Feminino Manifesto
 9786587079257

Table of contents :
Sumário
Apresentação
Paula Cesari e Andressa Maxnuck
PrefácioBianca Coutinho Dias
Gêneros e(m) sujeitos
Carla Rodrigues
O corpo, o gozo e a pesquisa
Mariana Baltar
O corpo entre a psicanálise lacaniana e a militância de gênero
Lívia Ferreira
Exílio, memória e posição feminina: o documentário autobiográfico face à
ditadura militar no Brasil
Ilana Feldman
Tomar pra si: diálogos entre artes contemporâneas, o maternal e direitos
reprodutivos
Roberta Barros
Instinto materno?
Maricia Ciscato
Mãe é só quem cria? Reflexões sobre as mulheres na maternidade por
adoção
Lívia Magalhães
Escuta e resistência
Gabriela Carneiro da Cunha e Dinah Cesare
O Recado do maciço: ocupar as fronteiras, disputar a loucura
Mariana Patrício Fernandes
Ressignificando lugares: a potência da escrita de mulheres negras
Natália Neris
Entrecanto: voz, memória, experiência
Bernardo Oliveira

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Sumário Apresentação Paula Cesari e Andressa Maxnuck Prefácio

Bianca Coutinho Dias Gêneros e(m) sujeitos Carla Rodrigues O corpo, o gozo e a pesquisa Mariana Baltar O corpo entre a psicanálise lacaniana e a militância de gênero Lívia Ferreira Exílio, memória e posição feminina: o documentário autobiográfico face à ditadura militar no Brasil Ilana Feldman Tomar pra si: diálogos entre artes contemporâneas, o maternal e direitos reprodutivos Roberta Barros Instinto materno? Maricia Ciscato Mãe é só quem cria? Reflexões sobre as mulheres na maternidade por adoção Lívia Magalhães Escuta e resistência Gabriela Carneiro da Cunha e Dinah Cesare O Recado do maciço: ocupar as fronteiras, disputar a loucura Mariana Patrício Fernandes Ressignificando lugares: a potência da escrita de mulheres negras Natália Neris Entrecanto: voz, memória, experiência Bernardo Oliveira [[[Flor d´água]]] Fátima Pinheiro Sobre as autoras

Apresentação Cada texto desta coletânea é uma espécie de desafio. Diferente do pesquisador-observador, que olha de longe seu objeto e busca para ele um melhor enquadramento; tomado pelo feminino, não há outra possibilidade para o escritor senão a escrita de si. De modo geral, ao circunscrever um conceito, forjamos nele um tempo estático e morto, e assim perdemos aquilo que só se observa no que vive e se movimenta. O feminino e a fugacidade do repertório teórico que o acompanha (diferente das certezas fixas do masculino/patriarcal/universal) propõe uma outra ética com o saber, com o mundo e com o outro. A perspectiva do feminino é a própria experiência de deixar ser visto pela alteridade e continuar vivendo com a impossibilidade de saber tudo sobre ela. A ideia de organizar esta publicação surgiu em 2016, quando nos vimos surpreendidas pelos movimentos políticos e feministas que mobilizavam nosso país. Nos inúmeros encontros e debates que então se multiplicavam, discutíamos as ações que poderiam consolidar um novo feminismo e pensávamos a respeito do feminino – para além do conceito de gênero, como forma de lidar com a incompletude, uma maneira específica de se relacionar com o desejo presente em todo e qualquer sujeito – como uma alternativa ao poder do patriarcado, ou do masculino-universal. Sentíamos a urgência de produzir algo que conferisse materialidade a tantos movimentos de transformação que nos afetavam íntima e coletivamente. Os artigos aqui reunidos foram escritos por pesquisadoras e artistas parceiras, cujas atividades profissionais e políticas se cruzaram com as nossas. Como organizadoras, não tivemos o objetivo de traçar um percurso teóricoconceitual sobre o feminino ou feminismo, mas sim, de instigar a produção de textos que convoquem a escrita de outro lugar, privilegiando a marca autoral e um certo deslocamento que traga para a cena do livro a impossibilidade contida na escrita, no feminino e em outros modos de existência, longe já do ponto fixo-científico. Inicialmente, chegamos a propor alguns blocos temáticos: o feminino como conceito articulado à própria noção de sujeito; o feminino/feminismo na cidade: movimentos insurgentes e contemporâneos; o feminino e a arte: reinvenção e testemunhos a partir do Outro lugar. Porém, como uma espécie de fracasso que se transforma em vivo achado, optamos por não dividir os textos dessa forma, tendo em vista que a maioria apresentava questões que faziam convergir as diversas linhas do roteiro e ainda nos convocava à abertura de outras possíveis costuras. Ficamos, então, com esta bela coletânea, íntegra e heterogênea, de desvios e riscos assumidos. Aos leitores desavisados, advertimos que, nas próximas páginas, o feminino não encontra um mito de origem, mas, ao contrário, move-se com os feminismos, com a política, com as artes, com a psicanálise e as histórias íntimas. O feminino é aqui ruína de um modelo cada vez menos tolerável de saber, revirando seus restos em busca de novos achados: feminino não como convite à sua própria captura e definição, mas sim como provocação que encontra nos fragmentos de cada um o lugar-comum do testemunhomanifesto.

Paula Cesari e Andressa Maxnuck organizadoras Prefácio Não sei sobre pássaros Não conheço a história do fogo mas creio que minha solidão deveria ter asas . (Alejandra Pizarnik) Tantas mulheres, tantas vozes, mas, como afirma o psicanalista Jacques Lacan, a mulher não existe: é preciso que cada uma possa inventá-la e dela se apossar na medida exata da dispersão. O que se apresenta aqui são fragmentos, palavras e pensamentos esparsos, ritmos e sons que regem uma maneira de escrever, de estar no mundo. São aparições, faíscas que subvertem o sentido, “pequenos fogos”, como batiza Pizarnik sua escrita do feminino. Toca-se a dimensão do feminino no abismo onde se escreve o indizível ou, no dizer da também psicanalista Catherine Millot: “Quando estamos no campo da palavra, ficamos cativos de sentido, mas quando se escreve no campo da letra, é outra coisa. Escreve-se o que não pode ser dito.” Escrevo para fazer parte não de um conjunto. Escrevo para acentuar o um a um de cada texto, para assumir a parte que me cabe e atravessar a fronteira do sentido. É dito que as mulheres querem tomar o poder. O que eu quero é invertê-lo por dentro, fugir de sua lógica obtusa e perversa, estraçalhar os lugares dos enunciados fálicos, convocando a potência da enunciação. O lugar de onde se fala não é “lugar de fala”, mas o território movediço de onde se enuncia algo, pois o espaço trêmulo e incerto do eu não é garantido de antemão por uma série de apelos identitários. Talvez possa parecer inquietante falar de uma fragilidade, mas é ela que precisa ser convocada para tocar a força descomunal do feminino. Tomo a posição de encontro com minha finitude, acolhendo o impossível e negando qualquer miragem de poder. Encaro a dimensão do negativo, sustento as ranhuras e as rachaduras de ser falante. Quero fazer resistência aos discursos dominantes, caminhar da impotência à possibilidade de narrar uma vida de mulher que não recua e não cede aos horrores do desempenho e das performances fálicas, pois ser mulher é escrever seu lugar, embaralhando os territórios do feminino e do masculino, inventando uma dança na queda. No livro há tantas vozes tão fortes justamente por acolherem a fenda e a fissura, como anuncia Carla Rodrigues que, diante das novas cartografias sexuais e possibilidades de se dizer e de se engajar no mundo, trabalha as condições de subjetivação e de sexuação a partir da tríade “corpo-gênero-

invenção”, acenando para uma política do desejo que visa a romper com um discurso encarcerador da sexualidade, onde aquilo que provoca ruído no social estaria destinado a ser abolido. Outras escritas trabalham também através da arte a questão da biopolítica dos corpos, criticando um campo de regulações que visam a minar a autonomia das mulheres sobre seus corpos. Aqui, a lâmina da linguagem pode ser precisa e encontrar a força de mover mundos na fragilidade ou na vertigem da queda. Encontramos no livro uma série de corpos femininos, escritas desviantes que resistem ao enquadramento e que sobrevivem ao naufrágio do sentido, assumindo a dimensão do impossível, como no poema que ensina a cair, de Luiza Neto Jorge: o poema ensina a cair sobre os vários solos desde perder o chão repentino sob os pés como se perde os sentidos numa queda de amor ao encontro do cabo onde a terra abate e a fecunda ausência excede . Das questões mais radicais da arte contemporânea, passando pela posição feminina de duas mulheres que produziram documentários biográficos e por questões tão densas da maternidade e da adoção, o livro vai entrevendo uma multiplicidade de posições que convocam a espessura de cada invenção: a figura da mãe, a possibilidade de adoção, os enigmas de estar no mundo para além de si e que falam de uma possibilidade de tomar posse do impossível. A vertigem, também, é uma forma de saber-se vivo e de se nomear. E é possível pensar de forma insurgente o enigma do feminino que aparece em sua fulgurância no poema final do livro. Não se trata de um corpoorganismo, mas do feminino manifestado em aparições singulares o que faz de cada texto um caminho para o pulsional. A mulher é a alteridade radical, algo que escapa ao apelo fálico e que desliza constantemente, ela é a potência da vulnerabilidade, pois “a vulnerabilidade das coisas preciosas é bela porque a vulnerabilidade é um sinal de existência”, como nos lembra Simone Weil.

Se o livro é a manifestação diversa do feminino, ele não deixa de entrever a chama feminista que se deixou tensionar pelas importantes transformações do conceito de mulher e suas consequências no campo teórico e epistemológico. O feminismo se apresenta, aqui, como resultado de uma autocrítica e de um debate complexo, por meio do qual se questionam os processos de canonização e os modos de visibilidade no mundo da arte, por exemplo. Sendo o feminismo uma maneira de ler conceitos e esquemas ideológicos assumindo que algumas coisas precisam ser pensadas sem ser separadas de sua origem enigmática, junto-me a outras mulheres, aos homens, à minha ancestralidade, ao que me antecede e ao que me projeta além de mim. Se ando obcecada com a ideia do singular é por encontrar aí algo da origem, esta que é, ao mesmo tempo, ruína e salto para a invenção, como na escrita da autora Carolina Maria de Jesus, citada no livro, a partir de sua escrita radical forjada num lugar de interdição: mulher, negra e pobre. Através de sua escrita, ela denunciava o que era interditado e, a partir de um exercício literário corajoso, encontra sua “voz-grito”: “Preta é a minha pela. Preto é o lugar onde eu moro.” Num encontro que reúne tantas vozes sobre o feminino, convocaria e acentuaria o lugar do intangível e do invisível da singularidade, acolhendo, também, a escrita dos povos indígenas, das mulheres negras, a diáspora contada pelos povos escravizados. Falar do feminino é caminhar do eu ao outro, é escutar as palavras alheias, as que vivem no fora. Falar com elas, não falar por elas; mover-se na ideia subversiva de que “o eu é um outro”; escutar a própria voz e todas as outras; saber da inquisição, pelas bruxas que foram queimadas; invocar os poemas de Safo; reconhecer com alegria genuína a minha existência e todas as outras; não sem dor, preservar o grão do inapreensível e de pura alteridade nesse exercício errante da escrita: uma escrita feita com o meu corpo e com muitos outros corpos. Se aqui encontramos uma abertura, ela se dá na relação com o outro, na permeabilidade entre diversos textos. E é preciso resgatar, como faz essa coletânea, escritoras como Maura Lopes Cançado. As violências por ela descritas tocam uma ferida do feminino. Trata-se de uma escrita que é um grito de socorro e que pode, enfim, ser ecoado, ainda que o horror manicomial tente, mais uma vez, sufocá-lo. Diante da solidão, do isolamento e do medo ela se coloca a escrever observando o mundo, mesmo no confinamento. Denuncia as relações de poder vigentes e aponta a segregação e as amarras a que seu corpo de mulher está submetido: “Só quem passa anonimamente por este lugar pode conhecê-lo. E sou apenas um prefixo no peito do uniforme. Um número a mais. À noite em nossas camas somos contadas como se deve fazer com os criminosos no presídio.”

Não podemos nos esquecer, como destaca Griselda Pollock, que as mulheres foram excluídas dos espaços públicos onde os homens flanavam – café, bar, bordel – e tiveram que escrever e produzir no contrafluxo e, muitas vezes, no espaço de confinamento doméstico. É importante que agora a dimensão da autoria na arte passe efetivamente pelas mulheres. Que todas as vozes e maneiras de se inscrever no mundo a partir do “Feminino Manifesto” possam encontrar lugar, voz e potência de acontecimento. Bianca Coutinho Dias psicanalista, ensaísta, crítica de arte e autora do livro “Névoa e assobio” Gênero e(m) sujeitos Carla Rodrigues Quando, nos idos dos anos 2000, li pela primeira vez uma frase da filósofa Judith Butler, que desde então me acompanha, já tinha externado o mesmo incômodo num divã. Reconhecer a minha angústia expressa por ela foi, de certa forma, um alívio: “Há o refrão de que, justamente agora, quando as mulheres começam a assumir o lugar de sujeito, as posições pós-modernas chegam para anunciar que o sujeito está morto” (Butler, 1998, p. 23). De fato, a constituição das mulheres como sujeitos é um fenômeno recente na história. Pelo menos a partir da modernidade, os diversos tipos de feminismos têm lutado para constituir a mulher como sujeito de direitos, sujeito moral, sujeito do conhecimento etc. Mas a questão que permanece é como fazer a crítica ao sujeito universal e pensar o problema da mulher como sujeito marcada por um gênero – a mulher sujeita –, sem repetir na constituição da mulher as mesmas artimanhas sutis do poder sobre o sujeito. Tenho pensando o problema do sujeito contemporâneo no eco que os pensamentos de Simone de Beauvoir, Jacques Derrida e Judith Butler produziram em mim. É a partir dessa escuta que este artigo se escreve, tomando como problema o conceito de gênero e suas injunções com a questão do sujeito feminino/sujeito do feminismo, seguindo o fio puxado por Butler: Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir . (Butler, 1998, p. 24) Significados não antecipados me interessam porque são por onde caminham as chances – e os riscos – de invenções significantes. * O conceito de gênero está presente na história da filosofia desde o debate aristotélico sobre a retórica como um gênero específico de discurso. O termo gênero pode ser encontrado na gramática, na estética, na antropologia, na teoria literária, nas ciências sociais, na filosofia ou na medicina – por exemplo, para falar de gênero, posso me referir ao psiquiatra Robert Stoller, cujo livro Sex and Gender , de 1968, articula a construção de identidades

por meio de processos sociais, familiares e biológicos. Embora não tenha abandonado a referência à biologia, Stoller queria pensar a formação das identidades sexuais para além de sua ligação com o sexo anatômico. O objetivo desse texto é tentar ampliar ainda mais as possibilidades do significante gênero , percorrendo um caminho que tem como ponto de partida o fato de que o uso do conceito vem sendo modificado – eu poderia mesmo dizer desconstruído – desde o final dos anos 1980, mas, nem por isso, abandonado. Por essa dupla injunção – crítica desconstrutiva e retomada crítica –, o gênero tem se tornado ainda mais potente para pensar as constituições subjetivas contemporâneas. Começo meu percurso recuperando uma passagem de La loi du genre , do filósofo Jacques Derrida, em que ele aponta como o gênero está implicado com os limites que o termo configura: “Desde que o gênero se anuncia, é preciso respeitar uma norma, é preciso não ultrapassar uma linha limítrofe, é preciso não arriscar a impureza, a anomalia ou a mostruosidade” (Derrida, 1986, p. 253). Ao longo do texto, Derrida vai desobedecendo a lei do gênero para nos levar a concluir que há, no coração da lei (do gênero), um princípio de contaminação que faz com que a condição de possibilidade da lei seja uma contra-lei. ¹ Mas e se o gênero pudesse ser desconstruído e retirado desse lugar normativo? Poderíamos ouvi-lo de outro modo? Como articular gênero e sujeito? Com essas duas perguntas, proponho um debate que diz respeito ao famoso “biologia não é destino”, marco da segunda onda feminista, no rastro das proposições da filosofia de Simone de Beauvoir e de suas críticas a Hegel, mais especificamente à dialética entre o senhor e o escravo, aquele ponto-chave da Fenomenologia do espírito (2011a) em que a consciência se torna consciência de si, a partir de uma interdependência entre o eu e o outro. A passagem foi interpretada por Beauvoir como mais um movimento de atribuir à mulher o lugar de dependente, presa à vida animal (ou natural), incapaz de ascender ao campo da cultura, ou do Espírito. Ela parte do argumento de que na dialética entre o senhor e o escravo, Sujeito é o Absoluto (ou o espírito) e o Outro é o imanente – o que significaria, para ela, a manutenção da ideia de que o homem é o sujeito e a mulher é o outro, aquela que se constitui numa identidade de oprimida ou de secundária. Para Beauvoir, as mulheres não seriam capazes de obter reconhecimento sem se constituírem, elas também, como sujeito. Destinada ao lugar de “outro”, a mulher não poderia caminhar pelo roteiro hegeliano a fim de constituir sua subjetividade ou de reivindicar reconhecimento. Importante lembrar que, nas leituras de Hegel em voga na França dos anos 1940/1950, a passagem da consciência natural para consciência de si, é entendida como abertura do eu ao que não é próprio de si, estabelecendo um sujeito constituído ao mesmo tempo pela negatividade e pela reciprocidade. Beauvoir questiona a possibilidade de que a interdependência entre homens e mulheres possa ser tomada como análoga à estabelecida por Hegel na relação entre o senhor e o escravo, já que a nossa reivindicação, como mulheres, seria a de obter o mesmo tipo de reconhecimento conferido ao homem. Nessa crítica, Beauvoir opera uma distinção importante entre atividade e função para pensar o problema da biologia como destino. Parir,

amamentar e cuidar seriam funções naturais, nas quais a mulher não teria instrumentos para afirmar sua existência, apenas para suportar passivamente seu destino biológico. Em contraposição ao destino da mulher, está o poder do homem, dotado não de uma função natural, mas da atividade de alimentar, o que ele faz, transcendendo a sua condição animal. Com isso, argumenta ela, não é a vida natural que tem para a humanidade um valor supremo, mas a vida que serve a fins mais importantes do que ela própria. “A desgraça da mulher consiste em ter sido biologicamente votada a repetir a vida, quando a seus próprios olhos a vida não apresenta em si suas razões de ser e essas razões não são mais importantes do que a própria vida” (Beauvoir, 2009, p. 103). Observo que, nessa crítica, Beauvoir entra para a história da filosofia como a primeira pensadora a indicar não haver roteiros de subjetivação para contemplar a constituição da mulher como sujeito. Até 1949, quando ela publica O Segundo Sexo , mesmo os filósofos que pensavam o sujeito a partir de sua relação com a alteridade, como nas leituras francesas de Hegel, ou como Emmanuel Lévinas – para citar aqueles aos quais ela evoca de forma explícita –, ofereciam apenas duas possibilidades: ou as mulheres estavam impedidas de se tornar sujeitos, ou deveriam seguir o único roteiro disponível, aquele que formava sujeitos homens e as relegava ao lugar secundário – confinando-as como o outro do homem. Na aguda percepção da ausência de roteiros de subjetivação para mulheres, é possível localizar a imensa contribuição da filosofia existencialista em Beauvoir. Arrisco dizer, por exemplo, que “não se nasce mulher, torna-se mulher” pode ser a tradução feminista de “a existência precede a essência”, máxima do existencialismo francês dos anos 1940/50. Gosto de lembrar que o verbo original em francês é devenir , aqui traduzido por tornar-se , mas para o qual também caberia usar devir , e que esse movimento de devirmulher supõe desontologizar a existência para lançá-la numa experiência de “liberdade situada”, para ficar com o vocabulário da época. * Aos poucos e com o tempo, os chamados “estudos de gênero” vão encampar o problema da hierarquia de gênero na sociedade, em cada área a seu modo. Surgirão muitos argumentos políticos e jurídicos para transformar as mulheres em sujeitos de direitos, mas, apesar de Beauvoir, o debate sobre a constituição ontológica da mulher como sujeito se manterá secundário até que, valendo-se de uma leitura “desconstrucionista” do livro O segundo sexo, a filósofa Judith Butler promova perturbações novas para o processo de “desontologização da existência”, repensando o conceito de gênero sem – gostaria de sublinhar – vir a se desfazer dele. Muito ao contrário, torna o termo gênero mais interessante para pensar a constituição de subjetividades. Na leitura de Butler, em Beauvoir há ainda uma contradição a ser resolvida, contradição que será mantida como tensão que permanece. [Em Beauvoir,] o “sujeito”, na analítica existencial da misoginia, é sempre já masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um “Outro” feminino que está fora das normas universalizantes que constituem a condição de pessoa, inexoravelmente “particular”, corporificado e

condenado à imanência. Embora veja-se frequentemente em Beauvoir uma defensora do direito de as mulheres se tornarem de fato sujeitos existenciais, e, portanto, de serem incluídas nos termos de uma universalidade abstrata, sua posição também implica uma crítica fundamental à própria descorporificação do sujeito epistemológico masculino abstrato . (Butler, 2003, p. 31) Nessa passagem, Butler, também uma estudiosa do hegelianismo francês da primeira metade do século XX, está evocando a já mencionada crítica de Beauvoir a Hegel. Ela quer chamar atenção para o problema de que o sujeito universal abstrato nega sua marcação corporal e projeta essa corporificação – renegada e desacreditada, para citar os termos de Butler – na esfera feminina. Só a mulher tem um corpo, e este funciona como fundamento para restrições, enquanto o corpo masculino torna-se o “instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical” (Butler, 2003, p. 31). Ser apenas um corpo é não ter possibilidade de tornar-se sujeita, é estar sujeita – aqui no sentido de dependente, obediente, dócil, submetida – à imanência sem chance de transcendência; é se fixar no belo, na natureza e na matéria como hipóteses limitadas da mera consciência natural, enquanto, aos homens, caberia alcançar o sublime, a cultura e o espírito como elementos de constituição da consciência de si. Dessa distinção entre corpos marcados por opressão ou liberdade, vem a ideia de que biologia é destino. Importante lembrar que, quando a teoria feminista insiste em afirmar que biologia não é destino, não o é em termos fundantes, no sentido de não localizar a essência do feminino nem do masculino na natureza humana. Para as mulheres condenadas a uma vida social regulada por aquilo a que seu corpo limita, biologia ainda é destino. Sua liberdade de agir está constrangida por suas características corporais, enquanto, para os homens, a “universalidade descorporificada” é a própria encarnação da ideia de liberdade. No seu modo desconstrucionista de ler, é importante para Butler pensar até que ponto a distinção sexo/gênero ainda está inscrita na tradição cartesiana que orientou o pensamento ocidental sobre o sujeito em sua cisão entre mente e corpo. É o que ela quer negar ao questionar que a noção de gênero decorra do sexo, decorrência na qual ela aponta uma forma de afirmação de uma “unidade metafísica”. Para Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito. Podemos pensar que seu gesto políticohistórico é indicar que não há a verdade do gênero (Butler, 2003, p.195), e, ainda assim, não abandonar o conceito de gênero no que ele serve para pensar a violência política sobre os corpos. […] a ideia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto da formulação de que a biologia é o destino. Neste caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino . (Butler, 2003, p. 26)

Butler está interessada em pensar “como o gênero funciona na definição ontológica de sujeito”. Mais do que um problema epistemológico, uma das questões que esse deslocamento põe em xeque é o desafio de pensar as relações sociais de gênero não mais a partir da distinção sexo/gênero, mas a partir de um trinômio sexo/gênero/desejo. Gostaria de observar que o termo desejo tem aqui uma ambivalência, apontando tanto para desejo sexual quanto para desejo de reconhecimento, palavra-chave no pensamento da filósofa. A centralidade do desejo na constituição do sujeito hegeliano será um ponto fundamental em todo o percurso filosófico de Butler. Sabemos que, desde Hegel, o desejo tinha se tornado elemento central na filosofia moderna. ² Desejo torna-se, em termos hegelianos, desejo de reconhecimento, aqui no sentido de um eu que busca no outro a admissão de existência do eu. Em Butler, desejo de existir é também desejo de ser admitido em roteiros sexuais que não sejam os heteronormativos. Por isso, para ela, é um problema que o par sexo/gênero suponha uma coerência entre sexo, gênero e desejo. Seu interesse é uma crítica política ao fato de sujeitos só se tornarem inteligíveis se enquadrados nessa linha de causalidade. * Se, como dito acima, podemos concordar com Butler que não há a verdade do gênero, gostaria de permanecer criando alguns problemas em relação ao possível abandono do termo, lembrando que, em Butler, é sempre melhor ter problemas por tê-los criado. Desde o início dos anos 1990, quando Problemas de Gênero foi publicado, até hoje, as perturbações sobre o termo gênero tal qual pensadas por Butler têm se evidenciado. Os efeitos que ela então previa estão explícitos na vida cotidiana: A perda das normas de gênero teria o efeito de fazer proliferarem as configurações de gênero, desestabilizar as identidades substantivas e despojar as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus protagonistas centrais: os “homens” e as “mulheres” (…). Como efeito de uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um “ato”, por assim dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo, as autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do “natural” que, em seu exagero, revelam seu estatuto fundamentalmente fantasmático . (Butler, 2003, p. 211, grifo da autora, tradução modificada por mim) Entra em cena o elemento com o qual pretendo argumentar sobre a importância do gênero dentro de um deslocamento: a performatividade, aqui entendida como a iterabilidade capaz de produzir os fenômenos que são regulados e constrangidos pela repetição. Nesse ponto, é importante perceber como, para Butler, as identidades de gênero não precedem o exercício da norma, mas é o exercício que acaba por criar as identidades, indicando que a repetição das normas vem acompanhada da possibilidade de subvertê-las. O aspecto mais radical desse momento do pensamento de Butler é a crítica da identidade de gênero e o seu deslocamento para a proposição de performatividade de gênero, modo de apontar o funcionamento dialético de normas, fundamentadas na sua repetição e que, por isso, carregam em si mesmas a possibilidade de subversão. Na crítica à política feita a partir da identidade, Butler traz os corpos para o debate que

se dá em torno do conceito de gênero, não mais aqui entendido como uma construção social a partir do sexo biológico, mas como um marcador político que opera todo tipo de violência. É nesse contexto que aparece a figura da drag queen como a que “desestabiliza as próprias distinções entre natural e artificial, profundidade e superfície, interno e externo – por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre gênero” (Butler, 2003, p. 8). Ao performatizar um gênero feminino, a drag queen se apresenta como uma hiper mulher , uma representação de todos os elementos estereotipados como femininos e, ao mesmo tempo, artificializados em qualquer corpo, e, não, como Butler também deixa claro, como uma prática em si de performatividade. “Se a drag é performativa, isso não significa que toda performatividade deve ser entendida como drag ”, responderá Butler (2003, p. 230) a seus primeiros críticos. Ir além, esse é o objetivo da autora na sua crítica ao sujeito ontológico: “(…) essa impossibilidade de tornar-se ‘real’ e de encarnar o ‘natural’ é, diria eu, uma falha constitutiva de todas as imposições de gênero, pela razão mesma de que esses lugares ontológicos são fundamentalmente inabitáveis” (Butler, 2003, p. 210). É em função da performatividade de gênero que me parece possível ensaiar aqui uma hipótese, a de que esse pode ter sido o caminho encontrado por Butler para pensar a relação do sujeito com a norma de modo dialético, mantendo a tensão que muitas feministas antes dela pretenderam solucionar. Perfomatividade é movimento permanente de manutenção e subversão das normas, que conserva e, ao mesmo tempo, supera as regras que estabelece. É – eu me arrisco nessa definição – a Aufhebung hegeliana à moda de Butler. Considero necessário tratar, mesmo que de forma breve, do termo alemão Aufhebung , cujas traduções têm desafiado filósofos em diferentes idiomas. O tradutor Emmanuel Martineu, que verteu do alemão para o francês o curso de Heidegger (1984) sobre a Fenomenologia do Espírito , nega soluções anteriores a ele, muitas das quais exerceram influência sobre as traduções brasileiras. Suprimir ( supprimer ), superar ( surmonter ), ultrapassar ( dépasser ), elevar ( enlever ), subsumir (s ursumer ) e suspender ( relever ) – esta última proposta por Derrida, notadamente em Glas (1972) – são algumas das hipóteses que encontramos também nos textos de e sobre Hegel no Brasil. Paulo Meneses, tradutor da Fenomenologia do Espírito pela editora Vozes, optou por supras sunção, termo que tem se estabelecido, apesar de divergências. Martineu propõe a tradução de Aufhebung por assumer , que poderia ser vertido para o português como assumir ou aceitar, e assomption (assunção). Para fazer essas propostas, ele retoma a famosa passagem de A ciência da lógica , quando Hegel afirma que: Superar [Aufheben] e o superado (o ideal) é um dos conceitos mais importantes da filosofia, uma determinação fundamental que pura e simplesmente retorna por todos os lados e cujo sentido tem de ser apreendido de modo determinado e ser particularmente distinguido do nada. – O que se supera, não se torna, por isso, nada. (…) Assim, o superado é algo ao mesmo tempo conservado, que apenas perdeu sua imediatidade, mas, por

isso, não foi aniquilado. – As duas determinações indicadas do superar podem ser apresentadas, em termos lexicais, como dois significados dessa palavra. Mas, nesse caso, surpreendente deveria ser o fato de que uma língua chegou a empregar uma e mesma palavra para duas determinações opostas . (Hegel, 2011b, p. 98) A língua portuguesa, no entanto, nem sempre pode nos oferecer palavras tão complexas e completas como Aufhebung . Embora pa reça que digressiono do tema principal para um problema de tradução, meu ponto é que, antes de seguir adiante, gostaria de ter explicado a importância do termo Aufhebung na filosofia de Hegel, que será herdada por Butler. Quando proponho pensar a performatividade de gênero como uma Aufhebung à moda de Butler, quero relacionar performatividade como movimento dialético de repetir e transgredir as normas de gênero; como ato de manutenção e de superação inseparáveis, que estabelece algo para em seguida ser superado. Superar e conservar o gênero, conservar e superar as normas de gênero. Pensando nesses termos, fica mais fácil refutar qualquer compreensão equivocada da performatividade de gênero como um ato individual de vontade de um sujeito autônomo e livre; portanto, fica também mais fácil retirar Butler de qualquer campo político liberal onde ela possa ter ido parar por engano de leitura ou de má-fé. Superação e conservação se dão numa brecha, na ínfima possibilidade de diferença na repetição da norma, entendida, nem como regra, nem como lei, mas como normalização. Aqui, a influência do pensamento de Michel Foucault, que marca a obra de Butler, aparece de forma ainda mais explícita, quando ela lembra as duas formas foucaultianas de sujeição: o poder regulador não age apenas em sujeitos preexistentes, mas configura e forma o sujeito; mais ainda, toda forma jurídica de poder exerce esse efeito produtivo; e tornar-se sujeito regular é também ser subjetivado por isso. Ou seja, a produção do ser como sujeito se dá precisamente por ser regulado, normatizado, normalizado (Butler, 2004, p. 41). Interessa a ela articular norma e gênero para pensar esse termo como inseparável de mecanismos nos quais as noções de masculino e de feminino são produzidas e naturalizadas. Mas gênero, ela observa, e eu sigo seu argumento, pode bem ser o aparato pelo qual cada um desses termos é desconstruído e desnaturalizado. Está aqui a potência de nem abandonar o termo gênero, nem se limitar a quantificá-lo apenas em dois. ³ Performatividade de gênero como aquilo que contesta a normatividade de gênero e tende a levar o gênero do binário ao infinito. Inumeráveis gêneros, não apenas no sentido de infinitas possibilidades de gênero, mas, também, pela ideia de que, não sendo o sexo o mais natural, mas tão discursivo quanto o gênero, então o sexo não é mais origem natural para um gênero social. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos (…) mesmo que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição, não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número dois . (Butler, 2003, p. 24, grifo meu)

Butler sugere que os debates teóricos que pretendem estabelecer uma prioridade entre os termos gênero, diferença sexual e sexualidade estão atravessados por outro problema: a permanente dificuldade de determinar onde começa e onde termina o biológico, o psíquico, o discursivo e o social (Butler, 2004, p. 185). Nas ciências sociais, o conceito serviu e ainda serve para problematizar a hierarquia social entre homens e mulheres no mercado de trabalho, nas atividades domésticas, no cuidado com a prole ou com os idosos, e com marcadores de subalternidade em geral, e estaria, portanto, marcado de forma indelével pelo problema da diferença sexual binária, restrita a homens e mulheres. Mas na antropologia, por exemplo, o sistema sexo/gênero serviu para Gayle Rubin (1975) – cuja obra exerce influência no pensamento de Butler – questionar as estruturas elementares de parentesco tal qual pensadas por Lévi Strauss e, com elas, o estabelecimento de famílias heteronormativas, tema que será desdobrado por Butler (2014) na sua proposta de distinção entre família e parentesco, estratégia de enfrentamento dos discursos reacionários contra uniões entre pessoas do mesmo sexo. Mas se tudo isso é verdade, é verdade também que, quando Butler aponta a ligação arbitrária entre o sexo tido como natural e o gênero como socialmente construído, o faz como radicalização da ideia de que, assim como não há o verdadeiro sexo, também não há o verdadeiro gênero, portanto, não há uma verdade do sujeito ontológico, cuja identidade não se organiza mais nem a partir do sexo, nem a partir do gênero, agora entendido como ato, efeito, paródia. Ficam esvaziados, assim, tanto o sexo quanto o gênero de características substantivas, essenciais, metafísicas. Se a natureza sexual não é mais origem, o gênero também não é mais um ponto ao qual se chega a partir dessa origem. Ambos estão em processo de permanente superação, ou de Aufhebung . Está em questão o projeto filosófico-metafísico-epistemológico que liga, indissoluvelmente, origem e finalidade, com conotação científica e atribui ao humano um percurso normatizador, normalizador, regulador, percurso definidor de formas de subjetivação constrangidas dentro ou fora dessas normas, a partir das quais se estabelecem, para relembrar a citação inicial a Derrida, os limites, a impureza, a anomalia, a monstruosidade. Com a performatividade de gênero, parece-me que há motivos para nos arriscar; abrir-nos à escuta do que o significante gênero ainda pode ter a nos dizer em relação a como nos constituímos como sujeito, assujeitados à norma, operando pela sua conservação; e, transgredindo a norma, operando pela sua superação. Notas 1 Não é outra coisa que Judith Butler aponta na leitura que faz da tragédia de Antígona. A filósofa percebe que, ao contrário da leitura canônica, estabelecida a partir da interpretação que Hegel faz da tragédia – para quem haveria uma separação perfeita entre a lei dos deuses, encarnada por Antígona, e a lei pública, representada por Creonte –, Antígona e Creonte estão coimplicados, sendo a lei de Antígona determinada pela negação da lei de Creonte e a lei de Creonte determinada pela negação da lei de Antígona. Lei e contra-lei como condição de possibilidade da lei. Sobre a leitura de Butler para Antígona, permito-me referir a Rodrigues, 2012.

2 A centralidade do desejo se fortalece nas leituras de Hegel na França, a partir dos anos 1930, com Alexandre Koyré e, em seguida, com os cursos de Alexandre Kojévè (2002) e Jean Hyppolite (1999), leituras que terão desdobramentos em autores como Sartre, Foucault, Deleuze, Derrida e Lacan, para citar apenas os que foram objeto da tese de Butler (1999). 3 Sobre os inumeráveis gêneros, gostaria de sugerir a leitura de Derrida, 1992. Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo”. In: Cadernos Pagu , n. 11, 1998. _. Subjects of Desire : hegelian reflections in twentieth-century France. Columbia University Press, 2a. Edição, 1999. _. Problemas de gênero . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. _. (Un)doing gender . New York and London: Routledge, 2004. _. O clamor de Antígona . Florianópolis: Editora da UFSC, 2014. DERRIDA, Jacques. Glas . Paris: Galilée, 1972. _. “La loi du genre”. In: Parages . Paris: Galilée, 1986. _. “Chorégraphies [entrevista a Christie V. McDonald]”. In: Point de suspension : entretiens. Paris: Galilée, 1992. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito . Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a. 6a. Edição. _. Ciência da lógica (excertos). Seleção e tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Barcarolla, 2011b. HEIDEGGER, M. La “Phénoménologie de l’esprit” de Hegel . Paris: Gallimard, 1984. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel . Tradução de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. KOJÈVE, A. Introdução à leitura de Hegel . Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto/Eduerj, 2002. RODRIGUES, Carla. Coreografias do feminino . Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. _. “Antígona: lei do singular, lei no singular.” Sapere Aude. Belo Horizonte, v. 3 - n.5, p.32-54 – 1º sem. 2012.

RODRIGUES, Carla; HEILBORN, Maria Luiza. “Gênero e pós-gênero: um debate político.” In: Fazendo Gênero 10 . Desafios atuais do feminismo. UFSC, setembro de 2013. Anais eletrônicos. RUBIN, Gayle. “The Traffic in Women. Notes on the ‘Political Economy’ of Sex”. In: REITER, Rayna (Ed.). Toward an Anthropology of Women . New York: Monthly Review Press, 1975. STOLLER, Robert. Sex and gender : on the development of masculinity and femininity. Science House, 1968. O corpo, o gozo e a pesquisa Mariana Baltar O melhor antídoto contra a pornografia dominante não é a censura, mas antes a produção de representações alternativas da sexualidade, feitas a partir de olhares divergentes do olhar normativo . (Paul Preciado, In: Mujeres en los márgenes El País , 13 de Janeiro de 2007) Há, nas palavras que se seguem, algo de uma jornada pessoal. Fico quase tentada a pedir desculpas, já que fazer exposição íntima de si nunca foi uma escolha teórica minha, a despeito dos temas aos quais me dedico a pesquisar que, tão frequentemente, roçam as bordas da intimidade e da vida privada: afinal, o que é o cinema melodramático e o pornográfico, senão as cenas da vida íntima, doméstica e cotidiana trazidas, passional e excessivamente, ao olhar público? Mas, não: raramente opto por trazer ao olhar público qualquer efeito mais explícito de um eu que declara e que se declara nas palavras. No entanto, aqui, parece-me que cabe certa dose de exposição pelo motivo fundamental que gesta a ação autorreflexiva deste texto: seu próprio objeto de análise e teoria são a aposta nos gestos de pornificação dos corpos femininos como disputas políticas. As pornificações dos corpos – pornificações de si , é o conceito que venho trabalhando ultimamente ¹ – não se restringem ao campo do pornográfico, mas atuam numa interseção cada vez mais central para a vida contemporânea: a encruzilhada onde se misturam, de modo quase inseparável, os campos das artes, das mídias e da política. No meio desse caldo grosso e turvo, o corpo boia, pois é no corpo e nas suas visualidades (ele em ação cotidiana, em cena, encarnando os modos de subjetivação) que se concretizam disputas políticas de sexualidades, gêneros e, até mesmo, o transcender desses conceitos. Corpo é palavra corrente nas pesquisas contemporâneas das humanidades – e, mais ainda, na interseção entre comunicação, filosofia e ciências sociais –

pois, em linhas gerais, tais reflexões o entendem “como algo que simultaneamente transcende a linguagem e nos serve de canal de comunicação com mundo (…). É neste corpo, transformado em um registro vivo, que serão inscritos afetos, emoções, representações da história do sujeito, do seu tempo” (Novaes e Vilhena, 2010). Cheguei nessa encruzilhada pelo exercício pedagógico. Foi no desafio da sala de aula – ao ministrar o que chamei de trilogia da sensação : cursos sobre os gêneros do melodrama, da pornografia e do horror, para os cursos de graduação do IACS (Instituto de Arte e Comunicação Social) da UFF – que os poderes de afetação das imagens do audiovisual nas subjetividades contemporâneas foram ficando mais protagonistas nas minhas pesquisas. Entre o compartilhamento das reflexões com os alunos e o cotidiano mais solitário do embate com imagens e textos, cristalizou-se, para mim, a percepção de que é cada vez mais central o lugar político das relações entre os corpos das telas e os corpos dos espectadores. Nesse percurso, o campo do pornográfico foi se tornando cada vez mais frequente no meu dia a dia: primeiro, como consumidora – mais ávida de uma pornografia literária do que audiovisual, a bem da verdade – e, depois, como pesquisadora. E aqui comparece minha confissão: no início desse percurso, entre 2009 e 2010, era com certa dose de constrangimento e timidez que admitia a pornografia como meu campo de interesses. Timidez e vergonha gestadas por uma boa dose de preconceito e de moralismo que ainda perduravam, a despeito das reflexões empreendidas, que se esforçavam a desbaratar tais (pré)concepções. Como pesquisadora mulher, oscilava entre o reconhecimento da importância de pesquisar pornografia, a necessidade de não cair em simplificações morais ou em ingenuidades celebratórias e as implicações de meus próprios prazeres e afetos. Mas, foi no corpo a corpo com a pesquisa, afetada pela teoria e pelas obras, que o constrangimento foi dando lugar à autoconfiança que tomei “emprestada” das demonstrações de empoderamento ² das mulheres da pornografia (atrizes, performers – profissionais e amadoras – ativistas e pesquisadoras ³ ). Nas muitas imagens que foram me atravessando ao longo da pesquisa, aquelas em que os corpos femininos aparecem como agentes e senhoras de seu prazer e seu desejo capturaram meu olhar. Aqui, vou falar de algumas dessas imagens produzidas por uma performer mexicana: La Bala Rodriguez. Sobretudo em seu vídeo Menstruantes , feito em parceria com Joyce Jandette (México, 2013), mas, também, nas foto-performances que comparecem em seu Tumblr ⁴ , o corpo da performer (o que ele encarna e como age) expressa seus movimentos de pornificação em direção a um questionamento político que se processa a partir da interação entre corpos na tela e corpo da câmera que mobiliza os afetos e os corpos dos espectadores. Parece, de fato, notável, no vasto conjunto de obras que circulam em torno da pornografia e da pós-pornografia ⁵ , a presença de uma autoperformance que expressa, por seu intermédio, os gestos políticos. Mais uma vez, essas práticas estão alinhadas com o espírito do seu tempo, pois é inegável que o político, na contemporaneidade, passa pela ideia (ainda que instável e, de

certo modo, sempre ilusória) do “eu” e do corpo cotidiano. As obras pornográficas são atravessadas por tal cenário e respondem a este contexto geral de uma subjetividade em que o desejo de ver e ser visto parece uma condição de existência. Atrelado ao conceito de pornificação de si , está uma defesa do direito de se pornificar, uma exaltação do prazer de se dar a ver como agente do desejo e, com isso, atuar em uma forma de disputa por visibilidades e visualidades. A Pornografia como campo político do feminino Ao escrever sobre a pornografia contemporânea, em que as esferas de consumo e de sociabilidade se dão através da internet (a chamada netporn ), Susanna Paasonen ressalta que parte da eficácia do pornográfico está “(n)os prazeres de ser arrebatado e maravilhado pelo visual” (2011, p. 185). ⁶ Há algo que nos afeta, em que pese toda a ambivalência e complexidade deste termo, diante da intimidade de corpos em cena. A pornografia diz respeito a esses corpos em ação (na interação como corpos), mobilizando desejos e prazeres. O campo geral da pornografia antecipa e problematiza questões centrais dos campos da cultura, da mídia e do audiovisual: os poderes de afetação do espectador; as múltiplas formas de consumo; o papel dos dispositivos de tecnologias de comunicação na construção de saberes sobre o outro nas mais diversas ordens político-culturais. É fundamental destacar a importância do pornográfico (esse universo nada unívoco – que, aliás, devemos chamar de pornografias) como lugar de reflexão sobre a sociedade; o que por si só já justificaria – e isso é de algum modo necessário – sua pesquisa e reflexão de modo sério e despido de falsos moralismos e julgamentos simplistas. Mas não é apenas como lócus de reflexão sobre a sociedade que se percebe a importância da reflexão sobre o pornográfico: é igualmente importante pensar a centralidade da pornografia como pedagogia político-cultural, que se pauta pela eficácia da mobilização das afetações corporais, como uma espécie de “reeducação dos desejos”, que se dá através da “produção de um saber corporal do corpo”, como escreve Richard Dyer, em seu clássico artigo de 1985, Male Gay Porn Coming to Terms . Quer dizer, uma educação dos corpos através dos corpos, através da afetação (sensorial e sentimental) desses corpos em ação. Se esse argumento ganhou primeiramente adesão de um ativismo gay masculino, ele nunca passou totalmente despercebido pelo movimento feminista. E a história da relação entre pornografia e feminismos não é de agora e, há muito, também não é de mera condenação anti pornografia. No interior do debate feminista no contexto inglês, norte-americano e australiano, Lesley Stern, em 1982, escreve um interessante artigo em que faz uma autorreflexão sobre a escalada feminista contra a pornografia. Nesse artigo, ela comenta como foi estratégico para o movimento feminista de então (anos 1970/80) ⁷ focar na pornografia como objeto concreto de crítica, justamente pela visibilidade da indústria pornográfica e da pornografia em si, como se, por conta dessa visibilidade/concretude,

conseguisse “incorporar” em um inimigo palpável o patriarcado e o sexismo. A autora também argumenta que, no fundo, essa opção acabou por ser muito útil para a direita liberal, pois congregava e acabava por sustentar um discurso pró-família burguesa: sexo heteronormativo e monogâmico. Assim, essa “campanha” anti pornografia acabou sendo profundamente acusada (e de fato, para mim, representou uma virada conservadora do feminismo norte-americano, sobretudo) por ser: moralista; estimular a censura; partir de uma apreensão simplista de causa-efeito entre imagem e violência; da apreensão monolítica da pornografia, sem perceber como esta é, também, importante forma de construção de diferença sexual e de outros modos de ver/ver-se no seu desejo. ⁸ Foi a teoria feminista que impulsionou a reflexão sobre a pornografia no campo dos estudos cinematográficos. Um dos trabalhos pioneiros é Hard core – Power Pleasure and the ‘frenzy of the visible’ , escrito por Linda Williams (1999), em que a autora busca refletir de que maneira as narrativas cinemáticas reunidas em torno do gênero pornográfico constituem-se como elemento poderoso entre os muitos discursos que relacionam um saber/ poder com o prazer sexual. A referência foucaultiana é explícita, e Williams também acaba por demonstrar preocupação em se posicionar no debate feminista em torno do universo da pornografia, sem deixar de considerar com seriedade as matrizes históricas e narrativas do gênero. Outros artigos e livros ⁹ daquele período compartilham com o livro de Williams um desejo análogo: o de complexificar o debate, mergulhando reflexivamente nesse mundo, buscando compreender suas dinâmicas e suas potenciais linhas de fuga e, sobretudo, precisando sua eficácia no engajamento afetivo e sensorial do público. ¹⁰ Nos anos 2000, o cenário é levemente outro. Vive-se um mundo onde a produção e o consumo dos objetos ditos pornográficos se multiplicaram e se disseminaram em proporções que acompanham as múltiplas formas e dinâmicas estético-culturais do audiovisual contemporâneo. Os estudos contemporâneos de pornografia focam em pensar sobre a dimensão política das formas imagéticas e do consumo desse campo, que é visto como cada vez mais expandido. Feona Attwood, no artigo “Reading Porn: the paradigm shift in Pornography research” (2002), argumenta que o cenário atual do campo da pornografia é marcado por mudanças nas próprias práticas discursivas e de consumo. Mudanças motivadas pela revolução tecnológica digital, por reconfiguração do capitalismo contemporâneo (pautado numa lógica pós-massiva e de produção e consumo por nichos de mercado), por práticas político-culturais dos próprios movimentos sociais. Busca-se, então, uma teorização que reflita sobre as relações de poder e suas potencialidades de resistência (exemplificada na retomada queer e feminista da pornografia e no chamado pós-pornô); sobre a eficácia narrativa dessas imagens em seduzir e mobilizar prazeres; sobre contextos político-culturais específicos de consumo e de mediação.

