente preparadas para 439. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 23/9/1764”, AHU, Cx. 79, Doc. 24. 440. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 29/6/1765”, AHU, Cx. 81, Doc. 55. 441. Idem. 142 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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os combates com as forças adversárias. Porém, a Coroa não enviava os armamentos necessários, dos quais a Colônia dependia totalmente. Qual poderia ser o resultado militar de tropas idealmente formadas, submetidas a uma impecável ordem e disciplina, se os soldados não estivessem bem armados e treinados? Esta era a situação apresentada pelas tropas coloniais durante toda a segunda metade do século XVIII.

4.2. As Principais Forças de Defesa da América Portuguesa Os principais argumentos que justificavam as frequentes intervenções legislativas da Coroa na sociedade civil diziam respeito à esfera militar, sendo perceptível o contínuo esforço de ampliar o espaço militar no interior da sociedade colonial. Esta intenção ficou ainda mais explícita e incisiva com a Carta Régia de 22 de março de 1766, enviada ao ViceRei Conde da Cunha e aos governadores e capitães-generais do Brasil. Por sua irrefutável determinação de que se alistassem “sem excessão” os “nobres, brancos, mestiços, pretos, ingenuos, e libertos”,442 todos os homens que fossem válidos para o serviço militar, a Carta Régia reforçava o objetivo essencial de comprometer e englobar todo o conjunto da sociedade colonial para formar o maior número possível de Corpos de Auxiliares e de Ordenanças. A Carta Régia de 1766, expressando com irrevogabilidade legislativa os objetivos de militarização da população colonial, provocou intensa repercussão social com as medidas impostas. Os princípios norteadores destas medidas são capazes de explicitar as razões pelas quais se delegou uma grande importância estratégica aos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na defesa do território colonial. Em um interessante documento, não assinado, sobre os Corpos de Auxiliares, encontram-se reunidos três princípios, já inclusos nas Instruções Régias, e considerados pelo incógnito autor do registro como princípios invariáveis e constituintes do fundamento sobre o qual se assenta a Carta Régia de 22 de março de 1766:

442. “Edital para se alistarem todos os moradores das terras da jurisdição desta Capitania, sem excepção de Nobres, Plebeus, Mistiços, Pretos, Ingenuos, e Libertos e formar dos mesmos Terços de Auxiliares, e Ordenanças, assim de Cavallaria, como Infantaria”, ANRJ, Cod. 73, v. 1, fl. 143. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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O primeiro: Que o pequeno continete de Portugal, tendo braços muito extenços, muito destantes, e muito separados huns dos outros, que são os seus Dominios Ultramarinos, nas quatro partes do Mundo, não pode ter meios nem forças com que se defenda a si proprio, e acuda ao mesmo tempo a prezervação e segurança de cada hum delles; O segundo: “Que nenhuma Potencia do Universo por mais formidavel que seja, pode, nem intentou ate agora defender as sua colonias com as unicas forças do seu proprio continente”.443

Articulando logicamente com os dois primeiros princípios básicos apresentados, é fácil chegar à conclusão de que a Coroa de Portugal necessitava inegavelmente da colaboração, espontânea ou não, dos habitantes da Colônia. Por si só, a Coroa não teria “meios nem forças” de resguardar a integridade do território colonial: Que o unico meio que até hoje se tem descuberto e praticado para socorrer a sobredita impossibilidade foi o de fazer servir as mesmas colonias para a propria e natural deffensa dellas: E na inteligencia deste inalteravel principio as principaes forças que hão de defender o Brazil são as do mesmo Brazil.444

Diante do perigo das invasões espanholas na região Sul de seus domínios, a Coroa de Portugal enfrentava a imperativa necessidade de militarizar toda a população masculina existente na Colônia. No entanto, estava impossibilitada de converter todos os habitantes em soldados profissionais, mesmo sob o ponto de vista econômico, porque não havia como contornar os inevitáveis prejuízos da paralisação das atividades produtivas, especialmente a agrícola. Por outro lado, a manutenção de um exército permanente era uma despesa insustentável. O recurso encontrado para superar o impasse foi a criação de uma tropa formada por soldados com uma certa qualidade, segundo o Conde Lippe, “anfíbia”: soldados “meio paisanos, meio militares”.445 A Coroa acreditava que 443. “Quanto aos Corpos Auxiliares da Capitania das Minas, não assinada., post. 2/3/1766”, AHU, MG, Cx. 87, Doc. 48. 444. Idem. 445. Sales, Ernesto Augusto Pereira. “As Observações Militares do Conde Lippe”. In: O Conde Lippe em Portugal. Vila Nova de Farnalicão. Lisboa, 1936, p. 137, item 27. 144 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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essa seria a solução para militarizar a sociedade, evitando a ameaça de uma indesejada desagregação econômica.446 Eis o modelo proposto: Estas forças porem devendo consistir em Tropas Regulares e Auxiliares; e não permitindo as circuntancias de cada Capitania que haja das primeiras mais que o numero proporcionado a capacidade e situação della, por que de outra sorte seria converter em estabelecimento de guerra hum Paiz que só deve constar de Colonos e Cultivadores: He por consequencia indispensavelmente necessario, que as segundas, isto hé os Corpos Auxiliares formem a principal deffensa das mesmas Capitanias; por que os habitantes de que se compoem os mesmos corpos são os que em tempo de paz cultivão as terras, crião os gados, e enriquecem o Paiz com o seu trabalho e industria: E em tempo de guerra são os que com as armas na mão defendem os seus bens, as suas cazas, e as suas familias das hostilidades e invazoens inimigas.447

Portanto, era indispensável evitar a todo custo o esfacelamento das características básicas da Colônia e de sua economia; ao mesmo tempo, era preciso regularizar, disciplinar e treinar as Tropas Auxiliares do Estado do Brasil, tornando-as funcionais, preparadas militarmente para qualquer situação de defesa das Capitanias, constituindo-se em “hua das principaes forças que tem o mesmo Estado para se defender”.448 A definição dos meios e normas para a formação das Tropas, incluindo aspectos financeiros, foram estabelecidos pela Carta Régia de 22 de março de 1766, um documento que apresentava medidas tão importantes 446. A política de intensa militarização da sociedade colonial, imposta pelas Instruções e Cartas Régias durante a segunda metade do século XVIII, levou à criação de incontáveis Corpos de Auxiliares. Muitos deles, inclusive, participaram das Campanhas no Sul, ao lado da tropa regular. Em decorrência do enorme contingente de homens que abandonaram suas terras, pela aceitação ou fuga do serviço militar, as atividades agrícolas sofreram grande prejuízo. O recrutamento gerava a despovoação de lavouras, roças e vilas, provocando a “infalível carestia dos gêneros de primeira necessidade” [Prado Jr., Caio. Op. cit. p. 311]. Se, na teoria, a política régia pretendia uma conciliação entre atividades agrícolas e militares através da criação dos Corpos de Auxiliares, na prática, essa estratégia revelouse bastante contraproducente. 447. “Quanto aos Corpos Auxiliares da Capitania das Minas, não assinada., post. 2/3/1766”, AHU, MG, Cx. 87, Doc. 48. 448. Idem CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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quanto delicadas para o conjunto da sociedade. A ordem da Coroa era para que todos os governadores do Estado do Brasil mandassem alistar todos os moradores das suas respectivas jurisdiçoens, sem excepção de algum para servirem nos terços de Auxiliares e Ordenanças assim de Cavalaria, como de Infantaria, creando para elles, os officiaes conpetentes e nomiando para deciplinar cada hum dos ditos terços, hum Sargento mor escolhido nos officiaes das Tropas pagas, que seria pago, pello rendimento das Camaras dos seus destrictos (...).449

As novas diretrizes de organização militar expedidas pela Coroa – e consequente militarização dos homens válidos – visavam fornecer às forças coloniais uma disciplina indispensável para as ações bélicas que se prefiguravam ao sul do Estado, e também para a defesa de suas respectivas Capitanias, em possíveis casos de invasão. As Instruções Régias enviadas em carta às autoridades coloniais apresentavam um repertório de condutas que deveria ser seguido pelos governadores das capitanias, neste caso específico, o Vice-Rei Conde da Cunha e a Carta Régia de 22 de março de 1766. Porém, na prática, a orientação político-militar desses governadores também era influenciada pela vida local, com suas características próprias. A ação política dos governadores era regulada pela combinação inevitável entre as diretrizes régias e as especificidades do meio colonial, onde eles eram apenas um dos agentes no processo de viabilização das diretrizes militares da Coroa. A força decisiva estava nas mãos dos agentes locais, os oficiais de Auxiliares e de Ordenanças que, pelo poder e influência exercidos, tornavam-se capazes de determinar o grau de sucesso das ambições régias. No jogo das forças políticas, os governadores coloniais precisavam recorrer a compromissos e ajustes com as forças locais para intensificar a militarização dos moradores da Colônia. As soluções para realizar as ordens régias eram encontradas na dinâmica colonial, com alianças estabelecidas tanto internamente, na esfera local, quanto externamente, com o governo central – a Coroa.

449. Idem. 146 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Como as Instruções Régias não podiam abarcar os múltiplos e dinâmicos aspectos sociais, econômicos, políticos e geográficos que envolviam a complexa realidade da Colônia, havia uma distância entre as medidas determinadas pela Coroa e a possibilidade prática de executálas integralmente. E era comum os governadores tentarem diminuir essa distância através da sugestão de alternativas adequadas às condições peculiares de cada Capitania. Ao tomar conhecimento da Carta Régia de 22 de março de 1766, o vice-rei do Estado do Brasil observou o “emportante e dificultoso Regulamento”450 e comentou as dificuldades e questões que se imporiam no quase intransponível vácuo entre as condições existentes na Capitania e as exigências da Carta Régia. A primeira questão que o vice-rei trouxe à tona foi a precariedade financeira das Câmaras nos distritos da Capitania do Rio de Janeiro: Manda El Rei, que os Sargentos Mores dos novos terços sejão pagos pelas Camaras dos respectivos Destrictos em que estes Corpos se formarem: o que não cabe no possível executar-se; porque nenhuma destas Camaras tem rendas para estas despezas.451

Ora, uma vez que as Câmaras não dispunham de recursos suficientes para arcar com os soldos dos Sargentos Mores, conforme determinação régia, a alternativa seria a criação de novas tarifas fiscais para os habitantes das povoações. Entretanto, o vice-rei discordava da aplicação de novos tributos, chamando a atenção para a evidente pobreza vivida pela grande maioria dos habitantes das vilas da Capitania do Rio de Janeiro: “(...) todas ellas tão faltas de gente, e tão cheias de mizeria, que não são villas mais, que o nome (...)”.452 Outro fato agravava ainda mais a situação financeira da Colônia: a Carta Régia de 1766 também trazia a ordem de reunir o maior contingente possível de Corpos de Auxiliares, o que resultaria na multiplicação do número de oficiais pagos, onerando ainda mais a população. 450. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, RJ, 4/2/1767” AHU, RJ, Cx 85, Doc 24. 451. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 4/3/1767” AHU, RJ, Cx 87, Doc 44. 452. “Ofício do Vice-Rei, Conde da Cunha a Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 23/2/1767”. AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 37. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Em 1768, o Conde de Azambuja assume o vice-reinado após o Conde da Cunha, e encontra a mesma situação: “Esta Capitania se acha com doze Regimentos de Auxiliares de pé, e hum de Cavallaria, o que traz consigo hua quantidade de Sargentos Mores, e Ajudantes pagos (...)”;453 mas “todos estes soldos sahem por ora da Fazenda Real, nem eu vejo meio de serem nunca pagos pelas Camaras (...)”.454 Mediante a inegável situação de carência de recursos da população da Capitania, a própria Fazenda Real sofria o encargo financeiro de regular e disciplinar os Corpos de Auxiliares. Preocupado com o enorme dispêndio real destinado ao pagamento dos soldos, o Conde de Azambuja propôs a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, a redução do número dos Terços de Auxiliares formados por seu antecessor, considerando que: “dentro desta Cidade ha trez Terços de Auxiliares de pé, que comodissimamente se podem reduzir a hum(...)”.455 Diminuindo o número de oficiais pagos, também se diminuiria a despesa com os soldos. Outro aspecto das tributações sofridas pela população local para a manutenção dos Corpos de Auxiliares, era a obrigatoriedade daqueles que serviam nestes Corpos em arcar com os custos da compra de suas próprias armas. Este encargo foi acentuado pela Carta Régia de 1766, que havia determinado, entre outras coisas, o aumento do número de Corpos de Auxiliares. Para que a multiplicação destes Corpos militares atendesse às expectativas régias, dois fatores eram primordiais. Por um lado, a Coroa deveria enviar os armamentos necessários aos Corpos; por outro, aqueles que tinham a obrigação de comprar armas deveriam ter os recursos indispensáveis para o negócio. Ora, podemos facilmente constatar as deficiências da Coroa no fornecimento dos armamentos militares através das recorrentes queixas do Conde da Cunha, durante todo o período de seu governo. Em março de 1767, quando a situação provocada pelo aumento do número de Corpos Auxiliares tendia a se agravar, o vice-rei avaliava que “Para se poderem armar nesta Capitania os novos terços de Auxiliares que S. Mage he servido mandar levantar; são percizas pelo menos,

453. “Carta do Conde de Azambuja para Francisco Xavier de Mendonça Furtado R.J., 15/5/1768”, AHU, RJ, Cx. 91, Doc. 62 454. Idem. 455. Idem. 148 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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6 mil armas de igual calibre (...)”.456 Em maio do mesmo ano, as necessidades já eram maiores: “(...) 9 mil armamentos pelo menos são percizos aos auxiliares Infantes (...)457. O Conde da Cunha advertia a Coroa sobre a condição militar da Capitania, onde “(...) tudo esta dezarmado carecendo de providencia”.458 Com relação ao segundo fator primordial para a efetivação das ordens régias, era flagrante a ausência de recursos dos moradores para a aquisição de armas. Diante das circunstâncias, o vice-rei recorreu à colaboração dos notáveis locais, no caso os Mestres de Campo: (...) e quando El Rei N. Senhor seja servido manda-llos vir se poderão entregar [os armamentos] aos Mestres de Campo respectivos, e estes se obrigarão a paga-llos a Faz.da Real dentro de hum ou dous annos, o que eu poderei ajustar e segurar, p.a que a mesma Real Fazenda não possa ter perjuizo.459

Os mestres de campo ficariam responsáveis pelo pagamento à Coroa no prazo determinado, tendo de cobrar de seus soldados o valor devido por cada arma. Partindo-se do princípio de que as diretrizes político-militares determinadas pelo poder central sofriam inevitáveis adaptações às condições locais, pode-se concluir que os capitães-generais e vice-rei tiveram irremediavelmente que recorrer a compromissos constantes com os notáveis locais para a devida implementação das diretrizes da Coroa. Pelo conhecimento e influência que tinha sobre a realidade da Capitania, a elite local se tornou decisiva para o resultado final das prescrições régias. Em ofício datado de 24 de março de 1767 ao Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, o Conde da Cunha explicava o vínculo de dependência entre os bons resultados do governo e a colaboração dos notáveis locais: 456. “Ofício do Vice-Re, Conde da Cunha, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 8/3/1767”. AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 54, 457. “Ofício do Vice-Re, Conde da Cunha, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 3/5/1767”. AHU, Cx. 87, Doc. 88. 458. Idem. 459. “Ofício do Vice-Rei, Conde da Cunha, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado RJ, 8/3/1767” AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 54. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Entre os homens nobres que como fica ditto, (...) são os unicos que me ajudão p.a tudo o q’ nesta capitania obro, elles me informão com verdade em todos os particulares de delitos, e discordias que nos seos destrictos e vezinhanças succedem, elles me tem reclutado a tropa, e em fim elles são os bons vaçallos que El Rei N. Sro tem nesta importanticima Capitania (...).460

O vice-rei sabia da importância de preservar esse vínculo político, e que para isto havia de “fazer algumas uteis merces”461 em retribuição aos serviços prestados por aqueles bons vassalos. Estratégia fundamental na lógica política do Estado Absolutista, a concessão de mercês era o próprio fundamento do governo dos homens, ganhando a conotação “(...) de premio, e de exemplo à acção illustres, virtuosas, e brilhantes; para distinguir os beneméritos, e para estimular os homens a obrarem sempre bem, e dignamente (...)”.462 Nesse contexto, o vice-rei informa ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar: “Devo dizer mais a V. Exa que alguns destes mesmos nobres tem alguma couza de seu, e que estes os tenho destinado para serem Mestres de Campo nos destrictos em que assistem, notícia esta que elles m.to estimarão”,463 principalmente porque os oficiais maiores das Tropas de Auxiliares recebiam inúmeras regalias e vantagens, além de privilégios idênticos aos dos oficiais das tropas pagas no reino.464 Outra questão apresentada pelo Conde da Cunha em ofício ao Secretário português, era a possibilidade prática de formação dos Terços de Auxiliares diante da disposição espacial da população na Capitania do Rio de Janeiro. O vice-rei buscava a melhor maneira de cumprir as determinações expressas na Carta Régia de 1766, que explicitamente ordenava

460. “Ofício do Vice-Rei, Conde da Cunha, a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 24/3/1767” AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 78. 461. Idem. 462. Oliveira, Luiz da Silva Pereira. Privilegios da Nobreza e Fidalguia de Portugal. Lisboa: Officina de João Rodrigues Neves, 1806, p. 7. 463. “Ofício do Vice-Rei, Conde da Cunha a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 24/3/1767”. AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 78. 464. Maiores detalhes sobre os privilégios que desfrutavam os Auxiliares, ver: Capítulo II, ponto 2.2. 150 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

Que se alistarão os moradores desta Capitania, sem excepção de Nobres, Plebeus, Brancos, Mestiços, Pretos, Ingenuos, Libertos e que a proporção dos que tiver cada huma das referidas classes, forme eu os Tersos dos Auxiliares e Ordenanças. Esta Real Ordem a entendi, mandando formar os Tersos, alistando em cada hum delles as classes referidas; porque para haver de as separar, e fazer de cada huma dellas terços diferentes como, por exemplo: Homens de Nobreza, outros de Plebeus, outros de Mestiços, e outros de Pretos l.tos, não seria possivel poder-se praticar nelles a disciplina; nem doutrinarem-se os ditos Tersos (...).465

A distribuição geográfica dos componentes dos Terços de Auxiliares precisava ser levada em consideração, porque os soldados deviam se reunir no mais breve período de tempo possível. E na Capitania do Rio de Janeiro, esse objetivo não seria alcançado se os Terços fossem separados por “classes”. Não seria conveniente, nem tampouco necessário, que os Corpos de Auxiliares fossem separados por “classes”, porque no interior de cada Corpo havia lugar para “Nobres, Plebeus, Brancos, Mestiços, Pretos, Ingenuos, Libertos”.466 Bastava apenas aplicar uma lógica estritamente hierárquica, segundo a qual os postos de comando – a cabeça do Corpo – estariam reservados para “as pessoas mais abonadas e de maior estimação e credito”,467 que deveriam ser alocadas “segundo o seu merecimento nos postos dos Auxiliares; sem ser precizo fazerem-se Corpos separados”.468 A parte baixa desses mesmos Corpos – os soldados – seria preenchida pelos elementos sociais provenientes das camadas mais subalternas, compostas especialmente pelos mais desprotegidos e pelos elementos socialmente marginais e improdutivos, que constituiam a maior parte dos soldados das tropas coloniais. Dessa forma, após a Carta Régia de 22 de março de 1766, a política adotada pelo governo do Conde da Cunha, em relação aos Auxiliares, era a de que os “novos terços fiquem compostos de todas as classes 465. Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 4/3/1767. (AHU, Cx. 87, Doc. 44.) 466. Idem. 467. Idem. 468. “Quanto aos Corpos Auxiliares da Capitania das Minas, 2/3/1766, não assinada”. AHU, RJ, Cx.87, doc. 48. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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de gente”.469 Assim, os oficiais maiores do Regimento da Nobreza foram nomeados pelo Conde da Cunha para o posto de Mestre de Campo dos novos Terços de Auxiliares: “João Barboza de Sá que serviu sempre de Coronel da Nobreza (...) poderá ser Mestre de Campo”, “Miguel Antunes Pereira que serviu de Tenente-Coronel da mesma Nobreza (...) pode ser tambem mestre de campo deste quinto terço ”.470 De acordo com as informações fornecidas pelo Conde da Cunha, os homens de negócio também faziam parte do Regimento da Nobreza: “neste mesmo Regimento [de Nobres] se incluhião os homens de Negocio”. E “por não aver outros de milhor qualidade”,471 o vice-rei decidiu que “os homens de negócio mais destintos, e mais capazes que aqui ha” iriam ocupar os postos de capitães e alferes dos respectivos Terços de Auxiliares a serem formados, inclusive porque “compondo-se prezentemente toda esta cidade de gente deste trato, conveniente me pareceo que da mesma sahissem os seus officiaes competentes”.472 O Terço dos homens pardos libertos, que posteriormente se organizou na cidade do Rio de Janeiro durante o governo do Conde da Cunha, não constituía um Terço à parte. Além de não haver qualquer indicação de sua existência na documentação consultada, há um despacho do período do Conde de Azambuja que estabelece uma singular transferência: “Lista dos soldados pardos Auxiliares, que o Snr’ Conde de Azambuja por portaria de 29 de julho de 1769 mandou fazer passagem dos Terços de Auxiliares de Infantaria desta praça p.a o Novo Corpo de Auxiliares dos Homens Pardos”.473 Dessa forma, é possível afirmar que os homens pardos só formaram um Terço próprio de Auxiliares a partir do governo do Conde de Azambuja. Através de documentos emitidos durante esse governo, pode-se constatar a constituição de um Terço composto por homens pardos libertos na cidade do Rio de Janeiro: “tendo-se levantado oito (8) 469. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier Mendonça Furtado, RJ, 4/3/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.87, doc. 44. 470. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier Mendonça Furtado, RJ, 4/2/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx.87, doc. 24. 471. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier Mendonça Furtado, RJ, 2/11/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 90, doc. 29. 472. Idem. 473. “Carta do Marquês do Lavradio ao Dezembargador Provedor da Fazenda Real desta Cidade, RJ, 11/9/1772”, ANRJ, Correspondências dos Vice-Reis com diversas Autoridades. Cod. 70, v. 7, p. 98. 152 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Companhias de Auxiliares dos Homens Pardos Libertos nesta Cidade”,474 apesar de os Terços geralmente serem compostos por 10 Companhias. Já no vice-reinado do Marquês do Lavradio, há outro registro de uma dessas companhias no Rio de Janeiro: “Nona (9) Companhia do Terço de Auxiliar de infantaria dos Homens Pardos Libertos que se formou nessa Cidade.”475 Em relação aos oficiais maiores do Terço de Auxiliares de homens pardos libertos, nenhuma das cartas patentes consultadas apresenta o posto de Mestre de Campo; o posto máximo encontrado é o de Sargento-Mor Comandante. Como nos demais Terços de Auxiliares, os sargentos-mores e seus ajudantes deveriam vir das tropas pagas, já que os Auxiliares pardos libertos deveriam estar tão bem regulados e disciplinados quanto os outros, e igualmente aptos à defesa da cidade do Rio de Janeiro. Os pardos tinham sua ascensão hierárquica limitada aos postos superiores da Tropa de Auxiliares; só podiam ser promovidos até a patente de Sargento, posto imediatamente superior ao de Cabo de Esquadra e inferior ao de alferes. Esta é a razão da solicitação feita pelo Marquês do Lavradio ao Secretário de Estado, Martinho de Mello e Castro: “Os pardos e mullatos ficarião m.to satisfeitos de se poderem adientar athé os postos de alferes (…).”476 Considerados inferiores por sua condição racial, os pardos libertos formavam um grupo social impedido de ter acesso ao posto de alferes dos Auxiliares, que lhes possibilitaria receber as mercês régias: seus inúmeros privilégios e honras. Por outro lado, merece especial atenção a significativa estratégia empregada a fim de suprir a necessidade de militarização daquele contingente: o pardo que conseguisse formar uma companhia, ganharia o direito do exercício dos postos de capitães das Companhias de Auxiliares, muito embora não lhe fosse permitido obter a patente do respectivo posto. Um ofício do Governador de São Paulo, Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, faz supor a existência de um modelo de patente empregado na cidade do Rio de Janeiro para os capitães pardos. No ofício, 474. “Carta Patente concedida pelo Vice-Rei Conde de Azambuja em 6/10/1769”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 101, Doc. 25. 475. “Pedido de Confirmação de Patente, RJ, 17/4/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 108, Doc. 30. 476. “Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello e Castro, RJ, 23/4/1777”, BNL, Reservados, Códice 10.631. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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o governador afirmava ter expedido uma patente a um pardo que desempenhava a função de capitão “que he a mesma que se costuma passar no Rio de Janeiro aos capitães dos homens pardos forros q’ há naquela cidade”.477 E acrescenta: “passei somente hua patente, sem o declarar capitão dos auxiliares pardos (...)”. Esse subterfúgio comprova o descumprimento da promessa que o Governador de São Paulo fizera a um pardo – capitão de fato, mas não de patente – de lhe conceder “patente de capitão auxiliar com graduação de Ten.te de infantaria paga”, se este pardo capitão sem patente aumentasse o número de homens de sua companhia. O governador justificou a quebra de sua palavra, “considerando q’ isto não poderia ser do agrado de Sua Magestade e q’ o não devia fazer sem primeiro lhe dar conta”.478 A possibilidade de receber honras e privilégios do rei era usada como fator de estímulo para os desprovidos de qualquer herança que garantisse uma posição proeminente na sociedade.479 Os próprios governadores fomentavam a esperança de ascensão social através da carreira militar, tentando fazer com que aqueles homens integrassem voluntariamente à Tropa de Auxiliares e se dispusessem a arregimentar o número de soldados necessário para suas respectivas Companhias. Assim, grande parte do efetivo das Tropas de Auxiliares seria guarnecido com os pardos libertos. Este grupo de homens denominados de pardos libertos era formado por elementos de diferentes atividades e graus de riqueza. Como não poderia deixar de ser, o posto de capitão – sem patente – das Companhias de Auxiliares estava destinado àqueles de maior fortuna, que eram também os que mais ambicionavam o status social que a gradua477. “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.255. 478. Idem. 479. Quanto aos pardos libertos, cabe destacar a análise feita por Stuart Schwartz: “(...) os mestiços livres eram definidos tanto pela cor quanto por categoria funcional ou estado tradicional. As pessoas de cor geralmente arcavam com duas marcas de desvantagem. Primeiro, sua cor indicava claramente ascendência africana e, portanto, condição social inferior, presumivelmente a de escravo, em alguma época do passado. Segundo, havia uma insinuação de ilegitimidade na existência de uma pessoa mestiça, pois supunha-se que o homem branco normalmente não se casava com mulheres de condição racial inferior (...)” No que diz respeito à condição jurídica de livres, afirma o autor “que as pessoas de cor livres podiam sofrer com incapacidades legais e ultrajes, estar sujeitas a coerção legal e ser tratadas com desprezo, mas seu status era infinitamente melhor que o dos cativos”. [Stuart Schwartz, Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1985, p. 213 e 214.] 154 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ção militar permitia atingir. A esse respeito, temos como exemplo o depoimento de Morgado de Mateus: como nesta terra há m.tos homens pardos, e entre estes huns q’ são oficiaes de diferentes of.os e outros homens de cabedais e de prestimo, achei que destes havia hua comp.a com seu Capi.am homem pardo, e rico (...).480

Condicionados pelos códigos hierárquicos tradicionais do Antigo Regime, os pardos libertos “aspiravam ao status, títulos e privilégios de aristocracia”.481 Para isto, se apropriavam de determinados sinais e imagens, símbolos classificadores de valor social, que lhes conferia distinção, prestígio e poder. A utilização dos uniformes e armas, por exemplo, era uma forma de demonstrar as pretensões sociais: O sobredito capitão e soldados se ficão fardando e armando com todo o empenho para passarem mostra na minha presença com os seus uniformes e armas tudo feito a sua custa e querem que lhes mande hum oficial para aprenderem o novo exercício.482

Os casos analisados acima demonstram as peculiaridades produzidas pela dinâmica da realidade social da Colônia, influenciada pela presença de uma população de origem mestiça, suficientemente numerosa e significativa para formar um Terço de Auxiliares, tropa importante para a defesa de uma cidade, no caso o Rio de Janeiro. A conjunção do desejo mestiço de ascensão social, pautado no modelo do Estado Absolutista, com a necessidade imperativa de militarização da população masculina, impunha às autoridades algumas adaptações à realidade da sociedade colonial na forma tradicional de preenchimento dos postos militares, apesar da resistência em reconhecer o status de determinados oficiais através da patente oficial. Um fator que agravou bastante as relações entre as autoridades – metropolitanas e coloniais – e o Terço de Pardos livres foi o enorme preconceito construído pelo Estado Absolutista em relação aos indiví480. Idem. 481. Schwartz, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835. São Paulo: Cia. das Letras, 1985, p. 210. 482. “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, SP, 10/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.255. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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duos de origem africana, desqualificados por sua ascendência, caracterizados como insubordinados “da pior educação, de caráter libertino”,483 e vistos como um perigo potencial para a preservação da tranquilidade e da ordem social. Assim, a delegação de responsabilidades militares aos pardos libertos, e às Companhias formadas por eles, sempre deixou os governos coloniais com o temor de que esses mesmos homens “pudessem constituir uma ameaça para a segurança da Colônia e o domínio branco”.484 Segundo Russel-Wood, as autoridades metropolitanas e coloniais se manifestavam com uma “atitude ambivalente” em relação aos indivíduos livres de origem africana, baseando esse comportamento em percepções e atitudes estereotipadas e negativas (...) em relação aos negros e sobretudo em relação aos mulatos (...) de quem desconfiavam intrinsecamente e sobre a qual não tinham pleno controle, mas de quem dependiam e a quem deram um certo grau de legitimidade ao reconhecerem a sua relevância funcional para (...) a defesa da Colônia contra os inimigos externos e a preservação da “boa ordem na República”.485

Assim, o entrecruzamento dessas duas posições – necessidade e receio – gerou a “atitude ambivalente” com que as autoridades construíram sua relação com esses indivíduos de origem africana, os pardos libertos. Sob a égide absolutista de sua hierarquia, a sociedade colonial produziu numerosas subdivisões de honra e apreço, com intrincadas compartimentalizações de cor e diversas formas de mobilidade. Mesmo assim, essa sociedade, de acordo com Stuart Schwartz, tinha uma “forte tendência a reduzir tais complexidades a dualismos de contraste – senhor/ escravo, fidalgo/plebleu (…).” Tentando escamotear “as múltiplas hierarquias entre si, de modo que a graduação, a classe, a cor e a condição social de cada indivíduo tendessem a convergir”,486 a sociedade colonial refor483. “Relatório do Marquês do Lavradio” in História do Brasil, JoãoArmitage, R.J., Zélio Valverde, 1943, p.424. 484. Russell-Wood, “Autoridades Ambivalentes: O Estado do Brasil e a Contribuição Africana para ‘A Boa Ordem na República’”. In: Brasil – Colonização e Escravidão, Organização Maria Beatriz Nizza da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 117. 485. Idem, op. cit., p. 119. 486. Schwartz, Stuart. Segredos Internos... Op. cit., p. 209. 156 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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çou, direta e indiretamente, os estereótipos e preconceitos que norteavam as relações sociais.

