Exército nacional libanês: reflexos do confessionalismo na instituição militar
 9788553104222

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Karime Ahmad Borraschi Cheaito

É muito comum um olhar eurocêntrico e viesado de forma maniqueísta e caricata sobre os mundos árabe e muçulmano, ricos em particularidades e complexidades históricas nem sempre evidenciadas pelas análises facilmente disponíveis. O Líbano não se constitui em exceção a tal lógica. O livro de Karime Cheaito se constitui em uma referência obrigatória para todos que buscam dirimir tal lacuna, lançando luzes sobre um tema fundamental da sua formação e constituição histórica: o caráter confessional de seu Exército Nacional. A pesquisa aqui apresentada mostra de forma profunda e cuidadosa vários aspectos importantíssimos para a compreensão da gênese histórica libanesa, inserida em região sabidamente marcada por grandes e terríveis conflitos.

Biblioteca Básica do Mundo Árabe

O EXÉRCITO NACIONAL LIBANÊS

PEDRO PANHOCA DA SILVA

EXÉRCITO NACIONAL LIBANÊS Reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar

RODRIGO DUARTE FERNANDES DOS PASSOS | UNESP - MARÍLIA/SP

Esta obra de estreia de Karime Ahmad Borraschi Cheaito chega em boa hora para o mercado editorial nacional, que pouco aborda questões ligadas ao Oriente Médio. A grande maestria da jovem pesquisadora resultou em um Prêmio de Mérito Acadêmico. Com isso, o presente livro não trata apenas do Exército Nacional Libanês, e sim de questões como o Império Otomano, a influência francesa no território, a independência libanesa, a implantação do Confessionalismo, o Pacto Nacional Libanês, a Guerra Civil de 1958, a (real) representatividade política e religiosa, entre outras pertinências. Um estudo que, certamente, irá inspirar futuros pesquisadores sobre a região.

LUTAS ANTICAPITAL

Karime Cheaito

EXÉRCITO NACIONAL LIBANÊS: Reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar

Karime Ahmad Borraschi Cheaito

BIBLIOTECA BÁSICA DO MUNDO ÁRABE

KARIME AHMAD BORRASCHI CHEAITO

Exército Nacional Libanês: Reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar

1ª edição LUTAS ANTICAPITAL Marília - 2019

Editora LUTAS ANTICAPITAL Editor: Julio Okumura Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos Aires Argentina), Bruna Vasconcellos (UFABC), Candido Giraldez Vieitez (UNESP), Dario Azzellini (Cornell University – Estados Unidos), Édi Benini (UFT), Fabiana de Cássia Rodrigues (UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Julio Cesar Torres (UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa Silva, Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP), Paulo Alves de Lima Filho (FATEC), Renato Dagnino (UNICAMP), Rogério Fernandes Macedo (UFVJM). Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva e Renata Tahan Novaes Capa: Mariana da Rocha Corrêa Silva Impressão: Renovagraf

C514e

Cheaito, Karime Ahmad Borraschi. Exército Nacional Libanês: reflexos do confessionalismo na instituição militar / Karime Ahmad Borraschi Cheaito. – Marília : Lutas Anticapital, 2019. 190 p. (Biblioteca Básica do Mundo Árabe) Inclui bibliografia ISBN 978-85-53104-22-2 1. Formas de governo. 2. Líbano – Política e governo. 3. Líbano – História – 1920-1943. 4. Líbano - Exército. I. Título. CDD 956.92

Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno CBR 8/8211 - FFC – UNESP – Marília 1ª edição: abril de 2019 Editora Lutas anticapital Marília –SP [email protected] www.lutasanticapital.com.br

SUMÁRIO

Nota.......................................................................7 Nota do Coordenador da Biblioteca Básica do Mundo Árabe – Marcelo Buzetto...........................11 Prefácio – Paulo Cunha.........................................17 Glossário..............................................................25 Cronologia de eventos...........................................29 Introdução............................................................31 Capítulo 1 - Contexto histórico do Líbano: do Império Otomano ao protetorado francês (19201943)....................................................................39 Capítulo 2 - A independência do Líbano e o estabelecimento do Confessionalismo...................89 Capítulo 3 - O Exército Nacional Libanês............139 Considerações Finais..........................................181 Referências.........................................................185 Sobre a autora....................................................189

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 7 NOTA O Brasil vive um dos momentos mais difíceis da sua história. Como nos lembra Florestan Fernandes, o golpe fulminante de 1964, que completou 55 anos, se transfigurou nos anos 1980 em “institucionalização da ditadura”, pois houve uma transição lenta, gradual, segura, sem rupturas e acerto de contas com este período histórico. Fernando Collor de Melo e sua ira farsesca venceram a eleição de 1989, depois de uma grande manipulação da TV Globo no 2º turno. Fernando Henrique Cardoso aprofundou nosso neoliberalismo, com sua reforma do Estado e um grande ciclo de privatizações, aprimorando a ditadura do capital financeiro. Depois de um curto período de ascensão do lulismo, dentro de uma estratégia de conciliação de classes e algumas concessões à classe trabalhadora (política de melhoria do salário mínimo, geração de emprego, cotas, direito das empregadas domésticas, etc.) tivemos um golpe de novo tipo em 2016, e em 2018 a prisão política de Lula, que abriu espaço para eleição de um novo Collor, com suas soluções meteóricas de inspiração na ultradireita supostamente para “corrigir” os males o país. As classes proprietárias declaram guerra aos trabalhadores. No caso brasileiro, interromperam as parcas vitórias da “Nova República”, deram um golpe e enterraram a possibilidade de conciliar as classes sociais, ao ejetar o lulismo do poder. Elas estão promovendo a

8|Exérc ito Nacional Libanês destruição das parcas conquistas da “Nova República” num ritmo mais acelerado. Dias atrás o capitão reformado, atualmente na presidência da república, esteve nos EUA para anexar o Brasil como novo protetorado do império estadounidense. Preparados para este novo ciclo de lutas sociais, onde vai vigorar um longo período de resistência histórica, a Editora Lutas anticapital e nós – coordenadores do Curso Técnico em agropecuária integrado ao ensino médio, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, nos colocamos contra o desmonte da nação e nos comprometemos a publicar livros de qualidade acessíveis ao público brasileiro, que tem “sede” de conhecimento crítico. O curso é fruto de uma demanda do MST e demais movimentos sociais do campo tendo em vista a escolarização e qualificação da população que vive do campo. Somos partidários do estudo da história na perspectiva materialista e dialética. Temos partido, o partido da ciência e somos comprometidos com as lutas emancipatórias da classe trabalhadora. Combatendo nas trevas, optamos por convidar algumas autoras e autores a se pronunciar sobre diversos temas candentes que serão imprescindíveis para os alunos e demais interessados. Estamos montando uma série de Livros de Bolso, de caráter introdutório, voltados para militantes de movimentos sociais, alunos do Ensino Médio, bem como para alunos dos primeiros anos da graduação.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 9 Já publicamos “Sobre o óbvio” de Darcy Ribeiro e “Quem é o povo no Brasil?” de Nelson Werneck Sodré. O texto “A conspiração contra a escola pública” de Florestan Fernandes está em fase de acabamento O conhecimento do Mundo Árabe ainda é bastante restrito no Brasil, principalmente de alunas e alunos trabalhadores do Ensino Médio. Para montar a Biblioteca Básica do Mundo Árabe, convidamos o amigo e pesquisador do tema - Marcelo Buzetto-, da Fundação Santo André e do IFSP. Este livro, da estreante Karime Ahmad Borraschi Cheaito, egressa da UNESP Marília e descendente de libaneses, traz uma breve história da queda do Império Otomano e todos os conflitos que sugiram com a “fabricação” do Líbano: a) investidas do Império Francês, b) conflitos religiosos na região, dando destaque especial ao confessionalismo no Exército Nacional Libanês – uma espécie de distribuição proporcional do poder baseado nas religiões - e como esse sistema político refletiu na instituição militar, que expressou sua parcialidade nos anos 1960 e 70 em prol dos interesses da classe dominante do país, e c) uma análise dos refugiados palestinos no Líbano e o impacto que isso gerou no país. Com a expectativa de que este Livro de Bolso nos ajude a compreender as particularidades do Mundo Árabe, em especial do Líbano nos anos 1970, desejamos a todas e a todos uma boa leitura.

10 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Angelo Diogo Mazin, Daniela Bittencourt Blum, Henrique Tahan Novaes, João Henrique Pires e Joice Aparecida Lopes Coordenadores do Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, integrado ao ensino médio Escola de Educação Popular Rosa Luxemburgo (MST - SP) Convênio UNESP - Centro Paula Souza – PRONERA (INCRA) Bruno Michel da Costa Mercurio, Claudia Maria Bernava Aguillar, Luiz Roman, Natalia Dorini de Oliveira e Theo Lubliner Produtores de Material Didático do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao Ensino Médio Alan Salles, Ana Carolina Mazin, Rogerio Gomes Coordenadores Técnicos da Escola Rosa Luxemburgo Marília e Iaras, 17 de abril de 2019

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 11 NOTA DO COORDENADOR DA BIBLIOTECA BÁSICA DO MUNDO ÁRABE Para conhecer a história e a cultura do Mundo Árabe Compreender a história e a cultura do Mundo Árabe é algo fundamental para que possamos analisar a realidade desse conjunto de nações sem os preconceitos e os equívocos tão difundidos pelas redes sociais e pela mídia empresarial ocidental. Os países e povos árabes sempre foram vítimas de intervenções militares estrangeiras, o que deu origem a muitos conflitos e guerras que estão em desenvolvimento até os dias atuais. A Editora Lutas Anticapital inaugura uma iniciativa bastante original em termos de publicações no Brasil. Criar uma Biblioteca Básica do Mundo Árabe significa assumir um compromisso de difundir um pensamento que reconhece a importância dos árabes na construção e desenvolvimento da própria humanidade. Hoje temos 23 países árabes, que se concentram numa localização geográfica estratégica para o desenvolvimento econômico mundial, por isso o processo de expansão mundial do capital e do capitalismo sempre teve como objetivo controlar e/ou influenciar o Mundo Árabe. Outra constatação é que essa região sempre foi uma importante rota comercial marítima e terrestre. Seus países estão ligados ao Oceano Atlântico, ao Mar Mediterrâneo, ao Mar Vermelho, ao Oceano Índico e ao Golfo Pérsico, só para que tenhamos uma dimensão de como o Mundo Árabe se tornou um elo entre povos, culturas, civilizações, religiões

12 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s e continentes. O Mundo Árabe é um espaço que permite uma relação muito intensa entre África, Ásia e Europa. Muitos dos povos árabes se encontravam, no início do século XX, sob o domínio do Império TurcoOtomano ou sob o domínio neocolonial/imperialista de algumas potências europeias, em especial os territórios árabes africanos. Após a Primeira Guerra Mundial (19141918) uma esperança tomou conta do Mundo Árabe, e por um curto período puderam sonhar com a independência nacional, com a soberania e a autodeterminação. Mas em 1916 a Inglaterra e a França já elaboravam o Acordo Sykes-Pikot, que foi a divisão territorial do Mundo Árabe e Oriente Médio em áreas de influência e mandatos coloniais. Os árabes foram traídos pelo imperialismo britânico e francês, que havia prometido a independência em troca do apoio árabe à luta contra o Império TurcoOtomano. Setores importantes da classe dominante árabe também traíram o seu povo e se aliaram às potências imperialistas, e o sonho de independência e unidade foi interrompido. Essa definição de fronteiras realizada entre 1918 e 1922 pela França e Inglaterra, com a cumplicidade de outras potências, gerou novos conflitos. Portanto, a origem das guerras e conflitos sempre foi a intervenção militar e política estrangeira, com a cumplicidade de importantes setores da elite árabe, preocupados em defender mais os seus particulares interesses econômicos do que os interesses de seu povo. Com a possibilidade de dividir os árabes, e de ter aliados na região, os imperialismos britânico, francês e estadunidense fizeram do Mundo Árabe, no século XX, uma região de permanente instabilidade. Não resta dúvida

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 13 para o atento estudioso dessa região que a origem de todos os conflitos atuais reside no fato de potências europeias e EUA tratarem o Mundo Árabe e o Oriente Médio como espaços estratégicos para a realização de seus interesses econômicos e geopolíticos. Estado Unidos e União Europeia, com apoio de Israel, Arábia Saudita, Qatar, Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Kwait, enfim, as monarquias árabes e seus petródolares, mantém uma situação de guerra permanente contra povos e nações árabes que não aceitam ser sócios-menores do imperialismo e do capitalismo desse século XXI. Os povos árabes sempre lutaram pela libertação nacional, pela independência e pela unidade. Muitas experiências de lutas populares existem no Mundo Árabe, sob a direção de nacionalistas árabes, socialistas árabes, comunistas árabes e outras forças e correntes políticas progressistas, islâmicas ou laicas, por isso a importância de se iniciar uma coleção de livros que possa recuperar essa história de resistência anticapitalista e antiimperialista dos povos árabes. São inúmeras organizações, movimentos, grupos, partidos e governos que fazem parte dessa diversidade de formas de luta e de organização que compôem a resistência árabe contra o imperialismo e seus aliados. Nos anos 50 e 60 do século XX comunistas e socialistas mobilizaram a classe trabalhadora e as massas populares do Mundo Árabe, e o “Socialismo Árabe”, expresso principalmente na figura do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, ganha força e se expande para vários países. Infelizmente o projeto da União Socialista Árabe (partido de Nasser) enfrentou dificuldades para se tornar realidade. O sonho de Nasser era unir todas as

14 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s nações árabes numa única força, para combater o imperialismo e o sionismo (movimento político colonialista que tentar expulsar os árabes da Palestina). Os árabes continuam lutando por melhores condições de vida e de trabalho, e continuam lutando por um projeto de desenvolvimento econômico com justiça social e soberania nacional. Entre as nações árabes duas ainda estão na etapa da luta anticolonialista, pois não tem a sua independência consolidada: Palestina e República Árabe Saharaui Democrática (RASD/Saara Ocidental). Palestina foi ocupada ilegalmente por Israel. A RASD está ocupada ilegalmente por Marrocos. Inauguramos essa coleção com o livro “Exército Nacional Libanês: reflexos do confessionalismo na instituição militar”, de Karime Ahmad Borraschi Cheaito. Sem dúvida um livro que nos ajuda a compreender a fascinante história do Líbano e as tragédias que acompanharam o seu povo durante as últimas décadas. Mas a história recente do Líbano é uma história de vitórias e de construção de um invencível movimento popular de resistência anti-imperialista. No Mundo Árabe o Líbano ficou conhecido como o “Vietnã de Israel”, pois foi no campo de batalha libanês que um dos considerados mais poderosos exércitos do mundo foi derrotado e humilhado por uma coalizão de forças políticas e militares árabes. Israel invadiu o Líbano, praticou um massacre contra a população civil libanesa e contra os campos de refugiados palestinos no Líbano. Mas a unidade da Resistência Palestina com a Resistência Libanesa resultou num dos mais belos episódios da luta anti-imperialista no Mundo Árabe. Merece destaque a atuação do Hezbollah,

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 15 principal força política anti-imperialista em atuação hoje no Mundo Árabe. Hezbollah, Partido Comunista Libanês, AMAL, palestinos e outras forças mostraram que é possível enfrentar um inimigo poderoso e, mesmo com dificuldades, vencer. Por isso estudar o Líbano, em suas múltiplas dimensões, sempre será uma enorme contribuição para as lutas anti-imperialistas. Marcelo Buzetto Professor de Geopolítica do Mundo Contemporâneo no Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Fundação Santo André Pós-doutorando em Ciências Sociais na UNESP-Marília e professor de Sociologia no Instituto Federal São Paulo – Campus São Roque.

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PREFÁCIO Uma história no tempo presente Tempo e história são duas dimensões diferenciadas nas Ciências Sociais, na Política e principalmente na filosofia, embora sejam conceitos igualmente osmóticos quanto a um objeto de estudo. Podem também ter múltiplas agendas, uma navegando pelo tempo de forma paralela à história, mas nem sempre confluentes. Não são poucas as expressões relacionadas a ambos os conceitos, uma delas, inclusive, advinda do senso comum, a dizer que o tempo é o senhor da razão. Ou outras, sempre na ordem do dia e que remetem as lições da história, as quais seu estudo nos permite não repetir os erros do passado. Divagações à parte, são mediações, sobretudo, nos desafios do presente e da contemporaneidade, especialmente quando resgatamos no tempo um objeto do presente inconcluso na história. Esse é o desafio do presente livro de Karime Cheaito. A princípio, o livro em questão intitulado “Exército Nacional Libanês: reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar”, é fruto de um valioso esforço acadêmico, superado com dificuldades dada a lacuna bibliográfica sobre o tema e a quase total relacionada ao objeto. O livro até pode sugerir que seja uma reflexão pontual, até minimizada, na medida em que se refere a um objeto nada popular entre os leitores - o Exército relacionado a um pequeno país, geograficamente situado bem distante, mais conhecido pela Guerra Civil vivenciada, cuja presença em nossa história é bem

18 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s significativa devido à comunidade libanesa politicamente bem atuante que existe no Brasil, entre outras influências, como a culinária ou a atuação de seus membros no comércio entre outras atividades empresariais. Tão integrados os libaneses estão no Brasil que sua identidade não é mais que uma referência distante no tempo e na história. A obra também poderia ser uma possibilidade e aproximação somente diletante, no sentido de uma curiosidade literária, na medida em que as questões postas não se referem ao nosso cotidiano ou mesmo as suas lições na história estão distantes de nosso tempo. Nada mais errado que essa leitura. A história do Líbano é muito maior que sua dimensão geográfica e está mais próxima do que um olhar no mapa, mesmo existindo para as novas gerações algumas dificuldades de sua localização no tempo enquanto país. Nação nova e povo antigo, riqueza e também pobreza, guerra e paz, tudo junto e articulado à beleza de um universo sugestivamente apaziguador, situado em uma das mais conturbadas regiões do planeta. Sua identidade societária seja talvez o maior desafio de sua apreensão, afinal, o Líbano, mais conhecido como o País dos Cedros, possui uma realidade étnica, cultural e religiosa multifacetada composta por cristãos, Drusos, Muçulmanos Xiitas e Sunitas e, mais recentemente no tempo, por milhares de refugiados palestinos. Uma convivência, vale dizer, sempre tensa. A despeito dos conflitos pontuais, o país foi preservado ao longo de décadas e suas instituições atuaram de algum modo nesse sentido, assim como emergiu uma identidade

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 19 nacional, ao menos por um tempo. Porém, a dramaticidade de sua ruptura política é que nos desafia a pensar como aquele pequeno país, visto na literatura como a Suíça do Oriente Médio, chegou a tal ponto que a débâcle institucional resultasse numa cruenta Guerra Civil, agravada, em alguma medida, pela entrada de refugiados palestinos, que levou o país, inclusive, a ser presa fácil de seus poderosos vizinhos – Síria e Israel que ocuparam seus territórios, ao menos parte dele, por um tempo. Qual a razão tudo? Há várias, e, seguramente, não é fácil confluir em uma única resposta. Uma delas remete ao Líbano e sua história no tempo, e um tempo de uma história não equacionada. Karime, em seu livro, oferece muitas pistas elucidativas para o entendimento dessa questão, centralizando em seu objeto, um recorte específico do Exército Libanês, instituição – em tese – nacional, que em tudo deveria refletir a unidade multifacetada de um país. A autora, no entanto, bem demonstra que não foi isso que aconteceu; muito pelo contrário. Ao trazer o Líbano da Independência à Guerra Civil, revela que sua formação já foi eivada de desconfianças e descompassos desde o início, em nada descolada da influência de outros atores nesse processo (como por exemplo, a França) cujo resultado adveio com o Pacto Nacional de 1943 que expressou o Confessionalismo. A rigor, Karime demonstra que o Pacto embutia no seu germe tensões e desavenças que se revelaram no tempo e cujo efeito, como sinalizado, foi devastador na história do Líbano. Primeiro, o Pacto foi construído a partir de um levantamento demográfico, mas cujo censo

20 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s se tornou objeto de suspeita quanto a efetiva proporcionalidade das várias comunidades. Noutras palavras, não expressava a população real existente entre os vários grupos à época. Segundo, o acordo sinalizava a presença e a participação dos vários grupos libaneses no cenário político e nas várias instituições do Estado, possibilitando, na origem, alguma divisão de poderes. Mas não foi o que aconteceu e se demonstrou na prática. Uma dessas instituições, em tese, que deveria ser objeto dessa atenção, era o Exército. Antes cabe um parêntese. Contemporaneamente, há um rico debate sobre a questão dos militares e a política, e, de certa forma, um consenso que esta categoria não deva participar da política, por serem membros do Estado com armas. Porém, essa leitura é confrontada por uma mais recente, a de que a cidadania não comporta essa discriminação ou exclusão, e exemplos pelo mundo na antiguidade bem como na contemporaneidade dão fundamento essa tese. A história recente do Exército no Líbano nos desafia teoricamente em ambas as perspectivas. Na verdade, os militares sempre estiveram presentes na história do país, mas, concretamente, como em nenhuma outra instituição, o Exército Nacional Libanês, que deveria refletir essa proporcionalidade e compromisso com a neutralidade, independente da participação ou não de algum de seus membros enquanto cidadãos, faltou ao encontro da história. Essa distorção, de origem no Pacto Nacional, foi bem mais reveladora e trágica que as demais instituições do Estado, que, aos poucos, conjuntamente com as demais mediações, dinamitaram a frágil coalizão

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 21 política, que em tese, era democrática. Portanto, é no desafio e objeto específico dessa atenção – o Exército – que Karime procura oferecer uma explicação em seu livro sobre as vicissitudes da trágica história libanesa recente. Como sinalizado, a instituição militar, enquanto parte do aparelho do Estado, não deve ser objeto de partidarização ou estar a serviço de governos, e sim da sociedade e de seus cidadãos na defesa da pátria. Observa-se, de imediato, que esse pilar não foi contemplado em sua formação, conferindo um dos aspectos erosivos do Pacto confessionalista, que, ao contrário do projeto que também deveria nortear a instituição militar, expressou o seu vício de origem. Ou seja, a despeito de ser um corpo militar e não político, em tese, profissional, o exército deveria refletir em seus quadros a proporcionalidade construída pelo Pacto de 1943. Karime, no entanto, bem demonstrou que o Exército Nacional Libanês não era nada nacional e era fundamentalmente um Exército Cristão, que, na verdade, passou a ser visto muito mais como uma milícia ou facção de um grupo religioso do que como uma instituição da nação. Seguramente, é um exemplo, quiçá uma explicação, e uma dos maiores contribuições revelada pela autora em seu livro, que explica a parcialidade da instituição em sua intervenção na Guerra Civil. Talvez, não poderia ser de outra forma ou até tenha atuado numa expectativa já posta, mas não admitida em sua origem, na medida em que, inevitavelmente, o Pacto de 1943 trouxe embutido em sua elaboração uma bomba de efeito retardado, que explodiria cedo ou tarde, e o exército

22 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s acabou intervindo nos confrontos da Guerra Civil, especialmente quando a instituição militar foi tragada pela luta entre as várias facções e tomou partido por uma delas, não tendo em vista a unidade do país. Seguramente, é uma parte da história cujas lições têm muito a ensinar, e pelo visto os libaneses também muito que aprender. Esse ponto é bem revelador nessa pesquisa, mas há outras inquietações que o trabalho nos oferece sinalizando para futuras explorações. Talvez, uma delas, seja de que a democracia não comporta adjetivos. Ou remete ao princípio grego, que reconhece a igualdade entre cidadãos ou ela mesma não tem efeito no tempo para superar essas contradições. Talvez seja essa a maior lição dessa história, cujo vício de origem é que levou o Líbano somente a uma democracia formal, em nada efetiva ao conjunto dos cidadãos, e que, certamente, foi uma das causas de sua ruptura política. A outra, igualmente, remete as lições da história recente do país, ou melhor, ao seu aprendizado, se é que houve. A despeito de todos estarem atualmente anestesiados pelas lembranças da Guerra Civil, é importante articular essa dimensão contemporaneamente na presente democracia libanesa, que é, sobretudo, desafiadora no tempo e na história. Melhor, cabe pensar se a história foi aprendida devidamente pelas lições amargas de um conflito não muito distante no tempo. Talvez, muito pouco. Enfim, essa é a maior contribuição reflexiva que o livro proporciona e essa história do Líbano na contemporaneidade remete a uma conclusão válida e universal: a

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 23 democracia não comporta adjetivos. Com essa reflexão, temos, sobretudo, muito mais um ponto de partida do que de chegada. Paro aqui, afinal, esses últimos parágrafos são mais inquietações pessoais do prazer de uma leitura e um aprendizado. Não quero tirar dos leitores o prazer dessa narrativa e, sobretudo, inquietações ou conclusões entre as muitas pistas que Karime Cheaito proporciona com sua narrativa. Cada um tire a sua, mas sugiro que caminhemos com ela.

Marília, 4 de abril de 2019 Paulo Ribeiro da Cunha Livre Docente em Ciência Política na UNESP

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GLOSSÁRIO Confessional: relativo a alguma crença religiosa. Confessionalismo: sistema de governo criado com o objetivo de unir política e religião. Os países que adotam esse regime político, normalmente, distribuem de forma proporcional os cargos dos poderes políticos e institucionais entre as comunidades religiosas reconhecidas oficialmente no território. Islamismo: religião monoteísta fundada por Maomé em 622, que possui como fundamento cinco pilares centrais: a crença de que existe um único Deus e Maomé é seu profeta; a necessidade de se realizar preces rituais, cinco vezes ao dia, em direção à Meca; uma doação anual chamada pelos árabes de zakat que é oferecida pelos muçulmanos aos necessitados; realização do Ramadan, o qual, durante um mês, os muçulmanos jejuam do nascer do sol até o anoitecer, sendo proibido o consumo de cigarros, bebidas e alimentos; realizar, ao menos uma vez na vida, uma peregrinação à Meca. Aqueles que seguem o Islamismo leem o Alcorão, livro sagrado no qual se acredita conter uma coletânea de revelações que Deus havia feito ao profeta Maomé. Muçulmanos: denominação atribuída a todos os indivíduos que praticam e segue o Islã como religião. Cristianismo: religião monoteísta que baseia sua fé em Jesus Cristo, a qual possui como fundamentos: a crença na Bíblia como livro sagrado a ser seguido; Deus é formado por três pessoas (o Pai, o Filho e o Espírito Santo), conhecido como Santíssima Trindade; após a morte, as pessoas têm a vida eterna; por fim, a crença de

26 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s que a volta de Cristo marcará o fim dos tempos e uma nova era no mundo. O Cristianismo possui diversas vertentes, como o catolicismo, o protestantismo e o pentecostalismo. Cristãos: todo indivíduo que adere como religião o Cristianismo. Maronitas: indivíduos que pertencem a Igreja Maronita, de origem oriental, a qual compõe uma das vertentes do Cristianismo. A Igreja Maronita reconhece a autoridade do Papa como líder da Igreja Católica Apostólica Romana e é mais tradicional no Líbano. Os maronitas possuem um ritual próprio, no qual a missa é propagada em aramaico, diferente do rito latino adotado pelos católicos ocidentais. Xiitas: indivíduos seguidores do Xiismo, uma das vertentes do Islamismo, que é considerada minoritária na religião. Os Xiitas acreditam que o sucessor legítimo de Maomé, após sua morte, deveria ser Ali, seu genro. Sua crença se baseia na existência dos doze imãs, que seriam os sucessores, espirituais e políticos, do profeta Maomé, responsáveis por representar uma vida exemplar e capazes de interpretar o Alcorão. Sunitas: indivíduos adeptos da maior vertente do Islamismo, o Sunismo, que é considerado a versão mais ortodoxa da religião. Os sunitas seguem a Suna, documento sagrado que narra as experiências de Maomé e que é visto como um referencial para as questões que não são tratadas pelo Alcorão. Drusos: pequena comunidade religiosa, presente em alguns países árabes do Oriente Médio, que se identifica como uma das vertentes do Islamismo. No entanto, essa afirmação é contestada pelos muçulmanos xiitas e

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 27 sunitas, que não identificam os drusos como muçulmanos. São monoteístas e foram influenciados por diversas correntes de pensamento, inclusive pela filosofia grega. Império Otomano: importante Império que durou de 1299 a 1923, o qual se estendeu para vastos territórios no norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio. Iniciou seu desenvolvimento na região da antiga Anatólia, também conhecida como Ásia Menor, onde se localiza a atual Turquia. Levante: denominação atribuída a uma antiga região que era composta pelos atuais territórios da Síria, Líbano, Jordânia, Palestina, Israel e Chipre. Pan-arabismo: movimento iniciado e liderado por Gamal Abdel Nasser, que tinha como objetivo a unificação de todos os países árabes-muçulmanos, visando fortalecer a cultura e a causa islâmica e se opor a presença dos países imperialistas ocidentais nos países árabes. Sectarismo: em seu sentido estreito, sectarismo se refere ao seguidor de uma determinada seita religiosa. No entanto, o termo pode denotar também uma visão referente à intolerância e intransigência, as quais podem resultar em confrontos entre grupos religiosos. Secularismo: refere-se à separação que ocorre entre as instituições políticas e as instituições religiosas. Ou seja, um sistema que separa a religião do Estado e das demais instituições governamentais.