Essa mudança cultural também se observa cabalmente nas práticas discursivas que apontam para a formulação da pornografia como formas de atuação e de consumo feminino: No contexto contemporâneo de hiperfragmentação da produção, distribuição e consumo da pornografia audiovisual, emerge uma vasta produção pornográfica feminista, tributária do feminismo pró-sexo, que pode ser dividida em subgêneros como o “pornô para mulheres”, a pornografia queer e a pós-pornografia. O pornô queer/feminista é hoje considerado um nicho do mercado de pornografia online e alternativa, mobilizando uma indústria própria, na qual se destacam nomes como a atriz, diretora e produtora Courtney Trouble e seu website Indie Porn Revolution, os projetos Crash Pad Series, Queer Porn TV e Good Dyke Porn; as diretoras Mireille Miller-Young, Tristan Taormino e Erika Lust; atrizes e atores trans como Dylan Ryan, Jiz Lee, James Darling e Buck Angel e até mesmo premiações, a exemplo do Feminist Porn Awards . (Baltar e Sarmet, 2016, p. 110-111) Há, fundamentalmente, uma preocupação de entender a pornografia como campo de estratégias e negociações com a agenda de empoderamento feminino, a partir do domínio do próprio corpo e do próprio prazer. Nessa agenda feminista (pró) pornografia, três aspectos são importantes (e devem estar narrativamente visíveis e construídos nas imagens): 1. a dimensão consensual (o que tenho chamado nos meus escritos de “construção narrativa do consentimento”); 2. a ideia de coparticipação entre parceiros/as (desejo e prazer como partilha, encontro entre corpos); 3. exaltação do prazer feminino a partir das noções de empoderamento e de pornificação de si (reivindicar o direito e o prazer de se pornificar, fugindo, assim, da ideia heteronormativa de que ser sujeito/objeto do prazer é ser passivo, e ser passivo é se diminuir enquanto sujeito). Atravessando esses três aspectos, de modo central está uma crítica à padronização – racial, heteronormativa – dos corpos e seus prazeres. Autoras como Susanna Paasonen (2011), Julie Bradford (2010) e eu (Baltar, 2013) tentamos pensar a pornificação ¹¹ em tensão política com o discurso em torno da noção de objetificação . Não se trata de propor, com isso, que o termo pornificação seja tomado como mero contraponto – quase um antídoto – do debate sobre a objetificação do corpo feminino, impetrada na cultura midiática; mas de problematizar a questão para além do falso moralismo que parece cercá-la: um moralismo de gênero e, muitas vezes, de classe, que atravessa, inclusive, parte do discurso feminista, que enxerga qualquer expressão de sexualização do feminino como adesão e subjugação ao poder patriarcal. A pornificação de si não é mera celebração da exposição eróticopornográfica dos corpos femininos; é efeito e instrumento de uma formação histórica mais ampla de subjetividades alterdirigidas, de hiper individuação e hipertrofia do privado, de uma cultura somática vinculada à centralidade do sensório-sentimental. Assim, como efeito e instrumento de uma lógica geral do contemporâneo – em que a ideia de que se dar a ver ao olhar público é um desejo, um direito e uma fonte de prazer –, a pornificação atravessa práticas das mais diversas e

está presente, de modo ambivalente, tanto no vasto mundo da netporn , da pornografia amadora, quanto em projetos mais explicitamente vinculados ao ativismo político, tais como as performances no campo do pós-pornô de coletivos como Acento Frenético , o projeto PorNo PorSi , de artistas como La Fulminante ou projetos de Barbara DeGenevieve etc. Pornificação como gesto político na exposição afetiva de um corpo e de uma sexualidade dissidente é, sem dúvida, uma marca das obras da performer mexicana La Bala Rodriguez, que encarna no seu corpo aspectos como a crítica à gordofobia e a exaltação à matriz cultural latina, seja nas fotoperformances expostas em seu Tumblr , nas suas colaborações à revista independente Hysteria! ¹² (editada por Ivelin Meza e Liz Misterio) ou nas obras audiovisuais que produz. Em uma de suas obras, M enstruantes , La Bala e Joyce Jandette transam em uma laje, à luz do dia, ambas menstruadas. Em sua dissertação de mestrado sobre as redes de pós-pornô latino-americanas, Érica Sarmet (2015) analisa o vídeo a partir das categorias da intimidade e do afeto – assim como os filmes AmorAmor e Juntitos (obras argentinas que se centram em encontros afetivo-sexuais partilhados entre homens). A coreografia dos corpos – repleta de trocas de carícias, de risadas, de olhares – mostra uma partilha de prazeres e uma sintonia que se materializa em “um pacto de intimidade e afeto a partir do sangue menstrual” (Sarmet, 2015, p. 82). A excelente análise que Érica Sarmet faz dessa obra merece ser replicada aqui. Em um dado momento de seu texto, Sarmet diz: A câmera na mão indica que há uma terceira pessoa em cena, mas em nenhum momento este terceiro corpo penetra o espaço fílmico e nem é revelado, opondo-se a uma certa tradição da pornografia comercial industrial na qual o sexo lésbico é retratado como uma “preliminar” para a chegada do personagem masculino, ou como uma diversão para o homem que está de trás da câmera comandando a ação. (…) Em um determinado momento, a mesma performer que se masturbava no início do filme retorna a fazê-lo e ejacula. (…) enquanto as duas se olham sorrindo, como se selassem o pacto de intimidade que vinha sendo construído ao longo da narrativa. O filme continua com uma sequência que intercala close-ups e planos médios de sexo oral, alternando entre uma e outra até chegar a um momento de prazer mútuo, que é seguido pela encenação da prática de tribadismo ou tribbing ¹³ , pouco usual nos filmes pornôs tradicionais voltados para o desejo heterossexual masculino, apesar de ser uma prática sexual comum entre mulheres lésbicas. No último plano a câmera lenta volta, mas a batida eletrônica não cessa. Um plongée fechado registra o ato sexual por trás, revelando um rosto coberto de sangue e prazer . (Sarmet, 2015, p. 83-85)

Toda a ênfase na poética e no taboo da imagem do sangue menstrual é trazida no filme como algo além de provocação grotesca. É uma convocação a nos reencontrarmos prazerosa e afetivamente com nosso corpo. Todas as trocas de carícias, de risos e de olhares – passagens acentuadas no filme por close-ups e um leve slowmotion – tecem um manto afetivo para a coreografia sexual e para a imagem culturalmente rechaçada do sangue menstrual. Toda a obra performática de La Bala Rodriguez é fundamental para pensar práticas de pornificação feminina dinâmicas de empoderamento. Primeiro, por se tratar de uma mulher latina, cujo diálogo com a latinidade – especialmente com o repertório cultural mexicano – comparece em diversos e importantes signos de sua obra. Segundo, por sua defesa celebratória do corpo gordo e fora do padrão vigente de beleza. Suas imagens remetem à visualidade da Virgem de Guadalupe e a outros elementos culturais (explosão de cores e artifícios); o volume de seu corpo – sobretudo sua barriga e seios – aparece orgulhosamente em primeiro plano. Suas mãos agarram e acariciam as carnes para o olhar da câmera, compondo uma pose que vai na contramão dos modos como a fotografia de moda ou publicitária retratam os corpos plus size (em que se abusa de truques para disfarçar a abundância do corpo, tais como as mãos para o alto e a curvatura forçada do torso).

Foto-performance de La Bala Rodriguez

Foto-performance de La Bala Rodriguez (acima) Frame de Menstruantes (abaixo) Nos vídeos produzidos por La Bala é central a explicitação de uma dimensão amorosa de afetos partilhados. Há quase um desejo de inscrever suas obras

numa chave romântica, que remete e dialoga com a matriz da telenovela – outra instância em que sua obra toca repertórios culturais latinos. Contudo, o par amoroso exaltado – num mix peculiar entre pornografia e melodrama doméstico/romântico – raramente corresponde aos padrões corporais e morais da sociedade patriarcal heterossexualmente orientada. Outro bom exemplo dessas questões está na obra Boda Negra , em que o imaginário do dia dos mortos mexicano é pano de fundo para um encontro amoroso-sexual. Como diz a sinopse, elaborada por La Bala, é “um exercício pornográfico sobre amor e ternura”. La Bala Rodriguez – sua obra, seus filmes, seu corpo – “incorporam” uma dimensão do político que é, ao mesmo tempo, dissidência e ternura, puro afeto. Notas 1 Venho trabalhando essa noção de uma pornificação de si como elemento central do campo do pornográfico contemporâneo, sobretudo quando este é mobilizado em agendas feministas e queer . O conceito de pornificação de si envolve a dimensão performática do corpo, a partir da reivindicação do direito (e prazer) de se pornificar, ou seja, de se dar a ver como agente de desejo. Sobre o conceito, ver os artigos “Femininas Pornificações” (Baltar, 2013), “As pornificações de si em diário da putaria” (Baltar e Barreto, 2014) e “Corpos, pornificações e prazeres partilhados” (2018). 2 O termo empoderamento está muito em voga para expressar uma nova atitude individual de sujeitos marginalizados – seja do ponto de vista de classe, raça ou gênero – frente à ordem societária. Ele requer alguns esclarecimentos e matizes que não cabe aqui empreender. Tomo o termo como instância de disputa onde, seja no nível individual ou de um grupo, conquista-se a vez e “voz, visibilidade, influência e capacidade de ação e reação” (Horochovski e Meirelles, 2007). Nesse sentido, o conceito não pode ser entendido fora do escopo das noções de autonomia e de emancipação, em que pese a miríade de complexidades que envolvem essas noções (uma vez que nunca se é totalmente autônomo ou emancipado no contexto da vida societária moderna). Assim, a ideia de empoderamento, esse conceito que chega ao Brasil a partir de uma tradução do uso nos contextos do movimento feminista e negro nos anos 1970 do termo empowerment , envolve autonomia e capacidade (no sentido de possibilidade) de fazer escolhas nos âmbitos culturais, políticos, econômicos e sociais. 3 Quero aproveitar aqui para agradecer às minhas alunas, ao longo desse percurso, por partilharem comigo o caminho, mais especialmente a Nayara Barreto e Érica Sarmet, minhas, então, orientandas de mestrado e, agora, colegas pesquisadoras com quem sempre aprendo muito. 4 Labalaregistros. 5 Segundo Marie-Hélène Bourcier (2005), a pós-pornografia pode ser entendida como uma crítica à razão ocidental moderna pornográfica, que se daria pela criação de um “discurso reverso”, advindo das margens da própria pornografia mainstream : homens e mulheres trans, prostitutas, michês, lésbicas caminhoneiras, bissexuais, pessoas gordas, praticantes de BDSM e todo o tipo de corpos ou práticas consideradas desviantes e antes restritas à chamada pornografia bizarra. Para a autora, o uso consciente e

excessivo de recursos pós-modernos como colagem, intertextualidade e performatividade agiriam como estratégias queer de desnaturalização do imaginário pornográfico. O termo pós-pornô deve ser entendido, portanto, como uma esfera de dissidência política, muitas vezes reivindicado pelos ativismos, como crítica aos preceitos heteronormativos da pornografia comercial. Sobre o termo e as ações e obras produzidas em seu nome, sobretudo no contexto latino-americano, remeto à dissertação de Érica Sarmet (2015). 6 “…the pleasures of being overwhelmed and impressed by the visual” (Paasonen, 2011, p. 185). 7 É bom lembrar que o fortalecimento desse movimento anti-porn no cenário norte-americano não foi à toa, pois foi justamente nessa passagem dos anos 1970 para 1980 que a indústria pornô cresceu e ficou mais visível (tendo ganhado direitos de exibição pública em cinemas comerciais desde o início dos anos 70, com as disputas judiciais em torno da exibição de Garganta Profunda , 1972). 8 Uma reflexão mais matizada sobre a pornografia não implica apagar relações de exploração – inclusive e, sobretudo, do ponto de vista de relações de trabalho – ou ser conivente com ações criminais em que o pleno e real consentimento entre as partes envolvidas (tanto no âmbito da filmagem quanto no da divulgação e circulação dessas imagens) não está garantido. O argumento geral é que, inclusive, para atuar de modo mais eficaz e incisivo contra essa dimensão criminal é preciso enfrentar uma pesquisa e reflexão sobre o campo e suas práticas que não recaia sobre julgamentos morais simplistas. 9 The Secret Museum: pornography in modern culture , de Walter Kendrik, publicado em 1987, ou a coletânea Women Agaisnt Censorship , publicada em 1985, entre outros. 10 Estou me referindo especialmente à edição da Jump Cut , número 30, de março de 1985, com os seminais artigos de Richard Dyer (já mencionado aqui) e de Tom Waugh e às edições de Film Quarterly, volumes 36 e 37, de 1983, com dois artigos sob os títulos Confessions of a feminist porn watcher , de Scott MacDonald e Confessions of a Feminist Porn Programmer , de Karen Jaehne, respectivamente. 11 O termo pornificação vem sendo trabalhado, sobretudo, no contexto dos estudos de pornografia britânicos de modo ambíguo. De um lado, ele reforça um diagnóstico mais moralmente marcado de espanto, frente a uma crescente sexualização da cultura, ou pornificação do mundo, conforme nomeiam autoras como Karen Boyle (2010). Por outro lado, o mesmo termo – pornification – define, para autoras como Susanna Paasonen (2011 e 2014), Julie Bradford (2010) – e eu me incluo aqui – um diagnóstico da reinvidicação pelas mulheres do seu direito de se mostrar ao olhar e ao desejo alheio.

12 A autora explica que essa prática, popularmente conhecida como tesoura, diz respeito a um sexo não-penetrativo, no qual a ampla e mútua estimulação do clitóris é alcançada ao se esfregar a vulva na vulva da parceira. Referências Bibliográficas ABREU, N. C. O olhar pornô : a representação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas: Mercado das Letras, 1996. ATTWOOD, F. “No Money Shot? Commerce, Pornography and New Sex Taste Cultures”. In: Sexualities , v. 10 (4): 441-456, 2007. ATTWOOD, Feona. Reading Porn: The Paradigm Shift in Pornography Research. In: Sexualities v. 5, p. 91 – 105, 2002. BALTAR, M. “Femininas Pornificações”. In: BRAGANÇA; M. de; TEDESCO, M. (org). Corpos em Projeção : gênero e sexualidade no cinema latinoamericano. Rio de Janeiro, 7Letras, 2013. _. “Real sex, real lives – excesso, desejo e as promessas do real”. In: ECompós . v.17, n.3, set./dez. 2014. _. “Atrações e prazeres visuais em um pornô feminino”. In: Significação : Revista de Cultura Audiovisual , Brasil, v. 42, n. 43, p. 129-145, ago. 2015. ISSN 2316-7114. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/89868 >. Acesso em: 31 Ago. 2015. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn. 2316-7114.sig.2015.89868 BALTAR, M.; BARRETO, N. “As pornificações de si em Diário da putaria”. In: Crítica Cultural – Critic, Palhoça , SC, v. 9, n. 2, p. 265-278, jul./dez. 2014. BALTAR, M.; SARMET, É. “La fulminante: deboche, excesso e gênero no póspornô da América Latina:. In: ArtCultura , v.17, p.109 - 124, 2016. BOURCIER, M.-H. “Post-pornographie”. In: DI FOLCO, Philippe. Dictionnaire de la pornographie. Paris : Presses Universitaires de France, 2005. BRADFORD, Julie. Rewriting the Script: Women, Pornography and Web 2.0. 2010 (Conference at Postgraduate Research Day at University of Sunderland). BROOKS, P. Realist Vision . New Haven: Yale University Press, 2005. _. Body work : objects of desire in modern narrative. Harvard University Press, 1993. BUTLER, J. Problemas de Gênero : feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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não é valorizado – mas também satisfaz, transforma, empodera, ganha força. O corpo é sofrimento e, ao mesmo tempo, é potência. É por esse segundo viés que traçaremos nosso caminho neste texto. Hoje o corpo é palco privilegiado para a manifestação de questões ligadas à subjetividade ¹ , permeando o discurso das militâncias ligadas ao gênero (feministas e LGBTT). Empoderá-lo e exibi-lo, fazendo-o circular pelo espaço público, é ferramenta na luta pela aceitação das diversidades e vivências singulares dos ativistas dos movimentos sociais: Desnudados, encobertos, paramentados ou pintados, fazendo-se presentes nas ruas, em imagens ou em manifestos, os corpos são transformados em artefatos políticos, acionados de diversas formas por ativistas para comunicar diferentes mensagens e produzir efeitos desejados. […] Em maior ou menor medida, todos os movimentos sociais politizam o corpo e incorporam a política . (Gomes, 2017, p. 234) Como exemplo de movimento social que protagoniza o corpo, podemos citar o “Maravilhosas Corpo de Baile”, coletivo feminista de arte e política que atua promovendo aulas de dança, shows e workshops num estúdio no bairro de Pinheiros, em São Paulo, para corpos não masculinos: “mulheres, pessoas não binárias e bichas não normativas, negras, trans, periféricas, refugiadas, de ascendência indígena”. Esse coletivo busca o empoderamento pela via do corpo: “Ao entender o corpo como abrigo das nossas vivências e histórias, e merecedor de afeto e celebração, passamos a perceber que nossos corpos são exatamente o que deveriam: corpos protagonistas das nossas histórias, amores e desejos” ² . Uma das participantes do coletivo afirma que, “quando botamos os nossos corpos na rua e assumimos que são corpos livres e lindos, estamos ajudando a libertar várias mulheres que podem se reconhecer em nós” ³ , demonstrando que o efeito esperado da exaltação da diversidade dos corpos não masculinos é fazer com que estes corpos que escapam ao padrão se sintam representados e, assim, sejam libertados e aceitos sem preconceitos pelos próprios sujeitos e pela sociedade. O recorte que o coletivo citado faz de seu público-alvo, corpos não masculinos, se articula com o lugar atribuído ao corpo masculino nos impasses do gênero, como agente da repressão e do preconceito. No texto de divulgação da exposição de arte visual “Corpo Capital”, o corpo masculino é descrito como o Estado encarnado: Nota-se que o patriarcado escolheu o corpo do homem como morada. É, principalmente, através do corpo do macho humano que a guerra, a política, as relações de domínio, a propriedade, a percepção de nação, o sentimento de patriotismo, a propriedade, a territorialidade e a violência se manifestam; o corpo do homem é agente de uma estrutura de poder imposta e naturalizada: o Estado . ⁴ Se o agente da opressão se encarna no corpo masculino cisgênero, heterossexual, branco, padrão, a resistência é a afirmação da existência e a exibição da diversidade de corpos não padronizados no espaço público. Um trecho do “Pequeno Manual de Sobrevivência Anarco-Queer” dá o caminho: “o que a gente pode fazer? SER BICHA. Cada dia mais BICHA. Praticar a ‘viadagem’ como forma de resistência. Ocupar todos os lugares com nossos

corpos ‘viados’. Fazer isso tanto, fazer isso tantas vezes, até a hegemonia heterossexual entender que o mundo não dança sempre no seu ritmo” ⁵ . Essas militâncias se articulam com propostas da filósofa feminista contemporânea Judith Butler. Questionando a anatomia e a biologia como bases naturais da divisão e classificação de sexo e gênero, Butler afirma que corpos são construções discursivas e não dados da natureza. E, assim, os padrões sociais que criam corpos admiráveis criam também, na mesma operação, corpos abjetos que agora reivindicam sua visibilidade. Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e realçar um campo de possibilidades para a vida corpórea. Minha ênfase inicial na desnaturalização não era tanto uma oposição à natureza quanto uma oposição à invocação da natureza como modo de estabelecer limites necessários para a vida gendrada. Pensar os corpos diferentemente me parece parte da luta conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia . (Butler apud Prins & Meijer, 2002, p. 157) Com Butler, retira-se o determinismo da anatomia como destino das escolhas sexuais e de gênero de um sujeito no mundo, pensando não como necessária, mas sim como contingente a relação da anatomia com o gênero ou a sexualidade. Reivindica-se o reconhecimento da existência dos corpos abjetos, mostrando inúmeras possibilidades de vivências não padronizadas; a aposta é empoderar corpos para empoderar sujeitos. No movimento feminista, o corpo está presente no discurso atual de luta pelos direitos das mulheres. Útero, ovários, vagina e menstruação são elementos corporais cada vez mais presentes em plataformas que pretendem ser ponto de encontro de mulheres em torno do despertar de seu poder. Na Marcha das Vadias, por exemplo, o corpo vira bandeira, usado ao mesmo tempo como instrumento de protesto e conteúdo de reivindicação, aparecendo como elemento de provocação para questionar as normas instituídas de gênero e sexualidade, especialmente o modo patriarcal de controle sobre os corpos das mulheres (Gomes, 2017, p. 244). Nesse e em outros exemplos com os quais nos deparamos da militância de gênero contemporânea, é do corpo que se trata. Como um campo de saber que busca compreender as transformações culturais e de subjetividade que incitam mudanças nos modos de sofrimento, a psicanálise pode ser convocada a pensar sobre corpo e gênero. Interrogamos, a partir do referencial teórico da psicanálise lacaniana, as relações entre corpo e gênero, refletindo sobre o lugar do corpo no discurso da militância de gênero contemporânea. Corpo e sexuação Partiremos agora para um breve percurso do corpo na psicanálise lacaniana. O corpo aparece na psicanálise desde o seu fundamento, através do encontro de Freud com a histeria (Breuer & Freud, 1893-1895/2016).

Paralisias, convulsões, vômitos crônicos, vários tipos de problemas de visão e outros males do corpo demonstraram para Freud que, fora da lógica orgânica e, para além dela, os sintomas histéricos representam no corpo o sofrimento psíquico e, assim, surge a hipótese de que o corpo é afetado não apenas pelo que lhe é inerente biologicamente. No encontro clínico com a histeria, Freud percebe que, se um sintoma do corpo pode estar fundado, não num mal biológico, mas sim na história de vida de um sujeito e, principalmente, se através da fala, na situação analítica, o sintoma é capaz de desaparecer, é possível afirmar que, além da biologia, o corpo também sofre efeitos de linguagem – tanto na produção do sintoma quanto na sua diz-solução (Gerbase, 2011, p. 19). O enigma das relações do corpo com o aparelho psíquico está dado para Freud (1914/2004; 1915/2004; 1923/2011) e atravessa o desenvolvimento da psicanálise. A releitura feita por Lacan sobre o tema tem como marco inicial o texto “O estádio do espelho como formador da função do eu”, de 1949. Nesse texto, Lacan comenta a relação do bebê com sua imagem refletida no espelho. Em algum momento, aproximadamente entre os seis e os dezoito meses, o bebê se interessa por seu reflexo e passa a se reconhecer nele. Para Lacan, isso é também marco de inauguração da função psíquica do eu – o sujeito se reconhece como uma unidade imaginária relativamente estável, possibilitando assim a formação de sua identidade. O estádio do espelho, da forma como foi estudado por Lacan, faz referência ao modo pelo qual a imagem do corpo próprio, a partir do outro, tem um papel fundamental na formação do eu e na imagem assumida por um sujeito. Lacan evidencia nesse momento que o acesso que temos ao corpo se dá através de sua forma imaginária ⁶ e, também, que o corpo é definido em relação à falta, uma vez que, pela imagem do corpo, inscreve-se uma dessemelhança em relação ao próprio sujeito: “a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte do que constituída” (Lacan, 1949/1998, p. 98). A falta se dá porque, ao mesmo tempo em que surge uma relativa unidade e estabilidade do eu como função psíquica e como imagem corporal na qual o indivíduo se reconhece, o bebê ainda não tem maturação motora para experimentá-la no corpo. Em outras palavras, a experiência de unidade corporal ocorre primeiro no campo psíquico e, somente um tempo depois, no corpo. Esse intervalo instaura uma falta, uma distância entre a imagem do corpo e a experiência do sujeito. Mesmo com o posterior desenvolvimento motor da criança, essa falta permanece como fundamental. Isso quer dizer que a imagem de corpo unificado, junto à qual a função do eu se forma a partir do outro, não substitui inteiramente a sensação de corpo despedaçado. Assim, Lacan formula a função do eu como ficção: “essa forma situa a instância do Eu , desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção” (1949/1998, p. 98). Se pensarmos com a psicanálise, o eu formado a partir da imagem do corpo como uma ficção, as tentativas de empoderamento do sujeito via corpo, tal como descritas anteriormente, seriam prescindíveis? Fortalecer a possibilidade de existência de mulheres e pessoas LGBTT distantes do padrão considerado ideal pela sociedade, via valorização da imagem corporal, seria uma luta ficcional, que tende ao fracasso? Se nos ativermos ao campo do imaginário, a primeira impressão é

a de que o corpo não é o caminho. Nesse sentido, seríamos levados a pensar que alterar os padrões de corpo ideal na sociedade, ampliá-los, ou mesmo extingui-los, seria uma luta já perdida de imediato, pois a falta é estrutural e a distância entre imagem corporal do eu e padrão ideal nunca será transposta. Mas Lacan não encerra no imaginário seu percurso – o corpo não é só imagem, é também palavra. Lacan inicia o estudo do corpo através da via do imaginário, mas vai posteriormente enfatizar o registro do simbólico, e retornará ao seu texto sobre o estádio do espelho a partir desse enfoque. Dirá que o corpo é efeito de linguagem, e que o fundamental no estádio do espelho é o olhar que a criança dirige àquele que a sustenta, que confirmará o valor da imagem. Quando o bebê se regozija com sua imagem no espelho, é o olhar do adulto que a encoraja. Esse olhar já vem carregado de discurso, de narrativa, de construção social e cultural, de um saber sobre o que se espera ou não de um corpo. O operador principal seria então o simbólico, e não o imaginário – sendo a imagem, e mesmo o investimento libidinal na imagem, efeitos do simbólico. Nesse momento, Lacan defende não apenas que o simbólico participa da formação do eu, como é este registro o que possibilita e fundamenta a relação imaginária: “seria um erro acreditarmos que o Outro maiúsculo do discurso possa estar ausente de alguma distância tomada pelo sujeito em sua relação com o outro, que se opõe a ele como o pequeno outro, por ser o da díade imaginária” (Lacan, 1949/1998, p. 685). E o que significa essa presença do Outro na construção do corpo? Que além da imagem, há o dizer. O corpo é também elemento de discurso. A fabricação do corpo não se restringe à imagem que se faz dele já que é necessário, por assim dizer, um lastro do simbólico. Somente a partir do reconhecimento do Outro da imagem do corpo é que esta adquire a função de contorno, de unidade imaginária, que o sujeito não vivencia em seu despedaçamento originário. O corpo não é pura imagem, tampouco um fato de natureza, mero organismo físico-químico. Só há fato por ser dito, diz Lacan. E ao dizer sobre o corpo, ele é admitido no simbólico como um significante, uma palavra. São comuns, por exemplo, as brincadeiras entre adultos e bebês que envolvem a narração e nomeação das partes do corpo: a mãozinha, a barriguinha, a orelhinha – com toda a rede de significações atrelada a essas palavras, que vai construindo para o sujeito o corpo como discurso. O corpo vira palavra. Pensar o atravessamento do corpo pelo simbólico, na psicanálise lacaniana, articulado aos movimentos militantes contemporâneos que apresentam como ferramenta central o empoderamento do corpo, leva-nos, agora, a considerar a potência transformadora desse modelo de militância. Se o corpo depende do Outro para se estabelecer como um significante do discurso, falar sobre ele e colocá-lo seguidamente em questão pode mudar os termos em que está estabelecido socialmente e culturalmente. No livro Calibã e a Bruxa , por exemplo, a autora Silvia Federici mostra como ativismo e teoria feministas tomaram como fundamental o conceito de corpo para compreender as origens do domínio masculino e da construção social de uma dita feminilidade.

Partindo de uma análise da “política do corpo”, as feministas não somente revolucionaram o discurso filosófico e político, mas também passaram a revalorizar o corpo. Esse foi um passo necessário tanto para confrontar a negatividade que acarreta a identificação da feminilidade com a corporalidade, como para criar uma visão mais holística do que significa ser um ser humano. Essa valorização ganhou várias formas, desde a busca de saberes não dualistas até a tentativa (com feministas que veem a “diferença” sexual como um valor positivo) de desenvolver um novo tipo de linguagem . (Federici, 2017, p. 32) Na segunda onda do feminismo do século XX, segundo a autora, a valorização do corpo estava presente em quase toda a literatura produzida à época, nessa tentativa de desenvolver uma nova linguagem e, a partir dela, um novo modelo de relação entre as mulheres e a sociedade. Essa potência transformadora já começa a mostrar seus efeitos no plano coletivo, mas no nível da singularidade esbarra no limite do real. Assim como vimos que o corpo não é só imagem, ele também não é só palavra. Imaginário e simbólico não encerram a discussão sobre o corpo na psicanálise. Diz Lacan em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”: a palavra é a morte da coisa, e a partir da mortificação o desejo permanece (Lacan, 1953/1998, p. 280). Esse estatuto significante do corpo tem como efeito a sua mortificação – o corpo perdeu seu traço de vivente para ganhar algo do significante. Neste momento, para Lacan, ao ser aceito como significante – uma palavra no discurso – o corpo perderia a vida, no sentido de não haver mais a possibilidade para o sujeito de acesso direto, digamos puramente sensorial, a seu corpo sem a mediação da palavra. A permanência do desejo mostra que, apesar da perda de gozo, a operação de mortificação do corpo não se completa totalmente, deixa um resto. O que resta é uma parcela de gozo que retorna do real. Lacan demonstra que o corpo construído através do estádio do espelho não é suficiente para que aquilo que nos é desconhecido de seu real cesse de trazer efeitos. O real, por definição, é o impossível de simbolizar, de representar por imagens ou palavras e, por isso, totalmente singular. A imagem do corpo que construímos a partir do Outro é um invólucro, um contorno, uma superfície, que recobre aquilo que permanece estranho ao sujeito: seu interior, ao qual não temos acesso a não ser parcial, pelos orifícios – ou, em termos freudianos, pelas zonas erógenas: E o que o modelo também indica, pelo vaso oculto na caixa, é o pouco acesso que o sujeito tem à realidade desse corpo, perdida por ele em seu interior, no limite em que redobra de camadas coalescentes a seu invólucro, e vindo costurar-se neste em torno dos anéis orificiais, ele o imagina como uma luva que pode virar do avesso . (Lacan, 1960/1998, p. 682-683) Podemos pensar que, ao mesmo tempo em que o corpo passa a fazer parte da cadeia significante, o simbólico também penetra no corpo e deixa marcas, traços, faz efeito. E o principal efeito é o gozo: um dos princípios do ensino de Lacan é de que não há gozo sem corpo; é preciso um corpo para gozar. Trata-se do real do corpo, isto é, sua materialidade pulsional.

Miller destaca que um significante enquanto tal não goza. Um sistema significante funciona, mas não goza. Por isso mesmo, a referência ao significante e à função da fala não dão conta da totalidade da experiência do sujeito. É preciso incluir o corpo e o gozo, o resto da operação. O autor afirma que se dissermos que, para existir inconsciente, é preciso haver linguagem, poderemos utilizar a mesma linha de raciocínio e dizer que, para haver gozo, é preciso que exista o corpo vivo: “O gozo, ele próprio, é impensável sem o corpo vivo, o corpo vivo que é condição do gozo” (Miller, 2004, p. 8). A partir desses dois momentos do ensino de Lacan, Miller aponta a uma mudança de perspectiva em relação à maneira como o corpo aparece: num primeiro momento, matéria; num segundo, corpo vivo. E a diferença fundamental entre essas duas perspectivas é, principalmente, o gozo. Um corpo vivo é um corpo que goza. O corpo vivo não se restringe ao corpo imaginário, à forma do corpo descrita no estádio do espelho. O corpo vivo também não equivale ao corpo simbólico, formado por significantes. “Nem imaginário, nem simbólico, mas vivo, eis o corpo que é afetado pelo gozo” (Miller, 2004, p. 18). Vida, significante e corpo são condições para o gozo. Miller acredita numa hipótese fundamental: “que o corpo humano não é Um, que ele não é todo, que ele contém hiâncias, pluralidades e faltas” (Miller, 2001, p. 73). No humano, ser e corpo não se identificam. O significante não apenas mortifica o corpo, mas o recorta, liberando do corpo o mais-de-gozar, e determinando o regime de gozo: aquele do ser falante. O gozo do corpo de que se trata não é um “gozo bruto”, anterior à linguagem, tal como se supõe no animal. Daí entra a dimensão do falasser que, em Lacan, é o sujeito que tem, inclusive, um corpo. O falasser goza enquanto fala, e isso quer dizer, não que o significante anula o gozo, mas o sustenta, na medida em que barra determinada modalidade de gozo para dar lugar a outra: o gozo do corpo do ser falante. Não há como pensar o corpo puramente no coletivo sem levar em conta a dimensão do gozo. Essa é a contribuição da psicanálise na articulação com as militâncias de gênero contemporâneas que o tomam como protagonista. E como goza o corpo do ser falante? O conceito lacaniano de sexuação demonstra que a relação de um sujeito com seu próprio sexo e com o Outro sexo não é restrita ao campo da diferença anatômica ou ao campo das identidades (que podemos entender como uma relação do sujeito com seu corpo a partir da instância do imaginário). Na sexuação, o que está em jogo é a relação de um sujeito com seu modo de gozo, gozo do corpo – entendido por Lacan no Seminário, livro 20 (1972-1973/2008) como substância gozante. Na sexuação, não existe relação fixa, direta ou natural entre anatomia, identidade de gênero e modalidade de gozo (Macedo, 2016, p. 6). Com as fórmulas da sexuação, Lacan desatrelou a distinção entre os sexos da distinção anatômica. Ter ou não um pênis não é determinante para a sexuação, que depende muito mais do discurso sexual, das identificações por ele promovidas e das escolhas de gozo daí decorrentes. Desse modo, o corpo

pensado em seus caracteres sexuais não definiria o destino, nem da identidade de gênero, nem da sexuação. Há uma consonância com os discursos que questionam o determinismo do corpo anatômico com a vivência de gênero e o exercício da sexualidade dos sujeitos. Também para a psicanálise, o corpo não define o ser. Isso significa que cabe ao sujeito uma construção singular, que tem caráter de invenção. Cada um precisa inventar um modo de gozo para si; contornar com elementos singulares o real do corpo que resta para além da sua imagem e de sua narrativa. Nas fórmulas da sexuação, Lacan esquematiza a relação do sujeito com seu próprio sexo e com o Outro sexo (1972-1973/2008, p. 84). O esquema construído apresenta as duas modalidades de gozo: gozo fálico e gozo não todo fálico, ou o lado homem e o lado mulher – como acrescentaria posteriormente em “O aturdito” (1973/2003) –, e o impossível da relação existente entre os dois lados descritos. Homem e mulher, nas fórmulas da sexuação, não correspondem a sexo ou a gênero, mas sim a modos de gozo. Em outras palavras, pode haver pessoas que se identificam com o gênero feminino e estão situadas do lado masculino, e vice-versa. A impossibilidade da relação sexual, formulação famosa de Lacan, aqui significa que não há escrita possível da relação sexual – ou seja, não há referente comum, universal; não há possibilidade de modelo de relação para os seres humanos. Nenhuma teoria será capaz de estabelecer de antemão qual o modo ideal de um sujeito se relacionar com outro. É sempre da ordem do singular, da invenção. A psicanalista francesa Geneviéve Morel, em seu livro Ambigüedades sexuales: sexuación y psicoses (2012), faz um percurso da escrita dessas fórmulas em Lacan. Em primeiro lugar, demarca que a sexuação não se confunde com o sexo ou o gênero, pois se trata de modos de gozo, e não de identificações. A autora recorre à obra Sex and Gender (1968), de Robert Stoller, para comentar as noções de sexo e gênero em comparação à noção de sexuação em Lacan. Cabe ressaltar que as noções stollerianas de sexo e gênero fornecem diretrizes, até hoje, à militância LGBTT, em sua demanda dirigida à medicina por acessibilidade ao processo transexualizador. Em Stoller, sexo seria o aparato biológico, dividido em duas classes – macho e fêmea – identificáveis por atributos opostos: “órgãos sexuais internos e externos, gônadas, hormônios e caracteres sexuais secundários, assim como os cromossomos e o genótipo” (Morel, 2012, p. 75). Gênero, ou identidade de gênero (masculino e feminino), é definido pelo autor em termos de quantidade de masculinidade ou feminilidade presentes em uma pessoa (Morel, 2012, p. 76), e seria uma herança da língua, da bipolaridade masculino/feminino presente em terminações, artigos e flexões. O gênero, para Stoller, pode ou não coincidir com o sexo biológico, o que é praticamente consensual entre os autores aqui citados. O que Morel aponta em sua leitura é que tanto sexo quanto gênero não ultrapassam a noção de categoria e atributo: se você tem determinado atributo, pertence a uma categoria. A partir do momento em que nos situamos na perspectiva de uma teoria das categorias, uma teoria deste tipo sim/não, que implica buscar um traço que

o sujeito tem ou não, estamos na lógica de uma identificação imaginária com um sexo e de uma relação sexual imaginária. Veremos que essa identificação não basta para determinar a sexuação . (Morel, 2012, p. 76) Não basta, pois está em jogo na sexuação um terceiro tempo, para além de sexo e gênero, para além de imagem e discurso, da ordem do real e do gozo. É do gozo que se trata, e de um real inapreensível pela lógica do atributo. Nesse sentido, sexo e gênero não necessariamente coincidem com os modos de gozo feminino e masculino. Como opera então a sexuação e como as noções de sexo e gênero participam? Morel divide a sexuação em três tempos: o primeiro é o da diferença anatômica natural, o segundo é o do discurso sexual e o terceiro o da eleição do sexo por parte do sujeito (2012, p. 137). No primeiro tempo, está em jogo a anatomia, a herança biológica, outrora recebida no nascimento, hoje antecipada pela biotecnologia através de exames de ultrassonografia, ou mesmo a técnica de sexagem fetal. O primeiro tempo, diz Morel, refere-se a um real mítico, à imposição da anatomia ao sujeito, que só tem valor a partir do segundo tempo, justamente porque não há possibilidade, para o ser humano, de acessar a anatomia sem a mediação da palavra. O segundo tempo se caracteriza pela interpretação de um dado da natureza a partir do significante, pois nenhuma diferença pode ser pensada sem ele. Quando, de um feto se diz “é menino”, ou “é menina”, para além da descrição de uma diferença anatômica está a inscrição do sujeito em um certo modo de ser. A revelação do dado anatômico traz consigo uma herança: dos meninos, espera-se força e virilidade; das meninas, delicadeza, beleza, feminilidade – a natureza se converte em semblante (Morel, 2012, p. 138). O terceiro tempo é o da sexuação propriamente dita, a eleição do sexo. São descritos dois modos de inscrição através da quantificação da função fálica: gozo fálico, lado masculino; gozo não todo fálico, lado feminino. Temos então as fórmulas da sexuação como escrita lógica das modalidades de gozo do corpo do ser falante, e o corpo participa da sexuação nos três tempos: como anatomia no primeiro, como significante no segundo e como substância gozante no terceiro. Está, então, em jogo, na articulação da psicanálise lacaniana com a militância de gênero, a impossibilidade de pensar o corpo de uma maneira que não deixe um resto, inapreensível por uma imagem ou uma palavra. Em outros termos, por mais que os movimentos militantes contemporâneos tenham importância fundamental na valorização da imagem dos corpos femininos e LGBTT que não se encaixam nos padrões aceitos socialmente, ou que promovam mudanças fundamentais na já citada política do corpo, revolucionando os discursos filosóficos e políticos, há o real que sempre resta e que sempre estará no campo da singularidade. Ao psicanalista, importa escutá-lo, e não há referente coletivo ou identitário que o antecipe. Corpo, política e clínica Nossa tentativa, com este trabalho, foi revisitar alguns dos principais conceitos psicanalíticos a respeito do corpo para, assim, compreender quais

as articulações possíveis com a presença do corpo no discurso da militância de gênero contemporânea. Lembrando que, para a psicanálise, compreender não é o bastante, pois tratamos de algo que excede e desencoraja a compreensão. Entretanto, isso não quer dizer que nada deva ser compreendido, mas sim que é preciso extrair o possível de compreender e saber lidar com o impossível que resta. Como podemos pensar o corpo no discurso da militância de gênero articulado à elaboração lacaniana sobre o corpo e a sexuação? Primeiramente, é importante insistir na diferença entre o gênero e a sexuação lacaniana. Com Morel, podemos apostar que a identidade de gênero se aproxima mais da dimensão do imaginário, já que mantém a lógica da categoria e do atributo, da formação de identidades, da construção do eu. Alguns coletivos militantes parecem enfatizar essa dimensão, tentando ampliar o leque de classificações, identidades – ao propor pensar o gênero de uma maneira não binária, mas com risco de tender ao infinito ⁷ – e atributos, buscando valorizar e fazer reconhecer como belas características físicas que escapam aos padrões de beleza mais difundidos e buscando, em última instância, alterar esses padrões. Ora, sabemos que o corpo no ensino de Lacan ultrapassa a dimensão do imaginário. Se o corpo, na psicanálise, é uma realidade, esta realidade é tripla: imaginária, simbólica e real. Os três registros estão presentes na realidade do corpo, e todos eles participam de alguma maneira do laço social. O corpo, para a psicanálise, não corresponde ao aparato biológico, tal como evocado com cada vez mais intensidade pela ciência contemporânea. Não é um dado, mas uma construção. É preciso atribuir um corpo ao sujeito, e cada um o faz de maneira singular, marcando esse corpo com traços. A presença do corpo como instrumento e conteúdo de reivindicação das militâncias ligadas ao gênero poderia, também, ser pensada em Lacan a partir da dimensão do simbólico. Em 1960, ao comentar o relatório “Psicanálise e Estrutura da Personalidade”, de Daniel Lagache, Lacan (1960/1998) parte da frase “antes de existir em si, por si e para si, a criança existe para e por outrem; já é um polo de expectativas, projetos e atributos” (pp. 658-659) para desenvolver a ideia de que o sujeito é disjunto de seu corpo e que já tem um lugar no mundo antes mesmo de existir enquanto organismo. Lacan enfatiza, ao comentar essa frase, que esse lugar no mundo é um lugar no simbólico: “um polo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento (e talvez seja sob o acúmulo destes que irá claramente sufocar). De atributos, isto é, de significantes mais ou menos ligados num discurso, será preciso nos lembrarmos dentro em pouco, quando se tratar da estrutura do isso” (p. 659). Assim, a presença do corpo no discurso da militância e a tentativa de mediar via corpo transformações nas relações sociais pode ter uma interessante potência política na contemporaneidade. Ao afirmar que os atributos são significantes ligados num discurso, o que Lacan está dizendo é que o discurso envolve o sujeito antes de seu nascimento e, depois do nascimento, o organismo que passa a existir tem, de alguma forma, que se relacionar com esse lugar no discurso que o espera. O corpo aparece então como atravessado pelo simbólico, pela linguagem. Mais ainda: podemos dizer que a linguagem fabrica o corpo. Se o corpo, atravessado pela linguagem, é

criado pelo Outro como significante, e não um dado biológico, um fato da natureza, questionar o estabelecido e produzir novos discursos pode ter efeitos políticos muito importantes. Porém, “a vida não se reduz ao corpo na sua bela unidade evidente” (Miller, 2004, p.8). Mais além de imaginário e simbólico, o corpo é também real. Goza. Por ser atravessado pela linguagem, o corpo humano fica “doente da verdade”, e essa doença “embaralha a relação do corpo com o mundo e com o real” (Miller, 2004, p.64). É isso que está presente nas fórmulas lacanianas da sexuação: o gozo. O protagonismo do corpo nos discursos militantes é, então, fundamental para produzir transformações no plano coletivo, mas, na escuta clínica do psicanalista, isso não basta. Qualquer tentativa de enquadrar o corpo numa categoria ou num discurso deixará um resto e, em psicanálise, é desse resto que se trata. Notas 1 Consideramos a “subjetividade” ou “subjetivação” (plano ôntico-empírico) como causada por uma construção histórica e seus dispositivos de poder, que determinam formas de pensar, sentir e agir. Por sua vez, o sujeito psicanalítico (plano da ruptura ontológica) é uma função que carece de conteúdo próprio, sendo causado pela incidência do agente da linguagem sobre seu organismo – e não, ao menos não somente, pela construção histórica –, só podendo se representar entre significantes (Alemán, 2016, p. 65; Cabas, 2009, p. 10). 2 Disponível em: http://juntos.com.vc/pt/manas . Acesso em: 26/02/2019. 3 Disponível em: http://www.hypeness.com.br/2017/02/mulheres-reaisreforcam-autoestima-em-grupo-de-danca-empoderador/ . Acesso em 26/02/2019. 4 Disponível em: http://www.infoartsp.com.br/agenda/corpo-capital/ . Acesso em 26/02/2019. 5 Disponível em: http://www.infoartsp.com.br/agenda/corpo-capital/ . Acesso em 26/02/2019. 6 Os três registros essenciais da realidade humana – imaginário, simbólico e real – são noções centrais e fundamentais em todo o ensino de Lacan. O imaginário seria o registro das imagens, da identificação, da projeção, da identidade, do ego. O simbólico é um sistema de representação baseado na linguagem, um discurso que antecede e envolve o sujeito à sua revelia, em parte consciente e em parte inconsciente. O real é o registro do impossível de representar por imagens ou por palavras, aspecto irredutível do corpo e da sexualidade, resto que não cessa de não se escrever. 7 Em fevereiro de 2018, um grupo de ativistas propôs alterar a sigla que representa a comunidade LGBT para LGBTQQICAPF2K+, que incluiria: Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans, Queer, Questionando-se, Intersexuais, Assexuados, Sem Gênero ( agender no original), Simpatizantes ( ally no original), Curiosos, Pansexuais, Polisexuais, Amigos e familiares, Dois-espíritos, Kink e +). A proposta foi bastante criticada pela comunidade,

pois o excesso de categorias faria todos serem incluídos e a sigla, paradoxalmente, perder seu propósito (Fonte: https://www.thegayuk.com/ there-is-now-a-k-in-lgbtqqicapf2k/ , acesso em 26/02/19). Referências Bibliográficas ALEMÁN, J. Horizontes neoliberales en la subjetividad . Olivos/Pcia. de Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016. BREUER, J.; FREUD, S. (1893-1895). “Estudos sobre a histeria”. In: Obras completas , v. 2: Trad. Paulo /César de Souza & Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. CABAS, A. G. O Sujeito na Psicanálise de Freud a Lacan : da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa : mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. FREUD, S. (1914). “À guisa de introdução ao narcisismo”. In: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente . Tradução de Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p. 95-132. _. (1915) “Pulsões e destinos da pulsão”. In: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente . Tradução de Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p. 133-174. _. (1923). “O Eu e o Id”. In: Obras Completas . v. 16. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-74. GERBASE, J. A hipótese lacaniana . Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2011. GOMES, C. G. “Corpo e emoção no protesto feminista: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro”. In: Sex., Salud Soc. (Rio J.) [online], Rio de Janeiro, n. 25, p. 231-255, abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/ 10.1590/1984-6487.sess.2017.25.12.a . Acesso em: 13/02/2018. LACAN, J. (1949). “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 96-103. _. (1953). “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324. _. (1960). “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade”. In: Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 653-691. _. (1972-73). O seminário, livro 20 : mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. _. (1973). “O aturdito”. In: Outros escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 448-497.