4.3. Os Povos do Sertão A necessidade urgente de militarização da sociedade colonial foi efetivamente formalizada tanto pelas Instruções Régias, enviadas aos governantes das diversas capitanias do Estado do Brasil, quanto pela Carta Régia de 22 de março de 1766, que reforçou e ampliou as Instruções já determinadas. Com o difícil propósito de reorganizar aquela sociedade, neste caso específico a Capitania do Rio de Janeiro, e incluir no serviço militar obrigatório aqueles que viviam nos sertões, “separados da sociedade civil”,487 uma nova Carta Régia foi emitida em 22 de julho de 1766. Esta Carta se referia diretamente àqueles “que pelos matos, e rossas estão metidos”,488 sem moradia permanente, ordenando que todos se congregassem em povoações e se integrassem à sociedade civil: (...) todos os homens, que nos ditos Certoens se achassem vagabundos, ou em citios volantes, fossem logo obrigados a escolher lugares acomodados para viverem juntos em povoacçoens, que pelo menos tivessem sincoenta fogos para sima, com Juiz Ordinario, Vereadores e Procurador do Concelho, repartindo-se entre elles, com justa proporção, as terras adjacentes. (...) E isto debaixo de pena, de que aquelles (...) que não aparecerem para se congregarem (...) serão tratados como Inimigos Comuns, e como taes punidos com a severidade das Leis (...).489

A estratégia da Coroa era facilitar o recrutamento de novos soldados entre os homens que se encontravam fora das comunidades e causavam transtornos à população, classificados como “vadios e fasinorozos”,490 e entre os trabalhadores de caráter nômade. Para isso, o governo português tentava circunscrevê-los territorialmente. 487. “Edital, em que fez. Ordenar S.Mage. que todos os homens que se acharem vagabundos nos Sertoens, ou em Sítios Volantes desta Capitania, sejão logo obrigados a viverem em Povoações civis, Ajuda, 22/7/1766. ” ANRJ, Cod. 73, v. 2, p. 14. 488. Idem. 489. Idem. 490. Idem. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Entretanto, outras questões deveriam ser consideradas, porque a distância que separava aqueles elementos da sociedade civil não era apenas geográfica, como entendia a Coroa, e o deslocamento físico por ela proposto não seria a solução mais viável para atingir o objetivo planejado. Outras distâncias se impunham, talvez mais concretas que as físicas: as distâncias sociais, que motivavam a partida de numerosos contingentes para os sertões e que eram suficientemente fortes para mantê-los nessa região, fora de alcance das ordens régias. O Vice-Rei Conde da Cunha, demonstrou à Coroa a impossibilidade prática da plena implementação na Capitania do Rio de Janeiro das medidas expressas na Carta Régia de 22 de julho de 1766, e sugeriu outras opções consideradas por ele mais adequadas à realidade social da Capitania. O argumento inicial do Conde era uma afirmação bastante pessimista sobre os resultados esperados: “as dificuldades que a sua execução ha de ter, me parecem infaliveis”.491 Essas dificuldades citadas pelo vice-rei se referiam ao profundo desconhecimento, por parte da Coroa, sobre aqueles povos, que consequentemente havia gerado a inadequação das medidas determinadas pela Carta Régia. Por isso, o Conde da Cunha descreveu detalhadamente as condições e as distinções existentes entre aqueles que viviam pelos sertões e em seguida apresentou sugestões que ele considerava mais apropriadas para alcançar o objetivo pretendido. Inicialmente, o vice-rei diferenciou dois grandes grupos básicos: o primeiro, composto pelas “muitas famílias que há nesta Capitania sem caza, nem domicilio (...) são todas estas gentes de pobreza tão conhecida, que se não pode duvidar da sua impossibilidade”;492 o segundo, formado pelos marginais, classificados como “os vadios, os facinorosos, e vagabundos”.493 Depois, relatou as três maiores dificuldades encontradas para o estabelecimento de povoações permanentes entre aqueles que viviam dispersos pelos sertões: A primeira he: Que os vadios, os facinorozos, e vagabundos, que estão nos Certoens, e em citios volantes, a necessidade os obriga a viverem fora da sociedade civil; porque huns por dividas mui consideraveis, outros por crimes gra491. Idem. 492. Idem. 493. Idem. 158 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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vissimos, lhe não hé possivel virem buscar a comunicação das gentes, pois os da condição dos primeiros, hirião logo para as Cadeias aonde acabarião ali as suas vidas (....) e os da segunda as perderião logo na Forca (...).494

O vice-rei não via qualquer possibilidade de integrar os vadios na sociedade civil por causa dos graves delitos praticados por eles. Com relação ao grande número de famílias miseráveis que viviam pelos sertões, o vice-rei via muitas dificuldades diante da perspectiva de integração social, porque “não tem, nem huma só camiza, nem couza alguma com que se cubrão, pelo que, esta mizeria os obriga, a que se escondão pelos matos, e vivão como brutos (...)”.495 A primeira providência a tomar seria vesti-los “ao menos com duas camizas, e algumas baratas drogas para de todo se cobrirem (...)”,496 mas o próprio vice-rei considerava essa solução improvável devido ao alto custo financeiro. Outras situações ainda mais desafiadoras se apresentavam entre as três maiores dificuldades encontradas para fixar em povoações aqueles que viviam pelo sertão: A segunda consiste em que, a falta que há de cazas nos povoados para se poderem estabelecer e recolher estas gentes (...). A terceira, e ultima hé para mim a mais dificultoza; por que ordenando S. Magestade, que com estas gentes (...), se repartão com justiça, (...) as terras adjacentes, não sei o como isto se possa praticar, porque era precizo, que houvesse terrenos, que fossem dos proprios de S. Magestade, e isto hé o que já não há no Rio de Janeiro, (...).497

Apesar da carência de terras e de habitações disponíveis para acolher os povos do sertão, o Conde da Cunha formulou uma proposta que se tornou recorrente em toda a sua correspondência com a Coroa: A providencia, que pode haver para que todos estes infelises possão ter terras de que se utilizem, e vivão em povoados civilmente he o de se lhe darem alguns daquellas, que estão 494. Idem. 495. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 23/2/1767. ” AHU, RJ, Cx. 87, Doc. 37. 496. Idem. 497. Idem. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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incultas, e abandonadas de todo por seos donos Cesmeros (...) Pela que nas margens desta grande Bahia, hé que seria conveniente, que as novas Villas se criassem e erigissem em partes comodas assim para a sua subsistência, como para a comunicação com os outros povos (...).498

Ao longo do tempo, a proposta do vice-rei se converteu em um projeto mais minucioso e elaborado para a Capitania do Rio de Janeiro, apresentado como o mais adequado para a situação da Capitania por conter a solução apropriada para alguns dos problemas que a assolavam – pelo menos aqueles que diziam respeito à imensa pobreza vivida por grande parte da população. O projeto do vice-rei previa a disposição daqueles povos nas margens da Baía de Guanabara, o que superaria as sérias dificuldades provocadas pelas grandes distâncias existentes entre os distritos da Capitania do Rio de Janeiro, e melhoraria a defesa da despovoada e vulnerável costa marítima através da criação de Terços de Auxiliares com os homens que lá se estabelecessem. Independentemente dos projetos do Vice-Rei Conde da Cunha para a Capitania do Rio de Janeiro, talvez tão difíceis de serem executados quanto aqueles propostos pela Coroa, a necessidade de se levantarem mais Tropas na Capitania era urgente, tanto para a própria defesa quanto para a das fronteiras do Sul. Por isso, o vice-rei havia de se adaptar às circunstâncias locais e formar as Tropas ou Terços em função das possibilidades que se apresentassem na Capitania. Preocupando-se inicialmente com a composição dos Terços de Auxiliares, o vice-rei advertiu em ofício a Francisco Xavier Mendonça de Furtado que o número de soldados seria diferente em cada Terço, porque “os destrictos, que se hão de formar [os Terços], assim como também as Freguezias, que cada hum delles em si comprehende (...) são muito mais populozas que outras”,499 fato que impossibilitaria o cumprimento integral da ordem régia que determinava a arregimentação do mesmo número de soldados em todos os Terços de Auxiliares. Em relação às ordenanças que deveriam ser formadas na Capitania, o vice-rei observava que não poderia ter a ideia exata do contingente de soldados disponíveis sem antes organizar as Tropas de 498. Idem. 499. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier Mendonça Furtado, RJ, 4/2/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 87, Doc. 24. 160 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Auxiliares: “depois de ter formado os primeiros Corpos dos Auxiliares, conhecerei quantos há de haver de Ordenanças”.500 A prioridade dada pelo Conde da Cunha à composição dos Terços de Auxiliares em relação aos de Ordenanças resultava do fato de que aqueles tinham a obrigação de substituir a tropa paga na defesa da Capitania, já que a maior parte dos efetivos pagos encontrava-se nas fronteiras do Sul, para onde os Auxiliares também poderiam ser enviados. Assim, o vice-rei afirmava “por esta cauza fazem os Auxiliares m.ta parte do serviço que só aos pagos competia”.501 Mesmo com o constante envio de tropas pagas para as praças do sul, o número de soldados nunca parecia ser o suficiente para completar o contingente necessário, tornando a situação muito preocupante. A permanente insuficiência de soldados tinha como causa principal o alto índice de deserção sofrido pelas tropas posicionadas naquela região; o vice-rei verificava, por exemplo, que na Colônia do Sacramento “a continua dezerção dos soldados q’ a guarnecem he excessiva”.502 Essas constantes deserções, seguidas de insaciáveis demandas por mais soldados, repercutiam negativamente nas Capitanias do Estado do Brasil, especialmente nas do Centro-Sul – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais –, onde os efetivos militares ficavam consideravelmente enfraquecidos. Na Capitania do Rio de Janeiro, era alarmante a falta de soldados pagos, o que tornava a ação de recrutamento uma constante. O nível de dificuldade para sustentar essa situação, representado pelo diminuto número de soldados existentes no Rio de Janeiro e pelo infatigável trabalho de recrutamento, levava o Vice-Rei a declarar que os [soldados] que conservo nesta Capitania são já tão poucos que não tem, nem hum só dia de descanço, trabalho este, que se faz quazi impossivel de se puder continuar (...) sendo que tudo he pouco para se puder guarnecer a Colonia, Rio Grande e Santa Catharina.503

500. Idem. 501. “Ofício do Vice-Rei a Francisco Xavier Mendonça Furtado, RJ, 17/8/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 87, Doc. 7-g. 502. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J., 17/9/1764”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 79, Doc. 11. 503. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 9/9/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 89, Doc. 60. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Com o intuito de aliviar os excessivos encargos militares sofridos pela Capitania do Rio de Janeiro, e visando atender aos constantes apelos do vice-rei por efetivos que não fossem “os cariocas, porq’ são moles, e faltos de valor”,504 nem “os que são do Brasil” porque “não tem prestimo, pela sua excessiva perguiça, e negação p.a a vida militar”,505 a Coroa decide enviar para o Rio homens recrutados na Ilha de São Miguel. Em 9 de agosto de 1766, chegavam 200 homens ao porto da cidade, deixando entusiasmado o Conde da Cunha, “por serem todos voluntarios, de boas figuras, e desembaraço, hé própria para o ministério a que vem destinada”. O Conde também informava à Coroa que “todos elles me segurão, que muitos mais querião vir por sua livre vontade”, e concluía que “seria muito util haver outra semelhante recruta”.506 As notícias que vinham das praças do Sul eram cada vez mais preocupantes: o problema da deserção estava se agravando porque muitos desertores estavam passando para a linha inimiga. E as informações sobre o Rio Grande de São Pedro enviadas pelo Coronel José Marcelino507 ao vice-rei revelavam novas formas de prática da deserção: “se irem ordenar a Buenos Aires, que isto dizem ser o fim da ditta dezerção (...) seria perciza huma Lei, para os que focem ordenados em domínios de Espanha, com penas gravíssimas (...)”.508 Desde o início de seu governo, o Vice-Rei Conde da Cunha entrevia apenas uma solução para acabar com as deserções: “só o aumento do soldo podera ter mão nesta gente, q’ por falta de meios p.a puder viver, procura melhorar de fortuna ainda q’ seja em terra alheia”.509

504. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 15/3/1764”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 77, Doc. 38. 505. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 29/2/1764”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 77, Doc. 25. 506. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 6/9/1766”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 86, Doc. 11. 507. Manuel Jorge de Sepúlveda havia chegado ao Sul em 1765 com o falso nome de Joze Marcelino de Figueiredo, em função de ter duelado e matado um militar inglês em Faro. Marcelino tinha a missão de apoiar o então governador do Rio Grande, José Custódio de Sá, especialmente na defesa da fronteira sul. Quatro anos depois, seria substituto de Faria, sendo encarregado de todas as operações militares naquela região. [Tau Golin. Op. cit., p. 52-53.] 508. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J., 9/9/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 89, Doc. 60. 509. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J., 17/9/1764”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 79, Doc. 11. 162 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

Um ano após a advertência do vice-rei sobre o excessivo número de deserções verificadas na região Sul, a Coroa decidiu aumentar o soldo dos combatentes da praça da Colônia do Sacramento. Em carta, o Conde da Cunha agradeceu o reconhecimento da Coroa e apontou as eventuais consequências favoráveis, ressalvando que elas só aconteceriam após o efetivo aumento do soldo das tropas: “(...) q’ com este beneficio /depois de ser praticado/ me parece, q’ os castelhanos não tornarão a entrar nella”.510 O pagamento de um soldo irrisório, que às vezes nem era honrado, tinha um resultado óbvio e inevitável: a maciça deserção de soldados. Aqueles que estavam na região das fronteiras fugiam para tentar “melhorar de fortuna (...) em terra alheia”,511 e aqueles menos próximos da ‘terra alheia’ abandonavam as tropas para se aventurarem na região das Minas que, mesmo não sendo alheia, tornava-se muito perigosa pelo imenso número de soldados desertores que iam em busca do cobiçado ouro. E não foi diferente com os voluntários da Ilha de São Miguel. Um ano após a chegada desses homens, ficaram evidentes os verdadeiros objetivos de tão “boas figuras, e desembaraço” e tão próprios para “o ministério a que vem destinado”. 512 O vice-rei percebeu, desolado, “que todos estes homens que com tanto gosto, e por sua livre vontade vem das Ilhas para o Rio de Janeiro; não he porque queirão servir a S. Mag.e, mas sim, e só com o designo de se irem meter nas Minas”.513 Segundo o Conde da Cunha, todos agiam dessa forma “por dous motivos; o primeiro he o não ser possivel sustentarem-se com o soldo que S. Mag.e lhe dá; e o segundo he saberem a abundância que naquelas terras [de Minas] há”514. A situação se agravava porque tanto os soldados provenientes da Ilha “como os desse reino dezertão prezentemente todos os dias para Minas”.515 510. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 4/7/1765”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 82, Doc. 16. 511. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 17/9/1764”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 79, Doc. 11. 512. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 6/9/1766”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 86, Doc. 11. 513. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 1/11/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 90, Doc. 2. 514. Idem. 515. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 9/9/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 89, Doc. 60. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Além da causa econômica, outro fator que fazia da deserção uma irregularidade insolúvel para o Conde da Cunha era a “vastidão incomprheensivel deste Estado”.516 Essa extensa vastidão garantia proteção e imunidade aos muitos soldados que desertavam, de modo que “não he possivel achallos para os castigar”.517 Mesmo a captura e prisão de soldados desertores, que recebiam as devidas punições, parecia incapaz de surtir qualquer efeito corretivo sobre aqueles homens, porque “nem assim tem emenda. Pelo que me persuado, que o castigo lhes não faz termos, e que antes querem sugeitar-se à elle, do que a regularidade Militar”.518 O serviço militar para esses homens representava uma penalidade de tão grandes proporções que dificilmente a aplicação de castigos seria capaz de intimidá-los, e muito menos de evitar as constantes fugas das fileiras.519 Em função do ocorrido com os voluntários da Ilha de São Miguel, o Conde de Cunha passou a considerar inviável a arregimentação de soldados fora do Estado do Brasil. Na opinião do vice-rei, a solução para o grave impasse da falta de soldados estava no recrutamento de homens entre os naturais da cidade: só os soldados naturais do Rio de Janeiro, podem viver nelle /ainda que com excessiva mizeria/ com os soldos que S. Magestade lhe manda dar, e que para assim os haver, seria precizo que se não pudessem meter frade nem ordenar clericos.520

Ora, o Conde da Cunha encontrava-se novamente diante do mesmo obstáculo do início de seu governo – a distribição de privilégios –, um problema tão difícil de superar quanto o anterior – a deserção. Só eram recrutados para as tropas pagas aqueles que não conseguiam escapar pela via dos privilégios, fossem estes provenientes da Santíssima Trindade, da Bula da Cruzada, dos Familiares do Santo Ofício, dos Moedeiros 516. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 1/11/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 90, Doc. 2. 517. “Ofício do Conde da Cunha para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 9/9/1767”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 89, Doc. 60. 518. “Conde de Azambuja para Francisco Xavier Mendonça Furtado, R.J, 18/5/1768”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 91, Doc. 67. 519. Maiores detalhes sobre essa questão, ver Capítulo V, item 5.3. 520. “Ofício do Vice-Rei Conde da Cunha para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. RJ, 9/9/1767”, AHU, Cx. 89, Doc. 60. 164 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

ou, sobretudo, das Ordens Religiosas responsáveis pelo grande número de jovens que de outro modo estariam habilitados ao serviço militar.521 E este problema ainda se acentuava porque o direito aos privilégios522 era indevida e fartamente distribuído na Capitania do Rio de Janeiro. Assim, os homens que podiam ser recrutados estavam principalmente entre os vagabundos e os trabalhadores itinerantes, que não recebiam proteção de qualquer rede de isenção, e viviam à margem da “sociedade civil”. Por isso, após o recrutamento nas vilas, cidades, e em suas respectivas cadeias, era preciso penetrar “nas estradas dezertas, e sertões”523 da Capitania, mesmo com todas as dificuldades de acesso, porque seria lá que se arregimentaria o maior número de soldados para compor as tropas coloniais. Era uma tarefa árdua, como mostra o relato do capitão de ordenanças do distrito de Itaboraí, responsável pelo recrutamento de “gente para sold.os da Infant.a da mesma cid.e [do Rio de Janeiro]”.524 Ele havia recebido a ordem de se embrenhar pelos sertões, diligência de “evidente perigo”,525 porque era para aquelas terras que iam “os que fogem para não serem prezos p.a soldados, e se animão a rezistir a toda a qualid.e de pessoas q’ os procurão”.526 As determinações da Carta Régia de 22 de julho de 1766527 eram extremamente severas em suas punições para aqueles que vivessem dispersos pelos sertões ou matos e que não se congregassem em povoações civis. Todos os que se encontrassem “nos sitios volantes” pelos “caminhos e matos”,528 como trabalhadores itinerantes e vadios, deveriam ser indiscriminadamente “tratados como salteadores de caminhos, e inimigos comuns, e como tais punidos com a severidade das leis”.529 Para 521. Com relação aos obstáculos enfrentados pelo Conde da Cunha para organizar as tropas pagas em meio à profusão de privilégios existentes na Capitania do Rio de Janeiro, ver item 4.1. 522. Quanto à questão do privilégio de isenção do serviço militar, ver: Capítulo V, item 5.5. 523. “Requerimento do Capitão de Ordenança à pé de Itaboraí a D. José, RJ, 27/2/1765”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 80, Doc. 75. 524. Idem. 525. Idem. 526. Idem. 527. “Edital, em que fez. Ordenar S.Mage. que todos os homens que se acharem vagabundos nos Sertoens, ou em Sítios Volantes desta Capitania, sejão logo obrigados a viverem em Povoações civis, Ajuda, 22/7/1766. ” ANRJ, Cod. 73, v. 2, fl. 14 528. Idem. 529. Idem. CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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isso, a Coroa concedia poder de polícia a “roceiros, rancheiros e tropas de bandeiras”, outorgando toda a “necessária autoridade para prenderem, e remeterem às cadeias públicas das comarcas que estiverem mais vizinhas, todos os homens que acharem dispersos”.530 A Coroa esperava ter a total e irrestrita colaboração dos “roceiros, rancheiros e tropas de bandeiras”. A ajuda desses grupos, estrategicamente posicionados nos sertões, facilitaria muito as tarefas de reconhecimento e perseguição dos homens dispersos pelas brenhas, entre eles os que fugiam do recrutamento e os desertores. Dispondo da “autoridade pública”531 concedida pela Coroa, aqueles grupos poderiam realizar a difícil tarefa de arregimentação de homens para soldados entre aqueles que se encontravam pelos sertões. Entretanto, a complexidade do mundo colonial fazia com que a autoridade pública confiada àqueles grupos nem sempre resultasse no propósito previsto pela Coroa. Por um lado, havia o acoitamento de homens que deveriam se tornar soldados; por outro, nada garantia que aqueles que fossem remetidos à prisão, e em seguida às tropas, permanecessem nelas por muito tempo. Dessa forma, um interminável círculo vicioso se produzia: uma vez encontrados nos matos, levados à cadeia e em seguida encaminhados às tropas, esses homens, militarizados à força, fatalmente voltavam a escapar para os amplos espaços do sertão. Esse fato fazia com que o efetivo das tropas, tanto regulares quanto de auxiliares, fosse bastante efêmero, alimentando contínua e inexoravelmente esse movimento repetitivo, no qual os homens militarmente úteis se viam enredados: sertão-prisão-tropa-sertão.

530. Idem. 531. Idem. 166 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

CAPÍTULO 4 – 1763: O VICE-REINO

CAPÍTULO 5 As Debilidades e as Adaptações do Poder Central

5.1. As Recorrentes Carências Militares e a Presença dos Negociantes A nova estrutura militar planejada pela Coroa portuguesa previa – e constantemente reiterava a todos os seus governadores na América – a necessidade de cooperação entre as Capitanias do Estado do Brasil. As de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro receberam atenção especial. Desde o vice-reinado do Conde da Cunha, a estratégia era elaborada para “(...) que com a união de todos os trêz governos, se possa consolidar huma força Superior(...)”,532 ressaltando que “He, porem, necessario, que sem a menor perda de tempo, se procure em todos os trêz governos instruir as Milicias, nos Pontos essenciais de marcharem unidos”.533 Dez anos após essas determinações régias, o imperativo de cooperação e união recíproca entre as Capitanias ainda permaneciam como estratégia principal: “Sendo certo, que nesta união recíproca de poder consiste essencialmente a maior força do Estado, e na falta dela toda a fraqueza dele.”534 Embora a capital do Rio de Janeiro possuísse um “(...) importantíssimo porto que dá acesso e entrada para todas as Províncias e Capitanias

532. “Carta do Conde de Oeiras para o Conde da Cunha, 26/1/1765” in Mendonça, Marcos Carneiro de, Século XVIII... Op. cit., p. 426. 533. Carta do Conde de Oeiras para o Conde da Cunha, 26/1/1765” in Mendonça, Marcos Carneiro de, Século XVIII... Op. cit., p. 427. 534. “Instrução Militar de Martinho de Melo e Castro para Martim Lopes Lobo de Saldanha, 24/1/1775”, in Mendonça, Marcos Carneiro de, Século XVIII... Op. cit., p. 624. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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mais importantes deste Estado (...)”,535 ela se encontrava várias vezes desprovida do mínimo necessário para responder satisfatoriamente à sua defesa, e estava ainda menos preparada para atender aos apelos de armas e de fardamento que constantemente faziam as capitanias de Minas Gerais e São Paulo. No ano de 1774, a Coroa respondeu positivamente às questões colocadas pelo Marquês do Lavradio, que havia reclamado da péssima situação dos Armazéns da capital do Rio de Janeiro, da falta de homens para preencher as tropas daquela guarnição e dos gastos excessivos com as imensas expedições destinadas às partes do Sul do Estado. A fim de completar os Regimentos daquela capital e prover seus Armazéns, Martinho de Melo e Castro, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, comunicou ao vicerei que seriam enviadas duas embarcações com os Soldados, que se achavam incursos no Crime de Deserção dentro do reino, ou de outras culpas menos graves: E de Moços vadios, e de crimes tambem ligeiros, aos quais se juntariam os voluntários (...).536

A Nau Monte do Carmo traria 38 voluntários e 285 presos e a Nau São Francisco de Paula 128 presos, além de 100 recrutas que embarcariam na Ilha da Madeira, totalizando 551 homens. Nelas também viriam “o Trem de Artilharia, Bombas, Balas e mais Municções de Guerra, e a Polvora, que constam das Relações (...)”.537 Em relação às despesas com as expedições destinadas ao Sul, o Marquês de Pombal expediu, em 22 de abril de 1774, um decreto determinando à Junta da Administração da Real Fazenda do Rio de Janeiro (...) que onde ellas não chegarem para se fazerem effetivos as ditas Expedições, se supra pelos productos do Subsídio

535. “Carta do Marquês do Lavradio parao Marquês de Pombal, 31/10/1776”, AHU,RJ, Avulsos, Cx. 110, Doc. 34. 536. “Carta de Martinho de Mello e Castro para o Marquês do Lavradio, 22/4/1774”, AHU, RJ, Cod. 569. 537. Idem. 168

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Voluntário, e aplicado para a reedificação da Cidade de Lisboa (...).538

O Marquês do Lavradio reconheceu os esforços da Coroa para suprir as graves deficiências militares do Rio de Janeiro, admitindo que “He certo que tem vindo muitos provimentos”.539 No entanto, ele considerava o auxílio insuficiente diante das necessidades que se impunham: “como as tropas estavão precisadas de tudo não só tem consumido o que havião nos Armazens d’El Rei Meu Senhor mas athe tem estenguido tudo o que havia nos Armazens dos Particulares”, por isso “prezentemente me acho, sem a maior parte das couzas q’ preciso”.540 O vice-rei também tentava mostrar ao Marquês de Pombal a situação em que ficava o Rio de Janeiro com o deslocamento dos Regimentos pagos para o Rio Grande de São Pedro: “(...) bem podera V. Exa ver as poucas, ou nenhuas forças com q’ fico para a defesa desta Capital”, forças compostas por soldados, em sua maioria, dos Terços Auxiliares, muitos deles desarmados,541 e que “nada disto hé tropa em que eu possa fazer confiança”. A Coroa ficou indignada com a contínua insatisfação do Marquês do Lavradio, que defendeu sua atitude, em carta enviada a Martinho de Mello e Castro, no ano de 1775: (...) El Rey Meu S.or tem causado o mayor reparo ver os clamores de que são cheias todas as m.as cartas, das faltas que aqui há, do que julgo ser necessario, quando o mesmo S.or tem por certo, (...) que nunca forão a este Estado, nem tantas forças Militares, nem tantas Muniçoens de Guerra, nem tantos meios pecuniarios.

