Feminismo e anarquismo no Brasil: audácia de sonhar

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e m i n i sm "Neste livro, o/a leitor/a encontrará reunidos dois artigos produzidos em momentos diferenciados, relativos à história das mulheres anarquistas, que tiveram expressiva participação nos movimentos sociais dos trabalhadores, no Brasil e na América do Sul, ao longo do século 20. Em ambos os textos, o/a leitor/a perceberá que estão presentes algumas preocupações comuns, como a de conhecer as experiências femininas na militância política no passado, assim como as memórias que essas mulheres constróem dos movimentos cm que atuam, de sua relação com eles, da situação das mulheres, das lutas feministas e das relações que o feminismo mantém com o anarquismo, aproximandose ou distanciando-sc".

Margareth Rago

Anarquismo e feminismo no Brasil Margareth

Rago

A Audácia de Sonhar

achíamé

Margareth Rago

ANARQUISMO E FEMINISMO NO B R A S I L AUDÁCIA DE SONHAR Memória e Subjetividadeem Luce Fabbr 2 edição xevjfifSfaã menti a

Robson Acli iamé, editor Caixa Postal 50083 Rio de Janeiro RJ 20050-970 Telefax (0xx21)2208-2979 [email protected] www.achiame.net

achiamé

R i o de Janeiro

ANARQUISMO E FEMINISMO NO BRASIL

SUMÁRIO

AUDÁCIA DE SONHAR Memória e subjeíivukule em Luce Fabbri

Apresentação / 7

Copyright O 2007 by Margareth Rago

ANARQUISMO E FEMINISMO NO BRASIL / / /

É vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da autora.

A memória feminina c o imaginário masculino / 15 Experiências libertárias femininas /19 Integração e marginalização / 25

Capa Marina Rago Moreira

Anarquismo e feminismo/ 39 A moral sexual/ 45 Anarquizando 153 Referências bibliográficas / 59 AUDÁCIA DE SONHAR / 61 Referências bibliográficas / 89

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APRESENTAÇÃO Neste livro, o/a leitor/a encontrará reunidos, a convite do editor Robson Achiamé, dois artigos produzidos em momentos diferenciados, relativos à história das mulheres anarquistas, que tiveram expressiva participação nos movimentos sociais dos trabalhadores, no Brasil e na América do Sul, ao longo do século 20. No primeiro, intitulado "Anarquismo e Feminismo no Brasil", escrito em 1994 e já publicado por esta mesma editora, procuro apresentar algumas figuras do movimento anarquista brasileiro c sulamericano, entendendo que é preciso dar visibilidade às experiências femininas do passado, principalmente quando se consideram dois fatores: de um lado. os obstáculos que se impunham às mulheres, naquelas décadas, para participarem da esfera da vida pública, algumas vezes mesmo por parte de seus familiares e companheiros; de outro, pelo próprio fato de que o proletariado, desde os inícios da industrialização, contava com um número expressivo de mulheres e de crianças, sendo que muitas destas lutaram, promoveram agitações, organizaram greves e atuaram nos centros culturais, defendendo as ideias libertárias em discursos, palestras ou em 7

seus escritos, desfazendo praticamente os estigmas da passividade e irracionalidade lançados sobre elas. Assim sendo, colhi informações na imprensa anarquista e entrevistei algumas figuras libertárias que ainda vivem em São Paulo, como Sônia Oiticica e Maria Valverde, assim como duas outras militantes muito especiais, que tive a oportunidade de conhecer em São Paulo, em agosto de 1992, por ocasião do Encontro "Outros 500. Pensamento Libertário Internacional", realizado na PUC-SP: a ítalo-uruguaia Luce Fabbri, falecida em 19 de agosto de 2000. e a uruguaia Débora Céspedes, também residente em Montevideu. Na época da realização das entrevistas com essas duas importantes militantes, ainda não havia iniciado a biografia cie Ince Fabbri, o que se deu elelivãmente entre os anos de 1995 e 2000. Contudo, após a publicação do livro e mesmo depois de seu falecimento, senti a necessidade de desenvolver um pouco mais um dos tópicos de nossas conversas, ao qual a militante, poetisa e professora de Literatura Italiana dava muita importância: o exílio. Propus-mc. então, a redigir um artigo, voltando a questão para ela mesma, muito embora em suas memórias, o tema sempre aparecesse vinculado às experiências coletivas de trabalhadores, refugiados políticos c militantes, entre outros. Assim nasceu o segundo texto que compõe esta edição e para o título do qual tomo emprestado um de seus próprios versos.

Em ambos os textos, o/a leitor/a perceberá que estão presentes algumas preocupações comuns, como a de conhecer as experiências femininas na militância política no passado, assim como as memórias que essas mulheres constróem dos movimentos cm que atuam, de sua relação com cies, da situação das mulheres, das lutas feministas e das relações que o feminismo mantém com o anarquismo, aproximando-sc ou distanciando-se. Assim, estive também preocupada, como sc pode observar principalmente no primeiro texto, em problematizar as complexas relações estabelecidas entre o anarquismo e o feminismo, que. se na origem estiveram tão proximamente articulados, como sugere a própria relação dos fundadores como William Godwin e Mary Wollstonecraft. no século 18. posteriormente se cindiram em movimentos que. na maior parte das vezes, caminharam paralelos e, apenas em algumas circunstâncias, imbricaram-se novamente. Não raras vezes, as "anarquistas históricas", como a própria Luce Fabbri, não se consideravam feministas, entendendo com esse termo aquelas que lutavam pelo direito feminino ao voto. No entanto, nem por isso deixaram de se preocupar com as questões femininas, tendo em vista a l i beração das mulheres das inúmeras sujeições e exclusões cotidianas, o que as torna então feministas, a exemplo de Maria Lacerda de Moura.

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Finalmente, considero que. em geral, mesmo que não se definam como feministas, mesmo que afirmem não ter qualquer identificação com as reivindicações trazidas pelo feminismo, as mulheres não deixam de ter um olhar e experiências de género bastante diferenciadas das masculinas, seja pela educação que receberam, seja pelos códigos da moralidade que regeram ou regem a vida em nossa sociedade, especialmente nas décadas em que viveram. Nesse sentido, as mulheres carregam interpretações de si e dos outros, tanto quanto definições mais gerais da vida diferenciadas das dos homens e essas diferenças valem ser examinadas, apresentadas e elaboradas, quem sabe como contribuições para a criação de novos modos de estar no mundo...libertariamente. é claro. São Paulo, 05 de janeiro de 2007 Margareth

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Rago

ANARQUISMO E FEMINISMO NO B R A S I L

Maria Lacerda de Moura

A MEMÓRIA FEMININA E O IMAGINÁRIO MASCULINO Trabalhos pioneiros historiaram a experiência anarquista no Brasil, centrando-se nas décadas iniciais do século 20, quando o país se industrializa e a imigração traz milhares de trabalhadores europeus, com suas ideologias e tendências políticas. Já dispomos, hoje, de uma quantidade significativa de trabalhos, a grande maioria dos quais realizados no Arquivo Edgard Leuenroth da U N I C A M P , documentando este importante momento de formação do proletariado brasileiro, em que o anarquismo conquista inúmeras adesões. Entretanto, também podemos dizer que estes estudos, em sua grande maioria, privilegiaram a atuação dos operários e militantes do sexo masculino, não trabalhando com mais detalhes as d i ferenças que eles mesmos identificavam, como por exemplo, a de que grande parte do proletariado era constituída por mulheres e crianças. Num segundo momento, percebemos que o contingente feminino que compunha grande parte do proletariado era responsável pela eclosão de 15

inúmeros movimentos grevistas, de manifestações políticas pelos direitos de trabalho, pela melhoria das condições de vida, assim como por reflexões impressas nos jornais operários de então. Parece que, de algum modo, entramos num terceiro momento, isto c, num tempo cm que nosso interesse se volta para apreender as experiências femininas da industrialização e da modernização, atentos às militantes ou simpatizantes que apostaram na luta pela emancipação das mulheres como forma de libertação da humanidade. Algumas destas ativas militantes e simpatizantes do anarquismo ainda estão vivas, motivo pelo qual entendemos a importância de iniciarmos um trabalho dc preservação de sua memória pessoal e eoletiva. Não se trata apenas de recolher no baú dos documentos os momentos de intervenção das mulheres na eclosão das greves, nas resistências cotidianas miúdas, na preparação de artigos para a imprensa, na tentativa incansável de provar sua igualdade em relação aos homens, ou então de vitimizálas. Tomando as ações masculinas mais valorizadas, procuramos então mostrar que as mulheres podem fazer o mesmo, enfrentar os patrões, perceber as formas mais sofisticadas da dominação, propor respostas e fazer a revolução. Incrível esforço para provar que não ficamos atrás, enquanto capacidade combativa e projetiva das novas utopias, em relação aos homens. 16

De que se trata, então? De trabalhar, penso eu, o registro feminino desta experiência, o olhar daquelas que se viam diferenciadamente excluídas, diferenciadamente oprimidas, numa profunda busca de interação social e de integração cultural na nova terra. Parece, no século 21, que j á não importa mais afirmar se os anarquistas foram mais ou menos machistas do que os socialistas, liberais ou autoritários, se praticaram ou não o amor livre, se eram etc. etc. Ou então, tentar desmistificá-los, documentando o seu fracasso. De que fracasso, aliás, se fala? As ideias antiautoritárias se afirmaram, a ideia de representação está muito desacreditada, a ação direta está muito valorizada nos meios operários, sindicais e estudantis, a educação mista, nãomemorizadora está sendo praticada, o contrato de casamento está em descrédito, todos concordam que o amor deve ser livre, a maternidade j á não é natural, mas opcional etc etc. Penso que acrescentamos quando mostramos que havia outros olhares possíveis naquele instante crucial de industrialização e de modernização, outras alternativas vislumbradas, outras questões colocadas. N ã o para julgar quem estava politicamente correto ou para determinar quem venceu, mas para afirmar a pluralidade de experiências vividas. Diferentemente do olhar masculino, atento às grandes ações vivenciadas na esfera pública, como 17

greves, momentos de enfrentamcnto político, de lutas marcantes, de repressão policial, o radar feminino capta facilmente as experiências cotidianas e subjetivas, os jogos microscópicos de poder ou de sedução constituídos nas relações que se estabelecem na esfera da vida privada, no seio da família, fotografando os olhares emocionados, os pequenos gestos e atitudes, a circulação de fluidos e energias, como diríamos hoje, menos visíveis e importantes aos olhos masculinos. Decididamente, a memória feminina é muito diferente da masculina, ao menos em se considerando as gerações que conheceram um mundo extremamente segmentado em termos de divisão sexual dos papéis, das atividades, do tempo e do espaço: registros da subjetividade, das emoções, dos detalhes e das sociabilidades, dos micropoderes, do molecular, tão comuns entre as mulheres . 1

EXPERIÊNCIAS LIBERTÁRIAS

FEMININAS

O tema suscita a imagem de mulheres operárias, que compuseram o principal contingente das fábricas de tecido e vestuário, dos inícios do século 20 em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que atuaram politicamente de maneira organizada ou espontânea, desencadeando greves pelo aumento salarial, pela redução da jornada de trabalho, pelo respeito no trato em relação a elas mesmas e às crianças, contra o despotismo fabril, ou solidárias aos seus pais, companheiros e irmãos. Nas circulares que os industriais ligados ao CIFTSP (Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo) se enviavam nos anos 1910 e 1920, é de se notar a quantidade de mulheres jovens citadas como " i n desejáveis" e ameaçadas de demissão por roubo de peças, boicote, sabotagem e agitação política.