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CRONOLOGIA DE EVENTOS 1299 – Início do Império Otomano 1840 – Primeiro conflito de caráter confessional na região do atual Líbano, no qual drusos e maronitas se confrontaram, resultando na primeira divisão confessional do território 1845 – Segundo confronto confessional no território, no qual se realizou uma aliança realizada entre os xiitas e os drusos que lutaram contra os cristãos. No mesmo ano, após o conflito, criou-se o Conselho Misto 1858 – Revolta camponesa que resultou na criação das primeiras organizações paramilitares do país 1860 – Confronto confessional entre os drusos e os cristãos. Tropas francesas desembarcam na região para proteger os maronitas. Ocorreu a criação do primeiro Parlamento do território 1892 – Elaboração do Guia de Murray 1914-1918 – Período da Primeira Guerra Mundial ou Grande Guerra e declínio do Império Otomano. 1916 – Elaboração do acordo Sykes-Picot entre a França e a Inglaterra 1918 – Elaboração da Declaração Anglo-Francesa 1920 – Ocorre a Conferência de San Remo e a França recebe o mandato sobre a Síria e o Líbano, criando-se o Estado do Grande Líbano. Britânicos mantêm mandato sobre a Palestina 1926 – Elaboração da primeira Constituição libanesa. 1932 – Realização de um censo demográfico, feito pelos franceses, no qual os cristãos maronitas foram identificados como a maioria populacional do país

30 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s 1936 – Elaboração do Tratado Franco-Libanês. Neste mesmo ano, Pierre Gemayel funda o Partido Falange após visita à Alemanha nazista 1940-1944 – período da Segunda Guerra Mundial. 1943 – Líbano conquista sua independência e elabora o Pacto Nacional Libanês 1946 – Tropas francesas deixam o Líbano. 1948 – Criação do Estado de Israel e migração de palestinos para o Líbano 1956 – Guerra de Suez, no Egito 1958 – Criação da República Árabe Unida. No mesmo ano, iniciou-se a Guerra Civil no Líbano, a qual os muçulmanos se mobilizaram contra o governo e a favor do plano Pan-arabista de Nasser. Fuzileiros dos EUA desembarcam em Beirute, a pedido do presidente Chamoun, devido a evocação da Doutrina Eisenhower 1969 – Elaboração do Acordo do Cairo, que regulamentou a presença dos palestinos no Líbano e sua relação com o Exército Nacional Libanês 1970 – Palestinos da OLP são expulsos da Jordânia e migram para o Líbano. Aumento dos confrontos entre a OLP e Israel no sul do país. 1973 – Retorno dos confrontos entre os palestinos e o Exército Nacional Libanês 1975 – Eclosão da Guerra Civil Libanesa

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INTRODUÇÃO Estudar o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que é fascinante, exige muita dedicação, devido à complexidade das temáticas que envolvem a região. Sou a primeira geração de minha família a nascer no Brasil, fato este que, mesmo estando em terras brasileiras, me fez permanecer vinculada à história e à cultura dos povos árabes e, principalmente, das comunidades muçulmanas. O interesse em estudar e analisar, de maneira mais aprofundada, as questões políticas que rodeiam os países árabes e, mais especificamente, o Líbano, veio de muito jovem, interesse esse articulado com a necessidade em compreender a própria história de minha família. Através da realização de leituras acerca da formação e funcionamento do sistema político libanês, pautado em uma divisão sectária e desigual, surgiu o interesse em compreender de que forma as outras instituições do Estado, como por exemplo, o Exército Nacional, foram afetadas por essa lógica política que reproduz a dominação de uma classe específica no poder. A partir de então, iniciei meus estudos sobre a temática, enfrentando a constante dificuldade em encontrar referências bibliográficas que abordassem de uma forma mais detalhada e crítica o assunto. Deparei, deste modo, com a lacuna existente de estudos científicos sobre o Líbano e, especificamente, sobre o Exército Libanês, pouco estudado dentro dos espaços acadêmicos. Considera-se aqui a importância em se compreender, mesmo que de forma mínima, o Oriente Médio e destacar como a religião naquele espaço exerce um papel central

32 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s em suas organizações políticas e sociais, buscando trazer ao debate questões acerca da relação existente entre o Estado e as organizações militares nos países árabes e trazer para a reflexão a existência de modelos políticos que são diferentes dos modelos adotados pela maioria dos países ocidentais, os quais já estamos habituados. Além disso, torna-se importante compreender, concomitantemente, a influência do imperialismo europeu nos países árabes, os quais, até os dias atuais, sofrem com as consequências dessa dominação. Com esta pesquisa, deste modo, buscarei trazer, de forma ainda sintética em relação à complexidade da história e das estruturas dos países árabes, um conhecimento acerca de um sistema político pautado no Confessionalismo e como este influenciou e organizou as instituições do país, de forma que a hegemonia de um grupo religioso específico fosse garantida em detrimento das demais comunidades religiosas que coexistiam. Ressalto, ainda, que este estudo foi fomentado por uma bolsa de Iniciação Científica atribuída pelo CNPq, que permitiu com que eu viajasse a diversos congressos, nacionais e regionais, como aqueles promovidos pela ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa), os quais possibilitaram com que fosse possível difundir meus estudos à diversos especialistas e estudiosos sobre a temática, assim como para àqueles que possuíam o interesse em conhecer um pouco sobre o Oriente Médio e a situação política e militar dos países árabes. Com isso, esta pesquisa sintetiza um pouco de todas essas experiências que vivi e compartilhei ao longo destes quatro anos.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 33 A partir destes apontamentos, tem-se como objetivo central neste estudo realizar uma análise crítica acerca da relação existente entre o Confessionalismo, sistema político estabelecido no país que se baseia na divisão dos poderes e dos cargos políticos a partir das comunidades religiosas oficiais existentes, e o Exército Nacional Libanês, buscando identificar de que forma um regime político baseado no sectarismo influenciou, entre os anos 60 e 70, as ações da instituição militar diante a presença dos refugiados palestinos no território libanês. Segundo a análise realizada, ao invés de representar uma instituição vinculada aos interesses nacionais, o Exército Libanês foi utilizado com um instrumento para garantir a manutenção da dominação e dos interesses da classe dominante do país: os cristãos maronitas. Deste modo, a instituição refletiu os interesses de uma minoria populacional que possuía o controle e o domínio dos principais cargos políticos, administrativos e militares graças ao que foi acordado no Pacto Nacional Libanês de 1943, que determinou o Confessionalismo como sistema político e atribuiu privilégios aos cristãos maronitas em detrimento das comunidades muçulmanas. A história do Líbano está vinculada a intensos conflitos e a uma convivência interna e externa por vezes pacíficas, por vezes conflitantes, devido a presença de grupos religiosos heterogêneos que coexistem na região, com diferentes culturas, religiões e histórias. No Líbano coexistem, principalmente, duas comunidades religiosas: os muçulmanos e os cristãos, que se dividem em diversas vertentes. A convivência entre estas duas comunidades religiosas, desde quando o Líbano pertencia ao Império

34 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Otomano, não refletia uma integração social e histórica. Por este motivo, o interesse em elaborar esta pesquisa está vinculado, além de questões pessoais, ao objetivo de contribuir, de alguma maneira, para os estudos e pesquisas sobre a temática, através do desenvolvimento de uma análise crítica da política libanesa e das relações inter-religiosas que se manifestam no país. Concernente ao estudo das Forças Militares e a sociedade, há duas concepções possíveis de análise: considera-se a “Concepção organizacional”, que enfatiza a autonomia que a instituição militar possui em relação à sociedade; e “Concepção Instrumental”1, a qual consiste na busca dos motivos das manifestações militares a partir dos interesses de classes, grupos, forças políticas e das correntes de opinião presentes, cuja leitura acredita que as ações militares sempre favorecem um grupo ou uma classe específica que busca o poder e o controle do Estado. Por essa razão, o estudo aqui realizado utiliza-se como referencial metodológico de análise das Forças Militares no Líbano a “Concepção instrumental”, que considera enquanto pressuposto a existência de uma interação civil-militar, analisa as pressões e os fatores internos e externos à instituição militar, e, no estudo de caso, a determinante influência do grupo dos cristãos e do Confessionalismo nas atuações do Exército Nacional Libanês. Por este referencial, a presente pesquisa objetiva 1Esta

concepção metodológica foi influenciada à esquerda por Nelson Werneck Sodré e, no campo conservador, por Samuel P. Huntington, encontrando-se presente na obra “Os Partidos Militares no Brasil”, sob a coordenação de Alain Rouquié.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 35 apreender a interação existente entre os agentes sociais e políticos libaneses com as Forças Armadas, bem como analisar e explicar seus fundamentos e seus comportamentos durante os anos 60 e 70. Segundo Antônio Carlos Peixoto (1980, p. 29): As forças militares agem a partir de estímulos encontrados fora das fronteiras da corporação. Elas são acionadas por grupos de interesse ou de pressão e, em ultima analise, o sentido final da intervenção militar favorece sempre um ou outro dos grupos que disputam o poder e o controle do aparelho do Estado. [...] é na interação das Forças Armadas com os agentes sociais e políticos que se encontram os fundamentos do comportamento militar e os pontos-chave que possibilitam sua compreensão.

Ressalto, novamente, que houve uma dificuldade ao realizar a pesquisa no que concerne à disponibilidade de obras e trabalhos que fazem referência à temática estudada, ou seja, existe ainda uma lacuna muito extensa de estudos na área e, por este motivo, o acesso a bibliografias sobre o tema ficou restrito a algumas obras centrais, como “A Tragédia no Líbano: retrato de uma Guerra Civil”, de Domingo del Pino; “Os Libaneses”, de Murilo Meihy; “Pobre Nação”, de Robert Fisk; e, além dessas obras, utilizei teses e dissertações de pesquisadores que se dedicaram a estudar o sistema político libanês, sua formação e suas consequências. Houve dificuldade em se ter acesso a alguns documentos

36 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s oficiais, que não foram disponibilizados pelos locais consultados, como a Embaixada e o Consulado Libanês. No entanto, a partir do que foi possível de ser coletado e analisado, tentou-se organizar neste trabalho diversas informações e dados que permitiram a reconstrução de momentos essenciais para a compreensão da história libanesa e de sua formação política, assim como se tornou possível compreender os conflitos religiosos internos do país e como estes estiveram vinculados a uma luta de classe, sem desconsiderar a influência externa, principalmente da França, na divisão social e política do Líbano. Para realizar esta pesquisa, a dividimos em três capítulos centrais. O capítulo I, “Contexto histórico do Líbano: do Império Otomano ao protetorado francês (1920-1943)”, busca-se descrever como ocorreu a formação política do Líbano desde o Império Otomano, partindo dos primeiros conflitos confessionais que se estenderam na região e destacando a intervenção da França nos assuntos internos do Levante, observando como o imperialismo francês influenciou a formação política do Líbano e gerou consequências sociais e econômicas que são sentidas até os dias atuais pelo país. No capítulo II, “A independência do Líbano e o estabelecimento do Confessionalismo”, analisa-se todo o processo de independência do país e as consequências que dela resultaram, destacando o Pacto Nacional de 1943, o qual determinou o Confessionalismo como sistema político, e como este demonstrou suas fragilidades logo que foi implementado, resultando na Guerra Civil de 1958 e em uma série de rebeliões

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 37 muçulmanas contra os governos cristãos, pois os mesmos se sentiam injustiçados com a partilha dos poderes realizada. Por fim, no capítulo III, “O Exército Nacional Libanês”, realiza-se uma análise detalhada de como a instituição militar adotou a lógica imposta pelo Confessionalismo e agiu, entre os anos 60 e 70 principalmente, conforme os interesses das classes cristãs dominantes, que visavam garantir sua manutenção no poder mesmo que este não fosse mais considerado legítimo pela maior parte da população libanesa, composta majoritariamente pelos muçulmanos. Neste capítulo, tem-se como foco a análise da ação militar realizada contra a presença dos refugiados palestinos no país, que eram vistos pelos cristãos como uma ameaça à sua hegemonia política. Com isso, a pesquisa vincula a formação política do Líbano aos elementos do imperialismo francês no Oriente Médio, que gerou consequências políticas, econômicas e sociais no país, buscando, deste modo, compreender de que forma o estabelecimento de um sistema político frágil e desigual contribuiu para a reprodução de conflitos inter-religiosos e para os comportamentos parciais que foram identificados no Exército Nacional Libanês, utilizado com um meio de garantir a dominação de uma classe minoritária nos principais cargos políticos e militares.

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CAPÍTULO I Contexto histórico do Líbano: do Império Otomano ao protetorado francês (1920-1943) Para que seja possível compreender os conflitos religiosos que ocorreram no Líbano no século XX e como estes estiveram vinculados à estrutura e ao sistema político libanês, o qual foi capaz de influenciar a atuação do Exército Nacional do país entre os anos de 60 e 70, é necessário antes analisar a história do Líbano aliada a seus aspectos geográficos, considerando sua formação dentro da região conhecida atualmente como Oriente Médio. Tanto os elementos geográficos como os históricos são essenciais para que se torne possível o estudo e a compreensão da divisão religiosa e social existente no interior do país, que resultou, posteriormente, em sua divisão política e confessional. O nome atribuído ao Líbano, que em árabe significa “branco”, faz referência à neve que cobre os mais altos picos de suas cadeias montanhosas, presentes em grande parte do país. Seu território de 10.453 km² possui 210 km de litoral na costa oeste, onde se localizam as principais cidades de origem fenícia, como Beirute, Biblos, Sidon, Tiro e Trípoli. O local em que se encontra possui uma posição geopolítica estratégica e cobiçada principalmente pelos interesses europeus, pois realiza o ponto de encontro entre os três continentes: Europa, Ásia e África. Além disso, o Líbano serviu - e ainda serve - como porta de entrada para o mundo árabe, realizando, ao seu Norte e Leste, fronteiras com a Síria; ao Sul, com Israel; e toda

40 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s sua zona Oeste com o Mar Mediterrâneo. Figura 1 - LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DO LÍBANO

Fonte: Osman (2006)

O país foi dividido em três regiões principais: Monte Líbano, Vale do Bekaa e Anti-Líbano. O Monte Líbano, localizado a oeste do Mar Mediterrâneo, é composto por uma cadeia montanhosa de 170 km de extensão. Enquanto isso, o Vale do Bekaa possuí uma extensão de 125 km, situando-se entre duas cadeias de montanhas e sendo banhado principalmente pelos rios Litani e Orantes, por este motivo, a região caracteriza-se pelo seu solo fértil e por ser a responsável pelo abastecimento agrícola do país. Por último, o Anti-Líbano, cadeia de montanhas com 120 km de extensão - com o clima mais árido do país por formar a barreira do deserto.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 41 Essa é, atualmente, a região menos habitada e o ponto estratégico dos interesses geopolíticos, pois serve como ponto de encontro do território com a Síria e com Israel2. Figura 2: REGIÕES GEOGRÁFICAS DO LÍBANO

Fonte: Osman (2006)

OSMAN, Samira Adel. Entre o Líbano e o Brasil: dinâmica migratória e história oral de vida. 2006. 275 f. Tese (Doutorado em História Social)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. 2

42 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s A respeito da esfera econômica libanesa, além da agricultura, que corresponde cerca de 20% da atividade econômica, e das atividades industriais3, que também correspondem a 20% da economia, existem os grandes setores econômicos que concentram 60% dos investimentos, os quais concentram as atividades ligadas ao turismo e aos serviços bancários. No entanto, os dados estatísticos referentes ao Líbano são sempre desencontrados, uma vez que a longa guerra na qual o país esteve envolvido, entre 1975 e 1991, paralisou os registros de qualquer natureza. Politicamente, o Líbano está dividido em seis províncias ou mohafazar, que surgiram na época do Império Otomano a partir do domínio das famílias locais em cada uma das regiões do território. Essas províncias representam o reconhecimento atribuído ao poder exercido por essas famílias e foram criadas com o objetivo de melhorar e facilitar a administração do território. Tal divisão corresponde à ocupação geográfica e inserção econômica ligadas à questão religiosa do Líbano. Existem no país dezenove comunidades religiosas oficialmente reconhecidas, sendo quinze delas (as com maior número de adeptos) organizadas por leis e decretos. Embora não existam dados estatísticos oficiais concernentes ao número de habitantes por religião, estima-se, sobretudo

As atividades industriais se concentram na região do Monte Líbano, com suas produções voltadas para os setores alimentício, movelar, produtos metálicos e vestuário. 3

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 43 pelos votos, que os muçulmanos representem 60% da população e os cristãos 40% 4 . (OSMAN, 2006. p. 34).

As províncias são: Beirute, que representa atualmente a capital do Líbano e tem sua capital denominada Zahle, a qual concentra as principais zonas arqueológicas do país; O Sul do Líbano, com a capital Saïda; O Monte Líbano, com a capital de nome Baabda; O Norte do Líbano, com a capital Tripoli, onde se localizam os famosos cedros - ponto turístico da região e presente na bandeira libanesa; E, por fim, Nabatiyé, com a capital do mesmo nome.

Os dados referentes à religião são os mais difíceis de serem encontrados, por estarem dispersos em diferentes fontes – oficiais e não oficiais -, apresentando diversos resultados que diferem entre si. Para isso, foram utilizados nesta pesquisa como referência os dados apresentados por Osman em sua tese de doutorado. 4

44 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s FIGURA 3: PROVÍNCIAS ADMINISTRATIVAS

Fonte: Osman (2006)

1.1 Divisões religiosas Ao considerar, a partir de então, a divisão religiosa do país, os cristãos5 presentes no Líbano, em sua maioria, são de origem oriental. Destacam-se: os maronitas a partir do século VII; os gregos católicos ou melquitas, separados da Igreja Grega Ortodoxa em 1724; os católicos armênios, descendentes dos que sobreviveram aos massacres do Império Otomano; e os sírios católicos e os caldeus. Já os muçulmanos dividem-se, basicamente, em

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Reconhecidos pela Igreja Católica Romana.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 45 três vertentes principais: os sunitas, os xiitas e os drusos. Os sunitas reconhecem a legitimidade dos quatro primeiros califas eleitos por um conselho após a morte do profeta Mohammed (Maomé) e seguem o Alcorão e a Suna6. Esta comunidade religiosa foi capaz de acumular poder aliando-se aos mamelucos e depois aos Turcos Otomanos, favorecidos pela fé comum que compartilhavam entre si. Eles ocupavam, na esfera econômica, a função de mercadores, comerciantes e empresários, porém, temiam que seu sucesso econômico fosse ameaçado pelos muçulmanos xiitas quando estes também fossem capazes de estabelecer sua vida econômica no Levante. Desta forma, os sunitas fundaram e consolidaram seu poder através da adoção de políticas que consistiam na miserabilidade dos povos xiitas, tornando-os incapazes de competir econômica e politicamente na região. A outra vertente muçulmana é a dos xiitas, que reconhecem a legitimidade do quarto califa, Ali, primo e genro do profeta. Essa comunidade religiosa se dividiu em várias outras seções, e a que se tornou a principal no Líbano é a Duodécimo, que reconhece a legitimidade dos doze Imans. Os xiitas se baseiam em uma filosofia que envolve tanto suas crenças religiosas como sua própria luta política, já que durante o Império Otomano, o qual era controlado pelos sunitas, este grupo religioso foi abandonado a situações de extrema pobreza principalmente na região sul, onde hoje se encontra o

A Suna expressa as tradições, os ditos e os ensinamentos do profeta Maomé. 6

46 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Estado do Líbano7. A adoção de medidas políticas que resultaram na miséria nas populações xiitas não foram, como mencionado, sem um propósito e um objetivo econômico, político e social, já que visava garantir a acumulação de riqueza e poder dos povos sunitas. Por fim, os drusos, que atribuem sua origem ao califa fatimida do Egito, Hakin Ibn Nizar, do século X. Essa vertente só é acessível aos iniciados e é dirigida por um chefe espiritual, que detém um poder pessoal de direito sucessório e de gestão dos bens da comunidade. Importante ressaltar que existe um debate dentro dos círculos muçulmanos acerca dos drusos serem considerados, por muitos estudiosos, uma vertente do islamismo. Para os muçulmanos, sunitas e xiitas, embora os drusos possuam também sua base fundamental no Islã, eles apresentam um caráter heterodoxo e místico em sua crença, além de uma tendência isolacionista. Por isso, para algumas comunidades muçulmanas, os drusos são considerados hereges e não representam uma vertente islâmica.

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FISK, Robert. Pobre Nação. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 47 Figura 5: DIVISÃO RELIGIOSA GEOGRÁFICA DO LÍBANO

Fonte: Osman (2006)

1.2 Breves considerações históricas Na realidade, a história do Líbano era ao mesmo tempo de implosão e explosão, de conflito interno e pressão externa, mas sua tragédia – sua história – era de constantes invasões de exércitos, negociando, engabelando, intimidando e entrando com tudo em Beirute. (FISK, 2006. p. 93).

48 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s A formação política do Líbano foi marcada por disputas religiosas históricas e de poder. Esses confrontos resultaram, principalmente, da localização geográfica e da presença política do país no mundo árabe, que despertou interesses e cobiça de outros países tanto do próprio Oriente Médio, como da Europa. Além disso, a região sempre precisou lidar com seus próprios conflitos internos entre as comunidades religiosas coexistentes, ligados, em sua maioria, às medidas políticas impostas em diferentes momentos históricos. A zona do Monte Líbano8 foi onde ocorreu o estabelecimento dos primeiros grupos de cristãos maronitas e de drusos que buscavam paz e segurança no interior do Império Otomano, por esse motivo, a região é descrita como a espinha dorsal do cristianismo maronita9. O território passou a fazer parte do Império no ano de 1516 e gozou de certa autonomia e privilégios administrativos, assumindo a condição de Emirado Libanês. No ano de 1926, ainda sob o protetorado francês, elaborou-se a primeira Constituição libanesa, que instituiu a República Confessional do Líbano e garantiu que as diversas comunidades religiosas possuíssem uma representação política, de forma proporcional, dentro das instituições públicas e no interior das diferentes instâncias políticas. No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial, em diversos territórios as lutas por Conhecido também como Pequeno Líbano e considerado, segundo Osman (2006), o embrião do Líbano geográfico e histórico. 9 FISK, Robert. Pobre Nação. Rio de Janeiro: Record, 2007. 8

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 49 independência se intensificaram, inclusive no Líbano, onde determinados grupos sociais passaram a exercer oposição ao domínio francês. Em 1943, por fim, o país conquistou sua independência através de um acordo elaborado entre os cristãos e os muçulmanos, tornando-se um país árabe reconhecido pelo mundo árabe em 1945 e internacionalmente em 1948. O Líbano independente pode ser dividido em três períodos principais: de 1943 a 1975, quando ocorreu a edificação do Estado e a disputa pelo poder; de 1975 a 1991, conhecido pelo período da Guerra Civil Libanesa; e a partir de 1991, com as tentativas e as políticas de reconstrução do país10. Do ponto de vista político, o primeiro período (1943-1975) foi marcado pela divisão equilibrada do poder entre as duas principais comunidades religiosas, baseado na repartição dos postos administrativos, sendo 50% para os cristãos e 50% para os muçulmanos; o número de deputados na proporção de 6 cristãos para 5 muçulmanos; o presidente da república, cristão maronita; o primeiro-ministro, muçulmano sunita; e o presidente do parlamento, muçulmano xiita. De um modo geral, essa divisão deu ao Líbano uma especificidade no contexto regional e uma riqueza político-cultural única,

OSMAN, Samira Adel. Entre o Líbano e o Brasil: dinâmica migratória e história oral de vida. 2006. 275 f. Tese (Doutorado em História Social)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. 10

50 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s mas em ternos regionais acabou se traduzindo em concentração de poder nas mãos do presidente da república, no clientelismo e na corrupção, na dominação administrativa pelos partidos políticos confessionais. (OSMAN, 2006. p.40).

Em relação à conjuntura internacional, observase, de forma sintética, que naquele contexto ocorreu: o golpe na Síria; a presença de Nasser e o crescimento do Pan-arabismo; a Guerra Fria; a presença da União Soviética na região do Oriente Médio e a importante Questão Palestina, que estava sendo discutida em diversos países. Em meio a essa conjuntura, o Líbano passou a receber a fuga de capitais vindos de diferentes países do Oriente Médio, fato este que incentivou o crescimento e o fortalecimento dos setores bancários e terciários do país, que passou a ser conhecido, dessa forma, como a “Suíça do Oriente Médio” e como o grande centro financeiro da região. No entanto, no interior desse recém Estado que acabara de conquistar sua independência, observava-se a má distribuição de renda e a concentração de riquezas nas mãos de uma burguesia cristã maronita. Essa desigualdade econômica resultou no acirramento das diferenças religiosas e, consequentemente, em confrontos diretos entre os distintos grupos religiosos, que representavam diferentes classes sociais. Conclui-se que o conflito estava além das divergências religiosas entre as comunidades, mas representava também uma luta de classes. Com isso, explicitaram-se os antagonismos

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 51 religiosos, de classe e políticos que estavam presentes no Estado. 1.3 O Império Turco-Otomano: organização social, política e os antagonismos religiosos na região do atual Líbano Ao final do século XVIII, a região do Império Otomano onde o Monte Líbano se encontrava, que era conhecida como Síria, foi dividida em quatro províncias principais: Damasco, Alepo, Trípoli e Saïda. As famílias que ali habitavam possuíam uma independência quase total, sujeitando-se aos otomanos apenas ao pagamento de impostos. Dentro da estrutura ali existente, as comunidades eram governadas por seus próprios líderes religiosos, como uma forma de garantir a manutenção de certas autonomias diante as exigências que eram feitas pelo Império. O caráter hierárquico da organização social na região se tornou uma característica típica do Monte Líbano. O ápice da pirâmide social erao amir, ou hakim. Investido pelo pasha otomano de Saida ou Trípoli, devia pagar-lhe um pequeno tributo, porém sofria interferência mínima em sua administração. Abaixo do amir vinham as famílias nobres (muqata’ji), ou lordes das montanhas. Estes, em sua maioria, eram drusos, mas também havia maronitas, grecoortodoxos e xiitas. A massa da população (‘amiya) constituía-se de camponeses – alguns proprietários, outros meeiros, principalmente

52 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s maronitas e drusos, mas também xiitas, grecocatólicos, greco-ortodoxos e sunitas. (GATTAZ, 2012. p. 18).

Até o início do século XX, a região onde atualmente se localiza o Líbano não apresentava um território delimitado e nem uma total independência política, já que pertencia e se submetia, em última instância, ao controle do Império Otomano. Os conflitos religiosos e territoriais eram comuns, devido à diversidade religiosa e à coexistência de cristãos e muçulmanos no mesmo espaço geográfico. Por esse motivo, a constante instabilidade social fez com que, desde o século XIX, a presença de milícias armadas e exércitos particulares fossem comuns e estivessem presentes entre as comunidades e as principais famílias da região. As repetidas ocupações e confrontos de interesses fizeram com que esses diferentes grupos lutassem para garantir sua sobrevivência. O território era, deste modo, segregado. Não existia um sentimento de unidade territorial que fosse compartilhado pelos grupos e pelas distintas comunidades. O Oriente Médio passou a ser conhecido como a região das minorias, sendo explorado pela expansão colonial europeia através da dominação ocidental no oriente. Essa dominação se tornou mais fácil justamente devido à ausência de um sentimento de união entre os grupos, que os fortalecessem contra o domínio externo.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 53 Os casos de Israel, do Chipre e do Líbano, os três países multiconfessionais típicos da região, autorizam a se perguntar se por acaso a convivência de grupos confessionais diferentes é possível; se a comunidade de povos de culturas radicalmentes opostos não é um sonho impossível. Podemos nos perguntar, sobretudo, se o clã e a cultura dominante não acabam por querer subjugar ou exterminar os outros. (PINO, 1989. p. 17).

A manutenção das colônias cristãs no Líbano e em todo Oriente Médio possuía uma importância significativa, pois foi graças a elas que o cristianismo europeu conseguiu se consolidar na região e garantiu a presença europeia, juntamente com sua influência e seus interesses no território. Esse fenômeno resultou em graves problemas sociais e conflitos políticos, já que a desigualdade social entre os grupos religiosos foi se agravando gradualmente. Tamanho era o contraste existente entre os mesmos, que não existia, como foi dito, um sentimento de pertencimentos ao mesmo espaço geográfico entre esses grupos. A respeito dos constantes conflitos entre as comunidades religiosas e entre as diferentes famílias feudais, afirma-se que a manutenção do sistema de propriedades que existia no Império Otomano favoreceu para que essas famílias mantivessem seus exércitos particulares que serviam tanto a si mesmas, nos momentos de confrontos com outros grupos, como ao

54 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s próprio Império11. Desta forma, pode-se analisar que o Líbano sempre contou com a presença de milícias armadas (ou feudais) e organizações paramilitares particulares e partidárias, tornando-se essa uma característica típica daquela sociedade que convivia com constantes tensões entre os diversos grupos que habitavam a região. Acerca desta questão, conclui-se que essa característica da sociedade libanesa possui uma intrínseca relação com o fato de o território possuir, desde sua formação, um caráter confessional, o qual resultou em constantes instabilidades políticas que se manifestaram em diversos momentos históricos. 1.4 As origens do Confessionalismo no Líbano e a influência europeia na região Como já mencionado, o território do Líbano é uma faixa costeira que comporta diversos grupos religiosos e diversas composições culturais e sociais, os quais coexistem desde os tempos antigos, explicitando uma relação por vezes conflituosa e por vezes pacífica. Desde o século II a região já agrupava diferentes grupos, sendo um dos mais antigos os cristãos maronitas, vertente do cristianismo que se caracteriza pela crença de que seus seguidores são descentes dos prósperos povos comerciantes fenícios, “um termo genérico que englobava CARDOZO, Poliana Fabíula. O Líbano ausente e o Líbano presente: espaço de identidades de imigrantes libaneses em Foz do Iguaçu. 2012. 194 f. Tese (Doutorado em Geografia)Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. 11

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 55 os povos cananeus, amoritas e arameus da antiguidade, e que nos quarto e terceiro milênios da era cristã edificaram aquele empório tão integrado à civilização europeia.” 12 Com a derrota da cristandade europeia nas expedições dos Cruzados, os cristãos maronitas que já se encontravam na região do Oriente Médio fugiram para as montanhas do Monte Líbano em busca de refúgio e proteção. Suas vilas existem até os dias de hoje e, ao longo dos séculos que se passaram, os maronitas conseguiram se expandir para o sul da província do Pequeno Líbano e para Beirute, formando vilas onde hoje se encontra a fronteira cristã ocupada pelo exército israelense. O histórico do Oriente Médio está vinculado a uma série de transformações ligadas às sucessões de dinastias e às lutas políticas e religiosas na região. A dinastia sunita dos Abássidas13 (749-1258), por exemplo, representou o enfrentamento desta vertente muçulmana ao Império Bizantino. Esse confronto fez com que a comunidade dos sunitas conquistasse a região onde hoje se encontra o Líbano e a Síria. Até o século VIII, deste modo, os muçulmanos e os maronitas conviveram em relativa paz entre si. Porém, os momentos de paz se encerraram quando a dinastia dos califas Abássidas tomou a posse da região e enviou suas tropas para o local com o objetivo de submeter os cristãos ali presentes à dominação e expansão dos valores islâmicos que ocorria naquele momento. Os cristãos que habitavam o território PINO, Domingo del. A tragédia no Líbano: retrato de uma Guerra Civil. São Paulo: Clube do Livro, 1989. p. 46. 13 Terceiro califado islâmico. 12

56 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s encontraram nas montanhas, mais uma vez, seu local de refúgio. O Monte Líbano, que possuía características peculiares no interior do Império Otomano, por ser uma região composta por cadeias montanhosas, serviu como local de fuga para os grupos maronitas e drusos. Até então, o Monte Líbano ainda pertencia à província da Síria no Império. Conclui-se que o fato de o Líbano ser composto por cadeias montanhosas, favoreceu para que os grupos maronitas existentes conseguissem se proteger da expansão do islamismo que ocorria no período. Por uma determinação geográfica, as montanhas que se localizam principalmente na região Norte do território do Pequeno Líbano, serviram, deste modo, como locais de refúgio e proteção aos grupos perseguidos, fato esse que explica a concentração de cristãos na parte Norte do Líbano até os dias atuais. No ano de 1571, com a conquista do Chipre, o Islão conseguiu consolidar seu Império. No auge do Império Turco Otomano, os grupos maronitas que resistiram até aquele momento à expansão islâmica sentiram a necessidade de se aliar aos grupos da comunidade drusa, para que fosse possível manter a resistência às pressões muçulmanas no interior do Império. No entanto, a aliança feita facilitou a penetração das potências europeias na região. Essa aliança permitiu que entre 1517 e 1697 a região estivesse governada pela dinastia drusa dos Maanis, cujo representante mais destacado, Fakredin el Maan II, governou de 1590 a 1635

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 57 e, sem que o sultão otomano soubesse, assinou com os Médicis florentinos um tratado que abriu as portas do Líbano à penetração cultural europeia. (PINO, 1989. p. 48).

