Exu e a Ordem do Universo [2 ed.]
 9788585336073

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2• Edição

ODUDUWA ~

© 2015 Síkíru Sàláml (King); Ronilda Iyakemi Ribeiro.

Revisão: Rodrigo Ribeiro Frias e Marília Frias Releitura crítica da 2ª Edição: Sérgio Victor Chiancone e Antonia de Lourdes Samões Chiancone Revisão do iorubá: Yaya Abiona Capa: Hilton Breymaier Fotos: Viktor Juncker Diagramação: Si/via Nair Romero Morales

Exu e a ordem do universo. Síkíru Sàláml (King); Ronilda Iyakemi Ribeiro. São Paulo: Editora Oduduwa, 2011. ISBN: 978-85-85336-07-3

Indice para Catálogo Sistemático: l. Exu; 2. Orixás; 3. Iorubá (etnia); 4. Religião Tradicional Iorubá;

5. Corpus literário de Ifá

© 2015

To dos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem a autorização prévia, por escrito, da editora.

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Agradecimentos

Numa jornada prolongada, de cerca de duas décadas, a muitos conhecemos e muitos caminham a nosso lado. Ocasiões de convívio, breve ou prolongado, certamente proporcionam oportunidades de aprendizagem e de enriquecimento humano mútuo. Durante o tempo de produção desta obra muito diálogo fecundo teve chance de ocorrer. A cada pessoa que, de um modo ou outro, participou desse processo, expressamos nossa profunda gratidão. Agradecemos com particular apreço aos nossos informantes orais, tradicionalistas da palavra sem os quais não disporíamos das informações tão ricas aqui apresentadas, a começar pelo Babalaô FábUnmi Sówlliuní, pela Ialorixá ÓbímonúrÇ À~àbí Díyàólú e pela Chief Wúlem(>m Àlàk~ $rinó~ó Sàlámi, nossos primeiros mentores espirituais, hoje cultuados por nós como ancestrais veneráveis no Oduduwa Templo dos Orixás. Agradecemos ainda aos babalaôs Líwõsi Ígbóre, Lawál Rafü1, Fá~9lá Adéyanjú e Olúwá~9lá Ayélab(>lá, assim como ao Prof. Dr. P. A. de D9pámú. Cabe particular agradecimento a Rodrigo Ribeiro Frias e Marília Frias pelo minucioso e exigente trabalho de revisão desta obra em sua primeira edição, e a Sérgio Victor Chiancone e Antonia de Lourdes Samões Chiancone pela releitura crítica da obra em sua segunda edição. Que a Primeira Estrela a Ser Criada ilumine os caminhos de todos os que colaboraram para a edificação deste texto. Que Exu Elegbara nos conduza ao encontro do que legitimamente buscamos. Exu Odara, nós somos seus devotos! A você, toda a nossa gratidão pela alegria experimentada ao ver nosso trabalho chegando às mãos de quem deseja conhecer tua natureza! Babá Exu, abra nossos caminhos e favoreça nosso encontro com as pessoas que devemos conhecer para bem realizar o destino de nossos oris e para promovermos a Justiça e a Paz no coletivo a que pertencemos.

Sumário

Prefácio à segunda edição em língua portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Apresentação . .......................... . .......... . ... . .. . .. 13 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Parte 1 Os iorubás: o humano, o divino e o código ético-moral Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3

Noção iorubá de pessoa e práticas mágico-medicinais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 O divino na tradição de orixás. Teologia iorubá: Eledunmare, orixás e ancestrais . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Valores e virtudes: o código ético-moral iorubá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Parte II Exu: aspectos teológicos e litúrgicos Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8

Natureza e ação de Exu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Exu e o destino humano ....................... 155 A dinâmica estabelecida entre ori e iwá e a ação de Exu ....................... 171 Símbolos, rituais e oferendas ... ... .. .. ... .... .. 185 (In)Compreensão de Exu no continente de origem e em países da diáspora . . . . . . . . . . . . . . . 211

Parte III Presença de Exu no corpus da tradição oral iorubá Capítulo 9 Transmissão oral de conhecimentos Corpus literário e sistema divinatório de Ifá . . . . . . . Capítulo 10 Mitos de Exu nos odus de Ifá (iorubá) . ..... . . ... Capítulo 11 Mitos de Exu nos odus de Ifá (português) .. .. . .. .. Capítulo 12 Oríla~ àdúrà e ibà E$iI: evocações, rezas e saudações de Exu ...... ... .... Capítulo 13 Orin E$iI: Cantigas de Exu . .. . .. ...... . ... . .... .. .. . . ... Glossário .... . . . ...... ..... ........ .. ............ . . . .... Referências ... . .. .. .....................................

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Prefácio à Segunda Edição em Língua Portuguesa

Na manhã de 1821 o iorubá Adjai, nascido em Oshogbô, com seus prováveis onze, talvez doze anos de idade, tomou-se cativo e foi encarcerado em um navio, rapidamente lançado ao mar. O navio, interceptado pela Marinha Britânica, levou Adjai a ser acolhido pela fé cristã e, batizado como protestante, ele passou a adotar o nome Samuel Crowthert. Em 1827, já ordenado pastor, iniciou sua carreira docente lecionando Língua Inglesa e Teologia na Church Missionary Society, instituição protestante que o amparou em Serra Leoa e o enviou a Abeokutá, onde reencontrou a mãe depois de anos de separação. Em 1864 foi consagrado bispo. Além de suas atividades docentes, em função das quais traduziu conteúdos cristãos para idiomas africanos, esforçou-se por educar iorubás, e desses esforços resultaram produções linguísticas 1 que, segundo consta, inauguraram uma tradição iorubá escrita. Na constituição dos Estados-Nação em territórios africanos, a disseminação falada e escrita da língua inglesa, em detrimento das línguas locais, foi fruto em boa medida de esforços protestantes (LACOSTE, 2005). Por quê relembrar Samuel Crowthert ao prefaciar a segunda edição de Exu e a Ordem do Universo? Porque, apesar de compreender a condi-

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CROWTHERT, Samuel. Vocabulary oflhe Yomba Language, to wicb are prefises lhe grammaticaf efements at lhe Janguage. London: Church Missionary Society, 1843; CROWTHERT, Samuel. A vocabufary of tbe yomba Ianguage. Introductory remarks: Owen Emeric Vidal. London: Church Missionary House, 1852; CROWTHERT, Samuel. Grammar and vocabulary of the nupe fanguage. London: Cburch Missionary House, 1864.