1. Vejam-se para esta discussão o artigo de PERROT, Michelle. "Práticas da Memória Feminina". In " A Mulher e o Espaço Público". Revista Brasileira de História, vol.9, n. 18, ago./set. 89, Sao Paulo: Marco Zero, 1989; e "Mémoires des Femmes", Revista Penélope, n. 12, printemps 1985.

Embora seja reduzida a historiografia contemporânea que registra suas lutas e reivindicações, já não carregamos a pesada imagem da passividade feminina na história social do trabalho no Brasil. Lutando pela melhoria de sua condição social e

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sexual, as mulheres também conquistaram seu direito à memória e, mais ainda, à História . Entre aquelas que aderiram à causa anarquista, vale lembrar nomes conhecidos como o de Maria Lacerda de Moura, que Miriam Moreira Leite apresentou ao público brasileiro, na década de 1980 . Jornalista, escritora, ativista política, ficou famosa por suas ideias feministas e libertárias, expressas em i n ú m e r a s palestras, artigos publicados na imprensa operária anarquista, e por seus vários l i vros, onde dirige uma contundente crítica à moral burguesa, ao autoritarismo político e social e à opressão das mulheres: A Mulher é uma Degenerada?, Amai e Não Vos Multipliqueis, Han Ryner e o Amor Plural, Religião do Amor e da Beleza. além de dirigir a revista Renascença, em 1925 . 2

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Menos divulgados ou totalmente desconhecidos são os nomes das inúmeras militantes anarquistas que aparecem nos jornais, nos panfletos políticos, 2. Já sao clássicos os estudos de SAFFIOTI, Helcieth. Mito e Realidade: a Mulher na Sociedade de Classes. São Paulo: Quatro Artes, 1969; PENA, Maria Valéria Juno. Presença das Trabalhadoras na Constituição do Sistema Fabril. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 3. LEITE, Miriam Moreira. Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de Moura. Rio de Janeiro: Ática, 1984. 4. MOURA, Maria Lacerda de. Amai e Não Vos Multipliqueis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932; A Mulher c uma Degenerada?. São Paulo: Typ. Paulista, 1924, Religião do Amor e da Beleza. São Paulo: Ed. Typ. Condor, 1926; Han Ryner e o Amor Plural São Paulo: Unitas, 1932. 20

nas propagandas da imprensa libertária, ou então, nas correspondências e documentos de controle policial. Várias participavam dos comícios e agitações populares, como se pode depreender da carta irada enviada, em São Paulo, pelo inspetor de investigação ao diretor do Gabinete de Investigações e Captura, dr. Virgílio do Nascimento, por ocasião da greve de 1917. Nesta carta, procurava mostrar que a participação feminina no movimento resultava da manipulação masculina, o que contrasta evidentemente com as notícias que revelam a eclosão desta greve a partir de uma movimentação iniciada pelas operárias do Cotonifício Crespi: "Atualmente, esses homens empregaram um outro meio para captar as simpatias dos operários: é em fazer operárias subirem à tribuna pública c falar contra os p a t r õ e s e contra as autoridades c o n s t i t u í d a s . Ainda ontem e em outros comícios anteriores, não tem faltado a eles com a sua palavra arrogante e atrevida a o p e r á r i a Penélipe (sic), residente à rua Cavalheiro Crespi, n ° . 3 " . (Processo criminal de Edgard Leuenroth, arquivo particular do dr. Guido Fonseca.)

Na maioria das vezes, a preocupação em impedir a manifestação política das anarquistas vinha direto dos policiais. Por ocasião de um comício realizado na Praça Antônio Prado, em São Paulo, em março de 1911, após o discurso do anarquista italiano Oreste Ristori, noticia o jornal Correio Popular: " A l g u m a s o p e r á r i a s , pertencentes à Sociedade Feminina de E d u c a ç ã o Moderna, pretenderam t a m b é m falar à s 21

massas, mas a polícia interveio e pô-las em debandada". (Correio Popular, m a r ç o de 1911).

A l g u m a s ficaram mais conhecidas como Matilde Magrassi, que colaborava em A Terra Livre e O Amigo do Povo, de São Paulo. Isabel Cerruti, colaboradora de A Plebe, Josefina Stcfani, Maria Antônia Soares, Maria Angelina Soares, Maria de Oliveira, Tibi, ativas militantes que assinam os artigos desta imprensa e organizam reuniões nos centros de cultura social, ou entre os grupos de teatro que existiram no país . 5

A o lado delas, Maria Lacerda de Moura funda uma Federação Internacional Femina, em 1921, com um grupo de São Paulo, sediado na Rua da Liberdade, n° 198 e outro em Santos, instalado na Avenida Ana Costa, n° 168. A Federação colocava como meta, em seu programa:

" a s s i s t ê n c i a , sistemas coercitivos, trabalhos d o m é s t i c o s e trabalho industrial, s e d u ç õ e s , j o g o , infância delinquente, investigação à paternidade, j ú r i , direitos civis e políticos da mulher, tráfico de mulheres, c o e d u c a ç ã o , casamento, (...) d i v ó r c i o , salário, os crimes da maternidade fora da lei, eugenia, p r o t e ç ã o aos animais etc"

eram os pontos destacados como fundamentais para o trabalho da Federação. Nesta direção, a emancipação da mulher é pensada não apenas a partir da reivindicação de melhores condições de trabalho, mas a partir de uma nova relação com o próprio corpo, educando-se e organizando-se em grupos alternativos de solidariedade.

"canalizar todas as energias femininas dispersas, no sentido da cultura filosófica, sociológica, psicológica, ética, estética - para o advento da sociedade melhor".

Os direitos da criança e da mulher, a importância da educação e da introdução de disciplinas como pedagogia, higiene e pediatria nos cursos superiores, a criação de uma cadeira de História da Mulher, e a discussão de questões sociais como 5. BARROS, Mónica Leite. Mulheres Trabalhadoras e o Anarquismo no Brasil, dissertaç3ode mestrado, UNICAMP, 1978. 22

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INTEGRAÇÃO E

MARGINALIZAÇÃO

Talvez seja mais apropriado falar em experiências femininas do anarquismo, j á que nas entrevistas orais que realizei com mulheres anarquistas de três gerações diferentes, pude perceber que o anarquismo teve significados diferentes para cada uma. As entrevistas com a italiana Luce Fabbri (90 anos) e a uruguaia Débora Céspedes (71 anos), realizadas em agosto de 1992, e com as brasileiras Maria Valverde (81 anos), Sônia Oiticica (76 anos) e Dora Valverde (56 anos), gravadas entre maio/ junho de 1994 foram muito enriquecedoras: revelaram o perigo das generalizações no discurso do historiador e trouxeram-me novas questões sobre o anarquismo, particularmente o de seus significados seja enquanto meio de integração, seja de marginalização, na cidade moderna. Luce Fabbri e Débora Céspedes foram entrevistadas num domingo ensolarado de agosto de 1992, em casa do professor Maurício Tragtenberg, por ocasião de sua vinda ao Congresso Internacional Anarquista "Outros 500", realizado na PUC-SP. 25

Luce Participou das inúmeras sessões realizadas naquela semana, sempre acompanhada pela companheira anarquista Débora. Nascida na Itália, em 1908, falecida em 2000, com 92 anos de idade, Luce chegou ao Uruguai em 1929, aos 21 anos, fugindo das perseguições políticas do fascismo. Filha de Luigi Fabbri (1877-1935), conhecido líder anarquista, lembra-se da difícil situação de fuga pelos Alpes, com passaporte falsificado, do embarque no navio cargueiro que a trouxe para a América do Sul, auxiliada evidentemente pelos grupos anarquistas dos vários lugares por onde passava. O anarquista Jaime Cubero, do Centro de Cultura Social de São Paulo, já falecido, perguntou-lhe durante a gravação, se o navio estava muito cheio e ela se recordou da viagem feita ao longo de 27 dias, entre os meses de março e abril de 1929: "En ese barco tenia um companero italiano, nada m á s , pero vénia um cargamento de prostitutas, todas muchachas polacas...probablemente no eram prostitutas, veniam a trabajo enganadas por una prostituta francesa, iban a Buenos Aires".

"Tráfico de escravas brancas?", perguntei-lhe. "Si, trafico de blancas, una pena, ellas hablaban polaco, adernas estaban abajo no subian casi nunca, era un barco de carga, no tenia pasageros, habia un camarote sólo que o c u p á v a m o s nosotros, un camarote de tercera, habia primera e tercera, la primera era un camarote de los

oficiales, y alia estaba Mine La Baronne, la prostituta francesa, bonita, ( . . . ) , dos camarotes de tercera, pero t e n í a m o s t r a t a m i e n t o de p r i m e r a , c o m í a m o s con el capitán..."

Da infância, lembra-se que o pai, um dos principais discípulos de Malatesta, com quem conversava em sua casa, e que este lhe ensinava muitas canções e brincadeiras. Em suas evocações, "no recuerdo tanto lo que hacia el (Malatesta) quando iba con m i padre a la c i u d a d de lo congreso, nosotros q u e d á v a m o s en casa; pero me recuerdo quando sentava debajo de la mesa (...), indiretamente influyo mucho".

Formada em Literatura Italiana, foi professora universitária até 1974, quando foi afastada pela ditadura militar, retornando em 1986 até 1991. Publicou várias obras voltadas para a crítica do fascismo e do fenómeno do totalitarismo, que marcou sua vida com tanta intensidade. Camisas Negras, Los Anarquistas y la Revolución Espanhola, El Totalitarismo entre dos Guerras, La Libertad entre la Historia y la Utopia são algumas de suas obras, constituídas em grande parte por artigos publicados na imprensa libertária e académica . 6

6. Vejam-se Rago, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. São Paulo: Editora da UNESP, 2001; CAPELLETTI, Angel. Hechosy Figuras dei Anarquismo Hispano-Americano. Madri: Ediciones Madre Tierra, 1990, p.48; FABBRI, Luce. Camisas Negras. Buenos Aires: Ediciones Nervio, 1935. 2-

Ativa militante do movimento anarquista. lutou contra o fascismo italiano e contra a ditadura no Uruguai; escreveu em vários periódicos anarquistas como o Solidariedade de Montevideu, ou La Protesta, de Buenos Aires, e participou de inúmeros encontros internacionais libertários, como o realizado em 1992, em São Paulo, ou o de 1993, em Barcelona. Luce nasceu no meio anarquista e conviveu durante toda a vida com a liderança anarquista italiana, espanhola e posteriormente também a sul-americana, pela própria posição de destaque que seu pai tinha no movimento e que, aos poucos, ela mesma adquire. Após ter sido preso por vários anos, Luigi é perseguido pelos fascistas, foge para a Bélgica e posteriormente para Buenos Aires, acabando por se instalar em Montevideu, em 1929, com sua família. Aí funda o periódico Studi Sociali, que Luce dirige após sua morte, de 1935 a 1946. Dos inúmeros artigos políticos e teóricos escritos pelo professor Fabbri, muitos dedicados a Malatesta, que ele tanto amava, destaco um pequeno trecho em que ele narra a emoção do primeiro encontro com o grande teórico do anarquismo, quando era bem j o vem e este parecia ter aproximadamente 40 anos: " T u v o la sensación de que, en aquel largo c o l ó q u i o de m á s de 24 horas, mi c é r e b r o hubiese sido tomado y dado vuelta en la caja craniana. Recuerdo, como si fuese aycr. 28

que sobre muchos argumentos, de los que antes me parecia estar tan seguro discutia, discutia, discutia... (...) La anarquia, que era la fe radiosa de mi primera juventud, desde entonces ya no fué solamcntc fe, sino convicción profunda". (La Protesta, Buenos Aires, I de maio de 1936). o