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Formas de voltar para casa ) Precariedade Nunca um momento político brasileiro foi tão favorável à revisão de nossa ainda recente e hesitante democracia como o atual. Como se vê em filmes contemporâneos, parte expressiva dessa revisão vem sendo realizada por um cinema documental de cunho autobiográfico, cujo foco de investigação são as experiências pessoais e heranças históricas legadas pela ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Filhas de exilados e presos políticos, Maria Clara Escobar, em Os dias com ele (2013), e Flávia Castro, em Diário de uma busca (2011), lançam mão de formas distintas de busca pela figura paterna, busca na qual a infância, a experiência do fracasso e até a disputa pelo filme que está sendo feita não apenas coexistem como fazem a passagem do pai ao país, do privado ao político, da autobiografia a uma escrita marcada por forte presença da alteridade. Os dias com ele e Diário de uma busca são, portanto, solidários entre si: além de marcarem a estreia no longa-metragem de Maria Clara Escobar e Flávia Castro, elegem a relação com o pai e com a memória do pai, ambos militantes da luta armada brasileira, o eixo a partir do qual o período da ditadura civil-militar no Brasil é descortinado. Através de uma mirada pessoal e concretamente situada nas presenças performativas das diretoras (Maria Clara no antecampo, a entrevistar Carlos Henrique Escobar, e Flávia Castro, a narrar em voz off ), é travado um embate com a história, a memória, nossa herança política e a experiência do exílio, seja o exílio coletivo de Celso Castro e de toda uma geração de militantes políticos no passado, seja o autoexílio solitário de Carlos Henrique Escobar, no presente da filmagem. Tendo participado da resistência ao regime como ideólogos e integrantes de movimentos armados, o filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar e o jornalista Celso Castro, como muitos de seus companheiros, fracassaram em seus projetos revolucionários. Celso, pai de Flávia, morreu durante uma ação controversa em 1984, pós-anistia política no Brasil, dentro do apartamento de um suposto colaborador nazista na cidade de Porto Alegre. Após retornar do exílio político que o levou a morar em diversos países (Chile, Argentina, França, Venezuela), Celso não encontrou sentido no processo de abertura e redemocratização brasileira, visto por ele como um “fracasso”, com a vitória dos militares, protegidos pelo esquecimento programado, conferido pela Lei da Anistia (1979), e a derrota dos militantes. Já Carlos Henrique, pai de Maria Clara, extremamente crítico aos caminhos trilhados pela esquerda brasileira, desde 2002, ano do primeiro governo Lula, vive em exílio voluntário numa pequena cidade de Portugal. Abandonou a filosofia e a dramaturgia, fazendo opção pelo recolhimento, pela solidão e pelo “absoluto anonimato”. As filhas, cada uma a sua maneira, ambas falando em nome próprio, na primeira pessoa do singular, decidem, então, tomar o cinema – no caso de Maria Clara Escobar – como um instrumento de embate e de reflexão sobre o silêncio; “os silêncios históricos e pessoais”, o silêncio da ditadura e, diz ela ao pai, “o silêncio que eu tenho na minha própria história com relação à

sua”. Também Flávia Castro, narrando na primeira pessoa, faz do cinema um instrumento de reconstrução e de reencontro entre a memória pessoal e a coletiva, a memória de seu pai e de seu país; mais atenta, porém, ao passado e à infância no exílio, evitando, com isso, encarar certos embates que se apresentam na atualidade, do filme e da vida, ou encarando esses embates de maneira imensamente delicada, do modo como é possível. Se Os dias com ele se constrói a partir da imobilidade espacial e de um relativo confinamento (o filme não sai da casa de Carlos Henrique Escobar – quando muito, vai ao quintal), realizando-se no tempo presente da relação entre pai e filha, a qual o interroga, de maneira destemida, sobre seu passado, sua formação política e a experiência da tortura, Diário de uma busca , de forma completamente distinta, constrói-se no deslocamento espacial e no retorno a experiências passadas. O passado é narrado no presente do indicativo, tanto por meio dos diários da Flávia-menina (quando o filme emprega planos fixos), como das cartas de Celso Castro aos filhos (quando o filme lança mão de travellings ou planos em movimentos). Como se vê, a narradora está subjetivamente fixada no passado (“tenho seis anos…”), enquanto os questionamentos de Celso recuperados em suas cartas (“ninguém quer entender que voltamos derrotados”) valem para o presente da filmagem e do país, na forma de duros diagnósticos. Assim, por meio dessas duas formas narrativas de “diário”, com temporalidades distintas, ambas as filhas inscrevem, na própria fatura fílmica, a ausência de seus pais: Carlos Henrique Escobar se revela como uma presença ausente, um ser distante e formal, ainda que muito carismático, enquanto Celso Castro é evocado sempre afetivamente, como uma ausência presente. Representantes do trauma da segunda geração, a de filhas e filhos de militantes que, como “personagens secundários” na vida dos pais, diante das grandes utopias políticas, cresceram marcados pela ausência e pelo exílio, Maria Clara e Flávia fazem também parte de uma guinada autobiográfica bastante presente no documentário em primeira pessoa na América Latina – não por acaso, realizado por mulheres. Esse é o caso de Los rubios , de Albertina Carri (Argentina, 2003), Papa Ivan , de Maria Inés Roqué (Argentina/México, 2004), Segredos de lucha , de Maiana Bidegain (Uruguai/França, 2007), Espeto de pau , de Renate Costa (Paraguai/ Espanha, 2010) e Familia tipo , de Cecília Priego (Argentina, 2009), todos eles centrados na relação entre pais e filhas no contexto das ditaduras latino-americanas ¹ . Seria interessante perguntar, neste momento, por que a autoria feminina – que, como veremos, implica aqui uma posição feminina – se coloca de maneira tão expressiva nessas obras, todas elas abertas aos embates com o passado e o presente, dispostas ao diálogo e ao encontro com o outro e, de modo geral, construídas a partir de um não saber , de uma posição subjetiva e de uma enunciação fílmica que não obliteram sua precariedade , parcialidade e contingência . Com Judith Butler e a psicanálise, poderíamos pensar que o feminino de que se trata aqui não é uma comunidade de origem, mas de destino. Não é definido por uma anatomia, essência ou biologia, mas por um compromisso com o porvir. No ensaio Vidas precárias (2016), a filósofa norte-americana propõe uma forma de politização que tenha como fundamento a vulnerabilidade e a precariedade presente em

todos nós, e não a noção de pai ou de Estado como chancela ou garantia de nossas vidas. Como veremos mais detidamente em Os dias com ele , seguindo o apelo de Butler, reconhecer a precariedade de alguém não significa reconhecer a sua identidade, mas proteger sua possibilidade de se tornar algo que ainda não se sabe. A vulnerabilidade, nesse sentido, conduziria à potência, a uma forma de saber que acolhe a dimensão sempre impossível do encontro com o Real, ao invés do lugar fácil da queixa e da vitimização, no qual seria muito fácil cair (de uma filha supostamente rejeitada a um pai amargurado). Por isso, segundo a filósofa, demandar reconhecimento não implica pedir que se reconheça o que cada um já é, mas invocar um devir, estar à espreita de uma transformação, exigir um futuro. Como Os dias com ele nos mostra de maneira dura e bela, para haver futuro é preciso haver coragem. Coragem de quem, inclusive, não teme errar ou fracassar ² – “pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo”, poderia acrescentar a protagonista de A paixão segundo G.H . (Lispector, 1998, p. 109). Disputa e distância – Eu não sei bem que filme é esse que você está fazendo. Eu tenho a impressão de que é um filme sobre você. Se for isso, é maravilhoso – diz Escobar a Maria Clara. – Os filmes sempre são sobre nós . – É por isso que você faz mais perguntas sobre você. Mas eu sou mais público, quer dizer, eu falo das questões de fora … – Mas não é só sobre mim. Eu tenho interesse … – Ah, pega meu aparelho [auditivo] – Mas é também uma reflexão sobre os silêncios, os silêncios históricos e pessoais . – Eu estou tentando entender essa sua questão; eu não entendi. Seja corajosa e diga o que é. Porque se você tem que fazer as perguntas, já que tudo isso se refere a você, faça com coragem, senão fica ambíguo demais! – É uma mistura para mim do silêncio da ditadura, do que aconteceu na ditadura, com o silêncio que eu considero que eu tenho na minha história com relação à sua história . – Já estamos começando? – Podemos, só um minuto . Face à inflação de variadas estratégias de confissão pública, de testemunhos em nome próprio (considerados fontes sempre mais autênticas, verdadeiras e fidedignas) e de documentários autobiográficos narrados na primeira pessoa, manifestações que compõem nosso atual e hipertrofiado “espaço biográfico”, na expressão de Leonor Arfuch (2010), a ensaísta argentina

Beatriz Sarlo, em seu provocador Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva , adverte: “Se há três ou quatro décadas o ‘eu’ despertava suspeitas, hoje nele se reconhecem privilégios que seria interessante examinar” (2007, p. 21). É visando a tal exame que se pode dizer que, diferentemente da febre autobiográfica e do teor confessional que dão a tônica da cultura atual, Os dias com ele é dotado de uma coragem: não evita o mal-estar, os desentendimentos e o desencontro, ao mesmo tempo em que assume a dificuldade de compreensão, a precariedade dos meios e a opacidade da linguagem como elementos constitutivos, não apenas das relações familiares em jogo, mas, sobretudo, de sua matéria fílmica. Mas o empreendimento não é fácil. Escobar, desgostoso com a derrocada das esquerdas brasileiras e tendo se exilado voluntariamente em Portugal há mais de uma década, optou pelo recolhimento e por uma vida rodeada de papéis e gatos. Para Maria Clara, tendo atravessado o oceano, o mais difícil está por vir. Ela quer desse pai, com quem tem uma relação difícil e distante, uma reflexão sobre o silêncio imposto pela ditadura e aquele que ela própria carrega em sua história. Escobar diz não entender: “Eu não sei bem que filme é esse que você está fazendo. Eu tenho a impressão de que é um filme sobre você. Se for isso, é maravilhoso”, mas “seja corajosa!”. Ao que ela lhe responde: “Os filmes são sempre sobre nós”. E ele, então, justifica: “Mas eu sou mais público, eu falo das questões de fora”. Construído na tensão entre os âmbitos público e o privado, Os dias com ele é composto por testemunhos, entrevistas e conversas entre pai e filha, além da observação do cotidiano de Escobar e de filmes caseiros em Super-8 (os quais emprestam uma memória que a própria realizadora não tem de sua infância), incorporando em sua fatura os momentos que antecedem e que sucedem essas conversas, como cacos de palavras, preparações da cena, ensaios e mal-entendidos. É sobretudo nesses momentos, mais próximos do que seria da ordem do processo ou do bastidor, nos quais Escobar não se sabe filmado (“já começou?”, ele pergunta algumas vezes), que tanto a cena (a quem pertence o filme?) quanto a vida (quais posições pai e filha ocupam?) aparecem em disputa. Performando-se para a câmera, ensaiando e encenando conferências e discursos (“O Freud simulava”, justifica-se), Escobar quer roteirizar o filme da filha, quer ser construído e visto como um personagem importante e público. Já Maria Clara, presente, sobretudo, através de sua voz, a quem Escobar nunca chama de filha, faz questão de colocá-lo no lugar de pai, de personagem privado. Reivindicando seu testemunho pessoal sobre a tortura, Maria Clara jamais oferece ao espectador qualquer outra informação sobre Escobar (biografia, datas, feitos, obras publicadas) que não passe por aquilo que emerge no presente da relação entre os dois e na atualidade da filmagem. Escobar faz um teatro sobre ele; a filha responde (vingando-se?) com um filme sobre ela. Mas não se trata aqui apenas de uma disputa mesquinha, fruto de vaidades inconfessáveis (ou bastante confessáveis, no caso de Escobar) e ressentimentos mútuos destilados. As vaidades e os ressentimentos existem e são explicitados; porém, Os dias com ele não se reduz, de forma alguma, a um acerto de contas familiar. Como escreve o crítico Jean-Louis Comolli, em

Como filmar o inimigo? : “Não se filma sem amor, sem desejo, sem inconsciente, sem corpo; mas também não se filma sem consciência, sem moral, sem cálculos, sem gostos e desgostos” (2008, p. 129). A disputa é, portanto, interessantíssima e em nada mesquinha ou narcísica, fazendo das fraturas afetivas um lugar de confronto, mas também de vital encontro. Se não se trata então de simplesmente afagar feridas e remorsos narcísicos, postura de alguns exilados, como comenta o palestino Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (2003), a disputa em questão pela cena – e pelo filme – é uma disputa política entre a tarefa individual da narrativa do trauma (os vários traumas em questão) e sua componente coletiva; entre a memória do pai militante, o desconhecimento da filha e a história de um país; entre a extrema necessidade de seu testemunho (como “responsabilidade histórica” ³ , diz Maria Clara) e sua crônica impossibilidade, condição aporética de toda situação testemunhal diante da violência de Estado ⁴ . A disputa é, então, sobretudo, entre o espaço da “intimidade”, modernamente considerado mais verdadeiro e autêntico do que o público, e o espaço da “extimidade”: aquele que, segundo a psicanálise, sendo tão próprio aos sujeitos, só poderia apresentar-se fora deles, no âmbito da cultura, no âmbito da interação com o outro, no âmbito da exterioridade da linguagem (Miller, 2010). Tomando uma contramão bastante crítica à dimensão confessional da cultura, em Os dias com ele , a vida da realizadora Maria Clara se revela, ao menos em alguma medida, por meio da relação com um outro que, separado e jamais assimilado, efetua uma mediação incontornável. Se “filmar é filmar relações, inclusive as que faltam”, como também defende Comolli (2007, p. 107), é porque, aqui, o cinema junta o que a vida separa, criando um espaço comum em que as lacunas, as distâncias e as disputas não são suprimidas, mas constitutivas da própria cena e dos sujeitos filmados, ambos permanentemente inacabados. Eis aí a força política do filme. Como sabemos, as verdadeiras experiências democráticas são aquelas que abrigam o dissenso e o desentendimento em seu interior, e não as que impõem autoritariamente um consenso. Tal processo de separação entre quem filma e quem é filmado também pode ser observado em Santiago , de João Moreira Salles (2007) e, mais recentemente, em Mataram meu irmão , de Cristiano Burlan (2013), ambos atravessados, embora de modos muito diferentes, por distintas formas de violência e distância, das relações de classe e de poder às duras relações familiares e sociais. Ao comentar sua trajetória crítica no belíssimo texto “O travelling de Kapo” (1996), o crítico Serge Daney assim definiria sua relação com o cinema: “E o cinema, vejo muito bem porque o adotei: para que ele me adotasse de volta. Para que ele me ensine a perceber, incansavelmente pelo olhar, a que distância de mim começa o outro” (1996). Testemunho, documento e política – Eu queria falar um pouco sobre a questão da tortura – diz Maria Clara a Escobar – O quê? Da cultura?

– Da tor-tu-ra! Benjamin escreveu em seu último texto, “Sobre o conceito de história” (1994), que nunca existiu um documento da cultura que não fosse, ao mesmo tempo, um documento da barbárie (1994, p. 225). Não à toa, o ato falho de Carlos Henrique Escobar, que escuta “cultura” no lugar de “tortura”, diz respeito ao reconhecimento dessa violência que está na origem dos processos culturais e civilizatórios. Essa violência que Os dias com ele figura e coloca em cena, é preciso lembrar, diria ainda respeito ao próprio cinema. Nesse sentido, o “ele” do título não se refere apenas, com distância, ao pai e ao intelectual, mas, também, ao próprio fazer cinematográfico, dada a extrema consciência de que filha e pai, realizadora e personagem, têm do filme que está sendo feito, do filme em disputa. Em alguns momentos, Maria Clara pede que Escobar testemunhe a sua experiência da tortura. Ele tergiversa, cita Derrida, que pensou a condição impossível do testemunho, sobretudo na cena do tribunal, “uma cena falsa”, e diz que vai falar sobre o que significou a tortura para si. Então Maria Clara faz um zoom in e Escobar chacoalha as pernas inquieto, como a se preparar para o seu testemunho, mas, finalmente, sem muito hesitar, segue teorizando. Ele não fala, não consegue narrar. É só quando Maria Clara, mais tarde, lembra a ele de que sua peça Matei minha mulher (a paixão do marxismo: Louis Althusser) (1980) começa com a descrição de uma tortura (a que teria sofrido Althusser), que Escobar é capaz de se aproximar da experiência traumática. Como se pode perceber, ele precisa da ajuda da ficção para voltar ao momento em que o “cristal se partiu” e “o horror e a revolta se tornaram furor e desordem”. Aqui, a imaginação, como argumenta Marcio Seligmann-Silva, é chamada “como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma” (2006, p. 70), o qual encontraria na imaginação um meio para sua narração. Em outro momento do filme, quase ao final, Maria Clara pede que Escobar se sente em uma cadeira vazia no quintal da casa onde vive, para que ele leia, diante da câmera, um documento do DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) com seu mandado de prisão em 1973, um dos momentos mais intensos da repressão. Escobar se recusa. Para ele, o documento é a expressão da burocracia, um arquivo morto, que só glorificaria o torturado, individualizando-o, e daria voz aos torturadores. “Há crimes imensos e incríveis, mas isso todo mundo sabe. E fica meio insípido ler a prisão de um cara quando foram presos dez mil”, ele argumenta de maneira combativa a Maria Clara, ambos fora de quadro e no antecampo (o espaço da câmera), enquanto a cadeira permanece vazia. Maria Clara tenta argumentar, mas Escobar continua. Diz que a filha “talvez não saiba direito quem está filmando” e que sua saída seria “fazer uma coisa estética, não um documento”, caso contrário tudo resvalará para uma obra “boba e narcísica”.

Sustentando sua posição crítica ao filme que está sendo feito, Escobar acrescenta ainda com um misto de lucidez aguda e vaidade incontrolável: “Não me tome como alguém que você possa usar secundariamente, porque o que eu tenho de melhor encheria o filme”. Como fica claro, ele não quer ser um “personagem secundário” no filme da filha, ela que sempre foi secundária em sua vida diante dos grandes ideais políticos. Nessa disputa por protagonismo, Maria Clara reage com insubordinação e teimosia, ao final, sentando, por assim dizer, na cadeira vazia do “inimigo”. Teria ela aprendido a desobediência com o pai? Seria essa a sua herança? Num gesto ambíguo, Maria Clara acaba por fazer elo com Escobar, em uma situação que, aparentemente, estava destinada ao conflito. Essa sequência nos leva a pensar que, se o Real só pode ser pensado como um “desencontro”, como aquilo que, conforme a psicanálise, não pode ser simbolizado pela linguagem (lembremos que Eduardo Coutinho (2008) costumava dizer que o documentário tem como tema a impossibilidade de se chegar ao real ), não deixa de ser verdade que o cinema em geral, e o documentário em particular, buscam esse encontro impossível, mesmo que por meio do confronto. O cinema tenta, assim, juntar o que a própria vida separa, o pai e a filha, pois só haveria proximidade verdadeira quando houvesse reconhecimento da estranheza e da estrangeiridade em sua radicalidade não camuflada. Nessa ética da distância e do reconhecimento da alteridade, nessa “ética do inimigo”, portanto, que se desvencilha da ideia de posse do outro para, longe de toda indistinção fusional, dar lugar ao reconhecimento do não idêntico, estaria a dimensão política tão evidente de Os dias com ele . Retomando Jeanne Marie Gagnebin, em Lembrar, escrever, esquecer , precisaríamos dizer “não a frase: somos todos um, mas sim: somos estrangeiros uns aos outros – esta seria uma frase de humanidade” (2006, p. 94).

Também se poderia acrescentar que Os dias com ele não é sobre a memória como depositária de algo que ficou no passado, mas sobre algo que emerge, que retorna, que irrompe no âmago do próprio presente. Algo de difícil transmissibilidade. De natureza extremamente processual e ancorado no presente da relação e da filmagem, condição que o difere de Diário de uma busca , os momentos mais cativantes de Os dias com ele são aqueles em que Escobar, entre a desconfiança das intenções da filha e a segurança em sua própria performance, crê que a câmera ainda não está ligada e se prepara para ser filmado, ora roteirizando e encenando suas falas, ora questionando e colocando em xeque as perguntas e os propósitos da filha. Sem dúvida, as estratégias documentais de Maria Clara implicam questões éticas de difícil decisão, já que, nesse campo, não há regra ou norma geral. É apenas no corpo-a-corpo das relações pessoais e no um-a-um da relação com os filmes que se pode decidir e tomar uma posição. Estamos, assim, diante de uma beleza doída e irreconciliada, em que só se pode partilhar uma experiência através de uma língua sempre estrangeira, pelo que há, nela, de intransferível, incompreensível e, no limite, impossível. Em Os dias com ele , a política é efetivada, portanto, pela ética da distância e do reconhecimento da alteridade, assim como pela dimensão processual, inacabada e dissensual do filme, sempre aberto e ameaçado pelo risco de sua não realização, pelo risco do fracasso. Como já argumentamos em outras ocasiões3, são inúmeros, aliás, os documentários brasileiros atravessados pela ausência, pelo luto e pelo fracasso, seja do próprio filme, das relações com o outro filmado ou do movimento da história. Na contramão da permanente demanda por sucesso e otimização da performance que pauta nossas vidas, o fracasso no documentário pode, também, operar como um exitoso modo de criação e produção, fazendo da consciência de seus limites, da linguagem como defasagem e subtração, da cena como espaço de solidão e não realização, e da própria separação (entre realizador e personagem), a condição mesma de toda relação. Assim, o risco do fracasso apontaria para uma abertura ao novo; para uma disposição a novas possibilidades de invenção. Esse não é o meu pai “Esse não é o meu pai” – diz a voz off de Maria Clara sobre filmes domésticos em Super-8, imagens caseiras de pais com seus filhos em situações cotidianas ou de férias, onde se vê praia, piscina, amor e cuidados. Ao contrário dos empregos usuais desse tipo de material, essas imagens não vêm ilustrar ou elucidar a infância da realizadora, sendo, antes, uma espécie de “memória emprestada” (expressão que seria originalmente o próprio título do filme) a preencher as lacunas e a ausência de seu pai em sua infância. Como esclarece Carla Maia, no precioso texto que acompanha o D VD do filme, “o arquivo doméstico em Os dias com ele é índice de um vazio, ocupa o lugar das imagens que faltam , da memória que falta ”. Para ela, as imagens em Super-8 operam “uma passagem do um ao qualquer um, do pai ao anônimo, do íntimo ao estranho, da história pessoal à história pública”, num jogo entre a primeira e a terceira pessoa. Tal passagem da história pessoal à coletiva também pode ser vista em Diário de uma busca , onde a luta pela utopia vai, com o passar dos anos, dando

lugar a uma profunda melancolia por parte de Celso Castro. Em determinada carta (lida em voz off pelo irmão de Flávia), Celso diz, sobre a imagem da porta do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, vista de dentro: Sábado fui a uma festa do comitê de Anistia, mil pessoas, a maioria de retornados. Uma festa surrealista, uma alegria que me pareceu chocante, um entusiasmo indecente e um toque de nostalgia melodramática. As pessoas fazem comparações absurdas entre a vitória sandinista e a volta dos exilados. Parece que ninguém se dá conta, e o que é pior, ninguém quer entender que voltamos derrotados, que houve uma concessão da ditadura e que se nos permitiram voltar é porque nos derrotaram, e se houve uma abertura é porque eles foram os vitoriosos . Diante desse desabafo lúcido e contundente, ainda que imensamente triste, pela primeira vez no filme não há movimento de câmera durante a leitura de uma carta de Celso. No lugar dos travellings , que acompanhavam anteriormente o movimento de suas ideias e de seu ânimo, agora ele está paralisado – e ainda dentro do aeroporto –, como quem olha para a porta de vidro fechada. Celso sabe, à maneira benjaminiana, assim como também sabe Carlos Henrique Escobar, que ele não é uma vítima da história, mas um “vencido”. Porém, diferentemente de Escobar, Celso sucumbiu à melancolia, à sensação de ausência de lugar social e subjetivo na nova repactuação brasileira posta em marcha pela Lei da Anistia, que prescreveu os crimes de Estado, legando-os a um recalcamento institucionalizado. “Não tenho mais aquele empurre de antes. Não me passa mais pela cabeça formar um grupo político. […] Não vou conseguir. Para mim não foi possível”, diz Celso em sua penúltima carta. Seria a melancolia um sentimento político? Nasceria ela da derrocada das ideologias ou da esperança amarga pelo porvir? – pergunta-se o historiador Enzo Traverso, em Melancolia de esquerda (2016). Muitas décadas antes, a ambivalência do discurso e do desejo melancólico era descrita por Freud como uma dificuldade de abandono e desligamento de um objeto perdido (2011). Para o melancólico, a perda do objeto ou do ser amado não é apenas a perda de algo, mas, sobretudo, a perda do lugar que o sujeito ocupava junto a isso que foi morto. Por isso, sem conseguir consentir com a perda e fazer o luto, o melancólico sucumbe. Seja como for, os duros e desesperançados diagnósticos de fracasso e de esvaziamento do processo democrático brasileiro feitos por Celso Castro e Carlos Henrique Escobar – o primeiro, através de sua antepenúltima carta no filme, e o segundo, se autoexilando em Portugal, no começo da Era Lula – não poderiam ser mais atuais no Brasil de hoje. “Os filmes são sempre sobre nós”, diria Maria Clara Escobar, ao ser questionada se estaria fazendo um filme sobre si própria. Mas quem será esse “nós”? Nós que sabemos sempre tão pouco e que podemos, talvez, a partir de uma posição feminina, assumir nosso não saber? De fato, nem Maria Clara, nem Flávia Castro, conseguem respostas satisfatórias para as suas perguntas. Nunca conheceremos as circunstâncias da morte de Celso Castro, dentro do apartamento de um suposto colaborador nazista no Rio Grande do Sul, em meados dos anos 1980. Em plena – e igualmente suposta

– abertura democrática, a polícia deu cabo de documentos e a perícia, junto ao médico legista, manipulou as condições de seu assassinato. Uma conhecida história que se repete com ares de romance policial; porém, uma em que nunca se chega à verdade. Já Carlos Henrique Escobar, sobrevivente de dezenas de prisões políticas, após horas de conversa, não hesita em dizer à filha: “Você não me conhece”. Em ambos os filmes, a opacidade está instalada. Tratando dos descaminhos do país e do trauma da segunda geração, dos filhos dos militantes que cresceram marcados pela ausência e pelo exílio, Os dias com ele não é, como pudemos ver até aqui, um filme sobre a superação de uma filha traumatizada pelo abandono do pai, nem sobre a superação de um pai traumatizado pela tortura e pelo extravio de seu projeto revolucionário. Tampouco é um filme que demande reparação, como tantos filmes testemunhais, cujo limite de ação é o gesto da denúncia. Na impossibilidade de superação e reparação, Os dias com ele é um filme sobre a separação, sobre a potência e a beleza de uma relação não conciliada (entre dois seres próximos e estrangeiros) que, ainda assim, acolhe o afeto e o enlace. Se o pessoal é político, como defendiam as feministas, entre o pai e o país, o eu e o outro, temos aqui a evidência de que a memória não se faz sob o signo da sucessão e da herança, e, sim, da disputa e do laço. Ao reconhecer nossa “precariedade constitutiva”, como defende Judith Butler (2016), e demandar uma “estética do impossível”, que possa fazer frente à impotência dos traumas, históricos e pessoais, como postula Alain Badiou (2004), tanto Os dias com ele como Diário de uma busca sustentam a necessidade do luto. Porque só o trabalho de luto, por todos aqueles que desapareceram, por todas as utopias perdidas e ideais extraviados, pode reinventar um novo projeto de país, colocando a vida em movimento. Por isso, se, de um lado, “esse não é o meu pai” é um enunciado privado, emitido por aquela que ainda se julga um “personagem secundário”, de outro, “esse não é o meu pai” é um enunciado coletivo e político, porque, simplesmente, todos esses anônimos poderiam ser seu pai. Como se nota, a partir de uma posição feminina, o trabalho do luto está sendo feito – o que permite sustentar que tanto a cadeira vazia como as imagens que faltam não sejam, a todo custo, preenchidas. Notas 1 Em 2014, Natália Barrenha e Pablo Piedras realizaram, na Caixa Cultural São Paulo, a mostra “Silêncios históricos e pessoais”, importante panorama da produção latino-americana focada no documentário em primeira pessoa, onde pudemos ter acesso a esses filmes. Mais informações em: http:// doctela.com.br/mostrasilencios/ . 2 “Deixei de ter vergonha do erro e do descontrole, e assim se abriu uma porta enorme em minha vida”, escreve Maria Clara Escobar em “Anotações sobre um processo” (2015), texto que acompanha o DVD do filme lançado pelo Instituto Moreira Salles. 3 A exigência do testemunho como responsabilidade histórica marca de maneira inaugural o projeto de Shoah (1985), monumental documentário de Claude Lanzmann, com nove horas de duração e integralmente composto

por testemunhos de sobreviventes dos campos de extermínio nazistas. Recusando as imagens de arquivo, por considerá-las perigosas e, ao mesmo tempo, banais, sob o risco da manipulação e vulgarização do extermínio, Lanzmann vai defender a radical singularidade da palavra na cena documental. 4 Para um aprofundamento da problemática do testemunho, ver os trabalhos de Márcio Seligmann-Silva, conforme bibliografia. 5Ver nosso trabalho “O êxito do fracasso: notas sobre o documentário brasileiro contemporâneo / The Success of Failure: notes on contemporary Brazilian cinema” (2012), ou, ainda, “O fracasso como produção: sobre o documentário brasileiro contemporâneo” (2014). Referências Bibliográficas ARFUCH, L. O espaço biográfico : dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BADIOU, A. “Por uma estética da cura analítica”. In: A psicanálise & os discursos . Trad. Analúcia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, n. 34/35, ano XXIII, 2004. p. 237-242. BARRENHA, N.; PIEDRAS, P. “Silêncios históricos e pessoais”. In: Catálogo da mostra “Silêncios históricos e pessoais – memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo” . Caixa Cultural São Paulo, de 26 de março a 06 de abril de 2014. BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da História”. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política . Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BUTLER, J. Problemas de gênero : feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. _. “Vidas precárias”. In: Quadros de guerra : quando a vida é passível de luto? Trad. Sergio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. COMOLLI, J.-L. “Como filmar o inimigo?”. In: Ver e poder : a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Trad. Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira e Ruben Caixeta. Belo Horizonte: UFMG, 2008. _. “Os homens ordinários. A ficção documentária”. In: GUIMARÃES, C.; OTTE, G.; SEDLMAYER, S. (Orgs.). O comum e a experiência da linguagem . Belo Horizonte: UFMG, 2007. COUTINHO, Eduardo. Eduardo Coutinho, organização de Felipe Bragança. Rio de Janeiro: Azougue, 2008. DANEY, S. “O travelling de Kapo”. In: Revista de Comunicação e Linguagens , nº 23. Lisboa, Edições Cosmos, 1996.

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se atrapalhavam para realizar o trabalho previsto de transformação da linha em plano de textura, para preencher a passagem do tempo naquela sala. Se a espera se relaciona com a passividade e, esta, com a feminilidade do modo como é estruturada na sociedade patriarcal – noções já denunciadas por várias artistas feministas, dentre as quais Faith Wilding, com Waiting ³ (1972), apresentado na Womanhouse ⁴ –, minha vontade de também contestar a naturalização desse encadeamento de conceitos, por meio da ênfase proposital no labor manual e pela associação da duração dessa performance com as horas da jornada de trabalho regular no Brasil, estaria mais endividada com proposições da americana Mierle Laderman Ukeles ⁵ , por exemplo. Assim, em setembro de 2016, na segunda etapa do projeto de residência artística ⁶ no Hospital da Mulher Heloneida Studart, ocupei com Tomar para si , de modo delicado, mas insistente, as salas de espera desse equipamento de saúde pública especializado no atendimento de mulheres em gestações de alto risco, que recebe cerca de 8.000 pessoas por dia, em São João de Meriti/RJ. Tratava-se de uma busca por espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte. A ação teve duração de 20 horas e 40 minutos, distribuídas de forma irregular entre os dias 5, 6, 8 e 9 do referido mês. Já o protagonismo do tricô como escolha política declaradamente feminista de confrontação a “algumas leis interessantes não escritas acerca do que são considerados temas e materiais apropriados para fazer arte” (Schapiro, 1972) reverenciava trabalhos em que o uso de técnicas historicamente codificadas sob os rótulos de femininas, artesanais e, portanto, inferiores serve para questionar as fronteiras entre público e privado/íntimo, entre arte e não arte, sobre quem pode fazer arte; sobre quem decide o que é arte. ⁷ Daquela fenda oculta na lateral do vestido-feito-apenas-saia, ao término de cada novelo, eu retirava outra ponta do fio de lã e tricotava, e trabalhava, e tricotava, e trabalhava, e insistia, e tricotava, e tricotava, e tricotava, e tricotava, e tricotava, de modo que a tira corrugada contínua ia se espiralando conforme ganhava mais pontos; ia passando pela semelhança com imagens de representação de cadeias de DNA , crescendo e apresentando deformações – conforme eu me distraía no trabalho de escuta das gestantes, ao conversar com os familiares daquelas mães, ao ouvir as obstetras que passavam arriscando a medida de minha altura uterina/o número de semanas de minha gestação, ou as enfermeiras que me censuravam pelos pés descalços ou, simplesmente, ao assistir a programas de auditório e a reprises de novelas nos televisores que eram mantidos constantemente ligados –, e se contorcendo mais a ponto de parecer um cordão umbilical. De tempos em tempos, eu o enfiava para dentro da bolsapelanca. Foram tricotados quatro novelos inteiros de lã, formando um cordão de comprimento suficiente para criar uma barriga prenhe, procurando espaço para se falar da possibilidade de uma mulher-artista ser feminista e mãe: um tabu entre as próprias feministas de outrora. Em algum momento que não posso mais precisar, entreguei-me ao prazer de me concentrar no movimento maquínico das mãos, que me autorizava um certo estado de transe, uma proteção diante de tantas dores dos outros, frente aos tantos dramas vivenciados, lado a lado, nas salas do hospital. Em um sentido, a estratégia de uma ocupação delicada e discreta traduzia a

consciência da falta de urgência de minha arte ali, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, buscava chegar mais perto daquelas histórias, daqueles nomes, daquelas vidas. Mesmo parecendo que para o público era indiferente, seguia insistindo e resistindo naquela monotonia da performance, até minha presença ser adiada pelos focos de câimbra que ameaçavam engessar minhas mãos. Insistia novamente após uma noite de sono e meia bisnaga de creme de arnica para, então, ter a jornada de trabalho interrompida mais uma vez, quando o calor de meu corpo escapava totalmente pelos meus pés, que iam se camuflando no espaço ao assumir a mesma cor cinzenta do chão do hospital, e o frio extremado comprometia o labor doloroso. Insistia novamente em tricotar e tricotar até, ao final do quarto dia, decidir por um aborto induzido, até, após cerca de 20 horas e 30 minutos, levantar num canto do corredor da sala de espera do centro de diagnóstico por imagens e iniciar o desmanche daquela gravidez. De modo calculadamente tranquilo e cadenciado, pus-me não apenas a colocar a tripa de tricô para fora do ventre, mas a desfazê-la por completo. Durante todo o tempo, sem lágrimas, sem gritos, sem contorções musculares no rosto ou no corpo, sem (encenação de) dor, sem apego – assim como Cláudia Paim ao quebrar 420 ovos, após dizer em voz alta o nome de cada qual abortado na ação Possibilidades (2011) ⁸ –, serena, assisti a toda quantidade de fio de lã bege dos quatro novelos utilizados se desprender e se amontoar, silenciosamente, no chão. Deixei a sala. E, agora, ao assistir ao vídeo de registro da performance, vi a funcionária da equipe de limpeza da maternidade varrer aquele resíduo/corpo para a pá de lixo com cabo longo e depositá-lo na grande lata de plástico branco no fundo da sala. Antes de prosseguir com o texto cujo objetivo será iniciar um mapeamento de trabalhos de arte sobre a temática do aborto é oportuno resgatar algumas observações sobre a questão da dor que já foram debatidas no Elogio ao Toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016). Ao recorrer a “Técnica y metafísica: sobre la esencia del dolor” (1998), de Enrique Ocaña, destaquei o argumento do autor de que a dor resgata a ferida originária, ao abrir o contorno entre ser e mundo, corpo e coisa. A partir do referido texto, pois, vimos o quanto a experiência da dor no próprio corpo deixou de ser interpretada como uma via para alcançar a transcendência ou o enriquecimento da alma, levando as culturas do Ocidente e do Oriente, com suas medicinas, religiões e metafísicas, a se agarrarem à necessidade animal de curar feridas e a desenvolver técnicas para mitigar ou eliminar a dor. Assim, se Ocaña ressalta o quanto nossa era experimenta a dor como negatividade eliminável, a pesquisadora Paula Sibilia (2008, p. 49) aponta o quanto tal mandamento é seguido fielmente na ocultação dos martírios inerentes às técnicas de embelezamento. A partir desses apontamentos, torna-se fundamental observar, de antemão, que, se por um lado, todo o discurso médico e publicitário que envolve a cirurgia plástica divulga a sofisticação de seus métodos de forma tão eficiente a ponto de quase equipará-los a recursos indolores do Photoshop, de outra sorte, mas operando também um mecanismo de objetificação da mulher, as representações mais recorrentes do aborto voluntário são cenas brutais, como se as condições para a sua realização fossem sempre necessária e inevitavelmente brutalizantes; imagens que parecem funcionar menos como denúncia do que como ameaça, saciando a vontade de grupos

contrários à legalização do aborto pela expiação do “merecido” sofrimento de mulheres “imorais”. “Quanto mais civilizada for a sociedade que ministra a dor, tanto mais ela irá ocultar o fundamento da crueldade na qual essa dor se sustenta” (Ocaña, 1998, p. 49). Aborto: pequeno inventário nas artes contemporâneas No mesmo momento em que, para melhor realizar seu destino, o homem pede à mulher que sacrifique suas possibilidades carnais, ele denuncia a hipocrisia do código moral dos homens. Estes proíbem universalmente o aborto; mas aceitam-no singularmente como uma solução cômoda . (Beauvoir, 2009, p. 655) Na minha aldeia testemunhei como tudo se fazia às escondidas, vi a dor e a vergonha. Tantas mulheres me vieram pedir dinheiro para abortar… Por vezes, morriam de septicemia. Ou lavavam-se na praia, as entranhas saídas, como vacas esventradas . (Rego apud Cabral e Rodrigues, p. 8) Em 1981, tensas com a eleição de Ronald Reagan, as artistas do coletivo Mother Art ⁹ criaram uma série de instalações e performances para seu projeto Choice, cujo tema central era o direito reprodutivo das mulheres. ¹⁰ Na obra The Museum of Illegal Abortion , exibida naquele ano no SPARC , em Venice, Califórnia, o intuito foi chamar a atenção das novas gerações para o fato de que a legalização do aborto era uma realidade relativamente recente e que, portanto, todas deveriam ficar atentas e cautelosas, não tomando esse direito como garantia permanente. ¹¹ Nessa instalação, havia uma retrospectiva gráfico-visual com os destaques da batalha pelos direitos ao aborto nos EUA. Em “Say goodbye to coat hangers” (2014), o pesquisador Tom Nys ressalta ter havido uma intensa polarização nos EUA – que se manteve (e se mantém), mesmo após o caso judicial Roe versus Wade, de 1973, pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito à interrupção voluntária da gravidez no país –, demarcando assentamentos rivais que ficaram conhecidos como pro-life e pro-choice e passaram a mobilizar, acerca do aborto induzido, ainda mais debates com questões relativas à jurisprudência, à bioética, aos direitos morais, à religião, à saúde sexual, à medicina e ao feminismo. Aqueles alinhados às ideias do grupo prolife estigmatizam o aborto induzido por ser um ato violador do ideal de feminilidade da cultura falocêntrica ocidental, onde a “boa moça” é aquela que preserva sua pureza sexual e que desempenha o papel da mãe devota e carinhosa. ¹² É importante abrir parênteses aqui para ressaltar que, conforme pesquisa de Rosalind Pollack Petchesky, publicada no artigo “Fetal Images: The Power of Visual Culture in the Politics of Reproduction” (1987), na referida “guerra do aborto”, houve a emergência do conceito de personificação do feto, a

qual está largamente relacionada aos avanços na tecnologia médica, mais especificamente às imagens de ultrassom. Segundo a autora, desde que a Times Magazine publicou uma série de fotografias intitulada “Drama of Life Before Birth” ¹³ , de Lennart Nilssen, em 1965, o movimento “pró-vida” percebeu a potência desse tipo de imagem para tornar o feto presença pública em uma sociedade visualmente orientada. Nesse sentido, as campanhas de grupos anti-aborto passaram a retratar o feto, invariavelmente, como um corpo desconectado da mãe, “como se estivesse flutuando no espaço, da perspectiva de uma câmera implícita” (Petchesky apud Lys, 2014, p. 9). Tal “homem no espaço”, para Petchesky, seria um tipo de representação imagética da visão hobbesiana dos seres humanos nascidos como indivíduos autônomos, soltos e desconectados: um individualismo abstrato que apaga a mulher grávida e a dependência do feto em relação a ela, concedendo à imagem fetal a transparência simbólica necessária para que possamos reconhecer a nós mesmos ali, para que possamos ver nossos bebês perdidos e sentir uma ameaça ao “nosso passado mítico e seguro” (Petchesky apud Nys, 2014, p. 9). ¹⁴ Descrito esse contexto, vale voltar a The Museum of Illegal Abortion e ressaltar a importância de Mother Art ter instalado um fone de ouvido no espaço da obra para que os espectadores pudessem acompanhar áudios das narrativas de mulheres (e de homens) que compartilhavam suas perspectivas a respeito de suas próprias experiências reais de aborto ilegal induzido. Para as artistas, era imperativo abrir espaço para as vozes dessas mulheres como forma de trazer complexidade ao debate. Era urgente se contraporem à estratégia principal do lado da peleja que, àquela época, nos EUA, advogava “pró-vida” e que, para tanto, promovia a referida “estigmatização do aborto por meio da atribuição de personalidade ao feto” (Norris et al. apud Nys, 2014, p. 8), enquanto, ao mesmo tempo, ignorava as estatísticas de mortes maternas somadas nos tempos em que a prática fora criminalizada no país. “Por que apenas o feto é que tem direito à vida?” indagaria Barbara Kruger ¹⁵ , um ano depois, na mesma direção das artistas do Mother Art . Ao lado dos fones, havia, ainda, um pequeno e simples armário, daqueles que normalmente são instalados acima de pias de banheiro. “Poderia ser você”, era a frase escrita em vermelho no espelho da parte externa de uma das portas do mobiliário, dentre as quais era possível espiar a coleção de objetos ali armazenados: lanterna, frascos de remédios, produtos químicos (desentupidor de tubulações da marca The Works ; peróxido de hidrogênio; magnésio de sulfato da marca Epson ), absorventes femininos, três retratos de três mulheres diferentes colados em um mesmo paspatur preto etc.; além de espéculo, mangueira de borracha transparente, uma agulha de tricô e um cabide de roupas de metal – artefatos que mulheres haviam usado ao longo da história para executarem abortos autoinduzidos. ¹⁶ A precariedade dos instrumentos pontiagudos e o estilo do armário, que remetem a um ambiente doméstico ou a um espaço clandestino, referem-se, claramente, às terríveis condições que envolviam a prática do aborto em época de sua ilegalidade – denúncia que já estava presente na assemblage de 1963, The Illegal Operatio n, do escultor Edward Kienholz, bem como na cena escultural hiper-realista, Abortion , executada por Duane Hanson, dois anos depois, e que ainda se faz urgente em outras partes do mundo nas quais não há garantias do direito à interrupção voluntária da gravidez. ¹⁷