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ção histórica de Adjai, não se pode ignorar a carga ideológica presente no vocabulário do Bispo Samuel, no qual Exu é o Diabo e há gnomos como ÁrÇmi e fantasmas como Egúngún. Como tantos outros autores de sua época, Samuel Crowthert expõe todo tipo de preconceitos travestidos de boas intenções. Em um contexto histórico no qual os africanos eram considerados desprovidos de línguas estruturadas, Samuel Crowthert publicou a primeira edição do Vocabulary of the Yoruba Language (1843) que, por tratarse de um vocabulário bilíngue, dá a conhecer ( equivocadamente) que o substantivo Deus (God) corresponde a 019run, Olódàmare, e o substantivo Diabo (Devil) corresponde a A ngeli ti ochubu, E$il. O adjetivo diabólico (diabolical) corresponde a le$Ú e, embora não conste do Vocabulário o verbete infemo (hell), há o substantivo céu (heaven), correspondendo a 9run, ibi-rçrç e (JkÇ 9run. Considerando que para libertar os africanos dos grilhões do Diabo era preciso catequizar, o Bispo Samuel traduziu trechos da Bíblia Sagrada para o iorubá, sendo interessante assinalar como algumas palavras do universo protestante foram registradas em seu vocabulário: heresia (heresy, s. àdám(J, iyapa); herético (heretic, s. alàdám(J); ídolo (idol, s. ére ti enia nsin li óri$à); idólatra (idolater, s. asin ere, aborisa); idolatria (idolatry, s. isin ere, iborisa); Satã (Satan, s. E$ú, ólorí 9run àpad1); satânico (satanical/satanic, a. bí E$ú); serafim (seraphim, s. ópó angefJ); santos (saints, s. çni iwà mímç5) e bruxa ( witch, s. àjÇ obinrin). Por outro lado, nota-se na seção de inglês-iorubá do vocabulário a inexistência de muitas palavras indispensáveis do idioma iorubá, entre as quais os nomes de muitos orixás. Com essa lacuna convive a presença de estrangeirismos, como angeli, e a de termos ideologicamente alterados, como os relacionados a Exu. Observa-se a mesma tendência na seção de iorubá-inglês: nada se diz, por exemplo, de orixás tão importantes quanto Obaluaiê e Nanã Buruku; nada se diz sobre os sistemas oraculares da etnia iorubá; não se menciona o Corpus Literário de Ifá. Nesse vocabulário odu é considerado companheiro de Ifá, deus das nozes de palma; ikin é história ou tradição, Egúngún é somente osso ou esqueleto; irókó é somente uma espécie de árvore e iyálóde somente um título honorifico. Assim, enquanto alguns vocábulos são, deliberadamente ou não, omitidos, o Bispo Samuel parece haver empregado uma espécie de processo metonímico, recortando significados mais interessantes ao propósito de descarregar a carga semântica original de muitos vocábulos.

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Como na concepção protestante a noção de um Bem absoluto, personificado pelo Rei da Glória, implica a noção de um Mal absoluto, personificado pelo Inimigo, coube a Exu representar esse papel - no vocabulário do Bispo Samuel como nos livros de viagem de seus colegas de formação. Assim, em relação ao orixá primordial mais importante, o reverendo apresenta o seguinte verbete: "E$ú, s. devil, Satan, demon, adversary, fiend. - E$ú kó ni iwà ako ile rç si ita, 'As the devil has no (kindliness oi) disposition, his house is made for him in the street'. "(CROWHTERT, 1843, p. 72-3): "(...)Como o diabo não possui disposição alguma (é desprovido de bondade), sua casa é construída para ele na rua". O termo fiend pode ser vertido ao português como malicioso, e também como besta, monstro, selvagem, alguém desprovido de bondade. Não se trata apenas, portanto, de uma criatura má entre tantas outras, de um pequeno demônio ou de um adversário qualquer: Exu, associado ao Satã em pessoa, é, segundo esse Vocabulário, o grande Inimigo, o próprio Adversário. O único epíteto de Exu registrado no livro é ]JJÇgbárá, traduzido para o inglês como "God of mischief, Satan"(CROWHTERT 1843, p. 78): "Deus da Malícia, Satã". Desse modo, o Bispo Samuel, originalmente o iorubá Adjai, ofereceu sua parcela de contribuição para reduzir elementos do corpo milenar de conhecimentos de sua tradição de origem a um conjunto mal articulado de fonemas. Indispensável dizer que sua ação integra um conjunto de iniciativas que conduziram à degradação de elementos do Sagrado iorubá, particularmente do orixá primordial Exu. A obra aqui apresentada, agora em sua segunda edição em português, constitui uma pequena porção do antídoto exigido para a correção de equívocos construídos e preservados ao longo de séculos. O sucesso alcançado em sua primeira edição demonstra tratar-se de uma obra indispensável. Por isso sua reedição é bem vinda! Rodrigo Ribeiro Frias Graduado em Letras e Mestre em Teoria Literária (Universidade de São Paulo); membro do Grupo de Pesquisa Estudos Transdisciplinares da Herança Africana (UNIP-CNPq), do instituto Guatambu de Cultura - Canto das Águas e do Oduduwa Templo dos Orixás. Atua principalmente nas seguintes áreas: Herança Africana, Tradição Iorubá e Teoria Literária.

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Apresentação Láaróye! Entre oorun e oaiye, oaxé da palavra fecunda

Nós todos nós negros todos nós Urdimos um fio na alvorada Com o mais negro da noite e o primeiro beijo da aurora. Rubens Eduardo Ferreira Frias (1996)

Depois de 20 anos de árduo e apaixonante trabalho, temos, com a licença de Ex:u, esta preciosidade de Síkírll Sàlámi (King) e de Ronilda Iyakemi Ribeiro, Exu e a ordem do universo, com a significativa viabilidade da Editora Oduduwa... a partir da vivência no Oduduwa Templo dos Orixás (Mongaguá/SP) em que King é babalorixá. .. e o mito se atualiza novamente. Oduduwa é o patriarca mítico iorubá. A saudação tem duplo significado: por um lado, nos ressentíamos de uma publicação de fôlego, consistente, sistemática e resultado de investigações pormenorizadas, não apenas no âmbito acadêmico das referências bibliográficas e seus labirintos à maneira ocidental; mas também no âmbito das tradições orais, que nos indicam o caráter existencial de nossas buscas e a benevolência do destino quando fazemos jus à compreensão profunda em nossas jornadas. E, portanto, a publicação do livro vem em hora propícia e se constitui em um presente epistemológico importante para nossas lidas com o reconhecimento de nossas matrizes ancestrais africanas e sua apropriação, diálogos e recriações para um devir de múltiplas facetas em nosso processo identitário, brasileiro e latinoamericano. No Brasil, no âmbito educacional, em todo currículo escolar, sobretudo nas áreas de educação artística, literatura e história brasileiras, temos no horizonte a conquista representada pela Lei 10.639/2003, que determina a obrigatoriedade do estudo da história e das culturas africanas e afro-brasileiras nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, e sua atualização pela Lei 11.645/2008, que passa a incluir a 13