Os discursos pronunciados por ocasião de sua morte, em agosto dc 1935, em Montevideu e em Buenos Aires, exaltam o símbolo moral e político que ele representou para mais de uma geração e fazem crer que era uma figura extremamente prestigiada nos meios revolucionários de então. Seria valioso apresentar um trecho de um artigo que encontrei no jornal La Protesta, dc 1934, no Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, em que I ,uigi defende a "Libertad y Solidariedad", para conhecermos um pouco do ambiente em que Luce se formou. Estas concepções e ideais políticos foramIhe transmitidos nada menos do que por um pai visto como um homem íntegro, combativo, justo e admirável n ã o apenas por ela, mas por toda a comunidade libertária, e por Malatesta: "Es un trabajo múltiplo e multiforme que corresponde al anarquismo, y no bastaria para ejccutarlo una sola corriente, una sola o r g a n i z a c i ó n , una sola forma de movimento. Fscoja cada uno su próprio campo de a c c i ó n , cl campo mas adaptado a su temperamento, a sus tendê-ncias, a sus capacidades y desarolle ali toda la energia de que es capaz. Pero no caiga en el grave defecto de creer que s ó l o stl a c t i v i d a d especial es útil, que s ó l o el la es anarquista o revolucionária. La anarquia, como la 29

rcvolución, no s e r á la resultante de una sola a c t i v i d a d , sino dc todas; no de un solo tipo de o r g a n i z a c i ó n sino de los tipos más diversos: sindical c ideológica, permanente y transitória, nacional o internacional y local, para la propaganda y para la acción, publica y clandestina. Y cada forma requiere aptitudes personalcs diversas y por Io tanto estará compuesta de elementos diversos". (La Protesta, setembro de 1934).

Para Luce, evidentemente, o anarquismo significou muito mais do que uma ponte para o mundo e uma forma de inserção social na cidade, nos meios operários e revolucionários, como será para Maria Yalverde. É um ideal de vida, é o sentido de sua vida. A força do movimento anarquista nos lugares e nos períodos em que viveu seguramente marcaram de modo indelével sua experiência, de tal modo que Luce é impensável sem o anarquismo e com ela é a própria existência da doutrina que se personifica. Débora Céspedes, nascida cm 1921, no Uruguai, é poetisa e militou também a vida toda, mas são mais marcantes em suas memórias as lutas contra o regime ditatorial em seu país . Maria Valverde nasceu em Piracicaba, em 1916, filha de um anarquista espanhol José Valverde, que 7

7. Sua biografia, assim como a de seu companheiro Beto (Alberto Gallegos), foi publicada por: Fontana, Hugo. Historias Robadas. Beto y Débora, dos anarquistas uruguayos. Montevideu: Cal y Canto, 2005. 30

só entrou para os meios l i b d t á r i o s de São Paulo por volta de 1945, quando se mudou com a família para cá. Sônia Oiticica, de 1923, filha do conhecido militante anarquista José Oiticica, participou do movimento desde criança, atuando, assim como Maria Valverde, no teatro libertário. Pode-se dizer que pertencem à segunda geração: filhas de anarquistas convictos, viveram no interior deste universo, l i gadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde atuaram em inúmeras peças de cunho social. Também atriz do teatro amador libertário desde menina, Dora Valverde, nascida em 1941, em São Paulo, filha de Maria Valverde, integra a terceira geração de mulheres anarquistas. A o contrário de Luce, elas j á não participam das atividades libertárias, a exemplo das que se realizavam e ainda sc realizam no Centro de Cultura Social, ou cm outros núcleos anarquistas. Sônia Oiticica, filha do combativo militante anarquista José Oiticica, autor de inúmeras obras, entre as quais A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos e de muitos artigos publicados na i m prensa libertária, nos traz recordações muito felizes dos seus tempos de infância, quando, num ambiente especialmente cultural, pôde ter contato com vários personagens do anarquismo, dentre os 31

quais Maria Lacerda de Moura, de quem se lembra vagamente . Em suas palavras, esses militantes eram na maioria homens: 8

" M e u pai reunia sempre, toda semana, os anarquistas em casa. Discutiam alto, forte, minha m ã e sempre preparava depois um lanche para eles. Era muito s i m p á t i c o aquilo tudo, era o Manuel Perez, o Ideal que a t é hoje e s t á aí, (...) eram vários, tinha muita gente, e s p a n h ó i s , italianos, e de vez em quando ficava escondido um lá em casa, me l e m b r o do S t e f a n o v i t c h , u m v e l h o de barba branca, russo..."

Criada num ambiente bastante arejado e emocionalmente equilibrado, assim como Luce Fabb i e Maria Valverde, morou um tempo na Alemanha, para onde seu pai fora convidado a trabalhar como professor. E interessante notar que todas as filhas de Oiticica se ligaram às artes, à música, à dança, ao teatro, enfim à vida cultural, e que tenham se casado mais de uma vez. Segundo Sônia, seu pai dizia que sempre podiam contar com sua retaguarda, em caso de infelicidade conjugal. Foi com muita emoção que declamou uma poesia de seu pai, que ela conserva pendurada num quadrinho, na sala de seu apartamento, no centro da cidade de São Paulo: r

8. OITICICA, José. A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos. São Paulo: Económica Editorial, 1983. ( I . edição, 1947).

A Ronda Heróica Pela santa Anarquia, ideal humano, mais uma vez o cárcere transpus e aqui, neste cubículo tirano, aos maus dou meu perdão, como Jesus. Sei que através de muitos desenganos temos de ensanguentar a nossa cruz e transformá-la sós, anos após ano de lenho infame em tocha que conduz. Na Espanha, heróico o lábaro anarquista vejo em cada trincheira trovejar aponta ao mundo o rumo da conquista. De olhos nele, prosterno-me a rezar e aos poucos vai surgindo à minha vista a ronda dos seus mortos a cantar.

José Oiticica (Casa de C o r r e ç ã o , 17 de novembro de 1937)

Maria Valverde t a m b é m se recorda, com nostalgia, de um tempo feliz em que se sentia bastante integrada com os grupos anarquistas de São Paulo e de outros estados, especialmente a partir de sua experiência como atriz das peças de cunho social. Destas, destaca com carinho as escritas

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pelo sapateiro e militante espanhol Pedro Catallo, com quem conviveu por muitos anos. Filha de um sitiante espanhol, anarquista e radicalmente anticlerical, ela encontrou os "anarquistas organizados" quando chegou juntamente com o pai a São Paulo, aos 29 anos, grávida de Dora, vinda para um tratamento naturista. O anarquismo significou para ela uma porta de integração na vida social e cultural da cidade, em especial dos trabalhadores. "Na minha família, anarquista era meu pai, José Valverde Dias. N ó s c o m e ç a m o s quando viemos de Piracicaba para S ã o Paulo. Fui a uma c o n f e r ê n c i a dos anarquistas com meu pai, e aí anunciaram que iam formar um grupo de teatro.(...) A moça que ia tomar parte n ã o f o i , e o diretor me convidou. Eu tomei parte s ó para ajudar, e aí não saí mais.(...) As peças eram apresentadas no Teatro Colombo e no Teatro Arthur Azevedo. (...)". (Entrevista realizada em j u n h o de 1994).

No caso dela e de Sônia, que se aproximam também enquanto geração, é de se notar que o anarquismo atuou como fornia de integração social, facilitando o contato com a comunidade de trabalhadores imigrantes, assim como com os grupos de teatro amador e profissional. Os anarquistas reuniam-se no Centro de Cultura Social, fundadc em 1933, em São Paulo, posteriormente localizado à Rua Rubino de Oliveira, no Brás e hoje à Rua General Jardim; em sua casa, no Tatuapé, onde en34

saiavam várias peças teatrais; ou ainda, na chácara comunitária situada no antigo Itaim, onde se realizavam os famosos encontros c congressos l i bertários . Tendo iniciado nos círculos culturais libertários, Sônia profissionalizou-se como atriz de teatro, tornando-se uma figura bastante conhecida ao longo de sua vida. Dora Valverde, mais jovem, participa de uma outra geração, para a qual a experiência anarquista foi, num certo sentido, muito diferente da dos pais e menos gratificante. Seu irmão, seis anos mais jovem, não se tornou anarquista e ela mesma não se casou com um simpatizante do movimento, e hoje considera o anarquismo uma utopia irrealizável. Como ela diz, se hoje pode avaliar que rico universo tinha ao seu redor, referindo-sc às atividades culturais, às discussões políticas, às festas, aos encontros com os companheiros de seus pais. ativos combatentes pelos direitos democráticos e igualitários, ao mesmo tempo, sofreu com a "guetização" do movimento, nas décadas de 50 e 60. Isto é, na medida em que se tornava adolescente, por volta dos anos 50, o anarquismo fechava-lhe muitas portas de interação social com outros jovens de fora da comunidade libertária e operária. A n 9

9. Ver BORGES, Paulo. Jaime Cubem e o Movimento Anarquista em São Paulo, Dissertação de Mestrado. PUC, 1996; AVELINO, Nildo. Anarquistas: Ética e Antologia de Existências. Rio de Janeiro: Achiamé, 2004. 35

ticlcricais, os anarquistas condenavam a participação nas atividades religiosas, como casamentos, batizados, primeira comunhão etc, que seus amigos frequentavam; militantes ativos, exigiam que ela participasse das greves que organizavam ou a que aderiam, e da qual ela se sentia exterior. Há que se considerar ainda que à medida que, politicamente, o movimento perdia força, o grupo dos anarquistas diminuía e se fechava, os contatos entre seus membros tornavam-se mais esporádicos e aumentava a necessidade de abrir-se para o mundo exterior. Além do mais, uma vez que vários membros experimentavam um movimento de ascensão social, tornando-se "classe média", as necessidades cotidianas e de sociabilidade mudavam. Nesse sentido, Dora e seus irmãos sentiam-se marginalizados em relação aos jovens de sua idade, na grande maioria, sem qualquer contato nem com os anarquistas, nem com os comunistas.