Poucos meses depois da realização do The Museum of Illegal Abortion , a filósofa e psicóloga americana Carol Gilligan publicou In a diferente voice: psychological theory and women’s development (1982), estudo baseado em entrevistas com 29 mulheres, colhidas no momento em que consideravam a alternativa de abortar. De acordo com Flávia Biroli, a metodologia de Gilligan assumia que as mulheres teriam, de fato, maior dificuldade para “falar publicamente em sua própria voz”, não por uma falha, mas devido a “constrangimentos a elas impostos pela sua falta de poder e pela política das relações entre os sexos” (Gilligan apud Biroli, 2016, p. 34). Nesse sentido, continua Biroli, ouvir as mulheres se torna um requisito “para se ultrapassar a falsa universalidade dos critérios que se definem a partir das experiências dos homens” (Biroli, 2016, p. 34), não em uma busca pela essência ou autenticidade feminina, mas para dar acesso ao que singulariza suas posições como indivíduos. Em 1991, dez anos após a referida obra do The Mother Art , as artistas Kathe Burkhart e Chrysanne Stathacos honraram tal estratégia no The Abortion Project ¹⁸ , em resistência à abundância de ações militantes do grupo pró-vida Operation Rescue National . Foi uma homenagem aos vinte anos de publicação do Manifesto 343 , na revista francesa Le Nouvel Observateur , em 1971, que contou com esse número de assinaturas de pessoas notáveis, sendo Simone de Beauvoir a mais celebrada, que admitiam terem feito aborto voluntário e, ao mesmo tempo, demandavam por avanços nos direitos reprodutivos e sexuais para as mulheres na França. Nos EUA, The Abortion Project aumentou o número de nomes para 686, por meio do envolvimento de mulheres respeitadas no mundo da arte naquele contexto dos anos de 1990. Além da sala com as paredes marcadas pelas assinaturas em vermelho, havia outro espaço com a exposição de obras de 40 artistas, dentre as quais Adrian Piper, Lorna Simpson, Kiki Smith, Nancy Spero, Ida Applebroog, Gretchen Faust e Robin Kahn, que lidavam especificamente com o tema do aborto. A luso-inglesa Paula Rego criou uma série de pinturas e pastéis entre julho de 1998 e fevereiro de 1999, período que sucedeu à votação de um referendo em Portugal para decidir se a lei, que àquela altura permitia o aborto em apenas algumas poucas circunstâncias, seria revista em direção à descriminalização irrestrita. Rego, entretanto, parece não ter se conformado com a derrota da proposta (por apenas dois pontos percentuais) e, ao levar o tema para o campo das artes visuais, rompeu uma tradição de como o aborto deveria ser representado na pintura. Em todos os lugares, praticamente, o nascimento foi celebrado na pintura. A Natalidade tem sido um símbolo de alegria, não só por causa de seu significado sagrado, mas por seu significado humano – ‘alegria de que um homem nasceu, foi posto no mundo’. O aborto, porém, raramente tem sido tema na arte. Ao contrário de outras formas de morte, o aborto não foi visto pelos pintores como uma libertação, um sacrifício ou uma vitória. Caracteristicamente, representava esterilidade, futilidade e absurdo . (Noonan apud Strom, 2004, p. 195) Segundo Agnete Strom, exemplos que se enquadrariam nesta descrição de John T. Noonan acerca de como o aborto deveria ser representado na arte seriam a pintura O Hospital Henry Ford (A cama voadora) (1932) e a litografia Frida e o aborto espontâneo (“El Aborto”) (1932), ambas de

autoria da mexicana Frida Kahlo. Curiosamente, nesses testemunhos de como seu corpo havia espontaneamente interrompido cada gravidez que concebeu ¹⁹ , a artista antecipou visionariamente nas suas representações dos fetos abortados a forma suspensa no espaço, o gesto das mãos, a posição verticalizada dos pequenos corpos das já citadas fotografias que viriam a estampar as capas da Times Magazine , em 1965. Contudo, há uma diferença fundamental: as obras de Kahlo são autorretratos, estando, portanto, a figura da mãe presente na cena e ainda conectada ao filho por fio preto ou linha vermelha: o cordão umbilical. De qualquer modo, na realidade, tais cordões se apresentam menos, ou nada, como uma marcação política da importância do papel da mulher-mãe – cujo corpo é fundamental para o desenvolvimento desse feto e, posteriormente, da criança, e que, portanto, reivindicaria o poder de decidir autonomamente sobre seu destino –, do que como um signo da dificuldade de aceitar a perda do bebê e da dor de “fracassar como mulher”. Na imagem que representa o segundo aborto espontâneo que a artista sofreu, O Hospital Henry Ford , por exemplo, a figura central é o enorme feto a flutuar acima da cama que sobra em tamanho para uma Frida de corpo diminuto, “incompleto e imperfeito”, nu: culpado. ²⁰ Ao contrário, as pinturas, os pastéis e as gravuras da referida série de Paula Rego retratam uma variedade de mulheres, de estudantes a “senhoras da sociedade”, preparando-se para ou lidando com as consequências de um aborto conscientemente induzido. Nessas imagens, vê-se ambientes domésticos com todos os adereços – o balde, o mobiliário desgastado, os trapos – que sugerem ilegalidade nas situações, mas não se vê fetos de modo algum, tampouco tecedeiras de anjos ou abafadeiras. Assim como o protagonismo fora dado às mulheres no The Museum of Illegal Abortion , do coletivo Mother Art , aqui o foco recai sobre os solitários corpos e rostos femininos contorcidos, seja pela dor, pelas feridas ou pela vergonha, mas, na interpretação de Rego, ao mesmo tempo corpos triunfantes, porque no controle de suas próprias escolhas, independentemente da aprovação do Estado ou da Igreja. Nesse sentido, é importante ressaltar que a intenção da artista desde o início era exibir ²¹ , em Portugal, essa série de imagens declarada e abertamente políticas, com o objetivo de reacender os debates sobre a legalização do aborto, denunciar o persistente impacto da influência católica sobre a política nacional, mesmo na democracia pós-revolução, e o quanto toda a violenta culpabilização das mulheres que o praticavam remetia “ao passado totalitário de Portugal, de mulheres vestidas em aventais, assando bolos como boas donas de casa” (Rego apud Strom, 2004, p. 196. Tradução da autora). Consoante texto de Paula Cristina Cabral e Sónia Cristina Rodrigues, durante o período de António de Oliveira Salazar no poder (1932 a 1968), em que uma moralidade cristã amordaçara o desejo feminino “dentro de uma castidade doméstica, de obediência e submissão. […] a Virgem Maria era o único modelo aceitável de feminilidade” (2009, p. 4). Nas palavras das autoras, a propaganda salazarista descrevia a maternidade como “algo que corre no sangue de todas as mulheres portuguesas” (2009, p. 4). Isso porque a sobreposição do destino inescapável da reprodução na feminilidade era também desejável à ideologia do Estado Novo, que exigia das mulheres o parto dos futuros soldados da pátria – em observância à assertiva de Mussolini em Dotrino del Fascismo : “a guerra é para os homens o que a maternidade é para as mulheres”

(Rosengarten apud Cabral e Rodrigues, 2009, p. 4). O aborto seria, pois, um golpe no significado construído para a natalidade no patriarcado, um golpe na “alegria de que um homem nasceu, foi posto no mundo” (Rosengarten apud Cabral e Rodrigues, 2009, p. 4, grifo da autora). ²² Conforme nos lembra Simone de Beauvoir, “no conjunto da civilização oriental e greco-romana, o aborto era permitido por lei” (2009, p. 179) ²³ . No Ocidente, a prática do aborto passou a ser criminalizada a partir de meados do século XIX, momento em que entram em curso arranjos que permitiram justificar e efetivar o controle do Estado sobre as populações. A reprodução vira questão de caráter político, “em um sentido bastante distinto daquele que seria, posteriormente, reivindicado pelos movimentos feministas” (Biroli, 2016, p. 19). Dentro do que Michel Foucault denominou “biopolítica” (1978), em que a demografia e as ciências biológicas fizeram dos corpos das mulheres objetos de intervenções sancionadas, “é importante ter clareza de que a questão não é a realização do aborto, mas quem decide, e em que circunstâncias, sobre sua realização” (Biroli, 2016, p. 19). A criminalização do aborto, portanto, não é uma situação que se possa explicar somente pelo peso da igreja católica – e, agora, no caso da vida pública brasileira, de muitas denominações evangélicas. ²⁴ Não se pode perder de vista, nesse sentido, as propostas de flexibilização nas leis que criminalizavam o aborto na América Latina, embasadas por visões eugenistas, que também abriram caminho para a promoção em grande escala de esterilizações involuntárias das mulheres pobres, negras e indígenas da América, ²⁵ a exemplo do que, segundo Angela Davis, já havia sido levado a cabo no início do século XX, nos Estados Unidos, com um viés de classe e racista que se infiltrou, inclusive, no movimento feminista, pelo controle de natalidade: “o que era reivindicado como um direito para as mulheres privilegiadas veio a ser interpretado como um dever para as mulheres pobres” (2016, p. 213) ²⁶ . Mesmo a divulgação da pílula anticoncepcional e do DIU no Brasil não foram resultado de reivindicação ou luta coletiva das mulheres. De acordo com pesquisa da historiadora Joana Maria Pedro, com a Revolução Cubana de 1959, a política norte-americana passou a considerar a América Latina como um “continente explosivo”: a iminência do rápido crescimento da população e sua consequente pobreza seriam um campo fértil para a agitação comunista. Desse modo, aqui, ainda que as mulheres de classe média tenham aderido ao uso da pílula, o alvo do referido investimento no controle da natalidade eram as camadas populares, e as políticas internacionais de combate à “bomba demográfica” garantiram que a comercialização da pílula se desse, sem entraves, desde 1962 (Pedro, 2003, p. 242). Classe e raça se impõem como variáveis nesses casos, expondo o fato de que, por mais que artigos e textos a respeito do trabalho de Paula Rego afirmem que as protagonistas daquelas cenas brutalizadas variem “de estudantes a senhoras da sociedade”, antes de seguir com as observações sobre essas imagens é importante duvidar que a experiência das mulheres, no que diz respeito à política reprodutiva, não varie segundo sua posição social. ²⁷ Não foi por um acaso que, pela primeira vez, Paula Rego batizou de Sem Título um trabalho seu. Não foi para “nomear a pintura abstrata, excluindo

outro assunto que não a própria realidade do quadro” (Cabral e Rodrigues, 2009, p. 8) – mesmo porque a artista havia estratégica e conscientemente escolhido o naturalismo já “muito fora de moda” ²⁸ . Foi, contudo, para convocar o inominável, para denunciar a hipocrisia do “secretismo de um tema tabu, o aborto” (Cabral e Rodrigues, 2009, p. 9). Em entrevista a Ana Marques Gastão, a artista relembrou que, em meio ao processo de criação da série, chegou a considerar a representação de um aborto frontal completo, mas que acabou por desistir desse tipo de abordagem em que a exibição do feto e, principalmente, do sangue, poderia provocar nojo e fazer com que os espectadores desviassem o olhar. Ao contrário, Paula Rego desejava que o público realmente as contemplasse atentamente e pensasse sobre as dores femininas inscritas pelos problemas do aborto ilegal em Portugal, e que faziam milhares de mulheres atravessarem, por ano, a fronteira com a Espanha, buscando um aborto seguro. ²⁹ Assim, no mapeamento de Maria Manuel Lisboa, diante das referidas imagens, o espectador experimenta um encadeado de reações: de um inicial “estado de gratificação expectante” – que pode vir a ser encorajado quando a presença do signo corpo feminino seminu é apressadamente relacionada ao inventário de beldades convencionalmente reclinadas das obras “de Boucher, Ingres, Gauguin, ou quase todos os pintores famosos da figura feminina” (Lisboa apud Cabral e Rodrigues, p. 10) –, passa-se ao choque da percepção acerca do tema representado. E, então, acrescentemos, perversa e possivelmente, a mistura de pensamentos entre medos e piedades venha a dar espaço à excitação alimentada pelo prazer advindo da expiação do sofrimento do outro, já que vivemos nos tempos da ultrafamiliaridade e da celebração da agonia, como nos mostrou Susan Sontag, em 2003. Quanto à questão da exibição do sangue, no caso de 6 minutos ³⁰ , da brasileira Camila Bacellar, a escolha pela presença material dessa substância no trabalho tem o objetivo de instaurar um estado sensorial, tensionado no corpo dos espectadores presentes, no momento da performance. ³¹ Com antecedência, a artista faz a coleta e cuida da armazenagem e do transporte de seu próprio sangue menstrual até os locais de realização da ação que devem ser, preferencialmente, banheiros masculinos de espaços públicos. ³² Nesses locais, um equipamento de projeção é instalado no teto, de modo a ser possível que a imagem luminosa de um mapa político mundial seja vista no chão como um tapete, sobre um tecido de algodão cru, onde a artista vai pontuando precisamente com o sangue distribuído por um conta-gotas os países dentro de cujas fronteiras “os direitos sexuais e os direitos reprodutivos de corpos que possuem útero” são ameaçados. ³³ O odor do ambiente vai se transformando à medida que mais sangue é derramado, o que tende a impregnar de modo contundente os espectadores, fazendo com que muitos deixem o espaço antes mesmo do final da performance. Vale aqui documentar que, após a apresentação de 6 minutos nas rodas de conversas do evento Diálogos sobre o Feminino , no CCBB de São Paulo, em junho de 2016, um dos espectadores homens se pôs a confessar sobre o paradoxo de sua experiência, qual seja: estar diante de uma mulher nua, que exibia um corpo belo, de acordo com os padrões da cultura ocidental, e, ao mesmo tempo, contudo, experimentar uma sensação de profundo incômodo e desprazer provocado pelo “mau cheiro”. Bacellar se posicionou,

questionando a impressão negativa dos homens, e até mesmo de algumas mulheres, sobre o odor do sangue menstrual. Isso nos remete ao importante trabalho de Judy Chicago, na Womanhouse : o Menstruation Bathroom (1972), com o acúmulo de absorventes femininos usados exibidos dentro de uma lata de lixo branca, em paralelo às prateleiras onde se avistavam enfileirados frascos de produtos lançados à época com a promessa de “eliminar os odores da menstruação” para uma sociedade que codifica o cheiro da menstruação como fétido. Para alongar apenas um tanto mais essas observações, interessa-me citar O mal-estar na civilização (1930/1997), texto no qual Sigmund Freud imagina a ereção do homem de quadrúpede para bípede como o primeiro passo em direção à cultura. De acordo com o mito freudiano, o processo civilizatório estaria indissociável da adoção, pelo homem, de uma postura ereta, caminho pelo qual os estímulos olfativos teriam perdido sua primazia para a reificação da visão. Se, antes, o processo menstrual produzia atração sobre a psique masculina, tendo o homem ficado finalmente de pé, o efeito do odor do sangue menstrual sobre a excitação sexual psíquica foi, portanto, invertido. Assim, “o tabu da menstruação deriva-se dessa ‘repressão orgânica’, como defesa contra uma fase do desenvolvimento que foi superada” (Freud, 1930/1997, p. 53) ³⁴ . Quanto à questão das fronteiras entre países, citada acima, a propósito das pinturas e pastéis de Paula Rego, e também aludida em 6 minutos , torna-se oportuno citar, ainda, o trabalho que o Atelier Van Lieshout (AVL) criou em 2001 – e exibiu na Bienal de Veneza do mesmo ano –, sob demanda da organização holandesa Women on Waves (WOW), que é liderada pela dra. Rebecca Gomperts, em resposta à estatística de que, todos os anos, cerca de 70 mil mulheres morrem em decorrência de práticas de aborto em locais clandestinos. A-Portable é um container transformado em unidade ginecológica portátil, aprovada pelas autoridades de saúde da Holanda, que, transportado em um navio, oferece procedimento cirúrgico, pílula RU-486 e contraceptivos a mulheres de países onde o aborto induzido não é legalizado. De acordo com a explicação do AVL, uma vez o navio ancorado no porto, os representantes da WOW fornecem informações sobre planejamento familiar, exercício seguro da sexualidade e aborto, em esforço de mostrar que o direito ao acesso a métodos contraceptivos e ao aborto seguro está relacionado com o quadro mais amplo dos direitos sociais, dos direitos dos trabalhadores e do direito à autonomia. Em seguida, as mulheres que querem ter um aborto seguro podem embarcar no navio e serem tratadas em águas internacionais de acordo com a lei holandesa. É importante ressaltar que as imagens, tanto do exterior quanto mais do interior do A-Portable , com todos os equipamentos necessários e em sua higiene irrepreensível, carregam a potência da dissolução do estigma propagandeado pelos grupos contrários à legalização de que aborto é essencialmente algo perigoso, sujo, insalubre. É exatamente em relação a este argumento que se dá a aproximação da minha performance no Hospital da Mulher Heloneida Studart, cuja descrição iniciou o presente texto, com o trabalho do Atelier Van Lieshout (AVL) em questão. Tomar pra si compactua com esse esforço de esclarecer que tal ideia do aborto como uma experiência brutal não corresponde à realidade nos países

que não o proíbem e que implementaram redes de cuidados confiáveis, com ampla capilaridade e acessibilidade. Se um retrato infeliz ainda pode ser pintado sobre aborto, isso se deve às políticas públicas dos países capazes de arriscar, a todo instante, a redução dos corpos de suas cidadãs a resíduos abjetados pela dificuldade de encontrar ajuda, pela inadequação das circunstâncias médicas em espaços clandestinos, pela arbitrariedade de “profissionais”, pela consequente inevitabilidade da auto-prática do aborto induzido. É preciso seguir forte e continuamente denunciando tais políticas. Entretanto, estratégias empregadas nessas denúncias, correntemente, e até mesmo por conta de opções táticas/manobras de realismo político do movimento em favor de sua descriminalização, enquadram a discussão em termos de interesse coletivo do “aborto como problema de saúde pública” ou em uma zona mais ampla chamada “direitos reprodutivos”, sustentando-se em “cálculos utilitários” que tendem a obscurecer os direitos de as mulheres decidirem individualmente (Miguel, 2016, p. 53-54). Minha marcação de posição com a performance de 2016 não trata de condenar ou de aprovar tais estratégias, que seriam, elas próprias, frutos de cálculos que miram maior efetividade na ação política em prol do aborto. Porém, não estando atada a essas noções de eficácia, procurei esboçar argumento informado pela ideia mais profunda da propriedade de si mesma como base indispensável para o acesso à cidadania (Macpherson apud Miguel, 2016, p. 53). Procurei enquadrar a discussão sobre a legalização do aborto como a possibilidade de autonomia plena de cerca da metade do demos , destacando o direito de a mulher dispor do próprio corpo, de tomar pra si seu corpo: no caso, decidindo por não levar a cabo uma gravidez, mesmo de um feto viável ³⁵ (e essa é uma questão central aqui).

Tomar pra si, 2016 performance realizada no HMHS duração da ação: 20h40min Notas 1 Esse trecho inicial é retomado da página 223 do livro Elogio ao Toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (Barros, 2016), e a descrição a seguir da performance Tomar pra si (2016) pega propositalmente de

empréstimo algumas partes da descrição do trabalho Dar de Si (2011), entre as páginas 219 e 223 do mesmo livro. 2 Retomo aqui o ruído gramatical de alteração da terceira pessoa do singular para a primeira pessoa, a manobra consciente da alteração entre objeto a ser olhado e sujeito-autor sustentada na Nota Final do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (Barros, 2016, p. 259-266), mantendo as suspeitas sobre as buscas por inteirezas, sobre a retificação do corpo, do olhar. 3 Faith Wilding escreveu e executou a performance Waiting como um comentário à passividade das vidas das mulheres. O trabalho consistiu em se sentar em uma cadeira, balançando-se lentamente, enquanto analisava sua vida do começo ao fim em termos de “esperar” por eventos externos que determinavam o desenrolar de seus dias. Listava em tom de voz baixo: “… Esperando por ele me dar prazer… Esperando que as crianças cresçam e saiam de casa… Esperando ter algum tempo para mim… Esperando a vida começar… Esperando… Esperando… Esperando…” (Disponível em:< http:// www.womanhouse.net/performances-1/2016/1/23/faith-wilding-waiting >. Acesso em: outubro de 2017). 4 Womanhouse (30 de janeiro a 28 de fevereiro de 1972) foi uma importante exposição de arte feminista instalada não em uma galeria ou museu, mas em uma casa em Mariposa Street. A exposição organizada por Judy Chicago e Miriam Schapiro, co-fundadoras do Programa de Arte Feminista do Instituto de Artes da Califórnia (CalArts), abrigou trabalhos de suas 21 estudantes e de mulheres artistas da comunidade local, incluindo Faith Wilding, e recebeu aproximadamente 10.000 visitantes. Além dos trabalhos instalados em todos os cômodos da casa, o local também foi palco para performances, dentre as quais The birth trilogy , citada no texto de Lippard em questão. Disponível em: < http://www.womanhouse.net/performances-1/ clf3rawqehyyvrqj0i7fd0a6bk6ckh >. Acesso em: 30/06/2017. 5 No artigo “Feminismos e geografias: a busca por uma crítica da cultura que inclua espaços não especializados em arte” (2017), publicado nos anais do 11º Fazendo Gênero, explico de modo mais detalhado as relações estabelecidas pelas performances que realizei durante a residência artística no Hospital da Mulher Heloneida Studart e a metodologia que privilegiou minha presença constante como pesquisadora-artista, por meio de “plantões” semanais, os quais apresento no texto como uma performance de longa duração, com os trabalhos de Ukeles. 6 O projeto Arte, Mulher e Sociedade: residência artística em maternidade pública foi realizado em duas etapas. A primeira, que se estendeu de outubro de 2013 a outubro de 2014, contou com a participação das artistas Bárbara Friaça, Letícia Carvalho e Roberta Barros, e com orientação das professoras doutoras Tania Rivera e Viviane Matesco. A segunda etapa foi viabilizada após o projeto ter sido contemplado, em 2015, no edital de fomento às artes da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. A equipe curatorial foi modificada – com a substituição de Viviane Matesco pelo artista, professor e curador Luiz Sérgio Oliveira – e os artistas participantes foram: Cristina Salgado, Gabriela Mureb, Helio Carvalho e

Roberta Barros. Operíodo de residência artística transcorreu de fevereiro a setembro de 2016, e o projeto se desdobrou, ainda, na exposição Nos limites do corpo: residência artística no Hospital da Mulher Heloneida Studart , que ocupou o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (RJ), de 6 de novembro de 2016 a 18 de fevereiro de 2017. Durante todo o processo, fez parte da metodologia promover reuniões periódicas dos curadores e artistas para serem debatidas questões artísticas, políticas, técnicas e conceituais alavancadas pelas experiências das vivências no hospital. Estava sempre presente nesses encontros a Dra. Ana Teresa Derraik Barbosa, Diretora Clínica do HMHS, de quem havia partido em 2013 o convite para a proposição de todo o projeto em questão, como parte de um plano maior para colaborar com a humanização da assistência e do parto na instituição. 7 Ainda que a escolha de Judy Chicago pela modelagem em cerâmica e pela técnica de pintura chinesa para o ícone da arte feminista norte-americana dos anos de 1970, The Dinner Party (1979), seja um dos exemplos mais conhecidos dessa manobra feminista nas artes visuais, penso que em Tomar pra si estabelece um diálogo mais estreito, em função tanto da textura do material manipulado quanto da temática [maternidade-domesticidadefeminismo], com trabalhos como: Burnt Breakfast (1975), de Su Richardson, dentro do projeto “Feministo. Portrait of the Artist as a housewife”, e Laura’s Sweater (1979), de Elaine Reichek. Vale citar, ainda, Aprons in the kitchen , de Susan Frazier, e Crocheted environment , de Faith Wilding, ambos expostos em 1972, na Womanhouse , e das tapeçarias de Harmory Hammond. No Brasil, ainda que essas escolhas de técnicas e de materiais não venham acompanhadas de discurso explicitamente feminista, é importante lembrar de trabalhos de Ana Miguel, Rosana Palazyan, Rosana Paulino, Maria Nepomuceno, Ana Maria Tavares. 8 Possibilidades foi realizada por Cláudia Paim no evento Performance Arte Brasil, em 2011, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Segundo a artista, a intenção foi questionar “a ideia glorificada de maternidade, tida como comum a todas as mulheres”, por meio da ação de quebrar, um a um, 420 ovos onde estavam escritos nomes próprios. Disponível em:< https:// www.claudiapaim.site/possibilidades >. Acesso em: outubro de 2017. 9 Mother Art foi um coletivo de artistas-mães que se conheceram a partir do envolvimento de cada qual com o Woman’s Building , em Los Angeles, em 1973. As integrantes originais eram: Christy Kruse, Helen Million, Laura Silgali e Suzanne Siegel. Gloria Hajduk trabalhou com o Mother Art na exposição First by Mothers Show , no Woman’s Building , e Velene Campbell Kessler se juntou ao grupo para a performance Laundry Works (1977). Deborah Krall aderiu ao grupo mais tarde. Pararam de trabalhar em conjunto, formalmente, em 1986. https://motherart.org/about/ . Acesso em: 28/06/2017. 10 Segundo Michele Moravec, para o Mother Art , a luta pelo aborto representava a resistência ao esforço da sociedade para converter todas as mulheres ao papel de mãe. Nas palavras da artista Deborah Krall, “nunca deveríamos voltar a um momento em que as mulheres eram punidas por exercerem seu direito de escolher ter ou não filhos, e em que até mesmo os profissionais médicos eram intimidados” (Krall, 2011, p. 51).

11 Em “Activist Art and Abortion” (2016), Elizabeth S. Hawley comenta que, nos EUA, nos anos que sucederam a vitória que representou o caso judicial Roe versus Wade para a legalização do aborto, houve uma paulatina erosão da legislação, tanto na esfera nacional, quanto nas esferas estaduais. Importante lembrar que, durante sua campanha presidencial, Donald Trump defendeu publicamente que as mulheres que fazem interrupção voluntária da gravidez devem ser punidas e, uma vez eleito, proibiu o financiamento americano a entidades que defendam o aborto. 12 Em 1992, a artista americana Nancy Spero criou uma serigrafia com o título We are pro-choice , ressaltado em vermelho em tipos escritos à mão no canto superior esquerdo, bem acima de três das cinco mulheres, cada qual com figurino e indumentária característicos de um determinado século ou determinada cultura. Impressas sobre o papel rosa em poses como se estivessem no meio de uma vigorosa dança (Imagem disponível em: < http:// collection.imamuseum.org/artwork/77774/ >. Acesso em: 30/06/2017). Essas figuras diferem bastante em atitude e estado de espírito da boneca manequim exposta pela artista britânica Cathy Wilkes, em 2008, na instalação que recebeu nome quase idêntico ao da citada obra de Spero. Em We are pro choice , sem o hífen, os barbantes enroscados na cabeça da figura feminina passam pela frente dos seus olhos com fios que amarram frigideira, xícara, latas de comidas pendentes, deixando a sugestão de que a escolha aqui se refere, também, ao dilema de “ter que escolher” entre batalhar por uma carreira ou se enquadrar na identidade de “boa-moça-mãedona-de-casa”. 13 A ironia apontada por Petchesky acerca da referida série de imagens se trata do fato de um certo número de fetos ali representados terem sido cirurgicamente removidos, em outras palavras perdidos, e que haviam sido manipulados em termos de luz e de poses. Vale aqui citar o trabalho What Would you do? (2005), da artista Aleksandra Mir, que confrontou a postura política conservadora do presidente George W. Bush, fazendo uso do exato conceito visual descrito por Petchesky. Nesse cartaz em que a colagem unia a cabeça do político a uma imagem de feto, o título “O que você faria?” ecoa o conhecido slogan dos cristãos evangélicos: “O que Jesus faria?”. Na peça, conforme observa Tom Nys, com a substituição de “Jesus” pelo pronome pessoal, o imperativo é voltado para a responsabilidade individual, em vez de depender das crenças religiosas (Nys, 2014, p. 9). Mir também criou o cartaz Keep abortion legal , para a exposição New Designs: Birth, Death and Abortion (2005), na Andrew Roth Gallery, em Nova York. 14 Quanto ao contexto brasileiro, é oportuno lembrar do projeto de Lei 1.465/2013, proposto em 2013 pela deputada Celina Leão (PPS), aprovado na Câmara Legislativa do Distrito Federal, em primeiro e segundo turno, e que, recentemente, em junho de 2017, teve sua redação final também aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Segundo o texto da lei, profissionais de unidades de saúde, públicas ou privadas, quando autorizadas a realizarem o aborto decorrente de estupro, deveriam apresentar um “programa de orientação” que informasse sobre os métodos e as consequências “físicas e psíquicas” da interrupção da gestação, fazendo o uso de imagens de fetos, mês a mês. O governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), vetou o projeto em 04/07/2017.

15 Barbara Kruger criou trabalhos em função do debate sobre o aborto e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em mais de uma ocasião. Além do citado Untitled (How come only the unborn have the right to life?) , de 1982, e do Untitled (Only the unborn have your right to life) , de 1986, seu famoso cartaz Untitled (Your Body is a Battleground) foi produzido, em 1989, especificamente para promover a marcha do movimento “pró-escolha” em Washington. Mais adiante, em 2000, a artista ainda produziu Untitled (Pro-Life for Unborn, Pro-Death for the Born), um ano após ter permitido que uma agência publicitária de Nova York se apropriasse do estilo de suas obras para utilizar em uma série de posters e anúncios do “The Pro-Choice Public Education Project”, como o “77% of Anti-Abortion Leaders Are Men. 100% of Them Will Never Be Pregnant”. Além de Kruger, outras artistas apresentaram cartazes sobre a temática do aborto, como as já citadas Nancy Spero e Aleksandra Mir (acima, notas 11 e 12, respectivamente). As Guerrilla Girls criaram Discover the Shocking Truth About the Catholic Church’s Position on Abortion para a marcha liderada pelo grupo “pro-choice”, em Washington, no ano de 1992. O pôster exibia com letras em caixa alta: “AS GUERRILA GIRLS EXIGEM O RETORNO AOS VALORES TRADICIONAIS ACERCA DO ABORTO”, seguido do subtexto assim iniciado: “Antes da metade do século do século XIX, o aborto era legal nos primeiros meses de gravidez. Até mesmo para a Igreja Católica o aborto não era proibido até 1869”. Também naquele ano, o coletivo REPOhistory criou a placa de sinalização para espaço urbano em homenagem a Madame Restell, dentro do projeto Lower Manhattan Sign , bem como a instalação Choice Histories: Framing Abortion exibida na Artist Space. Em 2009, a partir de uma experiência pessoal, Heather Ault lançou o projeto 4000 Years of Choice , dentro do qual vem criando séries de pôsteres e cartões postais com o objetivo de gerar debates e conversas para se reduzir os estigmas que perseguem mulheres que fizeram aborto. 16 Mother Art realizou também Not Even If It’s You (1981) como parte de Thanks, but No Thanks , série de trabalhos politicamente engajados, na Igreja do Ocean Park, em Santa Monica, Califórnia. Nessa ação, apoiados com o uso de slides e cânticos, uma mulher grávida, um cadáver e uma figura masculina vestindo trajes de uma autoridade pública dividiam a cena da contação de história de um aborto ilegal. Também foi iniciado nesse ano o evento Carnival Knowledge , do coletivo feminista composto pelas artistas Annie Sprinkle, Anne Pitrone, Lyn Hughs, Ame Gilbert, Jodie Fink, Sabrina Jones e April Ford: um carnaval realizado na New School para educar os visitantes sobre direitos reprodutivos e sexualidade feminina, usando mais de 20 esculturas e jogos. Em 1982, as artistas do Mother Art usaram a Estátua da Liberdade, ícone da liberdade celebrada na cultura americana, como um comentário irônico sobre a falta de liberdade que as mulheres enfrentariam se o aborto se tornasse ilegal: Liberty of Choice (1982), apresentado no Long Beach Museum of Art, Califórnia. 17 O projeto foi exposto na Artist Space, na Simon Watson Gallery, na Real Arts Ways, Hallwalls, e New Langton Arts, entre 1990 e 1993. 18 Sobre o tema do aborto espontâneo vale também olhar os trabalhos Terrible wrong (1997) e Homage to Edvard Munch and all my dead childres

(1998), da artista inglesa Tracy Emin, bem como os objetos da série Quando nascer (ou morrer) não é uma escolha (2015), da brasileira Laura Freitas, que passou a costurar frágeis metades de cascas de ovos a ataduras gessadas, em um esforço de restaurar suas inteirezas, após ver Helena, bebê de entes queridos seus, “num local frio onde, de dentro de uma geladeira, o enfermeiro tirou um embrulhinho branco e imóvel” (depoimento da artista concedido à autora em agosto de 2017). 19 Em “A obra de Frida Kahlo e os cinco cativeiros humanos de Marcela Lagarde”, Laís Modelli e Letícia Passos Affini relacionam três obras de Frida Kahlo – Frida Kahlo e Diego Rivera ou Diego Rivera e Frida Kahlo (1931); O Hospital Henry Ford (1932); Uns Quantos Golpes (1935) –, confissões da artista publicadas em O Diário de Frida Kahlo, e as cinco categorias de repressões de gênero criadas pela antropóloga mexicana Marcela Lagarte y de los Ríos, autora da tese de doutorado Los cautiverios de las mujeres. Madresposas, monjas, putas, presas y locas (1988). A adjetivação “incompleto e imperfeito” é referente a um dos tipos frequentes da figura da mulher presa ao cativeiro Madresposas , a Madre estéril : aquela que “causa assombro e desdém na sociedade”, que “é considerada, mesmo que de maneira inconsciente, culpada pela sua condição imperfeita” (Modelli e Affini, 2013, p. 3). Conforme observam Modelli e Affini, ao colocar na cena a exteriorização de sua anatomia interna, a sua pélvis quebrada em três lugares, também ligada a si por uma linha vermelha como a que a liga ao feto, Frida estaria atribuindo a seu corpo imperfeito a culpa de seu fracasso em gerar um filho, em corresponder à expectativa principal do que é ser mulher na sociedade patriarcal. 20 As gravuras, os pastéis e os desenhos sobre o tema foram apresentados na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 1999, e as imagens da série foram usadas à época para ilustrar artigos de imprensa sobre a questão do aborto. 21 Vale citar a demonstração que Silvia Federici faz, baseada nos argumentos do pensador francês Jean Bodin e do economista italiano Giovanni Botero, acerca de uma obsessão pela mão-de-obra barata que já se manifestava no século XVI, levando ao pensamento extremo de que as cidades europeias com maiores números de pessoas pobres eram as mais ricas, porque acumulavam maior força de trabalho e exército de reserva. Nesse sentido, Federici afirma que a condenação do aborto e da anticoncepção “reduziu o útero à máquina de reprodução de trabalho”, algo fundamental para o êxito do capitalismo (Federici, 2013, p. 199). A propósito dessa citação sobre o livro Calibã e a bruxa , de Silvia Federici, torna-se oportuno lembrar da instalação Heretical Bodies (1989), de Kerr + Malley, uma composição de crucifixos intercalados por fotografias P&B em grande escala, nas quais camadas de textos e imagens se sobrepunham. Em uma das fotografias, há várias bruxas sendo enforcadas pelo que o texto caracteriza de “crimes contra a dominação masculina” (Hawley, 2016, p. 34). As artistas acusavam a relação estreita entre fragmentos de textos do Malleus Maleficarum – a “bíblia” usada durante a Inquisição para condenação de “bruxas” à sentença de morte – com trechos das premissas apresentadas no manual do Operation Rescue , um grupo que havia sido

lançado em 1986 pelo Pro-Life Action Network com a missão de fechar clínicas de aborto nos EUA por meio do bloqueio físico das portas dessas instalações. 22 “O direito romano não concedia proteção especial à vida embrionária; não encarava o naciturus como um ser humano, e, sim, como parte do corpo materno. […] Na época da decadência, o aborto apresentava-se como prática normal e, quando o legislador quis incentivar os nascimentos, não ousou proibi-lo. Se a mulher recusava o filho contra a vontade do marido, este podia mandar puni-la; mas era a desobediência que constituía o delito” (Beauvoir, 2009, p. 179). 23 Esse argumento está presente em “O direito ao aborto como questão política”, de Luis Felipe Miguel, com o seguinte mapeamento: “Em Portugal, um país mais católico e mais tradicionalista, em tantos aspectos, do que o Brasil, o aborto foi legalizado, até 10 semanas de gestação, por meio de referendo popular em 2007. Na católica Cidade do México, o aborto foi legalizado até os três meses se gestação em 2008. No Uruguai, em 2008 o Poder Legislativo aprovou a legalização do aborto, mas a medida foi vetada pelo então presidente, o “progressista” Tabaré Vásquez – sendo novamente aprovada e entrando em vigor em 2012. A Itália que abriga a Santa Sé em seu território e convive com reiteradas tentativas de intervenção do Vaticano em suas decisões políticas, legalizou o aborto (até 90 dias de gestação) já em 1978. Outro país de irrepreensíveis credenciais católicas, a Espanha, legalizou o aborto até 14 semanas de gravidez em 1985, ampliando as garantias da lei em 2010, com a retirada da obrigatoriedade da autorização dos pais às adolescentes de 16 a 18 anos que desejem efetuar o procedimento” (Miguel, 2016, p. 60). 24 Esterilizações essas realizadas, em grande escala, em meados do século XX e adotadas como políticas de Estado até muito recentemente, como no Peru de Alberto Fujimori, já nos anos 1990 (Biroli, 2016, p. 19). 25 “Em 1932, a Sociedade Eugenista podia se orgulhar de que pelo menos 26 estados haviam aprovado leis de esterilização compulsória e de que milhares de pessoas “inaptas” já haviam sido cirurgicamente impedidas de se reproduzir” (Davis, 2016, p. 216). No capítulo “Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos” do livro Mulheres, raça e classe , Angela Davis discorre sobre as questões que distanciavam as feministas brancas das mulheres pobres e da classe trabalhadora. 26 A ilegalidade não é sinônimo de que as mulheres não abortem, mas causa de que abortem em condições inseguras, ou tanto mais inseguras quanto mais pobres são essas mulheres: “são as mulheres pobres e negras que estão sujeitas aos serviços mais precários” (Biroli, 2016, p. 10). No caso do Brasil, cerca de um milhão de abortamentos clandestinos são realizados no país a cada ano, sendo as complicações decorrentes a causa de mais de 200 mil internações hospitalares por ano (Monteiro e Adesse apud Biroli, 2016, p.10). De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde (2006) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada dois dias uma mulher morre no Brasil ao realizar um aborto em condições inseguras e precárias.

27 “O naturalismo está muito fora de moda, mas eu não me importo. Estas pinturas silenciosas, com suas graves respostas irão resistir”. Fala da artista publicada por Maggie Gee, no The Daily Telegraph , Londres, em fevereiro de 1999. 28 Em 2004, a estimativa numérica era que 10 mil mulheres faziam essa travessia. Em 2007, o aborto voluntário (ou interrupção voluntária de gravidez) foi legalizado por referendo, sendo então permitido, independentemente dos motivos, até a décima semana de gravidez. Segundo matéria de Tatiana Dias, do Nexo Jornal, a ONG portuguesa “Associação para o Planejamento da Família” fez um balanço com os números relacionados ao aborto no país: dados de 2008 mostram que o país registrou 18.014 abortos. O número cresceu ligeiramente nos primeiros anos da legalização, mas, desde 2013, está em queda constante. Em 2015, foram 10% menos abortos do que em 2008 e o número de mortes está perto de zero. Diante desses números, é importante lembrar que, na década de 1970, o número de abortos em Portugal ultrapassava 100 mil. Destes, 2% resultavam em morte, fazendo do aborto a terceira causa de morte dentre as mulheres (Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/ 2017/02/13/O-que-aconteceu-ap%C3%B3s-10-anos-de-aborto-legalizado-emPortugal >. Último acesso em 30/06/2017). 29 Camila Bacellar realizou essa performance pela primeira vez em Outubro de 2015, na época da votação do PL 5069, e, depois, com algumas variações formais em distintos contextos como no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo ( Diálogos sobre o Feminino , em junho de 2016), SESC SP ( De.Generadas , em março de 2016), Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica ( Como falar de arte feminista à brasileira , em fevereiro de 2016). Segundo a artista, o nome da ação foi inspirado no projeto Every 6 Minutes , de Willem Velthoven em colaboração com Rebecca Gomperts ( Women on Waves ), referindo-se a uma estatística de 2003 que atestava ocorrer, a cada seis minutos, em algum lugar do mundo, uma morte desnecessária em decorrência de aborto clandestino (Bacellar, 2017, p. 211). Ainda em 2003, Velthoven realizou Portrait Collector , Sea , I had an Abortion , e uma narrativa interativa com um grupo de estudantes da Universität der Künste (Berlim), todos trabalhos sobre o tema aborto . 30 Já no caso do trabalho da veterana da Yale University, Aliza Shvarts, toda a feroz polêmica gerada se desenrolou no âmbito da imprensa, desencadeando-se muito antes dos corpos dos espectadores chegarem a ser submetidos aos estímulos olfativos advindos do sangue menstrual. Em abril de 2008, Shvarts anunciou em um artigo publicado no Yale Daily News o projeto que originaria uma instalação de arte na qual seriam mostrados os vídeos de abortos induzidos que supostamente ela provocaria em seu próprio corpo, lançando mão de drogas e ervas abortivas, após o processo de mês a mês, durante nove meses, promover inseminações artificiais. A ideia previa ainda a exibição do sangue coletado durante os abortamentos (que não se confirmou se seriam apenas amostras do sangue menstrual do referido período). 31 “A escolha do banheiro masculino visa a levantar a questão do aborto em um território supostamente masculino, pois, de forma geral, os homens se

abstêm da luta pela descriminalização e também são estes os que mais usam de suas posições de poder na política para obstaculizar ainda mais o acesso ao mesmo. Além disso, levantar a questão nesse território é implicar os sujeitos que geralmente se desimplicam de suas responsabilidades quando ocorre uma gravidez indesejada” (Bacellar, 2017, p. 216). 32 Quando o público entra no espaço preparado para a performance, Camila Bacellar explica se tratar de uma ação que não pode realizar sozinha, convocando todos a se envolverem na leitura em voz alta do nome de dois países relacionados em ordem numerada na lista de 74, que irá passar de mão em mão. Pede, também, que alguém contabilize a passagem de tempo de 6 minutos, ao término dos quais ela recolhe a lista e um áudio de sua voz em off preenche o ambiente com seu Tutorial para condenação à morte por crime de útero fértil , texto em que acusa o enrijecimento da criminalização do aborto no Brasil com referência aos PL 478/2007, PL 6583/2013 e PL 5069/2013 (Bacellar, 2017, p. 215). 33 Nesse mesmo trecho do livro, Freud explica a fundação da família, argumentando que, como as excitações visuais, em contraste com os estímulos olfativos intermitentes, passaram a manter um efeito permanente, “o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte” (1930/1997, p. 53). 34 Sobre a legalização do aborto em casos de feto inviáveis, é importante citar a reivindicação do direito de abortar fetos portadores de anencefalia, que chegou ao Supremo Tribunal Federal em julho de 2004, a partir de liminar favorável concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, bem como a ação ingressada em agosto do corrente ano no Supremo Tribunal Federal pela ANADEP (Associação Nacional dos Defensores Públicos), com apoio da ANIS (Instituto de Bioetica), que busca a descriminalização do aborto em casos de fetos com microcefalia em função da epidemia do Vírus Zika. Em março passado, o PSOL protocolou ação no STF, na qual pede a descriminalização do aborto por parte de qualquer gestante que tenha até três meses de gravidez.

