Eu Via Satanás Cair do Céu Como Um Raio
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RENÉGIRARD

«Obrigado, meu Pai, por revelares aos pequeninos o que escondeste aos sábios e aos inteligentes.» Depois, os sábios e os inteligentes vingaram-se: à força de pisarem os Evangelhos, fizeram deles uma pilha de excertos e bocados demasiado heteróclita para significar fosse o que fosse ... Mas não será sua a última palavra! René Girard pensa, tal como Simone Weil , que os Evangelhos são uma teoria do homem antes de ser uma teoria de Deus. Um mapa das violências, onde o orgulho e a inveja encerram a humanidade. Descobrir esta teoria do homem e aceitá-la é dar vida aos grandes temas evangélicos relativos ao mal, esquecidos e abandonados pelos crentes-de Satanás ao Apocalipse. É, de igual modo, ressuscitar a ideia da Bíblia como sendo toda ela profética de Cristo. Assim, os Evangelhos, longe de serem «Um mito semelhante a todos os outros» , tal como se repete a bel-prazer desde há dois séculos, seriam a chave de toda a mitologia do passado, e do futuro, da história inaudita que nos espera. Perante a ruína de todos os pensamentos modernos, serão as Santas Escrituras as únicas a ficarem de pé?

EU VIA SATANÁS CAIR DO c~u COMO UM RAIO

RENÉ GIRARD nasceu em Avignon no Natal de 1923, é doutorado em Filosofia e ensinou durante muito tempo na Universidade de Stanford, onde ainda reside. Os seus livros são estudados e traduzidos no mundo inteiro. É considerado pela maioria dos filósofos contemporâneos como "º Hegel do Cristianismo».

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~ CRENÇA ERAZÃO

00 CRENÇA ERAZAO

1. CRENÇA E RAZÃO Guy lAw rtlies 2. AS SEREIAS DO IRRACIONAL Dominique Terré-Fomaccinri 3. A SlNCRON1ClDADE, A ALMA E A CIÊNCIA H. Reeves / M. Cnzenave / P. Solie / K. Pribram / H.-F. Etter / M.-L. Von Franz 4. COSMOS E ANTHROPOS Erro/ E. Harris 5. O COMBATE DA RAZÃO Manuel de Diég11ez 6. TR~ MENSAGEIROS PARA UM SÓ DEUS Roger Ama/dez 7.,P,ÓS-MODERN1SMO, RAZÃO E RELIGIÃO Ernest Gellner 8. A PRESENÇA DO PASSADO Rupert Slie/drake 9. A CIÊNCIA E A ALMA DO MUNDO Micliel Cázenave 10. AS RAÍZES DA RELIGIÃO Henri Hatzfeld 11 . PÓS-MODERN1SMO E ISLÃO Akbar S. Alimed 12. O ISLÃO POLÍTICO E CRENÇA Mnxime Rodinso11 13. AS FESTAS DE DEUS Guy Deleury 14. CREDO Hans Kiing 15. A FÉ E A RAZÃO Nay/a Faro11ki 16. NO QUE EU ACREDITO /acques Gaillot 17. O PERDÃO TRANSFIGURADO /eari IA!fitte 18. A ENC!CUCA ESCONDIDA DE PIO Xl Georges Passelecq / Bernard S11c/1ecky 19. COSMOS E THEOS Erro/ E. Harris 20. COMO UM RELÃMPAGO RASGANl:x) A NOITE Dalai-lAma 21. PARA ALÉM DOS DOGMAS Dalai-lAma 22. JESUS E BUDA Marcus Borg / Jack Kornfield 23. QUE ISLAMlSMO AÍ AO LADO? François Burgot 24. DEUS E O B/G BANG Daniel C. Matt 25. JESUS E BUDA Odori Vallet

26. PARA ALÉM DO BJG BANG Willem B. Drees 27. HUMANISMO, FRANCO-MAÇONARIA E ESPIRJTUALIDADE Claude Saliceti 28. DARWIN, TEILHARD DE CHARDIN Jacques Arnould 29. O FEMININO DO SER A1111ick de Souze11elle 30. A TEOLOGIA DEPOIS DE DARWIN Jacques Amou/d 31. A GRANDE DEUSA Jean Markale 32. UM CRISTIANISMO DE FlITURO Paul Va/adier 33. O EVANGELHO DE UM UVRE-PENSADOR Gabriel Ri11glet 34. RACIONALIDADE E RELIGIÃO RogerTrigg 35. PACIFICAR O ESPíRITO Dnlni-l.Amn 36. EM BUSCA DA DEUSA-MÃE Lym1 E. Roller 37. CONCEITOS DE DEUS Keit/1 Ward 38. E O HOMEM CRIOU A BfBUA André Paul 39. EU VIA SATANÁS CAIR DO CÉU COMO UM RAIO René Girard

EU VIA SATANÁS CAIR DO CÉU COMO UM RAIO (Lucas 10,18) *

• Todas as traduções dos textos bíblicos presentes nesta obra tiveram como referência a Bíblia Sagrada, nova edição papal, traduzida das línguas originais com uso crítico de todas as fon tes an tigas pelos Missionários Capuchinhos, Lisboa. (N . T.)

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RENÉGIRARD

EU VIA SATANÁS CAIR DO CÉU .COMO UM RAIO

Biblioteca Padre Vaz

Título original: Je vois Satan tomber comme l'éclair Autor: René Girard © Éditions Grasset & Fasquelle, 1999 Direitos reservados para a língua portuguesa INSTITUTO PIAGET Av. João Paulo II, lote 544, 2. 0 -1900-726 LISBOA • Te!. 21 8316500 E-mail: [email protected] Colecção: Crença e Razão, sob a direcção de António Oliveira Cruz Tradução: Vasco Farinha Capa: Dorindo Carvalho Paginação: Isabel Balsa Im pressão e acabamento: Rama - Artes Gráficas, Lda. Depósito legal: 188 691 / 2002 ISBN: 972-771-622-9 Nenhuma parte desta publicação pode ser rep rod uzida ou transmitida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográ fico, incluindo fo tocópia, xerocó pi a o u g ra vaçã o, se m auto ri za ção pré vi a e esc rita d o edito r.

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20170681 Eu via satanás cair do céu como um rai o

INSTITUTO

PIAGET

1.

Aos nwus 11dos Olivin t' Mnttlit'I~ ]t'ssit', Dn 11 iellt', Dnvid e Pt>ta Gabriel/e, Vi rgin in e Rel1l!e FAJE 20170681

INTRODUÇÃO

Lenta mas irresistivelmente no planeta inteiro, esmaece o domínio do religioso. Entre as espécies vivas, cuja sobrevivência o nosso mundo ameaça, é preciso contar as religiões. As mais pequenas estão mortas desde há muito tempo, as maiores passam por um momento menos bom do que aquilo que se diz, mesmo o indomável islão, mesmo o inumerável hinduísmo. Nalgumas regiões, a crise é de tal forma lenta que pode ainda negar-se a sun existência sem demasiada inverosimilhança, mas por pouco tempo. A crise acontece por todo o lado e por todo o lado se acelera, embora com ritmos diferentes. Começou nos países há mais tempo cristianizados e é ai que está mais avançada. Os nossos sábios e os nossos ernditos esperam, desde há séculos, o desaparecimento do cristianismo e, pela primeira vez, ousam afirmar que chegou a hora. Entrámos, afirmam com solenidade, ainda que de um m.odo pouco insípido, na fase pós-cristã da história humana. Certamente, muitos observadores faz em uma interpretação dife ren te da situação actua l. Todos os seis meses, predizem um «regresso do religioso». Agitam o espectro dos fundam.enta lismos. Mas es tes movimentos mobiliza1n apenas ínfimas núnorias . São reacções desesperadas à, em toda a parte, crescente indiferença relig10sa. 11

A crise do religioso é, realm en te, um dado f undamen tal do nosso tempo. Pnra se lhe encontrar o começo é preciso remontar à wúficnçiio primeira do planeta, às Grandes Descober tas, tal vez mais atrás aindn , n tudo o que impele n inteligência humana para as comparações. , O co111pnrativis1110 selvagem age im piedosame nte por toda a parte e enfrenta todns ns religiões, mas ns mais vulneráveis são, com todn a evidência, as 111nis intransigen tes e em particular a que faz assentar n snlvnçiio de todn a Humanidade 110 suplício de um jovem judeu desconhecido há dois mil anos em ]ern salém. Para o cristianismo, jes us Cristo é o único redentor: «niio há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar» (Actos 4, 12). A feira moderna das religiões submete a con vicção cristã a umn árdua proun. Durante quatro ou cinco sérnlos, viajantes e etn ólogos lan çara m grande quantidade, a um plÍblico cnda vez mais curioso, cadn vez mnis céptico, descrições de mitos arcaicos mais desconcertantes pela sun familiaridade do que pelo se u exotismo. Já no Império Roman o, alguns defen sores do paganismo viam na Pni:rão e nn Ressurreiçiio de Jesus Cristo um muthos análogo ao de Osíris, Á tis, Adónis, Ormuz, Dioniso e outros heróis e heroínas dos mitos ditos de morte e ressurreição. A condenaçiio, muitns vezes colectivn, de uma vítima vê-se em todo o lado, e em todo o lado res ulta n11rnn renpnriçiio triunfal dessn mesma vítima ressuscitndn e divinizada. Em todos os rnltos arcaicos, os ritos comemoram e reprodu zem o mito f undador no imolarem vítimas h11mn11ns ou animais substituídos à vítima original, da qual os mitos nnrrnm n morte e o regresso triunfal. Em 1'egra gera l, os sacrifícios ncnbnm numa refeição tomada em. conwm. Animal ou humana, é sempre a vítima que faz as despesas do banquete. O canibalismo ritual não é «umn invenção do im peria lismo ocidental », é um dado f undamental do religioso arcaico. Sem aprovar a violência dos conq11istadores, compreende-se sem difiwldade a impressiio que lhes fnzimn os sacrifícios astecas. Viam nisso uma paródia diabólica do cristianismo. 12