Catallo, que conviveu por muitos anos com sua família, e que. de certa forma, assume o mesmo lugar em sua memória que Luigi Fabbri para L u fe, ou José Oiticica para Sônia, não lhe poupa críticas, como a de ser um homem muito "radical", que não negociava nas questões familiares e nas relações afetivas. Ainda assim, está muito longe de ser lembrado com ressentimento. Emocionadas, Dora e Maria me apresentaram, além de um livro de poesias, algumas das peças teatrais que ele escreveu e que elas representaram: O Coração é um Labirinto. "conflito amoroso em três atos" e Uma Mulher Diferente, "drama de crítica social em três atos". Em suma, por mais que faça, hoje, uma avaliação bastante crítica dos anarquistas, Dora é uma mulher extremamente aberta, principalmente com os filhos, e admira profundamente os ideais anarquistas. Como todos os anarquistas, valoriza excepcionalmente a liberdade, a não-hierarquização e as atitudes libertárias. Conclui que não seria a mesma pessoa caso tivesse nascido num ambiente mais autoritário. Inserida na modernização paulistana, vizinha de um shopping center, vivendo num período de acentuado refluxo do movimento anarquista, procura colocá-lo no lugar que ocupou em sua vida, nem mais nem menos.

A o contrário de Maria, Dora tem hoje uma visão mais dura dos anarquistas, apontando em suas memórias para o autoritarismo interno do grupo e dos familiares, para o machismo dos homens, para um certo fracasso na realização prática dos ideais libertários no cotidiano. Um certo fracasso, bem entendido, porque realmente ela está muito longe de compará-los aos grupos de direita ou sem ideologia que conhecemos. Embora se lembre com ternura do sapateiro e escritor anarquista Pedro

Estas cinco mulheres trazem recordações extremamente positivas dos tempos libertários, dos gru-

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pos dc militantes e simpatizantes com os quais conviveram, das atividades culturais a que tiveram acesso tão cedo. N ã o há como não manifestarem um forte sentimento de perda, progressivamente à idade. Pois, muitas vezes, nas palestras realizadas no Centro de Cultura Social, discutiam-se assuntos que hoje parecem extremamente avançados, como os referentes à moral sexual e à sexualidade, em meio à construção de uma cultura libertária que, no mundo contemporâneo, onde os processos de individualização e de ascensão do narcisismo se fazem tão fortes, não podemos deixar de valorizar profundamente.

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ANARQUISMO E FEMINISMO Essas experiências trazem algumas informações sobre as relações entre as mulheres e o anarquismo e entre o anarquismo e o feminismo, no Brasil. Afinal, muitas trabalhadoras encontraram nesta doutrina e neste movimento político espaço para a elaboração de suas reivindicações e para a p r o b l e m a t i z a ç ã o de q u e s t õ e s especificamente referentes à condição feminina, não subordinadas estritamente às questões de classe social. Entretanto, vale lembrar que outras correntes do feminismo emergiram, neste período, para além dos meios anarquistas, entre as mulheres dc classe média e alta, preocupadas com o acesso à esfera pública moderna, à educação, à vida profissional e com o direito de voto. Revistas como A Mensageira (1897-1900) e a Revista Feminina (19141936), publicadas por mulheres da elite, em São Paulo, circulavam por todo o país defendendo os ideais feministas numa perspectiva liberal, enquanto no Rio de Janeiro, Bertha Lutz, bióloga paulista graduada pela Sorbonne, enfrentava a concorrência masculina para dirigir o Museu Nacional c fundar, 39

em 1918, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher Brasileira, ao lado de Maria Lacerda de Moura . Burguesas, ricas, consumistas ou n ã o , sem dúvida, enfrentaram uma resistência bastante difícil diante de um mundo masculino, que afirmava cientificamente a incapacidade intelectual, física e moral das mulheres, dotadas de uma caixa craniana mais leve do que a masculina, ou de um formato de quadril especial para a maternidade, que dificultava o andar agilizado pelas ruas da cidade, como diziam os doutores franceses e ingleses desde o século anterior. No entanto, parece que o contato entre as anarquistas e as feministas liberais praticamente não existiu, ou foi bastante tenso, j á que estas não só condenaram aquelas como radicais, procurando manter uma profunda distancia do que ironicamente definiam como "feminismo revolucionário", destruidor dos lares e "anárquico" como. muitas vezes, até desconheceram a cultura operária que se produzia e cultivava nas imediações. H comum 10

encontrarmos afirmações, naquelas publicações feministas, de que as mulheres pobres precisariam ser conduzidas pelas mais ricas, pois estas seriam racionais e capazes de direção política, enquanto aquelas estariam absolutamente presas à dimensão biológica, cuidando da casa e dos inúmeros filhos, sem oportunidades para desenvolverem-se no plano cultural e pessoal. Assim, diziam: "à mulher superior, a quem os deveres maternais são mais leves, compete manter e i n c r e m e n t a r a v i d a m o r a l , intelectual e social do povo a que pertence". (Revista Feminina, abril de 1920).

Por outro lado, quando fazem referências às feministas liberais, as anarquistas criticam sua luta como pouco transformadora, j á que limitada ao acesso à esfera pública burguesa, masculina e preservadora das relações hierarquizadas na esfera privada. A anarquista Isabel Cerruti, em artigo publicado na imprensa libertária, naquele mesmo ano, respondia:

10. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e Feminismo. A Lula da Mulher pelo Voto no Brasil. Rio dc Janeiro: Vozes, 1980, p. 104; sobre as difíceis relações entre Maria Lacerda de Moura e Bertha Lutz, veja-se LEITE, Miriam Moreira, op. c/7., p. 37 e seg.; HAHNER, June. Emancipating lhe Female Sex. The Strugglefor Womens Rights in Brazil. Durham and London: Duke University Press, 1990, p.l40eseg.

" A Revista Feminina em seu programa p r o p õ e - s e a propugnar pela e m a n c i p a ç ã o da mulher conseguindo para ela o d i r e i t o de empenhar-se em lutas eleitorais. (...) C o m o se a e m a n c i p a ç ã o da mulher se resumisse em t ã o pouco... O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira c o n c e p ç ã o , o papel grandioso que ela deve desempenhar.

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como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social (...)". ( A Plebe, 20/11/1920)".

E importante trazer para o debate alguns dos problemas que o anarquismo teve de enfrentar em sua relação com o feminismo, entendido aqui num sentido lato. Pois tanto o feminismo, enquanto conjunto de ideias, práticas e movimentos de luta pela e m a n c i p a ç ã o da mulher, como o anarquismo nascem no século 19, a partir de uma preocupação com o indivíduo e com sua autonomia, apesar das diferenças e dos vários pontos de tensão, nesta relação. Procuro, então, pensar quais as possibilidades de um anarco-feminismo ou dc um feminismo libertário e o lugar que o feminismo encontra nesta doutrina e prática política, a partir da experiência histórica brasileira. Vale lembrar que a própria construção histórica que as feministas atuais fazem de sua tradição combativa tem deixado de lado a experiência feminina/ista do anarquismo, em suas lutas extremamente atuais, para privilegiar as feministas liberais, exceção feita ao estudo pioneiro de Miriam Moreira Leite, j á citado. De certo modo, repõe-se uma tradição historiográfica que silenciou a experiência anarquista no Brasil e minimizou outras formas de luta que não 11. Veja-se LIMA, Sandra Lúcia Lopes. Espelho da Mulher: Reviste Feminina (1916-1925), tese de doutoramento em História, São Paulo: USP, 1991, p.77 e seg.

as direcionadas pelo partido político, ou voltadas para a política institucional e partidária . Nos poucos estudos de história do feminismo existentes no Brasil, silencia-se a experiência anarquista, ou então, esta vem muito condensada e questionada enquanto prática contraditória com a teoria libertária de emancipação dos sexos . 12

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12. RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar. A Utopia da Cidade Disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, I985,cap.2. 13. Há brevíssimas referências às anarquistas em TELLES, Maria Amélia. História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1992; HAHNER, June lhes confere um rápido espaço cm s^u recente livro Emancipating lhe Female Sex. The Struggle for Womens Rights in Brazil, op. cit., cap. 3 e 4, ao contrário do que ocorrera com seu livro A Mulher Brasileira esuas Lutas Sociais e Politicas. publicado pela Editora Brasiliense, em 1981, que absolutamente não as menciona.

A MORALSEXUAL É conhecida a preocupação que tem o anarquismo com os direitos do indivíduo e, nesse caso, com a libertação das mulheres. Mais do que qualquer doutrina política, o anarquismo tem uma preocupação especial com a emancipação feminina, o amor livre, o fim do casamento monogâmico e contratual, o divórcio, o direito à maternidade. Na medida em que não tem o Estado como alvo central de sua luta política, e em que a estratégia da ação direta coloca em cena uma outra concepção de revolução, na qual a transformação não se dá apenas no dia seguinte à tomada de poder político, mas ocorre gradualmente no cotidiano, outras dimensões da vida social, como o campo da moral, acabam sendo privilegiadas. A transformação das relações sociais passa pela destruição das relações hierárquicas em todos os campos da vida social, da fábrica à escola e ao lar, e pelo reconhecimento da liberdade e dos direitos do indivíduo. Este se coloca em primeiro plano em relação à coletividade, e por isso mesmo é possível a problematização das questões referentes à condição feminina 45

de uma maneira especifica, distinguindo-se das questões masculinas. Valeria lembrar que os anarquistas propuseram a constituição de novas formas da relação afetiva, sexual, familiar, defendendo o fim do casamento contratual e monogâmico, o amor livre, o direito ao prazer, a ausência de regras rígidas codificando os sentimentos e as emoções. Maria Lacerda, por exemplo, afirmava, num debate com Alexandra Kollontai, da Oposição Operária Bolchevique, que o amor não poderia ser organizado pelo partido ou por qualquer ideologia, sem que fossem sufocadas a liberdade e as experiências do passado. " A vida não cabe dentro de um partido é uma dc suas frases mais incisivas. ,,

Além do mais, engrossava as vozes dos que defendiam a educação sexual dos jovens, acreditando que a inexperiência, tanto quanto a desinformação levavam à opressão da mulher no próprio casamento. Para ela, pelo fato de ser pluralista, o homem conseguia circular na esfera pública com mais desenvoltura, não depositando numa única pessoa toda a fonte de sua vida. Mais seguro, mais calmo, contando mais consigo mesmo, o homem conseguiria participar do jogo das relações sociais que se constitui na esfera pública dc uma maneira que as mulheres ainda teriam de aprender. Nesse sentido, a questão da emancipação das mulheres através de sua libertação económica e 46

cultural foi reforçada no amplo debate que os anarquistas travaram, ao criticar as instituições burguesas e patriarcais. A luta pela independência feminina era, nesse registro, primeiramente uma questão moral: trata-se de libertar-se da imposição do modelo burguês de feminilidade e de construir uma nova figura de mulher. Pode-se imaginar o medo que causavam estas colocações, nesta época de supervalorização da "mulher fatal", da uvampn e das "Salomés", no imaginário masculino. Capazes de destruir a civilização, enquanto personificações de forças instintivas incontroláveis e maléficas, seriam responsáveis pela destruição dos casamentos e dos lares, assim como pela generalização da "anarquia sexual" . Médicos e juristas esforçavam-se, portanto, para mostrar às mulheres que haviam nascido para a maternidade, enquanto procuravam fornecer aos homens informações sobre a fisiologia feminina como meio para satisfazerem sexualmente as esposas e preservarem o casamento. Para uns, apesar das avançadas ideias libertárias, a prática social dos anarquistas parece ter correspondido menos às suas propostas. São conhe14