Fakredin el Maan II, ou Fakhr al-Din II, pertencente à dinastia dos Maans, pode ser considerado o primeiro idealizador da concepção de nação libanesa 14. Druso de nascimento, converteu-se posteriormente ao cristianismo maronita. Este fato refletiu nas ações adotadas durante seu governo, pois o mesmo agiu politicamente sob a influência ocidental e principalmente francesa. É possível observar essa influência no governo de Fakredin el Maan II devido à abertura realizada de consulados europeus na região e devido às diversas missões religiosas católicas que começaram a ocorrer na época. Seu governo buscou enfrentar os otomanos e tinha como objetivo conquistar a autonomia da província libanesa. Para isso, criou um exército próprio e investiu na questão militar, causando um certo receio aos otomanos, que viam Fakredin el Maan II como um líder difícil de ser controlado. O acordo secreto realizado entre Fakredin e os Médicis florentinos, como fora mencionado, por exemplo, visava uma colaboração militar para que fosse possível ao governo da província enfrentar os otomanos governantes do Império. Como resposta, os COSTA, Renato José da. O Islamismo e suas implicações no processo democrático libanês. 2006. 336 f. Dissertação (Mestrado em História Social)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. 14

58 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s otomanos reagiram com uma violenta repressão que objetivava reconquistar a sua supremacia no local. Durante este governo na província onde se localizava o Monte Líbano, a região vivenciou um período de intenso progresso econômico e o sonho da independência se tornou cada vez mais próximo. Como consequência da ameaça que Fakredin el Maan II representava à unidade do Império Otomano, esse líder foi executado em 1635 e a província foi novamente invadida na tentativa de se reconquistar o controle do território. Ao final de 1830, realizou-se uma nova aliança entre os drusos e os maronitas, com o intuito de enfrentar os egípcios que tentaram estabelecer na província libanesa a prática de cobranças regulares de altos impostos e tentaram desarmar a população civil. Essas imposições geraram a revolta dos maronitas e dos drusos que habitavam o Monte Líbano. A construção de uma história libanesa baseada na união entre essas duas comunidades religiosas pode ser analisada como resultado de uma estratégia histórica, que tinha como objetivo criar entre os povos uma tradição comum, sendo essa estratégia um dos matizes para se construir o ideal de nacionalismo na sociedade15. O vínculo que passou a existir entre os drusos e os maronitas visava, desta forma, a construção de um ideal nacional de independência, além de representar o interesse comum, entre as duas comunidades, de impedir que novas invasões dos HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002. 15

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 59 otomanos na região acontecessem. Com essa aliança, a província passou a ser vista como um perigo para a manutenção da ordem do Império Otomano, por isso, para que fosse possível garantir a governança do Império, a união entre os drusos e os maronitas precisava se encerrar. Para isso, enviou-se à região governantes que fossem capazes de evitar os movimentos separatistas. No entanto, a incapacidade administrativa daqueles que foram enviados para governar e garantir a ordem do local, fez com que a relação entre os drusos e os maronitas se invertesse e a aliança entre eles se rompeu em 1840. Neste ano, então, devido a incapacidade dos governantes em lidar com as ambições das famílias nobres, drusas e maronitas, que passaram a disputar o poder econômico da região, iniciaram-se os primeiros conflitos comunais de caráter confessional no território do Monte Líbano. Com objetivo de colocar fim aos privilégios atribuídos aos grupos cristãos, os drusos solicitaram ajuda aos otomanos, os quais interviram no confronto a partir de 1840. Diante essa conjuntura, a Europa também interveio no conflito. Até que, no mesmo ano, institucionalizou-se a primeira divisão confessional da região: a montanha libanesa foi dividida em dois principados, um governado por um príncipe cristão, ao norte, e o outro governado por um príncipe druso, ao sul. A linha que passou a demarcar essa divisão era a estrada Beirute-Damasco. O ano de 1840 é observado nesse trabalho como um marco referencial de análise dos primeiros conflitos confessionais no território que estiveram vinculados às primeiras intervenções europeias diretas no Monte

60 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Líbano. Foi nesse ano que ocorreu, como mencionado, a primeira interferência da Europa na região, quando as potências propuseram, como solução do conflito entre os drusos e os maronitas, a divisão do Monte Líbano em dois principados, onde cada um seria controlado por representantes de suas respectivas comunidades religiosas. Esse acontecimento é analisado aqui como a primeira separação confessional da província libanesa. Foi apenas em 1842 que essa proposta europeia de divisão do território do Monte Líbano foi aceita pelos turcos do Império Otomano. Neste período, a presença das potências europeias, principalmente da França, já era intensa. Devido às relações culturais e comerciais existentes, os maronitas garantiram dos franceses o apoio e a sua proteção diante as demais comunidades religiosas. Enquanto isso, os drusos possuíam o auxílio dos britânicos, que objetivavam frear a presença francesa e o poder dos otomanos na região. Diante essa conjuntura, o Império perdeu seu poder sobre a região do Pequeno Líbano, optando por intervir novamente no local, em busca de reconquistar o seu controle sobre o território. Em 1845 estourou na região um segundo confronto confessional, o qual se caracterizou pela aliança realizada entre os muçulmanos xiitas e os drusos, que se uniram para enfrentar os cristãos, que ainda detinham mais privilégios políticos e econômicos que os demais grupos religiosos da província. Mais uma vez, os turcootomanos interviram militarmente no conflito e criaram o que ficou conhecido como Conselho Misto, uma instância que tinha como objetivo coordenar os dois principados, dos drusos e dos cristãos. Pela primeira vez na história

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 61 libanesa, representantes das outras quatro comunidades religiosas que coexistiam na região - greco-ortodoxa, greco-católica, xiita e sunita – tiveram acesso a um cargo político, pois compuseram, como membros oficiais, a instância coordenadora criada. Observa-se que a partir da criação do Conselho, a divisão política confessional do território se tornou mais complexa e institucionalizada. O ano de 1858 pode ser analisado também como outro marco histórico do Monte Líbano, devido a complexidade do confronto confessional que se estendeu naquele ano e das consequências que dele resultaram. Foram criadas, naquele ano, as primeiras organizações paramilitares e milícias armadas que se conhecem na história libanesa. Criadas pelos senhores feudais, de maioria drusa, tiveram como objetivo combater a insurreição de camponeses16 que foram influenciados pela Revolução Francesa de 1848, os quais se rebelaram contra o sistema feudal existente que realizava cobranças de altas taxas. O confronto teve início na região Norte da província – onde estava estabelecido o principado controlado pelos cristãos após a divisão do território em 1840. Esse confronto refletiu, além de um caráter confessional, um caráter também de luta de classes, pois representou a luta da classe dos camponeses contra os lordes das montanhas, os quais representavam as famílias feudais que detinham grandes propriedades de Um ferreiro conhecido como Tanios Chaim, apoiado pelos camponeses das montanhas, apoderou-se das terras dos senhores feudais após invadirem e atacarem os palácios e castelos. 16

62 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s terra no local. A revolta camponesa de 1858 que ocorreu entre os camponeses maronitas e os lordes drusos das montanhas, liderados por Said Jumblatt, gerou, no ano de 1860, outro confronto confessional. Os drusos, que ficaram receosos que a mesma rebelião poderia ocorrer em seu principado, ao Sul, e temiam perder seus poderes para os camponeses, partiram para um confronto direto contra os cristãos em 1860. O conflito envolveu, de um lado, a comunidade dos xiitas, dos sunitas e dos drusos, que se rebelaram contra os cristãos. De acordo com os dados apresentados17, esse enfretamento resultou no massacre de 10.000 cristãos. A partir de então, a França, no dia 16 de agosto de 1860, desembarcou com suas tropas na região do Monte Líbano sob o comando do general Beaufort d‟Hautpoul, para garantir a proteção e a defesa dos cristãos maronitas e conter o confronto que se alastrava. Nesse momento, o envolvimento euro-cristão na região já se demonstrava recorrente e o poder europeu penetrou e se consolidou no território. Com isso, se tornou evidente que o Império Otomano não conseguia mais ter controle sobre a região e os conflitos confessionais que ali se alastravam. Nesse mesmo ano de 1860, países europeus, juntamente com os governantes do Império Otomano, se reuniram e concluíram que no cerne do confronto estava a COSTA, Renato José da. O Islamismo e suas implicações no processo democrático libanês. 2006. 336 f. Dissertação (Mestrado em História Social)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. 17

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 63 divisão territorial feita entre cristãos e drusos em 1840. A partir dessa conclusão, as lideranças reunidas optaram por realizar uma reorganização política-administrativa no local, a qual permitiu que a região conquistasse uma autonomia parcial e fosse governada por um governador cristão otomano de ascendência não libanesa. Este líder era designado pelo sultão do Império e passava pela aprovação das potências europeias e de um conselho de doze membros que fora formado nesta época e que continha representante das diversas comunidades religiosas coexistentes no Monte Líbano. Conclui-se, então, que foi nesse mesmo ano que se criou o primeiro Parlamento do Monte Líbano, pois o general Beaufort d‟Hautpoul impôs um regulamento que determinou que, nessa reorganização feita, deveria existir junto ao governador cristão nomeado, um Parlamento composto ao todo por doze membros: quatro maronitas, três drusos, dois greco-ortodoxos, um greco-católico, um sunita e um xiita. Esse sistema perdurou até os anos de 1920, quando o alto comissariado francês anunciou, após o término da Primeira Guerra Mundial e o declínio do Império Otomano, a criação do Grande Líbano, o qual resultou da anexação de áreas, que antes pertenciam à Síria, ao Monte Líbano, formando, no total, um território com extensão de 10.453 km². De acordo com esse documento, o governador (mutasarrif) seria indicado pelo sultão otomano com a aprovação dos governos europeus, sendo assistido por um conselho administrativo representando todas as comunidades religiosas,

64 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s por oficiais pagos e por uma polícia. Assim, apesar de a região ter uma clara maioria cristã, seu sistema político oferecia representação e uma parte do poder às comunidades minoritárias. (PINO, 1989, p. 20).

Nesse momento, verifica-se que a política libanesa estava adotando um caráter confessional em sua estrutura, o qual se consolidou nos anos posteriores. A partir de 1860, o termo “Líbano” passou a ser conhecido oficialmente e reconhecido internacionalmente, mesmo que ainda fizesse referência, nesse primeiro momento, ao território do Monte Líbano subordinado ao Império Otomano. Entende-se, a partir destes confrontos e dos acordos que deles resultaram, que em 1860, após a Guerra Civil contra os drusos, o poder maronita conseguiu se consolidar na província, com o auxílio e a legitimação das potências europeias. A França, assim como os outros países europeus, possuía interesses políticos e econômicos no território. Com o desembarque das suas tropas e sua presença direta na região, os franceses puderam criar alianças e bases de apoio no local que os beneficiaram. Em 1860, quando os mesmos se estabeleceram naquela região e realizaram um acordo com os otomanos, “fizeram pública sua decisão de reorganizar politicamente a convivência no Líbano e decidiram-se pelo estabelecimento de uma entidade autônoma governada por um oficial cristão otomano.” (PINO, 1989. p. 50). Este primeiro texto oficial que

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 65 afirmou a autonomia do Monte Líbano18 em relação ao Império Otomano, reconheceu, juntamente, o direito das potências europeias de interferirem nos negócios internos da região. Desde esse momento, é possível identificar as contradições existentes no processo de reconhecimento da autonomia da província e na dificuldade da região do Monte Líbano em conquistar sua independência plena. Nota-se dessa forma, que ao final do século XIX ocorreu uma aproximação da Europa com as províncias do Levante, onde os grupos cristãos, principalmente os maronitas, foram protegidos pelos europeus. Nesta aproximação, os maronitas ganharam o apoio dos franceses e dos austríacos; os drusos foram apoiados pelos britânicos; e os russos forneceram apoio aos gregoortodoxos. A presença europeia no território exacerbou cada vez mais as diferenças entre as comunidades religiosas, principalmente através de políticas que foram adotadas com o intuito de privilegiar os cristãos maronitas em detrimento dos demais grupos religiosos. Pode-se concluir, desse modo, que a partir de 1840 a presença francesa na região do Levante já era uma questão incontornável. Com o decorrer dos anos, ela se fazia cada vez mais presente e mais consolidada. Para expandir sua influência, contava com o apoio dos maronitas, que lhe forneceram uma base de apoio social, Importante ressaltar que essa entidade autônoma, até então, correspondia geograficamente a região do Pequeno Líbano. Com uma população de 300.000 habitantes, era composta por 89% de cristãos. Essa reorganização política confessional, que atribuiu o cargo de governador a um cristão, serviu posteriormente como base fundamental para o Pacto Nacional de 1943 vigente até os dias atuais no país. 18

66 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s político e econômico no território em troca de proteção e privilégios. O território do Monte Líbano era composto em sua maioria pela comunidade cristã, por isso, as potências europeias que possuíam interesses estratégicos e geopolíticos no local, buscaram o apoio dessa comunidade para que sua penetração na região fosse facilitada. O Monte Líbano serviu, desta forma, como porta de entrada dos europeus para o Levante. Segundo o raciocínio da Igreja e Estados europeus, era importante proteger e aparelhar (inclusive educacionalmente) a população cristã do Líbano, que desta forma resistiria à expansão islâmica, funcionando como uma cabeça-de-ponte cristã-europeia em um ambiente plenamente islâmico-árabe. (GATTAZ, 2012, p. 21).

Durante o século XIX, o Império Otomano se envolveu em diversos conflitos que favoreceram e intensificaram a sua fragmentação, como por exemplo o conflito contra a Pérsia em 1822 e 1823, em que se disputou a supremacia no Oriente Médio Muçulmano, e a Revolução Grega de 1821, conhecida também como Guerra da Independência da Grécia, que visava a independência dos gregos em relação ao domínio do Império Otomano. Esses confrontos e o consequente enfraquecimento do Império Otomano favoreceram a penetração da Europa na região de forma cada vez mais intensa. A presença europeia se deu de diversas formas,

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 67 como por exemplo, através da instalação de empresas, que se tornaram mais presentes com as alterações que ocorreram na economia do país e em sua infraestrutura. Com os investimentos realizados, aumentou-se, gradativamente, a dependência da região com o capital ocidental. Na segunda metade do século XIX, o território passou por um intenso período de urbanização, crescimento populacional e crescimento econômico. Porém, o padrão de vida melhorou apenas para as camadas socialmente superiores, as quais eram ligadas ao governo e aos países europeus, que representavam, em sua maioria, os grupos cristãos. Desse modo, observa-se que esse crescimento econômico ocorria de forma desigual entre as diferentes regiões do país e foi sentido também de forma diferente entre as classes sociais e as diversas comunidades religiosas, resultando em um enorme descontentamento social. Importante ressaltar que o desenvolvimento do comércio e dos serviços urbanos fez com que o país desenvolvesse uma burguesia urbana, de maioria maronita, sem equivalente em outros países árabes. Pode-se analisar, diante a conjuntura descrita, que os anos que foram de 1860 a 1914 fizeram com que a região do Monte Líbano vivenciasse um conjunto de transformações, tanto de cunho político, como econômico e cultural. Nesse momento, os maronitas já se encontravam próximos às ideias ocidentais, pois foram beneficiados por um processo de aprimoramento intelectual e técnico vindo dos europeus. Por isso, descreve-se esse período como um momento de progresso

68 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s da região, que contou com a vinda de universidades, escolas, grupos econômicos estrangeiros e construção de estradas. Além disso, a província vivenciou uma melhora na condição de vida de grande parte da população. No entanto, essa melhora não foi sentida nas regiões que possuíam uma maioria xiita em sua composição, que se encontravam em uma situação excludente e de miserabilidade. Enquanto isso, através do aprimoramento intelectual que os maronitas vivenciaram no fim do século XIX, graças aos privilégios atribuídos a eles pelos europeus, construiu-se uma nova forma de ver e entender o Império Otomano, na qual ideias nacionalistas, que emergiam da Europa, passaram a ser difundidas por esse grupo religioso na região do Monte Líbano. Beirute e Cairo, por exemplo, se tornaram regiões de desenvolvimento cultural e centros de difusão de ideais políticos e propostas nacionalistas. Neste período, desse modo, começaram a surgir diversos projetos políticos de teor nacionalista, com pontos de convergências e divergências entre si, de acordo com o movimento que se alinhava. Em 1892 elaborou-se o “Guia de Murray”, que tratou sobre a questão da Síria e da Palestina no Império Otomano. Nesse guia, afirmou-se que o distrito do Monte Líbano seria administrado por um governador cristão e sua autoridade seria garantida pelas potências cristãs europeias, legitimando, mais uma vez, o domínio europeu sobre o território e a falsa autonomia atribuída à província. As diversas comunidades religiosas continuam vivendo nos mesmos locais desde 1892: nas montanhas

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 69 Chouf habitam os drusos; em Sidon e Tripoli, os sunitas; ao sul, os xiitas; e a cadeia de montanhas ao norte de Beirute, os cristãos. Por volta de 1913 retomaram-se nas províncias do Levante as discussões acerca da necessidade de se alcançar a autonomia e independência dos territórios, retornando, concomitantemente, as discussões de cunho nacionalista. Essas inquietações perduraram até 1914, com o inicio da Guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a região onde hoje se localiza o Oriente Médio representou um local de disputas entre os países europeus, que queriam dominar o local por ser o ponto de encontro entre os três continentes (África, Ásia e Europa). Na Guerra, os otomanos entraram no conflito ao lado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro. Nesse momento, as terras que pertenciam ao Império Otomano foram utilizadas como campo de batalhas por diversas nações. Durante esse período, todo e qualquer movimento nacionalista na região foi fortemente reprimido pelo governo otomano, na tentativa de se preservar a unidade territorial do Império. No Líbano, a partir do início da guerra, os administradores turcos nomearam governadores diretos para conseguir maior controle sobre a província, terminando com a situação privilegiada da região e reprimindo o nacionalismo libanês com a execução de políticos, jornalistas e escritores. (GATTAZ, 2012. p.30).

70 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s A escolha do Império Otomano em se aliar à Alemanha e ao Império Austro-Húngaro levou o Império à sua própria ruína. Durante o período do conflito, os povos que habitavam as províncias otomanas foram obrigados a destinar todas as suas produções e suas atividades agrícola aos otomanos, com vistas a auxiliar aqueles que estavam lutando na Guerra. Esse posicionamento resultou na morte de centenas de milhares de pessoas, devido às crises de fome e os surtos de doenças que se instalaram na região. Desde os primeiros anos da Guerra, os britânicos, assim como os franceses, procuraram apoio para lutar contra a Turquia e contra todo o Império Turco-Otomano. Desse modo, a Grã-Bretanha cooperou com os judeus em busca de conseguir aliados em sua luta contra os árabes. Até que, em 1918, assinou-se a Declaração AngloFrancesa, na qual ambos os países prometeram oficialmente às nações árabes que pertenciam ao Império Otomano suas independências, caso, em troca, os mesmos apoiassem os Aliados contra os turcos na Guerra. Porém, nota-se que essa não foi uma promessa que se cumpriu com a facilidade a qual foi prometida, pois diante os acontecimentos que se estenderam durante a Grande Guerra, nota-se que os cristãos maronitas optaram por garantir a continuidade de seu vínculo com a França, já que eram minoria quantitativa no mundo árabe e os franceses lhes forneciam proteção, privilégios políticos e aprimoramento intelectual no interior daquela região de maioria árabe muçulmana. O fim da Primeira Guerra Mundial acompanhou a queda do Império Turco Otomano. Em 1920, o território

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 71 antes ocupado pelos turcos foi dividido em cinco entidades: o Estado Independente de Damasco, o Governo de Aleppo, o Território Autônomo dos Alawitas e dos Drusos e o Grande Líbano, o qual consistiu na anexação de territórios ao Monte Líbano. Com o final da Guerra em 1918, por fim, as potências europeias conseguiram consolidar sua dominação, tanto política como cultural, na antiga região que correspondia ao Império Otomano. No caso do Líbano, a dominação francesa se tornou evidente. Com sua queda, se assinou ao fim da Guerra um armistício que colocou fim, oficialmente, ao domínio turco na região do Levante e, consequentemente, no Monte Líbano. O Oriente Médio, de uma forma geral, passou ao controle militar da França e da Grã-Bretanha graças ao estabelecimento em 1916 do acordo SykesPicot. Esse tratado feito secretamente garantiu, de forma diplomática, que as províncias que pertenciam ao Império Otomano fossem repartidas entre as duas potências ocidentais aliadas – França e Inglaterra. Nesta divisão, o Monte Líbano passou para o protetorado francês. Porém, essa dominação não se realizou sem resistência. Nesse momento, o sentimento nacionalista sírio começou a emergir e ganhar significativas proporções. Composto por uma maioria sunita, o movimento nacionalista criou uma frente de oposição à presença francesa na região. Como resposta ao movimento sírio, a França retirou da província em 1920 a região de Tiro, Sidon, Tripoli, Vale do Bekaa e a própria Beirute, anexando-as ao território do Monte Líbano.

72 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s A ampliação do território do antigo Pequeno Líbano ocorreu durante o mandato francês no protetorado, o qual perdurou de 1920 a 1943. Figura 2: O GRANDE LÍBANO

Fonte: Osman (2006) 1.5 Acordo Sykes-Picot e formação do Grande Líbano A decadência do Império Otomano ao final da Primeira Guerra Mundial despertou a atenção dos europeus. As grandes potências, principalmente a França

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 73 e a Inglaterra, já demonstravam seus interesses naquela região antes ocupada pelos turcos. Por esse motivo, ao observarem a gradual decadência e enfraquecimento do Império no decorrer da Guerra, começaram a assinar uma série de acordos, vários deles secretos, que faziam referência a região. O acordo Sykes-Picot, assinado em 1916 e que veio à tona apenas em 191719, foi um tratado elaborado com o objetivo de consolidar o poder da França e da Inglaterra nos territórios do atual Oriente Médio, que antes pertenciam ao Império Otomano. Em síntese, as potências tinham em vista a consolidação do poder que já exerciam naquela região, mas, que até aquele momento, era exercido de forma indireta. Conclui-se, então, que com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, a queda do Império Otomano e, consequentemente, o fim do seu domínio sobre aqueles territórios, a França e a Inglaterra puderam executar o acordo Sykes-Picot elaborado em 1916. Esse permitiu com que os franceses e os ingleses repartissem entre si as zonas que possuíam interesses no Oriente Médio, impondo suas influências políticas, econômicas e sociais na região. Em relação a essa divisão feita no território, que correspondia até então ao denominado Levante, estipulou-se que a região Norte pertenceria à França, a qual dividiu o seu território em Síria e Líbano, e o Sul à Grã-Bretanha, que dividiu a sua parte territorial em Palestina e Transjordânia. Em janeiro de 1919, na Segundo Costa (2006), o acordo só veio à tona após a Revolução Russa de 1917, devido à publicação realizada pelos bolcheviques de documentos diplomáticos secretos os quais a Rússia havia tomado parte. 19

74 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Conferência de Paris, o Líbano passou a pertencer oficialmente ao domínio francês, que exerceu o seu controle no local de 1920 até 1943. Os franceses passaram a executar ali um tipo de protetorado, com a implementação de um poder colonial indireto20 que, embora reconhecesse relativa autonomia ao território libanês, o mesmo ainda permanecia submetido aos interesses dos franceses. Analisa-se, então, que a partir de 1918 o Líbano vivenciou o fim de um tipo de dominação, que era exercida pelo Império Otomano, e foi submetido a outro tipo de dominação, agora de cunho francês e com interesses imperialistas. A independência continuou como um objetivo ainda não alcançado, embora tivesse sido prometida pelos europeus durante a Primeira Guerra. Em 1920, na Conferência de San Remo (Itália), a presença dos Aliados formalizou o domínio francês sobre o Líbano, e, sob o comando do general Gouraud, proclamou-se oficialmente a formação do Estado Libanês, ou Grande Líbano, de forma totalmente artificial. Seu território era composto pelo Monte Líbano somado a um conjunto de terras anexadas, tanto do interior como do litoral, conforme mencionado. As suas fronteiras, criadas pelos franceses, foram utilizadas a partir de 1943 como as divisas do Estado do Líbano independente. A partir de 1920, deste modo, delimitou-se o território que Acerca do mandato francês na região, “apesar de contar com instituições nacionais como presidência da República e Parlamento, o poder de fato concentrava-se nas mãos do haut comissaire francês” (GATTAZ, 2012. p. 31) 20

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 75 constituiria o Grande Líbano e oficializou-se sua divisão física da Síria, resultando no descontentamento de grande parte da população, principalmente muçulmana. Isso ocorreu porque, desde o início, os muçulmanos perceberam que nesta nova organização política o domínio do território seria atribuído aos cristãos maronitas, já que a França declarou que daria apoio à formação de um Estado Libanês desde que os maronitas fossem privilegiados neste sistema. Deste modo, as comunidades muçulmanas sunitas, que antes habitavam as regiões sírias que foram anexadas ao Monte Líbano, se rebelaram e exigiram sua anexação novamente à Síria. Nesta lógica, as potências europeias buscaram expandir seus domínios pelo Oriente Médio, África e Ásia na tentativa de alcançar ao máximo seus objetivos, que envolviam poder econômico e político daquelas nações, através da implementação de ações militares naqueles locais. O surgimento de um Estado controlado por cristãos em uma região cercada por países árabes muçulmanos não foi facilmente aceito pelos seus vizinhos. Aqueles que apoiavam o nacionalismo árabe e o processo de unificação do Líbano com a Síria tiveram dificuldade em aceitar a supremacia maronita do país. Acerca da criação do Grande Líbano, ou apenas Líbano, os muçulmanos em geral a analisaram como uma amputação da Síria original, enquanto os maronitas observavam que o território ganhava certo valor emocional simbólico, “como Jerusalém para os judeus”21. A luta

PINO, Domingo del. A tragédia no Líbano: retrato de uma Guerra Civil. São Paulo: Clube do Livro, 1989. p. 32. 21

76 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s realizada pelos cristãos maronitas a partir de então tinha como objetivo preservar a entidade libanesa de uma forma que seus privilégios políticos e econômicos fossem mantidos. Além disso, buscou-se preservar a identidade a qual eles se reconheciam, que era a de origem fenícia. Para os maronitas, não se tratava apenas de tolerância religiosa ou de interpretação das Sagradas Escrituras, mas da possibilidade de transferir para a vida cotidiana, em leis e instituições, toda uma cultura diferente que queriam ver diluída ou assimilada dentro de outra. (PINO, 1989. p. 32).

Com isso, os maronitas passaram a cooperar com as potências estrangeiras, principalmente com a França, na busca de proteção e inspiração naquela civilização. Enquanto isso, os partidos nacionalistas muçulmanos continuaram a exigir o fim das fronteiras estabelecidas em 1920, posicionando-se contrários ao domínio francês. Com a formação do Líbano, definiu-se que Beirute seria a capital do país. Para facilitar a administração deste novo território, a França dividiu-o em distritos, estabelecendo capitais administrativas. Os franceses, percebendo o descontentamento de grande parte da população, que havia criado uma frente de resistência ao seu domínio na região, tentou legitimar, diante a população, sua presença naquele território através da divulgação de supostos benefícios que o Líbano havia conquistado sob o protetorado francês.

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A economia foi revitalizada, o porto de Beirute expandiu-se e uma rede de estradas foi construída para unir as principais cidades do país. Um novo sistema judiciário foi introduzido. O sistema educacional, a saúde pública, e os padrões de vida melhoraram. Mas os habitantes do Líbano viam essas mudanças sob um prisma um tanto diferente. Quando os franceses introduziram uma nova moeda „síriolibanesa‟, por exemplo, atrelaram a moeda a fraqueza do seu próprio sistema monetário. A administração da moeda foi confiada a um banco francês, e afirma-se que seus acionistas prosperaram à custa da autonomia fiscal árabe. (FISK, 2006. p. 107).