obrigatoriedade do estudo da história e das culturas de matriz indígena; venho reafirmando em vários espaços que o período de "denúncià' da discriminação e preconceito étnico-raciais já obteve seu auge (o que não quer dizer que não se deva insistir nas denúncias quando dos casos particulares passíveis, agora, de responsabilização criminal). Seguindo as reflexões de nosso mestre zennordestino em sua maturidade dos escritos como "conversas à sombra desta mangueira': "pedagogia da esperançà' (releitura da pedagogia do oprimido) e "pedagogia da autonomia"; Paulo Freire insistia em que, à denúncia, deveria se seguir um "anúncio''. Momento alvissareiro das alternativas, das possibilidades, da criação que deve se seguir ao ultrapassamento das opressões, injustiças e noites escuras que subjugam nossas esperanças. Mas, "não há noites eternas''. Nesse sentido, à conquista das leis no estrato importante da educação escolarizada (e relembramos que, contra qualquer escolacentrismo, o processo já se espraia nos movimentos sociais, de arte-educação e literatura "periférica") deveria seguir-se uma busca apaixonada pelas referências, obras de arte, literatura, história dos povos africanos por eles mesmos, valorização da tradição oral dos griôs. Portanto, temos como compromisso do "anúncio': a produção de uma massa crítica de informações, teorias, relatos de pesquisas, produção de conhecimento sobre a matriz afro-brasileira em suas múltiplas formas, fontes e desejos para alimentar o trabalho dos educadores que, tocados pela indignação (e não pelo "modismo") trabalhem no sentido de materializar a conquista das leis no cotidiano de nossos novos reis, rainhas, príncipes e princesas, poetas e guerreiros de estirpe negra. Agora, não mais subjugados pela condição espúria de "escravos" por uma "civilização" menos nobre; mas ainda subjugados pela discriminação étnico-racial, pelos processos de exclusão político-social e interdição cultural de suas próprias raízes. Para com estes temos a "dívidà' ancestral de realização de nós mesmos, com as forças mobilizadoras que representam a memória, o amor e a criação (como dizia o anarquista religioso russo, Nikolay Berdyaev [1874-1948], que muito me inspira). E é, precisamente, pelas forças mobilizadoras da memória (lembrar do orixá), do amor (reverenciar o orixá, e por ele, o ori em cada pessoa) e da criação (responder com a atitude apropriada aos desafios do mundo); que, de outro lado, a saudação tem também significado existencial. King e Iyakemi são portadores de uma palavra fecunda. Curiosamente, princípios masculino e feminino para tentar dar conta da complexidade do orixá Exu. King ou Síkíru Sàlámi, das jóias ofertadas em seu Cânticos dos orixás africanos, 1992) e Iyakemi, expressão geledé, que já nos presenteou com o célebre Alma africana no Brasil - os Iorubás (1996) e de que já tive o prazer de compartilhar momentos importantes no cotidiano da universidade 14

clave mais sagrada da docência, tem o complemento feminino nesta ·gação e livro, traduzindo sua luminosidade e sabedoria na escrita-oferIalorixá albina de olhos cor de mar. Parafraseando o clássico trabalho • .ciato Ortiz (A morte branca do feiticeiro negro, 1978), eu diria que se do "renascimento sagrado e negro da mestria branca". Como orixá dos caminhos e da comunicação entre o orun (domínio rclial dos começos e território espiritual dos orixás) e o aiye (domínio .._-.._-tre das materializações e do humano como húmus da terra), Exu é ex:::'!l:~-.o sagrada de enorme complexidade tanto no continente negro, no âmX>rubá, como nas práticas religiosas e nas teologias afro-brasileiras. A ele se pede licença para todas as empreitadas, para liberar e orientar .::aminhos, sob pena de confundir-se, perder-se e extraviar-se nos conflitos desviam da senda principal. Neste sentido, é o primeiro a ser saudado, · rado e reverenciado. Ordem da conciliação dos contrários, habita todos ,...rincípios e, por isso, suas facetas masculina e feminina. De um lado, a ça simbólica da cabaça universal - princípio feminino da dialética :túdo/continente e da possibilidade de criação na geração da vida - e, o lado, o falo ereto - princípio masculino fecundador. É a junção de ambos os aspectos simbólicos que constituem a virtude -:micadora, o eixo central, o axis mund1: a árvore da vida, a ponte entre nzn e o aiye. Por onde circula o axé. De maneira análoga, o deus grego Hermes, também protetor dos camie mensageiro entre os deuses e entre os deuses e mortais; também traquinas z:nbeteiro, recebe seus ofertórios em hermas, montículos de pedras ofertados ~ada dos caminhos e também se manifesta como Hennes ictifálico ::i falo ereto), Hermes de múltiplos falos que se junta à deusa da aurora, Eos, :a das almas leves e que, juntos, produzem as ereções matinais. O desejo da ra de novos tempos, amor matinal no conhecimento de si mesmo, do Outro mundo nas conjunções carnais, epistemológicas e existenciais. Em ambos os casos, a comunicação e os caminhos são expressões de mesma religação, termo original na tradição ocidental para "religião" se esquece de maneira sistemática sob as lógicas organizacionais das _ ões institucionalizadas (locusda doutrina, dos regulamentos, dos dogdas hierarquias, das disputas de poder que olvidam o Sagrado que, na , teria sido sua motivação primeira). O fato é que esta religação possibilita ainda uma releitura (relegere, _ ;o étimo que concorre com a formação de "religião" ). Novamente, - Paulo Freire, todas as possibilidades de releitura do mundo, a partir : mesmo, das relações com o Outro e das relações com o mundo, 15