14. Vcjam-se o interessante trabalho de SNOWALTER. Elaine. Anarquia Sexual. Rio de Janeiro: Rocco, 1994; e RAGO, Margareth. "O Prazer no Casamento: homem e mulher no leito conjugal". Revista Ideias. n°2, IFCH - UNICAMP, 1994. 47

cidas as críticas e n d e r e ç a d a s aos anarquistas, destacando a incoerência entre teoria e ação no campo da moral. Estudos dos anos 1980 preocuparam-se em mostrar que os anarquistas dos inícios do século 20 eram moralistas, n ã o praticavam o amor livre, proibiam p r á t i c a s como o carnaval ou as festas populares, assim como outros hábitos tidos como "vícios burgueses": bebida alcoólica, fumo, bordéis. E, ao contrário do que registramos em experiências como a parisiense ou a portenha, os bairros operários anarquistas não coincidiam com a "geografia dos prazeres": La Boca, em Buenos Aires e Montmartre, em Paris, não encontram correspondência no Brás ou no Bom Retiro. Pesquisando a experiência feminina na Colónia Cecília, Hadassa Grossmann, que não acredita no anarquismo, afirma que as mulheres aí também exerciam funções secundárias, ou que aparecem nos relatos de seus companheiros idealizadas pelas metáforas românticas da passividade, compreensão e carinho . Já Maria Lacerda de Moura, criticando a leitura que Afonso Schmidt fez da experiência da Colónia Cecília, censura-o por apresentar uma 15

15. GROSSMANN, Hadassa. La Femme du Secteur Ouvrier au Brésil, tese de doutoramento. Paris, 1991. Numa perspectiva libertária. Helena Isabel Mueller. Flores aos Rebeldes que Falharam: Giovanni Rossi e a Utopia Anarquista: a Colónia Cecília. Tese de doutoramento, USP, 1989. 48

leitura totalmente masculina, abstraindo a atividade das mulheres que aí participaram . As próprias anarquistas, aliás, criticavam seus companheiros pelas posições machistas que as colocavam em lugares de subordinação, seja na prática política, nos sindicatos, seja na representação da mulher como figura frágil e delicada, nos romances e peças teatrais, seja ainda na própria construção da memória histórica. N o entanto, foi Maria Valverde quem levou o marido para o anarquismo, e n ã o o considera a u t o r i t á r i o . A l i á s , segundo o depoimento de sua filha, ela era 16

"o homem da família. Ela era uma pessoa mais ativa (...). Ela conseguia vagas nas escolas particulares para os filhos (...). Tudo se decidia com ela, na casa."

À pergunta de como via sua experiência no anarquismo enquanto mulher, Luce Fabbri, por sua vez, respondeu: " N o r m a l , nada de especial, si fuera hombre teria sido completamente lo mismo. Yo no encontre ningún obstáculo pelo hecho de ser mujer, ni entre los companeros, ni en el concurso para la Universidad".

O anarquismo direcionou-se às camadas sociais mais desfavorecidas, sobre as quais pesam de ma16. CORREIA, Francisco. "Mulheres Libertárias: um roteiro", in PRADO, Antonio Amoni. Libertários no Brasil. Memória, Luta. Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.39. 49

neira diferenciada os códigos morais. Em outras palavras, o amor livre praticado por uma mulher da elite teria um significado e uma reação muito diferentes daquele praticado por uma mulher pobre. Do mesmo modo, as campanhas contra o alcoolismo e o jogo nunca visaram os homens ricos, mas os pobres, considerados mais inclinados à perda do controle racional. Numa sociedade altamente conservadora, a despeito do processo de modernização em curso, a prática do amor livre pelas camadas pobres da população seria considerada prostituição pura e simplesmente. E compreensível, portanto, que os anarquistas se preocupassem com a preservação de sua imagem moral contra a projeção dos preconceitos burgueses. Condenar o alcoolismo, orgias, "deboches" entre os trabalhadores significava preservar uma imagem de ordem, em oposição à tentativa constante de nivelamento da liberdade com a licenciosidade, nas práticas e pensamento das elites e da sociedade em geral. Lembre-se que, neste período, muitos médicos ainda reforçavam o argumento de que as mulheres não tinham "apetite sexual", a não ser para fins procriativos, enquanto outros condenavam a austeridade dos maridos que não aceitavam dar prazer sexual às esposas, que só conseguiam ver na condição de "mães de seus filhos". Daí, também, a possibilidade que as vanguardas artísticas c literárias encontraram, ao contrário dos anarquistas. 50

de praticar os ideais de uma nova moral. Pagu, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti podiam circular pela cidade, desafiando a moral burguesa, a exemplo dos personagens de Oswald de Andrade e Mcnotti dei Picchia, sem contudo, desencadearem uma guerra por parte de vários setores sociais, como teria ocorrido com a " P e n é l o p e " libertária. O autoritarismo dos anarquistas também deve ser relativizado, pois certamente as filhas destes militantes convictos tiveram experiências de vida mais descontraídas e mais livres em relação às dc outros meios sociais. Não por acaso, várias se tornaram artistas ou professoras universitárias: o universo cultural mais arejado em que se formaram não pode ser menosprezado. Qual é a avaliação de Dora Valverde, por exemplo? " A s relações familiares foram mais spltas.(...) Mas, o sentido de virgindade era importante para eles, embora eu tenha recebido muitas informações que outras c r i a n ç a s , outras adolescentes n ã o recebiam. Mas sempre através de conferencistas, me faltava aquela experiência (dc e d u c a ç ã o sexual) em casa".

Lembra-se de que nas reuniões do Centro de Cultura Social, que se realizavam aos sábados à tarde, os palestrantes abordavam assuntos os mais variados, inclusive os que se referiam à questão sexual, como a masturbação.

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"Todos os s á b a d o s tínhamos conferencistas, falava-se de tudo. Já naquela época o Gaiarsa dava conferências, o K l e i n , que foi recentemente assassinado".

Em relação às relações familiares e de grupo, ela afirma: " A c o n v i v ê n c i a do grupo era maravilhosa. (...) Uma coisa que me gravou: a família do Jaime Cubero, porque eu nunca v i coisa igual, os irmãos como se amam, como eles se protegem, como eles se respeitam, como eles s ã o s o l i d á r i o s ! (...) A S ô n i a O i t i c i c a t a m b é m teve um pai maravilhoso!"

Já Luce Fabbri fala de suas dificuldades pessoais para aceitar o homossexualismo outrora, e de como foi surpreendente descobrir que vários amigos eram homossexuais. A o mesmo tempo, é interessante observar que estas mulheres tiveram casamentos estáveis, monogâmicos e duradouros, à exceção de Sônia, que se casou mais de uma vez, e constituíram famílias bastante integradas.

ANARQUIZANDO Não dá para negar a diferença dos parâmetros que as pessoas se c o n s t r ó e m a partir de suas experiências de vida: quem nasceu num meio anarquista, com certeza adquiriu padrões de referência do que seja solidariedade, companheirismo, amor, liberdade, vida sexual e afetiva muito diferentes dos que estiveram de fora. Os resultados parecem hoje muito mais perceptíveis. As mulheres de dentro do meio anarquista, a despeito das gerações parecem ter tido experiências muito mais abertas e intensas das relações afetivas, tanto quanto da ideia de autonomia, em relação à maioria da população: essas cinco mulheres, incluindo Débora, participaram de famílias muito coesas, conheceram valores muito fortes dc integridade moral, de ideais democráticos, de justiça social, e tiveram direta ou indiretamente experiências de solidariedade frente às prisões e p e r s e g u i ç õ e s políticas sofridas pelo grupo pouco comuns. É de se notar o profundo respeito e a grande admiração com que se referem aos membros do grupo. Além do mais, é interessante observar como as diferenças de geração e de países marcaram suas

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experiências de vida e as concepções que formaram. Luce Fabbri, a mais velha, participou de uma geração mais gloriosa e combativa num certo sentido, recebendo os ideais libertários a partir do centro do anarquismo: diretamente dc Malatesta ou de seu pai. Ela mesma teve de enfrentar perseguições políticas muito mais violentas e acirradas do que as outras, e enfrentou uma diversidade dc situações e de vivência em meios anarquistas muito maior, já que circulou por outros países e acabou vinculandose aos anarquistas de países bastante politizados, como a Argentina e o Uruguai. Não é à toa que tenha escrito vários livros políticos para denunciar o fascismo e o totalitarismo no mundo, e que esteja ainda hoje organicamente ligada ao anarquismo, a cujo ideal se dedicou integralmente, ao longo de sua existência. Sua utopia seguramente não morreu. Ao lado de Débora, cuja amizade firmou há mais de 40 anos, lutou pela condução c organização do movimento anarquista naquelas regiões, trabalhando intensamente desde as tarefas mais simples, administrativas, até as mais complicadas como escrever para os jornais. Para Débora, cujas retlexões se aproximam das de Jaime Cubero, o anarquismo continua também extremamente vivo e atual, embora avalie criticamente o refluxo do movimento em todo o mundo e considere que este deva se adequar aos novos tempos da revolução tecnológica. Contudo, sua 54

avaliação não a leva a desacreditar do ideal, considerando que como toda luta política, o movimento anarquista também tem seus momentos dc ascenso e descenso, especialmente num mundo tão dominado pelas ditaduras e outras formas de totalitarismo. Revelando uma visão extremamente politizada e bem informada das questões contemporâneas, ela afirma: " E l anarquismo es una atitude ética perante la vida. (...) Pensaria que la ditadura en los diferentes países ha provocado un vacio. May un espacio por ondeei anarquismo no pudo difundirse, y una s e g r e g a c i ó n q u i p e r d i ó la posibilidad de accionar y dc estudiarlo. Entonces ahora hay retomado, porque la liberdad esta en toda la gente, pero no han tenido acceso a esta continuidad."

Maria Valverde t a m b é m experimentou um momento ainda vivo das lutas e da cultura anarquista no Brasil, antes do fechamento político pela ditadura militar a partir de 1964. Pôde. portanto, estabelecer uma rede de relações bastante densas no meio operário e anarquista, que perdura ainda hoje. Se n ã o participa das m o v i m e n t a ç õ e s culturais atualmente, isto se deve cm parte â dificuldade de s a ú d e e n ã o exatamente à falta de c o n v i c ç ã o política. O anarquismo ainda representa uma esperança e uma possibilidade para ela. PergunteiIhe como ela via a experiência anarquista hoje, e a resposta veio taxativa: 55

"Eu vejo como um ideal e como uma ideologia muito perfeitos, porque v ê m sempre em favor do o p e r á r i o , dos pobres, das c r i a n ç a s . Todos os teatros que n ó s d á v a m o s , d á v a m o s em favor das c r i a n ç a s , da Espanha, da França e daqui".