Porém, a indignação da Coroa foi ainda mais longe, ao relembrálo de que “(...) só com as Tropas, e provimentos do R.o de Janr.o, fez o Conde de Bobadela a glorioza guerra do Oruguai (...)”.542

538. AHU, RJ, Cod. 569, p. 81. 539. “Carta do Marquês do Lavradio para o Marquês de Pombal, 20/8/1775”. Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL). Reservados, Cod. 10.624, s/paginação. 540. Idem. 541. Idem 542. “Carta do Marquês do Lavradio para o Martinho de Mello e Castro, 14/12/1775”, BNL, Reservados, Cod. 10.624, p. 104. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Por sua vez, o vice-rei reclamava dos armamentos enviados, dizendo que esses “tem servido já em Europa em diferentes Regimentos e que por incapazes, tem sido de todos elles Regeitados”,543 chegando à América “armas desconcertadas, outras com os fuzis quebrados, outras faltas de parafuzos e finalm.te quase todas ellas precizadas de hum grandissimo concerto”.544 Quanto às tropas das diferentes Capitanias que eram enviadas ao Rio de Janeiro, o Marquês do Lavradio afirmava que, apesar dos Governadores enviarem para a Corte listas com um grande número de homens, o que se verificava de fato era “não só cada Corpo m.to diminuto, muito atrazado em disciplinas; porem faltos os Regimentos de tudo”, e que a situação se agravava “porque como tinhão sentado praça a m.tas crianças, as quais não podiam com armas mais compridas, havião infinitas Armas que se achavão Cortadas, a proporção do Soldado que a havia trazer (...)”.545 Já a comparação com o Conde de Bobadela, foi respondida com o detalhamento de várias situações, como a condição miserável do exército castelhano à época, o melhor rendimento da alfândega, e mesmo o abandono de “todas as outras partes do seu governo”, por estar ele somente empenhado naquela guerra, concluindo que “as suas circunstâncias, e as minhas me parecem serem bem diferentes”.546 Embora constantemente pedisse auxílio à Coroa nas questões que não podiam ser totalmente resolvidas na Colônia por falta de condições, o vice-rei encontrava suas próprias saídas. Por exemplo: para não “fazer horror a esta gente, nem mostrarem a sua repugnância”, quando mandou criar novos corpos de auxiliares, nos quais os soldados tinham por obrigação se armar por conta própria, resolveu vender “estas mesmas Armas Velhas” aos seus capitães, já que a maior parte delles são negociantes, e todos homens abonados ordenando-lhe, que elles fossem recebendo dos seus Soldados, o que cada hum delles devia pagar pella sua Arma os quais os pagarião, pello modo que lhe fosse mais comodo.547 543. “Carta do Marquês do Lavradio para o Martinho de Mello e Castro, 16/1/1775”, BNL, Reservados, Cod. 10.624, p. 30. 544. “Carta do Marquês do Lavradio para o Martinho de Mello e Castro, 14/12/1775”, BNL, Reservados, Cod. 10.624, p. 105. 545. Idem, p. 106 546. Idem. 547. “Carta do Marquês do Lavradio para o Martinho de Mello e Castro, 23/1/1775”, BNL. Reservados, Cod. 10.624, p. 32. 170

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Esse mesmo método era recomendado aos outros capitães-generais de São Paulo e de Minas Gerais: faltando-lhes armas para os corpos de Auxiliares, deveriam transferir a incombencia de cada hum dos Cap.es o pôr promptas a Sua Companhia (...) e como as gentes daquelle Pais [se referia a Minas Gerais], são sumamente vaidosas, a emulação poderá contribuir m.to para que isto se consiga em breve tempo.548

Durante o século XVIII, a Coroa e seus funcionários ultramarinos não podiam mais fechar os olhos perante o crescente – e útil – poder econômico dos comerciantes, nem se mostrarem insensíveis à surda pressão por eles exercida para galgarem um lugar nos cargos políticos da colônia e nos códigos estamentais da época.549 Segundo Nanci Leonzo, o recenseamento de 1767 na cidade de São Paulo localiza vários oficiais Auxiliares “vivendo de seus negocios” ou “de sua agencia”.550 O então Capitão-General, Martim Lopes Lobo de Saldanha, esclareceu eventuais dúvidas sobre as funções civis desempenhadas pelos capitães, afirmando, em carta ao Juiz de Fora de Santos: O serem os Capitaens de Auxiliares Negociantes, hé assim forçoso em quaze todo o Brazil, especialmente, nesta Capitania onde huns sam Mercadores, outros Traficantes, outros Tropeiros, outros Conductores, e poucos serão os izentos destes manejos.551

548. “Carta do Marquês do Lavradio para o Martinho de Mello e Castro, 22/4/1775”, BNL. Reservados, Cod. 10.624, p. 36. 549. Bicalho, Maria Fernanda B. “As Representações da Câmara do Rio de Janeiro ao Monarca e as Demonstrações de Lealdade dos Súditos Coloniais”. In: Município no Mundo Português, Seminário Internacional, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, p. 532. 550. “Lista de todos os povos, homens, e mulheres, auxiliares de pé, e cavalo, das novas tropas, o n.o de hum, e de outro sexo, suas idades, e o que possuem, no destricto desra cid.e de São Paulo, pertc.te ao Cap.m de Ordenança Lobo dos S.tos, 1767.” DIHSP, v. LXII, p. 257-360. Apud Leonzo. Op. cit., p. 90. 551. “Carta de Martim Lopes Lobo de Saldanha para o Juiz de Fora da vila de Santos sobre as atividades particulares dos Capitães de Auxiliares. São Paulo, 2 de abril de 1776”, DIHSP, v. LXXV, p. 7-8. Apud Leonzo. Op. cit., p. 90. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Durante o século XVIII,552 o crescente processo de afirmação econômica dos comerciantes fez com que a Coroa não pudesse prescindir do apoio desse novo segmento, cujas atividades ganhavam notório vulto, e passasse a tentar incorporá-lo ao aparelho administrativo colonial para ampliar e fortalecer a base do governo. Abriram-se, portanto, oportunidades de promoção social e política para os comerciantes, permitindo seu acesso ao almejado prestígio na vida colonial. O término da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, promovido pelo Marquês de Pombal, foi de grande importância “para efeito de acesso aos cargos públicos e de concessão de honrarias e de outros prêmios que a coroa costumava compensar seus súditos”,553 uma vez que o comércio sempre estivera irremediavelmente identificado com os cristãos-novos, conhecidos como “homens da nação”. O historiador Kenneth Maxwell ressalta uma questão fundamental na filosofia mercantilista de Pombal: “Tal como seu mentor Dom Luís da Cunha, Pombal acreditava que a expulsão dos judeus e a discriminação contra os cristãos-novos haviam tolhido o desenvolvimento dos empreendimentos portugueses.”554 Também é preciso considerar que a rede de relações entre centro e localidades não permanecia estagnada diante de circunstâncias mutáveis.555 Os princípios e regras que norteavam as concessões régias, definidos pelos valores hierárquicos estamentais, sofriam alterações que determinavam modificações nos padrões e critérios eletivos para cargos nobilitantes. De acordo com a lei de 30 de agosto de 1770, o comércio era considerado “uma profissão Nobre, necessária e proveitosa”.556 Nobilitados 552. A propósito desta questão, e mais especificamente da cidade do Rio de Janeiro, nos séculos XVII e XVIII, ver Maria Fernanda Bicalho A Cidade e o Império... Op. cit., sobretudo no capítulo intitulado A Representação dos Colonos [p. 347 a 370]. Ainda sobre a cidade do Rio de Janeiro, deve ser mencionado o trabalho Os Homens da Governança do Rio de Janeiro em fins do Século XVIII e início do XIX, [Apresentado no Seminário Internacional O Município no Mundo Português. Op. cit., p. 545 a 558], de Maria de Fátima Gouvêia. Também importantes são seguintes trabalhos: João L. R. Fragoso, Homens de Grossa Ventura: Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830), RJ, Arquivo Nacional, 1992; Evaldo Cabral, A Fronda dos Mazombos, Nobres contra Mascates. Pernambuco (1666-1715). São Paulo: Cia das Letras, 1995, também do mesmo autor ver O Nome e o Sangue – Uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1989 etc. 553. Mello, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue... Op. cit., p. 263. 554. Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal... Op. cit., p. 59. 555. Pujol. Op. cit., p. 127. 556. Oliveira, Luiz da Silva Pereira. Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal. Lisboa, 1806, p. 44. 172

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pela integração nas milícias e pela prática do comércio, esses oficiais passaram a gozar de prestígio social, como “pessoas principais” das Capitanias. Também na Capitania do Rio de Janeiro, a distribuição das patentes militares efetuada pelo Marquês do Lavradio destinava-se aos “negociantes e pessoas mais abundantes”, para que todos “vissem que aqueles oficiais (...) seriam capazes de os socorrer nas suas precisões, e ajudá-los a uns nos seus negocios, e a outros nos seus oficios”.557 Apesar de a antiga prescrição, que definia as atividades comerciais como atividades inferiores e pouco nobres, ter perdido seu valor legal, a promoção social e política dos comerciantes, assegurada pela nobilitação através das milícias, não aconteceu sem gerar conflitos e desordens na esfera local. É nesse contexto que Antonio Ribeiro Sanches questiona os limites do que pode ser realizado pela legislação: “poderá essa lei extinguir das mentes das pessoas idéias e pensamentos que foram adquiridos em seus primeiros anos de vida?”558. Os comerciantes conquistavam os postos de oficiais, mesmo com a indignada censura dos fidalgos e dos letrados incorporados à aristocracia. Assim, Critilo559 em Cartas Chilenas, observa ironicamente um aspecto da tensão que inevitavelmente marcava essa assimilação dos comerciantes: Perguntarás agora, doce Amigo, Aonde estão os ricos Taverneiros? Aonde os Mercadores, que têm lojas, A que chamam de seco, e de molhado? Aonde, Doroteu? Eu já to digo: Estão, estão também nos Regimentos: Mas trazem nas direitas, que conservam Inda lixosas peles, as bengalas. Não rias, Doroteu, das nossas Tropas.560

Os comerciantes, revestidos de patentes das milícias que legitimavam a nobreza, ganhavam poder e prestígio, “Mas trazem nas di557. “Relátorio do Marquês do Lavradio”. Op. cit., p. 324. 558. Citado por Kenneth Maxwell. Marquês de Pombal – Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 116 559. Pseudônimo de Tomás Antonio Gonzaga. 560. Gonzaga, Tomaz Antonio, Cartas Chilenas, RJ, Companhia das Letras, 1995, p.189. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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reitas, que conservam/Inda lixosas peles, as bengalas”. Nesses versos de 1787/1788, o poeta mineiro Tomaz Antônio Gonzaga deixa claro o seu referencial de interpretação, condicionado pelos códigos hierárquicos tradicionais, onde os comerciantes são classificados como ralé, rústicos ou “gente baixa”, portanto, definindo especificamente uma transgressão da ordem hierárquica e dos privilégios tradicionais, por estarem em lugares não apropriados à sua condição. Como observa o historiador Evaldo Cabral de Mello, Os mascates pensavam seguramente que a nobreza adquirida pelos próprios méritos tinha primazia sobre a nobreza herdada dos pais (...). Em Portugal, já ressoavam os ecos da disputa entre a nobreza do sangue e a nobreza das obras e já havia quem defendesse a superioridade da “nobreza civil” ou “política”, concessão do príncipe.561

E podemos concluir com Maxwell: Esse processo de mudança em favor da nova nobreza foi grandemente acelerado por Pombal, e a renovação da aristrocracia durante o seu período de preeminência foi muito extensa, cerca de um terço da nobreza se compunha de sangue novo por volta de 1777.562

5.2. O Recurso às Estratégias Locais Em 1775, a Coroa expediu novas diretrizes defensivas para os domínios meridionais da América portuguesa. Foram nomeados D. Antonio de Noronha para Capitão-General da Capitania de Minas Gerais e Martim Lopes Lobo de Saldanha para a de São Paulo. As capitanias do CentroSul – Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro –, receberam um encargo maior na responsabilidade pela defesa das fronteiras sulinas, tornaramse o centro político-administrativo e militar do Império português na América, devendo manter um objetivo único, consonante e uníssono.

561. Mello, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue – Uma fraude genalógica no Pernambudo colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 36. 562. Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal – Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 79. 174

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Assim, Martinho de Mello e Castro determina ao vice-rei que, “alem da cauza commum, que Sua Mag.e tem mandado estabelecer em todas as Capitanias (...)”, forme-se um Plano Militar, por meio do qual, tenha V. Ex.a: Em São Paulo hum prompto Socorro, para acudir aos Dominios Meridionais da America Portuguesa: E Em Minas Gerais hum Corpo de rezerva, também prompto, para se servir delle, e o fazer marchar, quando lhe for necessario, em deffença dessa Capital.563

Determina também que os dois governadores-generais devem manter o vice-rei informado de tudo,564 para que “no caso, em q’ a guerra, que hoje ameaça tão somente o Rio Grande, Viamão, e Rio Pardo, venha a fazer-se geral; tenha V.Ex.a Forças sufficientes, com que preserve e deffenda essa Capital de todo e qualquer Insulto”.565 Mas se a defesa da capital, segundo o vice-rei, já era bastante precária, não era menos difícil a situação da Capitania de São Paulo, onde o povo “(...) lhe custa infinitam.te o obedecerem (...) e se retiram para os Certoens Logo que se não convem no que elles querem”.566 Em Minas Gerais, o quadro era ainda mais rudimentar: “Aq.la Cap.nia nunca foi Militar, ignorasse nella, tudo o q’ hé Serviço Regular”,567 quando suas tropas chegam à capital “cauzão motivo de rizo as suas figuras, e ainda de alguns as Suas Idades, por não serem ja competentes”.568 Por outro lado, logo após as tropas pagas da Capitania de São Paulo chegarem ao Rio Grande de São Pedro, o general João Henrique 563. “Oficio de Martinho de Mello e Castro para o Marquês do Lavradio, 24/1/1775”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 30, Doc. 2.688. 564. Segundo Dauril Alden, Royal Government..., op. cit., p. 447, “In critical times, such as the mid-seventies, the Crown did grant the viceroy exceptional war power and placed certain captains-general under their orders”. Para um aprofundamento sobre a questão dos limites territoriais da autoridade do vice-rei, e de suas relações com os Governadores e com os Capitães-Generais no Estado do Brasil, ver capítulo XVI, “Relation with Governors and Captains-General”, p.447 a 471. 565. “Oficio de Martinho de Mello e Castro para o Marquês do Lavradio, 24/1/1775”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 30, Doc. 2.688. 566. “Carta do Marquês do Lavradio para Matim Lopes Lobo de Saldanha, 7/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 109, Doc. 75. 567. “Carta do Marquês do Lavradio para Matim Lopes Lobo de Saldanha, 22/5/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631, s/paginação. 568. “Carta do Marquês do Lavradio para o Marquês de Pombal, 6/7/1775”, BNL. Reservados, Cod. 10.624, p. 76. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Böhn enviou ao Governador-General daquela Capitania uma carta contendo inúmeras críticas e reprovações a seu deplorável estado. Böhn reclamava que os “Oficiais são todos novos, não tem os precisos conhecim. tos Militares”,569 que a tropa não estava “provida do preciso”,570 e chegava a afirmar que com ela “não se pode contar como tropa”.571 “Aflito”, escreve Lopes Lobo, capitão-general de São Paulo, ao vice-rei, solicitando-lhe a ajuda necessária para que “fiquem satisfeitas aquellas irregularidades, com que se acha naquelle Continente a tropa dessa Capitania”.572 O marquês não se dá por achado em sua resposta, considerando “(...) que a V. Ex.a se faria impossivel, e a mim, o remediar-mos em hum instante o descuido de tantos annos”.573 O marquês bem sabia que as tais “irregularidades” encontradas nas Tropas resultavam, principalmente, da falta de recursos da própria Coroa para investir em suas forças ultramarinas, com a compra de armamentos, pólvora, uniformes e, sobretudo, com o pagamento de soldos. Assim sendo, essas deficiências não se verificavam apenas na Capitania de São Paulo, mas em todo seu domínio americano. Tampouco atingiam somente a tropa regular, que – a princípio e minimamente – deveria estar provida de oficiais “com conhecimentos do Serviço, que deve fazer huma tropa semelhante (...)”.574 As deficiências se alastravam pela Tropa de Auxiliares, a despeito do fato de as diretrizes militares da Coroa determinarem, continuamente, a necessidade de regularização e disciplinamento das Tropas coloniais, como mostra a Ordem Régia, emitida em 1771, para o Vice-Rei Marquês do Lavradio: O mesmo S.nor espera que V.Ex.a tenha aplicado com o maior cuidado em formar, consolidar, e disciplinar os referidos Corpos [de Auxiliares]; tendo a certeza que daqui se hade

569. “Carta do Marquês do Lavradio para Matim Lopes Lobo de Saldanha, 7/8/1776”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 108, Doc. 51. 570. “Carta do Marquês do Lavradio para o Marquês de Pombal, 30/12/1776”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 108, Doc. 51. 571. “Carta do Marquês do Lavradio para Matim Lopes Lobo de Saldanha, 7/8/1776”, op. cit. 572. Idem. 573. Idem. 574. Idem. 176

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cooperar com tudo quanto for preciso para os fazer uteis ao Serviço e defença dessa Capitania.575

Apesar da promessa, a Coroa não guarnecia os corpos militares com o armamento suficiente e adequado, nem garantia o pagamento devido pelos deslocamentos das tropas para a fronteira. Assim, a ordem real de “formar, consolidar e disciplinar” novos contingentes militares se perdia em objetivos inalcançáveis. A falta de recursos financeiros fez o governo português privilegiar os processos e estratégias de combate local, considerados como elementos imprescindíveis na definição da guerra travada com a Espanha pelos territórios ao sul da América. Nesse sentido, reveste-se de interesse a resposta do Marquês do Lavradio ao General João Henrique Böhn, que havia reclamado das tropas de São Paulo enviadas ao Rio Grande de São Pedro. O vice-rei se esforçava em demonstrar ao General Böhn as vantagens que poderiam resultar da utilização de tropas daquela qualidade. Para isso, refere-se às guerras efetuadas na Europa, cujas tropas encontravam-se bem municiadas e submetidas a uma ordem e a uma regra, e considera seu aspecto contraproducente, em relação às tropas de São Paulo, visto que “o modo de se sustentarem hé todo o mesmo; e finalmente não tem vantagens huas sobre as outras”.576 O marquês ressaltava o caráter extremamente positivo na utilização de uma espécie de tropa que, embora mal equipada e mal preparada, em termos europeus, trazia em si a compensação e a vantagem de dispor de meios de combate muito próprios, completamente inesperados e desconhecidos de seus inimigos: vivem nos mattos, sem fazerem diferença dos bichos, conhecem tambem, e acham-se familiarizados com aquelas habitações, que nelas se recolhem, ali se sustentam e conservão sem outro nenhum socorro, e dali saem como feras a fazerem estragos que em todos os tempos temos visto.577

575. “Martinho de Mello e Castro para o Marquês do Lavradio, 1/10/1771”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 101, Doc. 54. 576. “Carta do Marquês do Lavradio para João Henrique Böhn, RJ, 10/2/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631, s/paginação. 577. Idem. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Apostando nesse diferencial como fator estrategicamente importante, talvez o único recurso de que realmente dispunham os portugueses para enfrentar a guerra com os espanhóis, o marquês afirmava que mesmo em um enfrentamento desses extravagantes contingentes com as “tropas ligeiras européias, que poderão fazer cá com estes bichos; hé sem dúvida que couza alguma, por que a tropa ligeira se não embrenha por mattos, se não a queles que conheçe (...)”.578 Dessa forma, é possível verificar a especial atenção da Coroa, direcionada por seus representantes ultramarinos, para o aproveitamento máximo desse tipo de tropa, existente na Capitania de São Paulo e destinada às campanhas ao Sul da América, composta de sertanejos e caçadores, fossem eles chamados de aventureiros ou de voluntários. A força terrestre, no Estado do Brasil, estava organizada em três escalões: o Exército de Linha, ou Tropa Paga, recrutado entre os solteiros; as Forças Auxiliares, constituídas por homens válidos, geralmente casados; e, finalmente, as Ordenanças, compostas pelos outros homens militarmente úteis. As ditas companhias de aventureiros, caçadores ou voluntários estavam fora deste esquema, e eram contratadas, mediante a promessa de soldo, para determinadas missões específicas. Morgado de Mateus, logo após sua chegada em Santos no ano de 1765, para dar início ao governo de São Paulo, recebeu ordens do Vice-Rei Conde da Cunha para levantar quatro companhias de Aventureiros naquela Capitania. Ciente da sua situação militar, o então governador considerava que “Os ditos aventureiros fazem despeza m.to gr.de e não he tropa capaz de fazer seviço regular”;579 no entanto, foi informado sobre os relevantes motivos existentes para empregar esse tipo de tropa: “he a tropa mais util e mais propria q’ pode haver para as campanhas de Rio Grande (...)”.580 Em 1766, mediante a notícia de “q’ os castelhanos crescião em numero naquela fronteira”581, as quatro companhias paulistas de Aventureiros, formadas por Morgado de Mateus, foram enviadas pela primeira vez às fronteiras do Sul. Apesar de grandes dificuldades, Morgado conseguiu realizar sua expedição. Seu principal obstáculo remontava ao 578. Idem. 579. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, S.P., 4/8/1765”, AHU, SP., Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.239. 580. Idem. 581. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, S.P. 9/3/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 24, Doc. 2.294. 178

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passado da tropa, e às pendências financeiras desrespeitadas ao longo do tempo.582 A fim de que a tropa fosse imediatamente enviada para as fronteiras sulinas, o soldo devido foi finalmente decidido em audiência com o Vice-Rei Conde da Cunha: “o melhor meio hera procurar a todo o risco ajusta-los desta vez por hum soldo, q’ não excedesse, aos do Rio de Janeiro”,583 a despeito das apreensões geradas acerca da possível reação dos paulistas. Apesar de as Coroas Ibéricas terem acordado uma trégua em suas disputas na zona meridional da América através do Tratado de Paz de 1763, pode-se verificar que a Coroa portuguesa implementou uma política de concentração de tropas naquela região. Em 24 de fevereiro de 1764, José Custódio de Sá e Faria foi nomeado governador do Rio Grande, tendo por principais missões reorganizar a administração, fortificar o território ainda em poder dos portugueses, e sistematizar, gradualmente, a reconquista dos territórios em poder dos espanhóis – a vila do Rio Grande, as povoações fronteiriças de São José do Norte e a entrada da lagoa dos Patos.584 Sá e Faria dispunha de forças que então contavam com menos de mil homens, todos arregimentados pelo próprio governador e seus oficiais. No ano de 1766, chegaram as quatro companhias de aventureiros paulistas enviadas por Morgado de Mateus e patrocinadas pelo governo de São Paulo, que prometia honrar os seguintes vencimentos mensais: capitães, 19$700; tenentes, 11$000; alferes, 10$000; sargentos, 6$400; cabos de esquadra, 5$400; soldados, 4$800.585 As tensões fronteiriças permaneciam crescentes, e atingiram seu clímax com a notícia de uma expedição preparada por Vertis y Sal582. Referência à época do Tratado de Madrid, em 1750, que definiu, temporariamente, a soberania das Coroas de Espanha e Portugal na região meridional da América, estipulando, fundamentalmente, a troca da Colônia do Sacramento que estava em poder dos portugueses pela região dos Sete Povos das Missões Orientais então pertencente à Espanha. Em 1752, Gomes Freire ordenou a Cristóvão Pereira que fosse “as comarcas de São Paulo e Pernaguá” a fim de “formar uma tropa de 200 homens, em que entrem pessoas capazes de se oporem aos tapes [índios], caso seja preciso embaraçar-lhes alguma cilada (...)”, e que estes soldados deviam ser capazes de “viajar e cortar o sertão, sabendo caçar e pescar para a subsistência”. Ao contratar essa tropa paulista para as fronteiras meridionais, prometia-se aos soldados-aventureiros o salário de 4.800 réis, que não foi pago. [“Instruções de Gomes Freire de Andrade para o coronel Cristóvão Pereira de Abreu”. Anais da BNRJ 1928, v. 50. Apud, Golin Tau. A Guerra Guaranítica. Op. cit., p. 247.] 583. Idem. 584. Goulin, Tau. Op. cit., p. 55. 585. Idem. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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cedo, então governador de Buenos Aires, que se dirigia para a fronteira do território português. Pela Ordem Régia de 1774, enviada a Morgado de Mateus que dispunha sobre as diretrizes militares ordenadas para a Capitania de São Paulo diante da iminência de um novo conflito, podese verificar a importância dada pela Coroa ao auxílio que as tropas de caçadores, ou aventureiros paulistas, prestavam nas fronteiras ao Sul do Estado. Naquele documento, o item de número 59 era especialmente dedicado ao valor dessas tropas na defesa das terras ultramarinos: devo previnir a V. S.a, para seu governo no Plano de defença daquelles Domínios Portugueses (...) que entram como parte a mais essencial, os socorros de Tropas de caçadores, e de homens de armas q’ de prezente se empreguam; e de futuro se hão de empregar nessa Capitania (...).586

Em 24 de janeiro de 1775, através do Plano da Legião de Voluntários Reais da Capitania de São Paulo,587 a Coroa regulou algumas questões básicas na organização deste tipo de tropa, composta de sertanejos e caçadores, e destinada aos combates nos campos do sul. O número de homens a compor cada Legião foi delimitado em 1.000 para os tempos de paz e em 1.600 para os de guerra, foram definidos os valores do soldo dos oficiais e os do restante da tropa; ficou estipulado que a Legião receberia fardamentos “proprios de huma tropa composta de sertanejos e caçadores, que mais há de marchar pelos mattos, e combater nelles, que em raza campanha”.588 Também foi determinado que esses deveriam aprender as principais manobras das tropas ligeiras, tendo como único e principal objetivo o de “tirar toda a vantagem possível de seo mesmo methodo, e uso particular de combater”.589 E as armas da tropa deveriam ser “na forma que ella quizer, e segundo o seo uso, e costume; Deixandolhe igualmente livre o methodo particular que tem de fazer a guerra, de surprezas, emboscadas, e incursoens no país inimigo”.590 O comando, portanto, desse tipo de tropa deveria necessariamente recair “não em hum 586. “Martinho de Mello e Castro para Dom Luiz Antonio de Souza Mourão, Palácio da Ajuda, 22/4/1774” AHU, Cod. 569, p. 70. 587. “Plano da Legião de Voluntários Reais da Capitania de São Paulo, Salvaterra de Magos, 24/1/1775”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 30, Doc. 2.689. 588. Idem. 589. Idem. 590. Idem. 180