possibilitados pela religação com o primordial, com a ancestralidade. Deste âmbito sagrado é que a comunicação entre os mundos, humano e sagrado (que se interpenetram), manifesta sua eroticidade. Uma mística do corpo se acopla a uma erótica da alma, diria Mahatma Gandhi. É no domínio da cabaça e do falo que se interpenetram, contrários e complementares, que a fecundidade se espraia em todas as dimensões existenciais. A palavra não se restringe mais a apenas um signo arbitrário e convencional para a comunicação pragmática entre as pessoas ou para o registro técnico em sua expressão gráfica sobre a face pálida de um papel ou tela de computador. Ressurge em toda sua potencialidade como pálavra-fecunda. Anuncia, mostra, revela, exibe, arrebata, oculta, misteriza, profundiza, no movimento de vai-e-vém copulativo dos s~ntidos - sentidos do campo perceptivo de uma corporeidade como também sentidos atribuídos e/ou captados para a existência. Aqui a palavra-fecunda cumpre seu papel no compartilhar sincero e amoroso da construção do conhecimento na tradição africana. Compartilhar os segredos com quem se ama. Segredos que são sempre secretações, pois eles se

escondem no corpo. Portanto, se exibem como secreções que, líquidas, escapam pelo corpo conduzindo os segredos para o Outro. De maneira ancestral, são cinco estes segredos escondidos no corpo e estão na saliva, na lágrima, no suor, no fluxo menstrual e no sêmen. Compartilhar, então, respectivamente, a palavra, os sentimentos, o esforço, a morte constante e a fecundidade para renascer. Na expressão gráfica das palavras impressas na face pálida do livro, Sàlámi e Iyakemi, falo e cabaça, sacerdotes do conhecimento, fiéis a Exu, nos trazem a palavra-fecunda nas comunicações entre as coisas do orun e do aiye, renascendo das mortes constantes no fluxo menstrual dos obstáculos e empecilhos que o mundo nos interpõe, mas que o esforço insiste em continuar na suada busca, motivados pelo amor e pelo sentimento de pertença a uma tarefa que nos extrapola a pequena existência e de que somos (se abençoados com o axé) portadores e que expressa sua gratidão numa lágrima fugidia. E então, a palavra - que antes de grafada - fecunda a vida salivando sua potência sagrada. Que aqueles que se fecundarão na leitura da palavra-fecunda aqui materializada possam destrancar o caminho de Si para outros tantos e, juntos, engravidemos do tempo outro possível que se insinua na noite escura com o beijo da aurora, barra crepuscular de outros tempos na profundidade do Ancestral. Láaróye!

Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos Professor de Mitologia e Livre-docente da Universidade de São Paulo

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lntroducão :.

Um longo caminho foi percorrido até considerarmos apresentável este conjunto de informações relativas ao orixá primordial Exu. Dezenas de viagens ao território iorubá, particularmente à Nigéria, foram realizadas pelo autor principal desta obra, Síkíru Sàlámi (King). O diálogo estabelecido entre nós, autores, ao longo de quase três décadas, foi amadurecendo e sendo enriquecido por experiências vividas no continente africano e em alguns países nos quais a África se faz presente em práticas sociais e religiosas, particularmente no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e, bem recentemente, em alguns países europeus, entre os quais Espanha, Eslovênia, Itália, Sérvia e Croácia. Este trabalho demandou longos anos para a sua realização. E não poderia ser diferente: é impossível discorrer sobre Exu sem uma vivência intensa e prolongada com este orixá. O impulso de escrever sobre Exu antecedeu a decisão de empreender tarefa tão desafiadora. A consulta à bibliografia evidencia haver controvérsias quanto à natureza deste orixá: ele é benevolente ou malévolo? Mais que isso: muitos equívocos relativos a sua natureza e função decorreram do fato de Exu haver sido interpretado como a expressão iorubá de Satã e do demônio das tradições judaico-cristã e islâmica e de Príapo, o deus fálico greco-romano, guardião de casas, praças, ruas, encruzilhadas, jardins e pomares. Assim sendo, um dos objetivos principais desta obra é contribuir para ressignificar Exu através da apresentação de seu lugar na teologia iorubá. Recorremos para isto ao corpo da tradição oral, particularmente aos odus de Ifá e aos oríki (evocações), àdúrà (rezas), ibà (saudações) e orin 17

(cantigas) .1 Essa tarefa se mostra necessária e urgente. Entre outros motivos porque uma imagem dissorcida de Exu, infiel a sua verdadeira natureza e incumbências, vem se perpetuando em muitos países da diáspora iorubá. Os iorubás, como outros grupos étnicos africanos, concebem um Ser Supremo que, apesar de dotado de atributos superlativos, apresenta certas "insuficiências" e "necessidades". Além disso, supõem a possibilidade de conciliar a existência de Deus com a presença do mal no universo, o que não ocorre no interior das religiões cristã e muçulmana. Alguns estudiosos respeitáveis apresentaram Eledunmare como equivalente ao Deus cristão ou ao Alá muçulmano e Exu como Satanás ou o demônio. Tais interpretações equivocadas produziram consequências indesejáveis e geraram mal-entendidos que é preciso desfazer. Sabemos que a mestiçagem biológica e cultural dos diversos povos e etnias que constituem as culturas de síntese certamente inclui a dimensão religiosa. Na América Latina e no Caribe, através de processos de transculturação, a expressiva presença africana participou da moldagem de formas religiosas diversas que, com seus quadros de valores éticos e morais, produzem sentidos, regulam condutas e geram ideais. No caso brasileiro, por exemplo, que formas religiosas entraram em interação? Segundo Carvalho (1994), no Brasil a primeira matriz religiosa foi plasmada a partir do encontro da religião dominante - o catolicismo - com religiões indígenas e africanas, mais a participação, em menor grau, do protestantismo e do judaísmo. Em uma etapa posterior, já na segunda metade do século XIX, o kardecismo conquistou uma expressiva aceitação nacional, consolidando-se como importante tradição no pais. Numa terceira etapa, entre o final do século XIX e o início do XX, algumas tradições esotéricas vieram integrar esse quadro, entre elas o Círculo Esóterico da Comunhão do Pensamento, a Rosacruz, a Teosofia e a Antroposofia. Outras práticas religiosas foram surgindo, como, por exemplo, as da União do Vegetal e do Santo Daime, a Pajelança e o Catimbó. No contexto das religiões brasileiras de matriz africana o Candomblé e a Umbanda congregam o maior número de adeptos. O termo candomblé, usado para designar tradições e cultos religiosos de nações do grupo sudanês, referia-se inicialmente a danças religiosas e profanas. Essa denominação advém do termo kandombile, que significa culto e oração. Desde o início da escravidão, africanos de distintas origens 1

Na última página desta Introdução o leitor encontrará referências às convenções adotadas para a redação do texto.