Sem dúvida, Luce Fabbri concordaria integralmente com ela. Sônia e Dora, por sua vez, tiveram experiências de vida muito mais diversificadas, enraizando suas relações pessoais muito mais no mundo exterior à comunidade anarquista do que dentro dela. Ambas têm uma referência mais distante desta doutrina e uma relação mais cctica com o futuro, apesar da diferença de gerações. Para elas, o anarquismo representa uma utopia irrealizável, na complexa vida social do mundo contemporâneo, e a maior parte de sua rede de relações se situa fora deste universo. No caso dc Sônia, no inundo artístico profissional, por exemplo. Para minha grande surpresa, fui convidada neste ano de 1994 para dar uma palestra sobre as relações entre o anarquismo e o feminismo, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, pelo recém-formado Coletivo Anarco-Feminista de São Paulo. Mais surpresa ainda fiquei quando me deparei com as inúmeras militantes do Coletivo e organizadoras do evento: jovens de aproximadamente 20 anos, habitantes de bairros periféricos da Grande São Paulo, de aparência rap-punk. 56

O desconhecimento do anarquismo e do feminismo no grupo me pareceu muito grande, porém menor do que o meu sobre aquelas jovens. Perguntei-me de onde haviam saído, como haviam conhecido o anarquismo e, mais ainda, como haviam estabelecido a ponte entre o anarquismo e o feminismo? O sentimento de que uma tradição política se perdia foi, é claro, violento. O interesse que elas demonstraram pelo tema t a m b é m foi surpreendente. De certa maneira, estamos nos reconhecendo na paralela, j á sabendo, graças às novas descobertas da geometria euclidiana, que as paralelas se encontram no infinito.

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REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS

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AUDÁCIA DE SONHAR Memória e Subjeíividade em Luce Fabbri

" O anarquismo é mais um caminho do que um f i m , a finalidade é sempre i n a l c a n ç á v e l , qualquer finalidade, n ó s a concebemos como inteira, perfeita e como tal n ã o se a l c a n ç a . Sacrificar a essa finalidade o que a pessoa sente e pensa é suicida, porque, na realidade, n ã o se consegue nada, tampouco no momento presente e o que interessa é o presente que estamos v i v e n d o , que é o que existe. O anarquismo é uma forma de sentir o presente em vista de algo, em vista de uma finalidade, quer dizer senti-lo libertariamente, em vista de uma liberdade, pois o perfeito n ã o existe, p o r é m , pode-se ir a ele... n ã o é uma atitude i n d i v i d u a l , mas social, que interessa à sociedade em seu conjunto, portanto implica o r g a n i z a ç ã o , ordem, r a z ã o . . . "

Foi esta a definição de anarquismo que me deu a militante italiana Luce Fabbri, logo que iniciamos nossas conversas, em 1995, e considero-a uma porta de entrada bastante esclarecedora para iniciar este texto, que explora os caminhos políticos e subjetivos construídos por esta militante libertária, a partir de suas memórias. Nosso primeiro encontro havia ocorrido, em 1992, j á em seus 84 anos de idade e, nessa ocasião, fui tomada pelo sentimento dc que deveria agir rapidamente no sentido de colher seus depoimentos, gravar suas m e m ó r i a s , escrever sua biografia, talvez, preservar, enfim, todo um passado ameaçado pelo esquecimento. Romântica ou não, queria ouvir as muitas estórias daquela militante - mulher e anarquista - , que havia so65

ignorava completamente sua extensa e multifacetada produção intelectual e política . Minha admiração por ela cresceu com as muitas descobertas que se sucederam ao longo dos momentos em pude desfrutar dc seu convívio e entrevistá-la em Montevideu, ao mesmo tempo em que percorria seus inúmeros textos políticos, literários e históricos, cuidadosamente guardados nas prateleiras de sua ampla e diversificada biblioteca .

brcvivido ao século, tendo nascido cm 1908, em Roma. Queria saber como uma socialista libertária havia lutado contra os macro e os micropoderes, contra o fascismo italiano e a ditadura m i litar no Uruguai dos anos 70, como havia construído seus espaços de autonomia nos meios políticos, académicos e familiares, tanto em se tratando das relações de género, quanto das de classe, ao longo de sua vida. Como, enfim, havia conseguido driblar as dificuldades do mundo e preservar-sc de tal maneira que eu a encontrava, nos últimos anos de sua vida, tão j o v i a l e mentalmente ágil, crítica incansável da atualidade e anarquista convicta. Decidi, então, apresentá-la ao mundo e contribuir para subverter toda uma t r a d i ç ã o misógina que exclui as mulheres da memória coIctiva e que justifica essa exclusão afirmando que elas nada produziram. Naquela época, ainda não sabia que Luce se formara em Letras pela Universidade de Bolonha, na Itália, em 1928, onde fora aluna do filósofo socialista Rodolfo Mondolfo, que eu conhecera na adolescência através dc seu famoso livro intitulado O Pensamento Antigo; também desconhecia que trabalhara até a década de 1990 como crítica literária e como professora de Literatura Italiana na Universidade da República do Uruguai, país onde se refugiara, desde 1929, ao fugir da violência fascista;

1. Em se considerando o volume de sua produção política, filosófica, literária, histórica e pedagógica, citarei, na bibliografia, apenas os trabalhos que aparecem neste texto. Para maiores informações, veja-se RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. S3o Paulo: Ed. da UNESP,2001. 2. O resultado deste trabalho foi publicado como Entre a História e a Liberdade: Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.

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Pus-me a gravar as estórias que ela passou a contar, inicialmente em seu escritório, diante das fotos do pai, o anarquista Luigi Fabbri e de seu mentor Errico Malatesta e, nos últimos anos, com maior dificuldade de locomoção, no sofá dc seu amplo quarto, onde as mulheres da família, entre as quais a avó Emília e a mãe Bianca, nos espreitavam das fotografias amareladas penduradas na parede. Seus comentários sobre essas imagens, feitas cm 1914. na Itália, foram respostas às perguntas que me preparava para fazer:

"Foram feitas por tio Bruno, i r m ã o de minha m ã e , apaixonado por fotografia. A arte da fotografia estava em seus inícios... passamos dois meses lindos...em Porto Ricanati, no Adriático, na parte norte, em uma casa de praia, durante as férias, antes da guerra...era um porto de pescadores, todas as noites chegavam em seus barcos de pesca..."

Ora falando em espanhol, ora em italiano, suas lembranças focalizaram momentos singulares de sua vida pessoal e acontecimentos que marcaram o século 20 e a sua própria experiência como militante anarquista. Aos poucos, seus depoimentos, as recordações evocadas, o desfile dc personagens entre companheiros/as, amigos/as, familiares e inimigos políticos foram compondo oralmente uma autobiografia, indo desde as recordações da infância passada entre Roma e Bolonha, ao exílio forçado em Paris e posteriormente no Uruguai, onde desembarcou depois de uma longa viagem clandestina e onde viveu por mais de 70 anos. Todo um século desfilou aos meus olhos nesse trabalho minucioso e labiríntico de investigação da memória de Luce, ou nessa viagem cm que ela me conduziu através dos tempos vividos de sua infância e adolescência até a morte, em 19 de agosto de 2000. Descobri progressivamente que nossas afinidades iam muito além da ideologia política, pois suas recordações do passado me abriam as portas para 68

conhecer mais detidamente e de uma maneira muito rica a tradição italiana da qual eu também faço parte, mas que por algum motivo mantive à margem em minha formação intelectual. Não eram apenas as portas da cidade de Montevideu e da vida cotidiana dos anarquistas, num plano internacional, que se abriam para mim. Com seus relatos, as ruínas e os sons das ruas de Roma, as casas avermelhadas e as arcadas nas calçadas de Bolonha, a universidade mais antiga da Europa, os poetas, como Lcopardi, Carducci e Montale, artistas e filósofos italianos de vários séculos, inúmeras figuras do anarquismo e de outras tendências políticas, entre mulheres e homens, enfim, muitos acontecimentos e personagens passaram a fazer parte do meu próprio arquivo. O contato com essa senhora erudita e reflexiva, profundamente aberta à vida me fez inevitavelmente pensar na utilidade da História, na importância da preservação da memória, sobretudo daquela silenciada pelos jogos do poder e, mais ainda, levou-me a valorizar os aportes da história oral, área em que havia incursionado timidamente em outra ocasião. A reapresentação oral do passado, "fazendo emergir do tempo/experiência os fatos considerados mais significativos do ponto de vista do narrador" traz 3

3. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. "Artes da Memória, Fontes Orais e Relato Histórico". Revista História & Perspectivas, Uberlândia, (23): 99-114, jul./dez. 2000. 69

coloridos, cheiros e emoções que dificilmente se encontrariam no texto histórico, na maior parte das vezes, muito asséptico, em sua pretensão de objetividade. Em relação à utilidade da História, aposto na ideia de que é necessário ampliar o repertório das experiências positivas de que dispomos, sobretudo daquelas que foram construídas no sentido de impulsionara liberdade, potencializaras iniciativas libertárias, construir redes de solidariedade, abrir espaços de resistência à dominação social e política. Inquicta-me profundamente perceber que a memória da guerra, ou seja, das experiências de destruição c morte e dos homens que as promoveram sc revela sempre muito mais poderosa do que a da paz, e nesse sentido quero dizer que muitos conhecem Darwin c a teoria da evolução das espécies, mas desconhecem seu crítico e contemporâneo, o anarquista Piotr Kropotkin, autor de A Ajuda Mútua; do mesmo modo, muitos sabem quem foi Benito Mussolini, mas desconhecem Malatesta, tido como o "Lenin da Itália", nos anos 20. Poderia acrescentar, na mesma direção, que a história no feminino apenas começa a evidenciar a dimensão masculina ou falocêntriea da grande narrativa da História, como apontam as feministas. Daí, a própria ideia de realizar esse trabalho de preservação das memórias de Luce, considerada

t a m b é m como "cronista de uma genealogia anarcofeminista" . Depois de percebermos a pluralidade do passado, as múltiplas temporalidades constitutivas dos processos sociais e culturais, os silêncios, os esquecimentos e as implicações políticas da exclusão operada pela memória histórica, entendida como discurso dos dominantes, foi inevitável o sentimento benjaminiano de que a tarefa premente do historiador é a de salvar a memória, livrando-a do esquecimento. Este mesmo sentimento, talvez romântico e ingénuo, tem sido em grande parte responsável pela importância e popularidade que a história oral ganhou nas últimas décadas, j á que todos ou quase todos os grupos sociais buscam inscrever-se no mapa, desejosos de terem suas experiências cartografadas, honradas ou vingadas na História. De certo modo, se dc um lado o passado perde importância no mundo pós-modemo, como argumenta o historiador norte-americano David Harlan , a ponto de muitos críticos e teóricos da atualidade escreverem livros e livros sem a necessidade dc um profundo conhecimento histórico, dc 4

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4. GREENE, Patrícia. "Federica Montscny: Chronicler ofan AnarchoFeministGenealogy", LetrasPenninsulares, Fali 1997, Revistado Department of Spanish, Davidson College, EUA. 5. HARLAN, David. The Degradation of American History. Chicago: The Chicago University Press, 1997.

outro, amplia-se o leque dos grupos sociais, étnicos, sexuais, das famílias e dos indivíduos que reivindicam seu "direito à História", como observa Pierrc Nora. Nessa direção, talvez seja melhor ouvir a própria Luce, com todo o seu olhar muito perspicaz de mulher estrangeira e que viveu literalmente entre fronteiras, entre "o exílio e a imigração", como ela mesma diz, refletindo sobre o tema. Num depoimento gravado em julho de 1997, afirma: "Nossos v í n c u l o s com o passado s ã o muito fortes e sobretudo são fortes em nível coletivo e uma ruptura drástica com o passado, só se pode fazer à custa da liberdade, só oprimindo e forçando as vontades. Há algo na tradição que oprime, porém há uma continuidade que não se pode romper violentamente, s ó se pode deixar cair, provocar a queda do que está sobrando, das folhas secas, do que j á não tem vida... porém, uma mudança libertária deve passar pela vontade coletiva. a vontade coletiva sempre tem em conta a I listória... mesmo que inconscientemente... conhecer a História tem um valor vital, um valor de r e c o n s i d e r a ç ã o dos valores tradicionais e é uma fornia, um veículo de transformação enquanto se criticam os valores à medida que se conhece..."