Os comparativistas anticristãos não perde111 nunca 11ma oportunidade de comparar a l.'ucaristia cristã a festins canibais. Longe de excluir estns compnrnções, a linguagem dos Evnng1:'/hos refereas: «Quem niio comer n minha carne e não beber o meu sangue, diz Jesus, não terá n vida eterna .» A acreditar em ]afio, que as cita, estas palavras nterroriznrmn de tal modo os discípulos que muitos fug iram para não mnis voltarem (6, 48-66). Em 1926, A. N . Whitehead deplora va «n falta de distin ção clnra en tre o cristianismo e ns grosseiras extra vagâncias dns velhas religiões tribais» («Christianity lacks a clear-cut separation from the crude fancies of the older tribal religions» ). O teólogo protestante Rlldolfo Bult111an11 dizia aberta111ente que o relato evangélico se parece demasiado com todos os mitos de morte e de ressurreição pnra não ser um deles. Apesar dl.' tudo, pretendia-se crente, resol11tnmente apegado a um cristianismo puramente «existencial », desembnraçndo de tudo o que o Hom em moderno considera como inacreditável «na era do automóvel e dn electricidade». Para extrair do seu in vólucro mitológico n nbstrncçiio de quinta-essência cristii, B11ltmann praticava uma operação cirúrgica baptizada Entmy thologisierung ou des mis tificação . Suprimia impiedosamente do seu credo tudo o que lhe lembm va a mitologia. Considerava esta operação como objectiva, imparcial e rigorosa. Na realidade, conferia não só nos automóveis e n electricidade, mns também à mitologia, um verdadeiro direito de veto sobre n revelação cristã. O que, nos Evangelhos, mais lembra os mortos e as reaparições mitológicas dns vítimas únicas, é a Paixão e a Ress urreicão de Jesus Cristo. Poderá desmistificar-se o Domingo de Páscda sem aniquilar o cristianismo? A acreditar em São Paulo, não: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé ... » (Coríntios, 15, 17).

* * * Apesar do seu ardor, o comparativisino dos velhos etnólogos nunca ultrapassou o estado impressionista. À procura frenética das semelhanças, a nossa época pós-colonial, por razões de ordem inte13

lectual, assim como de oportunismo político, substituiu uma glorificação, não menos frenética, das diferenças. Esta troca parece considerável, mas, na realidade, não tem a menor im portância. Dos milhares de pés de erva de uma pradaria pode dizer-se quer que são todos se111ellwntes quer que são todos diferentes. As duas fórmulas são equivalentesl. O «pluralismo », o «m11lticulturalismo» e as outras recen tes varia ções do relativismo mode rno es tão f undamen talm ente de acordo com os velhos etnólogos comparativistas, mas tornam imíteis as negações brutais do passado. É se111 grande esforço que podemos en tu siasmar-nos com a «originalidade » e a «criatividade» de todas as culturas e religiões. Nos dias de hoje, tal como dantes, a maioria dos nossos contemporâneos sen te a comparação do cristianismo a 11111 núto como uma evolução irresistível e irrevogável, pois fa z-se valer do único tipo de conhecimento que o nosso mundo ainda respeita, a ciência. Mesmo se a natureza mítica dos Evangelhos ainda não foi demonstrada ci-en-ti-fi-ca-men-te, diz-se que o será mais tarde ou mais cedo. Estará tudo isto verdadeiramente certo? Não só não está certo, com.o é certo que o não está. A comparação dos textos bfblicos e cristãos a mitos é um erro fácil de refu tar. O carácter irredutível da diferença judaico-cristã pode ser demonstrado. É esta demonstração que constitui o essencial do presente livro. Peran te a palavra «demonstração » toda a gente vai aos arames, os cris tãos ainda mais depressa que os ateus. Em caso algum, dizem os primeiros, os princípios da fé poderiam. ser objecto de uma de m.ons tração. Mas quem es tá a fa lar de f é religiosa? O objecto da minha demonstração nada tem a ver com os princípios da fé cristã, pelo 1 Sobre as relações entre as teses do presente ensa io e o «diferencialismo» contemporâneo, ver Andrew McKenna, Viole11ce nnd Difference, Uni versity of lllin o is Press, 1992.

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menos não direc tamen te. O mrn raciocínio incide sobre dados puramente humanos, refere-se à antropologia do religioso e não à teologia. Assenta no simples bom senso e apela apenas para evidências manifestas. Para começar, é preciso que nos reconciliemos, senão com o velho método comparativo, pelo menos com a ideia de comparaçiio. O que os fracassos do passado demon straram foi a impotência, não do princípio compara tivista, mas do uso com um único propósito que dele f izeram, na viragem do sécu lo XIX para o século xx, os velhos etnólogos anti-religiosos. Devido à sua hostilidade ao cristianismo, estes inves tigadores baseavam-se exclusivamente nos mitos. Tratavam os mitos como objecto~ _conhecidos, aos quais se esforçavam por reduzir os Evangelhos supostamente desconhecidos, pelo menos por aqueles que os to111ava111 por verdadeiros. Dizia-se que se os crentes tivessem feito 11 111 uso correcto da sua ra zão, teriam reconhecido a natureza mítica da sua crença. Es te método pressupunha 11111 domínio da mitologia que, na rc'alidade, estes etnólogos nii.o possuiam. Eram incapazes de definir com exactidão o que entendiam por mítico. Para não volta r a cair-se nes te impasse, há que volta r atrás e partir da Bíblia e dos Evangelhos. Trata -se, não de proteger a tradição judaico-cristã e, de imediato, dar por demonstrada a sua singularidade, mas, pelo contrário, começar por singularizar todas as parecenças entre, por um lado, o mítico e, por outro lado, o btblico e o evangélico. Graças a uma série de análises que incidem, em primeiro luga r, sobre textos bíblicos e cristãos, na primeira parte do presente ensaio (cap itulas 1-111) e, em seguida, sobre os mitos, na segunda parte (capítulos I V- VII/), esforço-me por nwstrar que, por detrás de todas as aproximações e comparações, não há nada, há uma realidade extratextual . Há um «referente », conw dizem os lingu istas, e é quase sempre o mesmo, é o mesnw processo colectivo, é um fenómeno de m.ultidões específico, um acesso de violência mimética, unânime, que se produz nas comunidades arcaicas no paroxísm.o de um certo tipo de crise social. Se for verdadeiramen te unânime, esta 15

violência põe sempre fim à crise que n preade, reconciliando n con111nidnde contra umn vítima rínica , não per tinente, o tipo de vítimn n que, com 11111 tom fn mi/iar, chnmnmos «bode expiatório ». Lonae de minimizar ns semelhan çns entre, por um Indo , os mitos e~ por outro lado, o j11dnico-cristão, mostro ~ue iio ain~a mais espr?ctarnlares do que pen snvnm os 7..'r:'il10s r?tnologos. A v10lêncin central dos mitos arcaicos é bnstnn tr? nnnloga à que se encontra cm 11111itns narracões bíblicas e, sobretudo, à Paixiio de Cristo. Na 111nior parte d~s casos, é w11a espécie de linchamento espontâneo que se d~senrola no mitos, e ter-se- in , se111 dúvida , r~produ­ zido contrn Cristo, sob n formn de um npedrejnmento, se Pilatos, a fim de r?vitar a sublevação dn pop11lnçiio amea çadora , não tivr?sse ordenado a crucificaçiio «/eaa/ » de Jesu s. É preciso ver, penso, e111 toda s as violências míticas e bíblicas, nconteci111e11tos reai- cujn recorrência está re/acio11ndn , em todas ns rnlturas, com a universalidade de 11111 certo tipo de co11f!ito entre os homens, as rivalidades miméticas, n que Jesu s Cristo chama escândalos. Na minha opiniiio, esta seq11ê11cia fenom enal, este ciclo mimético, reproduz-se continuamente, a um rit mo mais 011 menos rá~id~, n~s comunidades arcaicas. Para a identificar, os Eva11gelhos sao 111d1spensáveis, pois só neles es te ciclo estn descrito deform'a inteligível e a sua natureza é explicada. Infelizmen te, nem os sociólogos , que se afastam por sis tr?m.a dos Evangelhos, nem, parndo:rnl111ente, os teólogos, sempre predispostos a favor de qualquer uisiio filosófica do Homem, têm o espírito /ivrr? o suficiente para suspeitarem dn importância antropológica do processo esclarecido pelos Evnngell10s, a exa ltação mimética contra uma vítima única. Até à data, apenas o anticristianismo recon.hecf!u que o processo, que se produz em inúmeros mitos, se produz também na crucificação de Jesus. O anticristianismo via nisto um argumento a favor da sua tese. Na realidade, longe de confirmar a concepção mítica do cristianismo, es te dado comum, es ta acção comum, uma vez compreendida, pennite revelar a divergência crucial, nunca antes assinalada (a n~o ser por Nietzsche), entre os mitos r? o cristianismo. 16

Longe dr? semn mais ou menos equivalentes, tal como se é, forçosamente, tentado a pensar se se confiar nas sr?melllanças do próprio acontecimento, os rela tos bíblicos e eva ngélicos distinguem-se dos relatos míticos tão radical e decisivamente quanto possível. Os rf!latos míticos retratam. as vítimas dn violência colectiva como rnlpados. Siio simplesmente falsos, ilusórios, mf!n tirosos. Os relatos bíblicos e f!va ngélicos retratam estas 111esmas vítimas como inocentes . São essencialmente exactos,Jiáveis e verídicos. Em rL'gra geral, os relatos míticos são directamentr? indecifráveis, demasiado fantásticos para serem legíveis. As comunidades que os elaboram nada mais podem. fa zer a não ser transfigurá-los: são unanimemente iludidas por um contágio z iolento, por uma exalta ção' miméticn que as persuade da wlpabilidade do seu bode expiatório e, assim, as reconcilia contra ele. É esta reconciliação que dese ncadeia, num segundo tempo, a divinização da vítima , vista como responsável da paz por fim encontrndn. É pelo facto de ns comunidades míticas niio compreenderem o que lh es sucede que os seus relatos parecem indecifrá ve is. Efectivamente, os etnólogos nunca conseg11ira111 decifrá-los, nunca deram conta da ilusão s11 scita da pela unanimidade vio!e11 ta porqui> não começam por discernir, por detrás da violêncin mítica, .o fenómeno de multidão. Apenas .os textos btblicos e evangélicos permitem vencer esta ilusão porque os próprios autores a ultrapnssaram . Quer na Bíblia hebraica quer na Paixão, dão representações, exactas no essencial, de fenómenos de multidiio muito análogos aos dos mitos. Inicialmente, seduzidos e enganados pelo contágio mimético, tal como os autores dos 'mitos, os autores btblicos e evangélicos foram, finalmente, desenganados. Esta experiência única torna-os capazes de aperceber, por detrás do contágio mimético que os desencaminhou juntamente com o resto da multidão, a inocência da vítima. Tudo isto se torna manifesto a partir do momento em que se compare aten tamen te a um mito tal como o de Édipo um relato bfblico tal como a história de José (capitulo IX) 011 os relatos da Paixão (capítulo x). 17