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oficial q’ procure fazer hua rezistencia regular como se fazião com tropas disciplinadas, porem hum off.al q’ procure fazer respeito a elles, q’ tenha conhecimento daq.la guerra”.591 Oito anos foi o prazo fixado para o serviço obrigatório, sendo que àqueles que servissem voluntariamente por quinze anos prometia-se o direito à reforma de meio soldo. Outro ponto de considerável importância definido no Plano, tendo em vista que as promessas de soldo feitas pela Coroa raramente se cumpriam, foi a concessão do direito de saque à Legião dos Voluntários.592 “Sobre a distribuição das presas”, um bando do Marquês do Lavradio procurou definir como se dividiriam os despojos da guerra mediante o estabelecimento do princípio de dois oitavos, divididos em três partes: 25% para comandantes, 25% para oficiais, 50% para soldados e demais pessoas incorporadas à ação do saque. O mesmo bando também definiu que a Coroa pagaria 20% do valor dos artefatos militares.593 Não obstante as expedições e determinações régias, com suas claras intenções de estímulo e liberdade oferecidos àqueles que viessem a integrar a Legião de Voluntários, o Governador de São Paulo Martim Lopez Lobo de Saldanha, em carta de 14 de julho de 1775 ao Vice-Rei Marquês do Lavradio, reclama do árduo trabalho que fora levantar a tropa de Voluntários: “tem achado dificuldade, pello grande medo, e desconfiança em que ainda estão aqueles povos”.594 Tais dificuldades podem significar que as vantagens prometidas pela Coroa não eram realmente satisfatórias; ou que, talvez, não fossem suficientemente críveis para convencer aqueles que deveriam se alistar na tropa. O que nos encaminha à possível conclusão de que mesmo aqueles que compunham a referida Legião não poderiam ser realmente classificados como voluntários. Apesar dos constantes relatos feitos pelos governadores de São Paulo sobre as dificuldades para formar a tropa de aventureiros, há notícias de que ainda na década de 1770 aventureiros paulistas se encontravam em combate nas fronteiras sulinas comandados pelo riograndense Rafael Pinto Bandeira. São registros de batalhas então travadas 591. Idem. 592. “Plano da Legião de Voluntários Reais da Capitania de São Paulo, Salvaterra de Magos, 24/1/1775”. Op. cit. 593. Goulin, Tau. Idem, p. 81. 594. “Carta do Marquês do Lavradio para Martinho de Mello, RJ, 1/8/1775”, BNL. Reservados, Cod. 10.624, s/p. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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contra os espanhóis pela reconquista do Rio Grande de São Pedro, que tiveram início em 1774, e se estenderam até 2 de abril de 1776, quando a vila daquela região foi retomada sob o comando do General Böhm. No início de janeiro de 1774, o então governador de Buenos Aires, Vertis y Salcedo, dirigia-se para o distrito do rio Pardo, com a intenção de tomar o território sob domínio português – toda a região Sul e Oeste do rio Jucuí. Mas o governador e sua tropa sofreram violentos reveses da tropa de aventureiros comandada por Rafael Pinto Bandeira, e essas vitórias obtidas pelos aventureiros, na fronteira oeste, contribuíram muito para levantar a moral portuguesa na guerra contra os espanhóis.595 Os apresamentos de guerra provenientes do sítio, e posterior rendição, do forte castelhano de São Martinho, em 31 de outubro de 1775, deram um lucro superior a sete contos de réis aos duzentos e poucos aventureiros. Na ocasião, foram arrebanhados mais de 4.300 animais, entre bois mansos, mulas, cavalos e reses.596 Em 19 de fevereiro de 1776, os portugueses sofreram um enorme baque no desastroso combate naval do canal do rio Grande, quando a esquadra do Capitão de Mar Mac-Dowall foi obrigada a bater em retirada e buscar proteção na Lagoa dos Patos. Porém, essa derrota seria compensada no mês seguinte: a tropa de aventureiros de Pinto Bandeira e a tropa ligeira cercaram e conseguiram a rendição do forte de Santa Tecla, em 24 de março de 1776. Desmantelada a resistência castelhana, o General Böhm, com cerca de seis mil homens, preparou-se para tomar a Vila do Rio Grande, vitória conquistada em 2 de abril de 1776.597 Entretanto, a contra-ofensiva espanhola não tardaria. Em fins de fevereiro de 1777, como já visto, a poderosa expedição comandada por D. Pedro de Cevallos conquistaria a Ilha de Santa Catarina, e depois dirigiria-se para a Colônia do Sacramento, conseguindo a capitulação portuguesa em 3 de junho do mesmo ano. Prosseguindo em suas diretrizes militares de conquista, Cevallos já rumava em direção ao Rio Grande de São Pedro, quando o Tratado de Santo Idelfonso restabeleceu a paz entre as Coroas de Espanha e de Portugal, em 1o de outubro de 1777. Os portugueses abriram mão das bacias do Prata e do Uruguai, incluindo a Colônia do Sacramento; em contrapartida tiveram de volta 595. Golin, Tau. A Guerra Guaranítica. Op. cit., p. 79. 596. Idem. 597. Idem. 182

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a Ilha de Santa Catarina e conservaram o Rio Grande de São Pedro em seu poder. Assim, em 10 de fevereiro de 1777, ciente dos planos castelhanos, o Marquês do Lavradio, escreve ao General Böhm, contando que “já consta ter sahido a Esquadra” de Cevallos em direção a Santa Catarina. Na mesma carta, o general é informado sobre as várias ordens da Corte de Portugal, entre as quais “Que a tropa do Cor.el Rafael Pinto, faça todas as assiadas, e mais estragos q’ couberem no possivel nos gados, e cavalhadas, (...) afim q’ elles não achem gados com q’ sustentem, e com q’ possão fazer as suas conduções (...)”.598 À medida que as disputas se acirravam na América meridional com a conquista da Ilha de Santa Catarina pelos espanhóis, aumentavam as expectativas com relação à participação dos paulistas. Em carta ao governador de São Paulo, o vice-rei considerava conveniente atiçar o ímpeto paulista a fim de “se renovarem no seu coração aqle rancor q’ em outro tp.o tinhão aos Cast.os”.599 Para isso, era importante que soubessem q’ os Cast.os dizem q’ os seus dezejos mais ardentes, são de se vingarem dos paulistas (...) q’ ainda q’ lhes prometão trata-los com carid.e, que a todos os que lhe cahirem nas mãos, elles hão-de tirar a vida com a maior tirania.600

Em 11 de abril de 1777, em carta a Martim Lopez Lobo de Saldanha, o Marquês do Lavradio lamenta o acontecido na Ilha de Santa Catarina e informa ao governador as providências que se faziam necessárias “a fim de ivitar-mos a continuação de tão desgrasados sucessos”.601 Segundo o vice-rei, aquela derrota colocava em grave perigo os domínios portugueses na América meridional, mas também representava “huá porta aberta e franca dentro da nossa casa”,602 sobretudo se as forças inimigas se expandissem e conquistassem o Rio Grande de São Pedro.

598. “Carta do Marquês do Lavradio para João Henrique de Böhm, RJ, 10/2/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631. 599. “Carta do Marquês do Lavradio para o Governador de São Paulo, RJ, 11/4/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631. 600. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopez Lobo de Saldanha, RJ, 26/3/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631. 601. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopez Lobo de Saldanha, RJ, 11/4/1777”, BNL. Reservado, Cod. 10.631. 602. Idem. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Nesse tenso quadro geopolítico, a estratégia militar adotada foi a de direcionar todas as forças da Capitania de São Paulo, bem como de todas as demais, aos lugares em que fossem de maior importância. Ao enviar as forças distintivas e características de que dispunha a Capitania de São Paulo para as batalhas contra os espanhóis, o marquês manifestava otimismo e confiança no desempenho desses combatentes que, historicamente, aterrorizavam os espanhóis: “As forças q’ os Cast.os ali podem ter, são huás forças q’ não podem fazer receio aos paulistas. Estes são aq.eles q’ destruírão em todo o tp.o aq.la gente”.603 Além disso, o marquês não esqueceu de garantir as recompensas de apresamento que resultariam das vitoriosas batalhas, “ficando p.a elles tudo q.to puderem apanhar e ganharem aos mesmos inimigos”.604 Porém, mesmo considerados pela Coroa “como parte a mais essencial”605 das forças da Capitania de São Paulo, este tipo de tropa, composta de caçadores e aventureiros, não evitou a derrota sofrida pelos portugueses, em 3 de junho de 1777, em Sacramento. A perda dessa colônia mostrou a urgente necessidade de equipar e preparar aquele contingente militar, para que houvesse meios de, pelo menos, impedir a expansão do inimigo. Entretanto, a condição dessa tropa continuou precária. Em 20 de junho de 1777, quando o Vice-Rei Marquês do Lavradio respondeu às solicitações de armas e de fardamento para a tropa de caçadores, feitas por Lopez Lobo, evidenciou não só a trágica situação militar desses soldados-caçadores no fronte de batalha, mas também a penúria em que se encontrava a Capitania do Rio de Janeiro: “V. Exa me pede armas p.a estes corpos, eu as mandaria a V. Exa se as tivesse, porem eu me acho na mesma necessid.e, e do mesmo modo estou a resp.to de fardamento”.606 Em outros termos, caminhavam para a guerra “sem camiza e descalços”,607 sem armamento, e conforme visto acima, quase todos arregimentados por causa da forte pressão do governador de São Paulo. O relato leva a crer que no confronto travado com os espanhóis, a tropa constituída de caçadores tinha, como único recurso bélico, a 603. Idem. 604. Idem. 605. “Martinho de Mello e Castro para Dom Luiz Antonio de Souza Mourão, Palácio da Ajuda, 22/4/1774” AHU, Cod. 569, p. 70. 606. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopez Lobo de Saldanha, RJ, 20/6/1777”, BNL. Reservado, Cod. 10.631. 607. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopez Lobo de Saldanha, RJ, 1/8/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.631. 184

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“liberdade p.a que elles busquem a destruição daq.les homens por todos os modos q’ elles poderem”.608 Uma situação de precariedade que, inserida no quadro geral de minguadas forças e escassos armamentos disponíveis aos portugueses nos territórios meridionais a serem defendidos, era alarmante. Como exemplo, pode-se citar a condição militar da Ilha de Santa Catarina, à época de sua rendição aos espanhóis. Segundo o Marechal Cândido Caldas,609 em História Militar da Ilha de Santa Catarina, citada por Tau Goulin, o conjunto de forças militares, as enviadas e as da própria Ilha, estava brutalmente desfalcado de seus efetivos, previstos em cerca de dois mil homens. Pequena mostra dessa grave situação era o Regimento de Linha da ilha, em cujo mapa demonstrativo constavam 773 homens, mas que na realidade apresentava apenas 337, muitos completa ou parcialmente incapazes. Em grande parte, as numerosas peças de artilharia das fortalezas estavam danificadas ou em péssimo estado de conservação; além disso, estavam obsoletas se comparadas às produzidas pelos franceses, fabricantes das peças utilizadas pelos exércitos mais eficientes e sofisticados da época. De qualquer forma, os estrategistas militares portugueses consideraram, por mais surpreendente que possa parecer, que – de acordo com a quantidade de armamentos e munição posteriormente comprovada pelo inventário de capitulação – as forças portuguesas teriam estado em condições de oferecer combate e, mais que isso, infligir grande estrago610 ao inimigo, o que efetivamente não se verificou. Do lado espanhol, “jamais se fez um armamento igual para a América”611 antes da expedição de Cevallos. A despeito de os documentos revelarem algumas contradições entre o planejamento e a realização, as forças e os armamentos empregados, segundo Tau Golin,612 comprovam a magnitude da expedição espanhola enviada àquela parcela do Novo Mundo.

608. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopez Lobo de Saldanha, RJ, 11/4/1777”, BNL. Reservado, Cod. 10.631. 609. Caldas, Cândido, História Militar da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Lunardeli, 1992, p. 49-54. Apud, Tau Golin. A Guerra Guaranítica. Op. cit., p. 107. 610. Idem. 611. “Intimação de Cevallos ao marquês de Casa Tilly. Bordo do navio Poderoso, 7/2/1777”. Campaña del Brasil, 1941, t. 3, p. 455. Apud Tau Golin. A Guerra Guaranítica. Op. cit., p. 105. 612. Golin, Tao. Op. cit., p. 103. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Neste embate de tão grande vulto e diante das poderosas forças enviadas pelos espanhóis para a reconquista dos territórios meridionais então sob o domínio português, não parecia haver qualquer possibilidade da tropa de aventureiros paulistas virem a se constituir em elementos significantes, quantitativa ou qualitativamente, mesmo considerando sua afamada “quallidade de ataques e estratagemas com q’ ofendem o inimigo, e por isso se fazem m.to temidos”.613 Tampouco os armamentos de que dispunham os portugueses, ainda que em número significativo, porém ultrapassados e danificados, tornavam-nos capazes de um combate de igual para igual contra os fortemente equipados espanhóis. Portanto, pode-se concluir que o principal obstáculo para o triunfo da expedição de Cevallos foi a negociação de paz estabelecida entre as Coroas de Portugal e Espanha, selada no Tratado de Santo Idelfonso em 1o de outubro de 1777.

5.3. As Prescrições Centralizadoras e o Recrutamento Militar A política de intensa militarização da sociedade colonial, imposta pelas Instruções e Cartas Régias durante a segunda metade do século XVIII, produziu incontáveis Corpos de Auxiliares, muitos deles para participar das campanhas sulinas ao lado da tropa regular. Essa estratégia criou momentos de enorme convulsão social: mal começavam as ações de recrutamento, tinha início a fuga dos homens que corriam o risco de serem integrados às fileiras. E mesmo entre aqueles que não conseguiam escapar ao aliciamento, muitos acabavam por desertar. A grande recusa da população colonial à militarização tinha origem nas seguintes razões: a violência com que os combatentes eram recrutados, a falta de pontualidade no pagamento do soldo combinado e na entrega do pão prometido, os maus-tratos vexatórios que recebiam de seus governantes, o apego ao espaço original de socialização – isto é, a saudade da terra e dos parentes, e, não menos relevante, o medo da guerra. Contudo, é importante analisar a resistência à mobilização militar como um conflito entre distintas concepções de poder e de espaço: de um lado, o governo da metrópole e seus representantes ultramarinos, com suas exigências centralizadoras para a defesa da América 613. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, S.P., 4/8/1765”, AHU, SP., Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.239. 186

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portuguesa; de outro, a comunidade local da colônia, com seus interesses corporativos e regionais. Um bom exemplo desse conflito é visto mediante o estudo da Capitania de São Paulo, examinando as soluções encontradas por seus governadores para implementar o recrutamento militar – fosse por imposição ou negociação – nas comunidades locais, diante das inúmeras dificuldades existentes. Assim sendo, o Capitão-General de São Paulo Martim Lopes Lobo de Saldanha, no período de recrutamento, respondeu à debandada dos habitantes para regiões mais distantes, os “Mattos” ou “Certoens”, com uma “multidão de prizões, que tenho feito de malfeitores, sem que tenhão parte, onde possão estar seguros (...) nenhum Certão, por maior que fosse, lhe serviria de azilo”. Por isso, segundo o governador, “(...) sahiram dos Mattos muitas famílias, que ao tempo de se levantarem as tropas, se tinhão refugiado nelles com seus filhos, vindo-se me offerecer para Soldado, e pedindo perdão da sua inobediência (...)”. O maior objetivo de seu governo era ver a “(...) Capitania na mais cega obediência ao Seu Soberano, e com o maior respeito as Suas Justiças (...)”.614 Entretanto, havia outras formas de evitar as obrigações militares, fosse por vias legais, por meio de privilégios, ou de fomas ilícitas, como a prática do suborno. Em relação a essa última, André Ribeiro Coutinho, comandante de um dos Regimentos do Rio de Janeiro, em seu livro Capitão de Infantaria Portuguez, que inclui um extenso capítulo relativo ao recrutamento, advertia àqueles que se iniciam na função de capitão: “Muito cuidado se deve ter em que os crimes mais ordinários desta diligencia, são o aceitar peitas das partes, por lhes escuzarem seus filhos”.615 O experiente capitão também chamava a atenção sobre o cuidado necessário com as redes de fuga e de deserção que constantemente se formavam: “Huma das cousas, que mais perturba, embaraça, e toma tempo nas facturas [recrutamento], e reconduções [dos desertores] são frades, clerigos, conventos, e casas de pessoas poderosas (...).”616 A rejeição ao recrutamento – fosse por suborno, privilégios, fugas ou deserções e as redes de proteção – indica a forte presença de 614. “Carta de Martim Lopes Lobo para Matinho de Mello e Castro, 17/2/1777”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.751. 615. Coutinho, André Ribeiro. Capitão de Infantaria Portuguez. Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1.751, p. 173. 616. Idem, p. 181. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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uma sociedade organizada de acordo com uma lógica fundamentalmente local, isto é, corporativa, resistente, às vezes impermeável, a determinadas pressões do poder central. Nessa perspectiva, o recrutamento era visto pela comunidade local como uma interferência externa, que desarticulava e mesmo arruinava sua estrutura interna. Mesmo diante da iminência de uma guerra – portanto, da necessidade de remessa de tropas para a área fronteiriça em litígio –, a comunidade local não admitia tais interferências. Ela não reconhecia os motivos como inerentemente seus, porque seu espaço social de referência era a esfera local – espaço político-geográfico constituído por uma comunidade –, não coincidente, portanto, com a totalidade da extensão territorial da América portuguesa – espaço físico de exercício da soberania do monarca em sua Colônia. Através de Requerimentos e Representações feitos por diversas Câmaras ao Rei D. José, é possível constatar a forte presença dessa lógica local, corporativista, de resistência ao recrutamento de homens para fora de suas comunidades de origem. A comunidade resistia e se expressava de forma indignada mediante as Câmaras, como nos dois exemplos abaixo. Requerimento dos oficiais da Câmara da vila de S. Sebastião da comarca de São Paulo a D. José I, ano de 1756: (...) por se lhe tirar quase todos os annos os f.os dos mesmos moradores p.a soldados por ordem do Gov.or da Praça de Santos por cuja razão vai a d.a V.a em hua geral decadencia acrescendo tambem a falta para cultivarem a terra por q’ alem de faltarem os q’ assentam Praça os mais se auzentão com o urror de q’ lhes suceda o mesmo (...).617

Representação da Câmara da vila de Santa Ana de Moji das Cruzes, ano de 1777: (...) o continuo pranto com que lamentão suas mulheres e Filhos e na mizéria q’ experimentão nas abzencias dos Pais e maridos por andarem estes efetivamente empregados no Serviço de V. Mag.de, huns no Continente do Rio Grande e

617. “Requerimento dos oficiais da Câmara da vila de S. Sebastião da Comarca de São Paulo a D. José, 13/1/1756”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 21, Doc. 2.062. 188

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outros nas fortalezas da praça de Santos, como Sold.os Auxiliares (...).618

Cartas enviadas à Coroa pelo Governador e Capitão-General de São Paulo, Morgado de Mateus, contêm inúmeras referências às dificuldades encontradas para formar Corpos de Auxiliares, muitos vezes, destinados aos combates nos domínios sulinos: “(...) p.la repugnancia com q’ os Povos fogem de ser soldados (...)”;619 “(...) aborrecem elles todos naturalmente o nome de Soldados”,620 “(...) os accidentes que havia premeditado de levantes, deserçoens, resistencias (...)”,621 etc.

Tendo em vista as crescentes tensões locais provocadas pelo recrutamento de soldados, Morgado de Mateus sugere à Coroa alterações nos Regimentos de Auxiliares. No ano de 1774, a Coroa acata suas observações e considera: (...) visto serem os ditos Regimentos na maior parte formados das Principais Cabeças das Famílias; e de Homens cazados, e estabelecidos: Sendo certo que esta qualidade de tropa só he boa, e util para se empregar no proprio Paiz, guarnecendo os Portos e lugares; mas tão bem as suas cazas e Familias que é o maior estimulo, para se comportarem como devem: E nesta consideração ordena Sua Magestade, que os referidos Corpos sejam unicamente destinados a este Serviço.622

Essa reformulação das funções militares dos Auxiliares é o reconhecimento explícito, pelo poder central, do predomínio cultural de cunho corporativo das comunidades locais na constituição daqueles Corpos. O governo português reconheceu o erro contido em uma ordem geral, referida à defesa das longínquas regiões do extremo Sul, e passou a admitir que a mobilização dos Auxiliares só seria desencadeada 618. Representação dos oficiais da Câmara da vila de Santa Ana de Moji das Cruzes, 3/7/1777”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.763. 619. Oficio de D. Luiz Antonio de Souza Mourão para o Conde de Oeiras, 4/11/1765” AHU, SP, Avulsos, Cx. 24, Doc. 2.265. 620. Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, 31/7/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.237. 621. “Oficio de D.Luiz Antonio de Souza Mourão (Morgado de Mateus) para o Martinho de Mello e Castro, 30/3/1775” AHU, SP, Avulsos, Cx. 30, doc. 2.696. 622. “Carta de Martinho de Mello e Castro para Dom Luiz Antonio de Souza Mourão, 22/4/1774”, AHU, SP, Cod. 569, p. 66. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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adequadamente se a Monarquia Absoluta também levasse em conta a esfera local, seu “maior estímulo”. Em 1775, ao transferir o governo de São Paulo a Martim Lopes Lobo, Morgado de Mateus deixou a seu sucessor um conjunto de instruções, contendo 40 itens, com informações sobre os assuntos pertinentes àquela Capitania. No vigésimo item, inicia seus comentários sobre as questões militares, descrevendo a forma de organização das Tropas Auxiliares, e tornando ainda mais explícita a lógica corporativa ou localista destes Corpos: (...) cuja consistencia se funda em os Privilegios, que Sua Magestade lhe mandou conceder, elles servem de paga; como tambem na arrumação, em que se achão em cada huma das villas, a donde cada Companhia tem os seus officiais competentes que a conservão, e a governão, o que não succederia assim, se os Soldados fossem recrutados de deferentes partes; e este particular governo de cada companhia he sufficiente para as conservar (...).623

Contudo, mesmo que a Ordem Régia de 1774 reservasse aos Auxiliares a exclusiva missão de proteger os portos e lugares da Capitania, eles continuavam a ser solicitados para as campanhas no sul do Estado sempre que as autoridades julgassem necessário. Ora, com o agravamento das tensões nas fronteiras ao sul da América, proveniente dos longos períodos de batalhas decorrentes624 das ofensivas espanholas de Vertis y Salcedo, a partir de 1774, e de Cevallos, em 1777, era insustentável para a Coroa portuguesa manter os Auxiliares apenas na defesa de suas respectivas Capitanias. É preciso lembrar que as determinações da Carta Régia de 24 de janeiro de 1775,625 vista acima, previam o envio de socorro da Capitania de São Paulo para os domínios meridionais da América, e da de Minas Gerais para a cidade do Rio de Janeiro, capital do vice-reino.

623. “Intruções de D. Luiz Antonio de Souza para Martim Lopes Lobo de Saldanha, SP, 25/6/1775”, BNL. Reservados, Cod. 4.530. 624. Maiores detalhes sobre essas batalhas travadas com os espanhóis neste período. Ver: Capítulo III, ponto 3.5 e Capítulo V, ponto 5.2 625. Oficio de Martinho de Mello e Castro para o Marquês do Lavradio, 24/1/1775”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 30, Doc. 2.688. 190

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O Vice-Rei Marquês do Lavradio, segundo as mesmas determinações régias, responsável pela supervisão geral de toda a ação militar direcionada ao Sul, solicita então aos capitães-generais dos Corpos de Auxiliares das Capitanias de Minas Gerais e de São Paulo, o devido auxílio para a defesa do Rio de Janeiro e das praças do Sul. Em carta de 20 de agosto de 1775, dirigida ao Marquês de Pombal, o vice-rei informava que “Eu escrevo ao Gen.al de Minas para que me mande dous ou trez terços de Aux.es”;626 ao mesmo capitão-general de Minas Gerais, em carta de 2 de julho de 1776, determinava: (...) como esta gente só não bastará no cazo de eu effetivam.te ser attacado, hé sem duvida que as forças com q’ El Rei Meu Sr. determina eu seja auxeliado com os Corpos Auxr.es dessa Cap.nia que V. Ex.a avizou estarem formados (...).627

No que se refere à Capitania de São Paulo, pode-se verificar procedimento semelhante, sendo que o destino dos corpos de auxiliares paulistas eram as fronteiras sulinas. Assim, em carta de 11 de abril de 1777 ao seu capitão-general, ordenava o vice-rei: E pello q’ pertence aos Corpos Auxiliares, julgo q’ estes devem hir marchando sem perda nenhu´a de tp.o, bem entendido, q’ dadas as providencias, p.a elles serem socorridos nas suas marchas, assim como tambem todas as mais q’ forem possiveis p.a passar p.a o Com.te[do Rio Grande].628

Muito embora os Auxiliares permanecessem com a primordial tarefa de defesa de suas respectivas capitanias frente ao perigo de invasões estrangeiras, em ocasiões de urgência militar, a Coroa detinha a prerrogativa de revogar os privilégios concedidos. Assim sendo, diante da necessidade de defesa de sua Colônia, era imperativo para a Coroa, mesmo que provisoriamente, fazer dos Auxiliares uma força que atuasse no socorro às regiões em litígio no sul da América portuguesa. 626. “Carta do Marquês do Lavradio para o Marquês de Pombal, RJ, 20/8/1775”, BNL. Reservados. Cod. 10.624, s/p. 627. “Carta no 49, Carta do Marquês Vice-Rei do Estado, RJ, 2/7/1776”, BNRJ. Obras Raras. Antonio de Noronha. Cartas. Livro 1. Correspondências Passivas. Minas Gerais, 1776-1779, p. 48-50. 628. “Carta do Marquês do Lavradio para o Governador da Capitania de São Paulo, RJ,11/4/1777”, BNL. Reservados, Cod. 10.624, s/p. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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5.4. O Confronto com as Estratégias Locais A organização social e política da Colônia, em seu nível local, permaneceu enquadrada nos padrões de uma concepção organicista ou corporativa da sociedade, segundo a qual a sensação de pertencimento de seus habitantes era dada por sua vida comunitária. O reconhecimento da hierarquia social também era feito a partir da local, onde o rei representava seu valor máximo, a cabeça. Havia uma dinâmica política essencialmente localista, onde a dispersão do poder por uma multiplicidade de células sociais, cada qual relativamente autonoma em relação ao poder da coroa e cuja unidade interna é mantida pela ligação dos seus membros ao chefe local por laços políticos particulares.629

Os habitantes coloniais se sentiam parte do reino português, porque o reino era assim concebido de acordo com essa lógica corporativista. A concepção de unidade decorria da agregação destes espaços político-administrativos, as comunidades locais, sem que eles perdessem suas particularidades e suas relativas autonomias. Símbolo maior da unidade, o rei atuava como um poder de controle e harmonização do exercício dos poderes subalternos. Sendo assim, a concepção política corporativista da monarquia portuguesa investe o espaço local e regional de um significado primordial e essencial no seu sistema de poder. É importante perceber a presença de duas dimensões de entendimento do espaço político-territorial coexistindo na mesma realidade temporal: a corporativa, predominante na organização da sociedade colonial; e a voluntarista, que se “impõe” a partir da segunda metade do século XVIII, uma concepção e prática da sociedade e do poder representados na Colônia pelos vice-reis e governadores-generais, e executadas com base nas determinações e instruções enviadas pela Coroa portuguesa. Diferentes estratégias de apreensão e controle do território decorrem das duas dimensões político-geográficas acima mencionadas. Na estratégia corporativa, a organização do espaço político se estabele-

629. Hespanha, A. M. Poder e Instituição... Op. cit. p. 35. 192

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ce a partir de uma “estrutura granular”,630 isto é, de uma fragmentação do poder pelos diversos centros político-territoriais – as comunidades locais – como melhor meio de defesa e administração. A estratégia voluntarista concebe a organização político-administrativa do espaço como uma “estrutura contínua”, considerando como condição necessária para a boa administração e defesa territorial uma ordem baseada em um poder único, que se imponha sobre as relações comunitárias e seja superior às diferenças regionais. Inseridas nas necessidades práticas da efetivação de planos e interesses, essas duas concepções estão sujeitas a inúmeros confrontos entre si e também serão compelidas a negociarem na busca de possíveis consonâncias. Assim, a “estratégia corporativa”, consubstanciada política e territorialmente nas comunidades locais é orientada no sentido de defender os interesses regionais ou locais: uma organização espacial baseada em uma “estrutura granular”; e a “estratégia voluntarista ou centralizadora”, procura dissolver, sujeitar e integrar essas circunscrições político-territoriais dentro da órbita de um mesmo e único centro político631, convertendo a “granularidade” em uma “estrutura contínua”. Segundo Antonio Manuel Hespanha, para a estratégia voluntarista ou centralizadora (...) o regionalismo é visto como uma tendência que leva a periferização, a desunificação e a miniaturização do espaço, (...) sendo ainda, considerado como persistência das classificações politico-geográficas passadas, e identificado como um sinal de atraso e de emergência de uma mentalidade pré-racional.632