Em se tratando das grandes contribuições e possibilidades abertas pela história oral, gostaria de lembrar algumas questões discutidas por autores conhecidos, como Paul Ricoeur. A o reíletir sobre as relações entre a história e a memória, na esteira dos questionamentos de Jacques Derrida sobre o privilégio conferido à palavra escrita, ao contrário 72

da oral, em nossa tradição de pensamento, este aponta para a tensão aí existente entre um apelo que pesa em favor da primeira e um outro que beneficia a segunda. Trata-se, de um lado, de uma postura que privilegia a "história da memória", fazendo supor que esta se constituiu em "novo objeto" da história, assim como o corpo, a sexualidade, a alimentação: de outro, de uma posição inversa, que postula a "historicização da memória", em que a história tem como tarefa ajudar a corrigir e a ampliar a memória, fazendo com que esta entre em contato com d i mensões mais profundas de si mesma e se conheça melhor. Neste caso. a história estaria a serviço da memória, ao contrário do caso anterior em que a m e m ó r i a se subordinaria à História como seu objeto . Refletindo sobre a minha experiência particular de historiadora no contato com o trabalho da memória de Luce Fabbri, sobretudo em depoimentos orais, entendo que não busquei trazer a "realidade" de seu passado, como se tivesse um olhar neutro capaz dc organizar "de fora" e "do alto" as experiências que me foram paulatinamente apresentadas, nem tomei seus relatos como reflexos da realidade. Antes, tive em vista trabalhar a construção de sua narrativa do passado, considerando seus depoi6

6. RICOEUR, Paul. La Mémoire, L Histoire, L Oubli. Paris: Seuil, 2000.

mentos orais como práticas discursivas, na concepção de Michel Foucault , e procurei perceber a produção de sua subjetividadc ao narrar a própria vida. Portanto, estive atenta à Fina estruturação temporal e temática com que Luce organizou suas recordações, selecionando as que lhe pareciam mais valiosas, compondo quadros bastante vivos c valorativos do universo cultural e político do anarquismo e, ao mesmo tempo, tomando uma referência identitária de anarquista, como norte para sua construção do passado. Vale lembrar, ainda, que eu mesma a procurei por ser uma militante libertária e que foi a partir desse eixo que me interessei por sua maneira de ser, por suas ideias e vivências. Perguntava-me como havia sido a experiência de ser libertária e mulher para Luce Fabbri. Como ela havia entendido e praticado esta utopia desde o colidiano? Sem dúvida, a identidade de anarquista organiza e estrutura sua elaboração do passado pessoal e da experiência coletiva. Filha do militante anarquista Luigi Fabbri, discípulo e biógrafo de Malatesta e tendo convivido desde cedo com as lutas sociais da Itália dos anos 10 e 20, tendo participado da resistência antifascista no exílio e dedicado-sc a lutar 7

pelas ideias libertárias até o fim, suas memórias giram em torno dc experiências políticas e sociais cruciais - como a ascensão do fascismo e a destruição violenta das cooperativas de produção e consumo em Bolonha, ou ainda as conquistas e derrotas da Revolução Espanhola, os anos da ditadura m i litar no Uruguai - , ao narrar episódios que remetem à esfera pública ou privada. É assim que inicia o relato de sua vida, pelo nascimento no interior de uma família já praticante das ideias libertárias: " T i v e uma e d u c a ç ã o l i b e r t á r i a desde o p r i m e i r o momento... em um período em que se enfaixavam as crianças como se fossem múmias egípcias. N ã o conheci as faixas... as outras mulheres diziam para a minha m ã e que eu iria me quebrar, que era p e r i g o s í s s i m o (ficar sem faixa)...nesse sentido, j á crescemos num meio bastante moderno, sem que fosse particularmente moderna a intenção...*'

Num outro momento. Luce traz a impactante presença do líder anarquista Malatesta, marcando muito cedo sua vida, entrecruzada com as lutas políticas do período. Reeorda-se que, em 1913, aos cinco anos de idade, viu chegar, na casa dos avós, "aquele homem de olhar penetrante",

7. FOUCAULT. Michel. A Arqueologia do Saber Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1986.

amigo de seu pai, que viera visitá-la. Como a enérgica avó se pusesse a repreendê-la pelas brincadeiras esfuziantes que fazia no jardim, o militante resolveu

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interferir, defendendo a liberdade infantil, dizendolhe "que lhe parecia que eu tinha que ser livre, movimentar as pernas e os braços como quisesse, tinha cinco anos! Minha a v ó retrucou que tinha que educar-me e que portanto... Essa d i s c u s s ã o entre minha a v ó e Malatesta ficou gravada cm mim e me causou uma impressão enorme, porque n i n g u é m ousava discutir com minha a v ó e esse homenzinho que sc atrevia e que dizia coisas tão interessantes, ficou gravada em mim... Essa é a primeira visão que tenho de Malatesta. Depois ele sc foi para Londres, o e x í l i o . . . "

A dimensão mitológica da figura de Malatesta é atribuída, em suas lembranças, à imaginação fantasiosa da criança, no entanto, suas memórias também fazem emergir um homem simples e delicado, sempre muito querido, habilidoso, capaz de articular politicamente os adultos, tanto quanto de brincar despreocupadamente com as crianças. O a feto em relação a ele é profundamente marcado cm seus relatos: "E recordo que se falava muito de Malatesta em casa, Errico Malatesta! Ele estava em Londres, n ó s é r a m o s crianças e o u v í a m o s falar deste personagem remoto...Lm seguida, depois da guerra, meu pai estava esperando que Malatesta voltasse, o governo italiano não queria recebê-lo e pressionava para que o governo inglês não o deixasse sair. Para n ó s essa história de Errico que tinha que chegar, porém que dois governos se opunham a que viesse... era uma história romântica..." 76

Aliás, seu primeiro artigo, "Ciência, Filosofia c Anarquia", escrito aos 17 anos de idade e publicado na revista libertária Pensiero e Voluntà, polemiza com Malatesta em relação à maneira como ele e Kropotkin definem esta doutrina . Em nossas conversas, em janeiro de 1996, Luce ri ao lembrarse do pseudónimo que utiliza para assinar o artigo polémico de 1925: 8

"O pseudónimo que usei é Epicari, nome de uma escrava romana que participa da conspiração contra Nero, no primeiro I m p é r i o romano. Deixou-se torturar sem denunciar e a mataram. Bem, foi idealizada como merece, por outro lado!"

Vale atentar, o que ela mesmo faz nos depoimentos em que relê o passado, para a dimensão política e rebelde da personagem sob a qual se coloca, ou se protege, j á em seu primeiro texto. Do mesmo modo, é possível dizer que a principal estratégia de produção de seu discurso é a de colocar-se no espaço da político para falar do passado, tanto quanto para pensar as questões da atual idade. Nesse sentido, a emergência do fascismo é um tema privilegiado em suas memórias, sobre o qual, aliás, escreve Camisas Negras, livro publicado em 1933, pois vivendo num meio anarquista pôde 8. FABBRI, Luce. "Ciência, Filosofia e Anarquia". Pensiero e Voluntà, 1925.

acompanhar de dentro a violência na luta que os fascistas empreenderam contra o movimento social. Como conta em depoimento gravado em fevereiro de 1995, já no final da década de 10, quando passa a ter um contato mais dircto com colegas da classe média, ao cursar o secundário numa escola mais central de Bolonha: "...toda a classe média italiana, nesse momento, era bastante reacionária, eu me encontrei num mundo totalmente distinto, minhas companheiras tinham costumes totalmente diferentes (...) foi uma m u d a n ç a muito grande para mim (...) ademais desde cedo, nesse ambiente de classe m é d i a , assisti à incubação do fascismo. Bolonha era o berço do fascismo, foi fundado em Milão, porém se incubou em Bolonha, nos ambientes a g r á r i o s , entre os p r o p r i e t á r i o s de terra, o campesinato n ã o - p r o p r i e t á r i o era quase todo socialista, c os a g r á r i o s financiavam as bandas fascistas contra as cooperativas, na primeira fase do fascismo. Bem, n ã o sei o que pode interessar, há muitas coisas. Foram anos em que parecia muito perto uma revolução na Itália, o movimento anarquista conheceu um fortalecimento e um dinamismo muito especial, teve um jornal - o Unumilá Nova - por uns anos (...) meu pai mandava um manuscrito, todos os dias o acompanhava ao correio, íamos ao centro (...) foi um período de atividade muito intensa da parte dele, de grandes e s p e r a n ç a s , depois ele foi dos primeiros a c o m e ç a r a vislumbrar o desastre (...) meu pai fora atacado nas ruas, me chamaram em casa, a vida se fez bastante difícil e houve um momento depois quando o fascismo c o m e ç o u a se consolidar, se estabeleceu o juramento de fidelidade ao regime para os professores, meu pai se negou 78

a jurar, então cruzou a fronteira para a França, eu fiquei só e terminei minha carreira..."

Os temas do âmbito do privado são, em certa medida, secundarizados em suas preocupações, pois aparecem mesclados com as recordações dos acontecimentos políticos e sociais. As relações amorosas, o casamento, a maternidade são aspectos de sua vida que entram com menor destaque, nesse trabalho da memória, que privilegia os momentos da resistência política ao fascismo, das lutas sociais na Espanha e na América do Sul, dc trabalho com os "companheiros", ou de enfrentamento com a repressão. E o caso dos momentos revolucionários da Ciuerra Civil Espanhola, que aparecem, cm suas recordações, justapostos ao seu casamento com o anarquista italiano Ermácora Cressatti, nesse ano de 1936. Definido como "os dias mais lindos de minha vida ", dificilmente se pode saber o que Luce privilegia em seu coração: "...e e n t ã o as duas coisas vieram juntas: o casamento, a Revolução Espanhola, a casa nova... em seguida, vieram as férias de verão e durante todo o verão, n ã o fizemos nada mais que trabalhar pela Espanha".

O que ela enfatiza, mesmo ao relatar esse momento de união conjugal tão marcante em sua vida pessoal é o forte envolvimento com os aconteci79

mentos revolucionários efervescentes na Espanha, diluindo assim os sentimentos e emoções trazidos pelo casamento. A militante, portanto, se sobrepõe à figura da esposa e da amante em sua narrativa: "Foram três anos cm que vivemos mais na Espanha do que aqui, com o coração...",

lembra Luce com a expressão esfuziante, "na realidade, tudo o mais havia desaparecido. Quando fui a Barcelona em 1981, parecia que estava em casa... conhecia Pedralbes... todos esses nomes, ademais ali estava a memória de Francisco Ferrer... me levaran a Montjuic... para ver a fortaleza, a prisão, havia uma cela onde Ferrer havia sido encarcerado..."