Para se Jazer um uso verdadeiramente efica z dos Evangelhos, é preciso ainda um olhar livre de preconceitos modernos a respeito de certas noções evangélicas, injustamente desvalorizada s e desacreditada s pela crítica com pretensões cientificas, em particular, nos Evangelhos Sinópticos, a noção de Satanás, ou seja o Diabo no Evangelho de João. Este personagem desempenha, no pensamento cristão sobre os conflitos e sobre a génese da s divindades mitológicas, um papel-chave ao qual n identificação do mimetismo violento permite Jazer justiça . Os mitos invertem, sistematicamente, n verdade. Inocentam os perseguidores e castigam as vítimas. São sempre enganadores porque são eles próprios enganados e, com a diferença dos discípulos de Emaús após a Ressurreição, nada nem ninguém vem alguma vez esclarecê-los. Retratar a violência colectiva de forma exacta, tal com.o o Jazem os Evangelhos, é negar-lhe o valor religioso positivo que lhe conferem os mitos, é contemplá-la no seu horror puramente humano, moralm.ente culpado, é libertar-se da ilusão mJtica que, ou bem que transforma a violência em acção louvável, sagrada, porque útil à comunidad~, 011 bem que a abandona completamente, tal como o faz nos nossos dias a investigação científica à mitologia. A singularidade e a verdade que a tradição judaico-cristã reivindica são pe1jeitamente reais, mesmo evidentes, sob o aspecto antropológico. Para se apreciar a for ça da tese, ou a sua fraqueza, não basta a presente introdução, há que ler a demonstração inteira. É na terceira e última parte deste livro (capítulos IX- XIV) que a singularidade absoluta do cristianismo, não apesar mas por causa da sua sim.etria pe1feita com a mitologia, é plenamente confirmada . Ao passo que a divindade dos heróis míticos resulta da ocultação violenta da violência,_a divindade que se atribui a Cristo funda-se na força reveladora das suas palavras e, sobretudo, da sua morte livremente consentida , qu e torna manifesta , não só a sua própria inocência, mas tam.bém a de todos os «bodes expiatórios » do mesmo tipo.

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* * Como se vê, a minha análise não é religiosa, mas con verg~ para 0 religioso. Se estiver correcta, as suas consequências religiosas são incalculáveis. O presente livro constitui, em última instância, aquilo a que se chama va, outrora, uma apologia do cristianismo. Longe de dissi11111/ar este aspecto, reivindico-o sem hesitar. Esta defesa «antropológica » do cristianismo nada tem a ver, seguramente, nem com as velhas «provas da existência de Deus», nem com o «argumento ontológico», nem com o sobressalto «existencial» que abalou com brevidad& a inércia espiritual do sérnlo xx. Toda s estas coisas são excelentes no seu tempo e espaço, mas, do ponto de vista cristão, apresentam o grande inconveniente de não terem qualquer relação com a Cruz: são mais deístas do que especificamente cristãs. Se a Cruz desm.itifica qualquer mitologia mais efica zmente do que os automóveis e a electricidade de Bultmann, se nos desembaraça de ilusões que se prolongam indefinidamente nas nossas filosofias e ciências sociais, não podemos renunciá-la. Longe de estar para sempre fora de moda e ultrapassada, a religião da Cruz, na sua integridade, é uma valiosa pérola cuja aquisição justzfica mais que nunca o sacrifício de tudo o que possuímos.

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PRIMEIRA PARTE

O CONHECIMENTO BÍBLICO DA VIOLÊNCIA

I

É PRECISO QUE O ESCÂNDALO ACONTEÇA

Um exa me atento mostra que exis te, na Bíblia e nos EvangeliLo , mna concepção original e desconhecida do desejo e dos seus conflitos. Para se apreender a sua antiguidade, pode remontar-se ao relato d a Queda no Génesisl, ou à segunda metade do Decálogo, inteiramente consagrado à proibição da violência contra o próximo. O mandamentos seis, se te, oito e nove sã o tão simples quanto breves, proíbem as violências mais graves por ordem da ua gra vidade: Não Não Não ão

ma ta rás. cometerás adultério. ro ubarás. dirás falso tes temunho contra o teu próximo.

O décimo e último mandamento tem a última palavra obre os que o precedem, pela sua ex tensão e objec to: em vez de proibir uma acção, proíbe um desejo: Não cobiçarás a casa do te11 próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, m~m o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa algwna q_ue lhe pertença. (Ex 20, 17) 1 R. Schwager, Bm11c/ie11 wir einen Siindenbock, Ko e!, Munique, 1978, p. 89; Jean-Mic hel Oughourlian, U11 111ime 11 0 111111 11tnvnm um demónio .. .

O apedrejamento do mendigo leva, forçosamente, a pensar na crucificação. Finalmente, Jesus é derrotado por um efeito mimético análogo ao apedrejamento do mendigo. O efeito que logrou inverter no caso da mulher adúltera, no seu caso, não consegue evitá-lo. É o que entende, à sua maneira, a multidão rernúda jt.mto da cruz; troça da impotência de Jesus para fazer por si mesmo o que fizera por outros: «Ele, que salvou outros, não pode salvar-se a si mesmo!» A Cruz é o equivalente do apedrejamento de Éfeso. Dizer que Jesus se identifica com todas as vítimas é dizer que o faz, não só com a mulher adúltera ou com o Servo sofredor, mas com o mendigo de Éfeso. Jesus é o malogrado mendigo.

, · consiste · m · Od milagre . . de, A po 1orno em converter uma epidei~ e nv~h~ades miméticas numa violência tmânime cu· «catartico» devolve a tranquilidad . ' JO en tre os Efésios. A cidade inteira um· sma 1 sobrenatural e ' para co ru·irmar a sua interpr t a oficial, supõe uma ., l ' erac t ' es, o eus mais mdicado para o papel, mna vez que lª a es a, r~presentado pela sua estátua, no teatro onde decorre

efe~to

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vê~~ :;:r:;:~lª~!~~~

~~rac~üosa,dpara t?r~ar

interven;ã~ç~~

~a~~~~t;:r;:e;to. d~m vez de c~ndenarem a agressão crimi-

:n. igo, as autondades municipais atestam 0 nu agre e Apoloruo faz figura de grande homem. no Atendendo a qtie o d eus nao - teve qualquer intervenção caso, este . . parece-nos u . . . apego ao pagarusmo o f'ioal . m pouco .artihoal , . Poré m, o ape1o ao religioso não arbitrário no seu pfrm~1pio. Entre o apedrejamento fomentado por Apolónio enomenos- em torno d os quais . o sagrado arcaico surgiu / easosafiru'dad . es sao reais. , de Muitos A 1, são . os mitos. com mn per fl i analogo ao do milagre po orno, mas a vwlê · r h , noa, mesmo nos casos em que o me amento e reconhecível não é em com o realismo já m d regra geral, descrita o erno e um Filostrato. Nos textos lite·1

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rários, As Metamo1joses de Ovídio, por exemplo, a proliferação de elementos fantásticos esconde o horror de um espectáculo que nunca é verdadeiramente representado com o mesm.o sentido da narração de Filostrato. Os mitos começam quase sempre por um estado de desordem extrema. A maior parte das vezes, este caos não se pretende «original». Não raro, pode detectar-se por detrás dele uma espécie de desconcerto ou de incompletude, seja na comunidade, na atureza ou no Cosmo. O que perturba a paz é, con1 frequência, uma «epidemia» mal definida, análoga à do apedrejamento de Éfeso. Também pode ser, explicitamente, um mal-estar social, um conflito cujo carácter mimético é sugerido pelo considerável papel, nos mitos, dos gém.eos ou irmãos inimigos. O conflito também pode dar-se entre mil e uma outras entidades mais ou menos fabulosas: monstros, astros, montanhas, quase não importa o quê, mas estas entidades opõem-se e chocam entre si de um modo simétrico, tal como fazem os sósias miméticos. Em vez de desordem nos começos dos mitos, pode tratar-se também de uma interrupção das hmções vitais causada por uma espécie de bloqueio, de paralisia. Claude Lévi-Strauss viu muito bem este aspecto dos começos míticos, todavia sem reparar na ligação com q violência. Pode tratar-se também de de astres mais vulgares: fome, inundações, secas destruidoras e outras catástrofe& naturais. Em todos os casos, pode resumir-se a situação inicial em termos de uma crise que faz pesar sobre a comunidade e o seu sistema cultural uma ameaça de destruição total. Esta crise é quase sempre resolvida pela violência, e mesmo se esta não é colectiva, são-no as suas ressonâncias. A única grande excepção é a violência dual entre dois irmãos ou gémeos inimigos, triLmfando um sobre o outro. Há sempre alusão a um mimetismo, conflitual e desagregador antes da violência, reconciliador e Lmificador depois dessa mesma violência e graças a ela. Tudo isto só é visível à luz das análises anteriores, à luz do milagre de Apolónio, ele próprio esclare86