630. As expressões “estrutura granular” e “estrutura contínua”, referentes à organização do espaço, foram citadas por Diogo Ramada Curto em O Discurso Político em Portugal (16001650). Lisboa: Universidade Aberta, 1988, p. 179. 631. Hespanha, Atónio M. L’Espace Politique dans L’Ancien Régime. Coimbra: Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1983, p. 22-44. 632. Hespanha, A, M. L’Espace Politique... op. cit., p. 23. “(...) le régionalisme, envisagé comme une tendance vers la périphérisation, la désunification et la miniaturisation de l’espace, est mis à côté du corporativisme et de l’egoisme particulier (en violation flagrante, donc, du principe fontamental de la prévalence de l’interêt public sur le privê), et, considéré comme persistance des classifications politico-géographiques passées, est identifié comme un signe de retard et d’émergence d’ une mentalité pré-rationnelle.” CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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O propósito de o governo central concentrar em si todo o poder político vai direcioná-lo no sentido de tentar diluir as influências regionais e locais, iniciando um processo que, na prática da política centralista, está sujeito a incessantes conflitos entre as distintas concepções de poder e de espaço, e colocando em xeque as questões da eficácia do poder absoluto e centralizador com suas pretensões teóricas de onipotência. A partir das contradições geradas no interior deste processo, é possível sublinhar a resistência da vila de Ubatuba ao poder central, representado pelo então Capitão-General de São Paulo, Lopes Lobo de Saldanha. Ele transcreveu a conduta dos habitantes da seguinte forma: (...) ameaçando, e prendendo os Oficiaes, a quem incumbo as dilligencias (...) e andarem dizendo atrevidamente, que eu em S. Paulo, e elles em Ubatuba, continuando os mesmos dispotismo, que em todos os tempos praticarão de fazerem ineficazes as ordens dos superiores, e inda as de S.Mag.e, dando azillo a outros criminosos, e Dezertores, chegando ao Excesso de os irem frequentemenente buscar à Capital do Estado (...).633

Os moradores da vila não se subordinavam àquela forma de poder que pressupunha o comando do capitão-general, representante de um poder único e não partilhado. Era o baluarte corporativo, sobretudo no seu significado regionalista, que resistia, lutando para destituir seu usurpador, ativando os fenômenos sociais centrífugos que giram no interior da sociedade e do exército – as deserções – para afirmar seu espaço e seu poder por meio de uma ação política: o governador mandava “em S. Paulo, e elles em Ubatuba”. A fim de eliminar as particularidades locais e converter os moradores da vila em vassalos obedientes e submissos ao supremo poder do rei, o Capitão-General de São Paulo, manda o tenente da cavalaria Auxiliar da vila de Guaratinguetá prender os “ditos criminosos e insolentes”634 e levá-los à sua presença.635 633. “Portaria de Martim Lopes Lobo de Saldanha para o tenenete de Cavalaria Auxiliar Manuel Francisco de Toledo, 17/1/1776”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.719. 634. “Portaria de Martim Lopes Lobo de Saldanha para o tenenete de Cavalaria Auxiliar Manuel Francisco de Toledo, 17/1/1776”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 31, Doc. 2.719. 635. Conduta semelhante tiveram o Juiz Ordinário e o Capitão-Mor da vila da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, em 5/11/1771, quando reconheceram as ordens do Vice-Rei, Marquês do 194

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Na composição do espaço centralizado, ou de “estrutura contínua” “a integração de cada parcela acarreta sua alienação política e a sua inclusão na órbita de um centro político situado fora dela (...) as unidades tradicionais não constituem mais peças autônomas, mas, sim ‘partes’”, que devem estar submetidas ao comando do único centro político, a Coroa.636 Obviamente, diferentes concepções e práticas político-territoriais resultam em diversas formas e estratégias de defesa militar. Em uma organização político-espacial de “estrutura granular” corporativa, composta pelos vários e dispersos polos político-administrativos, com suas particularidades, jurisdições e relativa autonomia, a base da defesa territorial é construída a partir das estratégias locais de combate: emboscadas, assaltos noturnos, surpresas, incêndios e depredações. Nesse contexto, as tropas militares eram organizadas em função dos perigos e ameaças que se apresentavam ao longo do tempo, desfazendo-se quando eles terminavam. Essencialmente, essas tropas militares eram constituídas por forças locais sem articulação interna e sem saberes técnicos. Elas também não tinham qualquer ligação entre si, não dispondo de uma tática comum pela qual pudessem orientar suas ações durante um combate. O resultado era a difícil manutenção da disciplina no campo de batalha: cada combatente ou grupo de combatentes, movia-se de acordo com objetivos – por vezes apenas determinados pela perspectiva do saque – que ele próprio escolhia. Nesse contexto, o chefe militar apenas podia dar ordens muito gerais, acudindo com os seus homens de confiança aos pontos mais difíceis, deixando para o final do embate, se vitorioso, a complicada tarefa de voltar a reunir a massa já sem norte.637 Lavradio, que escreveu indignado: “Sendo me prezente que passando o Escrivão, e Alcaide de Paraty, a essa Villa p.a prenderem de Ordem minha a Jozé Apolinario, o não poderão conseguir, tanto por Vm.ce [juiz ordinário] o apoiar, como pelo Capitão Mor querer prender aos ditos Officiaes, sabendo elles hião a esta delig.a, Vm.ce junto com o mesmo Cap.am Mor, prenderão Logo ao referido Jozé Apolinario, e ambos pessoalm.te nesta Cid.e”, ANRJ. Correspondências dos vice-reis com diversas autoridades. Cod. 70, v. 7, p. 11. 636. Hespanha, A. M. L’Espace Politique... Op. cit., p. 27-54. “l’intégration de chaque parcelle entraine son aliénation politique et son inclusion dans l’orbite d’un centre politique situé hors d’elle (...) les unités tradicionnelles ne constituente plus des pièces autonomes, mais des ‘parties’”. 637. Bebiano, Rui. “Elementos de um Barroco Militar”. Revista de Histórias das Idéias. Universidade de Coimbra, .n. 11, 1989, p. 117. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Na concepção político-territorial voluntarista, na qual a organização do espaço é percebida como uma “estrutura contínua” e global, sob o comando do centro político representado pela Coroa, irradiado para a Colônia por intermédio de seus representantes ultramarinos, formula-se uma outra estrutura militar de defesa. Considerando as determinações régias para as capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, cada uma delas, embora administrativamente independente, era concebida como peça de uma engrenagem político-territorial maior – o Centro-Sul da América portuguesa –, e seu funcionamento deveria ser absolutamente preciso. As capitanias faziam parte de um plano militar maior, que visava à defesa territorial da Colônia; estavam sob ordens e diretrizes militares criteriosamente definidas pelo poder central, que determinava a funcionalidade específica de cada uma aos capitães-generais e ao vice-rei. Fundamentalmente, o sucesso da defesa territorial era uma consequência do conjunto das forças militares e de sua devida regularização técnica. Para isso, alguns fatores eram importantes: a intensificação do recrutamento militar, propiciando um número maior de tropas no fronte de batalha; o treinamento dos soldados no manejo das armas e, sobretudo, na completa obediência deles às ordens superiores; e a organização das forças militares deveria ser baseada em regras únicas e estáveis, que buscassem uma uniformidade de ação bélica. As ordens régias dirigidas aos capitães-generais e ao vice-rei da Colônia mostram que estes fatores eram alvo das preocupações da Coroa. Era obrigação de seus representantes ultramarinos empenhar esforços para a perfeita manutenção das Tropas de Auxiliares e das pagas, para que elas se apresentassem bem reguladas, disciplinadas e devidamente aptas para o combate. O treinamento das tropas coloniais também foi motivo da contratação, em 1767, do Tenente-General João Henrique Böhm, que se tornou o responsável pela aplicação dos regulamentos do Conde Lippe, referentes à organização militar, à estratégia, à tática, à disciplina etc. De fato, algumas providências tinham sido tomadas pela Coroa no sentido de melhorar e regular a defesa de sua Colônia, seja por meio do envio de oficiais para reorganizar as tropas, seja através de reforços constituídos por tropas pagas vindas do reino. Entretanto, as múltiplas demandas dos contingentes militares terrestres ultrapassavam as possibilidades da Coroa de supri-las, tanto com armamentos quanto com 196

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soldos. Nesse contexto de precariedade, e diante da urgência bélica existente na zona meridional da América, tornou-se estrategicamente indispensável, como já visto, o aproveitamento das estratégias locais dos soldados-aventureiros da Capitania de São Paulo, apesar de as ordens régias prescreverem a regularização e o disciplinamento militar das tropas coloniais como fatores imprescindíveis para a eficaz defesa da Colônia. Para cumprir as diretrizes régias de reformulação militar das forças das capitanias, o vice-rei e os capitães-generais deparavam-se com imensas dificuldades: de um lado, as limitações financeiras da Coroa; de outro, as resistências locais. O Sul da América estava na iminência de um conflito bélico, o que implicaria, de acordo com as diretrizes régias, em acionar uma estratégia em que os corpos militares estivessem tecnicamente disponíveis para “marcharem unidos” – isto é, uniformizados e predispostos a um grande distanciamento de suas comunidades de origem. O conflito de interesses é evidente. Enquanto o vice-rei e os capitães-generais, representantes daquele poder central, trabalhavam em função da necessidade de intensa mobilização militar de grandes contingentes populacionais de suas capitanias, para socorrer as regiões sulinas, as forças militares da Colônia resistiam a uma tarefa que tinha objetivos militares fora da sua região. A presença delas no nível local não era rapidamente transponível para uma esfera de ação em escala maior, ou para um local desconhecido. E ainda havia a necessidade do tempo necessário para a adaptação dessas forças a uma outra forma de poder, agora situado no exterior da comunidade local, com uma diferente organização militar. Desde sua fundação no ano de 1679, já eram frequentes os deslocamentos de tropas em direção ao Sul para a defesa da Colônia do Sacramento, fosse para a reconquista ou manutenção daquela praça contra as constantes investidas espanholas. Ora, esses deslocamentos foram sempre marcados pela resistência da população, traduzida tanto em fugas ao recrutamento quanto em inúmeras deserções. Mas durante a segunda metade do século XVIII, a resistência popular se acentuou, atingindo seu ápice em decorrência da intensificação do recrutamento e da nova estratégia militar, que exigia uma maior regulação e disciplinamento das tropas coloniais.

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O Capitão-General da Capitania de São Paulo Morgado de Mateus, quando se referiu às dificuldades que costumava encontrar para formar as Companhias de Auxiliares, remete-nos ao profundo estranhamento que a intensa mobilização militar provocava naqueles povos: “(...) nunca tinha visto similhante factura de Soldados (...)”;638 “(...) por q’ alem de não estar isto aqui em pratica e ser p.a estes homens hua couza nova e estranha (...)”.639 O descompasso criado entre a população local e as demandas das novas diretrizes defensivas torna-se ainda mais evidente com as exigências impostas pelo poder central. Nas “milícias”, os habitantes deveriam ser enquadrados em uma determinada ordem e disciplina, em uma uniformidade que reduziria os particularismos locais; mas Morgado de Mateus constatou que “(...) aborrecem elles todo o emprego q’ os prive daquela liberdade e preguiça em q’ estão criados (...)”.640 Ora, esta imposição de uma ordem e uma disciplina exterior, além de colidir com o modo de organização local, dificultava uma pronta resposta àquelas demandas militares, absolutamente estranhas, distantes e incongruentes para a lógica interna da comunidade local. Em 1767, seis anos após a promulgação do já citado Regulamento do Conde Lippe, que deveria ser utilizado como modelo para o governo das tropas na Colônia, Morgado de Mateus descreveu as forças de sua Capitania como “hum misto entre o moderno e o antigo, sem haver couza determinada”.641 O mesmo Governador de São Paulo ordenou que as tropas Auxiliares fossem observadas “somente naquilo que for aplicável ao uzo desta America conforme a observância que se pratica na Capital do Rio de Janeiro”.642 Ora, no Rio de Janeiro, de acordo com o Relatório entregue a seu sucessor, o Marquês do Lavradio havia alterado algumas das medidas do General Böhn, “pelos prejuizos graves que geralmente se podem seguir, assim à vida dos homens como do Estado”.643 638. “Oficio de D. Luís Antonio de Sousa para o Martinho de Mello e Castro, 30/3/1775”, AHU. SP, Avulsos, Cx. 30, Doc. 2.696. 639. Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, 31/7/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.237. 640. Idem. 641. “Carta de D. Luís Antonio de Sousa para o Conde de Azambuja, 27/6/1767”, DIHSP, v. XIX, p. 372. Apud Leonzo, p. 48. 642. “Ordem de D. Luís Antonio de Sousa sobre as obrigações que devem ter os oficiais e soldados das Tropas Auxiliares desta Capitania, 20/7/1766”, DIHSP, v. LXV, p. 135-136. Apud Leonzo, p. 48. 643. Armitage, João, História do Brasil, RJ, Zélio Valverde, 1943, p. 216 198

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Em carta de 1776, endereçada ao então novo Governador de São Paulo, Lopes Lobo de Saldanha, o Marquês do Lavradio fez um balanço da situação das tropas, comparando as pagas com as que não recebiam soldo. O vice-rei deixou claro os limites da prática política centralista em relação aos planos de organização militar da Colônia: Se huns Corpos, que V. Ex.a formou com tanta atividade, cuidado, e despeza; compostos de Soldados, e Officiaes, que muitos já servião, e que a todos El Rei paga; que para estes Corpos eu concorri com tudo quanto pude; estes mesmos não pode V. Ex.a conseguir ve los com uniformidade, nem em hum sofrivel estado de disciplina; que sucederá a huns Corpos formados por gentes, que não são daquella profissão, que vivem muito distantes da presença de V. Ex.a, e que não tem ainda Officiais capazes, que possão instruir?.644

O modelo de organização política do espaço corporativista criou sérios obstáculos à efetivação dos planos centralizadores do novo sistema de poder político e territorial da Coroa. Caracterizado pela sua descontinuidade geográfica e constituído de pequenas dimensões, o espaço tradicional corporativista é o espaço das pequenas comunidades, dotado de uma vida econômica e social comum. “Com efeito, o espaço juridicional não é, por necessidade, um espaço contínuo nem do ponto de vista geográfico, nem do político (...)”.645 A divisão territorial tradicional ou corporativista tende a ser vista como caótica, por sua aparente irracionalidade, incompatível com a nova concepção do espaço político que se configurava, e que “foram produtos das decisões pragmáticas do poder, para criar as condições de seu exercício (em particular, evitar sobrecarregar os órgãos centrais) e para facilitar o contato entre o poder e os seus destinatários.”646 Eram muitas as complicações práticas, no nível territorial, para a composição dos corpos militares determinada pelas diretrizes mili644. “Carta do Marquês do Lavradio para Martim Lopes Lobo, 7/8/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 109, Doc. 75. 645. Hespanha, António M. L’Espace Politique... Op. cit., p. 34. “En effet, l’espace juridictionnel n’est, par nécéssité, ni un espace continu du point de vue géographique, ni un espace non partagé du point de vue politique.” 646. Idem, p. 49. “Étaient plutôt les produits des décisions pragmatiques du pouvoir, visant à créer les conditions de son exercice (notamment, éviter la surcharge des organes centraux) et à faciliter le contact entre le pouvoir et ses destinataires”. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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tares da Metrópole. Como observou Morgado de Mateus: “Ha também outra dificuldade não pequena, e he as grandes distancias em que estão as Villas e Lugares huns dos outros havendo m.to poucos em q’ se pode formar hua companhia inteira (...).”647 Já em outra carta, o capitão-general enfatizou os obstáculos provenientes do reduzido número de habitantes que compunham as comunidades locais: Ao mesmo passo considero em levantar os Terços de Auxiliares; e me parece que só em São Paulo poderei formar terços inteiros, por q’ nesta Villa e nas mais destas Capitania não pode haver se não Companhias Soltas; por q’ o pequeno numero dos seus habitantes não permite mais, como se ve das listas da Ordenanças que já tenho, e assim me afirmão que se fas em Minas.648

Os limites da atuação da Coroa, e do governo da capital do Estado do Brasil, ainda revelam outras facetas, não menos prejudiciais aos seus planos militares. Especialmente, quando esses limites são responsáveis por promover as deserções e fugas ao serviço militar, que eram combatidas com todo o vigor no discurso das autoridades coloniais e metropolitanas.649 Esses limites estavam na área financeira, de fundamental importância, sobretudo no caso das Tropas de Auxiliares.650 Reconhecendo as inevitáveis consequências da falta de recursos financeiros, e revelando a condição do soldado da Tropa de Auxiliares, o Vice-Rei Marquês do Lavradio desabafou em carta ao Marquês de Pombal: eu estou já em grande dívida com estes povos, e como elles não tem de que vivão, que do seu trabalho, e o fruto das 647. “Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, 31/7/1765”, op. cit. 648. “Ofício n.o quinto do Governador Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, 15/9/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.256. 649. O artigo 14 do capítulo XXVI do Regulamento para o exercício, e disciplina dos Regimentos de Infantaria dos Exércitos de Sua Magestade Fidelissima, organizado pelo Conde Lippe, em 1763, prevê enforcamento para o desertor em tempo de guerra e condenação a trabalhos forçados nas fortificações em tempo de paz, op. cit. 650. As tropas de auxiliares eram compostas por homens casados e chefes de família. Em ocasiões de guerra, quando eram requisitados para guarnecer as fortalezas, engrossar as fileiras dos corpos militares estacionados na marinha, deveriam receber o pagamento de soldo, de acordo com as disposições da Carta Régia que instituiu os Corpos de Auxiliares em Portugal. 200

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Suas terras, e dos generos, com que comercião, faltandolhes o prompto pagamento, todos se escondem, e os que se sugeitão, hé com tal violencia, que reputão o que se lhe faz, ou que se tira pella tirania (...).651

A repulsa de ser soldado se justificava na própria condição da profissão, como denunciou a Câmara da Cidade de São Paulo a D. José I: “(...) a nudez do Soldado, a falta de pagamento e andarem estes Mendigando, motivos q’ horrorizão aos Povos a Vida Melitar (...)”.652

5.5. O Jogo das Negociações e o Recrutamento Militar O Alvará Régio de 24 de fevereiro de 1764653 detalha toda a matéria relativa ao recrutamento militar para a Tropa de linha, ou paga, reafirmando o papel das Ordenanças na formação de soldados. Nesse sentido, a base para o recrutamento continuava a ser as listas elaboradas pelos capitães-mores, conforme já havia sido determinado em 1570 pelo Regimento das Ordenanças. O Alvará tornava os capitães-mores responsáveis por manter sempre completas e atualizadas as listas dos habitantes militarmente úteis da localidade de sua jurisdição, “como tudo foi estabelecido nestes reinos por lei, e por costume de tempo muito antigo”,654 sob pena de perda do posto em caso de descumprimento. Nas listas, deveriam ser inscritos todos os moradores obrigados às Ordenanças, com nome, sobrenome, idade, domicílio, número de filhos varões e suas respectivas idades: “De sorte sempre conste ao certo o número dos moradores obrigados às Ordenanças, que há em cada termo; e dos filhos que cada hum delles tem”. E as listas deveriam ser compostas “sem engano, ou diminuição”, caso contrário, o responsável por sua elaboração sofreria a mesma pena de perda do posto.655

651. “Carta do Marquês do Lavradio para o Marquês de Pombal, 31/10/1776”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 110, Doc. 34. 652. “Carta da Câmara da Cidade de São Paulo, 27/12/1775”, BNL. Reservados, Cod. 4.530, p. 192. 653. “Alvará Régio com força de lei, de 24/2/1764”. In: Colecção das Leis, Alvarás e Decretos, que desde o reinado do Senhor Rei D. José o I se tem promulgado até ao presente ano de 1794. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo. Impressor do Conselho de Guerra, p. 84-90. 654. Idem, p. 85. 655. Idem. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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O Alvará também estipulou novos métodos para o recrutamento, ao introduzir princípios de equidade mediante a distribuição do número dos homens pelos concelhos ou termos em função de suas respectivas populações, de forma “que huns não fiquem gravados dos que os outros”.656 Seguindo a mesma regra de repartição proporcional, o Álvara estabeleceua formação de uma reserva de 50 a 60 homens.657 Os homens seriam recrutados, em cada concelho, por sorteio realizado em praça pública, em torno de uma comissão composta pelo capitão-mor, ocupando “o primeiro lugar de presidente”, o sargentomor, os capitães de Ordenanças e o escrivão da Câmara. Depois de sorteados, os recrutas seriam conduzidos ao Regimento por um cabo da leva, nomeado pelo capitão-mor.658 Aqueles que faltassem ao sorteio, seriam degredados para os Estados da Índia, América ou África “como homens vadios, rebeldes ao meu real serviço”. Os capitães-mores receberam a função de executar tal ordem “indispensavelmente”, e caso algum fugitivo fosse visto em liberdade na terra, o capitão-mor responsável sofreria a mesma pena.659 Apesar das disposições do Alvará de 24 de fevereiro de 1764, os comandantes dos regimentos pagos ordenavam que seus oficiais alistassem e recrutassem os homens diretamente, supondo que estavam autorizados para esta tarefa pelo Capítulo XV do Regulamento de 18 de fevereiro de 1763. Como motivo, os comandantes alegavam o fato de os capitães-mores não expedirem oportunamente os recrutas, ou mesmo de enviarem indivíduos inábeis para os regimentos pagos. Para acabar com a controvérsia, a Resolução de 1 de outubro de 1764 esclareceu que Sua Majestade havia autorizado “exclusivamente aos capitães-mores as diligencias de alistarem, sortearem e remeterem as ditas recrutas”, e que, neste ponto, o Regulamento de 18 de fevereiro de 1763 tinha sido revogado.660 Na Capitania de São Paulo, Morgado de Mateus, confirmava a presença das Ordenanças como uma das protagonistas das ações de recrutamento: “por q’ da boa formalid.e das Ordenanças nasce a facilid.e de se entreter e aumentar a força e numero de todos os Corpos Regulares 656. Idem. 657. Idem, p. 86. 658. Idem, p. 87. 659. Idem. 660. “Resolução de 1/11/1764”. In: Colecção das Leis, Alvarás e Decretos, que desde o reinado do Senhor Rei D. José... Op. cit., p. 125-127. 202

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da Milicia”.661 E não eram apenas soldados para as tropas de linha que saíam das listas de Ordenanças, mas também homens destinados a compor as chamadas Companhias de Aventureiros e de Caçadores, formadas exclusivamente para missões específicas e mediante promessa de soldo. A fim de obter informações mais precisas a respeito das forças de que dispunha, para recrutá-las com maior eficiência, Morgado de Mateus determina “compreender na Ordenança todos os habitantes na mesma forma que no reino se pratica”.662 As listas de Ordenanças também eram usadas para a formação das Companhias de Pardos, conforme pode ser visto na ordem do Governador da Capitania de Minas Gerais Luis Antonio de Noronha: “(...) o d.o capitão-mor da V.a do Príncipe entregará as sobreditas listas dos homens Pardos de q’ se devem compor as Comp.a Francas (...)”.663 A escolha do recrutamento de soldados pelo sistema de Ordenanças pareceu ser o método mais eficiente para Coroa, tendo em vista os dois objetivos básicos que pretendia alcançar quando decretou o Alvará de 1764: instituir o levantamento das forças militares sem as “vexações” aos habitantes, “cometendo-se nelles desordens tão contrárias as minhas reais intenções”664 e estabelecer a distribuição proporcional dos recrutas pelos concelhos dos distritos. Pela sua antiguidade e inserção na esfera local, as Ordenanças eram consideradas pelo poder central como a organização mais habilitada para executar as ações do recrutamento local, capaz de realizar este trabalho com eficiência e sem incorrer nas “desordens, e vexações, que outras vezes se tem a este respeito praticado”.665 Além de as Ordenanças estarem espalhadas por todo o território, seus oficiais maiores detinham um grande conhecimento sobre as forças de que dispunham os conselhos. Uma vez acionada essa imensa rede, era possível atingir as diversas e distantes localidades, valendo-se do conhecimento delegado a seus oficiais, os Capitães-Mores, consubstanciado nas listas que deveriam dispor de todos os homens militarmente úteis de sua jurisdi661. Ofício n.o terceiro do Governador Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, 31/7/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 23, Doc. 2.237. 662. Idem.. 663. “Carta no 40, Vila Rica 11/1/1777”, BNRJ. Obras Raras. Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Correspondências Ativas. Minas Gerais, 1776-1779, p. 80 e 81. 664. “Alvará de 24/2/1764’. Op. cit., p. 84. 665. Idem. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ção. Dessa forma, a Coroa podia supor que o recrutamento baseado no sistema de Ordenanças contemplaria todos os concelhos, e que através das listas em posse dos capitães-mores seria efetivada a proporcional contribuição de recrutas em cada um deles. O Alvará de 1764 manteve uma considerável lista de privilégios de isenção ao serviço militar, que correspondiam, de forma geral, aos privilégios já encontrados em períodos anteriores. A lista dos casos de isenção de recrutamento era grande: criados domésticos de fidalgos e ministros que os servissem cotidianamente com ração e salário; estudantes dos colégios e universidades – exclusivamente os que apresentassem aplicação e aproveitamento nas escolas; comerciantes, seus caixeiros e feitores que os ajudassem cotidianamente no negócio; homens marítimos – exclusivamente os assentados nos livros de matrícula; filhos únicos dos lavradores; filhos e criados dos mais consideráveis lavradores; artífices e dois aprendizes, no caso em que os artífices fossem mestres de lojas abertas ou de obras; filhos únicos de viúvas; os tesoureiros da Bula da Cruzada; estanqueiros do tabaco e seus feitores; criados domésticos e outras pessoas empregadas nos contratos da real fazenda. Em todos os casos, procurava-se definir com máxima precisão aqueles que de fato dispunham do privilégio.666 Evidentemente, os privilégios concedidos constituíam um sério limite ao recrutamento de soldados, principalmente porque também recaíam sobre os subordinados dos detentores daqueles mesmos privilégios. Assim, uma considerável parcela passível de ser recrutada estava fora do alcance dos agentes recrutadores. Para entender o aparente paradoxo estabelecido pelo Alvará de 1764, é preciso inseri-lo na dinâmica das negociações e trocas responsáveis por alimentar continuamente o pacto existente entre o poder monárquico e seus vassalos. Nesse sentido, a formação de uma força militar não poderia colidir nem com os interesses dos notáveis locais, nem com os dos artífices, lavradores e comerciantes, que desenvolviam atividades econômicas indispensáveis ao Estado: “a preservação de tais interesses pela Coroa se define como garantia da permanência do pacto, cuja defesa é a própria justificação da existência da força bélica”.667 666. “Alvará de 24/2/1764’. Op. cit., p. 88-99. 667. Costa, Fernando Dores. “Os Métodos efetivos de Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal. Dir. Antonio Manuel Hespanha, v. II, séculos XVI-XVIII. Lisboa: Circulo de Leitores, s/p. (no prelo). 204

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Segundo Fernando Dores Costa, ao reconhecer os privilégios de isenção ao recrutamento no Alvará de 1764, a Coroa estaria justamente protegendo o patrimônio e as atividades produtivas daqueles que já haviam recebido privilégios, para que não ocorresse uma possível desagregação em face de uma retirada de criados, caseiros e outros trabalhadores para as fileiras militares. Dores Costa chama a atenção para o fato de que, o privilégio de isenção do recrutamento militar concedido pela Coroa, é a confirmação dos fundamentos da Monarquia. A ação da administração régia estava limitada pelo reconhecimento da propriedade de seus vassalos, tomada em seu sentido mais amplo, que inclui a posse de bens simbólicos, como os sinais de honra.668 No contexto da dinâmica das negociações que compunham o pacto, ainda existia uma outra dimensão na manutenção do privilégio de isenção do recrutamento militar. Era uma estratégia da Coroa para ganhar a colaboração dos notáveis locais, preservando seus interesses no processo de recrutamento, sobretudo quando esse oferecia a vantagem de poder livrar as comunidades locais da “opressão” exercida pelos ociosos. Assim, quando o Alvará define o âmbito da isenção dos artífices, aponta um dos alvos preferenciais do recrutamento ao excluir da isenção os que houvessem “prevaricado”, abandonando as atividades profissionais “para viverem como vadios na ociosidade, porque neste caso deverão ser não só sorteados, mas preferidos aos mais para se recrutarem sem a dependência de sortes”.669 Essa perspectiva seria confirmada no Alvará de 15 de outubro de 1764, que versava sobre o uso do casamento como motivo para se escapar ao alistamento nos regimentos pagos. Neste alvará, há uma breve referência aos resultados obtidos pelo anterior: com tanto maior benefício dos Povos, que delles vem a sahir somente aquelles mancebos desocupados, que aos sobreditos Povos servem de opressão, e a si mesmos de prejuizo, com o ocio, e com a preguiça, que costumão precipiar em absurdos a mocidade.670