Convidada pela anarquista espanhola Federica Montseny - que se tornara Ministra da Saúde no governo de I .argo Caballero - . para trabalhar nas escolas dos sindicatos ligados â CNT - Confederação Nacional do Trabalho, naquela cidade, Luce decide f i car em Montevideu. Mesmo assim, acompanha cotidianamente os acontecimentos surpreendentes que agitavam aquele país, compilando as notícias, juntando informações, selecionando textos que lhe eram enviados pelos companheiros que ali lutavam. Esse trabalho resulta no livro 19 de Julio, coletãnea de documentos, publicados imediatamente sob o pseudónimo de Luz D. Alba: 80

" A t r a v é s da R e v o l u ç ã o Espanhola, vivemos essas jornadas, lemos os relatos linha por linha, o ano de 1936 foi de grande e s p e r a n ç a e de grande e m o ç ã o (...) De repente, essa resistência de todo um povo, t ã o esperada, t ã o total, esse dar-se a si sem pensar (...) t í n h a m o s a s e n s a ç ã o de que o fascismo n ã o era t ã o poderoso como parecia e (...) de que podia ser vencido (...) Foi uma e m o ç ã o t ã o grande e, depois, chegavam os boletins da C N T - F A I , com as n o t í c i a s m i ú d a s , esse povo que havia coletivizado toda a economia (...) nos reunimos, mandamos delegados para Barcelona (...) de outro povoado, chegavam delegados com n o t í c i a s semelhantes (...) era algo maravilhoso, claro, a l é m disso, há todo o aspecto é t i c o da resistência contra o fascismo, das m i l í c i a s que se reuniam e partiam para a frente de A r a g ã o , que lutavam com tanques improvisados, tinham uma força arrasadora (...) essa criatividade capilar (...) porque n ã o era um sistema que se estabelecia n ã o , era todo um povo que estava criando algo novo (...) Foi um verdadeiro milagre, tivemos a s e n s a ç ã o de milagre..."

Portanto, Luce opta deliberadamente por não dar visibilidade a momentos que considera íntimos dc sua vida pessoal, pois acredita que importa para a construção da biografia de uma anarquista muito mais o lado público da militante, da escritora e da intelectual. Na prática, isto significa que muitas vezes não entendia o porquê de minha insistência em ler suas cartas, ou em ver as velhas fotos guardadas nas gavetas, além de discordar de muitas das minhas interpretações, especialmente as relativas às questões de género. si

Nessa direção, é interessante observar a posição paradoxal que Luce adota em relação ao feminismo e a relativa dificuldade que tem para discutir e assumir as desigualdades nas diferenciações de género. Porque embora seu olhar esteja bastante atento para tirar do esquecimento e incorporar cm seu relato do passado inúmeras figuras femininas, entre anarquistas, como Débora C é s p e d e s , Esperança, Inês Guida, militantes de sua geração, ou ainda intelectuais, amigas c parentes, ela mesma não percebe esta prática como feminista. Aliás, nem mesmo sei se Luce presta a t e n ç ã o na grande quantidade de mulheres inteligentes e ativas, que entram em suas memórias. Além do mais, insistentemente criticou minha insistente defesa da importância de escrever a biografia de um mulher libertária e não de um homem, questionando que o olhar feminino pudesse captar dimensões do cotidiano ou do domínio das emoções e dos sentimentos que, em geral, escapam aos homens, como eu a 11 miava. Essas posições, contudo, não a impediram de fazer afirmações contrárias, por exemplo ao avaliar que

cada um dá o que pode e consome o que necessita, isto é a economia doméstica. Nos últimos tempos, tenho pensado que vale a pena ocupar-se com o problema da mulher, sobretudo nesse sentido. Houve uma revolução, uma integração maciça na vida de relações à vida pública. Se se conseguisse que a mulher trouxesse essa experiência secular e essa mentalidade..., pois ela teve a sorte de n ã o haver sido soldado, ministro ou presidente, com algumas exceções..."

Para ela, portanto, as mulheres podem revolucionar o mundo masculino, se não imitam aos homens, já que são portadoras de uma cultura própria, de outras formas de percepção, de organização e de elaboração prática, estética e mental. Além disso, estiveram na base dos movimentos de resistência às ditaduras latino-americanas, lembra ela: " A participação das mulheres estava dada muito nas bases, elas decidiam quem ia administrar o movimento, tinham participação nas decisões".

Em outro momento, Luce insiste na denúncia da discriminação contra as mulheres pelo fascismo italiano:

" A s mulheres têm algo de seu para dar, algo de género, uma experiência única de uma economia não competitiva: a economia doméstica, em que as crianças têm precedência, em que os velhos estão assistidos porque são velhos, em que

" O fascismo estabeleceu por lei que nos últimos anos do ensino secundário não poderiam ser mulheres as professoras de História e Filosofia, porque as mulheres não podiam formar personalidades fortes. Assim, todas as professoras de História e Filosofia não sabiam onde ir porque não havia Filosofia no primeiro ciclo, enquanto as de História foram ensinar Italiano, Latim, Grego, História e Geografia, nos primeiros anos. As

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de Filosofia, mudaram de matéria simplesmente. Esta foi uma discriminação que v i a posteriori, porque antes não era assim".

Contudo, os limites de seu questionamento feminista são dados ao adentrar no universo anarquista. Vinda desta tradição política, os conflitos entre as classes e a luta político-ideológica contra a ditadura assumem primazia em relação às questões do feminismo. E se em seus diversos artigos e entrevistas recentes, passa a valorizar de forma mais efetiva a cultura feminina, em nenhum momento de suas memórias se refere a conflitos nas relações de género entre os anarquistas, que certamente deve ter presenciado. A o contrário, afirma que suas constatações sobre o machismo foram pautadas mais pelo que assistiu fora dos meios libertários do que dentro, o que sem dúvida comporta uma idealização muito grande, ou uma grande preocupação em não macular o anarquismo. Com uma posição tão definida na leitura do passado e na construção dc sua identidade pública, cspantei-me ao descobrir o lado mais subjetivo, feminino e emocional de Luce, no livro de poesias que publicara, em 1932, intitulado /Conti deli 'Attesa. Evidentemente, encontrei suas poesias j á bem adentrada na pesquisa, meio que por acaso, entre suas coisas, e, logo, ela se esquivou, relutante em falar sobre este "trabalho de juventude": 84

"porque era um livro de versos muito militantes, foi publicado em 1932, com a produção anterior, a produção dos 20 anos / Canti deli Attesa - "Os Cantos da Espera" - era a espera de voltar para a Itália, era o exílio, são poemas do exílio, mas muito pouco maduros literariamente, muito tradicionalistas na forma. Para m i m , conservam validade, porém nunca os cito, aí está, mas evidentemente (a poesia) não era o meu caminho, este aspecto é só para minha satisfação pessoal..."

Os poemas contrastam fortemente com a narrativa de si construída nos depoimentos, ao mostrarem suas fragilidades, ao darem vazão às suas angústias, tristezas, sentimentos de perda, dor e desamparo, como aparece em "Mamma, dammi la mano" ("Mamãe, me dê a mão"): Mamãe,

estou muito

cansada,

(Mamma, son tanto stanca,) Estou muito cansada e quero

descansar;

(son tanto stanca e voglio riposarc:) Os olhos que viram muito (gli occhi che molto han visto) Estão

muito cansados de olhar.

(Son tanto nauseati di guardare.) Que me importa o mundo? Estou

cansada.

(Che m i m p o r t a dei mondo? Sono stanca.) Meu cérebro

não quer mais

pensar.(...)

(II mio cervello non vuol piú pensare.(...)) Não encontro mais esperança

em meu

coração,

(Non trovo piú nel cuore la speranza,) 85

não encontro mais a audácia de sonhar. (Non trovo piú Paudácia di sognare.) Que me importa o mundo, o ideal, (Che m'importa il lavoro, Pideale,) Que me importa o amor? (Che m"importa 1'amore?) Mamãe, estou cansada, tenho sono, me machuca (Mamma, so stanca, ho sonno, mi fa male) Tudo o que vive e que se move. (...) (tutto quello che vive e che si muove.(...))

Ou, então, nas comparações entre a terra natal e o país do exílio. Se Montevideu é vista como a cidade "oásis" que a recebe "dc braços abertos", dimensão exaltada em todos os depoimentos, na poesia, não pode substituir a " t e r r a - m ã e " , nem mesmo no inverno, como aparece em "Neve di primavera", poema de 1929:

Em L 'Esilio, ela reafirma esse sentimento: E depois

voltei à cidade do

sonho

(E poi tornai nella cittá dei sogno) aquela que mais amo dentre todas as

cidades.(...)

(quella ch'amo fra tutte le città. (...)) Guardo

no coração,

Bolonha,

o teu

sorriso

( H o nel cuore, Bologna, i l tuo sorriso) do momento em que o sol

descansa

(di quando il sol riposa) sobre os muros vermelhos

das casas

antigas,

(sui muri rossi delle case antiche,) (...) Agora me separam

da minha Bolonha

(...)

(Or mi separan dalla mia Bologna,) O mar que vem aqui bater na praia. (il mar che vien qui a frangersi sul lito.) E mais a terra e ainda outro

mar.(...).

(E ancora terra e ancor d c l l a l t r o mare.(...)) Montevideu,

são helas as luas

rosas

Mas, meu coração sob a neve gelada ficou (Ma il mio cuore resto sotto la neve) sob a neve, que faz as sementes germinarem. (gélida, che fa i semi germogliare.)

Toda essa vasta produção intelectual e poética permite, pois, conhecer de modos muitos diferenciados a Luce que traz, nos relatos orais, sua própria vida. Apesar da construção racionalizada de seu passado, da preocupação em ordenar temporalmente suas experiências vividas, dando-lhes o sentido que lhe parece o mais importante, a riqueza dos depoimentos possibilita perceber a figura terna e delicada, sensível e amorosa que se esconde atrás da f i gura pública da militante anarquista, forte, convicta e profundamente engajada nas lutas sociais do

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(Montevideo, son belle le tue rose) Que caindo me convidam

a sonhar

(Che cadendo nfinvitano a sognare) com imagens

imprecisas

e

vaporosas,

(immagini imprecise e vaporose,) formas vãs de um vão

imaginar.

(forme vane d'um van fantasticare.)

passado e do presente. Pois, afinal, todo esse trabalho da memória só faz sentido, para ela, por sua dimensão pública e política, já que se trata de produzir uma nova história do anarquismo e das lutas sociais ao longo do século 20. Uma nova história, pois, contada no feminino e por alguém que viveu muito de dentro os acontecimentos do século 20 c que soube, graças a uma sólida formação intelectual, refletir sobre eles. Toda sua preocupação está direcionada para desfazer os mitos de incompreensão política, dc falta de reflexão filosófica, dc ingenuidade romântica atribuída aos anarquistas na luta política com os comunistas e liberais, ou seja. para "salvar" o anarquismo, trazendo a riqueza de suas histórias c a grandeza de seus princípios. Além do mais, indiretamente, sua contribuição vai muito além, pois volta-se para a defesa das próprias mulheres, ao contrapor-se às ideias elaboradas sobretudo pelo pensamento social do século 19, defmindo-as como incapazes e inadequadas para o mundo público. Sua experiência de vida, assim como sua produção intelectual, por si só, atestam a grande contribuição das mulheres às transformações positivas em nosso mundo.

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