cido pelo~ Ev~ngelhos e pela noção de ciclo mimético tal como os tres pnmeiros capítulos deste livro salientaram. No ~aroxi~mo da crise, a violência Lmânime toma início Em n::wtos nutos que nos parecem ser os mais arcaicos e que. na. minha opinião ' 0 ç ao e f ec t.ivamente, a unanimidade' v10le1~ta apresenta-se c~mo uma investida em massa, mais sug.enda .do que propnamente descrita, e que se encontra ~mto evi,dente, manifesta, nos rituais. Estes reproduzem de ~rma visIVel, . ~esde logo se suspeita porquê, a violência Lmârume e reconciliadora do mecanismo vitimário. O protagonista nos mitos arcaicos é a comwtidade inteira transformada · 1ga estar ameaçada . . ",em multidão violenta · Se JU por um mdividuo isolado, muitas vezes um estrano-eiro mass~cra de um modo espontâneo o visitante. Encon~ra-s~ estle tipo ~e ~io~ência em plena Grécia clássica, no sinistro cu to de Dioruso. agressores precipitam-se como um {mico homem sobre a vitima . A histeria colectiva é tal que se comportam literal~~nte, como predadores. Conseguem atacar feroz~ente a vlt1ma, retalham-na literalmente com as mãos com as U11h com os dentes, como se a cólera ou o medo 'dec up 1·1casseas,a , . sua força fisica. Por vezes, devoram o cadáver. f ~ara designar e.st~ violência súbita, convulsiva, este puro e~on~eno de multidao, a língua francesa não tem um termo ~ropno. A palavra que nos vem à boca é um americanismo / inchamento. At~nde~do_às inúmeras variantes do assassútio colectivo ou ~e mspiraçao colectiva nos mitos e nos textos bíblicos, ao ~eal~s~o ~e algumas descrições e também aos ritos, uma mte1p1etaçao puramente «simbólica»: a invocação de um qualquer 1 fantasma,. o «fantasma do corpo r·et a lha d o», por exemp .º' para explicar todas estas cenas de violência, parece-me ditada por um preconceito sistemático contra o real e rejeito-a serr; a menor hesitação, apenas por causa do impasse em que esta, desde há séculos, o estudo da mitologia.

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. h t de mãos vazias tem um Uma vez que o lmc amen o erinos mitos arcaicos, por que nao exp . iderável pap el Cons · l' · a de uma viomentar a hipótese mais simples, mais ogica, tAnea lência real análoga, Ir\ªs ainda mais selvagem e espon a ' 7 t de Efeso d · ao ape re1amen o nfl.to. s miméticos são reais e que resulUma vez que os co i tam, regularmente, em .violên~ia ~~~e~~~~~ P~~ ~:an~~o~~:~: que, por detrás da maior par e ' l?

,

rea Se os linchadores retalhavam a vítima c~m as suas pro. viam estar desarmados. Se tivessem armas, pnas maos, de. _ fnham é porque pensater-se-iam servido delas. Se nao ~s i ' .do por razões recisavam. Se se tivessem reum . vam que nao p lh um visitante, e as coisas pacíficas, talvez para aco erem tivessem azedado ... *

* * . d t ho vindo a falar: o As violências colectivas e que en . _ d J _ apedrejamento de Éfeso, a Paix~o, a da:ci:i~~~: ta~b~:,

B~p~:~:~-!::~50°0~:~~:,:0~~:~s, ;,,Lritos lincharnen~o;vespontâneos.

Estes devem ~orresponder a ~:~'-~eº~ méticos múito vigorosos que nao se deparam ' lera se inobstáculo legal, institucional. Onde quer ~ue a co . 'ta ndeie estala o pânico e toda a comunidade s: precipi c:ra a ;iolência, por um efeito de contágio U:sta~~aneo'. . p Nas sociedades privadas de um sistem~ 1udicial, a ~di~. ex lode sob a forma de linchamento. ~ms naçao contagiosa p dalidade arcaica da 1usGernet vê no linchamento uma mo . 1 re é melhor do que n ada ver, certamente, ma,s,. na ~:nh;:rnião, este investigador inverte o yrocesso g~et~~~· Vê apenas o ponto de partida do religioso rrutico e, sem uvi ' ,

.

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·

1 Louis Gernet, Droit et instit11tions e11 Grece nnt1q11e, a n s,

88

Flammarion, 1982.

ulteriormente, de tudo aquilo a que chamamos «sistema judicial», é a unanimidade violenta do linchamento espontâneo, não premeditada, que restabelece, espontaneamente, a paz e que, por intermédio da vítima, dá a esta p az uma significação religiosa, divina. A partir do momento em que a vítima é morta, termina a crise, restabelece-se a paz, cura-se a peste, apaziguam-se os elementos, recua o caos, o bloqueado desbloqueia- se, o incompleto completa-se, o indiferenciado diferencia-se. A metamorfose do malfeitor em benfeitor divino é um fenómeno simultaneamente prodigioso e rotineiro, enquanto que, na maior parte dos casos, os mitos nem sequer a assinalam. Aquel~. que, no princípio do mito, se fazia linchar porque se acreditava que destruía o sistema totémico, eis que, na conclusão, preside à reconstruçao deste mesmo sistema ou à construção cle um outro novo. A violência m1ânime transformou o malfeitor em benfeitor divino de forma tão extraordinária e, todavia, vulgar, que a maior parte dos mitos nada dizem desta metamorfose. Está subentendida. Tudo se explica quando compreendemos que, no fim destes mitos, a unanimidade violenta reconciliou a comunidade e é à vítima já «culpada », já «responsável» pela crise, que se atribui o poder reconciliador. Assim, a vítima transfigura-se duas vezes: a primeira vez, de forma negativa, maléfica; a segunda vez, de maneira positiva, benéfica. Acreditava-se que a vítima falecera, mas tinha que estar viva, pois reconstruíra a comunidade imediatamente depois de a ter destruído. Ela é imoral e, por conseguinte, divina. Portanto, é preciso pensar que também os mitos reflectem, embora de maneira confusa e mais transfigurada, o processo que os Evangelhos nos permitiram assinalar e que fomos, em seg1-úda, encontrar no apedrejamento de Éfeso. Este processo é, com certeza, característico dos mitos em geral. Os mesmos grupos humanos que expulsam e massacram os indivíduos para quem as suspeitas convergem, mime89

d á-los uando já estão apaziguados ticamente, poem-se a a or q·1· volto a dizê-lo, só pode .1. d o que os recono ia, e recono ia os. · . . de todos os seus medos · a vítima pnm.eiro, ser a pro1ecçao n ., ' t reconciliados com todas quando lª se sen em e em seauida, 0 as suas esperanças. , tº dos arupos humanos São as desordens caractens icas o . forao aarnvareffl-se cada vez mais, ee o . f . de oraaniq ue , paradoxalmente, meio de arranprem or mas o 0 necem aos homens da vi·olência paroxística e 1 modo sur 00 em · zação que d e a gum f m voltar a paz às custas fº o r chamentos aze a- por que figuram com.o lhe poem im. s m , ,. d . · · da E esta a raz . 0 da vitima iviruza . . 1idades as recordam . . d t divindade e as comur epifanias es a f. irados a que chamamos mitos. nos seus rela tos trans igt.: I

* * * . 1 d A olónio de Tiana não No apedrejamento miracu oso e P _ estamos longe de dº · dade nova m.as nao 'd. é visto como um ser aparece qualquer ivm . · - destas ' pois o men igo uma apançao . , · d peste sobrenatural, o d emoruo a . . os não reconhecem a Após o apedrejamento, os~ as~assm a velhice e o de aparencia humana que e sua vítima. O pouc . d t 'do acabam as pedras por o . , . -o lhe haviam es nn ' a m1sena na .edre·ar porque é monstruoso, J t Os Efésios lanfazer. O malogrado nao ~e faz ap . taz dele um mons ro. é o apedre1amento que f, . e o cadáver do mendigo çaram as pedras com tanta una qu ficou «em papas». . tação: 0 monstro é tão Adivinha-se no autor uma 11esi_ , tm leão é mais LLm 1o entanto nao e L ' grande com um eao e_, n . , ' omo monstro, Filostrato 1 cão. Para o tornar n1ais resp~itave o cfazem os cães enraivefá-lo vomitar espuma, « t~ ~o~ d pouco impressionante, cidos»' mas a transfiguraçao e am a . nte para dissimular . t d masiado transpare · pouco convmcen e, e . d pobre esboço de a triste verdade. Trata-se aqm apenas e um mito ... 90

O assassínio t.:mânime não se transfigurou o bas tante para ser divinizado. É por esta razão que não surge qualquer divindade nova. Vê-se muito bem o que falta a este apedrejamento para gerar um deus. Se o motor das transfigurações, a violência colectiva, fosse mais poderoso, teria divinizado o mendigo. Nas mitologias, os deuses curadores manifestam-se sempre, em primeiro lugar, sob aparências que se assemelham ao nosso milagre. Para começar, são sempre demónios responsáveis pela doença que curam depois. Se, afinal, estes deuses passam por capazes de curarem as doenças que transmitem aos homens, é porque a violência exercida contra si, no estado em que apenas parecem maléficos, contagiosos, demoníacos, tem t.:m1 efeito reconciliador análogo ao do apedrejamento, só que mais poderoso. É o «abcesso de fixação » muito eficaz que é divinizado. As vítimas que suscitam mais terror na primeira fase suscitam mais alívio e harmonia na segt.:mda. Transfiguraram-se, portanto, duas vezes, repito-o, mas não é o caso do mendigo de Éfeso. No mito de Édipo, o papel do deus Apolo é um bom exemplo de dupla transfiguração. É este o deus que passa por enviar a epidemia e castigar os que albergam em suas casas um criminoso abominável, um filho parricida e incestuoso. Inicialmente, Apolo não é mais do que wn «demónio da peste». Uma vez expulso Édipo, Tebas fica curada. Apolo recompensou a obediência dos Tebanos e põe fim a uma chantagem doravante sem objecto. Dado que Apolo é ele próprio a peste, para lhe pôr fim, basta-lhe afastar-se. No milagre de Apolónio, Héracles controla o apedrejamento do mendigo exactamente como Apolo controla a expulsão do herói no mito de Édipo. Apolo continua a ser indispensável neste último exemplo, apesar do facto de o herói, ao contrário do mendigo, ser ele próprio um pouco divinizado. Mas parece que não o é suficientemente para 91