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étnicas uniam-se para realizar cultos religiosos e rituais mágicos. Porém, foi somente por volta de 1830 que surgiu oficialmente o Candomblé, na Casa Branca do Engenho Velho, terreiro fundado na Bahia por três mulheres negras - Iyá Dêtá, Iyá Kalá e Iyá Nassô (CARNEIRO, 1969). Quanto à Umbanda, considera-se Zélio Fernandino de Morais como o marco zero de sua história. Em 1908, no Rio de Janeiro, ele anunciou essa modalidade religiosa, embora houvesse, antes disso, múltiplas formas de culto, entre as quais o Catimbó, o Candomblé de Caboclos e as Macumbas Cariocas. Ao longo de sua história a Umbanda foi reunindo ensinamentos de distintas tradições religiosas indígenas e africanas, às quais associaramsc elementos do hinduísmo, do budismo, do catolicisimo e do kardecismo. Essa formidável mestiçagem religiosa propiciou uma convivência que moldaria formas e formas religiosas, muitas delas quase alienadas dos sistemas riginários. Num altar ou congá encontram-se imagens cristãs, budistas e tradicionais africanas, além da representação de personagens como índios, pretos-velhos, marinheiros, ciganos, crianças etc. As orações incluem cinticos em português aos orixás e rezas cristãs como o Pai Nosso e a Ave :.~ia. Magnani (1986, p. 13) considera a Umbanda como resultante de um processo de reelaboração, em determinada conjuntura histórica, de -it:os, mitos e símbolos que adquirem novos significados no interior de uma - va estrutura': e não como "uma espécie de degeneração de antigos cultos .zfricanos ou do espiritismo kardecista". Nos últimos anos, com força crescente nas últimas duas décadas, observa-se no Brasil o surgimento de um novo espaço religioso: o de prática da teligião Tradicional Iorubá. Este movimento, que inclui a valorização dos nhecimentos do sistema divinatório de !fá, tem como principais atores abalaôs, sacerdotes de Orunmilá. Nesse contexto destaca-se o Oduduwa ~tmplo dos Orixás, situado em Mongaguá, litoral sul de São Paulo. Liderado 'o Babalorixá Síkíru Sàlámi (King), o templo reúne lideranças de diversos t:rnpos religiosos de matriz africana advindos desse e de outros municípios, outros estados brasileiros e de outros países, para realizarem formação aprimoramento sacerdotal e para cultuarem Orunmilá, Iyami Oxorongá Egungun, além de outros orixás. No imaginário brasileiro há uma verdadeira multidão de seres _ irituais, pertencentes a distintos universos religiosos, que convivem _ mo podem: anjos, arcanjos e querubins, orixás, ancestrais das sete lide Umbanda, santos católicos e mais tantos outros seres espirituais, ~ mpondo um extraordinário e complexo universo. Neste universo de -q>resentações simbólicas que lugar ficou reservado a Exu? 19

É fato sobejamente conhecido que nos países de diáspora iorubá, colonizados por europeus, os orixás, inclusive Exu, foram sincretizados com santos católicos. O sincretismo foi entendido por alguns autores, entre os quais Rehbein (1985), como um processo que procura resolver uma situação de conflito cultural-religioso. Com a justaposição dos santos católicos aos orixás africanos, os negros, cultuando suas próprias divindades associando-as externamente a determinados santos, queriam enganar o branco e proteger-se da perseguição policial( ... ), o que não nega ter havido certa miscigenação cultural/religiosa, uma mútua influência. (REHBEIN, 1985, p. 85).

Outros autores, como Damen (2003), reconhecem ser o sincretismo uma via de mão dupla. Por um lado, ocorre o disfarce de práticas religiosas de expressão proibida: neste caso, a repressão às tradições religiosas africanas, que impedia o culto às divindades, obrigava os seus devotos a ocultá-las por detrás dos santos católicos. Por outro lado, o processo de influência mútua leva a uma fusão de elementos dos dois universos religiosos durante o contato, resultando disso uma prática nova, eminentemente inculturada. Poderíamos pensar, como muitos pensam, que Exu foi sincretizado com o demônio ou interpretado como tal ao chegar a alguns países da diáspora africana. No entanto, ainda na África, antes de ser seu culto transportado aos países da diáspora, Exu já fora atribuído de identidades alheias à sua natureza por europeus que lá estiveram. Quando Exu foi trazido ao Brasil, seus traços sofreram metamorfoses. Destas, talvez a mais importante seja a assinalada por Ortiz (1978): sua ligação com Orunmilá desapareceu, pois o tráfico desagregou a organização sacerdotal iorubá, que tem na figura do babalaô, sacerdote deste orixá, uma das principais referências. Interessante observar que na diáspora iorubá em Cuba não ocorreu o mesmo, pois as famílias de babalaôs foram mantidas. No Brasil o dílógún (Çrindílógún),jogo de búzios, recurso oracular de babalorixás e ialorixás, substituiu quase completamente o uso do opÇJÇ, corrente divinatória, recurso oracular dos babalaôs. Nina Rodrigues registrou no Brasil, na Bahia do final do século xrx, a identificação de Exu, também chamado de Bará ou Elebará, como santo ou orixá confundido com o diabo, embora o próprio pesquisador considere que essa identificação tenha sido influenciada pelo ensino católico. Também registrou a crença de que todos os "santos" (orixás) podem se servir de Exu para tentar ou perseguir alguém. (RODRIGUES, 1935). 20

Cascudo (1988) , ao pesquisar o tema "Exu no Brasil", encontra este rixá temido e respeitado, representando potências contrárias ao homem. Identifica que nenhum ritual é feito sem Exu, sendo ele quem recebe sempre as primeiras oferendas e sendo a ele consagrados os primeiros dias de iO..'Poentes nos estudos sobre a cultura iorubá, é de opinião que o empenho em traçar rotas de origem de palavras antigas, como os nomes dos orixás, é tarefa inglória, dado que a estrutura dessas palavras impossibilita uma análise autêntica. 5

Vide capítulo 9 - Transmissão oral de conhecimentos - corpus literário e sistema divinatório de Ifá.

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Um dos orikis6 de Orunmilá diz: àldtibirí, a-pa-9jç)-ikú-dà. O grande transformador, que pode alterar a data da morte.