Neste período de domínio, o francês se tornou a língua obrigatória nas escolas, e, para os libaneses, esta imposição foi vista como um insulto, já que os árabes desfrutavam do triunfo linguístico do seu idioma sobre o turco com a queda do Império Otomano. Essa vitória linguística simbolizava, para aqueles povos, a conquista política da unidade árabe ao fim da Primeira Guerra. Sendo assim, a imposição do idioma francês no interior dos ambientes escolares representou, naquele momento, uma ofensa a algo que havia sido conquistado através da unidade dos povos árabes. Analisa-se que a França, ao anexar às zonas montanhosas maronitas, que compunham o Monte Líbano, as zonas muçulmanas de planície, que pertenciam à Síria, congregaram em um mesmo território

78 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s muçulmanos xiitas, sunitas – os quais se encontravam majoritariamente nas planícies do Bekaa anexadas -, drusos e cristãos maronitas. Ou seja, ao anexar terras sírias ao território que antes correspondia ao histórico Monte Líbano (de maioria maronita), como uma tentativa de controlar a oposição ao domínio francês realizada pelos sunitas da Síria, a França criou as condições propícias para os confrontos confessionais que se estenderam no decorrer do século XX no país e criou as condições que ameaçaram, futuramente, o próprio controle francês do território. Com a adoção dessas medidas políticas os franceses criaram mais inimizades. A vertente muçulmana dos sunitas, desde o início das intervenções da França na região, liderou o movimento de oposição àquele domínio. Até que no ano de 1925, os drusos que habitavam a região do Líbano se uniram às comunidades drusas da Síria em uma rebelião contra os franceses. No entanto, essa rebelião foi silenciada com grande brutalidade. Diante de toda a conjuntura, os maronitas eram os únicos que continuavam se beneficiando com a dominação francesa. Porém, esses benefícios podem ser analisados como temporários, já que, como descrito, a anexação de territórios de maioria muçulmana realizada pela França fez com que a comunidade maronita deixasse de ser a maior comunidade religiosa do Líbano. A partir de então, os maronitas intensificaram a sua relação de dependência com os franceses na busca de garantir sua própria proteção. Finalmente, com a anexação de terras ao Monte Líbano, as quais eram compostas por diversos grupos

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 79 sociais e religiosos antagônicos, e com a formação do Estado do Líbano, a França criou as condições que serviram como base para os conflitos inter-religiosos que se seguiram no país. Anexaram-se áreas que antes pertenciam à Síria e que eram compostas majoritariamente por muçulmanos, diferente do antigo Monte Líbano que possuía em seu território uma maioria maronita. Neste novo território formado, evidenciou-se que a nova população seria constituída por uma composição heterogênea, logo, a posição hegemônica dos cristãos maronitas foi ameaçada pelos muçulmanos que passaram a ser a maioria populacional. Assim, as estruturas que fundamentavam as instituições libanesas, foram abaladas. 1.6 Constituição Libanesa de 1926 Os anos da década de 1920 foram importantes para a formação política do Líbano. “Houve, em 1922, a formação de um Conselho Representativo e, em 1926, a adoção de uma Carta Constitucional provisória de tipo liberal inspirada na Constituição francesa de 1875 e na Constituição Belga”22. Além disso, em 1923, a Liga das Nações formalizou, através de um documento com conteúdos peculiares e contraditórios, aquilo que havia sido acordado no Sykes-Picot em 1916. Ao mesmo tempo em que esse documento elaborado declarou a MEIHY, Murilo. Os Libaneses. São Paulo: Contexto, 2016. p. 57. 22

80 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s autodeterminação dos povos, legitimou também o domínio francês sobre o território, restringindo e limitando a liberdade dos árabes tanto na política como nos cargos administrativos. A nova organização territorial, política e social que o Líbano enfrentou naquele momento fez com que uma identidade libanesa começasse a surgir e a se fortalecer. Esse sentimento de identidade que começou a ser compartilhado entre as diferentes comunidades libanesas preocupou os franceses, que temiam novos movimentos em prol da independência do país, os quais, com a unidade dos povos, ganhariam mais força e mais base social. Com o aumento das pressões internas, a França aceitou nomear um conselho que seria responsável por escrever a Constituição do país. As discussões acerca desta Constituição foram de julho de 1925 a maio de 1926. Criou-se, neste processo de elaboração constitucional, uma fachada democrática, composta por membros representantes dos diversos grupos religiosos. Porém, considera-se que foi uma fachada democrática pois a França, por deter o mandato do país, tinha a legitimidade de vetar qualquer artigo elaborado que lhe fosse prejudicial. Sob princípios supostamente democráticos, desse modo, os franceses conseguiram legitimar seu domínio sobre o Líbano e preservaram setores estratégicos23 sob seu comando.

Os setores que continuaram sob o controle francês foram: as relações diplomáticas, os assuntos militares e os assuntos relativos à segurança interna. 23

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 81 Foi em 1926 que se criou a primeira Constituição do Líbano, que consolidou e oficializou a formação do Grande Líbano em detrimento da antiga estrutura do Pequeno Líbano criado por Beaufort d‟Hautpoul em 1860. Esta Constituição foi estruturada, basicamente, em seis partes, com um conteúdo repleto de contradições que ficaram evidentes, pois o Alto Comissariado Francês foi nomeado como responsável por consultar e supervisionar as funções político-administrativas, mas, a forma como essa função foi estruturada, permitiu que lhe fosse atribuído, em última instância, a execução de todo o poder. Dessa forma, o Alto Comissariado, caso se sentisse contrariado, poderia substituir o poder local a qualquer momento e teria respaldo constitucional para tal. Outra contradição que foi identificada na análise da primeira Constituição do Líbano foi que, embora fosse descrita e apresentada como uma carta de cunho liberal, que privilegiava a liberdade individual, de expressão e de associação, legitimou, concomitantemente, o regime confessional. Os artigos 7 e 12 sustentavam o direito de igualdade civil e política, assim como, de igual acesso aos postos públicos. Para tanto, fundamentam essa escolha unicamente no mérito, contudo, no artigo 95 há a afirmação do compromisso estatal para com o regime confessional, mas não a contextualização de como isso seria aplicado sem ferir os direitos antes elencados. (COSTA, 2006. p.56).

82 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s É possível observar que, com a constitucionalização do Grande Líbano, o estabelecimento de suas fronteiras e com os artigos presentes na Constituição de 1926 quebrou-se, nesse momento, a homogeneidade cristã maronita vigente até então no Pequeno Líbano, pois a sociedade adquiriu, com a anexação dos territórios, um caráter mais heterogêneo em sua composição, embora os muçulmanos fossem desfavorecidos desde o início desta declaração constitucional, que atribuiu ao Líbano uma identidade “autônoma”. Desse modo, os muçulmanos se sentiram prejudicados por essa Constituição e se posicionaram contrários a ela desde o momento de seu estabelecimento. Assim, solicitaram novamente sua união com a Síria, reivindicação essa que não foi atendida. Em síntese, no ano de 1926 promulgou-se a Constituição que instituiu o Líbano como uma República Confessional. A partir de então, a região foi nomeada oficialmente como República do Líbano e apresentou uma constituição republicana responsável por instaurar um Parlamento e um Presidente Executivo no país. Neste instante, estabeleceu-se o primeiro Parlamento independente do Líbano, o qual obedeceria em sua composição uma proporção de 6:5 – seis cristãos para cada cinco muçulmanos. Importante relembrar que a Constituição do Líbano foi influenciada pela Constituição Francesa e, nesse vínculo, ao assumir o modelo republicano parlamentarista, o Líbano adotou na organização do parlamento a estrutura unicameral, conhecido como Câmara dos Deputados, copiando exatamente o modelo de organização política da França.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 83 Nessa estrutura, os deputados (ou parlamentares) são eleitos diretamente pela população, respeitando uma proporcionalidade confessional24, e o Presidente é escolhido pelos deputados eleitos, o qual possui um mandato de seis anos sem direito a reeleição. O primeiro Presidente do Líbano, Charles Debbas, grego-ortodoxo que já havia ocupado o cargo de Alto Comissário em 1926, foi eleito naquele mesmo ano. A interferência e a constante presença francesa na região desde o século XIX criou as estruturas e reestruturou algumas vezes a política libanesa. Percebemse as consequências da influência francesa no país até os dias atuais, devido à criação da Constituição em 1926, a elaboração de uma lógica política confessional que foi consolidada posteriormente no país, e, por fim, os privilégios atribuídos aos maronitas, que favoreceram a ascensão das classes dominantes cristãs no Líbano. Como analisado nesse trabalho, a França possuía interesses na região e favoreceu, desde a época do Império Otomano, os grupos cristãos existentes, para que fosse possível ter uma base de apoio no território que facilitasse sua penetração. Para isso, os franceses criaram um aparato constitucional e instituições políticas que beneficiassem aquele grupo religioso específico. Deste modo, a França Favoreceu ainda a mudança do centro de poder do Monte Líbano para Beirute, nova capital do Grande Líbano e quartel-general do Alto Cada religião tem direito a eleger um número determinado de representantes, que varia de forma proporcional à quantidade de seguidores de cada comunidade religiosa. 24

84 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Comissariado Francês. Os líderes tradicionais das comunidades drusas, xiitas e maronitas continuavam a exercer influência na política local, porém eram menos influentes em Beirute. (GATTAZ, 2012. p. 31).

No sistema político que foi imposto pela constituição, analisou-se que os maronitas e os drusos foram favorecidos pela ordem confessional que passou a reger a organização e o funcionamento das instituições da sociedade libanesa. Durante as duas décadas que se seguiram, os conflitos interreligiosos entre as diferentes comunidades religiosas se intensificaram, principalmente entre os cristãos, apoiados pela França, e as comunidades sunitas e grego-ortodoxas, que não reconheciam a legitimidade do território Libanês e os privilégios atribuídos aos maronitas, que se tornaram a hegemonia política do país. No ano de 1932, foi realizada uma conferência na cidade de Beirute, onde os chefes das comunidades drusas, xiitas e sunitas se reuniram para reivindicar direitos políticos aos muçulmanos. As reinvindicações abrangiam desde a possibilidade de candidatura de membros de outras religiões, que não maronitas, para o cargo da presidência, até a solicitação de que fossem atribuídos metade dos cargos públicos aos muçulmanos, já que na organização do Parlamento independente após 1920, por exemplo, a proporção implementada era a de 6:5, devido à importância numérica que foi reconhecida à comunidade maronita no ano de 1920. Em 1932, o muçulmano sunita Mohammed Jisr apresentou sua

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 85 candidatura à presidência como uma forma de manifestação contrária ao princípio de que a presidência da República ficasse sempre a cargo de um cristão. Essa intenção de candidatura causou uma agitação entre a comunidade maronita e logo os franceses interviram. Cada vez mais, a luta dos muçulmanos por direitos políticos se intensificava. Nesta interferência, a França suspendeu naquele mesmo ano a Constituição e realizou um censo demográfico para identificar o número de adeptos de cada comunidade religiosa, no qual a população cristã apareceu como maioria, com 402.363 cristãos, sendo 226.378 maronitas. Enquanto os muçulmanos possuíam 383.180 seguidores, sendo 175.925 sunitas, 154.208 xiitas e 53.047 drusos. Esses resultados foram utilizados para, posteriormente, legitimar o Pacto Nacional de 1943 e para fundamentar toda estrutura confessional e institucional do país. No entanto, existem dúvidas acerca da legitimidade desse censo, que é acusado de forjado para garantir a manutenção dos cristãos maronitas no poder e seus privilégios. O projeto nacional libanês, seja pela experiência histórica dos mutassarifatos, pelo censo demográfico forjado em 1932 ou pelo Pacto Nacional oficializado em 1943, foi uma tentativa original de garantir à comunidade maronita sua condição de maioria político-administrativa, em resposta aos anos de segregação social que permitiram massacres e preconceitos contra os cristãos na região do Líbano. (MEIHY, 2016. p. 61).

86 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s

A Constituição foi reativada apenas no ano de 1936, contendo um novo artigo, o artigo 95º. Na tentativa de controlar a oposição dos muçulmanos à formação política libanesa que estava sendo imposta e implementada, proclamou-se no artigo 95º da Constituição a qual alegava que provisoriamente, e para garantir a equidade e o entendimento, as comunidades estariam representadas equitativamente nas funções públicas e na formação do governo. Ficou explícito, a partir de então, que o caráter confessional de representação política presente no Líbano desde 1840, com as primeiras interferências francesas na região, estava cada vez mais consolidado e institucionalizado. O artigo 95º da Constituição pode ser analisado como a base que serviu para a fundamentação posterior do Pacto Nacional Libanês de 1943, o qual garantiu a Independência do Líbano e consolidou o Confessionalismo como sistema político do país. Determinou-se, desse modo, que a nova República teria suas funções políticas e seus conselhos compostos por representantes de todas as comunidades religiosas oficiais do país, de forma proporcional ao número de seguidores de cada uma, ou seja, aquelas com mais seguidores ocupariam, nessa lógica, os cargos políticos-administrativos mais elevados, e assim por diante. É esta organização política, baseada na equidade da ocupação dos cargos públicos, que a constituição legitimou com o artigo 95º. Por fim, em 1936, quando foi reativada a Constituição, assinou-se também o Tratado Franco-

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 87 Libanês, como uma tentativa de conter os movimentos populares, os quais eram contrários àquela forma de governo, que ocorriam e se intensificavam em todo país. Esse tratado atribuiu autonomia a região libanesa, porém, essa pode ser analisada como uma falsa independência, pois a França continuou autorizada a manter seu Exército no território e a exercer certo controle político do local. As promessas de independência continuavam vindo, desde a Primeira Guerra Mundial. Porém, não se concretizavam.

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CAPÍTULO 2 A Independência do Líbano e o estabelecimento do Confessionalismo No ano de 1936, através da elaboração de um tratado que ficou conhecido como Franco-Libanês, reconheceu-se a Independência do Líbano, independência essa parcial, pois a França foi autorizada a manter seu exército no país, garantindo a manutenção do controle político que exercia. As manifestações muçulmanas contrárias ao domínio francês, principalmente em Beirute e Tripoli, foram fortemente reprimidas pelas tropas francesas e pela nova administração local, a qual continha uma maioria cristã. Diante dessa conjuntura, de movimentos pela independência e da implementação da política francesa no país, aumentou-se o rechaço à presença estrangeira no Líbano. No mesmo ano, Pierre Gemayel, jovem militante na época, conhecido por sua luta contra a presença da França no Líbano, participou dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. Nessa viagem à Alemanha, se encantou com a máquina estatal nazista, caracterizada por implementar uma nação unida e soberana. Ao retornar para o Líbano, uniu-se a outros cinco maronitas e fundou a Falange (ou Kataib) ou Partido Falangista Libanês, de direita, com inspiração no nazismo e nos falangistas espanhóis que apoiavam a ditadura de Francisco Franco. Sua fundação ocorreu na região cristã de Bikfaya e foi o partido político do Líbano com maior solidez e força quando se iniciou a Guerra Civil em 1975. Em resposta à

90 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Conferência da Costa25, a Falange executou sua primeira ação de cunho militar em 1937, na região sul, aumentando-se as tensões entre os cristãos e os muçulmanos no país. Nesse momento, Gemayel deixou evidente quais eram seus dois principais inimigos políticos: a presença mandatária francesa contraria ao nacionalismo libanês do Kataib e o projeto nacional do Partido Social Nacionalista sírio, que, liderado pelo grego-ortodoxo Antoun Saade, reivindicava a unificação do Líbano com a Síria. (MEIHY, 2016, p.60).

O Falange surgiu como um partido aliado à Israel e declarou apoio à guerra contra os palestinos. Após a morte de Hitler, ao final da Segunda Guerra Mundial, o movimento falangista desapareceu da Europa e permaneceu apenas no Líbano, cujo nacionalismo consistia em uma doutrina baseada na política nacional, desenvolvida por Gemayel entre 1936 e 1937, a qual era difundida em forma de artigos panfletários. Nessa política, resguardavam-se os valores maronitas de valorização de Deus e da família, sendo importante ressaltar que o discurso propagado por Gemayel era voltado para a classe dominante cristã do país. Essa característica pode ser apreendida através da análise dos discursos publicados, os quais eram em francês - idioma controlado pela comunidade cristã libanesa. O fato de diversas correntes Conferência realizada por muçulmanos libaneses reivindicavam a imediata reintegração do Líbano à Síria. 25

que

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 91 ideológicas, principalmente vertentes nacionalistas e progressistas que estavam se difundindo pelo mundo árabe, estivessem penetrando no país, fez com que o Falange adotasse posicionamentos de extremismo ativo, lutando contra todas essas correntes e ameaçando a estabilidade do país. Em sua composição, o partido possuía uma maioria cristã maronita. Por este motivo, o Falange ficou conhecido pela proteção e defesa que garantia às comunidades cristãs, principalmente nos momentos de contestação do poder maronita e de confrontos com os muçulmanos. Seu maior exemplo de atuação foi na Guerra Civil de 1975 e nos demais conflitos confessionais que se estenderam pelo país. Em oposição aos muçulmanos, os maronitas que se aliaram ou apoiaram o Falange viam o Líbano como um território do Mediterrâneo, não como uma nação árabe. Para eles, a ligação do Líbano com o mundo árabe se restringia apenas à geografia a qual o país se localizava e ao idioma falado. Dessa forma, o Líbano passou a ser visto como um país com características duais acerca de sua identidade: é árabe de acordo com a determinação geográfica e com a língua, mas não é árabe de acordo com a religião e a identidade étnico-religiosa. No interior da ideologia deste partido, acredita-se que os libaneses não podem e não conseguem viver sem a presença dos maronitas no controle do país. Por esse motivo, essa comunidade religiosa reivindicava sua legitimidade ao ocupar a maioria dos cargos mais elevados das instituições, tanto políticas como militares.

92 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Com a ciência de que a consolidação e a manutenção de seu poder no território sofreria resistência e contestação por parte dos muçulmanos, o partido solicitou auxílio de Israel, maior inimigo dos povos árabes. Através da figura de um líder poderoso e de um partido autoritário e centralizado, o Falange se opôs firmemente à presença palestina no Líbano e a qualquer movimento comunista e/ou em prol do arabismo. Com o passar dos anos, Gemayel, que ficou conhecido por sua luta contra a dominação francesa no território, se tornou um dos maiores aliados da França e do Ocidente em geral. Embora pregasse a importância da modernização com um caráter liberal e enfatizasse a todo momento a necessidade da liberalização econômica, incentivando a iniciativa privada, o objetivo principal do partido era garantir a manutenção dos maronitas na posição dominante dentro do Confessionalismo como regime político. 2.1 Segunda Guerra Mundial e os movimentos pela Independência. No período da Segunda Guerra Mundial, vários movimentos pela independência se manifestaram na região do Oriente Médio e da África. Em 1940, o governo pró-alemão de Vichy se apoderou dos territórios que pertenciam à França para além-mar, incluindo, nesse caso, o Líbano. Foi apenas em 1941 que a França Livre26

A França Livre foi criada em Londres em Junho de 1940 e representou o governo no exílio, liderado por Charles de Gaulle, 26

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 93 conseguiu retomar os territórios perdidos e concedeu ao Líbano uma independência parcial, na tentativa de conter os movimentos de contestação ao domínio francês que se intensificaram a partir dos anos 40. A partir de 1941, ficou evidente que as tensões entre a França e o Líbano se tornaram mais intensas, principalmente por causa dos movimentos pela independência que se estenderam pelo país. Com a Segunda Guerra Mundial, os franceses vivenciaram um período de fragilidade e enfraquecimento de suas forças políticas. Aproveitando-se da crise do poder francês, a câmara de deputados no Líbano aprovou uma ementa constitucional que suprimiu todos os artigos que possuíam alguma relação com a legitimação do domínio francês. Como reação a essas mudanças constitucionais, o alto-comissário francês Jean Helleu ordenou a prisão do presidente do Líbano em exercício naquele momento e prendeu o chefe de governo e mais três ministros. Dado o estabelecimento de um cenário de repressão e autoritarismo, os libaneses se organizaram em um movimento de insurreição geral contra os colonizadores franceses. Desse modo, forças políticas e religiosas que eram antagônicas até aquele momento, se uniram por uma causa comum: a luta pela independência.

durante o período da Segunda Guerra Mundial, após a queda da França. Suas forças militares continuaram lutando contra as forças do Eixo e apoiou a resistência na França ocupada.

94 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s 2.2

Independência do Líbano e o Pacto Nacional de 1943

Embora tivesse sido inúmeras vezes prometida, os franceses, no decorrer do seu protetorado sobre o território libanês, descumpriram as promessas feitas de garantir a autodeterminação libanesa e a independência do país, dificultando a transição do governo francês para um governo autônomo do Líbano. O general De Gaulle, por exemplo, deixou evidente que manteria suas forças no país sem reconhecer a independência conquistada, com isso, nem os maronitas (incluindo Gemayel e a Falange), queriam sua presença no país, particularmente devido ao cenário de autoritarismo e repressão que se instalara. Todas as comunidades religiosas exigiam, então, a retirada dos franceses. Nesse cenário de rebeliões contra o protetorado francês no Líbano, comunidades religiosas antagônicas se uniram para derrotar o domínio da França sobre o território. A luta pela independência e a consolidação deste processo dependia de um acordo entre grupos, que eram até então rivais, para que se fosse possível alcançar o objetivo central de romper com a tutela francesa através da criação de uma base de interesses comuns que permitissem vencer o inimigo. Foi, enfim, no dia 22 de novembro de 1943, que a França não resistiu à pressão e reconheceu a independência do Líbano. A negociação realizada entre esses diferentes grupos religiosos resultou no Pacto Nacional Libanês de 1943, o qual consolidou o poder dos novos grupos políticos do país: os sunitas das cidades costeiras,

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 95 representados por Riad al-Sulh (1894-1951), e a crescente burguesia maronita, que naquele momento estava mais alinhada com a liderança de Bechara al-Khoury (18901964) do que com a figura de Pierre Gemayel. Esse acordo foi promovido pelo general Charles de Gaulle e oficializado pelo general Georges Catroux. Além disso, o mesmo foi baseado no censo demográfico realizado pela França em 1932, o qual os cristãos apareceram como a maioria populacional, como demonstrado no capítulo anterior. Desse modo, a proporção adotada tanto na composição do Parlamento, como para todos os cargos do funcionalismo militar, judiciário e civil foi mantida a de 6:5, ou seja, seis cristãos a cada cinco muçulmanos, impondo, como obrigatoriedade, que esses cristãos ocupassem os mais elevados cargos políticos-administrativos de cada instituição. O Pacto não foi escrito institucionalmente e nem formalizado em um texto público, sendo considerado, então, apenas o seu pronunciamento. O ideólogo do Pacto foi Michel Chiha, um banqueiro cristão católico-romano, que ficou conhecido por lançar o mito da singularidade do caso libanês. Essa concepção que ele difundia do Estado Libanês favorecia os grandes senhores feudais, tanto os cristãos como os muçulmanos. A negociação realizada tinha como objetivo criar um sistema político que refletisse a preponderância social de seus idealizadores. O Sistema Político Confessional, ou Confessionalismo, é um sistema de governo em que os cargos políticos e administrativos são divididos entre as comunidades religiosas presentes no país. Desta forma, as instituições pertencentes ao Estado são compostas por representantes de todas as religiões. Esse modelo foi

96 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s considerado o ideal para se manter a dominação da comunidade cristã no país, a qual havia ascendido política e economicamente através dos privilégios os quais foram atribuídos pelos franceses durante o período em que o país esteve sob tutela da França. Como já mencionado, a França atribuiu cargos políticos de alto escalão aos maronitas para que tivesse, em troca, uma base de apoio que facilitasse a penetração dos países ocidentais no Oriente Médio. Para que o Pacto Nacional Libanês de 1943 fosse aceito pelas diversas comunidades religiosas, algumas concessões foram feitas por ambas as partes. Os cristãos aceitaram renunciar seus vínculos com as potências ocidentais (principalmente com a França) desde que, em troca, eles ocupassem os cargos da Presidência e do comando do Exército, por exemplo. Enquanto os muçulmanos renunciaram qualquer projeto de unir o Líbano à Síria ou a qualquer país que ameaçasse a soberania do recém-Estado independente, rompendo com qualquer projeto de se unir ao mundo árabe. A partir do que foi estabelecido pelo Pacto (que passou a ser visto como uma extensão da Constituição), o cargo de Presidente da República pertenceria obrigatoriamente a um maronita; a Presidência do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro) pertenceria aos sunitas; e a Presidência do Parlamento a um muçulmano xiita. Nessa relação de interesses políticos, a elaboração e a consolidação do Pacto Nacional de 1943 foram aprovadas e elogiadas pelas potências europeias, sendo, inclusive, considerado um modelo de excelência dentro do Oriente Médio. Como pano de fundo, as potências europeias

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 97 aprovaram o modelo político do Confessionalismo pois tinham agora, como garantia, que a Presidência da República do Líbano sempre seria ocupada por um cristão maronita, comunidade aliada aos seus interesses. Logo no início, o Pacto demonstrou algumas falhas fundamentais, como por exemplo, não considerar a possibilidade de mudanças demográficas na população. Após 1943, a comunidade maronita se tornou menor que as comunidades muçulmanas, e, diante disso, os cristãos se recusaram a realizar um novo censo que demonstrasse que eles haviam perdido a primazia demográfica27, criando-se o mito da maioria maronita. Os muçulmanos, sabendo que a situação populacional lhes tornara favorável, passaram a exigir constantemente a realização de um novo censo e, consequentemente, a reforma do sistema político libanês baseado no Confessionalismo. Cada vez que os muçulmanos falavam da necessidade de que se levasse a cabo um novo censo populacional, os cristãos respondiam que nesse caso era necessário levar em conta os libaneses emigrados, ate a terceira geração, que se supunha serem majoritariamente cristãos. A União Cultural e Libanesa Mundial (UCLM), celebrava todos os anos festivais para emigrados em Baalbeck, criada pelos cristãos como um laço de união entre eles e seus

Naquele momento, estima-se que os cristãos representavam 40% da população, sendo 23% maronitas. Enquanto os muçulmanos passaram a representar 60% da população, sendo 27% dessa porcentagem xiitas (PINO, 1989). 27

98 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s emigrados, sustentava então que os libaneses distribuídos pelo mundo eram mais de quatro milhões. (PINO, 1989, p.56).

Analisa-se nessa pesquisa que o sistema político libanês se fundamentou, basicamente, em três pilares principais: a Constituição de 1926; a organização das instituições a partir do Pacto Nacional de 1943; e, por fim, a questão da própria tradição libanesa. Ao observar mais detalhadamente o funcionamento e a organização das instituições políticas no Líbano, a partir do que foi definido pelo Pacto, nota-se que o Executivo, por exemplo, é coletivo, e suas decisões são, portanto, tomadas coletivamente. Esse poder é composto pelo Presidente e pelo Gabinete de Ministros, o qual é coordenado pelo Primeiro-Ministro e tem como função executar as políticas públicas do país. O Legislativo possui uma considerável independência em relação aos outros poderes e é responsável por controlar o Executivo. Atualmente, este poder é composto por 128 cadeiras, das quais 68% são ocupadas pelas três principais vertentes religiosas do país, sendo 34 cadeiras para os maronitas, 27 para os xiitas e 27 para os sunitas. Foi definido nesse sistema que o presidente possuiria um mandato de seis anos, sendo proibida a sua reeleição consecutiva. O Primeiro-Ministro é nomeado pelo presidente diante a aprovação do Parlamento em geral, composto por uma assembleia de representantes. Enquanto isso, o Judiciário é composto por juízes e pelos diversos tribunais que obedecem a uma ordem hierárquica de prioridades. Esse poder não tem o direito

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 99 de intervir nos outros dois poderes, devido ao princípio de autonomia dos poderes que foi estipulado como corolário da República Libanesa. Dessa forma, em uma leitura crítica do Pacto Nacional de 1943, pode-se observar que o mesmo reforçou o sectarismo existente, pois fragmentou as identidades confessionais no interior das esferas políticas de modo que a liderança maronita – ainda fundamentada pelo censo demográfico de 1932 - fosse reforçada, embora não correspondesse mais à realidade. Desse modo, a partir da divisão confessional feita dentro de cada instituição pública e/ou militar, os cristãos maronitas continuaram como classes dominantes e ocuparam os mais altos cargos do escalão administrativo, político e militar. Isso demonstra que o caráter da democracia libanesa se assemelha a uma democracia restrita, pois o acesso e a participação nas decisões políticas são limitados a uma parcela restrita da sociedade. A manutenção dessa comunidade religiosa como classe dominante ocorria, nesse momento, de forma legitimada, tanto pela Constituição como pelo Pacto de 1943, que foi o responsável por consolidá-la no poder. É importante ressaltar que era o Kataib (Falange) que estava na linha de frente desse projeto nacional libanês e que buscou privilegiar os maronitas em sua dominação política. Podese observar que o ideal da proposta era distribuir os cargos de poderes entre todas as comunidades religiosas, no entanto

100 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s (...) mesmo que a proposta de distribuição de cargos políticos por grupos confessionais tentasse equilibrar o peso politico de setores distintos da sociedade libanesa, ao destinar as funções políticas mais importantes à maronitas e sunitas, reforçava o domínio desses dois grupos no cerne do Estado libanês recémconstruído. (MEIHY, 2016. p.62).