· ·sso o mito estrutura sagrada e, para 1 ' . . .nh consolidar soz1 ª . e > a um grande deus recorre, tal como faz o nosso «ml1agr > '

°

preexistente, Apolo. . f mais forte no milagre de Se o poder transhgur~dor_ odsse diao viria a sua divi, d oru.zaçao o men o Apolónio, apos a em . ão dissimularia o horror da nização. A segunda transhgu_raç . t em vez de um fenó, m verdadeiro m1 cena. Tenamos u relatado por Filostrato. meno incompleto, bastardo, ~ , ·s do que um pálido l ' ·o nao e ma1 O milagre de Apo om , ter ane' mico inacabado, que · é este carac ' ,. esboço de mito, ~1.aS ra a inteliaência das géneses rruhlhe dá o extremo mteress: pa d . ºomentos distintos uma - d ompoe em ois m d cas. A narraçao ec . . t d1· tos se apresenta e · t s propnamen e ' . génese que, !'ºs rru o cta ue arece indecifrável. uma forma tao compa q_ presente em Filostrato, . . fia rraçao e a uru.ca A pnmeua trans ot f camos horrorizados. . , 1 , por isso mesmo que i , a única v1sive ' e e , letarn.ente ausente, e e . ção esta comp A segtmda trans figur~ . de o auxílio de Héracles. para remediar esta ausencial que se ~=m uma primeira alusão A primeira frase do re a to con

°'

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d erguia [Apolónio] conduziu o povo inteiro ao teatro, on .e se uma imagem do deus protector.. .

ao deus:

Não mais se fala do deus até mesmo ao final do relato:

, d.o deus· pro-. .1 , l ergueu-se a estat11a Atendendo [ao m1 ag 7 e ' '( de 0 mau espírito lrnvia tector, Héracles, no mesmo sz zo on sido expu lso. Héracles enquadram toda a história e 1. . O verdadeiro autor do As duas mençoes a · ·f açao re ig1osa . d dec1.diu exercer a sua conferem-lhe a s1gru. 1C f ·f é 0 eus que . d milagre, em e m1 ivo,_ 'd " de um grande inspuado: ftmção protectora por mterme io

da qual mais vale não se suspeitar a existência para glorificar os mitos como fazem os modernos. Para preservarem as suas ilusões neopagãs, abandonam textos demasiado reveladores, tais como o apedrejamento de Apolónio. Filostrato descreve o apedrejamento de uma maneira demasiado hones tamente realista para não nos esclarecer sem querer acerca do processo, pelo qual, paradoxalmente, se deixa enganar. Não h á qualquer razão para se pensar que este escritor seja particularmente sádico e que difira muito dos seus correligionários; continua ligado à religião ancestral e não a vê tal como ela é. Torna os recursos manifestos sem os identificar ele mesmo, e o horror que a sua narração nos inspira surprêendê-lo-ia, sem dúvida, profundamente. Na sua imaginação religiosa, o grande Pã não está totalmente morto. Nãp é o acaso que faz do deus das multidões violentas o símbolo de toda a mitologia . É do seu nome que vem a palavra «pânico». Este deus não perdeu, sobre o autor de A Vida de Apolónio de Tiana, todo o seu poder de encantamento2.

* * * Por que é que os Evangelhos, na sua definição mais completa do ciclo mimético, recorrem mais a um personagem chamado Satanás ou Diabo do que a um príncipe impessoal? Penso que a principal razão é que o verdadeiro manipulador do processo, o sujeito da estrutura no ciclo mimético, não é o sujeito humano que não se dá conta do processo circular no qual se insere, mas o próprio mimetismo. Não há um verdadeiro sujeito fora do mimetismo e é isso que, no fim de contas, significa o título de príncipe deste mundo que se reconhece nesta ausência de ser que é Satanás.

Apolónio de Tiana. . . 1 não é um mito completo, O apedrejamento muacu oso ·meira a mais escondida, . uma metade apenas, a pn e' mas, sim,

2 Jea n-Pierre Dupuy, Ln Pnniq11e, Paris, Les empêcheurs de penser en rond, 1996.

92

93

VI Satanás nada tem de divino, mas não é possível falar-se dele sem se fazer alusão a qualquer coisa de essencial que já mencionei de maneira breve no capítulo a ele consagrado e que nos interessa ao mais alto grau: a génese das divindades

SACRIFÍCIO

arcaicas e pagãs. Mesmo que a transcendência satânica seja falsa, privada de qualquer realidade no plano religioso, no plano mundano os seus efeitos são inegáveis e formidáveis. Satanás é o sujeito ausente das estruturas de ordem e desordem que resultam das relações conflituais entre os homens e que, no fifft de contas, organizam e desorganizam estas relações. Satanás é o mimetismo na sua força mais secreta, o aparecimento das falsas divindades no seio das quais nasce o cris. G:a~as ao

~~lento

de Filostrato, a violência dos Efésios de pela sua vítima, mos;,: . erno que nao podemos escamot , 1 multo entusiastas que sejamos em relação aos

tianismo. Falar do ciclo mimético em termos de Satanás permite aos Evangelhos dizerem ou sugerirem, acerca das religiões entendidas pelo cristianismo como falsas, mentirosas e ilusórias, muitas coisas que não podem ser ditas na linguagem

~:.;.n~:~~s:';,º~~~n::; compai~ão

dos escândalos. Os povos não inventam os seus deuses, divinizam as suas vítimas. O que impede os investigadores de descobrirem esta verdade é a sua recusa de apreenderem a violência real escondida nos textos que a descrevem. A recusa do real é o dogma número um do nosso tempo. É o prolongamento e a perpetuação da ilusão mítica original3.

A cnaçao . - d sagrado arcaico antiao é 0 . , . ' o ' , con1 certeza, fruto de um irnp0 . L11 so rrumetico e de um mecanismo vitimário no sentido que os Evangelhos permitem deflili . ·r As . dades · d · comuru~p;z1gua ~s e reconciliadas pelas suas vítimas estão d s~::~: o consoentes da sua impotência para o fazerem , . ' em, s:rn1a, modestas de mais para atribuírem a si propnas o mento da sua reconciliação. Procuram o d as reconciliou , eus que agora lhes fa ,beque so pode ser a vítima que lhes fez mal e z em. ·~ . não é intensa 0 f No · milagre de Apolónio ' ª expenenoa 1 :~z~~en~: ~ara s.uscitar a segunda transfiguração. É por esta q preoso recorrer a um deus do panteão tr d . . 1 para tornar , a ic10na Se a experiência mimética . 0 mila gre sustentavel. . fosse . tmais forte , ' os pe rsegw·d ores atnbuiriam a sua libertação arnente a vítima . 1 d irec l ' f. d . . ' que acumu ana os papéis de demónio ma e ico e e d1vmdade benéfica.

3 Para toda s as questões leva ntadas por este capítulo e para exemplos de mitos interpretados «mimeticamente», ver Richard ). Golsan, René Girnrd nnd Mytll, Garland Publishing, Nova Iorque e Londres, 1993.

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fe~t=:~~l~;~~~~~:t;i::nder

0

95 94

mito:ª~ão~

papel da unanimidade' vio-

f

ece a segunda Quando a força transfigurad~ra ~n rqa~~ é a' mais precá~ · f d parecer a primeira, transferencia az esa d demoníaco e dissimula . f , ·1 d s duas Escon e o ria, a mais ragi a . .ue Filos trato nos obriga a contemaos olhos dos homens o q ~ dalos no malogrado men. - de todos os escan . plar: a proi~cç~o . , . base do religioso no seu conJ'-mto. digo, a violencia mim:hca, ~ . . do ara a violência no senFilostrato não esta sensibihz~ . p os obriga a estar. Esta , ca histonca n , é um dos problemas tido em que a nossa epo . . . d t- hocante para nos, insensibihda e, ao e . d compreender melhor. que as nossas análises nos a1u am a

* * * ferência do sagrado arcaico explica Penso que a dupla trans . ·tos dos mitos. No princí, . e caracteriza mui d a ruptura 1ogica qu lfei· tor perigoso e na a ,. , t"d como um ma pio destes, o heroi~ e : o . d deixá-lo incapaz de fazer . A , violencia destina a a mais . . posa lf "tor surge na cone 1usao, t mesmo ma ei ' 1 es_e_ qualquer ma' ue esta mudança seja alguma como salvador divmo, sem q . da No fim destes . d t ' mesmo assina 1a · , vez jus tifica ~ O\.~ ~ ~ vidamente divinizado, preside a mitos, o malfeitor_ irncial, dt 1 e se acredita ter destruído reconstrução do sistema cu tl.~~ ;u de uma projecção hostil, na fase inicial, quando_ er~ .º 1ec o quando era o bode expiaton_o. de «onírico», de «fantasmaAntes, tratava-se o religioso criação lúdica». Na t elebra-se a sua « 1 e . . -se muito do tipo de g órico». Actua. men ·e, mundial aproxima 1 b. t as violênd.as colectivas em realidade, a mito ogia efabulação de que foram_ o 1ec ~ bém um pouco na Idade todas as sociedades arcaicas, ocasionados por calamiMédia na altura dos grandes p A 't. as de então eram os t negra s vi im dades tais como a pese . . os enfermos os margi' . 1eprosos, os estrangeiros, os . . l u'dos dos nossos dias. ·udeus, J . , o dir-se-1a os exc 'nais de todo o gener ' . . t nsfiguração mítica é amda Nos fenómenos mediev~1sF~ r~ato e a desmitificação que mais fraca do que no texto e os '

eân::s

96

apresento, longe de escandalizar seja quem for, capta-se de modo tão evidente que não só se recomenda como é obrigatória.