Vejamos alguns de seus mitos: Há um mito segundo o qual Orunmilá teve oito filhos e alguns disá pulos, aos quais ensinou os mistérios da adivinhação. Todos os seus filhos tornaram-se importantes, espalhando-se por muitas regiões do território rubá. De acordo com outro mito, Ifá, nascido em Ifé, eminente adivinhador e grande terapeuta, após tornar-se famoso fundou uma cidade chamada :petu, dela tornando-se rei. Bastante popular e grande profeta, era procurado por muitas pessoas desejosas de aprender a arte divinatória. Entre todos os pirantes ele selecionou dezesseis homens, cujos nomes são idênticos aos dos odus, signos divinatórios. Outro mito narra que Orunmilá, em companhia de outras divindades primordiais, veio para a terra participar do processo de criação. Desceu t m Ifé, considerada o ponto de origem da espécie humana, pois recebera de Eledunmare a incumbência de acompanhar e aconselhar Orixalá (Oxa.á), seu senhor e superior hierárquico. Recebeu também o privilégio de conhecer a origem de todos os orixás e de todos os seres, aí incluídos os .-.eres humanos. Por isso é chamado eJÇrí-ipín, a Testemunha, que defende t o rienta os destinos humanos. Presencia o nascimento de todos os seres "10 momento em que o destino de cada um é selado. Somente Orunmilá, conhecedor do ipín orí, o destino do ori, pode sondar adequadamente o ~turo e orientar quem o procura. Por isso é consultado, através de jogo racular, nos momentos fundamentais da existência, como as iniciações, fundação de aldeias, o início da construção de casas, a realização de ...-ontratos, negociações, o início e o término de guerras, os casamentos e nascimentos. No contexto oracular, Exu é uma divindade particularmente impor:;ante, dada a sua relação de amizade estreita com Orunmilá, o que se revela t'Il1 milhares de narrativas míticas. Os odus Eji-Ogbe (7) e Ogbe-ir~tÇ (9)7 ~o exemplos disso. Em algumas narrativas há referências à qualidade calOríki é um vocábulo formado por orí, cabeça, e ki, saudar; oríld é, pois, uma fo rma de saudar o ser, referindo-se a sua origem,suas qualidades e seus ancestrais. Dessa forma são saudados os orixás, as pessoas e os animais. Geralmente os orikis incluem descrições de características e feitos do ser saudado. ·.í de capítulo 1O- Mitos de Exu nos odus de Ifá (iorubá) e capítulo 11 - Mitos de Exu nos odus de Ifá português). Os números (7) e (9) referem-se à numeração dos odus nos referidos capítulos.

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mante de Orunmilá, em contraposição ao poder de Exu. A narrativa mítica apresentada a seguir ilustra um aspecto interessante da dinâmica de relações entre esses dois orixás:

àótó bal~ ó l'ómi, Íkà bal~ ó di yangí, o dífá fún ogun Àjàlé Erémi.

Efju Qdàrà ó nl9 sí

A verdade caiu no chão e virou água. O maldoso caiu no chão e virou yangí foi quem adivinhou para Exu Odara no dia em que ele partiria para guerrear na terra de Àjàlé Erémi. Quando a cidade de Àjàlé Erémi entrou em guerra, Exu e Orunmilá tomaram conhecimento do fato e quiseram participar. Antes de saírem de casa planejaram o que fariam nessa guerra. Disseram que fariam coisas mirabolantes e inesquecíveis e foram se vangloriando, cada vez mais, até estabelecerem rivalidade. Chegaram à conclusão de que deveriam ir para a guerra e ver o que aconteceria. Na guerra lutaram e venceram, conquistando muitos escravos e propriedades. Quando estavam retornando pararam para descansar. Pediram permissão ao chefe de um povoado para pernoitarem ali, e durante a noite Exu despertou seu companheiro para fazer demonstrações da própria força. Orunmilá disse a Exu para não se esquecer do que ele afirmara antes: que faria algo inesquecível para qualquer homem que presenciasse. Então Exu o desafiou a demonstrar que possuía poder maior que o seu. Ao saírem pela manhã, Exu pegou um dos galos do chefe da casa, arrancou sua cabeça e a guardou no bolso. Depois, chamou Orunmilá e sugeriu que seguissem viagem. Quando os moradores da casa despertaram, notaram a falta do galo e começaram a procurar o ladrão, aos gritos. Um guerreiro lhes disse: "Pela manhã vi um de seus hóspedes perto do lugar onde os galos ficam': Perguntando pelos hóspedes não os encontraram, mas acharam seu rastro. Quando Exu viu que estavam sendo perseguidos, consciente de sua ação, disse a Orunmilá: "Olhe para trás e veja a multidão furiosa que vem vindo. Apressemo-nos!" Orunmilá ficou com medo e perguntou: "Por que você matou o galo dos outros? Agora terá que sofrer as consequências". Exu respondeu: "Você está muito enganado. Você é quem sofrerá as consequências pelo que eu fiz!" E Orunmilá disse: "A terra não morre. Pode apenas tornar-se estéril. Sendo assim, também não morrerei". Como Exu guardara a cabeça do galo no bolso, seu sangue deixou um rastro no chão e isso serviu para nortear os perseguidores. Ao perceberem que estavam sendo alcançados, e não tendo mais para onde fugir, subiram 62

numa árvore. Os habitantes da aldeia lhes disseram que estavam encurralados. Alguns foram buscar um machado para derrubar a árvore enquanto outros ficaram vigiando. Exu disse então a Orunmilá que chegara o momento de demonstrar o seu poder: faria algo extraordinário e ninguém conseguiria apanhá-lo. E Orunmilá disse o mesmo, reafirmando sua superioridade. Quando a árvore estava sendo derrubada, Exu disse a Orunmilá que se preparasse para a queda. Ao caírem, Orunmilá se transformou em água e Exu cm yangi As pessoas não encontraram nenhum dos dois. Os que beberam água se refrescaram e se acalmaram e os que viram yangí ficaram nervosos, com um brilho aterrorizado no olhar. Observamos no final desta narrativa a referência feita à qualidade calmante desse orixá funfun, 8 contraposta ao poder terrificante de Exu. Os principais símbolos de Orunmilá são: ikin (sementes de dendezeiro ); ç)ta (pedra de assentamento); ibó (instrumento utilizado pelo babalaô para realizar consulta oracular confirmativa, ou seja, consulta de resposta sim ou não); irilk?r? (cauda de animal que, após preparo artesanal e mágico, é carregada por sacerdotes e reis como sinal de realeza e poder) ; ÇJpÇN (corrente divinatória); 9p9n-Ifá (tabuleiro de jogo divinatório); búzios; pedaços de presa de elefante gravados, que ficam em um receptáculo colocado em lugar alto, num canto o u no centro do cômodo. Seus colares e pulseiras são confeccionados alternando-se contas de cor verde e marro m.