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afinal, quem é ali o “objeto”? ¹ O bebê, aquele serzinho que precisa ser pela mãe manuseado e cuidado? Ou ela, assim sugada de tantas formas, tomada, usada, sacada de sua vida, de seu sono, de seu tempo e de suas letras? Seu corpo se tornou uma massa amorfa a fazer peso escorrendo por um peito de dor e fissuras; um peito sugado e abocanhado por horas, horas e horas por uma boquinha mínima, linda, doce. E infinitamente voraz. Uma boquinha aberta em modo constante para um peito do qual pende a inconsistência de um corpo que já não é mais o daquela mulher que antes podia usufruir do mesmo, oferecendo-o ao prazer, seu e de parceiros. O gozo nãotodo Uma forma de a psicanálise lacaniana pensar a experiência, no corpo, de perda das bordas e de apagamento dos contornos é através do conceito de “gozo feminino” (ou “gozo nãotodo”). O “gozo”, conceito tão fundamental aos psicanalistas lacanianos, é constituído pelo encontro da linguagem com o corpo. Refere-se aos excessos de prazer e de desprazer tão únicos a cada um; a algo que experimentamos excessiva e singularmente, sempre como um profundo estranhamento, embora também de modo familiar. Em seu seminário de número 20 (1972-73), o psicanalista Jacques Lacan nos apresenta a uma fórmula com dois tipos de gozo, o “fálico” e o “feminino” (ou o gozo “todo” e o “nãotodo”). O “gozo feminino” se refere a algo que não faz conjunto, não é compartilhável, não faz unidade, não tem bordas, não se permite delimitar ou definir; é um gozo líquido e não sólido; um acontecimento de corpo, impossível de ser todo capturado pelo universo das palavras; uma experiência nãotoda significável, nãotoda contável, nãotoda passível de ser enlaçada pelo universo significante, por contos e enredos. Trata-se, fundamentalmente, de um gozo nãotodo assimilável. Nesse sentido, o gozo feminino está em oposição ao gozo fálico que seria, por sua vez, enlaçado aos enredos da vida, referido ao jogo binário entre presença e ausência, às palavras, aos discursos e a uma unidade corporal (mesmo sendo ele estranho à imagem que temos de nosso corpo). A esses dois tipos de gozo, somos todos suscetíveis: homens, mulheres, lésbicas, gays, heteros, trans, cis… Quando nossa referência é a teoria psicanalítica lacaniana, o gozo feminino não se restringe, portanto, a um gozo “de mulher”. Referimo-nos, sim, a um gozo opaco, que faz enigma e que pode vir a desmanchar os contornos de todos os seres falantes, dos mais consistentes aos mais líquidos. Devastação Quando o gozo nãotodo vem se situar de modo avassalador numa relação, uma leitura possível dessa vivência é através do que, em psicanálise, nomeamos de “devastação”. A “devastação materna” é bastante abordada pela teoria psicanalítica como um aspecto do infantil, devastado, enquanto objeto, pela presença de uma

faceta materna totalizante. O ponto aqui é como a criança pode ser atravessada pelo que, da mãe, não encontra ponto de parada. Hoje, no entanto, perguntamo-nos se, no lugar de mãe, uma mulher também pode passar pela experiência de devastação quando a presença de um bebê passa a ser sentida por ela como “devoradora”. Não estamos acostumados a pensar a devastação do lado da mãe (embora atualmente se fale muito de patologias como depressão pós-parto e do que se chama de “ baby blues ”), pois a leitura mais conhecida ainda é a da maternidade como uma experiência fálica (e, por vezes, idílica). E, talvez, de fato, tenha sido essa a vivência preponderante em relação à maternidade em tempos passados. O que constatamos hoje, no entanto, é que ela pode ser vivida de um modo bastante angustiante. Nesse sentido, “longe de encontrar uma satisfação apaziguada em sua relação com o filho objeto de seu desejo, [uma mulher] pode, inversamente, passar pela experiência da devastação, sendo engolfada, deportada dela mesma por um gozo louco, enigmático, fora do sentido”, como afirma a psicanalista Esthela Solano-Suárez (2015, p. 88), estudiosa do tema. O dizer das mulheres Tal como aconteceu nos primórdios da psicanálise, a disponibilidade das mulheres para, ainda hoje, falarem de suas dores possibilita aos analistas (aqueles que se oferecem fundamentalmente à função de escuta) aprenderem e reinventarem suas teorias a partir da clínica e da atualidade. Foram elas, aliás, as mulheres, quem primeiramente fizeram com que Sigmund Freud percebesse o que pulsava por trás dos incompreensíveis sintomas nos corpos e lares modernos europeus. Sintomas que faziam enigma a um universo masculino da época, que recorria aos saberes prescritos de então, para tentar “curar” as paralisias e acontecimentos nos corpos das mulheres, sem sucesso algum. A escuta atenta de Freud ao que elas se dispunham a lhe falar provocou uma abertura no mundo científico e, com isso, o início da psicanálise no início do século XX. As mulheres ensinaram a Freud que o sofrimento que lhes acometia não se dispunha a ser tratado com prescrições médicas, mas com suas próprias palavras. Que as palavras que encontravam inicialmente para tentar bendizer suas dores puxavam outras, e outras, e memórias infantis, e sensações corporais, até o espanto de perceberem que sabiam sobre si o inimaginável. São elas, ainda, que seguem a nos ensinar que a experiência da maternidade – pelo menos a da maternidade humana, linguageira – de natural e “instintiva” nada tem. Ensinam que, como mães, podem vivenciar a chegada de um bebê não apenas em seu aspecto fálico, mas como algo muito angustiante. Tornar-se mãe

Não é evidente – e muito menos natural –, portanto, a operação que irá possibilitar que, ali onde os contornos se desfizeram, apresente-se um sujeito a ocupar o lugar materno. A construção da maternidade, para algumas mulheres, exige que elas se desloquem do lugar de “objeto devorado”, ao qual, como vimos, podem ser lançadas sem esperar, para alçar o bebê ao lugar de “objeto fálico”. Essa expressão é bastante conhecida entre leitores de Freud e faz menção a um lugar muito especial do bebê na cadeia simbólica materna. É nesta cadeia que a mulher poderá vir a localizar, entre ela (enquanto mãe) e o bebê, algo relativo ao que não se encaixa e não se encerra entre eles; algo que os remeterá, a ambos, ao ponto de impossível a se localizar neste “entre”. Um impossível encaixe a se localizar no desencaixe completo. Com isso, permitir-se-á que toda uma cadência se construa, não apenas entre peito e boca, passos e descompassos, entre mãe e filho, mas para toda uma vida que se abrirá para ambos a partir daí. Notas 1 Questão que vem sendo elaborada também pela psicanalista Ana Lúcia Lutterbach, em cursos e aulas, com publicação ainda inédita. Referências Bibliográficas LACAN, J. (1972-73). O seminário, livro 20 : mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. SOLANO-SUÁREZ, E. “Maternidade blues”. In: Ser Mãe . Belo Horizonte: Editora EBP, 2015. Mãe é só quem cria? Reflexões sobre as mulheres na maternidade por adoção Lívia Magalhães O amor e o apoio dela me incentivaram a ter coragem de viver minha vida com entusiasmo . (Maya Angelous, em Mamãe&Eu&Mamãe ) Em março de 2019, em um debate sobre maternidades que participei no Rio de Janeiro, Manuela D’Ávila disse: “Precisamos de um feminismo que incorpore as mães, e não que as exclua”. Não era a primeira vez que escutava essa crítica (muito mais que uma demanda, a meu ver). Mas ali me tocou de uma forma diferente, pensando não apenas na solidão das mulheres em suas experiências como mães. Claro que isso importa e é questão de debate urgente (e tem sido feito por mulheres incríveis). Mas, no lugar que ocupo na discussão, eu não conseguia deixar de pensar: e quando iremos incluir as mães que entregam seus filhos para adoção? Quando recebi o convite tão carinhoso para escrever neste livro, senti que era hora de colocar a questão em debate. Meu caminho, tão longo e tantas vezes dolorido, rumo a ser mãe, tem me feito repensar completamente

minha militância feminista. Se já há algum tempo eu me questionava sobre privilégios, especialmente os meus, o caminho da maternidade por adoção me veio como um soco no estômago: eu vou cuidar, amar, ter meu filho; mas, e quem luta pela gestante e, acho importante dizer, pela também mãe dele? Para chegar até esse ponto mais específico, quero contar um pouco da minha vivência, meu caminho, nesse mundo que é tão romantizado da adoção. Seguir com o processo de habilitação para adoção, para mim, significou encarar algo muito dolorido: num país em que não podemos decidir por nossos corpos, em que nos é negado o direito à escolha, a minha maternidade, a realização de um sonho meu , virá da dor de uma outra mulher. E é minha responsabilidade tentar dar espaço, e quem sabe alguma voz, à primeira mãe do meu filho. E que coisa mais emocionante é, para mim, pensar que ainda nem começou, de fato, a maternagem; mas essa criança já revolucionou minha vida. A decisão da maternidade por adoção Mónica Tarducci destaca, a partir da antropologia, a importância das discussões dos movimentos feministas para debates sobre parentesco (2011). É a partir da crítica às estruturas familiares no mundo ocidental e ao papel das mulheres nas mesmas que aparecem os primeiros questionamentos sobre o que se estabeleceu como modelo familiar, a partir das revoluções dos séculos XVIII e XIX. E, segundo Tarducci, nesse questionamento e na ampliação dos conceitos de parentesco, de paternidade e de maternidade, a concepção de adoção também foi alterada. Portanto, qualquer defesa hoje à adoção e às crianças precisa ser entendida a partir das lutas e conquistas dos movimentos feministas dos últimos séculos. No início da convulsão gerada pelo processo de habilitação para adoção, sem saber como lidar com a tempestade que se formava dentro de mim, busquei as formas que melhor sei para lidar com minhas dores: a leitura e a escrita. A decisão de escrever veio de uma dor pessoal: era a minha busca (talvez egoísta, mas legítima) por tentar tirar a angústia e a dor de alguma forma. Agora, quase dois anos depois das primeiras linhas, vejo como tudo mudou. Da minha intenção inicial de narrar como foi meu processo, minha dor, de me colocar tão no centro de tudo, passei a entender que não sou eu a protagonista. Essa história não é, de fato, minha. E foi uma percepção fundamental para entender o meu lugar como (segunda) mãe na vida do meu filho/filha. Ser mulher é nascer e crescer com a naturalidade que a sociedade nos impõe de debater publicamente nossos corpos. E o ser mãe, que geralmente é apresentado na esfera pública como um sonho, um desejo, uma virtude, entra nesse pacote. Ainda hoje, mesmo depois de tantos debates, a maternidade é entendida socialmente como natural, uma etapa na vida feminina. A questão traz diversos problemas. O primeiro, talvez mais conhecido: as mulheres que não desejam ser mães. Tantas lutas feministas e, ainda hoje, vejo as amigas que optaram por não exercer a maternidade terem que constantemente se explicar. “Um dia você vai se arrepender”; “É só uma fase, uma hora o desejo biológico chega”, e outras frases do tipo são comuns e todas nós que não fomos mães na idade

socialmente definida (acredito que, em geral, até os 30, 32 anos “aceita-se” a mulher sem filhos). A escolha pela não maternidade muitas vezes se torna uma luta pela liberdade e, dificilmente, não será um posicionamento político em uma sociedade tão machista e patriarcal como a que vivemos. Mas temos também outro lado na “não-maternidade” biológica: o das mulheres que querem ser mães, mas, por questões diversas, não poderão gestar seus filhos. Aqui, as reações costumam ser diferentes: o receio de tornar público, a dor silenciosa, o tabu de contar o que de fato está acontecendo. E, se, no caso da opção pela não maternidade, o julgamento social passa pela possibilidade do arrependimento e pela naturalização da maternidade como algo biológico, no caso da infertilidade, vemos uma inversão: “Ah, mas tudo bem, a vida é muito mais que filhos”; “Você já tem sobrinhos, você vai ver que o amor que sente por eles te completa”. E sempre alguém com uma história milagrosa: “Eu conheci um casal que os médicos disseram que não podiam engravidar e hoje eles já têm dois filhos. Você vai ver, vai dar tudo certo”. O que é, de fato, dar certo ? Eu vivi as duas situações. Durante um tempo, eu escondi meu desejo de ser mãe por não querer interferências na minha vida pessoal. Quando me separei do meu primeiro parceiro, comecei a mencionar meu desejo da maternidade por adoção. Hoje eu percebo o que na época fingia não entender: que todos achavam legal, mas, no fundo, não levavam a sério. Foi apenas no final de 2016, já com o meu atual parceiro, que eu anunciei de fato a familiares e amigos: vamos adotar nosso primeiro filho. Naquele momento, a ideia era ter dois filhos, um por adoção e outro do modo “tradicional”; ou seja, eu planejava engravidar. Como os tempos da adoção são longos, decidimos iniciar as duas gestações simultaneamente. Mas a verdade é que já tínhamos mais de um ano sem usar nenhuma proteção e aguardando o momento da “surpresa” do atraso menstrual e da gravidez. Eu tentava fingir que nada acontecia, mas a ansiedade já me consumia aos poucos, a cada mês em que, mais uma vez, meu ciclo se cumpria sem atrasos ou surpresas. ² A decisão de procurar respostas sobre isso também foi bem difícil. Muitos exames, muitas expectativas, muitas culpas. Como sobreviver como casal frente a tantas demandas e tanta pressão? A essa altura, eu percebia que a maternidade se transformara em uma dor, uma cobrança pessoal, uma decepção. Vi tantas pessoas queridas felizes com seus exames dando positivo e cada vez eu me conformava mais com o fato que eu não daria nunca aquela notícia. ³ E me importar, deixar que isso me incomodasse me fazia muito mal. Por que me doía tanto, se eu que trouxe meu desejo pela adoção para nossas vidas? É engraçado, mas aí eu percebi que, no fundo, somos todas e todos um grande clichê. Em geral, as pessoas ao meu redor me acham muito bem resolvida em relação a não engravidar. Talvez por eu ter planejado a adoção antes inclusive de encontrar meu parceiro; ou por minhas dúvidas em relação à gestação, ao estar grávida, o que já entendi há algum tempo que não era um desejo. ⁴ Há pelo menos uns dez anos, entendi que o meu desejo é ser mãe , e não exatamente gestar um bebê . Na nossa sociedade, isso

basicamente é a mesma coisa. Até a hora em que não é. O meu clichê? Tão bem resolvida e tão segura em relação a isso, vi meu mundo, de certa forma, perder-se quando deixou de ser minha escolha não gestar . E tudo piorou muito quando nos vimos frente às dificuldades de um processo de adoção. No momento em que escrevo essas palavras, levo quase dois anos e sequer estamos na tal fila; ou seja, ainda não fomos incluídos no cadastro nacional de adoção. Cinco anos. Pode parecer muito pouco. Mas não é. E esse foi o prazo médio que nos passou a assistente social. Mas atenção: o prazo só conta depois que entramos no cadastro, que, como eu disse, ainda nem conseguimos. Cinco anos. Olho para trás e penso na outra vida que eu tinha há cinco anos. Em tudo que pode mudar, o que pode acontecer. Tentamos buscar forças em planos como viagens, trabalho, casa. Mas a verdade é: tudo isso nós também queremos com nossos filhos incluídos. Existe um grande – e bastante cruel – mito de que a adoção no Brasil é lenta por conta do perfil dos pretendentes. Traduzindo: nós, que buscamos ser pais por adoção, esperamos muito porque só queremos um determinado perfil de criança (recém-nascido, branco, sem qualquer deficiência). Além de completamente equivocada, essa ideia é cruel de muitas formas. Primeiro, ninguém deve ser obrigado a mudar sua escolha em função de outras variáveis que não sejam as suas demandas. Insistir na adoção tardia ou em um perfil que não é o indicado pelos pretendentes pode significar grandes desastres, principalmente para as crianças. E é insistir em uma noção de que quem opta pela maternidade e paternidade adotiva deve se conformar com o que puder conseguir. Sinceramente, é cruel demais querer que uma criança que já passou por tantos traumas ainda se torne um “prêmio de consolação” de alguém. De que maneira essa relação afetiva vai dar certo? Um segundo problema: de fato o perfil é assim tão limitado? Não, não é. Conheço casais que indicaram “até sete anos”, outros “até dez” anos, e estão há mais de 3 anos na tal fila. E, pelo menos na minha Vara, no Rio de Janeiro, a maior parte das adoções hoje é – olha só –, de recém-nascidos. Sim, de bebês que acabaram de nascer e são diretamente entregues à família adotiva. Por quê? Por uma campanha importante de informação: não é crime entregar à adoção. De acordo com a lei 13.509/2017: Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude . § 1º A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal . § 2º De posse do relatório, a autoridade judiciária poderá determinar o encaminhamento da gestante ou mãe, mediante sua expressa concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado .

§ 3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período . § 4º Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional . § 5º Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1º do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega . § 6º (VETADO) . § 7º Os detentores da guarda possuem o prazo de 15 (quinze) dias para propor a ação de adoção, contado do dia seguinte à data do término do estágio de convivência . § 8º Na hipótese de desistência pelos genitores – manifestada em audiência ou perante a equipe interprofissional – da entrega da criança após o nascimento, a criança será mantida com os genitores, e será determinado pela Justiça da Infância e da Juventude o acompanhamento familiar pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias . § 9º É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei . ⁵ O que temos, além da desinformação, é muito preconceito. É preciso um trabalho intenso em hospitais, postos de saúde e demais locais públicos para que os profissionais façam seu papel de acolhimento às gestantes, mostrando suas possibilidades de entrega, acompanhamento obstétrico de toda a gravidez, e a garantia de que essa criança terá uma família que passou por um longo processo para recebê-la. É preciso educar e trabalhar junto aos profissionais da saúde que, algumas vezes, julgam e condenam as gestantes – as mães gestantes. Precisamos falar sobre isso, mas o farei um pouco mais à frente. O que explica, então, a lentidão em todo o processo, e demora de anos – os tais cinco anos, no meu caso –, na fila, se temos tantos pretendentes à adoção? Além da burocracia, não escapamos aqui de um grande drama nacional: a lentidão da justiça. Eu falo isso para os meus alunos: vivemos em um país com leis, em geral, eficientes e coerentes. Mas que não funcionam, não são aplicadas corretamente. E os meios de comunicação, em geral, quando decidem tratar o tema da adoção, acabam reforçando estereótipos. Mostram abrigos repletos de crianças, e contrastam com o número de pretendentes nas filas, mas sem uma análise correta dos dados. A leitura simplista é sempre a mesma: os dados mostram mais pretendentes que crianças disponíveis; logo, o problema está no perfil dos pretendentes.

Pouco se fala, mas a maior parte das crianças nos abrigos não está disponível para adoção. Sim, isso mesmo. Para uma criança de fato poder ser adotada, é preciso que ocorra a renúncia ou destituição do poder familiar. Em um primeiro momento, o objetivo da justiça é a reabilitação da criança em sua família. E, nisso, estou de pleno acordo. Não entendo quem, ao pretender exercer maternidade ou paternidade da forma que seja (por adoção ou não), ache correto retirar uma criança do seu seio familiar, sem que antes se procure a reinserção. A segurança familiar garantida pela justiça vale para todos . Porém, isso não significa que não haja um momento limite, inclusive legalmente. Segundo a citada lei 13.509/2017, o prazo máximo para a conclusão do procedimento de destituição familiar é de 120 dias. ⁶ Isso significa que: o prazo para crianças em abrigos não deveria passar de 120 dias, sem prorrogação. Todos sabemos que isso não é respeitado, e volto à pergunta: a culpa é de fato dos pretendentes? Mães e mulheres invisíveis Uma vez nascida a criança e entregue em adoção, ocorre uma abrupta modificação . As regras e até a linguagem para designá-la relegam, então, a mãe biológica a um estado de “não ser”, ou à categoria de pessoa má, desumana e sem princípios morais e éticos (Maria Antonia Pisano, em Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção ) Hoje sei que sofro de ansiedade tem algum tempo e, em um momento da minha vida, precisei de fato me cuidar com medicamentos, repensar meu estilo de vida. Desde então, passei a procurar formas de me cuidar mais, atentando sempre para situações e acontecimentos que seriam “gatilhos”. Uma das fugas mais seguras que encontrei foi a leitura. Tanto na literatura (amansa qualquer coração acelerado acordar e pegar um bom livro, antes mesmo de levantar da cama) quanto no estudo e na pesquisa acadêmica. E foi assim que cheguei a uma obra clássica sobre o tema da adoção: Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção , de Maria Antonieta Pisano Motta. Cheguei nesse livro exatamente pelo incômodo que me gerava o tal “pedestal” em que a situação de ser mãe por adoção me colocava: a cada “nossa, como você tem um coração imenso” que eu escutava, eu me perguntava o que significava, então, estar do outro lado. A angústia de não poder ignorar: e as “outras” mulheres? E aquelas silenciadas, mas que sem elas eu não realizaria meu grande sonho? E me deparei com a minha grande questão colocada ali, em palavras, por Maria Antonieta: a “tríade adotiva”, que seriam as lutas múltiplas do processo (Motta, 2008). A mãe biológica contra a vergonha e o julgamento; a criança contra o estigma de ser adotada

e, consequentemente, para muitos, ilegítima; os pais adotivos contra a ameaça da privacidade (e o medo, caso ela não seja garantida por lei). Nessa tríade, vamos pensar bem: quem recebe cuidados? Quem tem suas dores, suas angústias, levadas em consideração? Não coloco em questão que a prioridade é da criança; mas, se existe preocupação com os pais adotivos (seja pelo Estado, pela literatura de pesquisa do tema etc.), por que há tão pouca disposição em cuidar e olhar também para a mãe biológica? Consegui o livro em um sebo online , e a loja informava que o exemplar estava em excelente estado de conservação, apenas com uma dedicatória. Escolhi exatamente esse exemplar – parece-me que o livro ganha em conteúdo quando já traz com ele a memória de outro leitor. E quando o recebi, não pude conter a emoção: “Queridos irmãos, para vocês poderem me entender melhor! Feliz dia das mães. Denise. 12/05/2013”. Passei dias sem parar de pensar em Denise. No que significava essa dedicatória, na dor que a mesma carregava. E na importância de que um livro como esse tenha chegado às suas mãos. Enquanto eu escuto elogios como “você e esse seu grande coração”, ao contar sobre o meu lugar de mãe por adoção, a mulher que gestou, que passou por essa etapa tão difícil e se encontra em uma situação tão dolorida, ainda é desmerecida. Como já disse, a questão passou a me incomodar mais do que a demora do processo; do que tudo. Como é possível que não se olhe para elas? Grande parte do problema, como aponta Maria Antonieta, é o mito do amor materno. Uma criação da sociedade contemporânea que se desenvolve principalmente após as revoluções dos séculos XVIII e XIX, esse mito é conhecido por todas nós: de que não apenas nascemos para ser mães, como nosso amor incondicional por nossos filhos é algo inabalável. Vem daí, inclusive, a cruel ideia de que a mulher que afirma não querer uma gravidez indesejada apenas não teve ainda esse “amor incondicional” aflorado. Mas ele estaria lá, em algum lugar dentro dela e, de alguma forma, com o contato pós nascimento esse amor surgiria. Precisamos entender a diferença entre maternidade e maternagem (ironicamente, a segunda palavra nem sequer é reconhecida pelo corretor do programa de texto que utilizo para escrever essas páginas). Maternidade é a condição biológica de ser mãe; já a maternagem é a relação afetiva e emocional entre a mãe e o bebê, o que, obviamente, é uma construção, e não uma certeza ou imposição. Se não podemos exigir que toda mulher experimente a maternidade para exercer a maternagem (como será o meu caso), por que estamos impondo e exigindo maternagem às que vivem a maternidade? O debate não é recente, e forma parte das lutas feministas e de mulheres por direitos. Do ponto de vista internacional e dos direitos humanos das mulheres, a maternidade é entendida como uma escolha : A Conferência do Cairo [ Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, 1984] realça que as mulheres têm o direito individual e a responsabilidade social de decidir sobre o exercício da maternidade. Da mesma forma, deve ser garantido a ela o direito à informação e acesso aos serviços para exercer seus direitos e responsabilidades reprodutivas […].

Destaca-se, também, a recomendação internacional para que sejam revistas as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser reconhecido como um problema de saúde pública . (Silva [org.], 2015, p. 71) Portanto, entendo que qualquer debate sobre maternidade e maternagem precisa passar pela questão dos direitos humanos das mulheres. E precisa ser relacionado à luta pelo direito ao aborto livre e seguro. ⁷ Se na luta dos movimentos feministas a maternidade é uma escolha, e se do ponto de vista dos direitos humanos internacional os direitos das mulheres estão diretamente relacionados à sua liberdade e saúde reprodutivas, não há como pensar em igualdade e liberdade sem a defesa do aborto livre e seguro para nós. Aborto e adoção Certa vez, quando comentei com uma conhecida meu posicionamento em relação ao aborto, fui questionada: “mas se for legalizado, como você vai ser mãe?”. Entre tantas barbaridades que escutei, essa foi certamente a mais grave. Quanto mais me envolvo no processo de adoção, mais leio, mais avançamos e mais me informo, aumenta também a minha certeza: precisamos garantir o direito ao aborto seguro e livre à todas as mulheres. Maternidade e aborto estão intimamente ligados, mas não como oposição; o aborto é fundamental para que a maternidade seja de fato uma escolha, e não uma imposição. E como me disse uma amiga certa vez: “eu, que tanto desejei ser mãe, tanto desejei esse filho, não posso concordar que se imponha a qualquer mulher ser mãe sem que seja uma escolha”. Já disse aqui que questionar a romantização da gestação e de toda a experiência de maternidade significa questionar a ideia de que todas nós mulheres temos o tal “instinto maternal” como parte de nosso DNA. Sabemos, já há algum tempo, que esse instinto é uma construção social, o que significa que toda maternidade e toda relação de parentesco é uma adoção. Ora, se toda criança precisa em algum momento ser adotada, e isso depende de que alguém queira adotá-la, como pode a gestação e ter um bebê serem uma obrigação? Se queremos discutir os direitos das crianças à família, segurança, precisamos, antes de tudo, garantir os direitos humanos das mulheres. E se queremos garantir a saúde e bem-estar a qualquer criança, como será possível se não garantimos o de suas mães? A concepção de que são duas vidas, por exemplo, para justificar o argumento hoje conhecido como pró-vida (contra o aborto), desrespeita o direito básico à vida e ao próprio corpo, de todas as mulheres. Se a vida do feto vale mais que a da mãe, então, não estamos garantindo o direito básico à igualdade e à vida das mulheres. E mais, é uma questão legal: nenhum ser humano deve ser obrigado a abrir mão de sua segurança pela de outra pessoa sem que seja sua escolha. E uma gravidez indesejada, tanto em termos biológicos como sociais, é a imposição de uma vida à da mulher. Segundo a Organização das Nações Unidas, os direitos reprodutivos devem ser incluídos como direitos humanos das mulheres e envolvem a concepção, o parto, a contracepção e o aborto como elementos interligados. Portanto, a adoção deve ser resultado da garantia de respeito a esses direitos.

No Brasil, os direitos das mulheres por muito tempo foram associados às questões da saúde materna. Ao longo do século XX, o Estado brasileiro entendia que o controle social, principalmente o controle das taxas de natalidade, devia passar pelo controle do corpo da mulher, e pela negação aos seus direitos enquanto indivíduos. A visão romantizada da mulher como eixo central da família e da própria vida, através da gestação, ao longo da história, significou o controle público de nossos corpos. Foi a partir da crítica a essa lógica de controle do corpo da mulher – principalmente de sua vida sexual, associada à vida reprodutiva –, que as feministas, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, lutaram por importantes mudanças nas leis e nas políticas públicas para mulheres. Um marco foi a criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), pelo Ministério da Saúde. Segundo Maria José Osis: O conceito de atenção integral à saúde da mulher redimensiona o significado do corpo feminino no contexto social, expressando uma mudança de posição das mulheres. Ao situar a reprodução no contexto mais amplo de atenção à saúde da mulher vista como um todo, o PAISM rompeu com a lógica que, desde há muito tempo, norteou as intervenções sobre o corpo das mulheres. No contexto do PAISM, as mulheres deixaram de ser vistas apenas como parideiras, e o cuidado de sua saúde não deveria mais restringir-se à atenção pré-natal, ao parto e puerpério . (Osis, 1998, p. 31) Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela constituição de 1988, avançou-se ainda mais na perspectiva de que a saúde da mulher não deve ser compreendida apenas como saúde materna, mas, de fato, independentemente da existência ou não da possibilidade e do ato da gestação. Portanto, a luta pelo nosso reconhecimento enquanto indivíduo – o que parece ser a base do sistema democrático liberal do ocidente desde, pelo menos, as revoluções políticas que marcaram os séculos XVIII e XIX – ainda hoje é uma luta. E, sem enfrentarmos a discussão do aborto a partir da perspectiva da mulher enquanto indivíduo autônomo, e não como gestante, não seremos jamais capazes de enfrentar também todas as questões que derivam dessa ausência de direitos plenos. Entre elas, como procurei mostrar aqui, a adoção. Reflexões finais Em março de 2019, no dia que tive meu terceiro e último encontro com a assistente social, li uma reportagem sobre uma bebê recém-nascida encontrada em um canteiro de flores em Brasília. Pelo simbolismo do lugar, ela foi “batizada” pelos socorristas de Maria Flor. Não era um dia nada fácil para mim em relação ao tema, mas o que me chamou a atenção em uma das reportagens foi a descrição: “com menos de 24 horas de vida, segundo os médicos, a menina foi encontrada por volta das 9h30 deste domingo (17). Ela estava de fralda, embrulhada em uma manta e rodeada por flores, segundo o Corpo de Bombeiros”. ⁸ Fiquei muito tempo refletindo sobre este trecho. Uma mãe que pega sua bebê, dá os primeiros cuidados, consegue uma fralda, preocupa-se em embrulhá-la e a coloca em um jardim, entre flores. Como, de alguma forma, questiona-se o sentimento da mãe por sua filha? Como se pode falar em falta de cuidado, de sentimentos, ignorar a dor

dessa entrega? É possível culpar essa mulher que, em sua solidão e desespero, entregou dessa forma sua bebê? Há quem duvide da sua dor? Por que, então, continuamos socialmente silenciando e julgando mulheres como essa mãe? Pensar as mulheres envolvidas na maternidade por adoção, principalmente a mulher gestante e que entrega a criança, é refletir sobre e questionar amplamente o lugar da mulher na sociedade. O que vemos, mais uma vez, é a culpabilização da mulher. A mãe que entrega seu filho para adoção carrega o peso social, político e até jurídico, em alguns momentos, da situação das crianças. Ao invés de enfrentarmos o problema social, a situação de abrigos, a lentidão do Estado na garantia da execução das leis e da proteção dos menores, é mais simples insistir na culpabilização das mães gestantes. E isso precisa acabar. Lutar pela liberdade da mulher e contra a opressão que vivemos em sociedades patriarcais e que nos consideram como seres de segunda categoria, sem direito pleno a nossas vidas e corpos, significa lutar por todas nós. Sem pré-julgamentos, sem silenciamento, sem invisibilizar. Reconhecer a individualidade, as dores e as opressões dessas mães precisa se tornar uma das nossas prioridades como militantes. [Atrasei quase dois meses a entrega deste texto e, mais do que pedir desculpas, eu queria agradecer novamente o convite. Foi mesmo através da escrita que consegui enfrentar tantas questões que eu não conseguia lidar. Foi um período difícil, de uma raiva interna, de brigas conjugais, mas que sei que eu precisava atravessar. E, hoje, véspera do dia das mães e meu aniversário, eu finalmente consigo terminar essas linhas. Sentada com a caneca de café-com-leite e tentando ler um pouco um dos tantos romances sobre maternidade que agora me ocupam a mente, eu apenas virei para o Renato e disse: “5 anos? Então, eu já entendi. Meu primeiro dia das mães vai ser no dia do meu aniversário de 41 anos. Que presente melhor eu podia ganhar?”.] Notas 1É uma situação muito difícil para o casal, também. Não quero me alongar muito, pois não é o tema aqui, mas quando menos percebemos, estamos usando aplicativo para controlar dia fértil e transar acaba se tornando algo mecânico. Eu e meu parceiro sempre fomos muito apaixonados, não conseguíamos nem sentar no sofá sem ser grudado um no outro. E isso foi mudando, mas não da forma natural como eu vivi em outros relacionamentos. Dava para ver que um problema ia crescendo entre nós, e ninguém parecia ter coragem de enfrentar aquilo. 2 Nunca me incomodou ou me doeu a gravidez de ninguém. Ao contrário, sempre fiquei muito feliz. Talvez até mais feliz do que ficava antes de querer engravidar. Tenho muito claro para mim que minha experiência não muda frente à alegria ou à tristeza de qualquer outra pessoa. Na verdade, ver a alegria de quem amo só me ajuda, me faz ter mais certeza da minha decisão de fazer o que for por esse filho. Por isso, obrigada a todas as amigas e familiares que me envolveram em suas gestações, mas que, ao mesmo tempo, tiveram o cuidado de respeitar a minha vivência.

3 Foi outro ponto complicado na minha trajetória como feminista. Entender a diferença entre um desejo de ser mãe e uma pressão social do ter que ser mãe ; entender que está tudo bem em não querer gestar, em não me sentir confortável com o meu corpo passando por tudo o que envolve uma gestação. 4 Legislação Informatizada - LEI Nº 13.509, DE 22 DE NOVEMBRO DE 2017 - Publicação Original. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/ lei/2017/lei-13509-22-novembro-2017-785783-publicacaooriginal-154279pl.html , consultado em 20/03/2019. 5 § 4º Quando o procedimento de destituição de poder familiar for iniciado pelo Ministério Público, não haverá necessidade de nomeação de curador especial em favor da criança ou adolescente.” (NR) 6 “Art. 163. O prazo máximo para conclusão do procedimento será de 120 (cento e vinte) dias, e caberá ao juiz, no caso de notória inviabilidade de manutenção do poder familiar, dirigir esforços para preparar a criança ou o adolescente com vistas à colocação em família substituta”. Legislação Informatizada - LEI Nº 13.509, DE 22 DE NOVEMBRO DE 2017 - Publicação Original. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/ lei-13509-22-novembro-2017-785783-publicacaooriginal-154279-pl.html , consultado em 20/03/2019. 7 Minha luta é pelo direito ao aborto livre, seguro e gratuito para todas as mulheres. Em março de 2019, no Brasil, o aborto é um direito apenas em 3 situações: “No Código Penal brasileiro, de 1940, o aborto não é punido quando realizado para salvar a vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro. A Lei 11.106/05 revogou os incisos do Código Penal que consideravam que a punibilidade do estuprador estava extinta caso se casasse com a vítima ou quando a vítima se casasse com terceiro e não requeresse o prosseguimento do inquérito e ação penal. 8 Em 2012, o Supremo Tribunal Federal autorizou mulheres gestantes de fetos anencéfalos a optar por interromper a gravidez com assistência médica, sem necessidade de pedir autorização à Justiça” (Silva [org.], 2015, p. 80). 9“Estado de saúde de bebê resgatada em canteiro de flores no DF se agrava” (Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/ 2019/03/18/estado-de-saude-de-bebe-resgatada-em-canteiro-de-flores-no-dfse-agrava.ghtml , consultado em 30/03/2019). Referências Bibliográficas MOTTA, M. A. P. Mães abandonadas : a entrega de um filho em adoção. São Paulo: Cortez, 2008. OSIS, M. J. Caderno Saúde Pública , Rio de Janeiro, 14(Supl. 1):25-32, 1998, pp. 25-32.

SILVA, M. C. A. da (Org.). “Capítulo 3 – Direitos humanos e das mulheres”. In Democracia e gênero [livro eletrônico]: implantação de políticas públicas para mulheres. Rio de Janeiro: IBAM, SPM, 2015. TARDUCCI, M. La adopción : Una aproximación desde la Antropología del Parentesco. Buenos Aires: Librería de Mujeres Editora, 2011. Escuta e resistência Gabriela Carneiro da Cunha e Dinah Cesare Prólogo Aqui se atravessam realidades e seus modos de aparecimentos artísticos. Um texto escrito a quatro mãos, mas que, na verdade são muitas. Talvez tudo comece com uma imagem, no entanto, não se trata de modo algum de pleitear autonomia de sentidos ou mesmo de vozes para momentos e corpos históricos, mas de deixar transparecer singularidades distintas em simultaneidade. Um corpo que escreve narra experiências vividas no processo da peça Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos ¹ . Outro corpo escreve a partir da peça vista. Corpos e escrita se entrelaçam, como rio e margem. Nossa questão não foi pensada antes da escrita. 1. Este texto poderia começar por nascentes e nascimentos. Um rasgo na terra. Um rasgo na pele. Um rasgo no tempo. Nascer de novo pela própria vagina. e Pelas outras vaginas de outras mulheres. Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos , além de uma peça de teatro, é também gestação, parto e nascimentos. Esse nascimento é o nascer no devir. O ovo, o puro meio, onde tudo é intensidade. A barriga da mulher é pura potência do devir. Nascer do outro. Guerrilheiras foi isso. Mais do que o resultado foi um meio de nascer de novo. Um lugar de pura imanência que continua. Todos os dias ainda são dias de ensaio. Um trabalho que vai permanecer desdobrando-se como um platô. Sem início nem fim. Nunca soube definir quando foi que meu rádio se conectou com essa história. Não saberei dizer quando termina. O porquê? Não há. Há o desejo. 2.

Uma mulher que pari, outra mulher que morre. Uma atriz me liga um pouco antes de começarmos os ensaios. Eu estava a caminho da minha primeira viagem ao Araguaia. Ela me diz que está grávida de seu segundo filho. O primeiro, Benjamin, está com cerca de 2 anos. Seria impossível com um filho pequeno e outro porvir fazer a viagem de campo, entrar em sala de ensaio, talvez o bebê nascesse durante a temporada. Concordo. Desligamos o telefone tristes. Sara tinha sido a primeira pessoa que eu convidei para fazer parte dessa jornada. Chego ao Araguaia. Rio. Estrada. Histórias. Encontros. Mulheres. Mulheres. Mulheres. Neusa. Creusa. Adalgisa. Edna. Oneide. Viúva. Violência. Violentada. Eu também gestando. Na última cidade, Xambioá, fronteira fluvial entre Pará e Tocantins. Se estende diante de mim o Rio Araguaia. As águas. Não faz sentido uma mulher não poder fazer esse trabalho sobre mulheres por talvez uma das razões mais femininas que é gerar. Parir. Rasgar. Nascer. Sara fez a peça. Decidimos todas juntas nos adaptar para receber esse corpo, o dela e o do bebê. Durante os ensaios ela se tornou mãe de Antônio. Na peça ela é a mãe de guerrilheiras que, assassinadas antes de 30 anos de idade, não puderam se tornar mães de ninguém. Teatro não é Guerrilha. Na Guerrilha do Araguaia não podia mulher grávida. Algumas guerrilheiras tiveram que abandonar o Araguaia por terem engravidado. Diz-se que outras teriam abortado. Não saberemos. Seus corpos estão desaparecidos. Uma mulher que pari, doze mulheres que morrem.

Diná Mariadina Helenira Sonia Aurea Tuca Lia Rosinha Cristina Chica Maria Lucia e Walkiria, a última a ser presa. De todos os guerrilheiros do Araguaia, assim no masculino majoritário e padrão, o último a ser encontrado e assassinado pelas forças do exército brasileiro foi uma mulher, Walkiria Afonso Costa. Isso sempre me pareceu curioso. Walkiria é aquela que canta. Mineira, toca acordeon e é fã de Geraldo Vandré. Como este corpo de mulher, no clichê, chamado de frágil, foi o que mais aguentou? Walkiria se perdeu de seus companheiros no episódio do Chafurdo do Natal de 1973. Foi presa em outubro de 1974. 9 meses. Uma gestação. 9 meses perambulando sozinha na mata, leia-se floresta amazônica. Bichos, insetos, fome, chuvas, frio, calor. O perigo iminente de ser presa e assassinada. Tento imaginar essa mulher e minha imaginação não a alcança. Tento imaginar aquela mulher de 20 anos, agora invisível, perdida em uma floresta ancestral, agora também invisível, e minha imaginação não alcança nem a mulher, nem a floresta. Diante das mortes visíveis, as vidas permanecem desaparecidas.

Uma mulher que pari, uma mulher que morre. Walkiria era irmã de Valéria. Conversei com Valéria por telefone no dia que soube que tínhamos ganhado o edital que nos permitiria fazer a peça. Foi a última dos familiares com que eu consegui falar. Foi ela quem me deu a imagem dos 9 meses. Valéria me conta que enquanto ela estava grávida de seu primeiro filho, ou seja, gerando uma vida, Walkiria perambulava na mata sozinha, em suas palavras, caminhando em direção à morte. Só uma mulher poderia criar este sentido. Ali compreendi mais um pouco da razão de GuerrilheirAs. 3. Edna Sobre ela nada a dizer. Só escutar. A voz de Edna que escuta a voz do vento que escuta as múltiplas vozes desse estado do Pará e que Edna traduz com tanta precisão. Sua voz está na peça. Ela não deixa que mostrem seu rosto. Tem medo. Segundo ela “A guerrilha ainda não acabou, permanece, pior do que aquela” Mas quem ouve a voz não precisa ver o rosto. Como pesquisa documental visível e comprovada sabe-se: sobreviveu a 2 conflitos no sul do Pará: Guerrilha do Araguaia e Guerra dos Perdidos. Foi professora e enfermeira. Não consegue se aposentar. O município não repassou a contribuição recolhida. Foi casada com João e agora com Carlos. São donos de uma birosca e vivem nas margens de uma estrada. É mãe de 5 filhos. Como pesquisa documental invisível e experienciada compreende-se: é no respiro entre uma frase e outra que ela narra. É na voz sussurrada que ela dá forma à narrativa. É na mistura de passado, presente e futuro que ela opera o que em suas palavras chama de montar e desmontar a vida. É mantendo seus segredos que me ensina a ética do trabalho quando me diz que tem coisas que não servem para teatro. Ouço meu excesso: o apelido de Edna é Diná. Seria um sinal de que somos vistas pelo outro de modo semelhante? Mas o que pode haver de semelhança entre duas mulheres habitantes de lugares tão distintos, uma Diná que vive

em Vila Bandinha, São Geraldo do Araguaia, e outra Dinah que vive no Rio de Janeiro. O que nos une: uma foi professora e enfermeira, outra é professora agora e foi profissional de saúde mental ao longo dos últimos nove anos. Em um tempo assolado pela crise da representação, Edna-Diná me representa. Em suas falas escritas, explicita seu desejo de “aprender a aprender”. Não é outra coisa que faço na universidade, não é diferente o que realizei na saúde. O que seria exploratório aqui neste espelhamento? Digo que é um modo de enfrentar a crise da representação em que a arte é um índice transformado do tempo-habitado. Para Edna Faz um sol de doer. A mulher teima em andar e se deixar fotografar sob o sol. A coisa a ser vista se abre atrás das mulheres. O sol deixa tudo mais visível, não tem nada aí de religioso, nada que não se possa esperar. Então, por que esperar é difícil? Se não me contento com tudo se mostrar, por que gosto da profusão? Acho que é uma certa magia do tempo que me atrai. Posso atravessar os espaços deixados pelas margens brancas das fotografias só com meu olhar, e um tempo misterioso se insinua e me dá a nítida impressão de eu ser múltipla. Mas, ao mesmo tempo, a visão que se abre atrás das mulheres me dá medo do aberto. Atraída também pela ideia de percorrer espaços, deambula, mas solicita suas marcas nos registros magenta que curiosamente deixa passar o verde. É um pequeno tom de coisa viva numa paisagem morta de uma terra em que cresce uma vegetação rala, carcomida. Ela não aguenta e pede o mar, mas insiste em preservar todo seu aparato indumentário para que não se macule com o plasma e os minúsculos seres da água rasa. Prefere o muro de pedras num gesto distraído que determina um voo. A imagem dela em justaposição na mesma figura com o muro de pedras aninha como uma cama com lençóis macios nos quais ela não foi convidada a se deitar. O que é antiopressivo é o contato com as coisas (eu ia escrever – distantes). E subitamente encontro meu estado nesta composição: é o de ser distante. 4. Corpo de mulher Meu contato com Guerrilheiras foi já no teatro. Como peça, coisa pronta. Um breve desdobramento: Corpos apagados. Apagar. Extinguir (a luz ou o lume). Diminuir (o brilho ou a intensidade). Riscar, suprimir. Limpar (o escrito no quadro preto). Fazer desaparecer. Aplacar; humilhar. Colher. A terra é de uma qualidade dupla. Ela apaga os corpos das guerrilheiras, mas, ao mesmo tempo, tem a possibilidade de fazer aparecer, pelo desgaste do tempo, os corpos que recebeu.