* * * A partir das anteriores análises, pode comparar-se a génese dos mitos e dos seus sucedâneos tardios às actividades de um vulcão actualmente extinto. Quando estava em actividade, o vulcão gerava mitos «verdadeiros», mas a lava e o fumo que dele saíam eram táis que era impossível alguém debruçar-se sobre a cratera para ver o que se passava no interior. ·o apedrejá~ento de Éfeso é obra deste mesmo vulcão numa época mais tardia. Está ainda incandescente, ma~ arrefecido o sufiêiente para que alguém se possa aproximar dele. Não está completamente estéril, mas já só produz mitos truncados, amputados do melhor de si próprios, limitados às transferências hostis. O mendigo de Éfeso nunca se toma objecto de adoração. O apedrejamento miraculoso apenas gera um pequeno demónio medíocre. O relato de Filostrato surge-me, assim, como um precioso _ «elo perdido» entre, por um lado, as transfigurações mitológicas plenárias, directamente indecifráveis, e, por outro lado, a caça às bruxas medievais cujo parentesco com a mitologia propriamente dita se torna evidente à luz de Filostrato e dos Evangelhos. Em ambos os casos, viu-se uma violência colectiva que faz o objecto de rnna interpretação errada, governada pela ilusão unânime dos perseguidores. Perante os mitos, deixamo-nos enganar pelas transfigurações que já não são capazes de o fazer no caso da caça às bnixas. Perante as persegl.úções que se estendem no nosso l.miverso histórico, por distantes que estejam no tempo, compreendemos com facilidade que as vítimas são reais e forçosamente inocentes. Compreendemos que seria não só estúpido, mas também culpado, negar esta 97

r-nos cúmplices da caça às realidade. Não queremos torna -o mais poderosa do prof . t logia é uma versa bruxas. A mi o 1 .d ntificamos mlúto bem o uncesso transfigurador do _gua i e . no nosso mundo, já só a às bruxas, p01s, cionamento na ca Ç . nf ecida incapaz de gerar de 'una forma mwto e raqu ' . .. ft:moona verdadeiros mitos. ·eflectem as grandes conSe examinarmos os textos que r tramos o ciclo mimético, · facilmente encon . . vulsões me d ievais, . d a violência colectiva e, a crise, as acusações este~e~!ip~eª:~ifania religiosa. É sem ein nao . ·s referenciais de selecP or vezes, ainda um . . .cientifica os smai P . ·tos dos heróis e divmdificuldade que se i ção vitimá ria que ca!act.enzal m ~~i os critérios de selecção , . l ' ·cas Sao igua men ' dades mito ogi . ' nferrnidades de todos os generos, as do pharmakos grego, as e sni.os critérios que levam , . ciais Sao estes me taras psiquicas e so . . , vel m.endigo para o seu apeApolónio a escolher um misera drejamento «miracu~oso» . d. t fazem parte da mesma Os mitos propnamente . i os to de Apolónio, os fenófamília textual que o apedreiamen ·nda a Paixão de ·evais de caça às bruxas ou ai ... d menos me i Cristo. . ~ . lectiva são inteligíveis em proOs relatos de violencia co f. -ao de que são objecto. . au de trans ignraç . orção inversa ao gr . t s e 0 menos transhguP . ados são os mi o Os mais trans figur . , ·ca narração a reve1ar , Paixão de Cnsto, a t:ffil . rado de to d os e a . .d de violenta, o contágio miaté ao fim a causa da t:ma.rui:u .ª . · tismo da violencia. mético, o mime . , ue a mitologia mais nobre em Em st:una, o que afumo,e q. tem a ver com a mesma aparência, a dos deuses ohrr:pic~s, do mendigo de Éfeso ou génese textual que ~ demoruzaçao das bruxas medievais. 1 . , caça às bruxas parece · - 0 da mito ogia ª A aproximaça _ estética e cultural com isa da veneraçao . escandalosa por cal . . escândalo não resiste a nmeira mas o a P ' tn: turas Em ambos os casos, q ue envo1vemos - , ·a das duas es 1 · uma comparaçao sen . dos da mesma maneira, trata-se dos mesmos dados orgaruza 98

mas muito enfraquecidos, repito-o, nos fenómenos do múverso cristão, aqueles que qualificamos de «históricos». Certamente, quanto mais envelhecem as divindades, mais a sua dimensão maléfica se esbate às custas da dimensão benéfica, mas ficam sempre vestígios do demóruo original, da vítima colectivamente massacrada. Se nos contentarmos em repetirmos os chavões habituais sobre os deuses olímpicos, nada mais vemos do que a sua majestade e serenidade. Em regra geral, na arte clássica, os elementos positivos encontram-se já em primeiro plano, mas por detrás deles, mesmo no caso de Zeus, está sempre aquilo a que chamamos com uma complacência um pouco simplória as «trav'e ssuras» do deus. Toda a gente se põe de acordo para «desculpar» as ditas travessuras com um sorriso sagazmente cúmplice, um pouco como se tratasse de um presidente americano apanhado em flagrante delito de adultério. As travessuras de Zeus e dos seus colegas são apenas, garantem-nos, «pequenas sombras na sua grandeza divina». Na realidade, as «travessuras» são os traços de crimes análogos aos de Édipo e outros bodes expiatórios divirúzados, são parricídios, incestos, fornicações bestiais e outros crimes horríficos, ou seja acusações típicas da caça às bruxas que são uma obsessão permanente para as multidões arcaicas, e mesmo para as modernas, à procura de vítimas. As «travessuras» são o essencial do divino arcaico. Os historiadores da Idade Média - graças a Deus! - recusam negar a realidade da caça às bruxas. Os fenómenos que descodificam são demasiado numerosos, inteligíveis, bem documentados, para alimentarem, pelo menos até aqlú, a fúria da desrealização que se apoderou dos nossos filósofos e mitólogos. Os historiadores continuam a afirmar a existência real das vítimas massacradas pelas multidões medievais: lepro- . sos, judeus, estrangeiros, mulheres, enfermos, marginais de todo o género. Seríamos não só ingénuos, mas também culpados, se nos achássemos incapazes de afirmar a realidade 99

t de que todos os «relatos)) são destas vítimas, sob o pretex o dade não existe, etc. . · , ·os>) que a ver forçosamente «imagman , 'b s medieval são reais, por Se as vítimas da caça as ruxa · s dos mitos 7 que não o senam a . , 1 .os de descobrirem a verdade O que impede º.s rr:ito og d t refa mas o seu excessivo não é a dificuldade mtnnsec~ .ª a d''liª desde há séculos . A · ·dade Classica que . . respeito pela nhgw d miverso arcaico no seu nte / se esten e ao l . 1 . .d t 1 sobretudo anticrista e que, actua me , ·d logia antioo en a e, ' · conjunto. E a i eo . .f _ das formas míticas cu1a q ue impossibilita a demish icaç:o . · - , d ravante possivel. . descodificaçao e, 0 ' d' em que os investigaeia que espero o ia E com impaoen .t têm de se haver com os nta que nos mi os, d dores se eem co ' , bruxas estruturados da mesma mesmos temas que na ca~af :s . N 'realidade estão decifra· dos indeci raveis. a ' . tos da Paixão são essa maneira e JU1ga . 1 0 dos desde há dois mil anos. s re a ,

·A

A

decifração. f tástica a interpretação que Longe de ser aberrante, an t' d~ momento em que a apresento torna-se ~videntela par idr idos» tais como o apemeio de «e os per ' - d abor d amos por . d' , . entre as narraçoes e d A l ' ·0 mterme ian0 drejamento e po oru ' d nos enganarem, míticas violência colectiva ainda ca~azes e uelas nas quais instanna mais pura acepção da pa a:lra, _eeas~os perseguidores misonhecemos as 1 uso . taneamen te rec , . ri ões· a Paixão de Cnsto, tificados pelas suas propna~ persegt: ç . . as perseguições contemporaneas.

* * * . d osso apedrejamento reside no O enorme interesse . ? n_ d s'ado rígidas daqueles ·d · s distmçoes ema i facto de evi enciar a . . l dentro de categorias catede apns1onar o rea . que gostariam . i· , t'co evita recorrer a textos , . o es tru turahsmo mgms i · goncas. . - F'lostrato transpõe barre1·1 t to E com razao. 1 , como o d e F1 os ra . , . Por detrás do descontlras que se queriam inwtrapassaveis. 100

nuo da linguagem, o nosso «elo perdido » torna manifesta uma continuidade real, portadora de mna inteligibilidade verdadeira, que não se deixa enclausurar nos compartimentos estanques dos antigos e modernos classificadores. Os famosos métodos linguísticos são muito apreciados porque substituem a pesquisa da verdade pelos pequenos divertimentos estruturalistas. O apedrejamento de Éfeso não é um mito propriamente dito e, no entanto, com a ajuda dos Evangelhos, acaba de nos sugerir sobre a natureza e a génese dos mitos e das divindades uma hipótese que se situa no prolongamento directo do texto, uma l:iipótese difícil de rejeitar se de facto procurarmos a verdade. O mesmo se passa com os sacrifícios rituais. O apedrejamento de Éfeso não é um sacrifício propriamente dito, mé)lS mantém de forma visível relações estreitas com um certo tipo de sacrifício muito em voga no mtmdo grego. O rito no qual nos leva de imediato a pensar está, na verdade, tão próximo do que nos conta Filostrato que somos tentados a recorrer a ele para definir o «milagre» de Apolónio: é o rito do pharmakos. O mendigo de Apolónio faz lembrar o género de homens que Atenas e as grandes cidades gregas alimentavam à sua custa para, chegado o momento, fazerem deles pharmakoi~ quer dizer para os assassinarem colectivamente - por que não chamar os bois pelos nomes? - por altura das Targélias e outras festas dionisíacas. Por vezes, antes de apedrejarem estes pobres diabos, fustigavam-lhes o sexo, submetiam-nos a uma verdadeira sessão de tortura ritual. Ao escolher uma vítima por quem ninguém jamais se vestiria de luto, Apolónio não corre o risco de agravar as desordens que procura apaziguar, o que é uma grande vantagem. O mendigo apedrejado apresenta os traços clássicos do pharmakos, os quais são, na verdade, comuns a todas as vítimas humanas nos ritos sacrificiais. Para não suscitar represálias, escolhia-se nulidades sociais, tais como os que não tinham abrigo ou família, os enfermos, os doentes mentais, os velhos 101