Qbalúwayé- Obaluaiê Obalúwayé, palavra decorrente da contração de Oba- 'lu 'aiyé, Rei que é o Senhor da Terra, é também chamado Olúwa Aiyé, Senhor da Terra. Pede-se licença a ele para o uso da terra. Por exemplo, quando um iorubá vai jogar água no chão, normalmente diz: Àgó o Olóde! Com sua licença, Olóde! Olóde é palavra originária da contração de 01', abreviação de Oni, senhorou dono, e ode, espaço externo, terra, significando, pois, Senhor(ou Dono) do espaço aberto, Senhor (ou Dono) da Terra. É também chamado Ilf}-gbóná, Terra quente; Bàbá, Pai; e $9p9nná, Varíola. Senhor da varíola e de todas as enfermidades, Obaluaiê inspira terror e respeito por seu poder de controle sobre as doenças. É associado à cura, à justiça e à paz social. Sua energia é manipulada para agradecer a terra pelo que oferece às pessoas. Seu poder é usado na cura de todas as enfermidades, particularmente as m ais graves e as da pele. 1

Funíi.m: branco. Confo rme já assinalado, a cor bran ca não se refere, evidentemente, à cor da pele, e sim às vestes, simbolizando limpeza e pureza.

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Um de seus orikis diz:

A-$àro-'pe-l'Çrim-im (em situações de referência a Obaluaiê). Aquele cujo nome não deve ser pronunciado durante a estação das secas. Sua permissão é solicitada em festas: Deixe-me obter a permissão do Senhor da Terra, ver se ele nos permitirá dançar. Sua hospitalidade é solicitada no cultivo da terra: o fazendeiro poderia ser extraordinariamente agradado. O algodão não queimaria. Não desagradaria o fazendeiro. O fazendeiro poderia ser extraordinariamente agradado. Estes são os seus símbolos: (Jta, pedra de assentamento; inlkÇrÇ (cauda de animal que, após preparo artesanal e m ágico, é carregada por sacerdotes e reis como sinal de realeza e poder); búzios; ÇjuwÇrÇ (instrumento ritual semelhante ao inlkÇrÇ, feito de couro e, por vezes, enfeitado com búzios ou miçangas); barro; yangí (pedra vulcânica, laterita, símbolo de Exu) e agbada (pote de barro de boca larga) 9 • Suas cores são o branco, o preto e o vermelho. Seus adereços são o lágídígbà, colar feito de contas pretas, de casca de noz de palmeira ou chifre de búfalo; e o colar de contas brancas e pretas alternadas. Obaluaiê é estreitamente relacionado a Exu. Daí origina-se outro de seus nomes: AlápadúpÇ, palavra que pode ser traduzida por Temos que aceitar a inevitabilidade da morte. Alguns anciãos dizem que Obaluaiê é irmão de Xangô. De fato, o elemento fogo é comum a ambos: as febres de Obaluaiê e o poder incendiador de Xangô. Esta crença leva os devotos de Xangô a considerarem-se imunes à fúria de Obaluaiê e vice-versa. Uma expressão disso é a seguinte: Não há dano que o irmão mais velho possa infligir aos filhos do irmão mais novo. Esses ori.xás são tão familiares entre si que, segundo narrativas tradicionais, Obaluaiê frequentemente refere-se a Xangô em tom de brincadeira, dizendo, por exemplo, que quando Xangô vai destruir uma única pessoa faz um enorme alarde, com extraordinários efeitos de luz e som (relâmpagos e raios), enqu anto ele próprio destruirá centenas de pessoas silenciosamente. Ele proíbe a mentira e o mau u so de magia. Usa roupa vermelha e viaja quando o sol está bem quente. Por isso as pessoas são desaconselhadas a usar roupa vermelha e andar sob o sol para não atraírem doenças. Cuidados especiais devem ser tomados durante a estação das secas, de modo a não se 9

Não confundir com agbádá, que significa manto, traje, roupa.

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otar nenhum procedimento que possa ofender o orixá. Isto é compreen··el porque a varíola é mais frequente e se espalha mais facilmente durante e período.

Ôgún-Ogum Ogum, divindade do ferro, da guerra e da caça, é patrono de ferreiros, agricultores, guerreiros e todos os que lidam com ferro, aço e ouros metais, incluindo os profissionais que realizam tatuagens e circuncisões, policiais e os cirurgiões. É também um orixá que defende os homens e es dá o senso de autodefesa. Escolhido por Eledunmare para abrir caminho à civilização, Ogum, rte e poderoso, é o herói civilizador: trabalha sobre a natureza do ferro e fogo. Rege também a mineração, a metalurgia e a agricultura, ligando, assim, às questões do trabalho e da tecnologia. Desbravador, Ogum abre .:aminho para as realizações. Acha-se, por isso, estreitamente relacionado Iyami Oxorongá. Alguns de seus epítetos enfatizam a sua importância no panteão de rixás: Alakaaye, Aquele que é espalhado pelo mundo inteiro; Alá~egbé, .\quele que age sem se arrepender; Ol(Jj(J, Senhor do Dia. Vejamos alguns de seus orikis: ~çadores,

Onílé owó. Ol(Jnà Olà. Dono da morada do dinheiro. Dono do caminho da prosperidade. Ógún Oníre, ohun gbogbo ayé tí Ógún ni. Ógún k(Jlé, kà ní ilÇldm. Oh! Ogum, rei de Ire, tudo o que h á no mundo pertence a ele. Oh! Grande Ogum, que con struiu uma casa e nela não colocou porta para que todos pudessem entrar e compartilhar do seu progresso. Ógún kó ní jç ó sí ewu l(Jnà wá. Com a proteção de Ogum não haverá perigo em nosso caminho. Narra o mito que Eledunmare enviou quatro divindades para cria:-em o mundo: Obatalá, modelador dos corpos humanos; Exu, inspetor dos !ituais e das oferendas feitas pelas divindades e pelos homens; Orunmilá, divindade da sabedoria, conhecedor de todos os destinos; e Ogum, com seu facão, para abrir caminhos às outras divindades e aos homens. Chegando 65