668. Idem. 669. “Alvará de 24/2/1764’. Op. cit., p. 89. 670. “Alvará de 15/11/1764”. In: Colecção das Leis, Alvarás e Decretos, que desde o reinado do Senhor Rei D. José... Op. cit., p. 127. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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É preciso observar que o propósito do Alvará, ao delimitar com rigor e clareza o número e a qualidade daqueles que teriam o privilégio de isenção, não era restringir o âmbito dos recrutáveis exclusivamente aos ociosos. Entretanto, é possível afirmar que os limites impostos pela comunidade local ao recrutamento militar foram mais amplos do que aqueles determinados pelo governo central. Na prática, uma parcela importante da população masculina em idade marcial – que não contava com o privilégio da isenção – manteve-se fora do alcance da administração régia. Em outros termos: aqueles que participavam das redes de conveniências e proteções ultrapassavam, e em muito, os limites definidos pelo Alvará de 24 de fevereiro de 1764. O que provocou tanto um uso alargado do privilégio de isenção, quanto uma difusão da prática do acoitamento de indivíduos recrutáveis e de desertores. Os desvios efetuados nas listas das ordenanças pelos capitãesmores são notórios. O governador da Capitania de São Paulo Morgado de Mateus revelou ter composto uma Companhia de Caçadores com “a melhor gente, que ficou pelos Destritos, por ser aquella que os capitãesmores, officiais da ordenança disfarçarão na occazião, em que se fizeram as Recrutas para o Regimento pago”.671 Luiz Antonio de Noronha, Governador das Minas, expressou claramente suas desconfianças com relação aos recrutamentos feitos pelos capitães-mores. Quando mandou um sargento-mor de Auxiliares comunicar ao capitão-mor da vila do Príncipe a ordem para que este alistasse o maior número de “mulatoz que lhe fosse posivel formando-os em diferentes companhias”, ao mesmo tempo o governador advertiu ao sargento-mor: “vigie sobre o cuidado com que o Cap.am Mor executa esta m.ma ordem, e da froxidão que encontrar nela me dará logo parte pa eu proceder como me parecer justo”.672 Outros aspectos das irregularidades praticadas a partir dessas listas são relatados no livro Capitão de Infantaria Portuguez, de André Ribeiro Coutinho, comandante de um dos Regimentos do Rio de Janeiro:

671. “Instruções de Morgado de Mateus para Martim Lopes Lobo de Saldanha, 21/1/1775”, BNL. Reservados. Cod. 4.530, item 22, p. 56. 672. “Carta no 40, Vila Rica 11/1/1777”, BNRJ. Obras Raras. Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Correspondências Ativas. Minas Gerais, 1776-1779, p. 80 e 81. 206

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Ordinariamente se dificulta a entrega destas listas em ordem a que como nestas occasiões [do recrutamento] os privilegios são mais pretendidos; as pessoas que os dão, cuidão em os vender mais caros; e em lhe ficar porta franca para tirarem huns, e meterem outros, que he o mesmo, que livrar de Soldados aos que o devião ser (...).673

A ordem enviada pelo Vice-Rei Marquês do Lavradio ao Capitão Inácio José, em 1772, mostra que os próprios agentes locais da Capitania do Rio de Janeiro estavam envolvidos na proteção de fugitivos: “passará Vm.ce a freguesia de S. João Marcos aonde prenderá ao Sargento da Ordenança Francisco Vidal da Companhia do Capitão Manoel Machado, e o cabo e soldado, que em caminho deixarão fugir o dezertor.”674 Dois efeitos esperados pelo poder central, a partir do recrutamento feito pelo sistema de listas das Ordenanças, estabelecido no Alvará de 1764, eram consolidar as novas diretrizes militares e garantir uma maior eficácia no processo de recrutamento. Entretanto, outros efeitos foram simultaneamente ativados, sobretudo em relação à conduta de oficiais de alta patente das ordenanças, diretamente envolvidos nos recrutamentos. Ora, mais que quaisquer outras, essas forças corporificavam um poder organizado de acordo com uma lógica estritamente localista, identificada com uma concepção corporativa da sociedade e do poder político. Detentoras de grande poder sobre as comunidades, elas estavam socialmente comprometidas por uma densa rede de relações pessoais, de solidariedades estamentais e de clientelismos; dessa forma, as forças representadas pelos oficiais de alta patente das Ordenanças eram potencialmente resistentes às exigências da administração central, um possível e sério obstáculo ao recrutamento. O uso do poder conferido aos capitães-mores para “fazer soldados”, através do recrutamento pelo sistema de ordenanças, foi sintetizado nas palavras de Romero de Magalhães: “Fazer soldados, poder tremendo! Não os fazer, maior ainda”.675 A ação efetiva das Ordenanças 673. Coutinho, André Ribeiro. Capitão de Infantaria Portuguez, op. cit., p. 163. 674. “Carta do Marquês do Lavradio ao Cap.am Ignacio Joze Cherem, RJ, 18/2/1772” ANRJ. Correspondências dos Vice-Reis com diversas Autoridades. Cod. 70, v. 7, p. 45. 675. Magalhães, Joaquim Romero. O Algarve Econômico. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 338. Apud Costa, Fernando Dores. “Os Problemas do Recrutamento Militar no final do século XVIII e as Questões da construção do Estado e da nação”. Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, v. XXX, 1995, p. 121. CAPÍTULO 5 – AS DEBILIDADES E AS ADAPTAÇÕES DO PODER CENTRAL Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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tornou-se, segundo Fernando Dores Costa, “um elemento crucial na produção de clientelas”.676 Entretanto, apenas sete meses após a publicação do Alvará de 1764 sobre a nova forma de efetuar o recrutamento, lançara-se um outro Alvará, datado de 6 de setembro de 1765677 no qual severas penalidades eram impostas para aqueles que ajudassem soldados em fuga. Essa nova lei estabelecia várias punições, determinando, por exemplo, que aqueles que asilassem, ou apenas recebessem o serviço, de algum desertor estariam obrigados a pagar multa de duzentos mil réis no caso da primeira ocorrência, e de quatrocentos no da segunda. No caso de uma terceira, perderiam “os bens da Coroa e Ordens que tivessem (...)”.678 Se fossem eclesiásticos e prelados dos conventos, no primeiro e segundo casos, seriam exilados para, respectivamente, 40 e 60 léguas do lugar em que se desse o asilo; em um terceiro caso, seriam desnaturalizados dos reinos e domínios. Assim, o Alvará de 1765 evidenciava, como afirma Dores Costa, “o esperado perfil social dos protetores dos desertores”.679 Realçar os limites de ação do Absolutismo português em sua Colônia, traz, ao mesmo tempo, a clara percepção da presença, da força e das estratégias específicas de uma sociedade cunhada fundamentalmente nos modelos de organização corporativos, como era, em sua escala local, a sociedade colonial. Através daqueles limites, é possível percorrer os diversos caminhos dessa estratégia corporativista, orientada no sentido de defender os interesses regionais ou locais, diante das novas diretrizes de organização e de defesa militar determinadas pela Coroa a partir da segunda metade do século XVIII.

676. Costa, Fernando Dores. “Os problemas do Recrutamento Militar...” Op. cit., p. 141. 677. “Alvará de 6/9/1765”. In: Colecção das Leis, Alvarás e Decretos, que desde o reinado do Senhor Rei D. José... Op. cit., p. 129-130. 678. Idem,p. 129. 679. Costa, Fernando Dores. “Os Métodos efetivos de Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal. Op. cit., s/p. (no prelo). 208

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CAPÍTULO 6 A Capitania de Minas e a Dinâmica do Bem Comum

6.1. A Arregimentação Militar e seus Vários Alvos Algumas circunstâncias, possivelmente caracterizáveis como extremas, tornaram necessário o levantamento de maiores contingentes para as fileiras militares em defesa do Estado do Brasil. A intensificação do recrutamento criou momentos críticos e delicados para os governadores das Capitanias: eles sabiam que as exigências impostas para a conservação do Estado poderiam atingir os interesses daqueles que, pelos privilégios então em vigência, tinham sido preservados do ônus direto da guerra. Essa situação foi uma decorrência do agravamento das tensões hispano-portuguesas nas regiões limítrofes sulinas. Através da Carta régia de 23 de março de 1765, a Coroa viu-se obrigada a exigir que se alistassem, “sem exceção (...), nobres, brancos, mestiços, pretos, ingenuos, e libertos”,680 enfim, todos os homens válidos para o cumprimento do serviço militar, formando assim o maior contingente possível de Corpos de Auxiliares e de Ordenanças. Nesse sentido, detenhamo-nos em um específico documento da Capitania de Minas Gerais. Uma carta de Luís Diogo Lobo da Silva e dirigida a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, e que, em seu bojo, trazia vários outros documentos em anexo, é capaz de traçar tanto o percurso quanto os motivos das tensões produzidas em decorrência das novas circunstâncias da mobilização bélica. Para cumprir as determinações 680. “Edital para se alistarem todos os moradores das terras da jurisdição desta Capitania, sem excepção de Nobres, Plebeus, Mistiços, Pretos, Ingenuos, e Libertos e formar dos mesmos Terços de Auxiliares, e Ordenanças, assim de Cavallaria, como Infantaria’. ANRJ, RJ, Cod. 73, v. 1, fl. 143. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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régias, o Governador de Minas Gerais, Luiz Diogo Lobo da Silva, envia, em 25 de fevereiro de 1766, uma carta circular aos capitães-mores da Capitania, contendo várias exigências julgadas essenciais para que as Tropas de Ordenanças e de Auxiliares estivessem prontas, na “contingencia de se fazer perciza expedição de tropas p.a marchar q.do e p.a onde necessario fosse por bem do Real Serviço de S.Mage”.681 Dentre os vários segmentos sociais da comunidade local sujeitos às determinações do governador, a “plebe”, caracterizada por Luiz Diogo da Silva como destituída “do pundonor, brio e natural interesse que a todos obriga a concorrerem p.a a defeza da Patria”.682 Destes o comportamento obviamente presumível era o de se retirarem dos seus distritos, “buscando partes distantes, matos e esconderigios, que se ocultem”.683 Entretanto, pelas medidas preventivas tomadas pelo Governador, fica evidente que a “plebe”, além de se esconder nos “matos” e “partes distantes” com relativa “facelidade por trazerem consigo todo o seu cabedal”,684 também dispunha de outros meios para escapar das tarefas militares: a “plebe” contava com a ajuda de setores que se encontravam nas mais altas posições da hierarquia social e econômica. Com o intuito de impedir as várias formas de fuga ao recrutamento, o governador ordenou que os capitães-mores comunicassem aos capitães das companhias e seus subalternos que todos os habitantes estavam proibidos de sair dos distritos de suas residências sem a devida apresentação de licença685 “por escripto minha, de Vm.ce, sargento-mor ou capitão”.686 A punição para os fugitivos seria a prisão; para os desertores, o castigo; oficiais envolvidos com a fuga perderiam seus postos, e 681. “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36.(anexo) 682. Idem. 683. Idem. 684. Idem. 685. A exigência de bilhetes de licença, também denominados de passaporte, aos moradores que fossem sair de seu distrito, era um recurso usado nas Capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro, sendo utilizada como medida de prevenção contra as constantes fugas decorrentes dos recrutamentos militares. Um exemplo dessa prática está na carta do vice-rei ao Mestre de Campo João José de Barros de 8/8/1772: “Recomendo-lhe novamente continue, não só em fazer prender a todos os Dezertores que forem achados no seo Destrictos, mas tão bem a todas as pessoas desconhecidas, e q’ se acharem sem Passaportes, dando-se efectivas buscas p.a este efeito em todos os portos, estradas e atalhos e ainda na Casas Suspeitas (...)”, ANRJ. Correspondências dos Vice-Reis com diversas Autoridades, Cod. 70, v. 7, p. 91. 686. “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36. 210

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ainda passariam pela humilhação de ficar “sugeito a servir como ultimo soldado da companhia em que tinha praça”.687 Aqueles que além de pertencerem às altas patentes nos Corpos de Ordenanças também eram “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração”, receberiam punição dupla no caso de dar “abrigo ou o concentir em sua caza”688 os fugitivos. Por um lado, perderiam o posto militar; por outro, seriam multados conforme estabelecia o Alvará de 6 de setembro de 1765, que determinava o pagamento de 200 e 400 mil reis, respectivamente, na primeira e segunda vez que acolhessem fugitivos, mesmo que mediante a contratação de seus serviços. Os eclesiásticos também não foram esquecidos das devidas penalidades, e sofreriam as mesmas punições determinadas pelo Alvará de 1765: pela primeira ocorrência seriam “exterminados para quarenta legoas fora do lugar da sua assistencia, pela segunda da secenta e pela 3 v.z desnaturalizados dos dominios de Sua Magestade Fidelissima”.689 Com a perspectiva anunciada pelo próprio governador da muito provável necessidade de “expedição” dos Corpos de Ordenanças e de Auxiliares para o lugar onde fosse preciso, os roceiros e mineiros estavam na mira da arregimentação militar. Luiz Diogo da Silva não admitia “que alguns com o pretexto de grandes fabricas se queirão eximir” da “marcha p.a o Real Serviço”, a não ser estritamente no caso de que “sugeitem a dar outros em seu lugar montados, armados, fardados, e pagos a sua custa”.690 Contundente, o governador afirmava “não ser justo que logrando as vantagens dos bens de que se valem por pretexto, para se excuzar da reciproca obrigação que todos temos de defeza do Estado, fiquem por ellas de melhor condição, que o mizeravel”.691 Luiz Diogo ainda ordenou aos capitães-mores uma missão extremamente delicada, disposta sem a necessária prudência exigida pelo assunto. Ele determinou a retirada de um quinto dos escravos que houvesse nas jurisdições de cada capitão-mor, “sem excepção dos occupados em lavouras, rossas, ou particulares serviços”. No entanto, advertia que só deveriam ser escolhidos aqueles “de melhor saude e robustos”,692 e 687. Idem. 688. Idem. 689. Idem. 690. Idem. 691. Idem. 692. Idem. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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que os respectivos senhores teriam a obrigação de equipá-los com armas de fogo ou, pelo menos, de um dardo “com ferro e ponta de dous cortes”.693 Tentando evitar a possível fuga desses escravos, o governador prometia recompensas aos que se distinguissem na defesa do Estado: “não só se adientará nos empregos da Milicia, mas consiguirá em premio a liberdade”.694 As ordens estavam de acordo com o plano militar traçado nas Instruções Régias, que previa a utilização de negros e pardos, vistos como forças irregulares, mas estrategicamente importantes, jamais devendo ser desprezadas na guerra contra os espanhóis. A Coroa reconhecia a já presente tradição de emprego dos negros e das Ordenanças nas guerras, exemplificada pelo uso dessas forças na reação às tentativas de ocupação holandesa no Nordeste: na Bahia, em 1624, que teve fim no ano seguinte; em Pernambuco, em 1630; e nas batalhas dos Guararapes, em 1648 e 1649, com a capitulação holandesa em 1654.695 As batalhas dos Guararapes foram travadas por forças constituídas por brancos, negros, índios e mestiços, que eram basicamente organizadas de acordo com o modelo português da década de 1640: em tropas de linha (regulares) e Companhias de Ordenanças. O método marcial dessas forças adquirira características bastante diversas e peculiares, inexistentes nos conflitos europeus. Devido a esses diversos processos de combate de seus grupamentos com soldados de diferentes origens, foi denominada pelos contemporâneos das invasões holandesas de “guerra brasílica”.696 C. R. Boxer observa que “a vitória no Brasil, onde as decisivas batalhas dos Guararapes, em 1648 e 1649, 693. Idem. 694. Idem. 695. Para maiores detalhes sobre as invasões holandesas e as batalhas dos Guararapes, ver: Arno Wehling, “Padrões Europeus e Conflitos Coloniais – A Questão da Guerra Brasílica”. In: Actas do XXIV Congresso Internacional de História Militar. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 1998; Evaldo Cabral de Melo, Olinda Restaurada. São Paulo: Edusp, 1975, do mesmo autor, Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; José Miralles. “História Militar do Brasil – Desde o ano de 1549 em que teve principio a fundação da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos até o de 1762”. In: Anais da Biblioteca Nacional, v. XXII. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1900; Frei Manoel Calado, O Valeroso Lucideno. São Paulo: Edusp, 1945, v. I; Pierre Moreau e Roulox Baro. História das Últimas Lutas no Brasil entre holandeses e portugueses, SP, EDUSP, 1979; Francisco Adolfo de Varnhagen. História das Lutas com os holandeses no Brasil. Salvador: Progresso, 1955; Carlos Selvagem. Portugal Militar. Lisboa: Casa da Moeda, 1994; Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Brasília: UNB, 1963. 696. Wehling, Arno. “Padrões Europeus e Conflitos Coloniais...” Op. cit., p. 355 e 356. 212

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foram ganhas por homens habituados ao sol tropical e experimentados na guerra de emboscadas contra homens que tinham aprendido seu ofício nos mais frios e mais formais campos de batalha de Flandres e da Alemanha”.697 A Coroa portuguesa sustentava o então atual valor dessa estratégia, atestando que “com negros, e Ordenanças forão lançados fora de Pernambuco e Bahia e outras terras deste continente os Holandeses”.698 A legitimidade da tradição se via reforçada pela necessidade de utilização desse contingente adicional, que além de contribuir com suas próprias táticas de combate desconhecidas dos espanhóis, representavam um aumento significativo da força militar mobilizável:“o numero destes [negros] hé tão desproporcionadam.te superior, ao que pode ser transportado pelas ditas Naçoens [Espanha e França], que sem fatalidade, não será possivel que possão resistir”699. Em obediência às Instruções Régias, negros e pardos eram alistados para formar Companhias nas Capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O governador de São Paulo Morgado de Mateus comunicou em ofício ao Conde de Oeiras que já havia levantado na vila de Santos duas Companhias de mulatos e uma de pretos armados, e prometia fazer o mesmo nas outras vilas.700 Em uma das inúmeras cartas patentes lançadas nesse período de intenso recrutamento da população masculina militarmente útil, o Vice-Rei Conde de Azambuja afirma ter levantado oito Companhias de Auxiliares formadas por homens pardos libertos na cidade do Rio de Janeiro: “(...) tendo-se levantado nesta Cidade oito Companhias de Auxiliares dos Homens Pardos Libertos (...)”.701 Quanto à arregimentação dos pretos cativos nas Minas, fortemente inspirada no exemplo histórico da célebre participação deles na restauração da Bahia e de Pernambuco, o Governador prometia, como

697. Boxer, C. R. Savador Correia de Sá... Op. cit., p. 130. 698. “Ofício do Vice-Rei, Conde da Cunha ao Conde de Oeiras, RJ, 30/6/1765” AHU, RJ, Avulsos, Cx. 81, Doc. 60. 699. Idem. 700. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, S.P,4/11/1765”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 24, Doc. 2.265. 701. “Carta Patente concedida pelo Vice-Rei Conde de Azambuja em 6/10/1768”, AHU, RJ, Avulsos, Cx. 101, Doc. 25. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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já visto, um posto adiantado na “milícia” e a liberdade702 a todos os que fizessem “acção glorioza em deffeza da Patria”. A carta circular enviada aos capitães-mores pelo Governador de Minas definia as obrigações consideradas primordiais naquele momento. Porém, como o governador sabia que a elite local e os oficiais militares, não eram meros instrumentos passivos ante a vontade dos governadores, ele previa as possíveis reações e determinava as punições para os que descumprissem suas ordens. Certamente, o governador julgava que as penas prescritas seriam suficientes para eliminar qualquer obstáculo à efetivação das diretrizes régias; mas parece que ele não considerou devidamente a dimensão das exigências feitas. A grave intromissão no patrimônio das elites gerou uma forte resistência à militarização, demonstrando que a sociedade local detinha um poder talvez inesperado, e que se manifestou por caminhos imprevistos e perigosos.

6.2. A Cooperação Militar Condicionada As exigências militares feitas pelo Governador de Minas Gerais Luiz Diogo da Silva para atender o recrutamento militar, expressas na Carta Régia de 23 de março de 1765, geraram a reação dos poderes locais – o Corpo das Ordenanças e a Câmara Municipal. As resistências se evidenciaram logo após o envio da carta circular aos capitães-mores da capitania com as determinações do governador sobre a expedição dos Corpos de Ordenanças e a arregimentação de negros cativos. As exigências de recrutamento militar para a expedição em defesa dos reais domínios atingiam diretamente dois pilares fundamentais para o funcionamento dos patrimônios pertencentes àqueles definidos no documento703 como “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração” – os senhores e seus escravos. A principal justificativa utilizada pelo governador para convencer roceiros e mineiros da necessária colaboração na expedição militar, nos termos então exigidos, era a defesa de seus próprios bens: “não haverá rosseiro que refletindo ser indispensável o sobredito meio p.a continuarem na posse e logro das suas 702. “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36. 703. “Cópia da Carta Circular aos Cap.ns Mores de Luiz Diogo da Silva” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36. 214

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Fazendas, escravatura, e mais haveres, que possuem”.704 Mais adiante, ao advertir sobre os eventuais perigos no caso de os espanhóis virem a dominar a América portuguesa, Luiz Diogo utiliza metáforas tão expressivas quanto sugestivas, prevendo uma situação ainda pior para os lesados: “passarão da liberdade que gozão a ignominioza escravidão, em q’ lhes será menos custoza a perda da propria vida, familia e referidos fundos”.705 Os “Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração” sabiam que, colaborando ou resistindo às exigências militares, viriam a perder. Se, com a intenção de manter seus patrimônios, dificultassem a tarefa do governador na defesa do Estado, poderiam acabar “na irremediavel perdição de tudo”.706 Se satisfizessem as providências por ele determinadas para a organização militar da expedição, a fim “de rebater, utilizar, e destruir qualq.er nação Inimiga q’ nos intente envadir”,707 também assim sofreriam perdas em seus patrimônios, que, na verdade, eram o tema principal das representações feitas pelos capitães-mores ao Governador Luiz Diogo da Silva. A única – e infeliz – certeza deles era a de que, de qualquer forma, teriam algum tipo de prejuízo. Apesar de os Corpos de Ordenanças não estarem obrigados ao socorro das fronteiras, com exceção dos casos de notório perigo,708 o governador determinou providências precisas para a expedição desses Corpos, quando eles fossem necessários. Diante dessa exigência, um capitão-mor relatou ao governador os graves prejuízos implicados nessa mobilização, começando por apontar para o grande perigo que seria os escravos ficarem sem a supervisão de seus senhores quando “sahir Ordenanças dela em defeza de outro paiz, largando o em que habitão e suas mulheres, e filhas em poder de escravos gente tão barbara e infiel”.709

704. Idem. 705. Idem. 706. Idem. 707. Idem. 708. Alvará de 13/3/1646: “Hei por bem e mando que nenhum Governador das Armas ou qualquer outro Ministro de Guerra ou Justiça de meus Reinos obrigue a ir às Fronteiras a gente das Ordenanças, salvo em um caso de notório perigo, invasão e acometimento grande do inimigo, que conhecidamente se não possa rebater com soldados pagos e auxiliares (...)”. In: José Justino de Andrade e Silva. Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa. Lisboa: Imprensa de F. X. de Sousa, 1856, p. 313. 709. “Carta do Capitão-Mor da Comarca Paulo Carneiro Vilar para o Governador de Minas Gerais, Vila Nova da Rainha, 13/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36 (anexo) CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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A própria hierarquia social estaria em risco na ausência dos senhores; sem a autoridade deles havia a possibilidade de os escravos se arvorarem a agir como senhores. Essa possibilidade era evidente a ponto de o capitão-mor afirmar que só com a noticia destes preparos e de que hão de sahir de Minas brancos e pardos de que tem este gentio algum temor; Ja se atrevem a dizer que lhes ficão muitas mulheres brancas para se cazarem e este atrevimento he horrorozo.710

A exigência do quinto dos escravos para a dita expedição também podia provocar perdas importantes no patrimônio dos roceiros e mineiros. Havia a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de conservar os escravos na marcha, sem que fugissem pelos matos ou passassem aos arraiais inimigos, já “que a ambição da liberdade e pouca concideração os rezolverá a excutarem o que por muitas vezes tem intentado”.711 Ameaça ainda maior, mas inevitável pelas circunstâncias, vinha da necessidade de fornecer armas aos escravos, porque só assim poderiam destruir os inimigos externos. Indignados diante de tal ordem, os senhores de escravos, através do capitão-mor, que exercia o papel de seu porta-voz, notificam ao governador a posição final que assumem: “não nomeão nem armão inimigos dentro de suas cazas”.712 A desobediência às ordens militares fica ainda mais evidente quando o capitão-mor, após receber as listas dos homens que deveriam formar os Terços, informa ao governador que elas estavam “tão diminutas e de homens incapazes”;713 e também quando os capitães, ao requisitarem a lista do número de escravos, constatam que os “Snrs´ delles não querem dar o Rol”.714 Embora o governador houvesse determinado aos capitães-mores e seus capitães que coibissem, e mesmo proibissem, toda e qualquer saída dos limites dos distritos sem a devida apresentação do bilhete de licença, a fim de impedir as fugas ao recrutamento, pode-se constatar, pela apreciação do capitão-mor, que as fugas continuavam a ocorrer com todo o vigor, fosse pela ineficiência da medida 710. Idem. 711. Idem. 712. Idem. 713. Idem. 714. Idem. 216

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propriamente dita, fosse pela passiva resistência dos oficiais às ordem recebidas: “vão-se refugiando alguns brancos mossos e pardos e só deixão de o fazer os q’ tem impedimento de familias ou fazenda e ainda muitos destes estão athé ver para onde se encaminhão estes preparos”. O capitão-mor chega a assumir sua incapacidade para cumprir as medidas exigidas pelo governador: “Em fim Ex.mo Snr´ como couza nova neste paiz todos andão admirados e confuzos e não me sei rezolver para dar inteiro cumprimento as Ordens”.715 Com base nos mesmos argumentos apresentados pelos capitãesmores, algumas das Câmaras Municipais de Minas também se manifestaram, através de representações, contrárias ao método utilizado pelo Governador Luiz Diogo da Silva para o recrutamento das Tropas. Afinal, os interesses sociais e econômicos daqueles Senhores Oficiais das Ordenanças coincidiam com os das Câmaras, e todos tinham o mesmo temor: “que Deus não permita que seja precizo a VaExa retrosseder a marxa; para vir restaurar os Povos do cativeiro dos mesmos negros, q’ trarão consequencias mais lamentaveis”.716 A resistência às medidas determinadas pelo governador iria assumir dimensões ainda mais perigosas, considerando-se os efeitos que poderia produzir nos “animos dos Povos”: o estímulo à repugnância das “Tropas a devida Obediencia”.717 As vozes mais expressivas dessa resistência eram as dos Oficiais de Ordenanças e das Câmaras, que se manifestavam em representações dirigidas ao Governador de Minas Gerais. Vozes que se multiplicaram e alastraram pela Capitania, alcançaram São Paulo, e pela repercussão que geraram, passaram a ser qualificadas pelos governantes como “vozes horrorosas, escandalosas e sidiciozas”.718 Em ofício ao Conde de Oeiras, o Governador Morgado de Mateus informa sobre a cópia de uma carta vinda de Minas, que andava circulando na Capitania de São Paulo, com conteúdo que poderia provocar graves danos ao serviço real, porque estava escrita “em termos extraordinarios, e sidiciozos, cheia de espirito de revolta, contrario a execução das