Em todos os momentos em que ocorreram confrontos entre os cristãos e os muçulmanos no Líbano, principalmente na Guerra Civil de 1958 e na Guerra Civil de 1975, a legitimidade do Pacto Nacional foi questionada, principalmente pelas comunidades muçulmanas. Por ser baseado em uma estrutura ocidental, alega-se que este acordo não se encaixava na realidade de um país do Oriente Médio, composto por uma nação recémindependente a qual, quase sua metade, contestou por mais de duas décadas sua própria existência, com a discussão sobre o anseio dos muçulmanos de se unirem novamente com a Síria após a formação do Líbano em 1920. Em síntese, o Pacto Nacional buscou organizar e explicitar todos os arranjos políticos confessionais que puderam ser verificados até aquele momento, na tentativa de mostrar ao mundo que cristãos e muçulmanos poderiam viver em paz. Enquanto essa imagem era difundida entre os países ocidentais, que elogiavam o novo sistema político libanês, e entre os países árabes, os cristãos e os sunitas se beneficiavam da enorme riqueza que circulava por Beirute em detrimento das

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 101 comunidades muçulmanas xiitas, que foram excluídas dos principais cargos políticos, como determinado pelo Pacto Nacional, e tiveram suas regiões negligenciadas por diversos governos. O fato é que, os muçulmanos, principalmente xiitas, nunca aceitaram a divisão realizada pelo Pacto Nacional Libanês e sempre se sentiram injustiçados por aquele sistema político. A esquerda28 possuía reinvindicações voltadas a uma distribuição realista do poder, que considerasse as bases numéricas confessionais atualizadas; a distribuição igualitária e planificada dos recursos para o desenvolvimento; a participação solidária do Líbano nas discussões dos problemas do mundo árabe e a promulgação de uma reforma fiscal que visasse eliminar as grandes desigualdades sociais e econômicas do país29. Para os muçulmanos, o Pacto Nacional, ao privilegiar os cristãos maronitas em detrimento das comunidades muçulmanas, consolidou e legitimou o sistema de desigualdades iniciado com o protetorado francês. Portanto, o processo de independência, que resultou na elaboração deste acordo, pode ser analisado como uma estratégia política para que o caráter

A esquerda libanesa era composta, em sua maioria, pelas comunidades muçulmanas, as quais representavam a oposição ao governo maronita e realizavam críticas ao Pacto Nacional Libanês e ao Confessionalismo como sistema político, que privilegiava os cristãos e negligenciava os muçulmanos. 29 PINO, Domingo del. A tragédia no Líbano: retrato de uma Guerra Civil. São Paulo: Clube do Livro, 1989. 28

102 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s confessional do Estado fosse mantido mesmo sem o domínio da França e para que os maronitas permanecessem com a sua supremacia sobre os demais grupos religiosos. Por fim, o Líbano conquistou sua independência e estabeleceu o Pacto Nacional Libanês de 1943, que definiu o Confessionalismo como sistema político a ser adotado pelo país. No mesmo ano, Bechara el Khouri foi eleito Presidente da República, visto como o mais indicado devido a sua luta nacionalista contra as potências europeias. Em sua política externa, optou por aliar o país aos países árabes, tanto que, em 1945, o Líbano se tornou um dos fundadores da Liga Árabe. No ano de 1946, os franceses se retiram oficialmente do território, deixando para trás uma nação dominada pelos cristãos maronitas, como a própria França desejava. No mesmo ano, o Pacto começou a demonstrar suas fragilidades e passou a ser questionado com a chegada dos palestinos refugiados na capital Beirute. Esses palestinos, que tinham a esperança de retornar aos seus lares em breve, não foram bem recebidos no país, pois os maronitas viam na presença daqueles refugiados, que eram de maioria sunitas, uma ameaça ao seu poder, já que temiam que, com eles, os muçulmanos que habitavam o Líbano se fortalecessem e se rebelassem contra aquela ordem vigente. Outro fator que passou a preocupar a classe dominante dos maronitas foi a emergência da figura de Nasser no Egito, com seu projeto político de nacionalismo árabe e PanArabismo. Compreende-se, deste modo, que desde os primeiros anos de seu estabelecimento, o Pacto resultou

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 103 em crises de caráter político e social no Líbano. Em 1952 essa instabilidade ficou evidente, pois se instaurou uma competição pública entre os diversos setores religiosos que serviu para comprovar a fragilidade em que se encontravam as instituições públicas do país. Influenciados pelo nacionalismo árabe e pelas propostas políticas difundidas por Nasser, como mencionado, surgiu nessa conjuntura o Progressismo Libanês. Assim como no restante do Oriente Médio, o movimento foi composto por correntes ideológicas essencialmente anticolonialistas. O objetivo de todas elas, desde o Baathismo socializante 30 até o Nasserismo nacionalista31, era a recuperação da Palestina, perdida em 1948 com a proclamação do Estado de Israel. O “nascimento” de um progressismo libanês, aliado às ideias de um nacionalismo árabe que se posicionava contrário a qualquer intervenção dos países colonialistas e imperialistas no Oriente Médio, passou a penetrar principalmente nas comunidades muçulmanas e a ser difundido e defendido pelas mesmas, já que se identificavam com as propostas nasseristas. Esse movimento nacionalista entrou em confronto com as O Baathismo é uma ideologia nacionalista árabe ligada ao socialismo, que objetiva a criação de uma nação árabe através da liderança de um partido de vanguarda em um Estado progressista revolucionário. Essa ideologia está vinculada com as teorias do Partido Baath Árabe Socialista, da Síria. 31 O Nasserismo é uma ideologia política nacionalista árabe baseada no pensamento do ex-presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, que tinha como objetivo unificar todos os povos árabes e realizar uma frente de oposição ao imperialismo e ao colonialismo ocidental. 30

104 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s ideias dos cristãos maronitas, que passaram a temer a perda do seu poder sobre o Líbano, se posicionando favoráveis a uma aliança com o Ocidente. Esse confronto de ideais políticos foi o que caracterizou a primeira fase do Líbano independente a partir de 1943. 2.3

Primeira Fase do Líbano Independente (1943-1958)

Inicialmente, o Pacto Nacional de 1943 conseguiu alcançar seu objetivo imediato e o país conquistou sua independência. No entanto, a manutenção dos privilégios políticos dos muçulmanos sunitas e dos cristãos maronitas, além da criação de novos privilégios a essas comunidades em detrimento dos outros grupos religiosos, provou que este sistema político seria instável e em pouco tempo precisaria de uma revisão. O sectarismo políticoadministrativo implementado pelos maronitas e legitimado pelo acordo em 1943, garantiu os privilégios desta classe e causou a revolta dos muçulmanos, principalmente xiitas, que resultou por fim na Guerra Civil de 1958, na Guerra Civil de 1975 e numa série de rebeliões que contestavam e questionavam sua legitimidade. No âmbito da esfera econômica, 1948 pode ser considerado o ano em que se liberalizou a economia do Líbano. Com as medidas adotadas por Khouri, presidente no período, liberalizou-se o mercado de câmbio e o capital libanês pode fluir pelo mundo. Diversas restrições ao comércio foram abandonadas e se desmantelou a proteção à indústria nacional. Houve resistência desse setor a essas políticas desenfreadas de liberalização econômica

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 105 feita pelo governo. Ao analisar de forma mais aprofundada, portanto, a economia do país neste primeiro momento, que vai de 1943 a 1958, observa-se que, com as políticas de liberalismo econômico, as empresas privadas passaram a ter ampla liberdade de ação econômica, e foi nesse momento que o Líbano ficou conhecido como República Comercial32, vivendo uma relativa estabilidade da sua economia. Deste modo, a partir dos anos 50, em um momento em que o liberalismo estava desacreditado no restante do mundo (devido à crise de 1929 e as tragédias que dela resultaram nos anos 40 e 50), o Líbano assumiu políticas de cunho liberal e se desenvolveu economicamente. As políticas intervencionistas passaram a ser vistas como contrárias ao “espírito libanês”, o qual, segundo os autores que difundiam essa perspectiva econômica, havia caracterizado o povo libanês, devido a sua iniciativa individual, empreendedorismo, habilidade nos comércios, nos negócios e na acumulação de riquezas de forma geral. Por meio deste discurso, havia uma tentativa de naturalizar as práticas capitalistas e liberais de modo que elas parecessem como “naturais” àquela nação. Para um povo que acreditava possuir essas características DUTRA JÚNIOR, José Ailton. O Líbano e o Nacionalismo Árabe (1952-1967): o Nasserismo como projeto para o mundo árabe e o seu impacto no Líbano. 2014. 320 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica)-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. 32

106 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s culturais, o liberalismo passou a ser visto como o modelo econômico ideal àquela nação. Qualquer medida intervencionista passou a ser vista como uma ameaça direta à democracia libanesa e, por trás dessa ideia, existia a tentativa de enfraquecer qualquer movimento que pudesse se opor àquele modelo econômico. O medo era de que os muçulmanos, principalmente os xiitas, que não se beneficiavam de nenhuma forma com aquela estrutura econômica, se rebelassem contra tal, já que se sentiam injustiçados pela divisão política imposta pelo Confessionalismo. Entre os anos 50 e 60 o país estabeleceu os fundamentos de um programa de desenvolvimento econômico pautado no liberalismo e designou instituições públicas para executarem esse projeto econômico. Com o objetivo de ser um centro mercantil e de serviços, o Líbano criou uma moeda forte e garantiu que o país conquistasse uma estabilidade econômica, a qual permaneceu até a década de 70. Para desenvolver uma moeda forte, o governo libanês fez com que o valor da moeda libanesa permanecesse sempre próxima ao dólar americano. Nesse período, novas frações da burguesia surgiram, como a grande burguesia dos negócios e a classe dos banqueiros, que se tornaram a nova classe dominante nacional. Essas realizaram alianças com os antigos chefes de clãs e dos líderes de diversas comunidades. Enquanto isso, no outro extremo da sociedade, a população majoritariamente muçulmana se encontrava em situação de subemprego e compunha a classe dos subproletariados diaristas. O aumento das desigualdades sociais e políticas entre os diferentes

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 107 grupos religiosos, as quais se intensificaram a partir dos anos 40, se tornavam cada vez mais evidentes no cenário nacional. Acompanhando o avanço das medidas liberais, a economia libanesa vivenciou um enorme avanço das políticas de terceirização, com o apoio da grande burguesia francesa. A França ainda possuía vínculos com a região, principalmente econômicos, e com os novos setores burgueses – de maioria cristã – que emergiam, pois ainda existiam projetos e interesses em provocar uma maior ocidentalização do país. Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento econômico e a estabilidade da economia que o país apresentava, não era sentida e usufruída pela população libanesa como um todo. Os muçulmanos xiitas, por exemplo, foram excluídos e negligenciados por diversos governos, e, por esse motivo, o fenômeno da emigração dessa vertente religiosa ocorreu em massa nesse período. O liberalismo econômico trouxe ao Líbano um maior enriquecimento das classes dominantes – compostas em sua maioria pelos cristãos – e trouxe poucos benefícios, quase imperceptíveis, às camadas populares das comunidades muçulmanas. No entanto, a preponderância dos interesses particulares na política e na economia, em detrimento dos interesses coletivos, passou a ameaçar a estabilidade do país. Em relação aos acontecimentos políticos desta primeira fase do Líbano independente, é possível notar as primeiras crises do sistema político confessional estabelecido pelo Pacto Nacional de 1943. Com a criação de Israel em 1948, ocorreu uma primeira migração em massa de palestinos refugiados para o Líbano, resultando

108 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s em um aumento da natalidade entre os muçulmanos. Com isso, a comunidade dos muçulmanos conseguiu ultrapassar quantitativamente a comunidade dos cristãos, tornando-se o maior grupo religioso do país, fenômeno que levou a questionamentos acerca do Pacto Nacional e da supremacia cristã ainda vigente, a qual não era mais vista como legítima, já que os cristãos não representavam mais a maioria populacional do Líbano. A ocupação sionista na antiga Palestina ainda trouxe diversos debates políticos e sociais entre os países do mundo árabe, criando-se nestas regiões um clima de rivalidade e intensificando-se a fragmentação das sociedades destes Estados, pois houve divergências entre as comunidades religiosas em relação ao posicionamento que deveria ser adotado acerca da criação do Estado de Israel. Portanto, esse momento histórico da criação do Estado de Israel no território que antes pertencia à Palestina, em 1948, foi essencial para compreender os conflitos que se estenderam no Líbano no decorrer do século XX. O posicionamento adotado por Khouri, Presidente do Líbano, causou uma indignação na população libanesa, principalmente das comunidades muçulmanas, pois o mesmo optou por adotar um comportamento de neutralidade em relação à criação de Israel, embora tivesse construído em sua política externa alianças com os países árabes. Além disso, em 1952 Bechara al-Khouri reivindicou seu terceiro mandato, contrariando as regras sucessórias de candidatura estabelecidas pela constituição, que proibia a reeleição consecutiva ao mandato. O Presidente tentou manipular de diversas formas o legislativo para conseguir uma base

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 109 de apoio ao seu projeto. Como frente de oposição às medidas políticas que estavam sendo adotadas, Camille Chamoun, um cristão maronita, convocou a população para protestar contra o governo de Khouri. Neste momento, 50.000 pessoas foram às ruas contra o governo. A situação de manutenção era insustentável e piorou quando o Gemayel, fundador do Falange, se uniu à oposição. No dia 11 de setembro de 1952, estabeleceu-se um movimento de greve geral, de caráter nacional, contra o presidente e seu governo. Nesse momento, forças e lideranças religiosas antagônicas, como os cristãos e os muçulmanos, se uniram na luta contra o governo, que passou a ser visto como o inimigo comum. Até que em 18 de setembro daquele mesmo ano, com os movimentos de oposição crescendo cada vez mais pelo país e após o pronunciamento do general do Exército, Fuad Chehab, que se recusou a prestar auxílio em defesa de Khouri, o mesmo declarou sua renúncia ao cargo. No dia 23 de setembro de 1952, logo após a renúncia de Khouri, a Câmara de Parlamentares elegeu Chamoun para ocupar o cargo de Presidente do Líbano, porém, logo no início de seu mandato, deixou explícito que manteria o caráter sectário das instituições políticas e militares e garantiria a manutenção dos privilégios dos maronitas em seu governo. Como líder do movimento de oposição, surgiu a figura de Kamal Jumblatt33, que alegava que a população muçulmana já havia Um dos líderes da oposição ao governo, Kamal Jumblatt foi o representante da comunidade drusa e fundador do Partido Socialista Progressista. 33

110 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s ultrapassado a população dos cristãos, identificando as falhas nas tentativas de manutenção daquele sistema político e daquele governo. Mais uma vez, a fragilidade do Pacto se tornou evidente, e, novamente, retornam-se os debates acerca da falha daquele acordo que não considerou, no momento em que foi elaborado, as possíveis mudanças sociais e populacionais que poderiam vir a ocorrer. Com isso, a pauta dos movimentos de oposição se concentrou na exigência da realização de um novo censo demográfico no país. Como resposta, os cristãos alegaram que grande parte dos muçulmanos que compunham o Líbano eram os palestinos que haviam adentrado ao território libanês. Nessa lógica, o justo era que os cristãos ocupassem os principais cargos políticos e de controle social e detivessem privilégios políticos, já que eram eles que contribuíam com 80% das taxas arrecadas pelo país. Diferente da política externa adotadas por Khouri, que se aproximou dos países árabes, o governo de Chamoun realizou uma aproximação estratégica com duas potências ocidentais: Inglaterra e Estados Unidos. O objetivo dessa aliança era conter a expansão do projeto político do Pan-Arabismo liderado por Gamal Abdel Nasser. Desse modo, um fator que não pode ser desconsiderado neste estudo é a ascensão do PanArabismo nesse período e a ameaça que esse projeto político representava à hegemonia maronita do Líbano. A figura de Gamal Abdel Nasser se difundiu pelo país, principalmente entre as comunidades muçulmanas – que já representavam a maioria populacional - e drusas. Nasser, presidente do Egito que ascendeu ao

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 111 poder na Revolução de 1952, nacionalizou em 1956 o Canal de Suez, que era até então controlado por empresas francesas e britânicas. A represália a essa nacionalização foi imediata e a França, Inglaterra e Israel iniciaram uma guerra contra o Egito para evitar que as ideias panarabistas de Nasser se difundissem cada vez mais para os outros países árabes. No entanto, o nacionalismo nasserista passou a percorrer todo Oriente Médio com um poder unificador. A postura que as potências ocidentais adotaram diante a decisão política de Nasser foi rechaçada por diversos outros países, que os acusaram de realizar ações de caráter colonialista, as quais eram criticadas. Por fim, os EUA e a URSS interviram no Egito e exigiram a retirada das tropas francesas, britânicas e israelenses do país. Com isso, os EUA assumiram a hegemonia no Oriente Médio e a Inglaterra perdeu sua liderança no local. A Crise de Suez representou, portanto, o fim do colonialismo britânico e francês no Oriente Médio. Após a agressão franco-britânica de Suez em 1956, Nasser lançou-se à conquista política do mundo árabe com o intuito de fortalecer a luta anticolonialista, causando o temor dos cristãos e das potências ocidentais. Diante essa conjuntura, Chamoun, presidente em exercício no Líbano, optou por não cortar vínculos diplomáticos com a França e com a Inglaterra, mesmo com a pressão exercida pelos muçulmanos no interior do país, deixando explícito seu alinhamento político com o Ocidente e não se opondo à aliança feita entre esses países e Israel. A partir deste posicionamento, alguns membros do governo renunciaram imediatamente,

112 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s crescendo, a partir de então, a tensão política e aumentando os movimentos de oposição. Essa não ruptura com o Ocidente aumentou as desconfianças acerca das bases e dos fundamentos do Pacto Nacional, pois, entre os muçulmanos, mais uma vez, difundiu-se o ressentimento em relação à sua condição social e política no Líbano. Nesse momento, a população muçulmana declarou seu apoio ao Egito e formou uma ampla frente de oposição à Chamoun, na qual os nacionalistas realizaram uma aliança à esquerda com os baathistas, os comunistas, os social-democratas e com a parte da comunidade muçulmana que apoiava o Nasserismo. Diversos movimentos contra o governo se estenderam pelas diversas regiões do Líbano. Nessas manifestações, a oposição exigiu o rompimento das relações diplomáticas com as duas potências imperialistas que haviam invadido o Egito, porém, os cristãos, principalmente os maronitas, não queriam romper os vínculos estabelecidos com a França e com a Inglaterra devido aos acordos comerciais estabelecidos. Pode-se analisar aqui, novamente, como a formação social e histórica do Líbano foi influenciada pelos privilégios políticos e econômicos que foram atribuídos aos cristãos, fato esse que permitiu que os maronitas ascendessem economicamente e comandassem os principais negócios do país, em detrimento dos direitos dos muçulmanos. Cortar laços com as potências europeias seria prejudicial às relações econômicas que ocorriam entre esses países e prejudicaria diretamente os cristãos que dominavam as áreas comerciais e os grandes negócios do país.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 113 Em síntese, as políticas adotadas por Chamoun foram acusadas de serem pró-Ocidente e pró-imperialista. Os clãs libaneses, liderados por Jumblatt, formaram uma frente de oposição ao governo de Chamoun, o qual não encontrou mais condições de governar, devido à queda de sua reputação e à perda de apoio interno em grande parte do território. Os grandes caids sunitas, abdallah Jafi, Adnan Hakim, Saeb Salam e Abdallah Mashnuk, o chamado “quarteto de Beirute”, criaram seus grupos armados mediantes armas e fundos egípcios, e dedicaram-se a minar o poderio dos cristãos, cuja preeminência derivada do Pacto Nacional de 1943 eles novamente questionavam. (PINO, 1989, p. 39).

Na década de 50, na tentativa de se manter no poder, Chamoun tentou modificar a estrutura numérica do Parlamento como uma forma de garantir seus benefícios. Assim, mesmo mantendo a proporção 6:5, teve como objetivo aumentar o número de 66 para 99 cadeiras34, visando o aumento da representatividade cristã no interior do Parlamento. No entanto, essa tentativa de mudança na instituição agravou as tensões e os movimentos de oposição ao governo, e, com isso, esse projeto político não teve êxito. Outra medida de Chamoun que causou indignação e revolta, foi sua intenção de Com a mudança, a intenção era aumentar a proporção de 36 cristãos e 30 muçulmanos para 54 cristãos e 45 muçulmanos, seguindo a lógica da proporção estabelecida de 6:5. 34

114 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s modificar a Constituição para que fosse permitida a sua reeleição. A partir de então, o povo foi às ruas para lutar contra as políticas que tentavam ser implementadas pelo governo, as quais feriam a própria constituição libanesa. Chamoun manteve seu posicionamento contrário às políticas de Nasser e temia cada vez mais que o PanArabismo se estendesse até o Líbano. Kamal Jumblatt, diante de toda essa conjuntura, optou por unir forças e se aliar com os líderes das comunidades sunitas. A partir dessa união, conduziu-se uma revolta popular que ameaçou a integridade do governo e a estabilidade política do país. Temendo o avanço do nacionalismo árabe e a perda de seu poder, Chamoun aceitou a Doutrina Eisenhower, elaborada no período da Guerra Fria, a qual garantia que os Estados Unidos pudessem usar da sua força para conter, quando solicitados, os agressores controlados pelo “Comunismo Internacional” e os aliados aos soviéticos. Esse posicionamento gerou uma série de revoltas, principalmente porque a adesão à doutrina foi analisada, pelos muçulmanos, como uma ruptura do Pacto de 43, cuja espinha dorsal de sua elaboração era a renúncia do arabismo e a renúncia à cooperação com o Ocidente. Concomitantemente, retomou-se no país a discussão sobre o mesmo ser uma nação árabe ou não. Esse debate se iniciou quando o Líbano foi criado pela França em 1920 e passou por uma tentativa de ser silenciado com a elaboração do Pacto em 1943 e com a dupla renúncia realizada pelos cristãos e pelos muçulmanos. Porém, novamente a discussão relacionada à identidade libanesa voltou à tona, com os cristãos

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 115 defendendo que o Líbano era uma nação do Mediterrâneo e não uma nação árabe, como defendiam os muçulmanos. O que ocorreu foi uma disputa entre dois tipos de nacionalismos, na qual o nacionalismo muçulmano ganhou vigor com a rápida expansão das ideias panarabistas. Para lidar com os movimentos de oposição, Chamoun contou com o apoio das milícias maronitas, já que o Exército naquele momento se recusou a apoiá-lo, fato esse que será visto com mais detalhes no próximo subitem. Observa-se, desse modo, que um sistema sectário como o libanês, no qual ter um representante no Parlamento é a única forma de uma região ter algum benefício vindo do governo, fez com que a corrupção e algumas práticas, como o clientelismo, se tornassem recorrentes. Os maronitas detinham mais facilidade em garantir privilégios às regiões habitadas por suas comunidades, excluindo as outras regiões, principalmente aquelas habitadas pelos muçulmanos xiitas, os quais eram vistos como uma ameaça à manutenção da dominação cristã. O sistema confessional, ou Confessionalismo, colocou, dessa forma, grande parte da população libanesa à margem das decisões política, demonstrando seu caráter de democracia restrita. Mesmo com as lutas contra a desigualdade e os questionamentos que se levantavam em torno da legitimidade do Pacto, que se tornaram mais intensas nesse período, sempre houve uma dificuldade para aplicar qualquer reforma nesse sistema, devido à resistência realizada pelos cristãos que contavam com o apoio das potências europeias. Essa negligência às camadas sociais

116 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s muçulmanas, que foram excluídas dos benefícios econômicos do liberalismo e afastadas de grande parte das decisões políticas, já que não podiam ocupar cargos de alto escalão nas instituições públicas e militares, foi um dos motivos que levou a população às ruas, para se opor às medidas que haviam sendo adotadas pelo governo. Juntamente com o debate que se estendeu durante toda década de 50, a respeito de qual seria identidade libanesa e qual deveria ser o nacionalismo a ser aplicado naquele país, criou-se um clima de tensão e uma série de revoltas que resultaram na Guerra Civil do Líbano de 1958. Essa se caracterizou pela disputa entre o nacionalismo pró-árabe e o maronitismo pró-ocidente, aliada a uma revolta contra o sistema político vigente no Líbano, questionado e deslegitimado pelas comunidades muçulmanas e drusas. No período que antecedeu a guerra, os muçulmanos xiitas se encontravam concentrados no Sul, no Bekaa, na fronteira com a Síria e uma parcela em Beirute, sendo considerado o maior grupo religioso do Líbano, pois representavam 1/3 da população total. Essa vertente islâmica era a mais excluída e negligenciada pelos governos, e, consequentemente, estavam apartados do acesso aos recursos materiais e à política, compondo a classe social mais pobre do país. A outra vertente muçulmana, dos sunitas, se concentrava naquele momento em Beirute, Tripoli e Sidon. Historicamente, tiveram acesso a alguns privilégios e puderam dividir o poder político com os cristãos maronitas. Os drusos compunham apenas 6% da população, e se encontravam na região do Shouf, área montanhosa. Por fim, as

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 117 comunidades cristãs tinham como grupo mais expressivo os maronitas, que compunham ¼ da população e se concentravam na região do Monte Líbano. Em termos numéricos, eram seguidos pelos gregos ortodoxos, pelos católicos gregos e pelos armênios. Como já fora mencionado, naquele período eles possuíam o domínio econômico e político do país, graças aos privilégios e à proteção fornecida pelos ocidentais e pelo que foi determinado no Pacto Nacional Libanês de 1943, elaborado no processo de Independência do Líbano, que garantiu legitimidade à dominação maronita no território. Para analisar a Guerra Civil de 1958, a Guerra Civil de 1975 e os demais confrontos que ocorreram no Líbano entre as comunidades religiosas no decorrer do século XX, é necessário compreender que esses conflitos explicitavam a fragilidade do Confessionalismo como sistema político. Naquele país, nota-se que a religião a qual o indivíduo é inserido desde o seu nascimento, define, além dos valores religiosos e do conjunto de crenças a serem compartilhadas nas comunidades religiosas, a classe social que o indivíduo ocupará e sua função política e econômica na sociedade libanesa. Não é possível desvincular a religião do indivíduo das consequências políticas que isso acarreta em um sistema político que atribui privilégios a determinados grupos religiosos. Os conflitos que se seguiram não são meramente por questões religiosas e/ou disputas de valores e crenças, mas, principalmente, por questões políticas e pela disputa por poder. Conclui-se que os confrontos podem ser analisados como inter-religiosos, mas também uma expressão da luta de classes.

118 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s 2.4

Guerra de Suez e a oposição ao governo de Chamoun

A Guerra Civil de 1958 esteve ligada à fragilidade do Pacto Nacional, o qual passou a ser questionado pelas populações muçulmanas que cresceram significantemente no país. Como já analisado anteriormente, o fato de ser cristão ou muçulmano, em um país que possui sua política pautada na divisão sectária dos poderes, apresenta um alto grau de relevância, pois a posição ocupada pelos indivíduos dentro das instituições políticas e/ou militares depende da comunidade religiosa a qual ele pertence, sem possibilidade de mudança nas funções, já que essas foram determinadas e acordadas no Pacto Nacional de 1943. Desse modo, a disputa entre as comunidades religiosas por poder político sempre esteve no cerne dos principais conflitos do país, e esses se intensificaram conforme a organização do sistema político confessional se tornou mais complexo e mais excludente, como no caso dos grupos muçulmanos xiitas. Após o posicionamento do Presidente do Líbano diante da Guerra de Suez, em 1956, estabeleceu-se oficialmente a oposição política entre Chamoun e Nasser. Com isso, Nasser se aliou aos movimentos de oposição ao governo no interior do Líbano e começou a auxiliá-los. A adesão das populações muçulmanas, que compunham majoritariamente a oposição, ao nacionalismo árabe propagado por Nasser através do projeto do PanArabismo, possuía relação com a situação de abandono das regiões muçulmanas, que foram negligenciadas por diversos governos, inclusive o de Chamoun, enquanto o

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 119 Nasserismo oferecia lealdade aos muçulmanos que não se sentiam representados em um país governado por cristãos. Em contrapartida às políticas de Nasser, Chamoun assumiu sua posição pró-ocidental e aceitou a Doutrina Eisenhower, que garantia auxílio militar e econômico vindo dos EUA em caso de ameaças comunistas. O Líbano foi o primeiro país do Oriente Médio a aceitar a doutrina. Percebe-se que a decisão de Chamoun esteve vinculada à necessidade que o mesmo identificava de conter a expansão das ideias pan-arabistas difundidas por Nasser, que estavam circulando principalmente nas regiões habitadas por muçulmanos e entre as comunidades cristãs as quais viam com receio essa aproximação do governo libanês com os Estados Unidos. No dia 04 de abril de 1957, com diversas rebeliões ocorrendo pelo país contra o Presidente, o Parlamento Libanês aprovou a adesão à nova política militar proclamada pelos EUA. Diante disso, o Líbano solicitou a ajuda dos estadunidenses para conseguir fortalecer seu limitado Exército e equipar suas forças policiais e, em troca, declarou ser aliado aos EUA no caso de uma guerra contra a União Soviética naquele momento de tensão entre as duas potências. Os norte-americanos afirmavam que manter uma aliança com o Líbano era importante, devido à sua posição geográfica e estratégica. Com isso, massas muçulmanas de diversas regiões do país intensificaram sua luta e suas rebeliões contra Chamoun, que havia aceitado a doutrina Eisenhower em um momento de expansão da luta anticolonialista difundida por Nasser. Os muçulmanos

120 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s interpretavam a adesão do Líbano à doutrina como uma ruptura do Pacto Nacional, que possuía em sua base a dupla renúncia, tanto do arabismo como da cooperação com o Ocidente. O governo de Chamoun passou a ser acusado por diversos casos de violação da Constituição e casos de corrupção. O escândalo que envolvia a intenção do presidente em modificar a Constituição para que ele pudesse, no final de seu governo, se reeleger, resultou em uma insurreição geral no país. Como pano de fundo do conflito civil entre o governo e a oposição, que contestava e rejeitava as alianças feitas por Chamoun, havia, sobretudo, o interesse do mesmo em garantir a sua permanência no poder. As pressões das lideranças regionais contra seu governo cresceram rapidamente. A partir de então, os líderes da oposição, com o auxílio do Egito, se armaram e se dedicaram a lutar contra a hegemonia cristã do Líbano, colocando à prova novamente a legitimidade do Pacto de 43. Ao lado de Chamoun, garantindo apoio ao presidente, estavam os cristãos, principalmente da vertente maronita. Os grupos dos cristãos possuíam uma aversão ao nacionalismo árabe, pois o associavam às práticas do Islã, por isso, passaram a apoiar as políticas de Chamoun de realizar o alinhamento com o Ocidente contra a expansão do Pan-arabismo de Nasser. Para essa comunidade religiosa, o projeto nasserista tinha como objetivo modificar o sistema político libanês baseado no Confessionalismo para que, dentro deste sistema, os muçulmanos se privilegiassem e ameaçassem a dominação cristã. Por este motivo, se posicionaram ao lado de Chamoun e de outros partidos nacionalistas

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 121 cristãos, como por exemplo, o Falange. 2.5

As eleições de 1957

As eleições parlamentares no Líbano estavam previstas para ocorrerem em julho de 1957. Um fator que caracterizou as eleições de 57 foi a forte interferência externa no processo eleitoral, pois os Estados Unidos, junto com a Grã-Bretanha, se posicionaram a favor de Chamoun, e, enquanto isso, a Síria e o Egito garantiram sua posição apoiando a oposição ao governo. Em meio ao contexto internacional da Guerra Fria, o governo libanês passou a divulgar propagandas contra a expansão do comunismo, afirmando, com intuito pejorativo, que se a oposição conseguisse garantir a maioria no parlamento, poderiam eleger um presidente que era contrário as políticas de Chamoun e o Líbano se aliaria aos soviéticos. Em contrapartida, a oposição afirmava que os Estados Unidos enviavam verbas para financiar as campanhas dos parlamentares que apoiavam Chamoun. Com o apoio, principalmente midiático, da Síria e do Egito, a oposição realizou constantes denúncias contra as políticas de Chamoun, denúncias essas feitas inclusive por Jumblatt, que acusou o presidente de exagerar na propaganda anticomunista porque tinha como objetivo conseguir mais verbas e recursos dos EUA. Nessas eleições de 1957, foi realizado um rearranjo no sistema de votos para evitar que os líderes sunitas e drusos ganhassem a eleição. A partir de então, iniciaram-se violentas manifestações contra as fraudes eleitorais.