à terra, as divindades tiveram dificuldades para penetrar na mata. Obatalá, Orunmilá e Exu tentaram abrir passagem, porém fracassaram porque suas ferramentas não eram resistentes. Ogum abriu facilmente o caminho para os demais com seu facão. Outro mito narra que Ogum, primeiro filho de Oduduwa, o patriarca dos iorubás, era um poderoso guerreiro, temido por todos e de quem todos dependiam, pois protegia e ensinava. Ajudava seu pai nas expedições de guerra e o acompanhava na luta contra os inimigos. Um dia Ogum e Oduduwa foram a outra cidade para lutar e demoraram para retornar a Ile-If~. Na volta, Oduduwa, muito satisfeito com o desempenho do filho, resolveu oferecer-lhe um presente: enviou-o à cidade de Ire, onde foi coroado rei, passando a ser chamado àgún Oníre, Ogum, Rei de !rê ou Ogum, Senhor de !rê. Em muitos mitos sua generosidade é exaltada: um deles narra que o sucesso da colheita fez sua casa farta e seus vizinhos foram beneficiados por sua grande generosidade. Compartilhava alimentos e conhecimentos, ensinando a todos como caçar, forjar, guerrear e plantar. Seus metais são o ferro, o cobre, o carvão de pedra (mineral) e todos os metais forjados. Seus símbolos são: pÇ, aláimoré, alájçsÇ, jegúnm(>yán, kàmQTa, láillos ou destrutivos, pois malévolos não são eles, e sim as pessoas que :.:izam o axé dessas divindades para atingir objetivos mesquinhos ou ess. Buscando isentar-se da culpa mobilizada por seus pensamentos e timentos destrutivos, algumas pessoas atribuem aos orixás a responsaidade pelo mal realizado. O axé dos orixás é uma força neutra que opera acordo com a vontade humana. debates sobre a natureza benevolente ou malévola de Exu são válidos para os demais orixás.

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Exu, orixá capaz de manifestar-se sob milhares de formas, é d otado de potencial para a realização de atos maléficos. Algumas pessoas servem-se desse potencial para causarem mal a outras e, ao atribuírem a responsabilidade pelos próprios atos a Exu, isentam-se desta responsabilidade. Exu é personagem controversa, talvez a mais controversa de todas as divindades do panteão iorubá. Alguns o consideram exclusivamente mau. outros o consideram capaz de atos benéficos e maléficos e outros, ainda. enfatizam seus traços de benevolência. Em grande parte da literatura disponível Exu é apresentado como um ser ambíguo, entidade neutra entre o bem e o mal ou, ainda, como simultaneamente bom e mau. Há quem se refira a ele como inimigo do homem. Não é esta a posição adotada por nós. Um provérbio iorubá elucida a respeito dessa atribuição feita ao orixá Exu: Olóàót(J ni c)tá ayé - quem diz a verdade é inimigo dos seres. As muitas faces da natureza de Exu acham-se apresentadas nos odus e em outras formas de narrativa oral iorubá: sua competência como estrategista, sua inclinação para o lúdico, sua fidelidade à palavra e à verdade, seu bom senso e ponderação, que propiciam sensatez e discernimento para julgar com justiça e sabedoria. Estas qualidades o tornam interessante e atraente para alguns e indesejável para outros. Por quê? Porque, de um lado, é sempre interessante para os indivíduos e os grupos a possibilidade de ter em quem confiar, de poder contar com quem cumpra fielmente os seus compromissos. Quem não deseja estabelecer parceria com aqueles nos quais se possa confiar em qualquer circunstância? Quem não quer ser parceiro daqueles que não faltam nem falham, silenciam sobre segredos que lhes são confiados, zelam por bens materiais entregues a seus cuidados e os restituem quando solicitados? Por outro lado, porém, tais parceiros são necessariamente criteriosos.. exigentes, disciplinadores, o que pode ser bastante incômodo para aqueles que não optam pelo próprio desenvolvimento. Exu, disciplinador, exige ordem e organização. Exu, o inspetor dos rituais, quando manifesta a verdade, nem sempre agradável de ser ouvida, pode ser considerado um inimigo. Segundo entendemos, Exu é um grande amigo e essa compreensão a respeito de sua natureza encontra fundamento em muitos odus de Ifá, alguns dos quais serão apresentados adiante. 2 2

Vide capítulo 10 - Mitos de Exu n os odus de /fá (iorubá) e capítulo 11 - Mitos de Exu nos odw. de /fá (português).

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Entretanto, um primeiro contato com o corpus da tradição iorubá, em vista o objetivo de compartilhar conhecimentos sobre sua natu- :esponsabilidades no equilíbrio pessoal e cósmico, pode ser favore-e:I.a apresentação de alguns de seus epítetos e orikis_ 3 Cabe observar ::niciados e os devotos de Exu usufruem do privilégio de poder comcom esse orixá os seus inúmeros atributos: cada epíteto refere-se a específico_Iniciados e devotos podem compartilhar com Exu cada JCSSaS qualidades de seu axé. Epítetos e orikis do orixá primordial Exu -~.uí.adé: Esbelto, forte e firme como uma coroa real. Nome que faz :eferência a sua realeza. Seus devotos, quando iniciados, passam a mtegrar sua linhagem real. •EKlt:!'n-irin: Resistente e indestrutível. Nome que faz referência à invencibilidade de Exu, que não perde uma única disputa. •le'C·eo-ijà: literalmente, Senhor do sino da discórdia. Remete à ideia de que a ausência de seu axé favorece a ocorrência de desordem no âmbito individual ou no coletivo. Quando uma pessoa está agressiva, fora de controle, causando confusão, ou quando há pessoas brigando, se diz que Exu está tocando seu sino da discórdia nas proximidades. Nas orações a ele dirigidas pede-se que não toque seu sino no Iar dos que oram. A ausência de disciplina e de responsabilidade cria condições desfavoráveis. Exu é promotor da disciplina e da organização, associadas, evidentemente, a compromisso e responsabilidade. Quando esses elementos estão ausentes, as condições se tornam desfavoráveis e propícias à confusão e aos mal-entendidos_Como as pessoas preferem atribuir a outros a responsabilidade pelos próprios fracassos e sofrimentos, muitas vezes, e impropriamente, atribuem a causa das discórdias a essa divindade e n ão às próprias omissões e falhas. Este equívoco a respeito das causas do sofrimento e da infelicidade favorece a interpretação de Exu como divindade ambígua. Na realidade a desordem ocorre na ausência do axé de Exu. ára: Forte, Poderoso, Incansável; Aquele que influencia a vida das pessoas para que sejam mais fortes. étu: Rei da cidade de Kétu. Refere-se à sua realeza.

:..nrra oríki, composta de orí, origem, e ki, saudar ou louvar, significa saudar ou louvar o ori • z origem daquele a quem se refere. Vide capítulo 12 - Oríki, àdúrà e ibà E$tl. Evocações, rezas :::::rlações a Exu.

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Àlàmulámú-bàtá: nome que denota o bom humor de Exu e a alegria ele traz para a vida das pessoas. Durante suas festas, ao som do tz: bor bàtá, é insistentemente evocado através desse nome, o que