715. Idem. 716. “Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36 (anexo). 717. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 21/6/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, Doc. 2.409. 718. “Carta de Luiz Diogo da Silva para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Vila Rica, 4/9/1766” AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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ordens de S.Mag.e”.719 O governador também considerava que além de inconvenientes internos, havia a possibilidade de que passando as mesmas copias ás mãos dos inimigos, por ellas conjecturassem o nosso interior embaraço, e as deficuldades que teriamos em fazer marchar o nosso Exercito, perdendo desta sorte o temor, e animando-se facilmente a tomarem a resolução de nos crirem atacar.720

Portanto, a fim de impedir as graves consequências que poderiam acontecer, o governador ordenou o recolhimento das cópias dessas cartas,721 mediante anúncio público datado de 21 de junho de 1766: Mando que toda a pessoa que tiver as ditas copias dentro em tres horas de tempo logo em continente, depois da publicação desta, as mande entregar na Secretaria deste Governo (...).722

E ainda: toda a pessoa que ouzar mandar a dita copia para Dominios Estrangeiros, será preza em ferroz, confiscados seus bens, e metido em segredo como Rebelde á Coroa Portuguesa, e como tal remetido para as cadeias do Limoeiro da Corte de Lisboa (...).723

Segundo Morgado de Mateus, a medida alcançou seu objetivo, com a apreensão de todas as cópias, evitando assim que chegassem às mão dos inimigos. Os oficiais de ordenanças e os das Câmaras foram acusados de não interpretar corretamente o ponto de vista da “conservação dos Reais Dominios”724 e de não “animar os povos para tão justo e necessario 719. “Oficio de Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, SP, 11/12/1766”, AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, Doc. 2.409. 720. Idem. 721. O conteúdo das cartas encontra-se nas citações 759 até 766. 722. Idem (anexo). 723. Idem. 724. “Bando lançado pelo Governador de Minas Gerais, 26/4/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, Doc. 36 (anexo). 218

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fim”. Para o governo, eles ficavam conjecturando “duvidas impeditivas das prevenções que podem não admitir demora pelo irreparavel prejuizo que dela pode seguir-se”725 em vez de “executarem os sobreditos com o zelo q’ se devia esperar da honra com q’ sempre se destinguirão os povos de Minas como fieis vassalos do mesmo Senhor”.726 Contudo, a mesma “conservação dos Reais Dominios” era uma ameaça ao patrimônio das elites locais. Dessa forma, não é de se estranhar que o mesmo indivíduo que tem sua posição social reforçada por meio de um posto militar que lhe confere honras e privilégios, tente “impedir os meios dispostos para a Expedição”727 para escapar da ameaça da perda de seu patrimônio.728 Apesar das severas censuras ao comportamento dos oficiais de ordenanças e das Câmaras, é perceptível uma significativa mudança no discurso do governador, demonstrada no anúncio público lançado em Minas Gerais por Luiz Diogo da Silva em 26 de abril de 1766. Ao dispor suas ordens militares, com definidos limites de alcance, ele aponta para um efetivo reconhecimento dos patrimônios em questão, mudando a atitude sustentada na carta circular de 25 de fevereiro de 1766, enviada aos capitães-mores. Os resultados provocados pela circular o impeliram a reconsiderar não só o tom de seu discurso, que ganhou em prudência e cautela, como seu teor, ao estabelecer as suas exigências. Essas alterações, claramente sine qua non, transformaram-se em seu “salvo-conduto” para angariar a necessária colaboração militar de determinados setores da comunidade local. Vários pontos expostos no anúncio público de 26 de abril de 1766 não constavam na carta circular enviada aos capitães-mores em 25 de fevereiro do mesmo ano. Com relação à escolha do quinto dos escravos, o governador afirmava no Bando: (...) ficando na inteligencia os Senhores dos ditos escravos que o 5º destes ha de ser da sua eleição para que possão rezervar os que mais convenientes lhes foram para o trabalho das suas lavouras, e lavras.729 725. Idem. 726. Idem. 727. Idem. 728. Costa, Fernando Dores. “Os Métodos efetivos de Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal. Op. cit., s/p. (no prelo) 729. Idem. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Portanto, havia o reconhecimento de que o poder de escolha pertencia aos Senhores, medida necessária para a preservação de seus patrimônios. Quanto à liberdade que prometera àqueles escravos que se distinguissem em suas ações de combate, agora ela só seria concedida “sem prejuizo de seus senhores que serão satisfeitos do seu justo valor pela Real Fazenda da mesma sorte que para com os que morrerem na expedição”. Até no caso de alguns senhores quererem “livrar o 5º dos seus escravos” seria possível, desde que eles aceitassem “concorrer com quantia proporcionada”.730 O anúncio ainda reconhece os privilégios de isenção ao recrutamento, já dispostos no Alvará de 24 de fevereiro de 1764: todo o Feitor que necessario for a cada hum dos Lavradores de Fabricas tanto de Rossas como de mineração ou Caixeiro ou Cobrador de homens de negocio grosso e condutores de mantimentos serão izentos dos terços (...).731

Ao contrário do que fizera anteriormente, o governador mostrase bastante prudente em relação ao alistamento de mineiros e roceiros para a expedição militar. Pesando a importância de suas presenças na administração de seus patrimônios, ele ponderou: para que assim experimentem menor incomodo, e não sintão as suas familias, e cazas a falta da sua pessoal assistencia, aqueles Mineiros, e Rosseiros (...) q’ sem legitima cauza não podem ser escuzos poderão dar per si pessoa capaz que supra a sua falta.732

Não há outras exigências, nem as ameaças proferidas na circular. Em Representação de 27 de outubro de 1766 ao Rei D. José I, os oficiais da Câmara de Vila Rica reconheceram a “moderação” das exigências anteriormente apresentadas, em que o “Governador e capitão-general, em tudo prudente soube dar-lhes”.733 Apesar disso, a representação termina-

730. Idem. 731. Idem. 732. Idem. 733. “Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o Rei, 27/10/1766”, AHU, MG, Avulsos, Cx. 89, Doc. 32. 220

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va expressando claramente uma atitude de precaução contra a temida expedição para as fronteiras do Sul: No justo receio de que se faça preciza a sobredita expedição; representamos a V. Magde quanto emporta aos Reaes interesses conservar intactas as Fabricas, Lavouras, e moradores destas Minas, por serem o Coração da America Portuguesa, donde não podem sahir corpos melitares em socorro de fronteira alguma, que não seja a Praça do Rio de Janeiro, para que estão dispostos, sendo V. Magde servido dar-lhe as providencias necessarias.734

Longe de uma passividade que as deixasse sempre de acordo com as ordens superiores, as elites locais, alocadas nos Corpos de Ordenanças e nas Câmaras Municipais, criaram uma resistência que demonstra o poder de que dispunham, a extensão de sua influência, e a possibilidade de interferir no que julgassem necessário – fosse a favor ou contra as exigências feitas a elas. Dessa forma, as resistências oferecidas pelas elites locais às determinações do governador, e as correspondentes reivindicações por elas defendidas, estavam inscritas no âmbito do pacto735 – isto é, na relação bilateral de troca entre o compromisso de fiel obediência dos súditos, e a proteção e manutenção das suas propriedades e privilégios. Ora, as exigências iniciais feitas pelo Governador de Minas negligenciavam por completo a necessária deferência, que deveria estar intrínseca, ao patrimônio dessas elites. Ao atingir de forma prejudicial esse patrimônio, as exigências tocavam em um ponto crucial da dinâmica do pacto, uma vez que “esse pacto implica que o poder exercido em nome do

734. Idem. 735. É exatamente o pacto estabelecido entre o rei e seus súditos que distingue as monarquias dos regimes despóticos: “uma tal distinção é crucial para a construção da legitimidade das monarquias: sob os despotismos, não há estatutos certos, perduráveis e transmissíveis e todos estão nivelados pela condição de escravos, mesmo aqueles que momentaneamente ganham riquezas e prestígio. Nas monarquias, o Rei, ao contrário do déspota, está limitado pelo reconhecimento da propriedade, tomada em sentido amplo (...). Costa, Fernando Dores. “Os Métodos efetivos de Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal, Op. cit., s/p. (no prelo). Sobre esse assunto, ver, entre outros: José Antonio Maravall “A função do direito privado e da propriedade como limite do poder de Estado”. In: Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Org. Antonio Manoel Hespanha, Lisboa, Fundação Caloustre Gulbenkian, 1982, p. 233-147. Antonio Manoel Hespanha. “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”. In Poder e Instituições... Op. cit, p. 59-62. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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rei não pode por em causa o estatuto de seus vassalos e, que, pelo contrário, se define como garantia da sua permanência”.736 As ações de recrutamento militar constituíram, sem dúvida, um momento crítico para a demonstração da possibilidade de se fazerem exigências sem que se subvertessem os referidos patrimônios e estatutos.737 As ordens impostas pela Coroa para a “conservação dos seus reais domínios”738 tinham um caráter geral, e para seu devido cumprimento – isto é, efetivar o recrutamento militar preservando patrimônios e estatutos da ação destrutiva que poderiam sofrer –, deveriam receber as necessárias adaptações dos governadores das capitanias. Desconsiderar esse princípio, prescindindo do apoio das elites locais, transformando-as em forças adversas à efetivação das ordens régias, levaria o governo a uma situação insustentável, com uma incumbência praticamente impossível. Não foi por outro motivo que o Governador de Minas, tendo em vista o respeito ao patrimônio dessas elites, alterou suas exigências iniciais, submetendo-se à necessidade de negociar para ter a indispensável colaboração dos centros de poder local para o cumprimento das ordens régias.

6.3. O Ouro e os Domínios A leitura das correspondências, passivas e ativas, do então Governador-General D. Antonio de Noronha, que governou as Minas no período de 1775 a 1779, revela as grandes tensões pelas quais passava aquela Capitania. Se considerarmos sua localização geográfica, no interior do Estado do Brasil, é possível perceber que Minas Gerais sofria inúmeras pressões em suas diversas fronteiras geográficas, políticas, econômicas e sociais. A indefinição da fronteira com a Capitania de São Paulo, e a consequente controvérsia sobre os limites de jurisdição de um e outro governo, foi motivo de atrito entre o Capitão-General D. Antonio de Noronha e seu colega Lopes Lobo, de São Paulo. Indignado, o Governador de Minas escreveu: 736. Costa, Fernando Dores, “Os Métodos efetivos de Recrutamento”. In: Nova História Militar de Portugal. Dir. Antonio Manuel Hespanha, v. II – séculos XVI-XVIII. Lisboa: Circulo de Leitores, s/p. (no prelo). 737. Para maiores detalhes sobre a questão do recrutamento e o respeito ao patrimônio das elites locais, ver Capítulo V, ponto 5.5. 738. “Bando lançado pelo governador de Minas Gerais, 26/4/1766”. Op. cit. 222

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Recebi a Carta de V. Exa (...) sobre os respectivos Limites da devisão das terras desta e dessa Cap.nia já a V. Ex.a ponderei por carta de 6 de outubro de 1775 os justificados motivos q’ me obrigão a fazer conservar a posse dos territórios com que os meus predecessores tem dominado nos destrictos pertencentes a esta mesma Cap.nia (...).739

Os problemas com as fronteiras do Rio de Janeiro eram outros. O vice-rei ordenava ao governador-general que lhe enviasse: “para a defesa desta Capital (...) o Regimto de Cavalr.a regular, que deve vir todo, (...) os Terços de Cavalaria, e Infantaria Auxr.res e Companhias francas de homens pardos e pretos (...)”.740 As tensões da fronteira do Prata também chegavam a Minas através das ordens do Vice-Rei Marquês de Lavradio a D. Antonio: “a Cap.nia que V. Ex.a Governa, hé a mais cheia de gente robusta, e forte, costumada aos trabalhos do Campo, e dos Mattos, me parece, que V. Ex.a deve juntar sem perda nenhuã de Tempo, ao menos quatro mil homens e faça immediantam.te marchar p.a a Cap.nia de S. Paulo, p.a de lá passarem (...) ao Continente do Rio Grande (...)”.741

Até nas fronteiras de seus próprios sertões surgiam pressões sobre o governo de Minas. Como, por exemplo, o pedido de socorro do Comandante da vila de São José da Barra, que estava desesperado diante das tragédias e mortes provocadas pelo gentio. Ele escreveu a D. Antonio de Noronha: Em Carta de 16 do mes passado me reprezenta Vmce o insulto q’ no dia 13 do mesmo, cometeo o Gentio barbaro na Faz.a de Manoel Pinto Guimr.s a quem tirou a vida, e me expõem Vmce tambem o justo receio em q’ vive de ser asaltado 739. “Pa o Genrl de São Paulo Martim Lopes Lobo de Saldanha em Respta a Sua Regda no L.3o N.o 103 f. 408. Sobre os Limites das duas Capinias e Sobre a remessa do dro das despesas q’ fizerão os destacamtos q’marcharam em socorro do Sul, Villa Rica, 21/7/1778”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 207-210. 740. “Carta Segda do Sr. Marquez Vice Rei do Estado sobre o mesmo particular, 30/8/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 46-48. 741. “Carta do Marquez de Lavradio, Sobre a tomada da Ilha de Sta Catharina pellos Castelhanos e pa q’se mande quatro mil homens desta Capnia em Socorro do Rio Grande, 13/3/1777” In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 55-58. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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pello mesmo Gentio q’ continua em fazer ostelidades, nas vezinhanças desse Prezidio, matando Bois e Cavallos sem haver quem lhe rezista (...).742

E mesmo o que podemos chamar de fronteiras sociais geravam perturbações para o Governador de Minas. Ele temia a sublevação dos escravos e afirmava em carta ao Marquês do Lavradio que tal receio se funda nos exceços q’ proximam.te praticarão os negros aquilombados nas margens do Rio doce, os quaes espalhando-se em bandos tem infestado as estradas próximas aos povoados, chegando a açoutar cruelm.te alguns Roceiros, e as suas familias nas cazas das suas abitaçoens (...).743

Embora as pressões exercidas por todas estas fronteiras envolvessem questões relativas à defesa do interesse público, as provocadas pelo Rio de Janeiro e pela região do Prata foram as mais intensas. As ordens do vice-rei resultaram na retirada de um enorme contingente de homens de Minas, que teve graves consequências para a ordem interna da Capitania. Os Corpos de Auxiliares e as Companhias francas,744 que marcharam para o Sul e para o Rio de Janeiro, eram essencialmente compostos de homens empregados na extração de minérios, nas roças e no comércio, além dos ociosos e vadios – utilizados em tarefas específicas em proveito da própria Capitania.745 A Capitania de Minas vivia uma situação paradoxal naquele momento. As exigências impostas pela guerra contra os espanhóis causaram diversas desordens internas, sobretudo no nível fiscal e na produção aurífera: o êxodo forçado de boa parte dos encarregados pela atividade de extração do ouro – principal fonte de riqueza – e pela vigilância con742. P.a Jozé do Valle Vieira Concervador do Prezidio do Abre Campo sobre os insultos q’ cometerão o Gentio Puri no d.o Citio, e se lhe concede o poder formar hua Esquadra p.a defeza dos mesmos, paga a sua Custa, Vila Rica, 4/10/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 87-88. 743. Carta p.a o Sr. Marquez Vice Rey do Estado, em resposta da de 19/10/ 1776, em que mandou a apromptar alguns aux.res, V.R., 28/10/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 20-26. 744. As informações contidas nas próprias cartas indicam que as Companhias francas faziam parte dos Corpos de Ordenanças. 745. Sobre os vadios e sua útilidade, ver Laura de Mello e Souza. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1986, Capítulo 2: “Da utilidade dos vadios”. 224

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tra os possíveis extravios. O êxodo era justificado pela necessidade de defesa dos reais domínios, isto é, a defesa do interesse público. Mas, especificamente em relação a Minas Gerais, havia um outro interesse público a ser considerado, e que corria sérios riscos de ser prejudicado por causa das mesmas exigências: como a Capitania era o centro gerador da riqueza do Império português, as medidas comprometiam o Tesouro Real,746 que ficou exposto a prejuízos difíceis de serem evitados. Se por um lado a defesa contra as ameaças externas estava garantida, por outro, a prosperidade do Império e de seus vassalos corria perigo, porque a ruína de Minas significaria a bancarrota do Império. D. Antonio de Noronha já havia previsto essa situação ao advertir sobre “Os infaliveis prejuízos que ameação aos Reaes e publicos interesses”.747 Era esse o dilema – o ouro ou os domínios – pelo qual passava o então Governador-General da Capitania de Minas Gerais: como administrar o aspecto interno diante das necessidades advindas do aspecto externo, ambos consequências das exigências dos interesses da Coroa. A Capitania das Minas via-se pressionada também por essa fronteira, a de natureza político-econômica, em que o que estava em jogo eram os bens mais preciosos do Império português. Nas cartas que constantemente enviava ao vice-rei, o governador-general expressava com clareza sua preocupação, e reiterava: Esta Cap.nia hé a fonte das Riquezas, que fazem a subzistencia de todo o Brazil e do mesmo Reyno, ao mesmo passo que se despovoarem, e esterelizarem as Minas, se verão arruinados todos os intereces politicos e pecuniarios que resultão da sua concervação e do seu augmento; neste principio hé que se fundão as ordens Regias, que tanto recomendão

746. D. Antonio de Noronha comentou a respeito das intensas mobilizações militares na Capitania de Minas impostas pela defesa dos domínios reais na região do Prata e suas inevitáveis consequências: “tendo me empregado em descobrir os meios de tirar estas Minas da indigencia em q’ estão, e que as encaminha a ultima Ruina promovendo incesantem.te a extração do Ouro que hé o primro objecto deste gov.o e tão recomendado nas Reaes ordens, não me hé possivel chegar ao fim dos meus dez.os, por q’ se perturbão os mananciaes desta esperada felicid.e q’ são o inalteravel Socego e Tranquilidade dos Povos”. In: “Carta escrita ao Sr. Marquez Vice Rey do Estado em resposta da que V.Exa lhe escreveu no dia 28 do do mes, sobre o Sr. Vice Rey pedir mandace os vadios e os das fabricas pa auxiliar aquela Cide”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 49-66. 747. “Carta pa o Ilmo e Exmo Sr. Marquês Vice Rey em resposta da de 30 de outubro sobre o mesmo particular, 17/11/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 26.30 CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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q’ se animem os Mineiros a fazer custozos serviços, e que se promovão novos discubertos.748

Além disso, as pressões internas se faziam presentes através da reação das Câmaras, onde havia um ambiente de protesto e indignação diante das intensas mobilizações a que se viam submetidos os povos de tão importante Capitania: Os movimentos em que vemos esta Comarca/e toda a Capitania/e o precepicio a q’ ela arebatadam.te caminha. (...) Tiram-se desta Comarca a menos de hum mez 80 homens, (...) p.a defenderam o R.o de Janr.o ou aquele lugar a que V. Ex.a os destinou (...).749

É imprescindível entender e ressaltar que a própria existência da Capitania de Minas Gerais, que se constituía na fonte primordial do Erário Régio, impunha decisões que priorizassem determinadas estratégias de defesa. Nesse momento específico, as incisivas ameaças externas representadas pelos espanhóis exigiam o deslocamento do eixo do interesse público, que havia de priorizar a segurança do Estado, porque ela significava a preservação do território e das próprias riquezas de Minas. Nessas circunstâncias, todas as forças deveriam convergir para o bem comum configurado na manutenção da unidade física do Império. Portanto, diante das reivindicações do Governador de Minas Gerais, o Marquês do Lavradio afirmou: Agora não hé ocazião de se olhar p.a as necessidades particulares, que cada hum delles podem expor; a necessidade hé pública. Esta acção, pertence a honra, e gloria de toda a Nasção e do bom sucesso della, dependerá o Socego e Liberdade de todo o Estado.750

748. Idem. 749. “Carta da Camara de S.João de E’Rei sobre os Auxr.es que se tirarão pa irem pa o Rio de Janeiro, 27/7/1775”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 4-6. 750. ‘Carta do Marquez de Lavradio, Sobre a tomada da Ilha de S.ta Catharina pellos Castelhanos e p.a q’ se mande quatro mil homens desta Cap.nia em socorro do Rio Grande, 13/3/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 55-58. 226

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Assim sendo, mesmo em se tratando da Capitania de Minas Gerais, e tudo o que ela significa para a prosperidade do Império, o aspecto externo desse interesse comum foi considerado o mais relevante. O aspecto interno tornou-se secundário em relação às questões de defesa e segurança, avaliadas, naquele momento, como prioritárias e primordiais para a paz e a concórdia em todo o Estado. Do ponto de vista político, o bem comum do Império era hierarquicamente superior, e compreendia o bem comum de cada Capitania e seus povos; portanto, todos os membros do corpo social deviam estar comprometidos com a solução dos problemas mais urgentes para o Império. Isto implicava a subordinação de todas as Capitanias, e de qualquer reivindicação, ao mesmo objetivo comum que assegurava a cooperação de cada uma delas. Nesse sentido, a Coroa constantemente reiterava aos governadores da América portuguesa a necessidade de todos colaborarem nos assuntos militares.

6.4. As Tropas de Minas Gerais: o Sul e o Rio de Janeiro A guerra contra os espanhóis pela disputa das terras em torno da região do rio do Prata, ao sul dos domínios portugueses, intensificou-se em 1777, ano em que os espanhóis conquistaram a Ilha de Santa Catarina. Sob o sistema de cooperação recíproca, mais mobilizações militares foram exigidas: tropas de Minas Gerais foram enviadas primeiramente para o Rio de Janeiro e posteriormente para o Sul. Mas em 1776, as guarnições do Rio de Janeiro já eram consideradas insuficientes para enfrentar um ataque efetivo dos espanhóis a esta Capitania, como mostra a correspondência do Marquês do Lavradio a D. Antonio de Noronha. Com a finalidade de reforçar a defesa militar do Rio, o vice-rei determinava o envio imediato do Regimento de Cavalaria paga de Minas, os “Corpos Auxr.res dessa Capit.nia que V. Exa avisou estarem formados, assim como as Comp.as francas de pretos e Mulatos que a Corte dis ter V. Exa também regulados; (...)”.751 Para evitar a deserção dos soldados durante a expedição e incentivar a adesão dos habitantes, o marquês ordenou que o próprio governador acompanhasse as tropas até a Capital. 751. “Carta do Marquez Vice Rei do Estado em que pede se lhe mandem os vadios, que os Auxr.es não levem Escravos, e Sobre as fabricas, R.J, 2/9/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 48-50. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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A fim de colocar em prática as instruções do Vice-Rei, D. Antonio de Noronha escreveu aos sargentos maiores e aos capitães-mores das Comarcas, solicitando o maior número de homens possível, e recomendando que fossem os mais bem fardados e bem armados. O governador ainda ressaltava que os cabos de Esquadra e os soldados dos Corpos de Auxiliares, “devem receber doiz vinteins de Oiro por dia durante o tempo da sua marcha”.752 Ao recompensar com soldo os serviços prestados pelos Auxiliares em ocasião de guerra, o governador cumpria as disposições da Carta Régia de 7 de janeiro de 1645, que instituiu os Corpos de Auxiliares.753 Porém, D. Antonio de Noronha deparou-se com sérios obstáculos, por causa do “mizeravel Estado” em que se encontravam os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na Capitania de Minas Gerais. A Comarca de São João Del Rei, por exemplo, informava que as Ordenanças não dispunham do indispensável equipamento de armas, nem tampouco de fardas. O resposta do governador continha uma advertência severa aos seus capitães-mores por não estarem cumprindo devidamente as suas obrigações, e a seguinte determinação: em Julho de 1775 paçei revista as Ordenanças e que axei tanto os Corpos de homens brancos as comp.as francas de Pardos e pretos algumas delas, bem fardadas e armadas e que estas que eu naquela ocasião vi são as que devem agora aprontar çe p.a marchar em defesa do R.o de Janeiro na minha comp.a (...).754

Em relação aos auxiliares, o governador recomendou que seus regimentos estivessem de fato completos, conforme asseguravam os seus coronéis. Aos desertores, o capitão-general ameaçou castigá-los “confiscando lhes inviolavelm.te os seus bens e fazendo lhes arrematar na praça pública prendendo-os na Inxovia desa V.a os que forem incontrados

752. “Carta p.a o Sarg.to maior Fr.o José de Ag.ar aprontar o maior N.o de Mulatos, V.R., 11/11/1776” in Antonio de Noronha, Cartas, Livro 2, Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 34-35. 753. “Carta Régia sobre a Criação dos Soldados Auxiliares, Lisboa, 7/1/1645” in “Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa compilada por José Justino de Andrade e Silva” volumes de 1640 a 1647, p. 271-272. 754. “Carta p.a o Sarg.to maior Joaq.m P.a da Camara S.l que tinhão os Coroneis e Capitaens Mores daquela Com.ca em apromtar ag.te que se lhe pia para hir para o R.o de Janeiro, V.R., 17/11/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 40-45. 228

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como dezertores”.755 Isto era a aplicação prática do que estava prescrito no artigo 14 do capítulo XXVI do “Regulamento para o exercicio, e disciplina dos Regimentos de Infantaria dos Exercitos de Sua Magestade Fidelissima”,756 organizado pelo Conde de Lippe. Em 13 de março de 1777, o governador de Minas Gerais recebeu carta do Marquês do Lavradio comunicando a tomada da Ilha de Santa Catarina pelos castelhanos e ordenando o envio imediato de quatro mil homens para o Rio Grande de São Pedro.757 Na carta, o vice-rei também definia as “qualid.es de gentes” que deveriam compor os Corpos Militares: “gente robusta, e forte, costumada aos trabalhos do Campo, e dos Mattos”.758 E D. Antonio ainda deveria estar preparado com “o resto da gente que tiver, no cazo dos castelhanos se voltarem p.a este porto (...)”.759 Minas já tinha exaurido suas forças pelos constantes recrutamentos e remessas de tropas para o Rio de Janeiro. Diante das novas instruções militares remetidas pelo vice-rei do Estado, a fragilidade se acentuou ainda mais. Apesar disso, D. Antonio de Noronha procurou tomar as providências necessárias para a expedição dos quatro mil homens exigidos para as campanhas sulinas. Porém, para evitar o envio de todos os Regimentos de Auxiliares, alegou necessitar dos auxiliares “p.a a deffeza e conservação desta Cap.nia (...)”.760 Diante a gravidade da situação, a única opção que restava ao Governador de Minas Gerais era lançar mão de medidas enérgicas. Como a fuga dos habitantes, que se embrenhavam pelos sertões, crescia de forma proporcional à organização das expedições, o Governador proibiu que eles saíssem da Capitania desprovidos dos passaportes ou bilhetes

755. Idem. 756. Lippe, Conde Reinante de Schaumbourg, “Regulamento para o exercicio, e disciplina dos Reigmentos de Infantaria dos Exercitos de Sua Magestade Fidelissima”. Lisboa: Régia Oficina, 1794, p. 1-244. 757. Especialmente sobre o recrutamento dos vadios, ver Laura de Mello e Souza. In: Os Desclassificados... Op. cit. Capítulo 2, item “Milícias e corpos militares”, p. 84-90. 758. “Carta do Marquez dde Lavradio, Sobre a tomada da Ilha de S.ta Catharina pellos Castelhanos e p.a q’ se mande quatro mil homens desta Cap.nia em Socorro do Rio Grande, R.J., 13/3/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 46-48. 759. Idem. 760. P.a o Marquez Vice Rey, sobre estar quaze finalizada a Expedição dos 4 mil homens, e da mais providencias que se tem dado a este Resp.to, e p.a deffeza desta propria Cap.nia , V.R., 13/5/177”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 112114. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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de licença, que deveriam ser solicitados pelos interessados aos Ouvidores mesmo para um simples afastamento temporário do domicílio.761 A fim de compensar os prejuízos decorrentes da guerra, o capitão-general ordenou a todos os Ouvidores que listassem “a metade dos escravos dos moradores, p.a estarem promptos ao pr.o avizo (...)”,762 com exceção daqueles que estivessem empregados na extração dos diamantes. Diante da consternação sentida pelos moradores, o Ouvidor da vila do Príncipe escreveu ao Governador, solicitando que os negros, forros e Auxiliares daquela Comarca substituíssem os cativos. Mas D. Antonio de Noronha diz ao Ouvidor que não dispunha das forças referidas em quantidade suficiente, porque estava “presentem.te expedindo hum Corpo athe o n.o de 4 mil homens, de Negros, Crioulos, Cabras, Mulatos forros, e Mistiços (...) Dos Auxr.res em virtude das mesmas ordens tenho destacado no Rio de Janr.o 1.500”.763 Em resposta ao governador de São Paulo, que havia criticado D. Antonio de Noronha por causa da má qualidade do armamento dos Corpos enviados para o Rio Grande, D. Antonio expõe a situação de sua capitania: Eu mal posso desarmar os Corpos Axr.res e as Esquadras do Matto desta Cap.nia; por q’ os primr.os estão promptos p.a marchar comigo em Socorro do Rio de Jan.ro (...) os segundos são persizos p.a rebater os Negros (...) e p.a deffender estes habitantes dos insultos do Gentio.764

Em virtude das investidas cada vez mais frequentes do “Gentio botocudo, e agora entra o Porí a fazer também os seus insultos, penetrando até as faz.das onde faz Mortes e Roubos (...) e a soblevação dos Negros q’ 761. “P.a os ouvidores fazerem listar metade dos Escravos dos moradores, p.a estarem promptos ao pr.o avizo no cazo q’ sejão percizos p.a deffeza do Estado; e p.a não sahir pessoa algua p.a fora da Cap.nia sem passaporte dos d.tos Ouv.res; Ex.o do Rio das Mortes p.a expedir p.a S.Paulo, 10 mil alqr.es de farinha, e des mil de feijão 9/4/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 98-101. 762. Idem. 763. “P.o Ouv.or da V.a do Principe, em resposta a sua de 2 de Abril Sobre os Escravos que mandey listar, que se não deve entender com os q’ se achão impregados na extração dos Diam.tes; e no mais q’ trata a mesma Carta, V.R., 9/4/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 104-106. 764. “P.a o Ger.al de S.Paulo em Resposta a sua de 24 de Abril do Corr.te sobre a Nudez, e incapacid.e do armam.to q’ levarão as Recrutas q’ marcharão p.a aqulla Cap.nia, V.R., 13/5/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 114-116. 230

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fogem cada dia, e engrossão os Quilombos”, as forças militares restantes pareciam insuficientes para a manutenção da ordem interna na Capitania de Minas Gerais. Ao avaliar essa situação de fragilidade militar, D. Antonio de Noronha manifesta o profundo temor de que os negros e os gentios estivessem “persuadindo se talvez q’ esta Cap.nia se vay exaurindo de gente capaz de se lhe opor”.765 A intensificação dos conflitos luso-espanhóis na América levou grande parte das forças militares de Minas Gerais aos lugares que sofriam maior ameaça de invasão: o Rio de Janeiro e a região do Prata. O ápice do conflito foi em 1777, quando os espanhóis tomaram a Ilha de Santa Catarina, ponto estratégico da costa meridional, colocando em risco todos os domínios portugueses ao sul da América. A guerra contra os espanhóis, considerados um inimigo de todos, deixava Minas com pouquíssimos recursos para a defesa das ameaças que lhe vinham do interior, cada vez mais agressivas e próximas, comprometendo a paz na já fragilizada Capitania. O deslocamento de um massivo contingente de homens para fora da Capitania de Minas Gerais veio a se consumar realmente, e em proporções jamais vistas, quando a Coroa portuguesa, perplexa, se deu conta do porte do conflito que se anunciava então com a Espanha, detentora de uma poderosíssima esquadra que navegava rumo à América Meridional.