122 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Como é possível analisar, o governo utilizou no período eleitoral diversas manobras para conseguir que a maioria de seus candidatos ganhassem nas eleições. Em protesto, os manifestantes da oposição exigiram a formação de um novo gabinete que fosse responsável por fiscalizar a legitimidade e a legalidade das eleições. Grupos muçulmanos ergueram barricadas e se iniciou um confronto direto entre os protestantes e a segurança nacional, resultando em sete mortes. Nesse momento, concomitantemente, greves em diversas partes do país estouraram. O conflito entre governo e oposição começou a se intensificar. Ao final do processo eleitoral, a maioria do parlamento foi composta por apoiadores de Chamoun, indicando a vitória do governo. Importantes líderes da oposição, que concorriam aos cargos de parlamentares foram derrotados. Chamoun, a partir de então, foi acusado por fraudar as eleições e a oposição decidiu criar a Frente de União Nacional (FUN) contra o presidente, denunciando suas transgressões à constituição e realizando um enorme número de greve e manifestações pelo país. A FUN era composta, principalmente, pela burguesia muçulmana e por alguns cristãos que eram contrários à política aplicada por Chamoun. Esses cristãos representavam uma fração da classe que defendia a aliança do Líbano com os países árabes sem a ruptura com os países ocidentais, mas, declaravam uma posição contrária a aproximação com os EUA.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 123 2.6

A Guerra Civil de 1958

O ano de 1958 trouxe para os movimentos nacionalistas árabes a esperança do Pan-Arabismo se consolidar e se expandir para os demais países do Oriente Médio. Com a criação da República Árabe Unida (RAU) naquele ano, que unificou os territórios da Síria e do Egito, o sonho da unidade árabe efervescia também entre as massas libanesas que se opunham e se rebelavam contra o governo de Chamoun, o qual estabeleceu alianças com os EUA e com as potências europeias no momento em que ocorriam diversos movimentos de luta contra a presença dos colonizadores imperialistas no Oriente Médio. Com a formação da RAU, os partidos políticos sírios, como o BAATH e o Partido Comunista, aceitaram se dissolver para não atrapalhar o desenvolvimento do projeto pan-arabista de unificação do mundo árabe. O governo libanês de Chamoun, temendo perder o poder com a expansão da RAU e a possível incorporação do Líbano no sistema, realizou uma denúncia ao conselho de segurança da ONU acusando a RAU de interferir, por meio de elementos armados infiltrados, nos assuntos internos do país. O conselho de segurança enviou ao Líbano uma comissão de observadores, que não conseguiu comprovar as acusações realizadas por Chamoun. A crescente fragmentação da sociedade civil, que se intensificou nos anos 50 diante dos confrontos descritos entre a oposição e o governo, desencadeou na Guerra Civil de 1958. Os muçulmanos e drusos se aliaram e decretaram seu apoio ao Pan-Arabismo e à

124 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Nasser, enquanto a maior parte dos cristãos continuou apoiando as políticas de Chamoun. No entanto, entre as classes dominantes ligadas aos negócios, tanto os muçulmanos como os cristãos temiam a aproximação de Nasser devido à sua proximidade com a URSS e com outros países socialistas. A Primeira Guerra Civil do Líbano durou de maio até julho de 1958, e se caracterizou pelos conflitos entre os aliados de Chamoun e a oposição ao governo, liderada principalmente por Jumblatt. No cerne do confronto estavam as discussões acerca da identidade libanesa; os questionamentos levantados sobre a legitimidade do Pacto Nacional e do Confessionalismo como sistema político; as desigualdades sociais; e, por fim, a questão da República Árabe Unida, que causou o temor dos governantes cristãos e do Ocidente. Para sintetizar o que foi a expansão do Pan-Arabismo, Pino (1989) diz Depois da agressão franco-britânica de Suez, em 1956, Gamal Abdel Nasser lançou-se decididamente à conquista política do mundo árabe, ao qual queria associar sua ação anticolonialista. O nacionalismo nasserista percorria o Oriente Médio como uma onda avassaladora e unificadora. Em 1958 foi proclamada a união sírio-egípcia, que teve o nome de República Árabe Unida (RAU). A pedido de Nasser, todos os partidos sírios, fundamentalmente o Baas e o Partido Comunista, aceitaram dissolver-se para não atrapalhar o desenvolvimento da RAU. O grande sonho da unidade árabe, ainda que muito breve

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 125 como todos os posteriores, começava aparentemente a realizar-se. (PINO, 1989. p. 38).

A oposição chegou a ocupar, durante a guerra, 1/3 do território libanês. Novamente, a problemática que envolvia o sistema político libanês e sua divisão sectária volta a ser discutida, pois se tornou explícito que as comunidades cristãs não eram mais a maioria do país e que as comunidades muçulmanas não se sentiam representadas por um governo comandado por cristãos, os quais, durante décadas, defenderam apenas seus privilégios e seus próprios interesses. O Nasserismo revolucionário colocou a prova em 1958 o Pacto Nacional de 1943, e a própria guerra pode ser analisada como uma consequência desse Pacto, que não acompanhou e nem sofreu alterações com as mudanças sociais que o Líbano vivenciou. Por isso, com o aumento das comunidades muçulmanas, por exemplo, as mesmas passaram a se sentir injustiçadas e excluídas de qualquer participação política, e, essa exclusão era legitimada institucionalmente. Os interesses de fundo, de se manter a qualquer custo a manutenção dos maronitas no poder, geraram uma série de revoltas e reivindicações que se explicitaram tanto na guerra de 58, como na Guerra Civil de 1975. Durante a guerra, as tensões entre o governo e a Frente de União Nacional se tornaram mais intensas. Chamoun passou a abusar do autoritarismo e iniciou uma série de repressões e atos de censura principalmente contra os jornalistas que denunciavam as fraudes das

126 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s eleições realizadas no ano anterior. Até que, no dia 8 de maio de 1958, o jornalista Nacib Metni, defensor das ideias pan-arabistas e das ações políticas de Nasser, foi assassinado. As tensões com esse assassinato se intensificaram, assim como o aumento da oposição contra o governo. A FUN realizou uma denúncia acusando o governo pelo crime e convocou uma greve geral no país. Manifestações por todo o país começaram a acontecer, e as revoltas explicitaram um caráter anti-imperialista, além de denunciar, acima de tudo, o posicionamento do presidente que se mantinha vinculado aos países imperialistas. Os movimentos de esquerda – compostos em sua maioria por muçulmanos - e todos aqueles contrários ao governo de Chamoun passaram a exigir a renúncia do presidente após a morte do jornalista. A FUN recebeu completo apoio da RAU, que passou a enviar verbas para fortalecer o movimento contra Chamoun, o qual acusou a mesma de fomentar a rebelião no país. Enquanto isso, o Presidente Chamoun continuou a receber, durante a guerra, o apoio dos países conservadores do Oriente Médio, de Israel e das potências ocidentais. Os confrontos continuaram se estendendo para todas as partes do país. A oposição muçulmana, aparentemente, estava vencendo e estava mais organizada, e, por esse motivo, conseguiu alcançar a maior parte do Líbano. O ápice da guerra foi quando essas forças de oposição se organizaram e se dirigiram até o Palácio Presidencial, com o objetivo de retirar o presidente do poder. A partir disso, torna-se importante compreender como o Exército Nacional se posicionou diante o conflito.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 127 Naquele momento, quem ocupava o cargo de comandante do Exército era Fuad Chehab. No contexto da guerra de 58, Chehab, embora solicitado pelo presidente, se recusou a oprimir a oposição, optando por não intervir no confronto, pois pressupôs que, caso assumisse um posicionamento contrário à oposição naquela Guerra Civil, corria-se o risco do Exército se fragmentar em diversas linhas confessionais, já que sua composição continha membros de diversas comunidades religiosas. A postura adotada por Chehab fez com que ele ganhasse reputação e prestígio entre os muçulmanos, fato que o favoreceu na eleição seguinte e fez com que ele fosse o candidato mais indicado para suceder Chamoun. Desse modo, quando a oposição - sob a liderança de Suleiman Franjieh e Kamal Jumblatt - intensificou seus ataques contra Chamoun, e Chehab determinou que o Exército não iria intervir no confronto, o presidente decidiu fortalecer e solicitar ajuda aos grupos de milicianos cristãos que o defendiam. Pode-se concluir, de forma sintética, que a invasão do Egito em 1956, a criação da RAU em 1958 e a crescente expansão do pan-arabismo, fez com que os muçulmanos se sentissem mais seguros, mais representados e dedicassem uma lealdade maior ao plano de Nasser, em relação ao governo libanês. Quando a oposição de Chamoun estreitou, nos meses da guerra, cada vez mais seus laços com a Síria, com o Egito, e, indiretamente, com a União Soviética, o presidente libanês passou a identificar o Nasser como um comunista capaz de ameaçar a sua manutenção no poder, identificando que sua política, a qual visava a defesa da

128 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s unidade árabe, resultaria no fim da fragmentação do Oriente Médio em Estados autônomos. As pressões vindas de Nasser que atingiam diretamente Chamoun aumentaram com o decorrer da guerra. Os Estados Unidos identificou, com receio, essa aproximação do Nasser com os movimentos rebeldes do Líbano, pois o país ocupava um território de importância geopolítica e estratégica. Sua possível aproximação com a República Árabe Unida, como se pressupunha, poderia atrapalhar os projetos ocidentais no país e em toda região do Oriente Médio. Por isso, os EUA começaram a oferecer mais apoio e suporte aos maronitas que ocupavam o poder. Nesse momento, aqueles que formavam a frente de oposição ao governo, como os socialistas, os nasseristas e os nacionalistas árabes, foram identificados como traidores e, consequentemente, perseguidos. Eles acusavam Chamoun de trair o mundo árabe e agir contra os seus interesses, afirmando que a adesão do Líbano à Doutrina Eisenhower foi uma forma de legitimar qualquer intervenção que viesse ocorrer da potência ocidental estadunidense no Oriente Médio. Pode-se afirmar que a Guerra Civil de 1958, com toda sua complexidade, conseguiu colocar em xeque os privilégios políticos dos cristãos, que eram questionados pelos muçulmanos desde, principalmente, 1943. Diante de todo o clima de tensão e os consecutivos confrontos entre as milícias armadas do governo e os grupos de oposição, tornou-se evidente que Chamoun e seus aliados estavam perdendo a guerra. A oposição se encontrava mais fortalecida e mais organizada, e já estendia seu movimento por todas as regiões do país. Nesse mesmo

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 129 período, ocorreu a Revolução Iraquiana e a queda da monarquia do Iraque, que era aliada de Chamoun. Temendo que o mesmo acontecesse com seu governo e desejando se manter no poder, o Presidente do Líbano optou por evocar a Doutrina Eisenhower e solicitou a intervenção urgente dos Estados Unidos no país. Apesar da dificuldade da doutrina ser aplicada no Líbano, já que o país não sofria diretamente com o ataque de algum país aliado aos soviéticos, legitimou-se a intervenção utilizando o argumento da necessidade de se garantir a integridade e a independência dos países do Oriente Médio, com as promessas de trazer estabilidade e defender o governo legítimo, que estava sendo ameaçado por forças externas. No entanto, nos confrontos que caracterizam a Guerra Civil de 1958, entre os grupos muçulmanosdrusos e os milicianos cristãos, os apoiadores do governo perceberam que a retórica utilizada pela oposição era a mesma difundida por Nasser. Quando o governo conseguiu acesso a essa informação, acusou Nasser de comunista e influenciador dos muçulmanos do Líbano, legitimando mais uma vez a necessidade, naquele momento, de que a doutrina Eisenhower fosse evocada, para se colocar fim à Guerra Civil Libanesa e, indiretamente, à oposição do governo. A solicitação da intervenção estadunidense através da Doutrina passou a ser vista, então, como legítima, pois o Egito foi considerado um aliado dos soviéticos. Logo, as ações panarabistas que eram executadas no Líbano foram consideradas como ações subversivas de caráter comunista. Vistos como uma ameaça, as forças militares dos EUA adentraram ao território libanês com o discurso

130 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s de que iriam garantir a proteção do país contra as interferências comunistas. Como pano de fundo, pode-se observar o medo de Chamoun de que a onda revolucionária que atingia diversos países do Oriente Médio chegasse até o Líbano, fazendo com que ele perdesse seu poder sobre o país. Todas as decisões políticas adotadas pelo governo de Chamoun no período que antecedeu a guerra, e principalmente no seu decorrer, objetivavam garantir a manutenção dos grupos cristãos no poder, que temiam a mudança no sistema político e a perda de seus privilégios. A Doutrina foi acionada e, em 15 de julho de 1958, um dia após a Revolução do Iraque35, as tropas estadunidenses desembarcaram na capital do Líbano, Beirute. O objetivo de Chamoun ao evocar as tropas estadunidenses era de que os EUA intervissem e conseguissem cessar a Guerra Civil que se alastrava pelo país, e, com isso, a sua manutenção no poder estaria garantida. Em sua ação política, os Estados Unidos frisou a necessidade em defender a soberania daquele território que era ameaçado por interesses externos. Esse discurso representava uma tentativa de criar uma ideia negativa de Nasser e da RAU, caracterizando-os como subversivos a um governo que era visto como legítimo, como defendiam que era o de Chamoun. A responsabilidade, desse modo, dos confrontos e da Guerra no Líbano, foi atribuída à Nasser, que, segundo a visão que se propagava pelos apoiadores do governo, incentivou e apoiou a oposição O Iraque era o país do Oriente Médio mais aliado ao Ocidente até o momento da tomada de poder e da Revolução Iraquiana em 1958. 35

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 131 contra Chamoun. As tropas desembarcaram no Líbano com os mais variados tipos de armamentos. O objetivo era de intimidar tanto a oposição ao governo libanês, como até o próprio Nasser. A invasão foi saudada pelas comunidades cristãs, que viram aquela intervenção como a salvadora da independência do país. Já os muçulmanos e os drusos foram contrários à invasão estadunidense, pois viram nela uma forma de agressão imperialista. Chehab, por exemplo, também se posicionou de forma contrária à intervenção dos marines norte-americanos, por isso, decidiu manter sua posição de não atacar a oposição ao governo e manter a neutralidade militar. Quando as tropas adentraram no território libanês, elas estabeleceram, inicialmente, a decisão de não intervir diretamente na guerra que ocorria entre as comunidades religiosas. Porém, apenas o fato de os Estados Unidos intervirem militarmente no confronto que ocorria no Líbano chamou a atenção da União Soviética, que ficou atônita com essa penetração ocidental no Oriente Médio e decidiu recorrer ao Conselho de Segurança da ONU, que optou por não barrar a presença dos estadunidenses no local. Para os críticos de Chehab, a decisão do comandante do Exército em não intervir militarmente na Guerra Civil de 1958 possuía uma relação com os interesses implícitos do mesmo de concorrer à presidência nas eleições subsequentes. Ao manter um posicionamento neutro diante o conflito, além de garantir a unidade do Exército naquele momento, fez com que a imagem de Chehab fosse bem vista tanto pelos cristãos, como pelos muçulmanos, fato esse que lhe seria benéfico caso

132 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s realmente concorresse às eleições presidenciais em 1958. Iniciou-se, então, uma série de negociações entre as lideranças do governo e os representantes da oposição, mediadas pela presença dos EUA e do Egito, para se encontrar um novo candidato que pudesse ocupar o cargo de Presidente da República do Líbano. Os Estados Unidos, temendo que as rebeliões contra o governo de Chamoun continuassem e se intensificassem, aconselhou o presidente em exercício a abandonar seu projeto de reeleição, pois isso causaria mais revoltas. Nestas negociações realizadas, concluiu-se que a melhor opção naquele momento, devido a sua postura de neutralidade durante a guerra36, era que Fuad Chehab assumisse a presidência. Desse modo, decidiu-se que Chehab seria o único candidato ao cargo presidencial. No dia 23 de setembro de 1958, Fuad Chehab assumiu a Presidência do Líbano. No mesmo momento, negociou a retirada das tropas estadunidenses. Pode-se concluir que a intervenção dos EUA teve como objetivo controlar esses países de localização estratégica no Oriente Médio, como o Líbano, para que estes servissem como um ponto de entrada das tropas americanas na região, e, novamente, o Líbano foi visto por sua posição geográfica estratégica e passou a ser o foco das potências ocidentais. Os estadunidenses observavam Chamoun como um representante dos seus interesses no interior do Líbano e como uma resistência ao pan-arabismo e ao A política de Chehab foi denominada de neutralidade ativa, pois não impediu os movimentos de oposição ao presidente de ocorrerem, mas caso existisse uma insurreição armada, essa seria contida. 36

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 133 nacionalismo árabe. Além disso, os americanos perceberam que o sistema politico libanês, o Confessionalismo, lhes era favorável, pois garantia que sempre um cristão pró-ocidental estivesse no cargo da presidência. Para eles, era interessante a manutenção desse sistema político, pois era uma maneira de impedir a ascensão de muçulmanos ao poder, que ameaçavam seus interesses. Na divisão confessional dos cargos das instituições políticas, Chehab manteve os ministérios decisivos, como o das Finanças, da Educação, dos Assuntos Exteriores e da Chefia do Exército sob o controle dos cristãos. Além disso Depois da crise nacional daquele ano, ele criou – sob pressão muçulmana – um Conselho da Função Pública e inspetoria geral com a missão de vigiar a distribuição, sobre uma base confessional, dos cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões da administração. (PINO, 1989. p. 54).

2.7

Consequências da Guerra Civil de 1958

Com o fim do conflito em 1958, que ficou marcado não apenas pelos confrontos sectários, mas, principalmente, pela chegada das forças estadunidenses no país, observa-se que o problema central, ou seja, o cerne da origem do conflito, não foi resolvido. Com isso, a resolução da guerra pode ser entendida como uma revolução interrompida, a qual tinha como base protestos

134 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s vindos de diversas regiões do Líbano contra o governo e contra a classe hegemônica dos cristãos maronitas. Esses mesmos cristãos, que apoiavam o governo, eram aqueles que rechaçaram a presença dos palestinos no país, pois entendiam que esses representavam uma ameaça ao grupo dos maronitas que possuía, naquele momento, o monopólio do controle do Estado. Conclui-se, a partir da análise do confronto e de seus desdobramentos, que a guerra terminou com um acordo feito entre as partes, não resolvendo o verdadeiro problema de fundo enfrentado pelo Líbano, que estava ligado a um caráter estrutural, relacionado à formação da estrutura política libanesa. Desse modo, a tensão entre os grupos religiosos permaneceu e a população libanesa se fragmentou cada vez mais no decorrer dos anos. A estrutura política do país, fundamentada no Confessionalismo, continuou gerando extrema desigualdade social e econômica entre as comunidades religiosas. Os muçulmanos demonstraram uma verdadeira frustração com o resultado final da guerra, pois não conseguiram alcançar seus objetivos iniciais de reformar as instituições políticas e militares de modo que eles se favorecessem na partilha dos poderes. Por isso, continuaram contestando no decorrer dos anos o modelo político vigente que manteve aquela comunidade excluída de qualquer participação política e de qualquer possibilidade de ascensão social. No entanto, os cristãos perceberam que no decorrer dos anos, principalmente no período dos anos 60, se tornou impossível evitar que os muçulmanos não se aproximassem do arabismo, que tanto os motivava e o qual eles se identificavam.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 135 Com o final da Guerra Civil de 1958 e a ineficácia das lideranças em resolver os problemas centrais que motivaram o confronto, a discussão acerca da identidade libanesa e da disputa entre um “Libanismo” e o Arabismo, continuaram a ser pautas em qualquer discussão. Observa-se que a realidade por trás da Guerra de 58 era o renascimento da velha disputa entre aqueles que eram pró-arabismo, como os muçulmanos e os drusos, contra os pró-ocidente, como os cristãos. Como essa questão não obteve uma resolução ao final da Guerra, a disputa e o debate continuaram. Assumir que o país pertence ao mundo árabe resultaria na renúncia e na ruptura das relações diplomáticas e econômicas com os países ocidentais, fato esse repudiado pelos cristãos, que ainda encontravam nos países do ocidente sua proteção e a garantia de seus privilégios. Os cristãos insistiam em defender que o Líbano era um país mais Mediterrâneo do que árabe, enquanto os muçulmanos defendiam que aquele país, criado por e para os cristãos, possuía uma lealdade e um vínculo maior com as nações árabes. O conflito no Líbano se manteve, então, entre esses dois tipos de nacionalismo, que justifica a dificuldade em se estabelecer uma identidade à nação libanesa como um todo. Nota-se, então, que por trás desta discussão entre os grupos religiosos, existiam interesses puramente políticos e econômicos. Para os cristãos, a tentativa de desvincular a noção de que o Líbano era uma nação árabe representava os interesses dessa classe em manter as políticas pró-ocidentais ao invés de se aliar aos países árabes. Por esse motivo, o projeto do pan-arabismo de

136 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s Nasser causou tanto temor, pois caso o projeto se expandisse para o Líbano, os cristãos perderiam a aliança com os países europeus ocidentais que garantiam seus privilégios e os atribuíam benefícios. Por esse motivo, até os dias atuais, existe uma dificuldade em se encontrar qual é a identidade do povo libanês, já que o próprio Líbano representa um local que, através de uma construção física artificial realizada pela França, agregou diversos grupos religiosos que historicamente eram antagônicos. Além de disputarem elementos religiosos, disputavam também a hegemonia política e econômica de um país que possui suas instituições divididas em diversas seitas religiosas e atribui privilégios a uns em detrimento de outros. Enquanto o mundo vivia, naquele momento histórico, a polarização entre a União Soviética e os Estado Unidos, a polarização vivenciada no interior do Líbano se fundamentava na oposição entre os panarabistas e os nacionalistas locais, comprovando, mais uma vez, as incoerências e a insustentabilidade do Pacto Nacional de 1943. Diante às considerações e análises até aqui alcançadas, pode-se dizer que a Guerra Civil de 1975, vivenciada pelo país, foi uma consequência da Guerra Civil de 1958, que, por meio dos acordos de resolução do conflito elaborados, mascarou os problemas enfrentados pela sociedade libanesa e atribuiu a estes problemas estruturais medidas paliativas. Os muçulmanos continuaram não obtendo maior representatividade no governo e tal questão foi levantada e retomada nos antecedentes que resultaram na Guerra Civil em 1975. A Guerra Civil de 1958, embora não tivesse

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 137 tomado grandes proporções, foi analisada pelos EUA como um reflexo da expansão do Nasserismo, o qual foi visto como uma ameaça aos interesses do capitalismo ocidental. Para alguns estudiosos, o levante muçulmano vai além da solidariedade com Nasser, pois se evidenciaram as limitações e a fragilidade do Pacto Nacional Libanês e do sistema confessional adotado, que havia completado 15 anos. A figura de Nasser serviu apenas como um apoio e fortalecimento do movimento social que se revoltava contra o presidente e contra o sistema político libanês sectário. Essa oposição, composta majoritariamente por muçulmanos e drusos, não se sentia representada pelo Sistema Confessional, e, além disso, viam o desenvolvimento das regiões cristãs aconteceram em detrimento das regiões muçulmanas, que eram claramente negligenciadas e abandonadas pelos governos maronitas. A Guerra Civil de 1958, desse modo, representou a revolta do Líbano periférico contra o Líbano central da montanha. É importante analisar essa representação, pois ela sintetiza o contraste existente entre as regiões geográficas do país, ou seja, entre aquelas regiões habitadas por cristãos e as regiões habitadas pelas comunidades muçulmanas. A partir das considerações aqui feitas, busca-se analisar a partir de agora de que forma o Confessionalismo como sistema político influenciou o comportamento do Exército nos anos seguintes ao conflito de 58, com a saída de Chehab do cargo de general do Exército. Assim, serão traçadas as consequências do Pacto de 43 nos anos de 1960 e 1970, com vistas em analisar como o Confessionalismo se reproduziu e

138 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s influenciou as ações do Exército Nacional Libanês no período que antecede a Guerra Civil de 1975.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 139

CAPÍTULO 3 O Exército Nacional Libanês Após realizar, no capítulo anterior, uma análise acerca do sistema político libanês e as consequências e contradições que dele derivaram, tanto sociais como econômicas e políticas, busca-se analisar neste capítulo como o Confessionalismo determinou a divisão de poderes no interior do Exército e como, consequentemente, este regime político e esta divisão interna determinada influenciaram nas decisões e nas intervenções militares que foram executadas pelo Exército Nacional entre os anos 60 e 70 no país. Com o fim da Guerra Civil de 1958, vários dilemas e questões políticas continuaram sendo discutidas no Líbano, a partir, principalmente de três vertentes ideológicas: os reformistas, os revolucionários e os conservadores37. Estas vertentes políticas-ideológicas buscaram analisar a conjuntura libanesa e propuseram diferentes formas de resolver o problema político que permeava o país. Os reformistas analisavam o Pacto Nacional Libanês de 1943 a partir de uma perspectiva crítica, afirmando que foi o sistema político elaborado pelo acordo que colocou os muçulmanos, principalmente os 37

KARAM, Christian da Camino. Da revolução política ao reformismo socioeconômico: Hizballah, islamo-nacionalismo e economia de redes no Líbano do pós-guerra civil (1992-2006). 2010. 133 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica)Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

140 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s muçulmanos xiitas, em um status social e político subalterno e secundário, fazendo com que esta comunidade representasse uma classe marginalizada na sociedade libanesa. Por este motivo, esta vertente ideológica lutou por reformas nas instituições e na estrutura política do Líbano, reivindicando que o controle político fosse atribuído aos muçulmanos. Deste modo, buscavam benefícios dentro do sistema confessional vigente. Já os revolucionários libaneses, ligados a uma esquerda marxista, realizavam fortes críticas à burguesia libanesa, ao Pacto Nacional, à Israel e aos Estados Unidos. Este grupo declarou apoio a Resistência Palestina e criticou as instituições políticas libanesas que representavam os interesses privados dos cristãos, incluindo o Exército. Os revolucionários comunistas eram os únicos que defendiam o secularismo político e a abolição do Confessionalismo no Líbano. Por fim, a vertente dos conservadores, composta em sua maioria pelos cristãos que temiam o crescimento da Resistência Palestina no Líbano e dos partidos de esquerda com suas tendências arabistas. O grupo defendia os ideais liberais da livre empresa, do individualismo e do Estado mínimo, além de lutarem pela manutenção do sistema político sectário e da democracia representativa restrita, meios os quais os cristãos maronitas garantiram seu poder e sua dominação no país. Fuad Chehab iniciou seu mandato como Presidente do Líbano em 1958, com um projeto nacionalista que se aproximou do Pan-Arabismo e dos ideais propagados tanto por Nasser como pelo regime

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 141 baathista sírio. Em sua oratória, com o objetivo de acalmar as tensões sociais que permaneceram após o término da Guerra Civil de 1958, adotou um discurso que difundia a importância da unidade nacional e buscou aumentar a igualdade entre os libaneses através de reformas sociais e institucionais. Porém, apesar das reformas realizadas, o sectarismo político não foi abolido e nem verdadeiramente reformado, apenas limitou-se em estabelecer um maior equilíbrio entre as comunidades religiosas no que concerne as representações políticas no interior das instituições, promovendo uma maior justiça social e econômica. No entanto, com o fim do governo de Chehab em 1964, ocorreu o desmantelamento do Estado Libanês, pois, naquele mesmo ano, Charles Helou, advogado e jornalista, foi eleito como o Presidente que sucederia Fuad Chehab. Seu governo se caracterizou pela ascensão ainda maior das classes dominantes à política nacional. Helou participou da Conferência da Cúpula Árabe, celebrada no Cairo, que legitimou a criação da OLP, porém, embora aprovasse a criação desta organização a qual ficou responsável por representar os interesses dos grupos palestinos, o presidente libanês negou a permissão de que a mesma atuasse politicamente e militarmente a partir do Líbano, explicitando um posicionamento receoso em relação a essa presença no país. Em 22 de setembro de 1970, Helou deixou o governo e foi substituído por Suleiman Franjieh, o qual, ao assumir a presidência, buscou acabar com qualquer traço que havia resistido do chehabismo e enfraqueceu o poder executivo libanês. Com isso, todos os funcionários