abandonados, resmnindo, sempre seres dotados daquilo a que chamei, em O bode expiatório, os «traços preferenciais de selecção vitimária». Estes pouco mudam de uma cultura para outra. A sua fixidez contradiz o relativismo antropológico. Ainda nos nossos dias, determinam os fenómenos ditos «de exclusão». Já não se massacra os que os possuem, o que é mn progresso, mas precário e limitado. É com naturalidade que se sugere que os gregos da época clássica seriam «demasiado civilizados» para se entregarem ainda a ritos tão bárbaros quanto o do pharmakos. Sem qualquer prova que o apoie, continua a dizer-se que estes ritos «depressa teriam que ter caído em desuso». Meia dúzia de séculos depois de Sócrates e Platão, o nosso apedrejamento miraculoso não confirma este belo optimismo. O culto dionisíaco está repleto de ritos ainda mais atrozes do que o «milagre» de Apolónio, mas não os vemos, literalmente ... no sentido quase cinematográfico em que o relato de Filostrato nos obriga a ver o apedrejamento de Éfeso: os olhos pestanejantes do mendigo, a côdea de pão no alforge, a compaixão inicial dos Efésios. Todos os pormenores concretos aumentam a força evocatória do texto de Filostrato. Seria tentador concluir-se que o acontecimento narrado, mesmo se real, é demasiado excepcional para figurar de modo legítimo num debate sobre a violência nas religiões pagãs. Pelo contrário, o relato de Filostrato é excepcional exactamente pelo seu realismo e os seu modernismo relativo. Dos ritos do pharmakos, esperava-se que purificassem as cidades gregas dos seus miasmas, que as tornassem mais harmoniosas, em suma, que realizassem o tipo de milagre que Apolónio conseguiu com o mendigo. Em período de crise, todas as culturas sacrificiais recorriam a ritos não previstos no calendário litúrgico normal. O apedrejamento do mendigo é um rito de phannakos improvisado. Ao fazer apedrejar o mendigo, Apolónio reproduz numa vítima humana a violência unânime que a maior parte dos sacrifícios, naquela época, só já reproduziam em vítimas animais. 102

As representações teatrais estão , na .violência colectiva e constitue~a;b:U: elas, ei:iraizadas mais esvaziadas da sua viol ~ . 1 species de ntos, mas . . enc1a co ectiva do ., c10s arumais e mais ricas que os sacnf1pre, pelo menos de uma f~o aspec~o cultural, pois são semorigem do religioso e de tordma m~1irecta, meditações sobre a ~ i.. . a a CLutura ' potencia1s · · f ontes de COiuiecimento talco ' mo nos mos tra San d G d Sacrificing Commentary1. or oo hart no seu Mas a finalidade da trao-édia . a dos sacrifícios. Trata-se s;m re ~;hnua a ~era mesma que bros da comunidad p . . produzir, entre os mem. e, uma punficação · · anstotélica oue não e' . d · espintua 1, a catharsis ' -.1.. mais o que uma - . zada ou «sublimada d. . versao mtelectuali. . » , como ina Freud d 0 f . .. / ongma1. e eito sacnficia1 *

* * Na época em que ainda existia . .. . . menos vivos qua d , m ntos sacnfioa1s mais ou . ' n o os etnoloo-os pe t , rudades a razão de os b o rgun avam as comu. o servarem e . nham sempre a mesma soupu 1osamente, obtic resposta. Talvez seja altura de ouvir os . . . . nos dizem que os sac .f, . pnn~ipais mteressados, que n IC10s se des tma · 1) deuses que os ensinaram h m. a agradar aos aos omens e 2) . restaurar, no caso de haver n . a conso1idar ou a comunidade. ecess1dade, a ordem e a paz na . Apesar da unanimid ade das afi nunca as levaram a se' . p ,nnaçoes, os etnólogos no. enso que e po t conseguiram resolver o . d r es a razao que não erugma os s ·f, · é preciso admitir ue .. acn IC10s. Para o fazer, como a compreendiamosEsatcnficadores diziam a verdade tal ses estavam m ·t · , . d a verdadeira explicação· dos seu , . Lll ? mais prox1mos os especialistas contempo ~ s propnos ntos do que todos raneos. 1 Sa ndo r Goodha rt 5 ·ij.· versity, 1996. , nc11 ing Com men tn ry, Ba ltimore, John Hop kins Uni-

103

são esforços para se reprimir e Os sacrifícios sangrentos d uru· dades arcaicas ao ff t internos as com , moderar os con i os d t- exacto quanto possível, a de um mo o ao A . . repro d uzir-se . . 'd , 't'ma oriainal, vio1enoas custa das vítimas substltt,~i as a vi _i ' vel ~as nada mítico, do nao determina ' , reais que, num -~assa d f t essas comunidades, graças a haviam reconohado e ac o sua unanimidade. ociadas aos sacrifícios, As divindades estã~ sempre asts ta de produzir e aque. lA . olectivas que se ra . c ·ii· aram persuadiram· P ois as vio encias . t orque os reconci ' las que, precisamen e p ,. são divinas, são uma .. , ·os de que as suas vitimas os bene fician coisa só. canismo vitimário » eficaz , mpre um «me · · Em suma, e se ·f' . e que passa por divino d lo aos sacn icios .d q ue serve de mo e fim a uma cn..se mimética ' a uma epi. e. - o se conseguia dominar. porque, de facto, pos mia de vinganças em cad~i~ .que ;~onstroem a partir de vioA prova de que os sacrifíoosd~f m todos uns dos outros certamente i ere . . , lênoas reais e que, t os estruturais fundamennos pormenores, mas os seus rabç , o modelo da violência ·. esmos e tam em tais são sempre m de modo visível, os inspira. As .f. ·ai·s de um extremo do colectiva espontanea que, . temas sacn ici ' . . d. constantes e explicáveis semelhanças entre os sis · planeta ao ou t ro, s ão · demasia o - ·maainárias ou psipara tornarem v~r~~ímeis as concepçoes i º cológicas do sacnhcio. A

o:

* * * mo nascem os ritos, é preciso Para se compreende~ ~o d uma comunidade que, após imaginar o estado de espi~!~s ~libertada do seu mal graça_s longas e sangrentas ~e~or. :evisto. Pode supor-se que re~­ a um efeito de multidao imp . . ·os di·as ou nos primeif ·a nos pnmen d nava uma gran e eu on l"bertaç-ao Mas este período ·ama essa i · . ros meses que se segm Os homens foram feitos , · venturoso nao d, u rava para sempre. . alidades mimeticas. nas suas nv de modo a recairem sempre 104

«É preciso que o escândalo aconteça », e acontece sempre,

primeiro esporadicamente e ninguém lhe presta atenção, mas proliferará em breve. É preciso que se rendam às evidências: urna nova crise ameaça a comunidade. Como prevenir este desastre? A commúdade não esqueceu o estranho drama, incompreensível, que a salvou do abismo em que receia voltar a cair. Enche-se de reconhecimento para com a misteriosa vítima que, primeiro a mergulhou naquele desastre, mas a salvou em seguida . Ao reflectirem sobre aqueles estranhos acontecimentos, dizem para consigo que, se tudo aconteceu daquela maneira, é, sem d~1vida, porque a vítima misteriosa assim o quis. Talvez a divindade tenha organizado toda aquela encenação com o intt,úto de incitar os seus novos fiéis a reproduzirem-na e, assim, a renovarem-lhe os efeitos, de modo a proteger-se, no futuro, de urna sempre possível recrudescência de desor, dens miméticas. A ideia de que foram os deuses que ensinaram aos homens os sacrifícios é universal e facilmente se vê o que a justifica. Talvez a divindade deseje que os sacrifícios sejam para sempre repetidos, para o bem dos seus fiéis, talvez também para o seu próprio bem, porque se sente honrada com os ritos, ou talvez ainda porque se alimenta das vítimas. Ao não saberem exactamente em que se baseia a virtude das violências colectivas, mas talvez supondo que a sua eficácia não é somente natural, as comunidades vão copiar a sua experiência de unanimidade violenta de uma forma tão exacta e completa quanto possível. Em caso de dúvida, mais vale fazer mt,úto do que pouco. Este princípio explica por que é que muitas comunidades incluem nos seus ritos a própria crise mimética, a crise que desencadeou o processo mimético de selecção vitimária original. Em mt,útos ritos sacrificiais, tudo começa por um simulacro de crise mimética, demasiado realista e parecido com todos os outros para ser inventado. Todos os subgrupos que105

relam entre si e confrontam-se simetricamente, mimeticamente. O modelo não pode ser outro senão a crise real que desencadeou aquilo mesmo que se procura reproduzir, a violência unânime contra a vítirna. Finalmente, para criar o seu próprio antídoto a violência deve agravar-se. É o que compreendem, cmn toda a evidência, muitos sistemas sacrificiais. Portanto, julgam ser necessário reproduzir a crise sem a qual o mecanismo vitimário talvez não funcionasse. · É por esta razão que tantos ritos visivelmente destinados a restabelecerem a ordem começam, de uma maneira paradoxal para nós, de uma forma lógica na perspectiva mimética, nada menos nada mais do que por mn agravamento da desordem, por um espectacular desconcerto de toda a comunidade. No entanto, por racional que seja, por detrás da sua aparência absurda, este procedimento não era universal. Muitos sistemas rituais não reproduziam a crise inicial. Com facilidade se compreende porquê. Esta crise é um desencadeamento de violência mimética. Se for imitada de uma forma demasiado realista, são grandes os riscos de uma perda total de controlo e muitas conl.unidades recusariam assumi-los. Sem dúvida, especulariarn que haveria sempre desordem suficiente para desencadear o mecanismo reconciliador, sem lhe acrescentar um perigoso suplemento de violência. Mesmo os ritos mais tmnultuosos não reproduziam, em regra geral, a crise mimética com toda a sua intensidade e duração. Contentavam-se, a maior parte das vezes, com uma versão abreviada e acelerada da desordem. Resumindo, não saíam da lama para não se meterem no atoleiro. Compreende-se por que é que, quase por todo o lado, os sacrificadores viam nos seus sacrifícios acções temíveis. Não ignoravam que a «boa violência», aquela que, em vez de intensificar ainda mais a violência, lhe põe um fim, era a violência 1.mânime. De igual modo, sabiam que o motor da una-