6.5. O Desassossego das Minas Com a finalidade da “conservação do socego, e pas interior, e exterior do Estado”766 de Minas, o governador e capitão-general ordena a todos os capitães-mores que formem um numeroso Corpo de Caçadores bem armados, composto por todas as Esquadras do Mato que houvesse na Capitania. Em função do reduzido número de “gente capas” decorrente da expedição dos quatro mil homens, o capitão-general concede o perdão a todos os “Mulattos, Cabras, Mestiços, e Negros” das penas que envolviam a deserção. Ele também advertiu aos capitães-mores que as 765. P.a o Marquez Vice Rey, sobre estar quaze finalizada a Expedição dos 4 mil homens, e da mais providencias que se tem dado a este Resp.to, e p.a deffeza desta propria Cap.nia , V.R., 13/5/177”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 112114. 766. “P.a os Cap.as Mores fazerem publicar o Edital incluso pelo qual se perdoa aos q’ se reffugiarão da prez.te expedição, p.a se formar hum Corpo de Cassadores, V.R., 15/5/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 121-124. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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esquadras deveriam estar sempre completas, bem armadas e em tal regularidade que pudessem ser utilizadas “na extinção dos Quilombos, e prisão dos Negros fugidos, mas também nas entradas q’ fizerem ao Matto p.a rebater os insultos do Gentio, e lhes destruir as Aldeas. Igualmente serão empregados na deffeza desta Cap.nia, no cazo, q’ seja invadida e sendo precizo q’ Eu passe ao Rio de Janr.o (...)”767. O edital com essas medidas, assinado pelo capitão-general em maio de 1777, teve ampla e urgente divulgação na Capitania. Apesar das preocupações de D. Antonio de Noronha para promover a cultura das terras e – sobretudo – a extração do ouro, a Capitania de Minas Gerais não conseguiu superar a diminuição na cota das 100 arrobas do quinto. Na verdade, além da “pobreza das Lavras em q’ actualm.te trabalhão os Mineiros (...)”,768 as diretrizes político-militares que foram impostas ao governo na segunda metade do século XVIII, deslocando de seus domicílios grande parte dos Auxiliares e recrutas para atender à defesa militar da Colônia, constituíram um obstáculo evidente a toda e qualquer tentativa de reerguimento da Capitania: por q’ ficarão dezamparadas e incultas as fazd.as aonde se produs a maior abundancia de mantimentos, e expostas as Vidas dos Lavradores, e Mineiros, Seçando deste modo em parte concideravel a Cultura das Terras, e a extracção do Ouro.769

D. Antonio de Noronha não deixou de levar ao vice-rei do Estado as inquietações internas por que passava a Capitania de Minas Gerais, alertando-o para o fato de que “Se este Governo fosse puram.te Militar Sem a mistura do politico não teria Eu representado a V. Ex.a as dificuldades que ponderey (...)”.770 Ao chamar a atenção para o aspecto político do governo, estava considerando fundamentalmente a necessidade de realização do bem comum no interior de Minas Gerais. Isto poderia se 767. Idem. 768. “Providencias que se derão p.a a Nova Conq.ta do Cuieté, V.R.,29/5/1779”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 222. 769. “P.a o Ger.al de S.Paulo em Resposta a sua de 24 de Abril do Corr.te sobre a Nudez, e incapacid.e do armam.to q’ levarão as Recrutas q’ marcharão p.a aqulla Cap.nia, V.R., 13/5/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 114-116. 770. “Carta p.a o Ilm.o e Ex.mo Sr. Marquez Vice Rey em resposta da de 30 setembro sobre o mesmo particular, V.R., 17/9/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 26-30. 232

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traduzir concretamente através de medidas que tivessem por objetivo garantir a segurança, a paz e a prosperidade dos seus habitantes. Em última análise, o que preocupava D. Antonio era o seu próprio governo, o sucesso político de sua administração, isto é: “os meios q’ tenho aplicado p.a fazer util o meu governo”.771 D. Antonio de Noronha apontava reiteradamente as complicações decorrentes da guerra como a causa primeira do “dezaçocego em q’ tem estado esta Cap.nia”.772 Mas também reconhecia que parte dos problemas era proveniente dos sertões, dos gentios e dos aquilombados, que comprometiam a segurança interna de Minas. E como se tornavam cada vez mais intensos diante da fragilidade em que se encontrava a Capitania, o governador se viu obrigado a retardar os projetos que visavam promover a prosperidade de seus habitantes. Eram projetos que estimulariam a descoberta de novas regiões para a extração de ouro. Os planos do governador estavam direcionados para o sertão do Cuieté: tendo me empregado em descobrir os meios de tirar estas Minas da indigencia em q’ estão, e que as encaminha a ultima Ruina promovendo incesantem.te a extração do Ouro que hé o primro objecto deste gov.o e tão recomendado nas Reaes ordens, não me hé possivel chegar ao fim dos meus dez.os, por q’ se pertubão os mananciaes desta esperada felicid.e q’ são o inalteravel socego e tranquilidade dos Povos.773

Além de estar destituída dos meios que permitissem assegurar a paz e a riqueza dos seus habitantes – e mesmo por isso –, Minas produzia uma enorme quantidade de indigentes, miseráveis e famintos: partes desgarradas do corpo social, temíveis por serem desprovidas de meios de sobrevivência, mas utilizáveis como força de defesa militar.

771. “Carta escrita ao Sr. Marquez Vice Rey do Estado em resposta da que V. Exa lhe escreveu no dia 28 do do mes, sobre o Sr. Vice Rey pedir mandace os vadios e os das fabricas pa auxiliar aquela Cide”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 49-66. 772. “Carta p.a o Sr. Marquez Vice Rey do Estado, em resposta da de 19/10/ 1776, em que mandou a apromptar alguns aux.res, V.R., 28/10/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 20-26. 773. “Carta escrita ao Sr. Marquez Vice Rey do Estado em resposta da que V.Exa lhe escreveu no dia 28 do do mes, sobre o Sr. Vice Rey pedir mandace os vadios e os das fabricas pa auxiliar aquela Cide”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 49-66. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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De acordo com as cartas das autoridades régias da Colônia, esses indigentes se encontravam entre os “Mulatos, Mistiços, Cabras e Negros forros”. Tratados como vadios e vagabundos, eram vistos com temor: “atrevidos homens”, caracterizados pela forma de ação: “penetrão como feras os Mattos Virgens”, qualificados pela falta de proventos: “estes miseráveis povos”, ocupando as mais baixas posições da hierarquia social: “não tem estimolos de honra”. Segundo a classificação dos códigos da época – de raça, conduta, honra e economia –, constituíam uma “qualidade de gente” próxima à bestialidade e à irracionalidade, fora da ordem instituída no seio da sociedade civil e consubstanciada na comunidade local. Esses “atrevidos” homens eram aqueles que se encontravam, pela classificação hierárquica, mais próximos ao “gentio bárbaro” e aos “aquilombados”. Mas eram os mesmos que foram julgados pelo Governador D. Antonio de Noronha, como os “homens mais capazes” de adentrar os sertões, embrenhar-se pelos matos, combater os perigos advindos daquelas terras, e ainda “povoar os remotos Citios do Cuieté, Abre Campo, e outros (...)”.774 Organizados nas chamadas Esquadras do Mato ou em Corpos de Caçadores, constituíam as tropas mais adequadas para lutar contra o tipo de inimigos que habitavam os sertões, porque “penetrão como feras os Mattos Virgens”. Com a ferocidade daqueles que não conhecem as convenções, os costumes ou interdições sociais, morais e religiosas, eram capazes de todas as hostilidades possíveis durante o combate. Assim, estes homens tornaram-se úteis aos interesses da Capitania de Minas Gerais,775 somente e apenas quando empregados distantes da sociedade civil, nos sertões. A sociedade se utilizou desses homens e de sua natureza, entendida como feroz, para defender-se da ferocidade de seus inimigos externos, representados tanto pelos negros aquilombados quanto pelos índios bravios. Considerando a localização geográfica da Capitania de Minas Gerais, cercada por inúmeros sertões, as esquadras compostas pelos “atrevidos” homens tornaram-se forças absolutamente imprescindíveis para a manutenção da boa ordem. É nesse contexto que o governador afirma: “(...) estes vadios q’ em outra parte serião prejudiciaes, se fazem aqui 774. “Carta escrita ao Sr. Marquez Vice Rey do Estado em resposta da que V.Exa lhe escreveu no dia 28 do do mes, sobre o Sr. Vice Rey pedir mandace os vadios e os das fabricas pa auxiliar aquela Cide”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 49-66. 775. Sobre a utilidade dos vadios, ver Laura de Mello e Souza em Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 234

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uteis (...)”.776 Todavia, se mantidos no interior da sociedade civil, tornamse uma ameaça à sua segurança interna e, nesse sentido, constituem, também, em Minas Gerais “(...) o odio de todas as naçõens Cevilizadas”.777 Portanto, o vadio, quando a serviço do bem comum, foi empregado na Capitania de Minas Gerais dentro de uma “exclusão inclusiva”, com a mesma lógica que incluía e opunha sertão e cidade. O sertão como esperança – do ouro – e como temor – dos gentios e aquilombados. O Vice-Rei, Marquês do Lavradio, não deixou de perceber a utilidade daqueles homens, e determinou o deslocamento dos “muitos ociosos e vadios”778 existentes naquela Capitania para as operações militares na região do Prata. Essas forças obviamente irregulares tornaram-se os pilares primordiais sobre os quais (como já visto no Capítulo V sobre a Capitania de São Paulo) se estruturava a estratégia defensiva naquela região. Embora os vadios e ociosos de Minas Gerais não dispusessem do prestígio histórico dos aventureiros paulistas, o vice-rei afirmava ao governador daquela Capitania: “é certissimo que são aqueles os que poderão ser agora de mais utilid.e”.779 Para a Coroa, eles eram mais úteis no Sul do que em Minas. Era indispensável “acrescentar as forças de defesa”780 à região do Prata, porque o fator quantitativo tinha uma importância estratégica na defesa daqueles territórios. Para estimular a participação daquele grande contingente de “ociosos e vadios” das Minas nos conflitos do Sul o vice-rei garantiu algumas boas vantagens aos novos combatentes. Por isso, determinou ao governador de Minas: “V. Ex.a lhes lembrará, que elles poderão tirar muitas utelid.es desta acção, por q’ todas as prezas q’ fizerem hão de ser repartidas por elles.”781 Assim, temos visto como os homens considerados excluídos da ordem social – os “vadios e ociosos” – podiam ser utilizados em favor do interesse comum, desde que em circunstâncias específicas e quando 776. Idem. 777. Idem. 778. “Carta do Marquez vice-rei do Estado em que pede se lhe mandem os vadios, R.J, 2/9/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 3. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 48-50. 779. “Carta do Marquez Vice Rei do Estado em que pede se lhe mandem os vadios. R.J, 2/9/1776”. Op. cit. 780. “Carta p.a o Ilm.o e Ex.mo Sr. Marquez Vice Rey em resposta da de 30 setembro sobre o mesmo particular, Vila Rica, 17/9/1776”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 26-30. 781. “Carta do Marquez de Lavradio, Sobre a tomada da Ilha de S.ta, RJ, 13/3/1777”. Op. cit. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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devidamente direcionados. Vamos agora focalizar o interior da sociedade civil, observar a tensão gerada entre as vontades particulares da elite local e o interesse comum, e entender como, e por que caminhos, tais vontades particulares se manifestam de forma a se sobrepor ao interesse comum. Inicialmente as vontades particulares devem ser consideradas como aquelas que se caracterizavam pelo não-cumprimento de deveres elementares – militares, no caso – a que os súditos estavam obrigados por uma relação de compromisso recíproco com o rei. Apesar de inseridos e bem posicionados no interior da sociedade civil, tais súditos atuavam insidiosamente em detrimento do interesse comum. É a estes que D. Antonio de Noronha dirige o seguinte comentário: Por que a maior parte dos homens, são mais zellozos dos interesses particulares (...), do q’ dos interesses Reaes, sem refletirem q’ as Leis da sociedade os obriga a preferir a todo e a qualquer interece a felicidade publica, que não pode subsistir sem que o Erario Regio seja opulento.782

Nas cartas enviadas pelo Governador D. Antonio de Noronha, são apresentados casos de diversas autoridades militares da Capitania de Minas Gerais envolvidas em eventos nos quais os apetites individuais prevaleciam. Segundo os padrões da época, essas autoridades estariam subvertendo a principal regra que ordenava a sociedade civil: a hierarquia das utilidades, que prescrevia que as utilidades que interessam ao bem comum hão de ter primazia sobre as meras utilidades particulares, segundo uma ordem que vai do mais comum ao mais particular (república, cidade, corporação, família). Assim, os gozos meramente pessoais hão de ceder (...) perante os interesses comuns.783

Essas mesmas cartas também revelam o critério do governador para intervir, coibir, corrigir e punir aqueles que agissem ultrapassando os limites impostos pelo interesse comum. 782. “P.a a Rainha Nossa Senhora, em q’ se aponta os meios de se evitarem os extravios de Ouro e Diam.tes na Conformde.que me ordenou pela Carta Regia de 29/1/1778, Vila Rica, 22/7/1778”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 168-172. 783. Hespanha, Antonio Manuel. História de Portugal Moderno – Político e Institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 60. 236

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Um exemplo, entre outros, de conduta irregular dos oficiais militares, prejudicial ao interesse comum, pode ser verificado no caso da denúncia feita pela Câmara de São João Del Rei ao Governador D. Antonio de Noronha. As artimanhas utilizadas pelos oficiais das Tropas de Auxiliares daquela Comarca para se manterem no posto, foram desmascaradas pela Câmara: o mais he que estas tropas Aux.es tem mais de fingimento que de realidade: a idéia foi estabelecer muitas para aver m.tos oficiais, e estes p.a se introduzirem ou conservarem não duvidarão formar listas de pessoas invalidas por idade, infermidade ou pobreza e no m.mo continuam (...).784

A denúncia revelou que os verdadeiros motivos que levavam estes oficiais a se empenhar na obtenção ou manutenção da patente, longe de ser a dedicação ao Real serviço, eram os próprios interesses: os cobiçados privilégios e isenções que as patentes representavam. Se por um lado, as diretrizes políticas de intensa militarização da população masculina tinham por objetivo a consequente formação de um grande número de Corpos de Auxiliares, por outro, as mesmas diretrizes propiciaram a multiplicação das cabeças desses corpos – o número de oficiais. Porém, as cabeças não correspondiam proporcionalmente aos corpos, que muitas vezes só existiam nas listas entregues aos governadores, e não raramente com a conivência dos próprios governadores. Entretanto, a acusação da Câmara de São João Del Rei constituía matéria grave, especialmente por que naquela época as demandas militares eram constantes e acentuadas, a ponto de obrigar a Capitania de Minas a ceder grande parte de suas forças militares. O “fingimento” das tropas de Auxiliares atingia de forma direta o interesse comum da Capitania, que dependia das poucas forças que lhe restavam para garantir a segurança diante das crescentes ameaças provenientes de seus sertões. As condutas dos oficiais militares consideradas como desvios do interesse comum também podiam se manifestar através das diversas estratégias corporativas que se caracterizam por ser “descentralizadas, 784. “Carta da Câmara de S. João de E’ Rei sobre os Auxr.es que se tirarão p.a irem p.a o Rio de Janeiro, 27/7/1775”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2. Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 4-6. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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não técnicas e socialmente comprometidas”785 e, nesse sentido, em desacordo com as demandas do poder régio. Um exemplo desse caso aconteceu na Vila do Príncipe. Quando o posto de capitão das ordenanças ficou vago, a Câmara e o capitãomor indicaram os três nomes para ocupá-lo, dentre os quais o governador faria a escolha final. Entretanto, D. Antonio de Noronha percebeu a verdadeira intenção da lista: à exceção de um deles – naturalmente, o indicado pelo capitão-mor –, os nomes propostos eram “sug.tos com incapacidades” físicas. D. Antonio qualificou como “indignas semelhantes propostas” e criticou “os inconvenientes q’ Vm.ce me expoem em prejuizo do R.l Serviço, porem tanto pelo contrario o faz Vm.ce; q’ só prefere os seus afilhados e recomendados, ahinda que não tenham circunstancias attendiveis”.786 O capitão-mor, comprometido com sua rede de relações pessoais, acabou sendo repreendido por tentar sobrepor os interesses de sua conveniência aos do Real Serviço. Ora, em uma estrutura político-social corporativa marcada essencialmente pelos vínculos pessoais de subordinação e dependência, é perfeitamente compreensível que o capitão-mor pretendesse estender seus laços sociais de amizade, parentesco e favores para o interior do Corpo Militar que comandava. As “circunstancias attendiveis”, citadas pelo governador, referiam-se à moradia dos homens propostos na lista, que deviam ser moradores do distrito das respectivas companhias, e também à exigência de serem pessoas beneméritas e abonadas. Segundo as prescrições régias, deveriam ser propostos “três sug.tos em q.m igualmente concorrão as mesmas circunstâncias p.a que mandando Eu passar patt.e a qual delles me parecer, possão ser habeis de exercitar os d.os postos”.787 O procedimento do capitão-mor, considerado irregular e indigno pelo governador, foi a tentativa de manipulação da escolha final, desrespeitando o princípio acima citado. Ao tentar sobrepor o seu poder ao do governador, o capitão-mor colocava-se em aberta concorrência com a autoridade maior da Capitania, retirando-lhe o poder de que dispunha de efetuar a escolha que mais lhe parecesse apropriada para o posto. Nesse 785. Hespanha, Antonio, Manoel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calustre Gulbenkian, 1982, p.76. 786. “Para o Cap.am Mor da V.a do Prícipe, sobre a proposta de alguns posto do seu comando, Vila Rica, 20/8/1777”. In: Antonio de Noronha. Cartas. Livro 2, Minas Gerais, 1776-79, BNRJ, p. 132-134. 787. Idem. 238

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sentido, o interesse particular do capitão-mor configurava-se na preferência pelos “seus afilhados e recomendados”, para ocuparem o posto de capitão, independente da propriedade que tivessem para tanto. Em consequência do processo de concentração do poder na Coroa, orientado por uma concepção e prática voluntarista, que exclui a comunidade da participação na constituição do poder político, ocorreram alterações em alguns dos pontos que sustentavam a organização social e política anterior, que tinha caráter corporativo. Uma das alterações, por exemplo, aconteceu no tratamento dado aos interesses público e particular, que não seriam mais identificados – na visão corporativa – como forças complementares e harmônicas contidas na unidade do bem comum; em vez disso, seriam vistos como realidades a tal ponto contraditórias que o implemento do interesse comum passaria a ser entendido como tarefa exclusiva do poder central, única força capaz de representá-lo e de intervir adequadamente, impondo as medidas necessárias no sentido de sua promoção.788 Os governadores da segunda metade do século XVIII, orientados por esta concepção voluntarista do poder, vão exercer de forma constante a prerrogativa de escolha final dos oficiais militares a fim de manter uma completa vigilância nesta matéria. O objetivo final era impor uma ordem que assegurasse uma escolha não comprometida com as redes de clientelismos, com os interesses particulares, em evidente “prejuizo do R.l Serviço”, responsável pelo interesse comum. Assim, vimos que, a dinâmica das negociações teve variações que estavam sujeitas às condutas das partes ligadas pelo pacto: os colonos, na condição de súditos, e os governadores, representantes régios na Colônia. As extremas variações a que chegaram as condutas de ambas as partes tornam possível perceber os movimentos de reaproximação entre elas através da negociação, no interesse de preservar o pacto. Os exemplos são alguns dos fatos expostos neste livro: quando o Governador de Minas, Luiz Diogo Lobo da Silva, pôs em risco os patrimônios e estatutos dos súditos por causa das excessivas exigências militares para a defesa territorial do Estado. O governador foi, entretanto, compelido pelos próprios súditos, cujos interesses foram lesados, a reconsiderar as determinações iniciais, inserindo-as no âmbito das garantias do pacto, isto é, respeitando as propriedades e os privilégios. 788. Hespanha, A. M. História de Portugal Moderno... Op. cit., p. 29-30. CAPÍTULO 6 – A CAPITANIA DE MINAS E A DINÂMICA DO BEM COMUM Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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Já nos casos relatados sobre o Governador D. Antonio de Noronha, também de Minas, os súditos que desviaram suas condutas para a satisfação dos próprios interesses em detrimento do bem comum foram repreendidos com austeridade pelo Governador e ameaçados com os devidos castigos. Mas essas reprimendas e ameaças não devem ser entendidas como um rompimento nas negociações, ao contrário, visavam ao cumprimento da contrapartida de lealdade e fidelidade a que estavam obrigados os súditos por seu compromisso recíproco com o rei. Portanto, eventuais transgressões para além dos limites do pacto, vicissitudes inerentes ao jogo político, compeliam as partes a retornar ao âmbito da dinâmica das negociações, a fim de preservar os seus próprios interesses que estavam em jogo. Uma vez estabelecido o pacto como referencial, e constatado o interesse comum em sua manutenção, ambas as partes atuavam com vigilância contínua, cada uma em sua devida escala, numa relação essencialmente marcada pela flexibilidade, estabelecida e fundamentada na dinâmica das negociações.

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O objetivo deste livro é divulgar um estudo do funcionamento dos Corpos de Auxiliares e de Ordenanças nas Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, num contexto em que estas constituíam o centro político-administrativo-militar do Império português na América. Sob o comando do vice-rei, aquelas três capitanias formaram um conjunto que atuava em intensa articulação militar para a defesa das regiões ao extremo sul do Estado do Brasil, com ampla participação dos Auxiliares e Ordenanças. Para impedir o avanço castelhano pelas regiões fronteiriças meridionais, e ainda manter a defesa das próprias Capitanias, a Coroa intensificou a militarização da população masculina da colônia. E dentro dessa política militar, os Corpos de Ordenanças e de Auxiliares tornaram-se fundamentais nas estratégias para a viabilização dos propósitos de conquista portugueses. A orientação metropolitana dada aos governadores das capitanias, que entre outros objetivos contemplava a economia de custos, baseou-se no aproveitamento dos próprios moradores para o serviço militar gratuito das Ordenanças e Auxiliares. Delegar a defesa militar aos próprios habitantes representava um aumento significativo da dimensão numérica da força militar mobilizável, representava um fator de extrema relevância, realçado no texto das Instruções Militares emitidas pela Coroa naquele período, que determinava a formação do maior contingente possível de Corpos de Auxiliares e de Ordenanças em seus domínios na América. A documentação consultada, especialmente nas Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, mostra um expressivo aumento do número de Corpos de Ordenanças e de Auxiliares. As pesquisas efetuadas nas correspondências entre a Metrópole e os governadores das Capitanias em estudo revelaram com nitidez tanto a ênfase dada ao tema da defesa do território colonial quanto a imÚLTIMAS PALAVRAS Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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portância alcançada pelos Corpos de Ordenanças – e sobretudo – pelos Corpos de Auxiliares. À medida que as tensões ao Sul se agravaram, o bem comum do Império português na América se tornou cada vez mais identificado com a defesa territorial e, portanto, com a questão militar. A política adotada pela Coroa, baseada no emprego dos próprios habitantes da Colônia, transformou aqueles grupamentos militares em centros de poder local, que se constituíram em uma via privilegiada de contato entre o poder central e as comunidades locais. Assim sendo, os principais agentes de colaboração eleitos pela Coroa na esfera local, e que não raras vezes ofereceram resistência, foram os integrantes das elites locais que ocupavam os postos de comando militar. Aqueles que detinham o poder militar, e portanto o poder de convocar os homens para os Corpos militares, além de manter fortes laços com os representantes ultramarinos do poder central, o vice-rei e os capitães-generais, desfrutavam de uma autoridade reforçada e valorizada no âmbito local. A análise da resistência dos habitantes à mobilização militar mostra o conflito entre distintas concepções de poder e de espaço – isto é, entre as exigências centralizadoras apresentadas pela Coroa para a defesa da América portuguesa meridional e os interesses corporativos da comunidade local. O recrutamento surge como uma ação administrativa, de caráter político-militar, que interfere decisivamente no conjunto da vida social das comunidades locais; a resistência aparece devido ao questionamento sobre por que servir em uma guerra distante e desconhecida, e traduz-se na fuga dos que estavam sujeitos ao recrutamento e na deserção dos recrutados. Na maior parte das vezes, as fugas e deserções das tropas eram seguidas pelo acoutamento – crime de acolhimento e ocultação de criminosos, cometido até por oficiais de alta patente. A dinâmica do pacto estabelecido entre a Metrópole e a Colônia pode ser vista no funcionamento das organizações militares – os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças –, identificadas como espaços de construção das negociações que fundamentavam os vínculos políticos entre o rei e os súditos. Estes Corpos militares, que se constituíram em centros de grande poder local e periférico, eram o canal de encontro entre a Coroa e as comunidades locais, a área de negociação de conflitos e divergências inerentes à densa rede de relações entre estes níveis de poder. Rede de relações essencialmente marcada pela flexibilidade, estabelecida e fundamentada na dinâmica das negociações: a rede é as242 Este exemplar está registrado para uso exclusivo de ABDIAS FLAUBER DIAS BARROS - 18517066

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simétrica, baseada em uma hierarquia, e o compromisso de obediência e fidelidade dos súditos à Coroa garante a proteção e manutenção das propriedades e privilégios – do poder – da elite local. As negociações realimentam e renovam continuamente o pacto entre o rei e os súditos – forças assimétricas e complementares.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

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