142 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s ligados à administração local, aos serviços de inteligência e ao Exército foram demitidos e, em tese, o poder executivo se centralizou exclusivamente nas mãos do presidente. O governo de Franjieh se caracterizou pela intensificação das políticas sectárias e, consequentemente, pelo retorno da revolta dos muçulmanos contra aquele sistema político confessional que passou a ser questionado novamente. A partir das medidas políticas adotadas por Franjieh, o Líbano voltou a ser um país dividido em regiões desiguais habitadas por grupos religiosos determinados, onde as lideranças locais conseguiram aumentar seu potencial de defesa através do fortalecimento das milícias, formadas principalmente durante seu governo, que tiverem forte atuação e importância na Guerra Civil que estourou em 1975. 3.1

Exército Nacional Libanês

As Forças Armadas do Líbano (LAF, sigla em inglês) se formaram oficialmente dois anos após a elaboração do Pacto Nacional de 1943. Os oficiais que passaram a compor a LAF eram alistados ao antigo Les Troupes Speciales, a qual havia sido criada pelas autoridades francesas no período em que a França exerceu seu protetorado sobre o Líbano. Com a independência em 1943, os oficiais que antes compunham as “Tropas Especiais do Levante” foram transferidos para as novas forças armadas libanesas. Em relação ao Exército Nacional Libanês, desde sua formação no período do mandato francês até o final da Guerra Civil de 1975, recrutavam-se essencialmente os cristãos para

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 143 sua oficialidade e tropas, mantendo a instituição livre de qualquer penetração muçulmana que pudesse ameaçar a sua hegemonia. Com a formação do Exército Nacional em 1945, as discussões que circundavam essa instituição se basearam na forma como ocorria a repartição dos seus cargos e postos entre as comunidades religiosas oficiais do Líbano. Para os críticos do Confessionalismo e do Pacto Nacional Libanês de 1943, a maneira como se deu a repartição de poderes no interior das instituições políticas e militares do país foi uma forma de garantir que o sistema político pautado no sectarismo fosse mantido como fundamento da vida libanesa, e que, assim, a hegemonia cristã fosse capaz de prevalecer como dominante em todas as instâncias. Entre 1945 e 1975, o Exército Nacional Libanês possuía em sua composição membros das comunidades cristãs e das comunidades muçulmanas, no entanto, a quantidade de membros de cada religião que compunha a força militar era desproporcional, havendo uma maioria cristã. Esta instituição detinha uma relação de dependência com a estabilidade política confessional do país, pois dependia dela para que sua unidade e sua própria estabilidade fossem garantidas. Apesar de ser composta por membros das diferentes comunidades religiosas, manteve, em sua composição interna, a divisão proporcional que foi estabelecida pelo Pacto em 43, de 6:5 – cinco muçulmanos a cada seis cristãos -, utilizando-se como fundamento, novamente, o censo demográfico realizado em 1932 pela França, no qual os cristãos

144 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s apareceram como a maioria populacional. A principal origem social dos oficiais e dos soldados libaneses que compunham o Exército eram as periferias das cidades, dos campos e das montanhas. A instituição militar no Líbano demonstrou, principalmente entre os anos 60 e 70, que não seria capaz de superar as divisões sectárias e o Confessionalismo presente na política libanesa, pois, dentro da divisão confessional que foi determinada para a instituição, os postos mais elevados da hierarquia militar, como o posto de Comandante e de Chefe da Inteligência Militar, foram destinados para os cristãos maronitas e só poderiam ser ocupados por este grupo, obrigatoriamente, mantendo a lógica de domínio imposta pelo sistema político. Deste modo, o comandante do Exército é sempre maronita, o Chefe de Estado-Maior obrigatoriamente é um druso, e o secretário geral do Conselho de Defesa Superior, sunita. Pode-se analisar, mais uma vez, como os muçulmanos xiitas foram excluídos dos principais cargos políticosadministrativos por este sistema político, enquanto os maronitas garantiam sua posição como dominantes, tendo o controle das principais instituições do país. Assim, observa-se que o desenvolvimento do Exército espelhou e reproduziu o desenvolvimento da política libanesa. A divisão sectária no interior da força militar trouxe desafios e dificuldades à garantia da segurança nacional, pois este sistema político se apresentou como um regime que expõe o Líbano constantemente à intervenções estrangeiras – devido a fragilidade profissional de suas instituições - e à busca permanente de patrocínio estrangeiro para lideranças

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 145 políticas que representam determinadas comunidades religiosas. De acordo com alguns estudiosos que analisam os exércitos multiétnicos, este tipo de organização militar é responsável por fortalecer os papeis de lealdade entre o militar e a comunidade religiosa a qual ele pertence, sendo prejudicial para a garantia de uma unidade nacional e impossibilitando uma unidade efetiva dentro do próprio exército. A partir disso, observa-se que as relações civis-militares no Líbano não ocorrem de forma homogênea. O que se nota, em última instância, é que o Exército executa as ordens gerais do governo, o qual, no caso do Líbano, é dominado e controlado pelos cristãos maronitas, os quais difundem a imagem de que existe uma sintonia entre os interesses do governo e do Exército no que concerne às decisões políticas e militares que são adotadas em determinados momentos de tensões sociais. Em algumas ocasiões históricas de grande importância para o Líbano, como entre 1956 a 1958, 1969 a 1973, e 1975 a 1989, as Forças Armadas, e, mais especificamente, o Exército Nacional, foram utilizadas para fins políticos de acordo com os interesses dos governantes maronitas eleitos, sendo a instituição militar, nesses casos, utilizada como um instrumento para garantir a manutenção da dominação e dos interesses políticos e econômicos destes governantes, comprovando a fragilidade profissional desta instituição. Dessa maneira, observa-se que os problemas que envolviam o sistema político libanês refletiram na instituição militar e geraram um forte impacto tanto em suas ações, como na sua incapacidade em certos momentos de realizar uma ação

146 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s militar. Analisa-se, assim, como o Confessionalismo enfraqueceu o Exército e a capacidade desta instituição de realizar uma atuação militar efetiva no Líbano. Ao analisar especificamente os interesses do Exército libanês como equivalentes aos interesses do governo, principalmente do presidente, nota-se como este aparato militar representou instrumento valioso do poder executivo. De 1943 até o final da Guerra Civil de 1975, o Exército libanês foi identificado pelos muçulmanos como um Exército Cristão, pois 71% do seu corpo de oficiais era composto por membros dessa comunidade. Essa questão justifica a forma como a instituição militar se posicionou e atuou principalmente após a Guerra Civil de 1958, entre os anos 60 e 70, quando o Exército, segundo a análise aqui desenvolvida, realizou ações militares que privilegiaram os interesses dos maronitas enquanto classe dominante, causando a revolta dos muçulmanos, que não se identificavam e nem se sentiam representados por aquela figura militar. O interesse em garantir que o corpo militar fosse composto majoritariamente por cristãos tinha como pano de fundo um receio de que, caso a instituição fosse composta por uma maioria muçulmana, a mesma poderia ser utilizada contra os próprios cristãos que ocupavam os cargos de domínio do poder. Além disso, caso o Exército fosse expressivamente muçulmano, temiase que o mesmo fosse enviado para lutar a favor dos demais países árabes, os quais eram contrários à hegemonia cristã pró-ocidental do Líbano. Deste modo, de 1958 a 1970 as Forças Armadas do Líbano serviram como um braço de apoio aos presidentes maronitas que se

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 147 sucediam no poder, os quais utilizaram principalmente dos recursos de inteligência do país, conhecido no Líbano como Deuxième Bureau, para garantir o seu domínio e seu controle sobre as principais instituições libanesas. O Deuxième Bureau é o serviço de Inteligência do Exército libanês, o qual é controlado pelos cristãos e utilizado pelo Presidente do país como um instrumento para garantir seus interesses, já que ele é capaz de exercer uma influência significativa no interior desta instância de governo. Este controle exercido pelo Presidente no serviço de Inteligência é também reflexo do Pacto Nacional, pois garante que a instituição militar represente os interesses de um grupo específico e não os interesses da nação. 3.2 Fuad Chehab: o primeiro Comandante do Exército Fuad Chehab foi o primeiro comandante do Exército Libanês. Sua família, de origem sunita, se converteu ao cristianismo ainda no século XIX, permitindo que ele assumisse o cargo de comandante e, posteriormente, de presidente do Líbano, de acordo com as regras estabelecidas pelo Pacto Nacional. O comandante militar defendia que a função do Exército, além de garantir a segurança da nação libanesa e de enfrentar o inimigo externo, era também de representar um mecanismo de unidade do povo libanês. Por esse motivo, no período anterior à Guerra Civil de 1958, enquanto a LAF ainda estava sob o comando de Chehab, optou-se por manter as Forças Armadas fora das

148 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s discussões da política nacional, que envolviam as divergências entre as comunidades religiosas que vieram a se confrontar em 58, como descrevemos no capítulo anterior. Quando Chehab assumiu a presidência em 1958, o Presidente passou a contar com o Exército e com as forças de Inteligência para garantir o controle de seu governo e conseguir aplicar suas políticas, garantindo, sobretudo, o controle sobre os líderes locais e chefes políticos das comunidades religiosas para que estes não fossem capazes de desafiar a autoridade do presidente. Foi a partir deste momento que o Exército passou a exercer uma participação e uma influência maior na política libanesa. Depois de seu mandato, Chehab foi idolatrado, sendo visto até os dias atuais como um modelo para todos oficiais. Esse fenômeno, de transformar um líder político e/ou militar em um símbolo mítico, demonstra a necessidade daquela nação de criar um personagem que represente, acima de tudo, a unidade do Líbano. Chehab passou a ser considerado o pai do Estado moderno e do Exército moderno, devido às reformas que realizou no interior das instituições políticas libanesas. Criar uma figura que representasse a unidade nacional pareceu necessário, naquele momento, para garantir a legitimidade do Líbano enquanto Estado moderno. No entanto, várias críticas são feitas a este caráter mítico atribuído a Chehab, principalmente daqueles que questionam os interesses do comandante por trás da decisão de não intervir na guerra de 1958. O uso intensivo do aparato repressivo do Estado principalmente a partir do governo de Chehab, que se

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 149 condensou no uso das forças militares, revelou um temor, tanto deste presidente como daqueles que o sucederam: o de perder o controle e o domínio do governo libanês, ou seja, de se modificar a lógica imposta pelo Confessionalismo como sistema político que garantia aos maronitas a sua posição de domínio. A forte intervenção nos conflitos sociais, tanto do Exército como do Deuxième Bureau, manifestou a fragilidade das bases e das estruturas do Estado libanês, fragilidade esta que já havia sido demonstrada com a Guerra Civil de 58 e com os confrontos que se estabeleceram desde 1943. Após a guerra de 1975, houveram diversas tentativas de transformar a imagem da instituição militar para que esta simbolizasse uma instituição verdadeiramente nacional e conquistasse o apoio das comunidades muçulmanas. Para isso, utilizou-se de intensas campanhas midiáticas que se posicionaram a favor do Exército e realizou-se uma modificação em sua composição interna, onde os muçulmanos conquistaram maior representatividade a partir do acordo que foi elaborado ao final da guerra civil de 1975. Observou-se, a partir dos resultados dessa guerra, que algumas modificações e reformas institucionais foram realizadas, no entanto, foram tão sutis que a supremacia cristã tanto nos poderes políticos, como nos poderes militares, permaneceu intacta. Mesmo assim, continuou existindo no Líbano uma busca constante, realizada pelas forças militares, de conquistar o reconhecimento de sua legitimidade nacional, frente às diversas comunidades religiosas. O Exército buscava essa legitimidade e aceitação

150 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s da população como um todo, utilizando dos recursos midiáticos para difundir a imagem da instituição como a guardiã da nação e de ser a única capaz de garantir a estabilidade do país, buscando, através destas propagandas publicitárias, propagar a ideia de que ela era uma instituição supra sectária em um Líbano sectário. A partir disso, difunde-se pelo território libanês, principalmente após a Guerra Civil de 1975, a noção de que a instituição militar libanesa era diferente das demais instituições do país, que se subordinavam à lógica imposta pelo Confessionalismo e eram corrompidas pela primazia dos interesses privados em detrimento dos interesses públicos e pelos casos de corrupção. Pode-se analisar que existiu certo consenso entre os meios midiáticos e as lideranças políticas de que o Exército estava acima de qualquer crítica. Por este motivo, muitos meios de comunicação adotaram a política de não cobrir qualquer tipo de alegação que se oponha à força militar, para que não fosse possível deslegitimar a imagem que a mesma buscava construir de representante da segurança nacional e de ser a única instituição que seria capaz de trazer a unidade em um país fragmentado politica e socialmente. No entanto, a realidade do Exército se mostrou diferente do que eles procuravam propagar, pois, assim como todas as instituições subordinadas àquele sistema político, a instituição militar também refletia o sectarismo da política libanesa e a dominância dos interesses dos cristãos em detrimentos dos interesses das comunidades muçulmanas. Entre os anos 60 e 70, diversos relatos de palestinos refugiados no Líbano, os quais foram

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 151 difundidos nos campos de refugiados e entre as comunidades muçulmanas, acusaram os militares do Exército de submetê-los a sessões de tortura e maustratos, comprovando a imagem real da instituição militar que servia como um instrumento dos grupos cristãos dominantes. Embora a instituição se utilizasse intensamente de propagandas para difundir a ideia de que o Exército representava o “guardião” da unidade nacional, ao analisar de forma crítica e política suas ações, pode-se concluir que a força militar refletia mais a divisão confessional do Líbano do que representava uma unidade nacional. A tentativa de reinventar a sua própria história foi a maneira que a instituição encontrou de tentar modificar a sua imagem, no entanto, suas ações comprovam que ela também refletia o Confessionalismo e todas as desigualdades que esse sistema acarreta. 3.3 Os palestinos no Líbano Analisa-se nesta pesquisa a migração palestina em três períodos distintos: em 1947, em 1967 e em 1970. A primeira migração em massa de palestinos ocorreu em 1947 com a divisão da Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu, repartição esta que resultou em 1948 na criação do Estado de Israel. Neste primeiro momento, muitos palestinos foram expulsos de suas casas e de suas cidades, porém permaneceram com a expectativa e a promessa de um dia retornarem, questão que não aprofundaremos neste trabalho devido à complexidade que envolve o estudo da Questão Palestina. A segunda migração de palestinos ocorreu em

152 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s 1967 com a Guerra dos Seis Dias, ou guerra árabeisraelense, que simbolizou a resposta mais consistente dos países árabes à criação do Estado de Israel, embora este tenha saído como vencedor. Neste período, ocorreu um fenômeno migratório de palestinos para o Líbano, no qual Beirute se tornou não só a capital cultural do movimento palestino, como o quartel-general da Organização para a Liberação da Palestina (OLP), sendo vista a partir de então como capital inimiga para os israelenses. Quando os combatentes palestinos chegaram no Líbano entre 1967 e 1968, inicialmente, foram bem recebidos pela população sulista, composta majoritariamente por muçulmanos xiitas que representavam a classe dos subproletariados e dos camponeses mais pobres, os quais se encontravam temerosos com as possíveis ações do um governo maronita de Charles Helou, após a derrota nos países árabes do projeto panarabista de Nasser. Dessa forma, com a chegada ao território libanês da força armada palestina, representada na OLP, as comunidades muçulmanas que habitavam o sul do Líbano identificaram a oportunidade de se formar uma frente de resistência contra as medidas políticas do governo de Helou, que lhes eram prejudiciais. A presença dos refugiados palestinos no Líbano a partir de 1967, juntamente com o estabelecimento de suas organizações, políticas e militares, no país, fez com que este grupo fosse identificado pelos cristãos como uma ameaça a soberania nacional, pois a migração palestina para o sul do território tornou o Líbano suscetível aos ataques de represália realizados por Israel às forças da

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 153 OLP. Além disso, os cristãos os analisavam como uma força de caráter subversivo que poderia incentivar as massas muçulmanas a se oporem ao governo libanês. Deste modo, a chegada dos palestinos foi vista como uma ameaça aos poderes políticos, econômicos e militares que eram controlados pelos cristãos maronitas, os quais dominavam as principais instituições libanesas e que, diante essa conjuntura que se instalava, sentiram necessidade de proteger o seu governo e garantir a manutenção daquela ordem vigente. Para legitimar a oposição realizada pelo governo à presença palestina no território, as comunidades cristãs acusaram a Resistência Palestina38 de invadir de fato o Líbano e ameaçar a soberania nacional com o estabelecimento de suas forças armadas no país. A região sul do Líbano se tornou, então, o local de concentração dos grupos guerrilheiros palestinos, que se estabeleceram em importantes centros de treinamentos. O acordo feito, inicialmente, entre o governo libanês e a OLP, concedeu a permissão aos palestinos para que eles pudessem desenvolver suas atividades políticas no interior do país desde que não executassem ações de cunho militar. Porém, a tensão entre os palestinos e o governo crescia constantemente, principalmente a partir dos anos 60, pois o sul do Líbano havia se tornado uma região vulnerável aos ataques dos próprios falangistas A Resistência Palestina, segundo Pino (1989), era composta pelos cinco líderes dos movimentos palestinos: Georges Habache (Frente Popular), Nayef Hawatmeh (Frente Democrática), Salah Khalaf (Al Fatah), Zuheir Mohsen (Al Saika) e Chefic el Hut (Diretor da OLP). 38

154 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s libaneses39 e dos ataques de Israel, que tinha como objetivo destruir toda e qualquer capacidade armada da OLP, que passou a atuar a partir do território libanês40. Em 1970 e 1971, ocorreu a terceira migração massiva de palestinos após serem expulsos da Jordânia 41, os quais tiverem como destino, mais uma vez, o Líbano. Beirute passou a representar um centro de informações palestinas e lá se estabeleceram várias instituições de estudos sobre a Palestina. Em síntese, a presença palestina no sul gerou diversos desequilíbrios sociais, porque aquela região, por ter uma concentração maior de muçulmanos xiitas, já era negligenciada pelos governos maronitas, e, com a chegada massiva dos palestinos armados e combativos a partir dos anos 70, a situação social e econômica só piorou. Os cristãos que ocupavam os cargos de alto escalão na política libanesa começaram a difundir entre as comunidades maronitas que todos os males que o Líbano estava vivenciando naquele momento eram resultado da presença massiva de palestinos no interior Como o ataque realizado em 1982 aos campos de refugiados Sabra e Chatila, que ficou conhecido como um dos maiores massacres aos palestinos da história do Líbano. 40 O Exército de Israel, em represália aos ataques que eram realizados pelos grupos palestinos do Líbano, passou a perseguir os comandos palestinos até o interior do país, reprimindo a população sulista e acusando-a de proteger e ajudar a resistência palestina (PINO, 1989). 41 Entre 1970 e 1971 ocorreu na Jordânia o Setembro Negro, período que se caracterizou pelos violentos confrontos entre o Exército jordaniano e a OLP, que estava naquele momento instalada no país. Nesse episódio, estima-se que cerca de 20 mil palestinos foram mortos. 39

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 155 do país, pois, segundo essa vertente religiosa, os palestinos estavam ajudando a destruir as liberdades democráticas. Gemayel, líder do Falange, chegou a afirmar que os palestinos tinham como objetivo dissolver o Líbano no mundo árabe, sabendo que este era um ponto de grande discussão entre as comunidades religiosas do país, como já mencionado. A partir dessas ideias que passaram a ser propagadas pelos cristãos, ascendeu-se uma oposição entre os anos 60 e 70, de maioria muçulmana, a qual se aliou aos ideais pan-arabistas e às questões palestinas e passou a questionar a legitimidade da LAF e a coesão daquela instituição. Observando a oposição muçulmana que se formava, a qual possuía o apoio dos grupos palestinos armados instalados no país, as milícias cristãs passaram a se armar e foram treinadas pelos governantes e pelas lideranças maronitas que passaram a ter como objetivo eliminar qualquer oposição palestina do território libanês, pois estes estavam incentivando os movimentos contrários ao governo, ameaçando a dominação cristã. Os superiores [cristãos] recordavam ao presidente que ele havia jurado defender a Constituição, salvaguardar a soberania nacional e a segurança do território, e lhe recomendavam que não cedesse em nada às reinvindicações que naqueles dias eram feitas pela esquerda até que tivesse sido restabelecida a soberania do Estado e sua autoridade de fato sobre todo o território, o que em bom árabe libanês significava: até que não tivesse sido expulsa a Resistência palestina. (PINO, 1989. p. 28,

156 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s comentário nosso).

As diversas comunidades religiosas que coexistiam no Líbano, principalmente as muçulmanas e as cristãs, não conseguiram chegar a um acordo e um consenso entre si sobre o posicionamento a ser adotado acerca da presença palestina no país. Os muçulmanos ofereceram solidariedade aos grupos palestinos, pois o surgimento da ação armada palestina representou um apoio à esquerda que se opunha ao sistema político e exaltou as massas muçulmanas que passaram a se sentir mais fortalecidas com a presença da OLP. Enquanto isso, os cristãos, como já mencionado, desejavam expulsar e eliminar essa presença, pois esta representava justamente uma base de apoio e de força para os movimentos muçulmanos que se opunham à classe dominante dos maronitas e questionavam o Pacto Nacional de 1943. Diferente dos cristãos, os muçulmanos se identificavam com os palestinos porque eles compartilhavam também da causa pan-arabista. Tal discordância entre as comunidades religiosas acerca da presença palestina no Líbano fez com que o Estado se tornasse cada vez mais frágil e impotente diante os ataques e represálias que ocorriam entre os guerrilheiros da OLP e Israel. Diante dos debates que começaram a ocorrer entre os muçulmanos e os cristãos, mais uma vez, a estrutura do Pacto Nacional passou a ser questionada, comprovando a instabilidade deste acordo diante os confrontos ideológicos e políticos que ocorriam no país.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 157 3.4

O Acordo do Cairo de 1969

Como já descrevemos aqui, durante muitas vezes o Deuxième Bureau (serviço de Inteligência do Exército) passou por cima da Constituição e realizou abusos de poder, como prisões arbitrárias e torturas de seus prisioneiros. Além disso, juntamente com o Exército Nacional, passou a interferir na vida civil dos libaneses e, principalmente, dos palestinos que se encontravam no país. Essas forças de segurança, dominadas pelos cristãos maronitas, passaram a controlar a sociedade libanesa e foram constantemente denunciadas pelos excessos que cometiam. Em relação especificamente à vida dos palestinos, o Exército passou a exercer um controle real sobre aquelas comunidades, que eram vistas como uma ameaça à manutenção do Estado Libanês confessional. A maneira como o Estado lidava com os palestinos causou um incômodo entre os muçulmanos, principalmente dos sunitas e xiitas pobres que viviam nas periferias e que se solidarizavam com as causas palestinas. Assim, a forma como os refugiados foram tratados pelos governantes libaneses serviu como incentivo para que, a partir da década de 60, os palestinos optassem pela adesão à luta armada, pois foi a única forma encontrada de ter seus direitos respeitados dentro do país. Com a chegada massiva dos primeiros comandos da OLP ao Líbano em 1968, Kamal Jumblatt42, que representava a esquerda do país, a oposição ao governo e

42

Fundador do Partido Socialista Progressista.

158 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s que apoiava os palestinos, encontrou na OLP uma base de apoio e uma possibilidade de aliança, iniciando, naquele mesmo ano, uma série de choques contra o governo de Charles Helou. Instalados no país, o primeiro ataque que a OLP realizou à Israel a partir do território libanês foi fortemente reprimido pelo Exército, que comandava a força militar desde a chegada do general Chehab ao poder presidencial. Khalal Kauash, membro do comando palestino, foi preso pelo Exército e encarcerado, morrendo na prisão vítima de tortura, fato este que intensificou os confrontos e a rebelião interna contra o governo. Em 1968 foi quando ocorreu o primeiro confronto direto entre os guerrilheiros palestinos e o Exército Nacional Libanês, devido a insatisfação que os palestinos já demonstravam com o governo e com as atitudes violentas do Exército, as quais se intensificaram após o assassinato de Kauash. Esse conflito consolidou a imagem propagada pelos muçulmanos de que a instituição militar era, na verdade, um Exército Cristão, pois se tornou evidente que o mesmo era um instrumento das classes dominantes utilizado para impedir qualquer ameaça ao sistema político vigente. O confronto permaneceu até 1969, porém, conforme o conflito se intensificava, a OLP passou a possuir um apoio interno composto pelo PCL (Partido Comunista Libanês) e por outros partidos de esquerda, que eram formados em sua maioria por muçulmanos que representavam a frente de oposição ao governo e a oposição ao sistema político libanês. Nota-se, deste modo, que os ataques realizados pelo Exército representaram o objetivo da classe

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 159 dominante de garantir a manutenção do sistema político confessional libanês, já que os grupos palestinos que se estabeleceram no sul do país passaram a serem identificados como uma força aliada àqueles que eram contrários ao sistema vigente. A instabilidade política vivenciada pelo Líbano durante aqueles anos fez com que 1969 se caracterizasse pelos protestos e pelos confrontos que se estenderam por todas as regiões do país, especificamente os choques que ocorreram entre o Exército e a OLP. A instituição militar começou a ser fortemente criticada pelos muçulmanos, pois, segundo estes, os militares agiam conforme os interesses da classe dominante que detinha o controle do poder político e que tinha como objetivo garantir que os palestinos não fossem capazes de se fortalecer e incentivar as revoltas muçulmanas contra o sistema político libanês e contra o Pacto Nacional que não os representava, pois este permitia (mesmo com as mudanças demográficas) que um cristão maronita estivesse no controle tanto da presidência como do comando do Exército. Por esse motivo é que a pauta acerca das reformas do sistema confessional sempre esteve presente nas discussões políticas e nestes momentos de tensão. Vale dizer que este confronto, que se iniciou em 1968 e se estendeu até 1969, entre o Exército e a OLP, fez com que Charles Helou, Presidente do Líbano no período, desejasse retaliar de forma violenta qualquer ação que viesse dos palestinos. Porém, o primeiro-ministro Rashi Karami se posicionou de forma contrária, não autorizando os ataques aos campos de refugiados palestinos,

160 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s analisando que esse projeto representava um desejo dos maronitas do poder. Deste modo, o governo optou por negociar no final de 1969 com a OLP, mesmo com a resistência do presidente em aceitar a presença palestina no país. As negociações entre as forças militares e o governo libanês foram mediadas por Nasser e realizadas no Cairo, originando o que ficou conhecido como Acordo do Cairo, o qual regularizou a presença palestina no Líbano. OS ACORDOS DO CAIRO, DE 1969 Assinados em 3 de novembro de 1969, pelo general Emil Bustany, chefe do Exército libanês, e por Yasser Arafat, presidente da OLP. Este é o texto: Decidiu-se organizar a presença palestina no Líbano sob as seguintes bases: 1.) É reconhecido o direito dos palestinos que vivem atualmente no Líbano ao trabalho, residência e deslocamento. 2.) Criam-se comissões palestinas dentro dos campos de refugiados para garantir os interesses palestinos dentro deles, em colaboração com as autoridades locais, e dentro do quadro da soberania libanesa. 3.) Sobre a presença das unidades do Comando para a Luta Armada Palestina (clap) no interior dos campos, estabelece-se o seguinte: - Estas unidades, em colaboração com as unidades mencionadas, garantirão as boas relações com as autoridades locais. As unidades do CLAP serão igualmente responsáveis pelo cuidado na distribuição e determinação da quantidade de armas que existirão nesses campos, e isso no quadro da segurança do Líbano e no interesse da revolução palestina.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 161 4.) Autoriza-se aos palestinos que residem no Líbano participarem da revolução palestina, no âmbito da luta armada, e dentro do quadro dos princípios de soberania e segurança no Líbano. Decidiu-se facilitar a ação da Resistência através dos seguintes meios: 1.º) Facilitar a passagem dos fedayn e fixar os pontos de observação destes nas regiões fronteiriças. 2.º) Garantir a estes acesso livre ao Arkhoub. 3.º) O CLAP será responsável pela disciplina dos membros das organizações filiadas, assim como pela sua não-ingerência nos assuntos internos do Líbano. 4.º) Serão criadas unidades mistas entre o CLAP e o Exército libanês, encarregadas da manutenção da disciplina. 5.º) Será colocado um ponto final às campanhas informativas contrárias, de um e de outra parte. 6.º) Será efetuado um censo dos combatentes que se encontram no Líbano, por seus próprios comandos. 7.º) Os combatentes nomearão representantes no Estado-maior libanês para solucionar as dificuldades que surjam. 8.º) A distribuição das posições estratégicas adequadas nas regiões fronteiriças será estudada de acordo com o Estado-maior libanês. 9.º) As entradas e saídas dos combatentes, assim como seus deslocamentos, serão organizados. 10.º) Será suprimida a base palestina de Jeyrun. 11.º) O Exército libanês facilitará o trabalho dos postos médicos, assim como as operações de retirada e abastecimento. 12.º) Serão colocados em liberdade todos os detidos e devolvidas as suas armas.

162 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s 13.º) É evidente que as autoridades libanesas, civis e militares, seguirão assumindo atribuições e responsabilidades totais sobre o conjunto do território libanês e em qualquer circunstância. 14.º) As duas delegações reafirmam que a ação dos combatentes contribui tanto para a salvaguarda do interesse do Líbano como da revolução palestina, e de todos os países árabes. 15.º) Este acordo ultrassecreto somente será conhecido pelos Estados-maiores. Nota: apesar do ponto 15.º, o acordo foi publicado integralmente no jornal de grande tiragem, L’Orient Le Jour, poucos dias depois de assinado. FONTE: PINO, Domingo del. A tragédia no Líbano: retrato de uma Guerra Civil. São Paulo: Clube do Livro, 1989, p. 166.