O tempo-terra mantém. Assim como o tempo-luz viaja. Aqueles que querem apagar, extinguir, diminuir, riscar, suprimir, limpar, fazer desaparecer, não consideram o tempo. Agem em uma tridimensionalidade banal. Espaço-tempo, matéria primeira da arte, da luta, da ciência, da filosofia. O tempo-terra mantém, não deixa esquecer, fere a memória. O tempo-luz viaja, não deixa ignorar, fere o olhar. Digo fere no sentido inicial deste texto. Rasgar. Abrir. Fissurar. Na viagem ao Araguaia o tempo-luz dava sinais. Já no primeiro dia uma estrela com brilho muito forte se impunha no horizonte. O rio e ela, nos recebendo. Ali um código começou a aparecer. As guerrilheiras estavam se comunicando com a gente através da luz. Brilho na água do rio. no orvalho das folhas. A menina encantada. Os vaga-lumes. Céu estrelado. Tempestade de raios. Luz. Na peça, a rádio Helenira explicava o devir estrela das mulheres guerrilheiras do Araguaia. “Já as estrelas parecem imóveis, mas não estão. Seu tempo é outro. Muitas das estrelas que nós vemos no céu na verdade já morreram há muito tempo, mas nós continuamos vendo a sua luz que viaja no espaço-tempo.” … Corpo nu de Mulher Na peça havia três momentos de nudez. Três corpos completamente diferentes. No entanto, três corpos de mulher. Em contraponto aos corpos desaparecidos delas, os nossos estavam ali, evidentes.

Fui perguntada algumas vezes o porquê disso. E sempre me perguntava “Por que não?” Da minha vontade teríamos feito essa peça inteira com corpos nus. Não são eles que estão faltando? Não foram eles que se colocaram pra matar e morrer? Não foram eles que tiveram malária, leishmaniose, febres, feridas, fome? Não foram eles os torturados? É nos corpos que a guerrilha acontece, que o teatro acontece. É ele que se coloca em risco. Em última instancia é ele que é desaparecido. Por que tanto medo da presença desses corpos femininos? Será que esses corpos, quando nus, só podem ser lidos na perspectiva do desejo? Colocar uma mulher nua em cena é necessariamente colocar um corpo a ser desejado, consumido, erotizado? 5. As Guerrilheiras A imagem de um matriarcado nos traz a possibilidade de subversão da ordem das coisas. A força da comunhão dos corpos femininos de fertilidade guerreira. Não estaríamos por tal imagem, convocados a pensar em uma coletividade em que as forças de poder transitam pelos lugares de criação? As forças revolucionárias são entendidas pelo aparecimento do novo. Revolucionar = fazer aparecer o novo + feminino = gerar. Qual o gesto de Guerrilheiras, desse coletivo de mulheres em guerra? Penso na etimologia de gesto. Em latim, gestus tem a ver com gerar, com carregar, com se implicar. Mulheres implicadas em gerar forças para o surgimento do novo. A forma de Guerrilheiras expõe a agonística dos destinos de mulheres que ousaram, ousam usar a força própria, seu revolucionar. O embate é gerador. E então a peça começa com algumas perguntas. “Para que ficar vasculhando a memória? Para que ficar procurando por corpos de desaparecidas embaixo da terra se podemos construir sobre elas pontes e prédios? Por que é que essas meninas não ficaram em casa esperando a ditadura passar?”

E aqui me vem uma frase do xamã Yanomami Davi Kopenawa “Por que continuo a lutar? Porque estou vivo.” Parece que esse é o gesto deste coletivo de mulheres. Assim como o coletivo de indígenas. Assim, como o coletivo de Involuntários da Pátria de Viveiros de Castro “somos involuntários da pátria porque outra é a nossa vontade”. É um gesto do corpo. Dos corpos menores que coletivamente instauram um gesto de afirmação da vida. O corpo vivo só deseja viver. Esse desejo é a engrenagem da luta. 6. Muitos começos A proposta inicial era a de que a peça fosse uma sucessão de começos interrompidos. Tentativas de uma peça que nunca aconteceria, como as tentativas revolucionárias. Interrompidas em seu início. Me parece o conceito mais lindo agora que escrevo. Mas na hora dos ensaios, por motivos inúmeros, fomos nos afastando dessa proposta. Queríamos tanto! Tanta Coisa! Talvez por isso este texto tenha nascido assim, muitos começos. … Ganhamos a revolução e, ao descer a serra, aquelas que cozinharam, costuraram, cuidaram, mataram, amaram e lutaram são esquecidas. A revolução, palavra feminina. É lembrada por eles. A revolução é então perdida. 7. Sim, agora após a descida da serra. Após a revolução perdida. Se voltássemos ao ponto que se tratou do desejo? Mas do que se trata o desejo quando falamos de uma relação com o outro? De quais Guerrilheiras falaríamos? Se, como nos diz Deleuze, o desejo se estabelece sempre em uma geografia, não poderíamos pensar em desejos topológicos? Aparecemos em lugares desejantes com nossos trajes esvoaçantes e nosso corpo que se mostra sempre em confronto com uma impressão imposta por aquilo que vem de fora. Então existe um pensamento, ou um modo de compreensão do mundo que se dá em conjunto com a matéria dos nossos corpos. Falamos de limiares.

As Guerrilheiras desaparecidas do Araguaia se situam em uma topologia que se abre ao conhecimento que é a história dos lugares do feminino em nosso país. As mudanças mais radicais de um país precisam passar pelo lugar que as mulheres ocupam. 8. Procuramos narrativas. Para desenvolvermos a habilidade de narrar é preciso encontrar quem escute nossas histórias. Um dia li bell hooks sobre como o interesse em ouvir a voz do outro produz um afeto pela presença. Lembrei de que poder ouvir as vozes das Guerrilheiras nos aproximou de outras realidades ainda desaparecidas. Durante alguns meses entre 2013 e 2014, dediquei-me com especial atenção ao atendimento de mulheres que sofriam violência doméstica, sobretudo pela relação com o uso abusivo de drogas de seus companheiros. Algumas destas mulheres estavam sob proteção em um local de acolhimento especializado, do qual não sabíamos sequer sua localização para que elas não sofressem nenhum risco de serem encontradas. A condição de desaparecida se tornava a possibilidade de vida de cada uma daquelas mulheres que conheci. Assim, nesses casos, não sabia quem eram seus companheiros, nem onde haviam morado, ou mesmo quaisquer informações anteriores a respeito de suas origens, ou de seus familiares. Só havíamos nós. Em algum momento do percurso terapêutico, elas simplesmente não retornavam aos atendimentos e éramos avisadas por telefone que elas seguiram para outra localidade, ou retornaram aos familiares, sem mais nenhuma informação. Outras mulheres que integravam meus atendimentos, as que eram companheiras de usuários de nosso serviço, acabavam deixando a terapia na medida em que estes também se afastavam do tratamento. E então só havia eu. Mas ter escutado com interesse suas narrativas as tornavam presentes e enchiam o espaço. 9. Sou uma mulher habitada por outra menor. Uma mulher pequena que vive debaixo da minha costela direita. Ela são muitas. Como aquela boneca que é uma e várias menores. Essa mulher são todas as que vieram antes de mim e que não puderam cantar. Fernanda Norma Diná Mama

Ausência. A memória é curta para a História das mulheres. Antepassadas sem nome, sem rosto, quem foram vocês? Desaparecidas que foram de nossas narrativas familiares. Nunca saberei, mas neste corpo corre teu canto. Tenho em mim um compromisso, fazer cantar as mulheres que me precederam. Depois da última morte é o canto de Mercedes Sosa que se ouve. Tantas veces me mataron , tantas veces me morí , sin embargo estoy aquí resucitando . Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal , porque me mató tan mal , y seguí cantando . Cantando al sol , como la cigarra , después de un año bajo la tierra , igual que sobreviviente que vuelve de la guerra . 10 . AméricA LatinA – Qual é tua história? – Sou filha de Portugueses, Italianos, espanhóis e indígenas. – Qual teu nome? – Carneiro da Cunha Almeida Cesare de Oliveira – E o nome indígena?

– Não sei. – Nada? – Nada. – Por quê? – Desapareceu. – Então como é que você sabe que é indígena? – Pela cara da minha avó e da minha bisavó maternas. – Maternas? – Maternas. – De onde elas eram? – Pará. – O mesmo Pará do Araguaia? – Sim. – Por isso você fez a peça? – (…) Não, eu percebi depois… Percebi depois que ela nunca me disse direito que era do Pará. Que nunca conversamos sobre isso. Que a história que ficou foi a dos homens europeus que também me formam. Sei que ela veio muito nova de lá com a irmã. Elas ficaram órfãs muito cedo e não sei sob que circunstâncias. A irmã enlouqueceu, ou pelo menos assim disseram, e morreu na Colônia Juliano Moreira. Não sei o nome dela. Penso que essa mulher pequena que me habita pode se chamar AmericA LatinA, ela é uma mulher indígena que foi casada, currada, explorada, enlouquecida, calada pelo masculino europeu. O corpo onde ela mora quase virou um deles. Mas, sem saber porque, ele se moveu em direção a um tal Pará e começou a mergulhar em rios, a pisar em terras, a encontrar gentes e a ver o invisível, e então o desejo mudou de perspectiva e a pele rasgou a terra, o tempo e a mulher pequena indígena começou a cantar. 11 . [convido vocês a escreverem essa parte com a música que canta a mulher que vos habita] Epílogo Múltiplas nascentes de rios, braços fluviais, pequenos textos, rastros de memória, fragmentos de sensações, muitos começos de peça, formando este Rio de palavras que são o capítulo que encontra outros capítulos-rios formando a bacia hidrográfica Livro. Imagem do milagre. Encontro das águas. Rio Negro e Solimões. Tapajós e Amazonas.

Notas 1 A peça de teatro Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos estreou em 2015 no Rio de Janeiro. A peça foi criada a partir a partir da história de 12 mulheres que lutaram e morreram na Guerrilha do Araguaia. Este trabalho é a primeira etapa do projeto de pesquisa “Margens: sobre rios, buiúnas e vagalumes”, conduzido pela atriz, diretora e pesquisadora Gabriela Carneiro da Cunha e orientado por Dinah de Oliveira, Professora Adjunta do curso de Artes Visuais/Escultura da EBA-UFRJ. Esta pesquisa se dedica à escuta de rios brasileiros que vivem uma experiência de catástrofe desde a perspectiva do próprio rio, e possui desdobramentos nas artes cênicas, visuais, cinema, entre outros. O recado do maciço: ocupar as fronteiras, disputar a loucura Mariana Patrício Fernandes Força da imaginação, vai lá Além dos pés e do chão, chega lá O que a mão ainda não toca, coração um dia alcança Força da imaginação, vai lá (Dona Ivone Lara) I - Rua Em 2015, numa manifestação no Centro da Cidade, com balões roxos e uma enorme bandeira em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, me dei conta de que sou uma mulher. No mesmo dia, descobri que, como eu, existem milhões de mulheres. O que essa descoberta significa plenamente, ainda não sei. Não é exatamente como se não soubesse disso antes – todas as vezes que preenchi meu sexo em uma ficha qualquer –, mas é que, antes, eu achava possível disfarçar o fato. Perceber que não disfarçava, significava que eu sempre tinha sido e continuaria sendo tratada como uma mulher, independente do que eu fizesse. No meu caso, foi a maternidade que obstruiu a tentativa de disfarce. Minha fantasia de indivíduo universal, dotado de razão e consciência, presente na declaração de direitos, ia se rasgando à medida que a minha barriga crescia, e a festa da democracia liberal, na sua corrida empreendedora para que vença o melhor, ia ficando distante (outras, porém, mais potentes, aconteceram). Mas, nas ruas, encontrei muitas outras mulheres, e muitas outras histórias, ligadas pelo fato de que já não queriam disfarçar a revolta, já não tinham vergonha de expressar que não aguentariam mais a desigualdade de gênero, nem aceitariam como naturais as formas de violência machista: nem a violência doméstica, nem o controle dos corpos, nem a imposição da pobreza e da miséria. Descobri que sou mulher no meio da praça, no meio da multidão. O que me faz acreditar que se trata de uma descoberta política. Desde então, sinto-me

sempre falando por meio de manifestos, em uma tensão permanente entre um nós , coletivo, e um elas , cheio de outras mulheres que não sei quem são, a não ser pelo fato de que são inteiramente outras – diferentes de mim. Tensão que não procuro solucionar, mas que me desloca a cada dia das quatro paredes do meu corpo/casa, e me coloca na rua, à procura de um espaço que possamos, efetivamente, algum dia, chamar de um espaço público, onde possamos existir, concretamente, nas nossas diferenças. Junto com essa descoberta política, surgiu, portanto, o amor à cidade, onde nos encontramos, no que o amor tem de mais arriscado. Aprofundando o desejo de pensar na maneira como a ocupamos, circulamos e nos relacionamos. Trata-se, aqui, do desejo não só de ocupar os espaços de poder, mas de redefinir o que são esses espaços. Como escreve Tatiana Roque em Erotismo e risco na política (2018): “a mulher querer ocupar os espaços de poder não é novidade. Só que hoje, ela não quer apenas ocupar esse espaço, ela quer estar lá como mulher .” (Roque, 2018, p. 13). Impossível fazê-lo sem pôr em suspensão a própria noção de espaço e de poder, portanto. A cidade de onde falo é o Rio de Janeiro, com seus contornos irregulares, do mar à montanha, cercada pela floresta, costurada por fronteiras cada vez mais armadas até os dentes, carregando certa melancolia pela perda da capital do país e do capital que a acompanhava. Cidade com feridas abertas pela colonização que nunca se fecharam. Os sítios arqueológicos encontrados na Zona Portuária da cidade foram cemitérios a céu aberto, onde jaziam corpos de homens e mulheres sequestrados de sua terra natal, dos quais pouco ou nada sabemos, além de que foram traficados como mercadoria e, muitas vezes, não resistiram ao tratamento desumano que sofriam durante a travessia pelo Atlântico. ¹ O maciço é testemunha do que aqui se passou. Nele também se inscreve a existência dos tupinambás que já viviam nessa terra há mais de mil anos antes das caravelas chegarem. Soterradas pelo esquecimento, essas feridas coloniais se transformaram no cotidiano necropolítico das favelas e periferias. Os vestígios da colonização na modernidade tardia, como lembra o filósofo Achille Mbembe, fazem-se presentes na geografia das cidades, estabelecendo lugares onde o controle e as garantias da ordem jurídica podem ser suspensos a qualquer momento e por tempo indeterminado. Na necropolítica, conceito criado por Mbembe para pensar a lógica do poder soberano, ao decidir quem pode viver e quem deve morrer, grande parte da população vive sob estado de sítio e se torna alvo permanente do Estado, que dá carta-branca para que as forças militares possam matar quando acharem que devem (Mbembe, 2016, p. 24). A cidade de onde falo, o Rio de Janeiro, tem boa parte de seu território sob fogo cruzado, e, em 2019, um governador eleito que diz que vai lançar um míssil na Cidade de Deus. Como lidar com essa brutalidade do cotidiano?

O Rio de Janeiro também não costuma ser muito acolhedor com as mulheres. No Maracanã, que reúne milhares de pessoas, quando nossa presença é reconhecida, em geral, não é com muito carinho. Nas ruas escuras, o passo apertado e a respiração curta, a segurança pública protege os homens brancos e é surda aos nossos gritos. O grau de insegurança aumenta à medida que a mulher se desvia dos padrões normativos de gênero, raça e classe, numa cartografia que entrelaça corpo e cidade. Descobrir-me como uma mulher no Rio de Janeiro, uma mulher branca, foi também reconhecer essas feridas que ainda estão longe de fechar, no meu corpo, mas, sobretudo, no corpo de outras mulheres que não são eu. Pensando na experiência da mulher negra e lésbica, e nas situações de violência estrutural de cunho racista e homofóbico, a antropóloga Fátima Lima se pergunta: “como andar na dor?” e, mais adiante, “como potencializar as fissuras na colonialidade ainda persistente? Como apostar sempre nos possíveis?” (Lima, 2018, p. 79). Diante da brutalidade necropolítica, é espantoso encontrar as trilhas abertas, aqui, nesta cidade, por mulheres que sempre foram imprescindíveis, ainda que quase nunca reconhecidas como protagonistas. Ou, então, quantos monumentos mereceriam Tia Ciata e outras tias baianas, mães de santo, que produziram o surgimento do poderoso do samba, capazes de criar outras cartografias, menos segregadas, e inverter hierarquias? Que diante da necropolítica colonial encontraram meios de fazer vibrar a vida? Se as mulheres foram silenciadas na cidade, de diversas formas, estão, aqui, existindo sempre. Em cada esquina, muitas e agora barulhentas. Nas ruas, nos morros, na floresta e na universidade, há mulher em toda a parte. Artistas comparavam nossos corpos às formações montanhosas que atravessam a cidade e às suas curvas – já não sabemos se numa exultação da voluptuosidade ou do nosso silêncio. Existências minerais. É que, muitas vezes, não falávamos e não nos ouvíamos por medo. Medo de sofrer violência sexual, de perder o emprego, de ficarmos sozinhas. Mas, desde sempre, resistiram. Sobre a abertura das feridas coloniais, abertas nas fronteiras da cidade, insurgem-se, a cada dia, corpos e vozes, tornando concreta a dor da memória perdida, como o faz Michelle Mattiuzi no filme Experimentando o vermelho em dilúvio , em que caminha pelas ruas do Rio até a estátua de Zumbi dos Palmares, na Avenida Presidente Vargas, próxima à Central do Brasil; ou a escrita despacho de Thiago Florêncio, base da dramaturgia da peça Cidade Correria do coletivo Bonobando, dirigida por Adriana Schneider e Lucas Oradovschi, onde as histórias de vida dos jovens atores das periferias da cidade se misturam a textos clássicos, para produzir “um transbordamento de nossas urgências cotidianas, nossas contradições, alegrias, delírios, feridas e potências. Uma cidade inventada, em deriva, que poderia ser a nossa cidade, ou qualquer cidade” ² entoada no samba da Mangueira, sorvida na Cerveja da Mulher Guerreira, no Slam das Minas, e na inteligência dos alunos da Maré que ingressam, a cada ano, na UFRJ, na UERJ, na UNIRio e na UFF: a vida transborda.

O que percebi, junto com outras mulheres, é que não estamos sozinhas, ou que não precisamos estar, ainda que o sentimento de ser uma na multidão venha acompanhado de uma solidão imensa. Não é possível negar. A solidão de se perceber uma mulher, e não A mulher, traz a possibilidade de refazer todos os caminhos, de andarmos despidas das indumentárias construídas por uma iconografia secular: lá vai ela, bruxa, esposa, prostituta, sapatão, mucama, traveca, histérica, machona. Agora já não estamos aí, onde nos veem; entretanto, onde estamos? Que espaços nos acolhem? O medo de ser ejetada para fora do espaço existente emerge de uma outra solidão, que nos ameaça desde sempre, composta de atravessamentos subjetivos, econômicos e políticos, que nos forçam a vestir as roupinhas apertadas que querem nos costurar em nossas próprias peles. Quem vai querer uma mulher assim? , repetem a nós, desde que somos pequenas demais. Esse ensaio é a tentativa de pensar outros modos de ocupação dos espaços que sejam, ao mesmo tempo, incontornáveis e não hierárquicos, autônomos, a partir de gestos anteriormente traçados por mulheres que ocuparam a cidade do Rio de Janeiro, cruzando suas fronteiras-feridas, amplificando o som, por vezes imperceptível, das existências minerais da cidade, seu recado. Se no conto de Guimarães Rosa, o recado do morro é primeiramente escutado por aqueles considerados loucos pelo seu entorno, aqui, também se trata de ampliar a escuta, ouvindo a partir dos textos da escritora mineira que se mudou para o Rio, Maura Lopes Cançado, o que dizem as mulheres que foram impedidas de circular pela cidade, internadas com ela no hospício. O que acontece quando andamos sobre as fronteiras? Quando franqueamos espaços interditos? Qual a melhor maneira de fazê-lo? Pensar meu corpo no espaço, em relação com a sua história, a partir da minha descoberta feminista, foi um imperativo que surgiu da necessidade urgente de agenciar a experiência política à sua dimensão relacional e sensível. Em Non-representational theory: space, politics, affects (2008), Nigel Thrift pensa em uma teoria do espaço que leve em conta a dimensão não consciente e afetiva da experiência espacial, que permite pensar na possibilidade do jogo ( play ) “em um engajamento mais receptivo da estranheza do mundo da modernidade tardia”. A estranheza da modernidade tardia de que fala Thrift pode ser abordada de diversas maneiras. Certamente se conecta com o que David Harvey aponta como um novo regime espacial , oriundo das transformações do capitalismo, marcado por um conflito entre “[…] por um lado, a tentativa de constituir e preservar lugares de identificação, e, por outro, a progressiva abstratização e virtualização do espaço, sobretudo os de natureza pública” (Harvey apud Brandão, 2013, p.19). A estranheza que atravessa esse texto tem relação com a progressiva virtualização da esfera pública de que fala Harvey. Mas essa virtualização se desdobra na sensação de descoberta arqueológica das feridas do passado – machismo, racismo etc. – que propicia, ao mesmo tempo, uma desconexão

com o tempo presente e uma impossibilidade de tratar com clareza os significantes que orientam a tradição política: democracia, justiça, liberdade, igualdade. Como pôr os pés no chão e sentir o corpo em relação com o espaço e com outros corpos, diante dessa sensação de desconexão? II - Loucura Temos tentado escapar a essa estranheza e ao sentimento de solidão que o acompanha, andando juntas, ocupando a cidade: chamaram a esse movimento, que começou há alguns anos, retomando a luta das mulheres – que no Brasil tem 500 anos –, de Primavera das Mulheres. Há, de fato, qualquer coisa que brota com a violência e a alegria primaveris. Parece que, juntas, tornamo-nos assustadoras para uma velha ordem patriarcal que sabe bem que perdeu a razão de existir. Qual a justificativa plausível e aceitável para o fato de que mulheres negras trabalhem três vezes mais e recebam menos de 10% do que um homem branco? ³ Nenhuma. E essa verdade se apresentou irrefutável ao ecoar das vozes do feminismo negro em todos os espaços. A imagem das vozes de mulheres negras ecoando através dos anos surge no poema de Conceição Evaristo: Vozes-Mulheres ⁴ A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio . ecoou lamentos de uma infância perdida . A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo . A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela A minha voz ainda ecoa versos perplexos

com rimas de sangue e fome . A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas . A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato . O ontem – o hoje – o agora . Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade . Desde então, essa mesma ordem se apresenta em sua face mais violenta, alucinada, ressentida e bastante ridícula – ainda que perigosa: grupos de homens que se autodenominam como celibatários involuntários planejam massacres em instituições de ensino; cantores espancam mulheres e são celebrados pelo presidente da república – em uma lista inumerável de acontecimentos. Impossível não formular certas perguntas: como foi possível chegar a esse ponto? Por que estamos assistindo ao recrudescimento do machismo, do racismo e da homofobia, ao mesmo tempo em que, como afirma Angela Davis ⁵ , aumenta a consciência das desigualdades estruturais? Tenho me perguntado, sem conseguir entrever muitas respostas, apenas uma aposta, um desejo, a tentativa de lançar um feitiço que seria assim: se a velha ordem patriarcal e capitalista perdeu de vez a razão, tornando-se completamente injustificável, e só se mantém pelo delírio; e se nós, mulheres, sempre fomos consideradas loucas, penso se não estaria na hora de disputar a loucura . Penso nisso, à medida que vejo um desvio na estética do poder. Em minha adolescência, nos anos 1990, os poderosos contra os quais protestávamos eram homens de terno; poucas vezes, mulheres de tailleur ; comedidos e austeros, técnicos e especialistas. Muitos se reconheciam como excomunistas que haviam tomado consciência de que o sonho ou a utopia

socialista eram impossíveis, e se diziam realistas. Matemáticos guiados pela lógica. O presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) era a encarnação do homem modelo neoliberal. Como disseram, o neoliberalismo mudaou a lógica da ordem: agora a transgressão já não era proibida, mas impossível. A partir do fim dos anos 1990, na América Latina e no mundo, o modelo neoliberal havia produzido tanta pobreza que era difícil justificar seu caráter lógico. No início do século XXI, era muito difícil alguém se dizer de direita abertamente por essas bandas. À esquerda e à direita também, poucos e isolados eram os que se reconheciam como antidemocráticos. Fernando Henrique Cardoso passou a faixa presidencial ao recém-eleito presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, e isso no histórico de golpes e impeachments no Brasil foi reconhecido como um fato extraordinário. Nos últimos anos, porém, algo tem se transformado: os dantes comedidos e temperados homens do poder, agora vociferam pelas redes sociais, sem nenhuma preocupação com a verdade, seu pensamento, ao mesmo tempo assassino e mágico, seus delírios de perseguição, seus desejos de uma terra plana em que ocupem o centro do universo com seus umbigos. Entretanto, é possível reconhecer uma relação entre o primeiro e o segundo estilo pelo qual o poder se manifesta: o estilo técnico-temperado e o dogmático-raivoso. Autoras como Isabelle Stengers e Wendy Brown têm analisado a relação entre a recente ascensão da extrema-direita e o neoliberalismo. Para Stengers, o capitalismo tem produzido, a cada dia com mais força, uma espécie de feitiço, ou captura das subjetividades que faz com que os indivíduos se sintam sem a capacidade de fazer escolhas políticas fora do que a autora chama de alternativas infernais: O que se afirma com toda alternativa infernal é a morte da escolha política, do direito de pensar coletivamente o futuro. Com a globalização estamos em regime de governança no qual trata-se de conduzir um rebanho sem o fazer entrar em pânico, mas sob o imperativo “não devemos mais sonhar.” Afirmar que é possível fazer de outra maneira seria se deixar enganar por sonhos demagógicos . (Stengers, 2015, p.1) Segundo Wendy Brown, embora neoliberalismo e neoconservadorismo não sigam sempre os mesmos padrões, batendo de frente acerca de muitas questões (como, por exemplo, o nacionalismo), não são tão diferentes quanto parecem. De fato, as duas lógicas caminham juntas em muitos momentos, enfraquecendo a ideia de democracia que havia se estabelecido no mundo pós-guerra (Brown, 2006, p. 702). Ainda segundo Brown, o neoliberalismo se tornou, nas últimas décadas, mais do que uma teoria econômica, passando a ser uma forma de racionalidade política, ou seja, um “princípio de realidade” a partir do qual vivemos sem pensar sobre isso. Razão que produz novos sujeitos, novas formas de subjetividade e novos modos de relação social. A subjetividade neoliberal, transforma o indivíduo em uma corporação, cujo sucesso é medido pela possibilidade que ele tem de cuidar de si sozinho, sem a necessidade de ajuda de quem quer que seja. Nesse sentido, a dinâmica neoliberal em que os ricos se tornam cada vez mais ricos vai ao encontro da necessidade do neoconservadorismo se apoiar nas famílias de

classes média e baixa, que mantêm uma rígida estrutura patriarcal, graças à precariedade dos salários, da assistência social e da infraestrutura estatal (Brown, 2006, p. 702). No caso do Brasil, essa estranha aliança se aglomerou em torno de um inimigo comum, reconhecidamente, todo o campo progressista. Organizações de defesas de direitos humanos, ambientalistas, movimentos sociais, partidos de esquerda, defensores da liberdade de expressão passam, então, a ser reconhecidos, ao mesmo tempo, como amorais e frágeis, porque dependentes do Estado. Políticas públicas que garantem a democratização do acesso ao ensino, direitos sociais e proteção aos direitos humanos passam a ser entendidos como máscara de disfarce daqueles que desrespeitam as leis de deus e do mercado. Nenhum argumento parece ser capaz de demover a adesão de grande parte da população ao neoconservadorismo. Nem a tentativa de desmentir as mentiras falsas que circulam nas redes, nem os sucessivos escândalos políticos, nem as crescentes taxas de desemprego. A impressão que se tem é que o capitalismo lança o que Isabelle Stengers chamou de ataque feiticeiro, uma espécie de captura das subjetividades cuja eficácia não está no poder de persuasão, mas na sensação de impossibilidade de sairmos dela. Associar nosso sentimento de impotência à eficácia de um “ataque feiticeiro” é em princípio dramatizar a insuficiência da noção de ideologia ou de crença ideológica, é chamar a atenção para o modo pelo qual o domínio pôde continuar a funcionar, fora da crença. É também dramatizar o fato de que, contrariamente às tradições culturais para as quais os ataques feiticeiros são um tema de preocupação prática, nós, que pensamos em “ideologia”, somos vulneráveis. Nós não possuímos os saberes pertinentes para identificar e compreender os dispositivos de captura e de produção de impotência. Ora, lá onde se pensa que os feiticeiros existem, aprende-se a reconhecê-los, a diagnosticar seus procedimentos, a se proteger deles, e ainda a contra-atacar. Nós, nós criticamos e denunciamos as mentiras, mas se a denúncia tivesse sido eficaz, o capitalismo estaria morto há muito tempo . (Stengers, 2015, p.1) Então, quando pensei, em um momento de angústia diante da impotência de que fala Stengers, em “disputar a loucura”, visto que argumentos não parecem mais ser eficazes, talvez estivesse pensando nesse contra-feitiço. Talvez estivesse relacionando a loucura ao terreno da desrazão, que havia sido, desde sempre, atribuído às mulheres e que, agora, eu identificava nos gestos e discursos dos homens de extrema-direita. Em Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017), Silvia Federici demonstra de que maneira o discurso que vincula as mulheres ao terreno do irracional, desqualificando suas vozes e seus saberes, no século XVIII, seguiu-se a um tenebroso período de perseguição inquisitorial, que durou dois séculos, na Europa e nas Américas, conhecido como “caça às bruxas”. A morte violenta deu lugar à desqualificação e à ridicularização: […] o principal fato de incentivo à caça às bruxas foi o fato de que as elites europeias precisavam erradicar todo um modo de existência que no final da Baixa Idade Média ameaçava seu poder político e econômico. Quando essa

tarefa foi cumprida por completo – no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante consolidou sua hegemonia -, os julgamentos de bruxas cessaram. A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo, desprezado como superstição e apagado rapidamente da memória . (Federici, 2017, p. 368) Mas, talvez, penso, estejamos assistindo a um desnudamento da suposta racionalidade capitalista, cujo ápice é o neoliberalismo. A razão como faculdade humana que assegura o direito natural nas teorias políticas modernas dos séculos XV e XVI, agora, apresenta-se menos como lei natural do que como norma, como expôs Achille Mbembe, em Necropolítica (2016). Nesse ensaio, o autor reconhece e lamenta, na crítica política do ocidente, uma equivalência entre razão e soberania. Nessa perspectiva, soberania significa a produção de normas gerais a serem seguidas por um corpo (demos), composto por homens e mulheres livres. Esses homens e mulheres seriam, assim, capazes de “autocompreensão”, “autoconsciência” e “auto representação” (Mbembe, 2016, p. 13). Razão, soberania e liberdade caminhariam juntas. Entretanto, a outra face da noção de soberania dos Estados modernos é aquela que se autoriza, como nos empreendimentos coloniais, a instrumentalizar e a destruir corpos e populações humanas. Essa outra face não seria, em absoluto, diz Mbembe, produto de insanidade, desrazão ou ruptura entre corpo e mente, mas o próprio modo de instauração da política (Mbembe, 2016, p. 13). Essa outra face da soberania, para além do autocontrole, pressionaria a pensar em outros modos de relacionar política e liberdade, fora do território da razão, e Mbembe propõe que o façamos a partir das categorias de “vida e morte”, que são mais tateáveis e menos abstratas (Mbembe, 2016, p. 14). As mulheres sempre foram expulsas do terreno da racionalidade que fundamentava a representação política. Longe da ágora, o nosso lugar por excelência era o espaço doméstico, dependendo da classe social, ou então o do hospício, da prisão e, no caso do Brasil, da senzala. A sensação que dá é a de que quanto mais adentramos nos espaços de representação, mais aqueles que se consideram os seus detentores ancestrais ameaçam fechá-lo; colocam-no em xeque. Rasgam as leis, desrespeitam as instituições e se apropriam da desrazão, sempre atribuída às mulheres – não sabemos se por oportunismo ou incapacidade. É como se a possibilidade de ampliação nos espaços de representação fizesse craquelar a sua própria razão de existir, que seria, justamente, como analisa Nicholas Mirzoeff, a partir de Hannah Arendt, delimitar quem pode e quem não pode participar das decisões políticas. Em A condição humana (1981), pensando a polis ateniense, Arendt fala da política como “espaço de aparição”, daquilo que pode ou não existir e sob que condições, excluindo da tomada de decisões mulheres, estrangeiros, crianças e pessoas escravizadas. Nesse sentido, aparição se equivaleria a representação (Mirzoeff, 2017). O assassinato brutal da vereadora eleita no Rio de Janeiro, Marielle Franco, em 14/03/2018, derrubou definitivamente a máscara da relação entre poder e racionalidade que, na cidade, sempre esteve prestes a cair. Em seu curto, porém potente, mandato, Marielle ressignificou a ideia de “espaço de aparição”, tirando-o da lógica de espaço de exclusão, ao dar voz e visibilidade aos grupos que precisavam se manter de fora da representação,

para que esta pudesse manter sua estrutura hierárquica. Ela reivindicou o direito à existência das mulheres negras, faveladas, lésbicas, brasileiras, tornando incontornável a afirmação que a necropolítica brasileira parece recusar. Seu assassinato, a tentativa hedionda de apagar esse fato, demonstra, por um lado, que a ordem necropolítica já não é capaz de encontrar subterfúgios. O patriarcado já não pode mais se ancorar no terreno da razão. Muito menos o capitalismo, com suas taxas de desigualdade. Tampouco pode se esconder elegante com a tranquilidade de sempre, atrás da lógica da meritocracia. Quem com mais mérito do que Marielle Franco para ocupar uma cadeira na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro? Marielle, que nasceu no Complexo da Maré, que foi mãe muito jovem, que furou todos os bloqueios, cruzou e se arriscou pelas fronteiras da cidade, num perpétuo ir e vir, afirmando com vigor que não seria interrompida em seu trajeto, sendo eleita com 46.000 votos em sua primeira eleição? Sem conseguir barrá-la pelos meios tradicionais da desqualificação, do racismo, do machismo, precisaram executá-la com quatro tiros. Portanto, disputar a loucura certamente não é entrar em relação com a psicopatia capaz de aniquilar o corpo do outro, com sua fúria exterminadora, sua ânsia pelo poder a qualquer preço, seu horror à ciência e seu nenhum apreço pela verdade. Mas, justamente, evocar uma força que nos permita entrever modos de desviar desse desejo/destino fascista que tomou conta de boa parte da população do mundo nos últimos anos. Não é questão aqui, tampouco, de glamourizar o sofrimento psíquico que isola e desconecta as pessoas de suas redes sociais e afetivas. Pelo contrário. Ocupar a loucura seria um modo de tecer outras ligações, outros processos coletivos, desencarcerando a dor que emerge da solidão de se sentir fora do espaço; transformá-la, fazer com que esses processos encontrem lugar e destino, no espaço, na cidade. Para descongelar o que, a partir de Antonin Artaud, Ana Kiffer reconhece como “uma das tarefas mais duras e difíceis do pensamento crítico”: desvincular “compreensão com racionalidade ou razoabilidade e incompreensão com irracionalidade e loucura” (Kiffer, 2018, p. 98). III – Hospício é deus A loucura da qual falamos aqui se aproxima da existência mineral sobre a qual escrevia Maura Lopes Cançado, em seu diário Hospício é Deus: diário I (2015a), ao observar suas companheiras internadas no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro – a mesma instituição que abrigou escritores como Lima Barreto e Torquato Neto. Quando o hospital foi criado, em 1852, a preocupação da medicina social da época era organizar positivamente o espaço urbano em seus aspectos mais variados, heterogêneos e díspares para “impedir a ação destruidora a que o homem é levado por suas paixões desregradas e seus instintos cegos” (Machado et. al., 1978, p. 259). A cidade, para os higienistas da segunda metade do século XIX, era considerada um meio hostil e especialmente perigoso, graças ao grande número de indivíduos amontoados em aglomerados, o que dava margem a todos os tipos de promiscuidade. O

primeiro hospício do Rio de Janeiro e do Brasil foi criado na Praia da Saudade, na Urca, e, hoje em dia, é o prédio da Faculdade de Economia da UFRJ. O local era, a princípio, privilegiado pelo seu afastamento do perímetro urbano, um dos fatores considerados primordiais para o sucesso da terapêutica do hospício (Machado et al., 1978, p. 372). Como afirmava o psiquiatra brasileiro do século XIX, Luiz Vicente de Simoni: “De todas as moléstias a que o homem é sujeito, nenhuma há cuja cura dependa mais do local em que é tratada do que a loucura” (Simoni apud Machado et.al., 1978, p. 380). O ideal higienista que fantasiava uma cidade ordenada, onde cada coisa ocupasse seu devido lugar, significava também, no caso do Rio de Janeiro, tentar soterrar as feridas coloniais para que elas não existissem, e expulsar os corpos por elas marcados para longe do perímetro urbano, explicitando assim a relação entre racionalidade e necropolítica. Quando Maura Lopes Cançado se internou no Hospital Psiquátrico do Engenho de Dentro, no final da década de 1950, esse projeto já se apresentava em sua face decadente. Desde 1944, os antigos pacientes do Hospício Nacional da Urca haviam sido transferidos para a Colônia Juliano Moreira e para o Centro Psiquiátrico Nacional no Engenho de Dentro, posteriormente conhecido como Centro Psiquiátrico Pedro II. A arquitetura do hospício do Engenho de Dentro exaltava esse índice de exclusão. Em 1959, de dentro do seu quarto-cela, Maura Lopes Cançado escrevia o seu diário. No pavilhão anexo, Dra. Nise da Silveira, médica, e Dona Ivone Lara, compositora, sambista e enfermeira, nessa época, do Pedro II, enfrentavam o poder normativo do hospício através da arte, criando a Seção de Terapia Ocupacional com oficinas de pintura e música. ⁶ A escritora frequentou poucas vezes o Centro de Ocupação Terapêutica, mas o menciona em seu diário, publicado em 1966, intitulado Hospício é deus: diário I (2015a). Para além dele, Maura publicou, no mesmo ano, o livro de contos O sofredor do ver (2015b). Tanto em Hospício é deus quanto em O sofredor do ver , a escrita é uma maneira de desenhar mapas de fuga que permitam atravessar os muros do hospício. Existem três espaços que se comunicam, mas que são separados por fronteiras tensas e violentas, que interferem diretamente nos estados do corpo de quem passa por eles. O primeiro é o mundo dos “normais”, o lado de fora do hospício, onde vivem os que se olham no espelho e conseguem se manter inteiros, sem estranhar a própria imagem ⁷ , os que conseguem se comunicar, os que se relacionam. O segundo espaço é separado pela porta de entrada do hospital psiquiátrico, no hall em que são despidas as roupas do primeiro espaço, trocadas pelo uniforme de internação. Uma vez transposto esse espaço, o que se perde é o lugar no mundo dos afetos e dos direitos, quando o diagnóstico transforma os sujeitos em doentes mentais, não sem a revolta destes que ainda permanecem ligados ao mundo de fora. Há, ainda, um terceiro espaço, dentro do pátio do hospício, onde passam boa parte do dia as mulheres com quadros de catatonia, as verdadeiras loucas que já passaram a outra espécie de realidade. São muitas as passagens em que Maura diferencia as loucas das doentes mentais, reconhecendo-se, com sofrimento, no segundo grupo. As doentes mentais, segundo a escritora:

Não conseguem transpor “o Muro”, segundo Sartre. É a resistência […]. Se existe vergonha é na luta: perder o lugar no mundo, afetividade, direitos (direitos?), então encontramos doença, morbidez, imensa soma de deficiências que se recusa a abandonar. Transposta a barreira, completamente definidos, passam a outro estado – que prefiro chamar de Santidade. A fase digna da coisa, a conquista de se entregar. O que aparentam é a inviolabilidade do seu mundo . (Cançado, 2015a, p. 27) A loucura na escrita de Maura Lopes Cançado tem uma dupla polaridade: por vezes, aparecendo em sintonia com a experiência da morte, sendo o ponto final de uma travessia; e, em outros momentos, oferecendo-se como abertura para outro espaço, em que a violência da norma já não machuca mais. O corpo da louca é blindado, os sentidos fazem greve, não se escutam os gritos, não se sentem as pancadas, os odores se neutralizam. A narradora se pergunta mais de uma vez se essa blindagem da loucura é o início de uma nova linguagem ou, ainda, uma existência próxima a de uma rocha, “certeza mineral sem pulsações” (Cançado, 2015b, p. 47). As pedras podem significar? Podem sentir? Podem tocar no mundo? Em algumas passagens dos contos de O sofredor do ver , temos a impressão que sim. Em outras, parece que não haveria outra saída para o hospício, senão a porta da frente, para reingressar no mundo dos normais, mas essa passagem parece dolorosa demais, impossível mesmo. O conto “Introdução a Alda” (2015b) narra essa impossibilidade de definir o estatuto da loucura. Sua protagonista é reconhecida por Maura no diário como tendo sido inspirada em sua companheira de hospício, uma verdadeira “louca” em sua santidade, capaz de adquirir uma sensação de “liberdade em estar presa”. Porém, ainda que Alda, no conto, apareça como uma mulher que conseguiu se desligar da sua memória, transformando as grades do hospício “nas grades de um palácio onde se refugiou princesa” – onde agora pode “horizontalizar a visão”, sentindo-se definitiva – o refúgio que a desligou do tempo não era, afinal, tão seguro (Cançado, 2015b, p. 30). Alda ainda é “cercada de mundo por todos os lados” e sofre no seu isolamento: “Ela dançaria um minueto por um toque de mão sem dor. Súbito, ela sabe, mataria o próprio medo se recebesse um beijo sem o momento que o precede” (Cançado, 2015b, p. 31). Na geografia do “hospício-deus”, as mulheres que a escritora reconhece como Loucas são as que encontraram um caminho para fora, ainda que à custa da própria capacidade de se relacionarem, porque as relações são brutas demais. Quanto de delicadeza não se faz necessário para estar junto? Por que é que essas mulheres deveriam estar confinadas enquanto a polícia caminha livre desfilando seus fuzis? IV – O som do maciço Em 1959, quando Hospício é deus foi escrito, o Brasil era um país que se democratizava paulatinamente, acreditando no sinônimo entre democracia e modernização, mas sem mexer no conservadorismo de fundo racista e patriarcal que estruturou a noção de família por essas bandas – processo congelado com o golpe de 1964. Quando nasci, em 1981, e a ditadura começava a acabar, parecia que, finalmente, as fronteiras entre esses espaços se tornavam mais fluidas. As

lutas dos movimentos feministas, negros e indígenas conseguiram, em 1988, redigir uma constituição que abria brechas, ainda que bastante estreitas. Agora, em 2019, querem erguer os muros outra vez; restaurar a claustrofobia. Será que vão conseguir? Fronteiras são como feridas abertas – escreveu a feminista Gloria Anzaldua, em Borderlands: the new mestiza = La frontera (1987), pensando sobre a linha tensa e vibrante que atualmente separa o México dos Estados Unidos, mas que já foi território indígena, muito antes da chegada dos espanhóis. Para poder sentir as feridas, reabrir o corpo, sem precisar abdicar da loucura, da possibilidade de querer ser diferente, é preciso desorganizar os espaços construídos pela estrutura do Hospício-deus. Queremos a praça pública, mas também o delírio; queremos existir na cidade, nos subúrbios e no centro, sem morrer de fome, de depressão ou de desemprego. Queremos escutar o som que sai do maciço, das montanhas, das existências minerais que, por tantos milhares de anos, cantam em silêncio, atravessando a cidade. III – A volta para casa A solidão de ser uma mulher se intensifica quando precisamos voltar para casa e encontramos a ordem restituída em cada canto do apartamento. Enquanto tento escrever e as notícias invadem as telas, transbordando com tanta intensidade que parecem arrastar consigo o sentido das coisas; enquanto meu filho abre a porta do quarto, avisando que a televisão está quebrada, a chuva alaga a rua. Pergunto-me como fazer para me equilibrar sobre tudo isso, como não desistir de passar o rodo e a vassoura nos restos da tempestade que insiste em irromper no verão escaldante do Rio de Janeiro, fazendo o ar, mais uma vez, irrespirável. A água da chuva invade a sala com terra, pedaços de folha, avariando a internet e apagando a luz. O mundo, entretanto, segue existindo. A pergunta que me faço no escuro é: a gente segue existindo no mundo? A esmo, sem entendê-lo? Sem ser capaz de agir? É possível escrever sem ao menos entrever do que se fala? Para que e para quem? Escrever sem saber por quê; ainda assim, escrever. Para poder tocar, com os dedos que escrevem, outros mundos que jamais possuiremos: “letras, lábios e respiração”. Escrever, mesmo sem razão para tanto, para nunca se resignar, “para não virar de costas para a parede, sem acreditar que alguma coisa pode acontecer”. É o que afirma a escritora francesa Hélène Cixous (1976, p.11). É preciso reivindicar a loucura como estado de despossessão, da paixão que nos leva a desejar tocar naquilo que não controlamos. O mundo vem passando em enxurrada diante de nós, vazando pelas redes sem que a gente consiga tocar nele. Como tocar de novo no mundo? É o que o desafio das personagens demasiadamente reais da escrita de Maura Lopes Cançado nos obriga a pensar. Notas

1 O cemitério dos Pretos Novos foi descoberto em 1996, na rua Pedro Ernesto, nº 36, no bairro da Gamboa, durante a execução das obras de fundação da residência do casal Petrúcio e Mercedes Guimarães. Os pedreiros retiraram ossos humanos junto com o solo e em pouca profundidade. Alarmados, os proprietários procuraram as autoridades para comunicar o achado; surpresos, descobriram que não se tratava de uma chacina ou um crime recente, mas sim de uma importante descoberta arqueológica: o antigo cemitério dos Pretos Novos (Tavares, 2012). 2 Extraído do programa da peça mencionada. 3 “I want to try and add a distinct cooperative-cum-experimental sensibility in to the mix of the world that will help us ‘engage the strangeness of the late modern world more receptively’” (Thrifht, 2008, p. 4). 4 Fonte:IBGE https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/ arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf . 5 Poemas de recordação e outros movimentos, 2008, p. 10-11. 6 C.f.: “O racismo voltou a ser mais violento e explícito” (Davis, 2018). 7 Sobre a relação entre Dra. Nise e Dona Ivone, ler “Dona Ivone Lara – uma jóia rara” (Name, 2018). 8No conto “O espelho morto” (2015b), Maura fala sobre a impossibilidade de encarar a própria imagem diante de um espelho que se estilhaça em mil pedaços. Referências Bibliográficas ANZALDUA, G. Borderlands/La Frontera : The New Mestiza. Aunt Lute Books, 1987. ARENDT, H. A condição humana . São Paulo: Edusp, 1981. BRANDÃO, L. A. Teorias do espaço literário . Belo Horizonte: Fapemig, 2013. BROWN, W. American Nightmare : Neoliberalism, Neoconservatism, and DeDemocratization. in: Political Theory, 2006. v. 34, No. 6. CANÇADO, M. L. Hospício é deus : diário I. Belo Horizonte: Autêntica, 2015a. _. O sofredor do ver . Belo Horizonte: Autêntica, 2015b. CIXOUS, H. La venue a l’écriture . Paris: Union générale d’éditions, 1976. DAVIS, A. “O racismo voltou a ser mais violento e explícito”. In: Caderno Cultura . El País. 2018. Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/ 2018/10/25/cultura/1540468443_420474.html >. Acesso em: 15/08/2019.

EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos . Belo Horizonte: Nandyala, 2008. FEDERICI, S. Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017. KIFFER, A. “O rascunho é a obra: o caso dos cadernos”. In: Revista Brasileira de estudos contemporâneos , 2018. N.55. LIMA, F. “Raça, Interseccionalidade e Violência: corpos e processos de subjetivação em mulheres negras e lésbicas”. In: Cadernos de gênero e diversidade . v. 04, N. 02 - Abr. - Jun., 2018. MACHADO, R.; LOUREIRO, A.; LUZ, R.; MURICY, K. Danação da norma : a medicina social e a construção da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. MBEMBE, A. “Necropolítica”. In: Revista Arte & Ensaios , 2016. n.32. MIRZOEFF, N. The Appearance of Black Lives Matter . Miami: NAME, 2017. NAME, D. “Dona Ivone Lara – uma jóia rara”. In: Memória . Jornal GGN, 2018. Disponível em: < https://jornalggn.com.br/memoria/dona-ivone-larauma-joia-rara/ >. Acesso em 15/08/2019. ROQUE, T. Erotismo e risco na política . São Paulo: n-1, 2018. STENGERS, I. “O preço do progresso: entrevista com Isabelle Stengers.” In: Revista DR . N.4, 2015. Disponível em: www.revistadr.com.br . Acesso em: 15/08/2019. TAVARES, R. B.. O Cemitério dos Pretos Novos, Rio de Janeiro, Século XIX: uma tentativa de delimitação espacial. Dissertação de mestrado. UFRJ, Museu Nacional. 2012. THRIFT, N. Non-representational theory : space, politics, affects. Nova Iorque: Routledge, 2008. Ressignificando lugares: a potência da escrita de mulheres negras Natália Neris Eu não consigo dizer exatamente desde quando, mas posso afirmar que, desde cedo, criança ainda, eu nutria uma admiração enorme por aquele tipo que aparecia em programas de TV na condição de “especialista” em algum tema. Eu gostava dos gestos, do modo de falar, das palavras difíceis. Em geral, eram homens ou mulheres com seus quarenta, cinquenta, sessenta anos, parecidos entre si . Com o tempo, fui entendendo que essas pessoas tinham feito algum curso de ensino superior: Direito, Economia, Ciências Sociais, Letras. Passado mais um pouco de tempo, descobri que cursar essas carreiras não era muito simples: os especialistas, em geral, formavam-se em boas universidades, públicas, de preferência, cujo processo de ingresso não era muito fácil. O vestibular costuma exigir que se tenha tido acesso a uma boa educação básica, ou que, ao menos, tenha havido algum tipo de

complementação dos estudos em cursinhos especializados. Passado mais um pouco de tempo, no fim da adolescência, entendi, enfim, que, para isso, era preciso, além de (ou talvez mais do que) dedicação, uma boa renda familiar. Apesar de não parecer com aquelas pessoas, em vários sentidos, foi crescendo em mim um desejo de conhecer com propriedade algum tema, a ponto de poder dar explicações sobre ele. Ao ingressar na universidade, descobri que, de fato, nesse espaço, eram utilizados outros códigos; era ali que eram formulados os conceitos (que, quando criança, eu identificava como “palavras difíceis”). Havia um modo bastante peculiar de se colocar. Percebi que a universidade era um espaço importante de legitimação de saberes, de conhecimentos, de formulações e de interpretações sobre o mundo. Ao acessar esse espaço enquanto mulher negra, não raras vezes me senti uma outsider . Eu ainda não tinha percebido, mas a sensação de outsider tinha a ver com as representações que acessei ao longo da vida sobre trabalho intelectual; com os códigos que não aprendi durante o ensino básico; com o modo como temas relacionados a realidades que eu conhecia de perto eram tratados em discussões acadêmicas. Há diferentes modos de se lidar com essa sensação de ser uma outsider , mas o modo mais bonito e fortalecedor chegou a mim há muito pouco tempo, através de uma mulher negra norte-americana, reconhecidamente uma intelectual. Patricia Hill Collins afirma que mulheres negras ocupam, em grande parte de suas relações, uma posição de outsider within (1986/2016). Com isso, ela quer dizer que, embora estejamos historicamente presentes em espaços majoritariamente brancos – por exemplo, prestando serviços domésticos –, sabemos que, apesar de insiders , nunca pertenceríamos a essas famílias. Essa posição – de estar dentro, mas de não pertencer – proporciona às mulheres negras, todavia, um ponto de vista especial quanto ao self , à família e à sociedade. A autora argumenta, então, que esse ponto de vista da marginalidade tem um potencial criativo significativo e que ele não deveria ser desprezado, em especial pela academia, uma vez que ele poderia enriquecer o discurso sociológico contemporâneo: trazer esse grupo para o centro da análise pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens mais ortodoxas (Hill Collins, 1986/2016, p. 101). Se Hill Collins me tranquilizou acerca das possibilidades de contribuição de mulheres negras, bell hooks ² – outra autora negra norte-americana – me fez ressignificar o conceito de intelectualidade. Ser intelectual não é apenas trabalhar com ideias, mas lidar com elas, transgredindo fronteiras discursivas. Ser intelectual é lidar com ideias em sua vital relação com uma cultura política mais ampla (hooks, 1995, p. 468). Minha proposta neste ensaio é seguir as trilhas dessas autoras (que me encorajaram, inclusive, a escrever este texto em primeira pessoa) e ressignificar minha própria experiência enquanto jovem pesquisadora.

Argumento, então, que o não reconhecimento de nossa capacidade criativa empobrece a produção feminista que, sob o manto da objetividade e da imparcialidade, oculta um grupo de sujeitos/as-autores/as bastante homogêneo. Além disso, perdemos, também, do ponto vista da prática: ignorar a experiência de mulheres negras conduz a ações que, efetivamente, não contribuirão para uma emancipação real, já que não nos incluirá. Para evidenciar esses argumentos, adiante, apresento algumas referências bastante pessoais de escrita – majoritariamente, poesias – de mulheres negras brasileiras. Todas elas, oriundas de classes populares, são representantes do que vem se denominando de literatura marginal ou periférica ³ e, como apontarei, a partir da teorização de Hill Collins, são escritoras que têm produzido no Brasil um pensamento feminista negro. A escrita de mulheres negras (ou o status de outsider a gerar potentes discursos) De acordo com Hill Collins, “pensamento feminista negro” são ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de vista de e para mulheres negras. Além disso, segundo a autora, três temas-chaves ou tendências o caracterizam: 1) auto avaliação e auto definição; 2) percepção da natureza interligada da opressão; e 3) a importância das culturas de mulheres negras. I. Auto avaliação e auto definição Diante de sociedades racistas, auto definir-se significa desafiar a validade de imagens estereotipadas e auto avaliar-se envolve, a partir dessa auto definição, a substituição dessas imagens. Ao realizar esse duplo movimento, mulheres negras negam a desumanização, o controle e a objetificação. O meu encontro com a escrita de mulheres negras permitiu que eu me lembrasse (e também realizasse) desse duplo movimento, principalmente, a partir da leitura dos quatro textos que seguem: nas poesias de Nascimento e de Ribeiro estão presentes, principalmente, um forte senso de autovalor e, mais do que isso, de resistência. Essas poesias desvelam a farsa de uma existência pautada em valores de vida, de ser e estar no mundo, excludentes. ⁴ No poema de Carvalho, a resposta à famosa música “Nega do cabelo duro” ⁵ alerta para as contribuições da população negra e relembra a violência de um passado escravista. Na crônica de Silva, é relatada uma ação de ressignificação da história forte, bonita, a partir da tentativa de resgate de raízes genealógicas: Desensinamentos (Jennyfer Nascimento) ⁶ Estão a moldar nossos pensamentos , A roubar nossa autoestima . Nos ensinaram um andar cabisbaixo .

Corpos curvados encaram o chão Como se olhar o céu ou o front Não fosse algo permitido para negras Lavadeiras, cozinheiras, professoras , Balconistas, cabeleireiras e universitárias Como nós . Nos ensinaram que somos feias . As capas de revistas não nos querem . Os garotos nas escolas não nos querem . Os cargos executivos não nos querem . Os maridos não nos querem . Reparem bem no que dizem . Está tudo assim desproporcional , Grande demais ou escuro demais . Pelo menos ajeitem esses cabelos . Ensinaram a moldar nossos corpos , A tirar nossa expressividade . Nos ensinaram coreografias pré-moldadas , Em que o balanço e a espontaneidade não cabem , E assim, pouco a pouco deixamos de dançar . Somos corpos reprimidos que pairam Por medo de errar a coreografia , De errar a medida, de errar… Corpos doentes . Corpos endurecidos . Corpos infelizes . Estão a moldar nossos sentimentos , A negligenciar nosso sentir .

Nos ensinaram a ser fortes . Aguentar o sol forte queimando na cara Ao carregar a lata d´água na cabeça , A aceitar humilhação da patroa , A parir sem gritar ou gemer , A criar os filhos sozinhas . A esconder o choro de solidão , A não pedir ajuda a ninguém , A esquecer de si mesma . Nos ensinaram a calar . A não dizer o que sentimos, nem o que pensamos . As coisas são como são e ponto. Tá entendido?! Na prática ninguém costuma mesmo Dar ouvidos a uma mulher, a uma negra . Que diferença faz o que você disser? Quantas vezes adiantou falar? Eles sempre dirão “Você só fica bonitinha assim, calada” Aprender a calar antes que te calem . (…) Então um dia Outras mulheres negras Das mesmas fileiras que nós Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido Era uma grande farsa . Foi quando aprendemos a lutar . Ressurgir das cinzas (Esmeralda Ribeiro) ⁷

Sou forte, sou guerreira , Tenho nas veias sangue de ancestrais . Levo a vida num ritmo de poema-canção , Mesmo que haja versos assimétricos , Mesmo que rabisquem, às vezes , A poesia do meu ser , Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída no chão” . Sou destemida Herança de ancestrais , Não haja linha invisível entre nós , Meus passos e espaços estão contidos Num infinito tonel , Mesmo tendo na lembrança jovens parentes que , Diante da batalha, deixaram a talha Da vida se quebrar , Mesmo tendo saudade cultivada no portão , Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída no chão” . Sou guerreira como Luiza Mahin , Sou inteligente como Lélia González , Sou entusiasta como Carolina de Jesus , Sou contemporânea como Firmina dos Reis Sou herança de tantas outras ancestrais . E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá , mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar , mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça

mesmo assim tenho este mantra eu meu coração: “Nunca me verás caída ao chão” . Sou da labuta, sou de luta , Herança dos ancestrais Trabalhar, trabalhar, trabalhar Mesmo que nos novos tempos irmãos seduzidos Pelo sucesso vil me traiam, nos traiam como Judas Sob a mesa , E tirem meu, seu ganha-pão Mesmo que esses irmãos finjam que não nos veem , Estarei ali ou onde ele estiver, estarei de corpo ereto, inteira , Pronunciando versos e eles versando sobre o poder , mesmo assim tenho este mantra eu meu coração: “Nunca me verás caída ao chão” . Me abraço todos os dias , Me beijo , Me faço carinho, digo que me amo, enfim , Sou vaidosa espiritual , Mesmo com mágoas sedimentadas no peito , Mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do meu jeito , mesmo assim tenho este mantra eu meu coração: “Nunca me verás caída ao chão” . Me fortaleço com os ancestrais , Me fortaleço nos braços dos Erês , Podem pensar que me verão caída no chão , Saibam que me levantarei Não há poeiras para quem cultua seus ancestrais , Mesmo estando num beco sem saída, levada por um mar de águas ,

Mesmo que minha vida vire uma maré , Vire tempestade, sei que vai passar . Porque são meus ancestrais que se reúnem num ritual secreto Pra me levantar . Eu darei a volta por cima e estarei em pé, coluna ereta , Cheia de esperança, cheia de poesia e com muito axé Por isso, desista , tenho este mantra eu meu coração: “Nunca me verás caída ao chão” . Antes de saber do pente (Nayla Carvalho) ⁸ Antes de saber do pente que penteia meu cabelo Procure saber da força de quem rege minha cabeça Estude sobre a história daqueles que me antecedem Saiba o valor do sangue que percorre as minhas veias Antes de saber do pente que penteia meu cabelo Vá perguntar ao seu povo o que ele fez do meu Vai ouvir sobre miséria, genocídio e violência Ouça bem e não se esqueça, pois meu povo não esqueceu Antes de saber do pente que penteia meu cabelo Leia, veja, sinta e ouça o que ensinam meus irmãos E se estiver pensando em samba, futebol e Capoeira Somos grandes referências, mas não termina aí não Antes de saber do pente que penteia meu cabelo Saiba que a luta segue e extinguirá a opressão Ao nos encontrar nos fóruns, consultórios, presidência Reprima seu preconceito, acostume-se à visão Saiba: não é qualquer pente que penteia meu cabelo

E não aceito qualquer nome para lhe dar definição Crespos são os fios que tranço, prendo, solto e não aliso Ruim é sua ignorância, duros os meus versos são . Guerreiros (Cidinha da Silva) ⁹ Contam que naquela época havia os pretos forros que não adotavam para os filhos o sobrenome dos escravizadores. Nem queriam entregá-los aos Santos, a Jesus, aos Passos ou aos Anjos. Por outro lado, também não tinham sobrenome africano que lhes valesse . Inventaram então um jeito de transformar nome em sobrenome e assim nasceram as famílias Belizário, Felisberto, Juliano, Mariano, Eleutério, Hemetério e tantas outras, batizadas com o nome do patriarca. Estavam criados os brasões dos negros . II. Percepção da natureza interligada da opressão A segunda tendência dessa produção é a visão da natureza interligada da opressão. De acordo com Hill Collins, o foco de investigação de mulheres negras costuma determinar quais são os elos entre as subalternizações com base em classe, raça e gênero. Os textos de Nascimento e Ribeiro, ao denunciar o genocídio da população negra, vinculam a condição de vulnerabilidade ao pertencimento racial e de classe, principalmente das vítimas da violência policial e da violência simbólica (vinda, também, da academia), respectivamente: Douglas, Amarildo e Cláudia (Jenyffer Nascimento) Douglas poderia estar em um cursinho pré-vestibular gratuito Já que a escola não o preparou para as universidades públicas E quem sabe com dedicação e esforço ano que vem seria ele O próximo aluno negro a entrar em Geografia na UNESP De mudança para Presidente Prudente , Levando na bagagem os sonhos colhidos na Zona Norte . Não deu tempo . Só conseguiu balbuciar: Por que o senhor atirou em mim? Amarildo poderia estar contando histórias para seus filhos ,

Que nem só de dourado vive o pescador e que há peixes grandes Nesse mar imenso desse tal Rio de Janeiro, fevereiro e março … E quem sabe estivesse de emprego novo, salário digno , Sem a hipocrisia de um patrão pagar R$ 300 ao mês para um pai de 6 filhos . Mas naquele dia era só pra ser o divertimento , Ver o jogo do Vasco x Flamengo . E nunca mais voltou , O desaparecido . Do morro aos quatro cantos do mundo: Onde está o Amarildo? Claudia poderia estar preparando um bolo com cobertura de chocolate Para o aniversário de sua sobrinha mais nova . Quem sabe naquele domingo estivesse ouvindo Paulinho da Viola ou Jorge Bem para se distrair , Sem pensar no peso dos serviços gerais , Que desde a escravidão pesava para Pessoas de sua cor . Mas não, foi apenas comprar o pão . De troco, a carne exposta no chão . Deu no jornal, virou notícia . Mas ninguém se comove . Quando gente preta morre , Pelas mãos da polícia . Ninguém . Isto não é um poema . Menimelímetros (Luz Ribeiro)9 os meninos passam liso

pelos becos e vielas você que fala becos e vielas sabe quantos centímetros cabe em um menino? sabe de quantos metros ele despenca quando uma bala perdida o encontra? sabe quantos nãos ele já perdeu a conta? quando ceis citam quebrada nos seus tccs e teses ceis citam as cores das paredes natural tijolo baiano? ceis citam os seis filhos que dormem juntos? ceis citam o geladinho que é bom por que custa 1,00? ceis citam que quando ceis chegam pra fazer suas pesquisas seus vidros não se abaixam? …. num citam, num escutam só falam falácia! é que ceis gostam mesmo do gourmet da quebradinha é um sarau, um sambinha mas entrar na casa dos menino que sofrem abuso de dia não cabe nas suas linhas suas laudas não comportam os batuques dos peitos lage vista pro córrego seu corretor corrige a estrutura de madeirite quando eu me estreito no beco feito pros meninos “p” de (in)próprio eu me perco e peco por não saber nada por não saber geografia invejo tanto esses menino mapa

percebe, esses menino desfilam moda havaiana azul e branca e preta número 35 / 40 e todos que é tamanho exato pro seu pé número 38 esses meninos tudo sem educação que dão bom dia, abrem até portão tão tudo fora das grades escolares tão sem escola nunca teve reforço de ninguém mas reforça a força e a tática do tráfico mais um refém os menino sabem nem escrever mas marcam os beco tudo com caquinhos dos tijolo PCC, vê? num vê! esses meninos que num tem nem carinho são muitas vezes pés no chão num tem carrinho preso no barbante pensa que bonito se fosse peixinho fora d’agua a desbicar no céu mas é réu na favela lhe fizeram pensar alto voa, voa … aviãozinho o menino corre, corre, corre faz seus corres … podia ser até flexa, adaga, lança mas é lançado fora

vive sempre pelas margens na quebrada do menino passa nem ônibus pro centro da capital isso me parece um sinal é tipo uma demarcação de onde ele pode chegar e os menino malandrão faz toda a lição acorda cedo e dorme tarde é chamado de função queria casa mas é fundação . tem prestígio, não tem respeito é sempre o suspeito de qualquer situação ceis já pararam pra ouvir alguma vez o sonho dos menino? é tudo coisa de centímetros um pirulito um picolé um pai uma mãe um chinelo que lhe caiba nos pés e quando retinto o menino mais fácil de ser extinto seus centímetros não suportam 9 mililitros esses meninos sentem metros! III. Culturas de mulheres negras O terceiro tema são as culturas das mulheres negras. É neste lugar que, segundo a autora, auto definições e auto avaliações não apenas são criadas, mas, transmitidas. Hill Collins chama a atenção, principalmente, para os domínios inexplorados da vivência de mulheres negras – como a irmandade ( sisterhood ) e a maternidade (laços afetivos com filhos e família estendida) – e as diversas manifestações de artes (ou expressões criativas) das mulheres negras. Identifiquei na arte, na poesia de mulheres negras, a possibilidade

de sublimar a realidade ou de reinventá-la. Esse objetivo é bastante evidente na escrita de Evaristo e Sobral e, de forma indireta, no texto de Pilar e Maria de Jesus. A escrita tem uma função reveladora e, nela, estão impressos os “domínios inexplorados de vivências” – como, por exemplo, a maternidade em Evaristo, em “Para a Menina”: Ao escrever … (Conceição Evaristo) ¹⁰ Ao escrever a fome Com a palma das mãos vazias Quando o buraco-estômago Expele famélicos desejos Há neste demente movimento O sonho-esperança De alguma migalha-alimento . Ao escrever o frio Com a ponta dos meus ossos E tendo no meu corpo o tremor Da dor e do desabrigo , Há neste tenso movimento O calor-esperança De alguma mísera veste . Ao escrever a dor , Sozinha , Buscando a ressonância Do outro em mim Há neste constante movimento A ilusão-esperança Da dupla sonância nossa . Ao escrever a vida No tubo de ensaio da partida

Esmaecida nadando , Há neste inútil movimento A enganosa-esperança De laçar o tempo E afagar o eterno . Não vou mais lavar os pratos (Cristiane Sobral) ¹¹ Nem vou limpar a poeira dos móveis Sinto muito. Comecei a ler Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi Não levo mais o lixo para a lixeira Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos a estética dos traços, a ética A estática Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros mãos bem mais macias que antes e sinto que posso começar a ser a todo instante Sinto Qualquer coisa Não vou mais lavar Nem levar . Seus tapetes para lavar a seco Tenho os olhos rasos d’água Sinto muito Agora que comecei a ler, quero entender O porquê, por quê? E o porquê Existem coisas

Eu li, e li, e li Eu até sorri E deixei o feijão queimar… Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto Considere que os tempos agora são outros… Ah , Esqueci de dizer. Não vou mais Resolvi ficar um tempo comigo Resolvi ler sobre o que se passa conosco Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi você foi o que passou Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto Desalfabetizou Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis Não tocarei no álcool Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar Meu tênis do seu sapato Minha gaveta das suas gravatas Meu perfume do seu cheiro Minha tela da sua moldura Sendo assim, não lavo mais nada e olho a sujeira no fundo do copo Sempre chega o momento De sacudir, de investir, de traduzir

Não lavo mais pratos Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo Em letras tamanho 18, espaço duplo Aboli Não lavo mais os pratos Quero travessas de prata, cozinhas de luxo E jóias de ouro Legítimas Está decretada a lei áurea . Quarto de despejo: diário de uma favelada (Carolina Maria de Jesus) ¹² 09 de maio: …Eu cato papel, mas não gosto, então eu penso: Faz de conta que estou sonhando . Os pés me levam para meus sonhos (Tula Pilar) ¹³ Caminho pela cidade Caminho pelo mundo Buscando meus desejos … Estive aqui Estive lá Estou junto de mim! Volto na infância Onde os pés libertaram-me Pelos campos de terra vermelha das Minas Gerais Corri para brincar de pique esconde Pular corda, amarelinha – Joga a bola! – Olha a pipa no céu junto com o arco-íris! – Choveu!

A água da chuva na enxurrada … Nossa roupa cheia de barro! – Xiii! A mãe vai bater na gente! – Vamos lavar na cachoeira! – Não! Lava na lagoa! – Na água do rio! – Bate os pés! Nada rápido senão, afunda! – Está de noite, vamos para casa?! – A mãe vai chegar! – Tia, acenda a lamparina! – Machucou o pé de novo, menina! Pés com eternas marcas de infância Dormem para descansar … Acordam cedo para trabalhar Caminham para o centro da cidade Os pés me levam para onde quero ir … Para onde posso sonhar! Para a menina Para todas as meninas e meninos de cabelos trançados ou sem tranças (Conceição Evaristo) Desmancho as tranças da menina E os meus dedos tremem Medos nos caminhos Repartidos de seus cabelos . Lavo o corpo da menina E as minhas mãos tropeçam Dores nas marcas-lembranças

De um chicote traiçoeiro . Visto a menina E aos meus olhos A cor de sua veste Insiste e se confunde Com o sangue que escorre Do corpo-solo de um povo . Sonho os dias da menina E a vida surge grata Descruzando as tranças E a veste surge farta Justa e definida E o sangue se estanca Passeando tranquilo Na veia de novos caminhos , Esperança . Para finalizar (e recomeçar): intelectualidade e arte a partir de outros lugares Carolina Maria de Jesus a inspirar Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, que inspiraram Cidinha da Silva e Tula Pilar e que, juntas, abriram caminhos para as mais novas Jenyffer Nascimento, Nayla Carvalho, Luz Ribeiro e Cristiane Sobral. Todas chegaram até mim graças a um esforço duplo: o delas mesmas, no sentido de serem publicadas (vale ressaltar que a maioria dessas obras é fruto de produções independentes) ¹⁴ , e do meu, quando tentava descobrir se havia e quais eram as escritoras negras brasileiras. A leitura desses textos e daqueles de tantas outras mulheres desvela aspectos silenciados na história. Cada poesia e cada crônica corroboram para a afirmação de bell hooks, quando diz que experiências e trajetórias pessoais oferecem novas possibilidades de mapeamento de jornadas teóricas (2017, p. 103) e, acrescento: práticas. Tomar conhecimento dessas obras tardiamente fez com que, enquanto mulher negra, eu tivesse uma formação na qual estava presente a sensação de não ter espelhos – como afirmaria a intelectual negra Bianca Santana. ¹⁵

O não reconhecimento da capacidade criativa e intelectual dessas outsiders tem consequências que vão da nossa não identificação como intelectuais ao nosso afastamento, consciente ou inconsciente, de ambientes da escrita e da arte. A criança e adolescente que fui gostariam de ter lido sobre a beleza dos meus cabelos, sobre a história de resistência dos meus antepassados, sobre o fato de a violência incidir, de forma desproporcional, sobre pessoas parecidas comigo, não ser coincidência ou acaso; sobre, enfim, a possibilidade de criação de novas realidades, apesar da crueldade das desigualdades. Talvez fossem essas pessoas que eu gostaria de ver a falar na TV na condição de especialistas em Direito, Economia, Sociologia e Literatura porque, de fato, o são. Nessas linhas, mobilizei – direta ou indiretamente – o trabalho de dezessete mulheres negras ¹⁶ e, ainda que brevemente, trouxe suas minibiografias – a partir das palavras delas mesmas, em notas de rodapé –, para afirmar que potentes contribuições podem vir de “outros lugares” e que nomear ou apresentar trajetórias são fontes de conhecimento, sobre o mundo e sobre nós mesmos – independentemente de nossas identidades. Notas 1Esse texto foi escrito no segundo semestre de 2017 e segue para publicação após três anos. Na nota 13 afirmo que a única autora mobilizada no texto que não estaria viva era Carolina Maria de Jesus. No ano de 2019, perdemos a poetisa Tula Pilar, precocemente, aos 49 anos. Dedico esse texto à sua memória. 2 bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins. É uma homenagem da autora afro-americana à sua bisavó Bell Blair Hooks e é grafado em letras minúsculas por opção própria, a fim de enfatizar que mais importante do que seu nome ou títulos é o conteúdo de sua produção. 3 Para uma aproximação a esse rico universo de produção, ver o trabalho da pesquisadora negra Érica Peçanha do Nascimento (2009). Em sua pesquisa, a autora trata da cena dos saraus em São Paulo e da produção dos poetas Ferréz, Sérgio Vaz e Sacolinha. Reconheço a importância da produção de homens negros para a literatura negra e, embora não a explore neste texto, recomendo, principalmente, a leitura dos Cadernos Negros – série independente de obras de autores/as negros/as publicada, ininterruptamente, desde 1978. 4 Essa formulação é fruto de trocas frutíferas com a amiga – também intelectual negra – Walquíria Tiburcio Limonti (que é pesquisadora em Educação, especialista em estudos brasileiros e bacharela em Gestão de Políticas Públicas).

5 Composta por David Nasser, a letra da canção é: Ondulado e permanente// Teu cabelo é de sereia// E a pergunta que não sai da mente// Qual é o pente que te penteia// Quando tu entra na roda// O teu corpo bamboleia// Teu cabelo a couve flor// Tem um “que” que me tonteia// Minha nega, meu amor// Qual é o pente que te penteia// Misamplis a ferro e fogo// Não desmancha nem na areia// Toma banho em Botafogo// Qual é o pente que te penteia// Nega do cabelo duro// Oh nega// Qual é o pente que te penteia// Qual é o pente que te penteia// Qual é o pente que te penteia. 6 Jenyffer Nascimento se apresenta como mulher negra e nordestina que tem “formação em conversar com gente, em ler, em andarilhar pelas ruas e chegar atrasada” e “que estuda jornalismo em uma UNI da vida” (Souza e Faustino [orgs.], 2013). 7 Esmeralda Ribeiro é jornalista e escritora e define sua relação com a literatura como uma relação de amor e a escrita como um ato de vida: “Escrever é um ato de vida. É o ponto de equilíbrio de saúde mental e intelectual. Incorporação literária, que contém ancestralidade, realidade, ficção, premonição. Uma relação de ativista” Cf.: Frederico et al ., 2017. 8 Nayla Carvalho é jornalista. Afirma que o jornalismo trouxe a escrita, mas essa era limitada ao trabalho por conta de uma dura autocrítica que a bloqueava. Culturas e poetas e escritores de periferia são suas principais referências. Cf.: Souza e Faustino (orgs.), 2013. 9 Cidinha da Silva se define como “mulher negra, mineira, que escolheu São Paulo para viver e criar a partir de um pensamento afro-centrado”. Escreve desde criança, mas publicou pela primeira vez em 2006. Cf.: Sales, 2015. 10 Luz Ribeiro afirma que “falta um todo para ser considerada poetisa” e que é “garatujadora de palavras, bacharel em educação física e licenciada em pedagogia”. Define a escrita como ato de libertação. Cf.: Souza e Faustino (orgs.), 2013. 11 Conceição Evaristo é escritora, doutora em literatura comparada. De origem simples, a autora define o ato de escrever como a “senha para acessar o mundo”: “Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco a dor, eu digo um pouco… Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança. Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo”. Cf.: Evaristo, 2006. É dessa autora o bonito conceito de escrevivência . 12 Cristiane Sobral é escritora, atriz e professora. Sobre seu processo de escrita, afirma: “Estou empenhada em provocar a reflexão sobre a humanidade de negros e negros além dos estigmas, escrevo sobre sua subjetividade em minhas obras, quero contar nossas histórias, nossas memórias, destacar nosso legado na construção planetária”. Cf.: Lima, 2016. 13 Carolina Maria de Jesus é escritora – a única que mobilizo neste texto que não está viva. Sua obra é hoje reconhecida e recomendo fortemente a

visita ao portal Vida Por escrito: portal biobibliográfico de Carolina Maria de Jesus . Dos muitos depoimentos de Maria de Jesus, gosto de quando descreve a emoção de ver seu livro publicado: “Fiquei alegre olhando o livro e disse: ‘o que sempre invejei nos livros foi o nome do autor’. E li o meu nome na capa do livro. Carolina Maria de Jesus. Diário de uma favelada. Quarto de despejo’. Fiquei emocionada. É preciso gostar de livros para sentir o que eu senti”. (Maria de Jesus, 2007, p. 195). 14 Tula Pilar foi escritora. Afirmava que o que a motivou a concluir o ensino médio e a se interessar por literatura foi a negativa de um ex-patrão em promovê-la porque seria quase analfabeta: “o desejo de escrever foi sufocado na infância, eu não tinha livros e quando ia fazer faxina com minha mãe, ficava encantada com as bibliotecas das mansões, mas os patrões me proibiam de pegar os seus livros e ainda rasgavam os papéis que carregava”. O divisor de águas para a produção de literatura foram os saraus. Cf.: Souza e Faustino (orgs.), 2013. Maitê Freitas e Carmen Faustino, respectivamente jornalista e escritora negras, organizaram a obra “Pilar futuro presente: uma antologia para Tula”, ainda no ano de 2019. Trata-se de uma antologia com textos da autora, entrevista e homenagens de poetisas negras. A venda será totalmente revertida aos filhos de Pilar. 15 Cadernos Negros citado alhures e a antologia organizada em 2013 por Elizandra Souza e Carmen Faustino - ambas escritoras negras - como vias principais pelas quais conheci a maioria das poetisas citadas são emblemáticos nesse sentido. 16 Em “Os espelhos das Yabás” (2017), Bianca Santana apresenta o trabalho de Conceição Evaristo, especificamente o livro “Becos da memória”. A ela, credito a ideia de literatura feita por mulheres negras como a possibilidade de enxergar-se através de um espelho e, também, a sensação em si, que foi possível a mim a partir da leitura de seu livro “Quando me descobri negra” (Santana, 2015). 17 Neste texto, cito dezessete, mas poderiam ser cinquenta, cem, duzentas. Finalizo a reflexão convidando os/as leitores/as a realizarem buscas ativas e navegarem nesse rico universo, incluindo, também, autores negros e escritores/as indígenas, e de diferentes regiões do país. Referências Bibliográficas CARVALHO, N. “Antes de saber do pente”. In: SOUZA, E.; FAUSTINO, C. Pretextos de mulheres negras . Programa “Vai Valorização de Iniciativas Culturais”; Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, 2013. EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face . Trabalho apresentado no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros. Salvador, 13 a 16 de setembro de 2006. _. “Ao escrever”. In: Poemas da Recordação e outros movimentos . Rio de Janeiro: Malê, 2017. _. “Para a menina”. In: Poemas da Recordação e outros movimentos . Rio de Janeiro: Malê, 2017.

FREDERICO, G.; MOLLO, L. T.; DUTRA, P. Q. “Escrever é um ato de vida”: entrevista com Esmeralda Ribeiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea , (51), 276-280, 2017, Disponível em: https://dx.doi.org/ 10.1590/2316-40185118 . Aceso em 30/08/2019. FREITAS, M. e FAUSTINO, C. (orgs). Pilar futuro presente : uma antologia para Tula. Oralituras e Sarau do Binho (ed,), 2019. HILL COLLINS, P. “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. In: Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril, 2016. hooks, b. “Intelectuais Negras”. In: Revista de Estudos Feministas , ano 3, 2º semestre de 1995 p. 464-478, 1995. _. Ensinando a transgredir : a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla – 2ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. LIMA, D. “Pertencimento negro e reflexões acerca do feminino na literatura de Cristiane Sobral”. In: Urdimento , v.1, n.26, p.392-397, 2016. MARIA DE JESUS; C. Quarto de despejo . 9 ed. São Paulo: Ática, 2007. NASCIMENTO, E. P. do. Vozes Marginais na Literatura . Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. NASCIMENTO, J. “Desensinamentos”. In: Terra fértil . Programa Vai Valorização de Iniciativas Culturais; Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, 2014. _. “Douglas, Amarildo e Cláudia”. In: Terra fértil . Programa Vai Valorização de Iniciativas Culturais; Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, 2014. PILAR, T. “Os pés me levam para meus sonhos”. In: SOUZA, E.; FAUSTINO, C.. Pretextos de mulheres negras . Programa Vai Valorização de Iniciativas Culturais; Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, 2013. RIBEIRO, E. “Ressurgir das Cinzas”. In: Cadernos Negros , nº 27, São Paulo: Quilombhoje, 2004. RIBEIRO, L. Menimelimetros . 2016. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=09KDfTVPAeE . Acesso em 30/08/2019. SALES, S. “Entrevista com a escritora Cidinha da Silva”. In: Revista Crioula . (15), 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/ 97042 . Acesso em 30/08/2019. SANTANA, B. Quando me descobri negra . Editora SESI: São Paulo, 2015. _. “Espelho das yabás”. 2017. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/ ocupacao/conceicao-evaristo/escrevivencia/ . Acesso em 30/08/2019.

SILVA, C. da. “Guerreiros”. In: Oh margens! Reinventa os rios! Editora Selo do Povo: São Paulo., 2011. SOBRAL, C. “Não vou mais lavar os pratos”. In: Não vou mais lavar os pratos . 3 ed. Revista e ampliada. Brasília, 2016. SOUZA, E.; FAUSTINO, C. Pretextos de mulheres negras . Programa Vai Valorização de Iniciativas Culturais; Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, 2013. Entrecanto: voz, memória, experiência Bernardo Oliveira 1. “Cantar é vibrar cordas vocais”, canta Tom Zé, em “Multiplicar-se única” ¹ . Uma canção projeta, em primeiro plano, a íntima conexão entre voz particular e canção comunitária; entre sopro e comunhão: “simples prazer de ressoar no ar o som da voz. Canta por nós cordas vocais sem cais, cordas ou nós”. Cantar, gritar: arremessar sílabas, palavras, multiplicidade sonora cujo raio de ação se definirá pelo agenciamento com o ar, o ambiente, os corpos que se expõem ao canto, por vontade ou por contingência. Cantar, gesto impuro de talhada e precisa contenção, que não vem do coração, nem da pureza ou da natureza. A fumaça irrita a garganta, os copos e garrafas tilintam no salão; o bate-papo desvia a atenção da cantora, o ar condicionado cutuca a saúde. Cantar é, também, driblar em movimento, não em direção a uma meta, mas como que delineando uma vertente de força, um caminho que pode tanto ser o da canção como o da improvisação livre. “Improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 117): quem escuta é, por vezes, tomado por uma imprevista sensação de captura, ao passo que, em outros casos, toma-nos uma sensação de ruptura de todas as expectativas, a voz que nos leva a perceber que temos nossas escolhas, mas que essas escolhas podem mudar com um simples golpe de ar. Outras possibilidades surgirão, conforme nos expusermos aos artifícios eficazes das múltiplas vozes que ecoam na música – e não somente nela. 2. Ao longo de todo o século XX, a voz feminina se constituiu como um local particular na música popular, gradualmente ocupado por cantoras capazes de corresponder a trejeitos e a posturas específicas, tanto no palco como no estúdio de gravação. Neste caso, tão impreciso quanto negar as influências socioculturais sobre a trajetórias dessas cantoras, seria diminuir o impacto de seu poder de resistência face às exigências do gosto médio e do mercado. Nas brechas desse conflito incessante entre expectativas e resistências, uma pluralidade de expressões da voz feminina eclodiu na Era de Ouro do disco e do rádio. Isso é ainda mais verdadeiro quando nos referimos à música das Américas: ao timbre aveludado de Billie Holiday; ao lirismo estridente de Aracy de Almeida; à força de Celia Cruz e de Dona Onete; às alturas inimagináveis de Yma Sumac. Não se perde de vista esse fenômeno na Europa, com Edith Piaf; no Japão, com Hibari Misora; na Malásia, com

Saloma; por toda a África, com Miriam Makeba e, mais recentemente, Angélique Kidjo e Oumou Sangaré. Esse modelo de comportamento que alimenta critérios – muitas vezes inquebrantáveis, acerca da voz e da postura femininas – concebe a cantora como um elemento central na economia da canção. Central, porém, passível de ser administrado por uma variedade de fatores, pois se prescreve às cantoras o esmero para realizar com máxima precisão o que as tendências do gosto e do mercado exigem. Uma voz maviosa, límpida e sóbria se associa aos trejeitos econômicos de uma Dóris Monteiro ou de uma Ella Fitzgerald. Quando muito expressiva, que venha acompanhada de algum apelo corporal, como os arranhos e requebros de Elza Soares, ou dos virtuosismos de Dalva de Oliveira. O apelo cultural se exprime sob a forma de uma “ancestralidade”, inerente ao repertório de Clementina de Jesus e, mais recentemente, de Idassane Wallet Mohamad. Trata-se, portanto, de elementos que roteirizam a forma de se cantar e de se portar que mercado e plateia exigem de uma cantora; mas, que, ao longo do século, modularam conforme essas cantoras criavam formas de resistir às imposições do mercado-patriarcado, cada uma com seus próprios meios e métodos. Esse movimento de resistência se opôs às necessidades vagas do gosto médio, produzindo contrastes que abriram caminho para a eclosão do novo, na medida em que as cantoras já não correspondiam, necessariamente, àquilo que lhes era prescrito. Na virada dos anos 1960 para os 1970, cantoras como Janis Joplin e Gal Costa apostaram no grito como forma de romper barreiras e de desconstruir o “lugar de fala” da prima donna . No embate constante entre requisitos coletivos e expressões singulares – por vezes, necessariamente agressivas –, as cantoras recriaram o seu próprio lugar nesse mercado de expectativas. 3. Ao mesmo tempo em que esses embates se davam em diversos palcos ao redor do globo, linhas de fuga, marcadas decisivamente pela ação de algumas mulheres, produziram efeitos ainda mais radicais, no que tangem à experimentação sonora. Trata-se de uma articulação entre os primórdios da chamada música eletrônica, em contato com o que, mais tarde, veio a ser chamado de música experimental (ou, ainda mais especificamente, “arte sonora”). Refiro-me ao trabalho de Jocy de Oliveira, de Pauline Oliveros, de Daphne Oram, de Delia Derbyshire, de Eliane Radigue, de Clara Rockmore, de Else Marie Pade, entre outras. Podemos destacar também, embora associadas a vertentes jazzísticas, Alice Coltrane, Joan La Barbara e, mais recentemente, Linda Sharrock, que propôs um álbum duplo contendo improvisações marcadas por uma radicalidade errante. ² Se nos propusermos a pensar essas duas “linhas de atuação”, sobrevém a tentação de considerar as cantoras do ponto de vista de um alinhamento às expectativas do mercado-patriarcado – isto é, o acordo tácito segundo o qual mulher não toca, não arranja, não inventa: mulher canta, interpreta —, em oposição à rebeldia inventiva dessas pioneiras, preocupadas em operar no plano das frequências, dos ruídos e da espacialização política do som – – o som pensado como uma arma e como uma ferramenta de captação das forças do caos. Felizmente, as coisas não são tão simples: sem abandonar o trabalho com as vozes, e mesmo sem deixar vago esse “local” do canto feminino nervoso-mavioso, algumas artistas contemporâneas parecem incorporar o espírito exploratório das pioneiras da experimentação sonora.