O Acordo do Cairo de 1969 contou com a presença de Emile Bustany como representante do Exército Libanês e Yasser Arafat como representante da OLP. Através da mediação feita por Nasser no Cairo, assinaram-se os documentos que regulamentaram a movimentação dos comandos armados palestinos em solo libanês e que permitiram o direito de cidadania ao movimento no interior do Líbano. O primeiro-ministro Karami nominou Jumblatt como ministro do Interior, o qual ficou responsável por garantir a aplicabilidade do Acordo do Cairo no país. Pode-se analisar que o Acordo obteve como resultado a conquista dos palestinos de possuírem uma relativa liberdade no interior do país, pois a OLP passou a ser a responsável por controlar os campos de refugiados

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 163 no Líbano, os quais haviam, até aquele momento, estado sob o controle total das forças armadas, principalmente do Exército Libanês. Esse controle dos campos atribuído ao comando palestino foi considerado um tipo de extraterritorialidade, ou seja, a formação de um Estado dentro de outro Estado, não se podendo negar que a soberania do Líbano ficou comprometida, assim como aumentou a vulnerabilidade do país aos ataques de Israel. A legalização da ação palestina no interior do território libanês intensificou as tensões entre os grupos confessionais, já que cada comunidade religiosa analisava a presença dos refugiados palestinos no Líbano a partir de uma perspectiva, declarando apoio ou rejeição às ações palestinas. O sul do país se encontrava dominado por partidos de esquerda que se aliaram à OLP, aumentando ainda mais a revolta dos partidos de direita cristãos que vieram a questionar a legitimidade do Acordo do Cairo. Esses partidos cristãos foram os que realizaram as maiores críticas ao que foi acordado entre o Exército e a OLP, argumentando que certos pontos do acordo afirmavam o controle desta sobre os campos de refugiados palestinos no Líbano e que este fato ameaçava a soberania libanesa. Enquanto isso, os muçulmanos solicitavam novamente a revisão do Pacto Nacional de 1943, afirmando que o mesmo não havia sofrido nenhuma reforma ou alteração após a Guerra Civil de 1958, de modo que o sistema político confessional do Líbano se manteve intacto. A partir dessa análise, observa-se que o problema de fundo da maioria dos confrontos inter-religiosos

164 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s vivenciados pelo país desde os anos 50 e, de forma mais intensa, entre 60 e 70, não foram resolvidos, pois a hegemonia política e econômica haviam permanecido sob o controle dos cristãos maronitas, que representavam a minoria do país. O governo de Helou, por exemplo, embora se utilizasse de um discurso nacionalista, não seguiu o mesmo programa político que havia sido adotado por Chehab e serviu apenas aos interesses da classe dominante, principalmente da burguesia maronita aliada ao capitalismo internacional, fato este que complementou e legitimou as críticas feitas pelos partidos de esquerda e pelos grupos muçulmanos tanto ao Estado, como ao Exército Nacional, o qual estava sendo utilizado como um mecanismo para garantir os interesses daquelas classes, e não como representantes da segurança nacional. O Acordo foi revogado pelo parlamento libanês em 1987, durante a Guerra Civil que havia se iniciado em 1975 e durante o governo de Gemayel, que se caracterizou como o presidente que atendeu apenas os interesses de seus clãs e de seus aliados, causando a indignação e a revolta dos muçulmanos que eram simpáticos à Questão Palestina e demarcando o fim das liberdades e dos direitos dos palestinos no interior do Líbano. 3.5

Conflitos entre o Exército Nacional e os palestinos nos anos 1970

A década de 1970 se caracterizou por um enfrentamento contínuo entre os cristãos maronitas, incluindo o Presidente da República, e os muçulmanos, principalmente os sunitas, incluindo o Primeiro-Ministro

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 165 libanês. Deste modo, observa-se como os confrontos políticos e religiosos se estenderam da esfera da sociedade civil para o interior das próprias instituições, demonstrando como a instabilidade política do país nesse período foi resultado do enfraquecimento do Estado e também da crise social e de comando vivenciada naqueles anos. Os anos 60 e 70 demonstraram como as ações do comando palestino no interior do Líbano foram vistas com receio pelas comunidades cristãs devido às suas inclinações pan-arabistas. Além disso, já havia sido comprovado que os muçulmanos possuíam uma tendência em se aliar aos palestinos, fato este que preocupou as lideranças políticas maronitas, já que, naquele momento, os palestinos representavam 10% da população total do Líbano e simbolizavam uma possível frente de apoio aos muçulmanos que formavam a oposição e ameaçavam a dominação cristã. Por esse motivo, o Falange (Kataib), durante a década de 60, passou a representar cada vez mais os grupos cristãos, principalmente os maronitas, que se demonstravam insatisfeitos e incomodados com a ascensão dos grupos de guerrilha palestinos, principalmente após 1967. Mesmo com o apoio das milícias cristãs, os grupos maronitas exigiram que o governo utilizasse também das forças do Exército Nacional para conter a OLP, antes que ela fortalecesse os movimentos muçulmanos e estabelecesse uma aliança com esses grupos, possibilitando a rebelião dos mesmos contra o sistema político libanês vigente. Depois de um acúmulo de confrontos e tensões entre as comunidades religiosas por disputa pelo poder

166 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s entre os anos 50 e 60, os anos 70 explicitaram o enfraquecimento do poder maronita sobre o Líbano, que, conforme as discussões avançavam, passou a ser considerado cada vez mais ilegítimo diante a nova composição demográfica do país, a qual era composta por uma maioria de muçulmanos, xiitas e sunitas, radicalizados politicamente em torno da Questão Palestina. Charles Helou, que governou de 1964 até 1970, perdeu o apoio dos muçulmanos que Chehab havia conquistado a partir das reformas institucionais realizadas, pois favoreceu diretamente os maronitas em detrimento das comunidades muçulmanas, explicitandose o enfraquecimento gradual dos governos cristãos e o fortalecimento da oposição muçulmana. Mesmo com os questionamentos acerca da legitimidade dos governos e do Confessionalismo, os cristãos continuaram se negando a realizar outro censo demográfico e/ou a inserir qualquer reforma no sistema político que modificasse sua posição de dominação e de controle dos principais cargos políticos, administrativas e militares. Os muçulmanos libaneses, que se sentiam prejudicados com a repartição dos poderes feita pelo Pacto Nacional de 1943, ansiavam por reformas nas instituições e passaram a ter solidariedade com a Resistência Palestina, a qual lhes oferecia apoio e poder. Os muçulmanos nunca haviam aceitado a divisão política imposta, embora os cristãos argumentassem que as reinvindicações se iniciaram somente após a presença palestina no território. A discussão acerca dos problemas políticos do país a esta associado levou o Líbano a novos debates e confrontos entre as comunidades religiosas,

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 167 pois, segundo os muçulmanos, os governantes cristãos não conseguiam distinguir os problemas conjunturais, como a presença palestina a partir de 1967 e os ataques israelenses, dos problemas estruturais, como o Pacto Nacional de 43 que garantiu a formação de um Estado que beneficiava uma comunidade específica em detrimento dos outros grupos religiosos. Mesmo durante a Guerra Civil de 1975, os cristãos não reconheceram que, como pano de fundo dos confrontos inter-religiosos, estava o debate sobre o Pacto Nacional e o Confessionalismo como um sistema político, considerado ilegítimo pela maioria do país. Deste modo, os cristãos restringiram sua análise sobre a guerra e sobre a situação política e econômica do Líbano em culpabilizar a presença palestina no território, como se essa tivesse sido a causadora dos problemas libaneses. Em 1975, no diário Al Amal43, os maronitas do Falange afirmaram que sem os palestinos, as massas muçulmanas não teriam podido se rebelar. Em 1973, sob o governo de Suleiman Franjieh (que sucedeu Helou no cargo da presidência), e devido à intensificação dos ataques de retaliação vindos de Israel para o sul do Líbano e os próprios conflitos internos que se estenderam pelo país, os partidos de esquerda, concentrados no sul e aliados às forças palestinas, criaram os primeiros “comitês de autodefesa”, os quais foram vistos como uma ameaça aos partidos cristãos que temiam perder o controle político e econômico do país. No

43

Órgão oficial de comunicação da Falange.

168 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s mesmo ano, três importantes líderes da Al Fatah44 foram assassinados pelo comando israelense, tragédia essa que incitou os palestinos e originou numerosos choques desses grupos contra o Exército, que foi acusado pela OLP de ter permitido que os agentes israelenses escapassem após o assassinato. Com isso, o Acordo do Cairo de 1969 foi, mais uma vez, desrespeitado, e os conflitos entre os palestinos e as forças militares libanesas recomeçaram. Com a omissão dos militares acerca do assassinato das lideranças da Al Fatah, os choques entre o Exército Nacional e os diversos grupos de oposição ao governo, incluindo a OLP e os comandos palestinos, passaram a ocorrer em diversas partes do país. Aproveitando-se das tensões que se estenderam no sul do território naquele momento e dos conflitos diretos entre as forças militares e os grupos muçulmanos libaneses e palestinos, o Exército de Israel passou a realizar ataques mais agressivos às cidades do sul libanês com o objetivo de eliminar os focos de resistência palestina. A população xiita, que habitava aquela região, sofreu fortemente com os confrontos internos e com os ataques externos que o país estava recebendo. Nesse momento, a Síria optou por fechar suas fronteiras com o Líbano e acusou o presidente Franjieh de participar do complô externo destinado a liquidar a resistência palestina. A solidariedade dos muçulmanos com a Resistência Palestina se intensificou nesse período. A força armada palestina continuou sendo identificada pelos Organização política e militar fundada em 1959 por Yasser Arafat, que se caracteriza por ser o maior grupo de guerrilha que compõe a OLP. 44

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 169 cristãos como a fonte da exaltação das massas muçulmanas que se rebelaram contra o governo, logo, segundo as comunidades cristãs, essas forças palestinas deveriam ser expulsas do país para que não fossem capazes de ameaçar ordem vigente. A esquerda libanesa, aliada à OLP, passou a realizar diversas críticas ao Exército Libanês nesses anos que antecederam a Guerra Civil de 1975, reivindicando mais uma vez a aplicação do Acordo do Cairo, o qual estava sendo desrespeitado, e acusando o governo libanês, assim como as forças militares, de desrespeitarem os direitos conquistados pelos palestinos. Na tentativa de realizar uma nova negociação entre o Exército e os guerrilheiros palestinos, o primeiro-ministro libanês Amin el Hafes decidiu mediar um possível acordo entre as duas instâncias, porém, antes do mesmo se realizar, o Exército cercou os dois principais campos de refugiados palestinos que se localizavam no sul de Beirute e iniciou choques violentos contra esses combatentes, choques esses que permaneceram durante várias semanas. Em relação às ações executadas pelo Exército, analisa-se nesta pesquisa que o mesmo estava empenhado em eliminar, a qualquer custo, as forças palestinas do país, contrariando o interesse da maioria dos muçulmanos e representando explicitamente os interesses das classes cristãs dominantes, que se sentiam ameaçadas com o poder que OLP representava e a forma como os partidos muçulmanos se vincularam a ela. A partir desta consideração, é possível analisar a atuação do Exército e o direcionamento de seus ataques aos campos de refugiados palestinos como vinculados aos interesses

170 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s dos governantes maronitas, os quais tinham como objetivo eliminar qualquer força ali presente que pudesse se opor ou fortalecer os movimentos de oposição ao governo e ao sistema político sectário do Líbano. 3.6

Fragmentação do Exército na Guerra Civil de 1975

A partir de 1975, com a Guerra Civil libanesa, e durante toda a década de 80, a LAF entrou em colapso, abrindo um vácuo na segurança nacional do Líbano e permitindo que as forças armadas da Síria penetrassem no país e desenvolvessem a função de segurança nacional e de políticas externas no Líbano, ameaçando a soberania nacional em um Estado já fragilizado. Em 1976, um ano após o início da guerra, o Exército Libanês já se encontrava fragmentado em linhas sectárias, pois a tentativa de se estabelecer a ordem dentro da instituição, em um momento de conflito civil, fracassou. Deste modo, ao invés de unificar as forças internas, centenas de oficiais saíram da força militar e se aliaram as suas respectivas linhas sectárias no conflito. No período da guerra, a LAF se demonstrou fragmentada e fraturada, ou seja, a instituição estava derrotada politicamente, e, segundo a análise aqui realizada, esse fracasso das forças armadas foi um reflexo das instabilidades provocadas pelo Confessionalismo enquanto sistema político. Por esse motivo, não existiam condições de se estabelecer qualquer ordem nacional em meio a um confronto civil, o qual a própria LAF não conseguiu garantir sua unidade. Esse enfraquecimento

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 171 das forças armadas resultou no crescimento, no fortalecimento da OLP e na ascensão de milícias cristãs maronitas, principalmente da Falange, que passou a confrontar com os milicianos palestinos. Com o final da Guerra Civil em 1989, o Exército entrou em um processo de reconstrução, tanto de suas forças, como da sua própria imagem diante a sociedade libanesa, na tentativa de modificar a ideia que havia sido consolidada entre os anos 60 e 70, de que o Exército Libanês era um Exército Cristão devido às suas ações nos momentos de tensões entre os grupos religiosos e políticos. No final do século XX e no decorrer do século XXI, as Forças Armadas Libanesas tentaram reconquistar a confiança do povo libanês como um todo. No entanto, permaneceu a dificuldade da instituição em lidar com a divisão confessional no seu interior e com a estrutura hierárquica que a mesma adotava, a qual garantia os postos de controle aos cristãos maronitas. Em sua reconstrução, o Exército tentou se tornar mais representativo através do aumento do número de oficiais muçulmanos, no entanto, o cargo de comandante permaneceu reservado a um maronita. Torná-lo mais representativo, diante da conjuntura do sistema político libanês que se mantém inalterado até os dias atuais, significaria o reconhecimento, por parte da instituição militar, de seu verdadeiro papel diante da sociedade libanesa, buscando ser uma instância verdadeiramente nacional e vinculada aos interesses da nação como um todo, ao invés de representar e defender os interesses de um grupo específico, que são os maronitas. Porém, torna-se evidente

172 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s que é impossível evitar as realidades do sectarismo no Líbano, já que em momentos de decisão política e de se definir posicionamentos, em um sistema político excludente e desigual, cada um tende a priorizar sua linha religiosa, demonstrando a fragilidade de se adotar um regime político pautado no Confessionalismo e como tal forma de governo é capaz de influenciar as demais instituições do país, reforçando a desigualdade entre as comunidades religiosas e, consequentemente, entre as classes sociais libanesas. 3.7 Os palestinos e o Exército Nacional Libanês na atualidade Atualmente, existem no Líbano doze campos de refugiados palestinos e 156 aglomerações palestinas espalhadas pelo país, as quais se concentram, principalmente, na região sul, composta por uma maioria libanesa de muçulmanos xiitas. Alguns desses campos, devido à sua extensão e densidade demográfica, são considerados bairros no interior das cidades.

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 173 FIGURA 6: Campos de refugiados palestinos no Líbano

FONTE: UNRWA A Agência da ONU de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) estima que existam, nos dias atuais, 5,34 milhões de refugiados palestinos pelo mundo, concentrando-se, apenas no Líbano, 463 mil refugiados, dos quais 100 mil moram em Ein el Hilweh, o maior campo de refugiados do país. Segundo os dados da Agência, 70,8% dos palestinos que residem atualmente do território libanês estão abaixo da linha da pobreza,

174 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s vivendo com US$ 208/mês, sendo que 23,2% estão desempregados e apenas 14% possuem emprego no setor formal da economia. A trágica realidade dos campos de refugiados palestinos, já descrita nesse trabalho, permanece até a atualidade, tornando-se possível observar, cotidianamente, situações de extrema pobreza, superlotação dos campos e das aglomerações, crises de desemprego e falta de condições estruturais e infraestruturais. Essa situação de miserabilidade dos palestinos no Líbano se soma à proibição dos mesmos de exercerem até vinte profissões no país, como Medicina, Direito e Engenharia, fato este que contribui para o agravamento das taxas de desemprego naquelas comunidades. O maior campo de refugiados palestinos do Líbano, o Ein el Hilweh, fica localizado na cidade de Saida, ao sul do país, e possui forte dependência financeira dos Estados Unidos e das agências da ONU, principalmente da UNRWA. Desde 2018 as condições estruturais e os recursos básicos do campo, como saúde e educação, têm sofrido um processo de precarização e sucateamento, devido ao corte anunciado por Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos, de 80% da verba que era destinada especificamente à UNRWA, agência responsável por ajudar financeiramente mais da metade da população palestina que habita Ein Hilweh e por oferecer empregos e serviços àquela comunidade. Essa medida pode ser analisada como uma forma do Governo estadunidense de punir os grupos palestinos que se recusaram, até agora, a negociar qualquer acordo com o Governo de Israel.

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Em relação ao posicionamento do Governo do Líbano acerca da presença palestina no território, em 2003, o ex Primeiro-Ministro libanês sunita Rafic Rariri, em uma visita oficial ao Brasil, afirmou que se mantinha contrário à integração dos refugiados ao país, argumentando que essa medida criaria muitos problemas políticos, sociais e econômicos. No entanto, Rariri complementou sua fala afirmando que gostaria de ver os palestinos retornarem à sua casa, Palestina, assegurando o apoio do Líbano à reivindicação dos grupos palestinos que lutam pela possibilidade de retorno às suas terras ocupadas em 1948 (fazendo referência à criação do Estado de Israel e a ocupação do território palestino). A classe dominante libanesa identificou, desde a década de 50, a presença palestina como uma ameaça a sua dominação política e econômica, pois o apoio oferecido por aqueles grupos às massas muçulmanas fortaleceu-as e incentivou as revoltas contra as injustiças praticadas pelo sistema político confessional e pelo governo libanês, como demonstrado em capítulos anteriores. Ao analisar o posicionamento do PrimeiroMinistro libanês, Rariri, em tempos recentes, no que se refere à presença dos palestinos no país, nota-se que ainda existe um sentimento antipalestino que rejeita a naturalização dos mesmos no Líbano. Porém, diferente dos anos 60 e 70, observa-se que essa rejeição à presença palestina não é mais uma característica exclusiva das comunidades cristãs, que detinham e ainda detém os principais cargos políticos e militares do Líbano. Com a Guerra Civil Libanesa que se alastrou de 1975 a 1990,

176 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s acentuou-se os debates e as divergências em relação ao posicionamento que deveria ser adotado acerca da presença palestina no país, no qual algumas parcelas das comunidades muçulmanas e drusas passaram a se posicionar, também, contrárias à presença dos mesmos no território libanês. Com isso, a resistência antipalestina que antes era protagonizada pelos grupos cristãos, ganhou o apoio de parcelas das comunidades muçulmanas e drusas, intensificando-se o movimento contrário à permanência dos palestinos no Líbano. Esse debate retornou e se intensificou com o início da guerra civil na Síria, em 2011, devido o consequente aumento da migração para o Líbano de palestinos que residiam na Síria, elevando-se a porcentagem de refugiados no país e superlotando, ainda mais, os campos e as aglomerações palestinas. No entanto, diferente das estimativas realizadas até então, as quais apontavam uma média de 500 mil refugiados palestinos no Líbano, o primeiro censo oficial dessa população elaborado pelas autoridades libanesas revelou que, em 2017, existia uma média de 174 mil palestinos no território libanês, número bem inferior ao qual se pressupunha até então. Diferente dos confrontos que foram vivenciados pelos palestinos durante a segunda metade do século XX, os quais se travaram embates com o Exército Nacional Libanês e, posteriormente, na guerra civil, com as milícias cristãs, no século XXI os campos de refugiados do país vivem novos enfrentamentos com novas figuras, pois, desta vez, o conflito é interno e entre facções que coexistem naquele espaço. Apenas no campo de Ein el

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 177 Hilweh, por exemplo, constata-se que existam em torno de vinte facções diferentes em conflito. Analisa-se, com isso, que os campos de refugiados palestinos no Líbano se tornaram redutos para muitos militantes considerados do extremismo islâmico, alguns, inclusive, com inspiração na Al Qaeda e no Estado Islâmico. Surgiram, a partir de então, grupos palestinos responsáveis por realizar uma frente de oposição às facções radicais, que se formaram no interior desses campos de refugiados, e às facções sírias, que penetraram no Líbano e são consideradas, pela grande mídia, como grupos extremistas ligados ou influenciados por grandes organizações denominadas terroristas. O Hamas45 e o Fatah46, por exemplo, lutam no interior dos campos contra os extremistas do Estado Islâmico, que adentraram ao país a partir da guerra civil síria. Deste modo, os campos de refugiados no Líbano se tornaram locais de trânsito dos considerados jihadistas47 O Hamas, grupo palestino de ideologia sunita, surgiu em 1987 a partir da Primeira Intifada, que consistiu na manifestação dos palestinos contra a ocupação de suas terras por Israel. É considerado hoje como um dos principais grupos islâmicos que lutam pela defesa da Palestina. 46 O Fatah surgiu em 1959 com o objetivo de resistir à ocupação israelense e defender os interesses dos palestinos. O grupo ficou conhecido devido a sua intensa atuação pela causa palestina e devido à figura de Yasser Arafat, líder político que simbolizou a luta pela libertação da Palestina no século XX. 47 Denomina-se jihadistas aqueles indivíduos que são adeptos da ideologia do jihadismo, que consiste em um movimento sunita que defende o uso da violência para difusão do islã e para garantia da “moral e da fé”. Essa ideologia está vinculada às ações de grupos islâmicos extremistas, sendo importante ressaltar que a maioria dos muçulmanos não compartilha desses ideais de defesa da violência e se posiciona contrária à mesma. 45

178 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s sírios, os quais estão ligados aos ideais propagados, principalmente, pela Al Qaeda e pelo Estado Islâmico. Nota-se que a violência praticada dentro dos campos e os confrontos de que dela resultam possuem um caráter político e religioso. A questão que se levanta, diante essa conjuntura descrita dos campos de palestinos no Líbano, é: por que os grupos extremistas que penetraram no país, a partir da guerra civil da Síria, se infiltraram nos campos de refugiados palestinos, os quais já se encontravam superlotados e em condição de extrema miserabilidade? Observa-se, então, que o Exército Nacional Libanês permanece não adentrando naqueles campos, comprovando que, desde os anos 70, ainda existe pouca influência das autoridades libanesas no interior destes espaços. Por este motivo, os mesmos se tornaram “terrenos férteis” para radicalismos e para grupos extremistas poderem atuar sem a repressão das autoridades e, principalmente, das forças militares do país. Acerca da relação entre os grupos palestinos e o Exército Nacional Libanês na atualidade, pode-se observar que, mesmo que a força militar libanesa continue não intervindo nos espaços considerados dos palestinos, a mesma é responsável por controlar toda e qualquer movimentação de entrada e saída daqueles locais. Embora o Acordo do Cairo, estabelecido em 1969, tenha sido revogado nos anos 80 pelo Parlamento libanês e pelo Presidente Bashir Gemayel - como já demonstrado no presente capítulo - na prática o tratado ainda vigora e a autonomia dos campos palestinos no Líbano foi mantida,

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 179 respeitando a extraterritorialidade acordada nos anos 60 entre o Exército e as lideranças palestinas. Deste modo, no campo prático, o Exército Libanês continua não adentrando nos campos, tornando-se responsável apenas por cercar aqueles espaços com o objetivo de impedir que os confrontos internos que ali se estabeleceram, entre as diversas facções rivais que coexistem naquele espaço, se estendam para fora daquelas áreas determinadas e atinjam as cidades libanesas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Como mencionado na introdução da presente pesquisa, buscou-se desenvolver neste trabalho uma análise acerca da relação existente entre o Confessionalismo e o Exército Nacional Libanês. Observase, a partir do estudo dos confrontos entre as forças militares e os grupos de guerrilheiros palestinos durante os anos 60 e 70, que a instituição militar foi utilizada pelos governantes maronitas como um aparelho para garantir a manutenção do seu status quo e dos seus privilégios, negligenciando as reivindicações e contestações realizadas pelos grupos de oposição ao governo, compostos majoritariamente por muçulmanos, que identificavam como problema central do Líbano a repartição de poderes políticos e institucionais, realizada através do que foi estabelecido e imposto pelo Pacto Nacional Libanês de 1943. A partir desta conclusão, tornou-se possível notar como a formação política do Líbano foi fortemente influenciada pelo período de colonização francesa, em que a França privilegiou, desde o início, os grupos cristãos maronitas, favorecendo a ascensão econômica e política dessa comunidade com o intuito de garantir seus próprios interesses no local, que servia de porta de entrada para o Oriente Médio, região vista como estratégica para os países ocidentais. O processo de independência do Líbano em 1943, associado à elaboração do Pacto Nacional Libanês e ao estabelecimento do Confessionalismo como sistema político, agravou as desigualdades sociais, políticas e

182 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s econômicas do país, pois legitimou uma forma de governo que privilegiava um grupo religioso específico em detrimento das demais comunidades religiosas que coexistiam no país. Devido ao Confessionalismo, os cristãos maronitas puderam ocupar os principais cargos políticos, administrativos e militares do país, garantindo a dominação de seus interesses nas instituições libanesas e as usando a seu favor, para que a ordem social e política que foi imposta se mantivesse, independente das mudanças demográficas e sociais que o Líbano vivenciasse. Esse foi o caso do Exército, objeto de estudo aqui analisado, o qual foi utilizado pelas classes dominantes como um instrumento para garantir a repressão e a eliminação de qualquer força que pudesse ameaçar o status quo maronita. Quando os cristãos maronitas deixaram de ser a maioria do país e os muçulmanos passaram a representar o maior grupo religioso, o Pacto Nacional começou a demonstrar suas fragilidades, resultando em diversos confrontos civis, atingindo seu ápice na Guerra Civil de 1958 e na Guerra Civil de 1975. A partir da análise desses confrontos internos da sociedade libanesa, se tornou possível observar que, embora eles envolvessem, principalmente, duas comunidades religiosas distintas, o cerne do conflito não era por questões religiosas ou por disputas de valores. Eles representam uma disputa por poder político e econômico, o qual está associado, a partir do Confessionalismo, à religião a qual cada indivíduo pertence, ou seja, a comunidade religiosa que o indivíduo libanês pertence define as funções políticas e econômicas que ele pode exercer na sociedade, como uma espécie de

Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 183 determinismo. Com isso, analisa-se que os conflitos interreligiosos que ocorreram no país no século XX estavam além de um caráter religioso, pois representaram uma luta de classe e uma disputa por poder político que envolviam correlações de forças e demonstravam as fragilidades e limitações do Confessionalismo no país. Por fim, acerca do Exército Nacional Libanês, observa-se que o mesmo não representava uma instituição propriamente nacional, pois os muçulmanos não se sentiam representados pelas ações desta, mas representava os interesses de uma classe específica que utilizou da força militar para garantir seu poder no país. No entanto, existe um paradoxo no interior do Exército que não será superado em um sistema político baseado no sectarismo, pois os soldados que compõem essa força militar possuem um sentimento de pertencer a uma instituição nacional ao mesmo tempo em que, em caso de confrontos internos, eles tendem a priorizar e se vincular às suas comunidades religiosas e aos interesses dessas Por esse motivo, durante os anos 60 e 70, recorte histórico selecionado para ser analisado nessa pesquisa, a comunidade muçulmana – xiita e sunita – considerou o Exército Nacional como um Exército Cristão (PINO, 1989), refutando todo o ideal propagado pelo mesmo de que eles eram os únicos representantes da unidade nacional. Os muçulmanos explicitaram durante esse momento seu descontentamento com as ações realizadas pelas forças militares e afirmaram que não se sentiam representados por aquela instituição, que reprimiu os palestinos e negligenciou os interesses e as demandas das comunidades que não eram cristãs.

184 | E x é r c i t o N a c i o n a l L i b a n ê s A elaboração do Acordo do Cairo, em 1969, que teve como intuito regulamentar a presença palestina no Líbano e resolver os confrontos desse grupo com o Exército, gerou problemas irreparáveis para o Líbano, pois o mesmo além de aumentar as tensões confessionais no interior do país, foi desrespeitado diversas vezes, principalmente durante os anos 70, por ambas as partes (COSTA, 2006). Nota-se, deste modo, como o estudo acerca da política libanesa e das instituições que a compõem são de extrema complexidade, devido à organização social e política que foi imposta e que se consolidou no país, resultando em uma disputa de poder entre as principais comunidades religiosas coexistentes, os muçulmanos e os cristãos, disputa essa que perdura até os dias atuais, em que o Confessionalismo ainda é o sistema político vigente no Líbano.

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Karime Ahmad Borraschi Cheaito | 189 SOBRE A AUTORA Karime Ahmad Borraschi Cheaito, nascida em 1997 na cidade de Americana, interior de São Paulo, se mudou para Marília no ano de 2015 para cursar Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista. Conquistou o título de bacharela em 2019, com foco na área da Ciência Política, e recebeu no mesmo ano o Prêmio de Mérito Acadêmico em Ciências Sociais, devido seu excelente desempenho no curso. Descendente direta de libaneses, compõe a primeira geração de sua família a nascer no Brasil, por esse motivo, sempre esteve vinculada à cultura e aos valores árabes. Ao adentrar a Universidade, estipulou, como objetivo pessoal, que realizaria a difusão dos conhecimentos sobre os povos árabes, na busca de romper com falsos pressupostos e ideais eurocêntricos que ocultam toda complexidade e particularidade dos países que formam, principalmente, o Oriente Médio, e estabelecem uma relação de poder que envolve a noção da superioridade Ocidental diante o Oriente. A pesquisa sobre o Líbano, além de resgatar a história da própria autora, buscou problematizar com paradigmas defendidos até então, com vistas em analisar, de forma aprofundada, a política libanesa e a fragmentada sociedade a qual ela governa. Com 21 anos, milita pela causa Palestina e pela liberdade dos povos árabes, contra o imperialismo ocidental.

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Na imagem, se encontram o primeiro Presidente do Líbano, Bechara El Khoury, e o primeiro comandante do Exército, Fouad Chehab, na cerimônia de entrega da bandeira oficial do Líbano em 1945. (Fonte: Acervo do Exército Nacional Libanês)

Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em agroecologia e agrofloresta, integrado ao Ensino Médio. Parceria UNESP – Centro Paula Souza – PRONERA. ESCOLA DE EDUCAÇÃO POPULAR ROSA LUXEMBURGO (MST – Iaras – SP)