Destaco : o mosaico de interpretações, intervenções, improvisos e dispositivos construídos por cantoras como Juçara Marçal, Ava Rocha e Matana Roberts; o modo como retroalimentam suas trajetórias experimentando a voz, a palavra e o som, constituem, hoje, exemplos dos mais contundentes desse conjunto de movimentos que vêm transformando as expectativas em relação ao canto feminino. 4. Para Juçara Marçal, o canto é um ato de resistência que introjeta o devir ou a vida como movimento. Protagonista em uma série de atividades que deslocam, de maneira incessante, o papel da voz feminina, da cantora no Brasil, Juçara é “cantora” em sentido estrito: impecável tecnicamente, singular em termos de performance, domina seu repertório com maestria. Mas, justamente esse elemento que mantém as cantoras presas no Brasil aos ditames do “bom gosto” ou do gosto médio, ela supera de forma assistemática, abrindo mão de investir em gêneros ou em métodos específicos, apostando, alternativamente, em uma pluralidade e justaposição de gêneros e métodos plasmados conforme o propósito do projeto do qual participa. Com essa atividade múltipla, Juçara vem construindo um cosmos de modulações do canto, particularmente em seu primeiro disco solo, Encarnado ; em Anganga , parceria com o artista sonoro carioca Cadu Tenório; no trio Abismu, em que divide intervenções vocais e sonoras com Thomas Harres e Kiko Dinucci; e em shows como Nós da Voz , particularmente associada a outra cantora sobre a qual falaremos adiante, a também carioca Ava Rocha. Em todos esses projetos, Juçara domina um amplo repertório técnico e cognitivo que vai sendo desembolsado de forma estratégica e, ao mesmo tempo, intensa. 4.1 . Em seu primeiro disco solo, Encarnado , a voz se torna suporte para que ela verse, de muitas formas, sobre o ato e o efeito de resistir. Povoado por personagens reais e imaginários, Encarnado narra as desventuras de seres que resistem. Seres que se encontram isolados no mundo, atormentados por fantasmas e memórias de “três guerras no peito” (em “Velho Amarelo”, de Rodrigo Campos), tomados pelo ódio e pelo medo, errando pelas ruas e se perguntando “que vida é essa?” (em “E o Quico”, de Itamar Assumpção). Seres “sem ombro amigo, com febre e confusos em um precipício” (em “Queimando a Língua” de Alice Coutinho e Romulo Fróes). Ou seres que conversam consigo mesmos, projetando-se, anos depois, envelhecidos. Do outro lado, assistindo ao tenebroso espetáculo da existência, a Morte desabafa: “quero me aposentar pra ganhar tranquilidade, deixando a humanidade matando no meu lugar” (“A velha da capa preta”, de Siba). Encarnado não é um disco sobre a morte, nem sobre a morte que habita um fenômeno maior, que é a vida. Encarnada é a condição de tudo o que vive, suas qualidades instáveis, seus atropelos, variações e desgastes. O encarnado, sobretudo, resiste. Resiste com as marcas de navalha que, por ciúmes, uma mulher rabiscou em sua cara, como descrito em “João Carranca”, composição de Kiko Dinucci. Ressuscita e retorna para “bater até cansar” nos covardes que o assassinaram, como em “Damião”, de Douglas Germano. “Passa na carne a navalha, se banha de sangue” e roga

aos deuses para atravessar momentos excruciantes de um aborto ritualizado (“Ciranda do Aborto”, de Kiko Dinucci). No entanto, o disco abre com uma declaração não propriamente “otimista”, mas afirmativa: “Não diga que estamos morrendo. Hoje não.” (novamente em “Velho Amarelo”, de Rodrigo Campos. O texto de Romulo Fróes para o release do disco tem a manifesta perspicácia de pinçar essa frase como conceito que norteia Encarnado . Apesar de todo o turbilhão de forças externas que o fazem perecer, o corpo pode mais do que resistir. Pode recusar-se a morrer, bradando: “hoje não!”. Metáforas são possíveis na perspectiva de um corpo que resiste, mas não me ocorre nenhum meio mais poderoso de resistência do que a capacidade de experimentação e de invenção, tendo a voz um papel central nessa trajetória. 4.2 . Neste disco, como em outros trabalhos, o canto de Juçara Marçal reúne muitas informações com as quais podemos determinar uma espécie de procedência. A rigor, é possível vinculá-la ao rol das cantoras suaves, como Alaíde Costa, com seu soprano versátil. Sua voz é tecnicamente admirável, mas o assunto aqui não se resume à técnica. Também não me refiro somente à ausência de floreios e de clichês com os quais podemos identificar uma larga porcentagem das cantoras contemporâneas. A capacidade de adequar seu canto à composição, respeitando-a, mas, ao mesmo tempo, capaz de revesti-la por uma qualidade enérgica, exprimindo bom humor sem afetações, ímpeto e tensão dramática. Deflagra-se, então, todo um cortejo de possibilidades, do sussurro rouco ao grito lancinante, que operam uma transformação imprevista: a voz se converte em sopro, em murmúrio, em chamas. A voz que canta pretende resistir ao tempo e, até mesmo, ao espaço que possibilita sua propagação no ar, dispondo-se a transformá-lo, como a navalha transforma o belo João em João Carranca. A arte, a música em particular, resiste como as cicatrizes na face de João Carranca, como o ciclo de vida e morte que anda por toda a parte, como as múltiplas possibilidades da canção, depósito da economia afetiva da multidão. Contudo, a voz de Juçara Marçal resiste no tempo sem advogar por nenhuma tradição ou conservação. Pelo contrário, o repertório de Encarnado é quase integralmente contemporâneo. Todos os compositores estão vivos e operantes, com exceção de Itamar Assumpção – – cuja presença, no entanto, permanece forte entre nós. Mesmo o jovem veterano Tom Zé comparece com “Não Tenha Ódio no Verão”, canção proveniente de seu álbum Tropicália Lixo Lógico . Pela ordem de aparição, é possível elencar um manancial de compositores capazes de enterrar de vez a ladainha da “crise cultural” ou da “crise da canção brasileira”: Rodrigo Campos, Douglas Germano, Everaldo Ferreira da Silva, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Gui Amabis, Régis Damasceno, Kiko Dinucci, Siba Veloso, Thiago França e a própria Juçara Marçal. Se inauguram outra tradição, não vem ao caso, mas são compositores diferentes entre si que, por meio de um recorte preciso, reúnem-se em torno do conceito do álbum. 4.3 . O canto “encarnado” de Juçara Marçal resiste na experimentação, na reinvenção de tradições, sem lançar mão, necessariamente, da empatia por

sonoridades já reconhecidas. Com ímpeto e coragem, lançou-se, ao lado do experimentador carioca Cadu Tenório, às releituras industrial noise ³ dos vissungos (cantos de trabalho dos escravos brasileiros) e cantigas do Congado Mineiro, recolhidos por Aires da Mata Machado e gravados em 1980 por Tia Doca, Geraldo Filme e Clementina de Jesus, no álbum O Canto dos Escravos (Eldorado, 1982). ⁴ Neste registro, percebe-se uma disposição em desafiar preconceitos, um ímpeto de apagar fronteiras entre concepções arraigadas do “tradicional” e do “experimental”, empregando sua voz para modulações imprevistas para as melodias dos vissungos. Interpretando esses cantos de trabalho com instrumentação eletrônica, pôde usar a estratégia de usar a voz para se confundir aos sons eletrônicos e digitais, criando um amálgama de ruídos, zumbidos, estalidos; a voz emulando inclusive sons que não existem, que são captados pela imaginação e traduzidos pelo ímpeto e pelo corpo. Como em Encarnado , a voz é navalha no ar, no ânimo, no corpo, na carne, alvos constantes dos ataques impiedosos do acaso e das causas externas. Cantar é um ato que transforma o ambiente, como o ímpeto calmo e forte com que Pauline Oliveros ataca seu acordeon ou que Linda Sharrock exprime seus improvisos. Por essa razão cantar é mais do que lembrar, mas refazer, modular. O canto “encarnado” de Juçara Marçal resiste. 5. Para Ava Rocha, o canto é arma de fogo, química quente que exprime o matriarcado à espreita. Sua trajetória indica uma pesquisa detida acerca de novos modos de enunciar a canção, combinando jogadas intuitivas com estratégias cristalinas de inserção e modulação. Mas algo muda de um disco para o outro. Seu primeiro álbum, Diurno (2011), concebido e gravado com a banda AVA, formada por Daniel Castanheira, Emiliano 7 e Nana Carneiro da Cunha, trazia a cantora madura que a música brasileira acolhe, geralmente, sob o registro inquebrantável da MPB. Revelava-se ali voz e ímpeto perfeitamente assimiláveis aos modos e trejeitos que nutrem as expectativas do gosto médio vigente, ainda que, vez ou outra, emergisse uma fratura, uma modulação imprevista que apontava para um futuro promissor. No álbum seguinte, Ava Patrya Yndia Yracema (2015), tudo parece mudar: no repertório, as canções de uma geração de compositores que rondam o Rio de Janeiro (Negro Leo, Bruno Di Lulo, Marcelo Callado, Domenico, entre outros) revirados em arranjos que oscilam entre o pop , os sons mais arriscados e sínteses eficazes, que surtiram efeitos positivos do ponto de vista do mercado, mas que, ao mesmo tempo, testemunhavam outro momento da cantora e artista, bastante diferente do anterior. Uma prática criativa que faz incidir, sobre a linha sinuosa da canção, um cortejo de gemidos, grunhidos, estalidos palatais e pontos afroreligiosos improvisados. O desdobramento em outras atividades como a produção, a ilustração, o design gráfico, a edição de filmes e de videoclipes, o improviso livre ao lado de Juçara Marçal, a performance ao lado da artista sonora e visual Bella, entre outras atividades, constitui dispositivos de retroalimentação, que alçam a intérprete de canções a um outro patamar. 5.1 .

Lançado em junho de 2018, Trança , terceiro disco de Ava, eleva o uso da voz a outra perspectiva, ainda mais complexa. Trata-se de um trabalho costurado por múltiplas forças que se conjugam para criar texturas e massas sonoras em uníssono, elaboradas como um “muro de som” (wall of sound), a partir de uma fórmula de produção desenvolvida pelo produtor norteamericano Phil Spector. Baixo, bateria, guitarra, percussões diversas (ilu, rumpi, cuíca, conga), rabeca, samplers e sintetizadores se entrelaçam em um equilíbrio relativo, movendo-se entre o poder das canções, a mistura de estilos e a sonoridade experimental. Contudo, o elemento que mais se destaca durante todo o trabalho seja, de fato, a voz e a interpretação da cantora. Observa-se que a voz tem o poder para atravessar a instrumentação, deslocar-se com a velocidade e força plástica capaz de revirar territórios apaziguados e modular em timbres e inflexões sempre surpreendentes. Uma força avassaladora, pontiaguda, cortante, mas quente e amorosa, que domina todo o espaço-tempo do som à canção e além. Há em Trança um forte aspecto de comunhão em um mundo constituído pelas multiplicidades, mas há também a potência individual, subjetiva, expressa por uma sequência de canções batizadas com nomes próprios: Lilith, Dorival, Joana Dark, Bárbara, Patrya, João Três Filhos, Assunção. Uma forte característica do disco são os pontos improvisados, prática na qual Ava já vinha se lançando em shows , sempre a meio palmo do delírio e da memória, recriando, a seu modo, efeitos rítmicos e poéticos característicos dos cantos para os santos do Candomblé. Exemplos dessa inflexão são as canções “Delírio”, “Maré Erê”, “Febre” (com destaque para a cuíca de Ariane Molina) e “Manjar do Oriente”. Ava chega ao seu décimo ano de carreira, com um disco-experiência de caráter coletivo, operando à semelhança da trama de todas as coisas concebida pelo saudoso artista plástico Tunga, uma das grandes inspirações do álbum. 6. Para Matana Roberts, a voz é ferramenta para uma problematização criativa do tempo e da memória, o tempo como um problema filosófico e, por consequência, a memória enquanto algo mais do que um repositório de impressões e de experiências, temas centrais para a arte e para o pensamento produzidos durante o século XX. Compositora, instrumentista, bricoleur , poeta dos sons e das palavras, Roberts instaura operações com o som, o tempo e a memória que expõem um dilema inaudito: se, no passado, a beleza pagã e profunda das sonoridades afro-americanas contrastava com o alijamento do povo negro do processo político, a América pós-Obama lhes obrigou a confrontar outra situação. É preciso, agora, responder a outras necessidades, lidar com o legado dentro de uma perspectiva que vislumbre, ao mesmo tempo, a suspensão do estigma social e as virtudes de um futuro aberto. Não se trata de negar a história ou o sofrimento de seus antepassados, muito menos de fazer vista grossa para as desigualdades raciais que vigoram, ainda mais profundas, nos Estados Unidos de Donald Trump. O canto de Matana parece tatear respostas para perguntas difíceis: é possível livrar-se do ressentimento e extrair positividade de uma experiência traumática? Como lidar com o legado cultural de modo a permitir um outro olhar em direção ao futuro? Sua música autoral visa à reelaboração do legado cultural diaspórico na América sob um ponto de vista “pós-racial”, isto é, um enfrentamento tanto dos conflitos e redefinições

impostas pela América de Obama, como do recrudescimento do racismo da Era Trump, encarados de forma mais complexa do que aquela que separa raças e credos no espírito do capitalismo. Para realizar esse projeto, Matana vem, aos poucos, concebendo uma panaceia sonora capaz de trazer à tona não somente este presente conflituoso e, quem sabe, promissor; mas todo um apanhado de objetos sonoros e de experiências reunidos sob uma técnica particular batizada, inicialmente, como Panoramic sound quilting : “Em suma, é uma linguagem que tenho desenvolvido desde 2005—um sistema de linguagem de som que usa a notação musical ocidental e trechos de ideias visuais, tudo reunido para representar um som coeso, que me intrigue e desafie como compositora e musicista, assim como ao ouvinte.” Munida de uma intuição – – a expressão da América pós-Racial como um dispositivo criativo endereçado ao futuro – – e de uma técnica de composição – – Panoramic sound quilting , espécie singular de tapeçaria sonora —, Matana compõe colorações afetivas, amálgamas impressionistas que têm por objetivo alçar a memória a uma potência de superação, particularmente no disco Coin Coin Chapter 3: River Run Thee . 7. O projeto Coin Coin “consiste em um panorama sonoro programado para doze capítulos voltados à exploração de temas como memória, imaginação e ancestralidade. (…) A intenção é ressignificar os traços dessa cultura em vistas de sua atualização e problematização, não como um balanço retrospectivo, mas como um dispositivo criativo endereçado ao futuro.” Ressignificar, bem entendido: recusar as representações disponíveis, sondar a memória enquanto provedora de imagens e de afetos, amplificar a subjetividade, borrar as fronteiras da representação, remodelar a experiência presente. Se podemos afirmar hoje que o problema político se concentra em uma disputa pelo espaço da imaginação pública, é possível identificar no embaralhamento sonoro-afetivo proposto por Matana a marca indelével de uma artista capaz de vincular experimentação e política como poucos no panorama da música contemporânea. 8. A cada volume, um desenvolvimento particular do conceito e da técnica. No terceiro volume da série, uma surpresa: ela está sozinha. Não divide mais com os músicos a responsabilidade de mediar expressão sonora e conceitual. Ela é responsável por tudo: conceito, som, disposição dos elementos, apresentação em concerto. De início, percebe-se que o conteúdo provocador sobressai. No concerto realizado em 2013, no Rio de Janeiro, ela, negra, adentra o palco com um “ black face ”. No lançamento do álbum, em janeiro de 2015, em Nova Iorque, duas bandeiras, a norte-americana e a dos Confederados, a segunda operando uma função semelhante àquela desempenhada pelo “ black face ” no show do Rio. Sobre a bandeira norteamericana, dois objetos simbolizando a passagem do tempo: uma vela vermelha acesa (o tempo queimando, o tempo subjetivo) e uma ampulheta (o tempo contável), volta e meia revirada. Um livro de São José e um fichário sugerem as palavras, cantadas, sussurradas, gritadas, exorcizadas, expelidas. Saxofone, clarinete, samplers e eletrônicos construindo com sons um cenário pós-racial, mas, ainda assim, conflituoso, distópico.

9. A ideia não parece estranha se levarmos em consideração o aspecto autobiográfico do projeto: “Coin Coin” é o apelido de Marie Therésè Metoyer, escrava liberta que, no século XVIII, fundou uma comunidade em Cane River, Louisiana, onde outros negros libertos tinham acesso a grandes oportunidades. Segundo Matana, seus pais foram criados nessa região e, através de contos e estórias, cultivavam a memória de Coin Coin. “Ela foi o primeiro arquétipo feminino forte, além de minha mãe e minha avó, e isso foi exposto sob a forma de narrativas ( storytelling )”, declarou à revista Wire, em 2015. A presença da memória de Coin Coin pode causar a impressão de que se trata de uma viagem ao passado. Mas basta escutar faixas como “Kersalia” para adiar essa impressão. A composição condensa, de forma absolutamente particular, declamações, estilos jazzísticos de épocas diferentes ( fire music e dixieland ), de forma a suspender a sucessão temporal em favor de um tempo mítico, concentrado não sobre a cor da pele, mas sobre a gama de experiências. 10 . Uma das ferramentas mais intrigantes nesse som panorâmico que Matana desenvolve é a utilização da sua e de outras vozes, seja para declamar trechos de escritos seus e de outros autores, seja para flertar com as frequências do saxofone e de outros instrumentos. Seu canto emerge com destaque no capítulo dois de Coin Coin ( Coin Coin Chapter Two: Mississipi Moonchile , Constellation Records, 2013), embora no primeiro ( Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres , Constellation Records, 2010) sua aparição seja mais contundente com os gritos ensandecidos de “I Am”: “Eu não estou nem um pouco interessada em ser vista como uma vocalista. Eu realmente não sei cantar muito bem, e não trabalho o canto da mesma forma que o saxofone, mas Coin Coin para mim é um trabalho de folk music experimental do século XXI. E cantar é uma parte importante das tradições da folk music . Eu até costumo fazer o público cantar com as bandas durante estas performances. Mas o Capítulo 2 pediu muito mais o uso da voz do que o Capítulo 1, por razões que eu realmente não posso explicar. Foi apenas a forma como a peça saiu de mim. Eu sempre vou pelo instinto primeiro, e muitas vezes a música me diz mais o que fazer do que eu digo.” 11 . Em comparação com os dois primeiros volumes, Coin Coin Chapter Three: River Run Thee é, de longe, o que mais trabalha com vozes. A colagem é, sem dúvida, mais complexa que nos discos anteriores. Não se percebe imediatamente o papel de cada instrumento, eles estão justapostos e modulam, com as vozes, sons do cotidiano, ruídos de naturezas diversas, rumores. O amálgama impressionista sobressai à própria noção de “instrumentação”. Composto por uma miríade de elementos, River Run Thee ensaia tempos simultâneos através de gravações de campo extraídas de uma estadia temporária no inverno do Mississipi/Tennessee/Louisiana e da “caótica Nova Iorque do século XXI”; trechos de um discurso de Malcom X (“Confronting White Opression”, 1965); excertos dos escritos de Captain G.L. Sullivan e de W.M. Scott; canções de domínio público como “Star

Spangled Banner” (Francis Scott Key), “Beautiful Dreamer” (Stephen Foster), entre outras. Matana canta, fala, toca seu saxofone alto, um piano vertical Archambault do início do século passado, sintetizadores. A impressão de caos sonoro da primeira audição vai se transformando em uma torrente de acontecimentos e de impressões com caráter indefinido. No entanto, ainda assim, a impressão de um rio correndo em fluxo desenfreado não cessa. Coin Coin 3 não é um disco de “faixas”, mas de afetos que atravessam a experiência da audição. Epílogo Um canto que recusa a representação do palco italiano, da Prima Donna, do local reservado às mulheres pelo Mercado-Patriarcado – – para exprimir uma arte alienígena e endereçada ao futuro; este canto PREFERE abrir mão dos significados e expectativas disponíveis e leva o problema para o campo perigoso e inapreensível da captação do caos, da catalisação do irrepresentável, da pura experiência; mas também de uma lógica interna que não se desfaz por obra de necessidades alheias. As cantoras do “entrecanto” enunciam o impróprio e suas qualidades – – o deslocamento (o drible); um bloco de afetos (uma experiência); uma quebra de expectativas (um acontecimento). As cantoras do “entrecanto” assimilam com parcimônia a informação externa (o alto e bom som da feira livre, do falatório) e a interna (o pathos de distância como contra-tendência). As cantoras do “entrecanto” nos remetem ao caráter fugidio e fascinante que habita “a terceira margem do rio” de que nos fala Guimarães Rosa; ou às margens psico-metafísicas de “Riverão Sussuarana” de Glauber Rocha (“renovela”, “recordel”) que combina narrativa, teatro, poesia e jornalismo, em um estilo particularmente caótico. Cantar para Juçara Marçal, Ava Rocha e Matana Roberts é mais do que lembrar, mas domar o caos. Mais do que honrar as posições fixas e suas glórias, cantar é explorar a massa disforme dos sons que ainda não existem e aguardam, inquietos, a hora e a vez de sua eclosão. Notas 1 Do álbum The Hips of Tradition , 1992. 2 Lançado em 2016 pelo selo Golden Lab Records, Gods é um disco triplo de improvisação livre capitaneado por Linda Sharrock, viúva de Sonny Sharrock. Décadas antes, no álbum de estreia assinado por Sonny como Black Woman , lançado em 1969, Linda apresentava uma concepção de improvisação vocal sem palavras, apenas usando vocalises e articulações aleatórias que pavimentavam uma concepção original de “música estática”, isto é, música composta para conduzir os ouvintes a um estado de êxtase e contemplação. Linda e Sonny Sharrock criaram uma música peculiar, que viria a se somar a um conjunto de discos que caracterizariam a radicalidade jazzística na virada dos anos 1960 para os 1970. 3 Industrial é um termo utilizado para definir o trabalho de artistas que surgiram na virada dos anos 70 para os anos 80, sobretudo no Reino Unido e na Alemanha, influenciados pela “musique concrète” francesa e pelo Futurismo, como por exemplo o Throbbing Gristle ou o Einstürzende Neubaten. De maneira geral, essa música caracterizava-se pela apropriação de sons de sintetizadores, guitarras, percussões, efeitos e objetos em geral

como meio para a criação de um mosaico sonoro tomado por ruídos e concepções contrárias à utilização de melodia e harmonia. Pode-se dizer que este gênero de criação musical se confunde com o surgimento da Noise Music, ou “música de ruídos”, que através do trabalho de artistas como Merzbow e Incapacitants, possibilitou a construção de uma estética declaradamente anti-musical, calcada na elaboração de sonoridades rascantes e de uma performance iconoclasta. 4 O filólogo brasileiro Aires da Mata Machado iniciou a coleta dos vissungos, os cantos de trabalho dos escravos, em 1928, quando visitava São João da Chapada, Diamantina/MG. A pesquisa rendeu o livro O Negro e o Garimpo em Minas Geraes , lançado em 1943 pela Livraria José Olympio. Referências Bibliográficas DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia. V. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997. HELDER, H. O bebedor Noturno . Lisboa: Porto Editora, 2015. [[[Flor d´água]]] Fátima Pinheiro Tenho sempre flores dentro d´água. Desde pequena achava um jeito de colocar uma flor na água. A minha vida sempre foi isso. Colocar uma flor na água. Descobri que existem quatro espécies de flores – d´água e que elas podem ter nomes diversos; o mais lindo é mururé-pajé. Um dia, decidi declarar o meu amor por um rapaz que chamava minhas flores d´água de adágios. Hoje, desenho flores d´água nas páginas brancas quando escrevo em silêncio; às vezes ouço o som delas quando as palavras as ofuscam, outras vezes, quando as irradiam. É difícil escrever. É difícil criar algo vivo, há de se ter olhos para escutar, há de se ter ouvidos para ver. Há de se perder. [[[[[ ]]]]] Tive uma gata chamada Água. Ela era branca, quase cristalina. Água tinha um rio entre os olhos e, quando me olhava, eu tinha a sensação que dali pularia um peixe. Um dia, quando eu escrevia diante de uma janela aberta, ela improvisou uma dança espantosa. Nunca pensei que Água poderia dançar, mas houve um tempo em que ouvíamos durante horas Billie Holiday cantar All of me e, em alguns momentos, o seu miado se confundia com os agudos de Billie. Eu me divertia pensando ter uma gata que cantasse All of me , mas nunca imaginei que ela dançasse como Billie… Ah, isso não! Naquele dia. Água. com seus olhos de rio. cruza, de repente, o meu devaneio e gira, gira sem parar em torno de uma cortina de voil tocada pelo vento. Ela improvisava uma dança, e eu ali pensando que toda a minha alegria diante da cena provinha apenas do vento. Não percebi que Água, dançando com a cortina de voil , não era outra coisa que a atmosfera mais mutável de meu poema. [[[[[ ]]]]]

Depois de ler o trecho de ‘ Silent friend of those far from us ’ de R.M.Rilke, que ele traduzira: “neste passe-mágico nesta cruz-ilhada do sentir mesmo que a materialidade o esqueça como tal sussurre à terra imóvel: ‘– eu estou fluindo.’ diga à água corrente: ‘– eu existo.’” Ela interrompe a leitura e, sem hesitar, sussurra: “…”. A água, então, responde: “tu existes”. Ela sentia falta do que poderia ter sido para ele. No entanto, não lhe faltara coragem de pedir que ele lhe escrevesse um poema depois de um ano sem se verem. Quando ele lhe responde que o seu pedido era um poema de uma sublimidade apaixonante, no sentido mais excitado da palavra tesão , ela, delicadamente, abre o maço de cigarros, rompe o selo do pacote e tira, de dentro, um cigarro; mas, ao invés de acendê-lo, o coloca na boca e pensa na incontinência de seu primeiro encontro com aquele homem. Ela o vira pela primeira vez diante de um chafariz, diante da água caindo. O corpo dele, naquela hora, era um arco-íris que saltava da fonte, sob uma fina camada de cores. O corpo dela era murmúrio d´água. A verdade é que ambos, ali naquele parque, não sabiam que os céus do verão logo incendiariam os seus corpos. Ela acende o cigarro, dá uma tragada e vê a fumaça se diluir em alta onda, de onde poderia abrir seus braços e, ao descer, recolher o amor deixado lá atrás. Estava ali o poema, purpurino. [[[[[ ]]]]] Nado, nado lentamente de uma borda à outra e, de quando em quando, uma nuvem frente ao sol lança um reflexo, prata, que toca meu corpo. Minha mão puxa a água, a recolhe, e ela foge a cada vez. Fecho as pálpebras: entre o nada e eu, há um limite que o meu corpo teima escrever na linha d´água. No vai e vem do meu corpo, na superfície, algo se precipita, uma sensação de calor aquece os meus olhos, dou uma braçada, outra, e mais outra, e o calor continua a aquecer os meus olhos. Os meus braços não conseguem traçar um voo para alcançar o calor. Ele permanece concentrado, localizado, como isca nos meus olhos, coisa viva, sem peso. Entre uma braçada e outra, ele está aqui, como concha vazia e quente. Nem mesmo o líquido, azulado, esvaziado, o céu extraem o calor dos meus olhos. Aquecidos, só os meus olhos, no azul da manhã. Mas, de súbito canta-me n´alma estranha satisfação, em meio ao clarão; descubro em contato com a água fria que são as minhas lágrimas, que dos meus olhos vertem. Saio da piscina e o meu corpo testemunha algo que o ultrapassa: a fulgurante luz de um azul impossível. [[[[ ]]]] Enquanto olhava para as bolhas d´água que saíam do copo antes de beber o primeiro gole, lhe veio à cabeça um trecho de Kafka, em “Carta ao pai”, que lera pela manhã. Essa lembrança lhe chegara àquela hora da tarde como um

raio e, sem fixar os fatos, um parágrafo desprendeu-se do texto, como algo que pende de uma parede: “uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com certeza não de sede, mas em parte para obedecer, em parte para distrair… depois você me tirou da cama me levou para a pawlatsche e me deixou sozinho ali diante da porta fechada”. Ela sempre admirara Kafka, não somente por ele ser um escritor que não interpreta fatos, mas porque ele relata a própria experiência vivida. Quantas e quantas vezes ela lera Kafka e se lembrara de um fragmento com tamanha força? Muitas vezes, certamente, mas talvez essa tenha sido a primeira vez com tal nitidez. Contudo, perguntara-se se, de fato, lera Kafka como deveria lê-lo, detendose nos pontos enigmáticos, e lhe ocorreu que não. Deu-se conta que aquela lembrança lhe servira como corte, ao recompor o texto em outro tempo, o que antes seria impossível. Entretanto, algo lhe chamara especial atenção, naquele trecho que lhe retornara aquela tarde. Não havia ali mediação possível entre os dois tempos da cena, um em que a criança pede água e, outro, em que o pai a deixa só diante da porta fechada. Havia entre um tempo e outro da experiência um corte tão agudo que ela pensou ser esse o ponto opaco, o de uma letra, que nem mesmo as bolhas de um copo d´água, antes de ser bebido, poderiam tornar visível. [[[[ ]]]] O barulho da água jorrando na torneira da pia não me deixou ouvi-lo abrir a porta do consultório. Quando sai do banheiro, vi a porta entreaberta e esperei pelo seu chamado. A porta continuou entreaberta por alguns minutos e, dali, daquela fresta, pude ouvir o seu silêncio. De imediato, me dirigi à porta e ele estava de pé, me esperando. Ofereci-lhe por entre as mãos um presente, um pacote que ele abriu rapidamente, fitando-me com surpresa. Por dentro do papel-celofane azul, desponta a imagem de um Saci negro, com uma única perna. Imediatamente, deito-me no divã esperando que ele se desvencilhasse do Saci e sentasse em sua cadeira. Mas, de repente, num ímpeto, ele salta sobre uma escultura e coloca o Saci ali, a se equilibrar em uma perna só. Imóvel, tenho uma vaga sensação de estar sendo convocada em caráter de urgência para algo imprevisível. Logo a seguir, com um movimento autônomo, ele novamente salta na direção de uma pilha de jornais que estava sobre a escrivaninha e, ali, coloca o pequeno Saci, como sombra distorcida, em cima da pilha. Em meus olhos havia curiosidade e espanto. Eu, deitada no divã e ele, em torvelinho a aquecer a minha retina com aquele objeto negro, claudicante, em completo equilíbrio. Com outro salto, leve e silencioso, como que subisse no ar, ele olhou o Saci com um sorriso inexplicável de criança. A cada salto, parecendo saber, profundamente, que tudo o que se oferece pode se esvanecer e desaparecer, ferido de mortal beleza, ele não era outra coisa senão o Saci. Naquele instante, suspenso por uma única perna, no salto do vazio significante, ele localizou em mim um não sei que , que passou a arder como brasa. [[[[ ]]]] Águas profundas, a chuva bate no chão, pontiaguda. No céu nuvens brancas sob o céu negro avançam com furor, acompanhando o som grave da música Seicho no ketto , de Shigeru Umebayashi, no CD player , em crescente intensidade. De repente, o som cessa. Ele não se cansa de tocá-la, primeiro

com as pontas dos dedos; depois, com toda a mão. Por alguns segundos, ela espreguiça e o olha; depois, fecha os olhos e dorme. Ele olha para o ventilador girando no teto. Levanta-se, vai até a mesa e escreve no papel: “não há lugar de peregrinação comparável ao teu corpo nele encontra-se o Ganges, Benares, a Lua, o Sol e todos os lugares sagrados . no meio um grande fogo . uma chama sutil . que é Indra…” H. Em seguida, veste-se, sai pela porta e desce o elevador. Mas nada, dali em diante, poderia garantir a ela que o teria. [[[[ ]]]] Uma mulher traz no vestido uma flor d´água, o vestido é costurado com pequenas algas azuis, cujas linhas tentam enxugar o mar que o habita. Ele possui uma saia plissada de ar, inflada por uma rajada de vento. Na parte da frente, vê-se uma pala azul, de um azul quase branco, como nuvem num céu de desmantelo. A lateral da saia de um azul quase negro é bordada com fumaça d´água de cima a baixo. A blusa, ajustada ao corpo, desenha marcas d´água na seda branca. Nas mangas, as conchas, como pequenas letras, escrevem o vasto nada. O decote se abre como uma fenda, de onde se pode ouvir o som das ondas. [[[[ ]]]] Ao entrar na escola, aos seis anos, o inesperado me tomou de jeito. O que até então fora desenho, garatuja, em folhas de livro que eu adorava rabiscar, rasgar, colar, molhar – criando coisas díspares que eu costurava como se fosse tecido – algo inteiramente novo surge. Diante do caderno de caligrafia eu deveria desenhar as letras e, não mais, juntar os objetos, os dias, as cores, os bichos, as flores, as pedras. Eu deveria desenhar as letras copiando-as, o que me parecia totalmente fora do sentido das coisas. Com a letra “a”, vogal vagante e cifra de puro vazio, eu experimentei o mais inaudito: não conseguia desenhá-la, sua perna ora saia muito curta, ora muito alongada, algo ali sempre escapava, como água. Desenhar a letra “a” era como se fosse segurar a água com as mãos, coisa impossível. Depois de me ausentar por alguns dias da escola, minha professora me interroga sobre o motivo de minha ausência e, ao revelar a minha dificuldade de desenhar a letra “a” de maneira idêntica à do modelo, ela disse: “Mas cada um tem a sua letra a”. Passado um tempo, escrevi sobre “um grão de areia” para um concurso nacional de contos infantis e recebi a notícia de que havia sido premiada. Minha professora, que tinha voz de água corrente, sussurrou baixinho, minutos antes da entrega do prêmio: “a” de areia.

[[[[ ]]]] Com medo de que eu morresse afogada no mar, meu pai me levou até um salva-vidas e lhe pediu que me ensinasse a nadar. O salva-vidas, que se chamava Mário, uma mistura de mar e rio, me ofereceu uma boia e me fez flutuar. Para o meu espanto, não pude encontrar o mar cuja extensão eu temia; não porque esse temor tivesse sumido, mas porque o meu corpo estava agora revestido de um veludo azul que eu podia tocar e a que minha pele podia aderir. Isso porque ao longe, um sopro de voz, um vento, fazia de meu corpo uma gramática viva. Naquela manhã, única, ávida de ar, vestindo um maiô vermelho, eu senti, pela primeira vez, a potência do vento no mar. Senti um leve tremor nas pernas. [[[[ ]]]] Ela pensou que o corpo poderia ser uma “flor muito fresca e mortal” (Helder, 2015), quando disse a ele: quando me chamas, me pegas, me tens, me calas, teus olhos roçam em mim como vento rasante, súbito, que inunda o meu cabelo de cheiros para ti; quando me tens assim, à beira do mar, te calas, desvias e, de novo, vens, de algum lugar, de caminhadas sem fim, vagantes, e eu, olhos ao mar, na onda que vaga, não sei se a fluidez do gesto é líquida, se é fio d´água, se escorre por entre as mãos, se volta. Quando me tens assim à beira do mar, minha pressa é lenta, como quem vem de longe e que não espera chegar. À beira do mar. [[[[ ]]]] Quando meu pai morreu, lhe deixei um poema, como despedida; o vento batia nas folhas da árvore sobre o vermelho do crepúsculo. Molhei teus cabelos brancos como quem molha flores nas águas quentes de primeiro de abril/ Meus olhos por certo não te queriam ali sob aquele silêncio negro ferindo minh’alma de tanta dor . Molhei teus cabelos brancos como quem molha os olhos de azul/ de um oceano, se houvesse/ Mas minhas mãos, as minhas mãos paradas ali sob o teu corpo frio de flores laranjas/ eram naufrágio e salvação . Molhei teus cabelos brancos como quem molha teu corpo sob duas bordas/ A morte em uma/ a vida noutra/ Meus olhos não podiam ser boca aberta e gritar o teu nome no abismo daquela partida Molhei teus cabelos brancos por fim/ como quem molha as cinzas, vivas em outro lugar . [[[[ ]]]] Sobre as autoras Andressa Maxnuck é demógrafa pelo Centro Latinoamericano y Caribeño de Demografía (CEPAL/ONU) e especialista em Políticas Públicas pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), onde também realizou a graduação em Direito (CCJE/UFRJ). Na esfera jurídica,

atuou como advogada e como conciliadora judicial. No setor público nãoestatal, desenvolveu projetos de pesquisa, organizou conferências e contribuiu em publicações de organizações não-governamentais nacional e internacional. Na Administração Pública, atuou como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (SEPLAG) do Governo do Estado do Rio de Janeiro. É Analista de Planejamento, Gestão e Infra-estrutura em Informações Geográficas e Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Integra o Coletivo Rede Migração Rio e o coletivo FeminAGEM. Seus interesses de pesquisa envolvem os seguintes temas: relações internacionais; integração regional; políticas públicas; mobilidade humana (migrações e refugiados); gênero (direitos das mulheres, feminismo). Bernardo Oliveira é professor adjunto da Faculdade de Educação da UFRJ, pesquisador, crítico de música e cinema e produtor. Como crítico de música e ensaísta, colaborou com diversos jornais, blogs, revistas e festivais no Brasil e no exterior (Folha de São Paulo, Blog do IMS, FACT Magazine, O Globo, Revista Cinética, Contracampo, Filme Cultura, entre outras). Participou de festivais e eventos de música e cinema como curador e produtor (Semana dos Realizadores, Festival Novas Frequências, Festival Visões Periféricas, Bienal de Arte Digital, Shape Platform, Multiplicidade, entre outros). Desenvolve projeto de pesquisa sobre o filósofo francês Gilbert Simondon (“Gilbert Simondon, precursores e derivações: O problema da educação e da ‘cultura técnica’ na sociedade metaestável”). Participa como colaborador do GEM – Grupo de Educação Multimídia (Letras/UFRJ), do LISE – Laboratório do Imaginário Social e Educação (Educação/UFRJ). Foi produtor e curador do evento de música experimental Quintavant e, atualmente, dirige o selo musical QTV ( https://qtvlabel.bandcamp.com/ ). Co-produziu os filmes “Noite” e “Sutis Interferências”, de Paula Maria Gáitan e “UN”, de Sérgio Mekler. Realizou a investigação musical do último filme de Lucrecia Martel, “Zama” (2017). Publicou em dezembro de 2014 o livro “Tom Zé – Estudando o Samba” (Editora Cobogó). Bianca Dias é Psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011). Graduada em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora - CES (2002). Fundou e coordenou o Núcleo de Investigação em Arte e Psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz - IFF (Ribeirão Preto/SP 2012-2015). Participou do grupo Redes de Pesquisas Escritas da Experiência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Coordena o Projeto de Cinema e Psicanálise Cine-Cult USP Ribeirão Preto, em parceria com o Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade - CLIN-A. Carla Rodrigues é filósofa, escritora e tradutora. Professora da cadeira de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (IFCS/UFRJ) e bolsista da Faperj. Pela NAU Editora, publicou “Duas palavras para o feminino” (2013) e traduziu “Esporas - os estilos de Nietzsche”, de Jacques Derrida. É coordenadora do Lafita/CNPq, em www.tempodoagora.org .

Dinah de Oliveira é Professora Adjunta do Bacharelado em Artes Visuais/ Escultura, da Escola de Belas Artes (UFRJ), pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisas Azeotrópicas (CNPq/UFRJ) e coordenadora do Ateliê Livre (PIBIAC/UFRJ). Mestra em Artes Cênicas e Bacharel em Teoria do Teatro (UNIRIO), é associada do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro. Sua atuação no campo dos estudos metodológicos incluiu a coordenação do projeto de extensão ELLA: interlocução entre artistas (UFRJ) e a atuação como profissional da saúde mental no CAPSad ao longo de 10 anos Fátima Pinheiro é Doutora em Psicanálise pelo PGPSA/ UERJ - Bolsa de pesquisa FAPERJ. Possui Mestrado em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008) - Bolsa de pesquisa Capes, e Graduação em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula. É psicanalista- membro da EBP/AMP, ensaísta da Editora Subversos e curadora de artes visuais. É participante do núcleo de pesquisa de Topologia do ICP-RJ da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio. Atua nas áreas de teoria e clínica psicanalíticas, com ênfase em Saúde Mental e fundamentos e crítica das artes. Possui formação em artes visuais pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Gabriela Carneiro da Cunha é atriz, diretora e pesquisadora. Formada em artes cênicas pela Casa das Artes de Laranjeiras - CAL. É a idealizadora do projeto de pesquisa em artes Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vagalumes , que se dedica a escuta e amplificação do testemunho de rios brasileiros que estão vivendo uma experiência de catástrofe desde a perspectiva do rio. Em 2015, estreou a primeira etapa do projeto com a peça Guerrilheiras Ou Para a Terra Não Há Desaparecidos , com direção de Georgette Fadel, sobre as mulheres que lutaram e morreram na Guerrilha do Araguaia às margens do rio Araguaia. Em 2019, dirigiu e estreou a instalação performativa AltaMira 2042, criado a partir do testemunho do rio Xingu sobre a catástrofe causada pela hidrelétrica de Belo Monte. Atualmente, dedica-se à montagem do longa metragem “Edna”, sobre Edna Rodrigues de Sousa, poeta, trabalhadora da terra e sobrevivente de quatro conflitos de terra na região sul do Pará às margens do rio Araguaia, e a pesquisa do filme “A Queda do Céu”. Desde 2014 o Projeto Margens tem realizado, além dos trabalhos no teatro, diversos desdobramentos como filmes, publicações, oficinas, e a criação do Coletiva Buiúnas, coletivo de mulheres de diferentes áreas que atuam no sentido de escutar e afirmar o testemunho de rios brasileiros e dos povos que os habitam. Ilana Feldman é pós-doutora em Teoria Literária pelo IEL-UNICAMP, onde desenvolveu a pesquisa “Os diários cinematográficos de David Perlov: do privado ao político”; doutora em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris VIII, onde desenvolveu a tese “Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo”. Atualmente é pósdoutoranda no Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP, com a pesquisa “Narrar o trauma, escrever o luto e imaginar, apesar de tudo: testemunho e autobiografia entre cinema e literatura”.

Lívia Ferreira é doutoranda em Psicologia (UFF). Mestre em Psicologia Social (UFS). Psicóloga (UFF) e psicanalista. Possui experiência prática em saúde mental e em clínica psicanalítica. Professora universitária na Universidade Federal de Sergipe (2017-2018) e no Centro Universitário AGES (Paripiranga/BA - 2013 a 2017), onde também atuou como supervisora de orientação pedagógica docente. Pesquisa temas associados à psicanálise pura e aplicada, de orientação lacaniana, nas suas interfaces com a saúde e cultura contemporânea. Lívia Gonçalves Magalhães é Professora Adjunta de História do Brasil República do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação e licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense (2005). Mestre em Estudios Latinoamericanos pelo Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional de San Martín, Argentina (2008). Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2013). Pós-Doutora em História na Unimontes/MG (Bolsista Capes 2014-2016) e na Universidade de Paris-Est Marne-la-Vallée (Bolsista Capes dezembro 2017março 2018). Foi pesquisadora temporária do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), responsável pelo projeto “Diplomacia do Esporte”; (janeiro-julho 2013). Foi professora Substituta de História da América na UFRJ (2015-2016). Em 2010 publicou o livro “Histórias do Futebol”; pelo Arquivo Público de São Paulo, primeiro volume da Coleção Ensino e Memória. Em 2014 publicou o livro “Com a Taça nas mãos”, pela FAPERJ/ Lamparina. Em 2017 organizou o livro “Lugar de Mulher - Feminismo e Política no Brasil”; Editora Oficina Raquel. Possui experiência na área de História do Brasil e da América Latina Contemporâneos e História do Esporte, com ênfase nos seguintes temas: memória, ditaduras civil-militares, futebol, autoritarismo, gênero. Mariana Baltar é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da graduação em Cinema e Audiovisual da UFF. Desenvolve pesquisas sobre os estudos de melodrama, pornografia, políticas de gênero e sexualidade, e a dimensão do afeto e do excesso como estratégias estéticas e matrizes culturais para dar conta do lugar do corpo, das sensações e das emoções no contexto da cultura audiovisual contemporânea. É pesquisadora do CNPq, professora do Programa de PósGraduação em Cinema e Audiovisual (PPGCine-UFF) e coordenadora do grupo de pesquisa NEX - Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais. Além de diversos artigos, publicou em 2019 o livro “Realidade Lacrimosa”, pela EdUFF.

Mariana Patrício é professora e pesquisadora em Literatura e performance. É professora do CCE da Puc-Rio no curso Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo e co-editora da Revista DR que discute o lugar e a produção das mulheres na universidade. Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005), mestrado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2012), com estágio doutoral na Universidade Paris 7 (Denis Diderot). Tem experiência na área de Literatura, com ênfase na relação entre escrita e corpo a partir da ligação entre Literatura, Pensamento, Dança e Performance na contemporaneidade. Natália Neris é doutoranda em Direitos Humanos na USP, Mestra em Direito pela FGV, Bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela USP. Pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDD/CEBRAP) e do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para a Inclusão Social da USP (GEPPIS/USP). Atualmente é coordenadora da área Desigualdades e Identidades do InternetLab Pesquisa em Direito e Tecnologia. É co-autora do livro “ O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil ” (InternetLab, 2016) e autora do livro “ A voz e a palavra do Movimento Negro na Constituinte de 1988 ” (Letramento/Casa do Direito, 2018), obra que venceu na categoria de melhor livro jurídico do ano de 2018 (Revista Quatro Cinco Um). Paula Cesari é psicóloga e psicanalista, doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Linha de Processos Psicossociais, coletivos e históricos, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Integra o Núcleo Trabalho e Contemporaneidade (UFRJ) e o Grupo Trabalho Vivo - Pesquisas em Arte, Trabalho, Ações Coletivas e Políticas, desde 2014, pesquisando os processos de criação no trabalho, na arte e no interstício entre ambos, especialmente nos processos de escrita: corpo e imagem e a escrita articulada à noção de feminino. Roberta Barros é artista visual, pesquisadora e professora, autora do livro Elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira (2016), fruto de pesquisa vencedora do Prêmio Gilberto Velho de Teses (2015). Em 2016, foi responsável pela organização de conteúdo e curadoria do evento Diálogos sobre o feminino: contextos brasileiros nas artes (visuais) , realizado nos Centros Culturais do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília. Mestre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA - Universidade Federal do Rio de Janeiro/Brasil, em julho de 2017, concluiu pós-doutorado no Departamento de Arte (GAT) do Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ)

Tel.: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected] Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão de textos: Graziela Rustiguella Franzoni Ana Paula Meirelles Projeto gráfico, capa e editoração: Roberta Barros Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ) Claudia Saldanha (Paço Imperial) Eduardo Ponte Brandão (UCAM) Francisco Portugal (UFRJ) Ivana Stolze Lima (Casa de Rui Barbosa) Maria Cristina Louro Berbara (UERJ) Pedro Hussak (UFRRJ) Rita Marisa Ribes Pereira (UERJ) Roberta Barros (UCAM) Vladimir Menezes Vieira (UFF) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP) Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846

Sumário Capa Folha de rosto Apresentação Prefácio Gêneros e(m) sujeitos O corpo, o gozo e a pesquisa O corpo entre a psicanálise lacaniana e a militância de gênero Exílio, memória e posição feminina: o documentário autobiográfico face à ditadura militar no Brasil Tomar pra si: diálogos entre artes contemporâneas, o maternal e direitos reprodutivos Instinto materno? Mãe é só quem cria? Reflexões sobre as mulheres na maternidade por adoção Escuta e resistência O Recado do maciço: ocupar as fronteiras, disputar a loucura Ressignificando lugares: a potência da escrita de mulheres negras Entrecanto: voz, memória, experiência [[[Flor d´água]]] Sobre as autoras Créditos