nimidad . e e, o mais agudo dos mim . mais perigoso de todos se etismos, forçosamente o De onde a ideia un1·versal nao se alcançar a unanimidade ·d . ' no seu · , · · vi ade ntual é extremament . pnnopio, de que a actico f e arnscada p d. . . ara umnuir os riss, es orçavam-se por reprod . exa~ta e meticulosa quanto po ~irelm o modelo de forma tão E esta ssive . 1 preocupação de exactidão . ogos e psicanalistas todas que sugenu aos psicó- falaciosas em te rmos d e «nevroses » «f ast suas expricaçoes el os quais . se apaixonaram ' an pasmas» e o u tros «con1plexos» , . · ara a m · P nos, e evidente que o re11·g· ,. a10r parte dos modero- · p 10so e um fe , , nomeno psicopatolóº1co. ª. ~ª' se dissipar estas ilusõe real que os sacrificadores r d s, ha que assinalar a acção epro uzem a · l ~ . d ora porque espontaneament ~ . ' vio enoa reconciliamodel o era, 'd e facto temí 1 e unarnme . . U ma vez que este em temer a sua reprodução. ' ve ' os sacnfic a d ores tmham . razão Na temporalidade dos ritos o. 0 momento em que as . _ '. cheºa' inevitavelmente sacrificial. O terror qu:epehçoes fim «usam» o efeÍto aos aprendizes de feiti·c ~s seus p:_opnos sacrifícios inspiram qlte sao nf a~a b a por se esvanecer. euo A ena ' e. im, os sacrificadores dias de terror destinadas~ im s sob~ev1ve na forma de coméas ml~heres e as crianças. press10narem os não iniciados,

~em

teóricos, textuais . e arq re1nInumeros q ue, nos indícios . ' · pnmeiros tem d ueo logicos sugeeram sobretudo humanas lºs a Humanidade, as vítimas mais foram substi· tu1n . d o . cada om o passar. do tempo ' os aru·/ quase em. todo o lado , as vi' t.imasve~ aru n1ais . os homens mas , menos eficazes do que as h mais eram consideradas E tuna nas . . , · , ,m caso de extremo pengo na G as vitimas humanas A ac d. ' reoa clássica, voltava-se batalha de Salamina. rr ;e Itar em Plutarco, na véspera da f .. ' .temistocles sob _ ez sacnficar prisioneiros ' a pressao da multidão , . persas. ' is to assim tão d. f era S i erente do milagre de Apolóni o.?

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106

VII

O ASSASSÍNIO FUNDADOR

Por detr~s da Paixão de Cristo, de um certo número de drélmas bíblicos, de uma enorme quantidade de dramas míticos, dos ritos arcaicos, identificamos sempre o mesmo processo de crise e de resolução fundado no equívoco da dli ma única, o mesmo «ciclo mimético». Se examinarmos os grandes relatos de origem e os mitos fw1dadores, apercebemo-nos que eles próprios proclamam o papel hmdamental e fundador da vítima única e do seu assassínio unânime. A ideia está em todos presente. Na mitologia suméria é do corpo de urna ímica vítima, Ea, Tiamat, Kingu, que surgem as instituições culturais. O mesmo se passa na Índia: é o decepamento da vítima primordial, Purusha, por uma multidão de sacrificadores que cria o sistema das castas. Encontramos mitos análogos no Egipto, na China, nos povos germânicos, por todo o lado. A força criadora do assassina to concretiza-se muitas vezes na importância d ada aos fragmentos da vítima. Acredita-se que cada um deles faz nascer urna instituição particular, um clã totémico, urna subdivisão territorial, ou ainda o vegetal ou animal que fornece o principal alimento à comunidade. \ 109

Por vezes, o corpo da vítima é comparado a uma s~­ mente que tem de se decompor para germinar. _E_sta germinação e a restauração do sistema cultur~l d~mhcado pela crise anterior, ou a criação de um sistema inteiramente novo que, frequentemente, surge como o pr_imeiro_ alguma vez aerado, como se fosse uma espécie de nwençao da Huma~dade, são uma coisa só. «Se o grão não morrer antes de ser semeado, fica sozinho, mas, se morrer, dá mLútos frutos .» São tantos os mitos que afirmam o papel fundador do assassinato que mesmo Mircea Eliade, um mi~ó~ogo muito pouco dado a generalizações, julgava nece.ss,ano ?~r-lhe s atenção. Na sua Histoire des croyan.ces et des _1dees rel1g1:11ses , fala de um assassínio criador comum a muitas narraçoes de origem e mitos fundadores por todo o mundo. Neles está presente um tema cuja frequência pertur~a clarame~te ,º mitólogo: um fenómeno de alguma man~i_ra «transnutologico», mas fiel à prática puramente descntiv_a, nunca,_ tan~o quanto se possa saber, Mircea Eliade sug~nu a explicaçao universal que me parece possível que lhe seia dada.

1

* * * A doutrina do assassínio fundador não é só mítica, mas também bíblica. No Livro do Génesis, ela e o assassinato de Abel pelo seu irmão Caim são uma ~ó ~oisa. O rel_ato de~te assassínio não é um mito fundador, e a mterpretaçao bíblica de todos os mitos fundadores. Narra-nos a fundação sangrenta da primeira cultura e as suas consequências, q~1e constituem primeiro ciclo mimético representado na Bíblia. . . 0 Como é que Caim procede para fundar a primeira cultura? O texto não coloca esta questão, mas responde-lhe de maneira implícita só pelo facto de se limitar ~ dois. te~~s: o primeiro é o assassinato de Abel; o segLmdo e a atnbuiçao a

Caim da

p~imeira

cultura que se situa, claramente, no prolonga~1.e~to d:rec~o do assassínio que acabam por ser as consequenoas nao vingadoras, mas rituais, desse mesmo assassínio. A sua violência inspira aos assassinos um temor salutar. Faz-lhes c?mp~eender a natureza contagiosa dos comportamentos 1111meticos e entrever possibilidades desastrosas no futuro: agora que matei o meu irmão, diz Caim, «O primeiro a encontrar-me matar-me-á » (Génesis 4, 14). Esta última expressão: «O primeiro a encontrar-me matar-me-á», mostra bem que, naquela altura, a raça humana não se _limita~a a Caim e aos seus pais, Adão e Eva. A palavra Caim ~e~i&na a primei,ra comunidade reunida pelo primeiro assassm10 fundador. E por esta razão que existem muitos potenciais assassinos e que é preciso impedi-los de matarem. O a~sassíi:io ensina ao(s) assassinos(s) uma espécie de sa~edona, uma pr_u_dência que modera a sua violência. Aproveitando a tranquilidade, Deus promulga a primeira lei contra o assa_ssínio: «Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais» (Genesis 4, 15). A fundação da cultura caimnista é esta primeira lei contra o assassínio: sempre que alguém matar, sete vítimas ser~o imoladas em honra da vítima original, Abel. Ainda mais do que o carácter esmagador da retribuição, é a natureza _ritual da séptupla imolação que restabelece a paz, é 0 enraizamento na tranqLúlidade suscitada pelo assassínio original, é a comunhão unânime da comunidade na rec~rdação desse mesmo assassínio. A lei contra o _as~assínio não é mais do que a repetição des~~- O que a distmgue da vingança selvagem é mais o espinto do que a natureza intrínseca. Em vez de ser uma repetiç~o- vi~gadora, que suscitaria novos vingadores, é uma repetiçao ntual, sacrificial, da urúdade forjada na unanimidade, uma cerimónia na qual participa a comurúdade inteira. Por t~~ue _e precária que possa parecer a diferença entre repetiçao ntual e repetição vingadora, nem por isso deixa de

1Pa yot, 1978, P· 84.

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ter uma enorme importância, pois está repleta de todas as diferenciações ulteriores. É a invenção da cultura huma__na. Há que evitar ler na história de Caim uma «co1:11u~ao~> entre o sacn·fíc1·0 e a pena de morte ' como se as duas institmções preexistissem à sua invenção. A l~i que na_sce da sensatez suscitada pelo assassínio de Abel e ,ª _matnz comum d~ todas as instituições, é o fruto do assass1ruo de ~bel apreen dido no seu papel fundador. O assassí~~ col~ct1~0 torna-se fundador por intermédio das suas r~petiçoes ntua1s. , . Não é apenas a pena capital, a lei con~a .º a~sassiru~, ~ue deve conceber-se como domesticação e hmitaçao da vi?lei:cia selvagem pela violência ritual, são todas as grandes instituições humanas. . . , · Tal como observa James Williams, «O sinal de Caim e o sina1 2 da civilização. É o sinal do assassino protegido por Deus» . * * * A ideia do assassínio fundador encontra-se uma vez mais nos Evangelhos. É pressuposta por duas passagens pa~alelas em Mateus e Lucas que referem uma série de assassinatos análogos à Paixão e que remontam à «fundação do mtmdo». São Mateus fala dos «assassinatos de tod~s ~s profetas desde a fundação do mundo». São Lucas contnbm :º~uma correcção suplementar: «desde Abel, o Justo ». O ultimo da série é a Paixão, que se assemelha a todos os ~ue, ~ precedem. Trata-se da mesma estrutura de impulso m1metico e de mecanismo vitimário. A alusão de Lucas à morte de Abel é importante p~r pelo menos duas razões. A primeira é que devia desacreditar de uma vez por todas a tese demasiado obtusa que faz das observações evangélicas sobre os assassinatos d~s pr~f~tas ataques contra 0 povo judeu, manifestações de «anti-semitismo». 2 Tlze Bible, Violence nnd t/1e Sncred, Harper, São Francisco, 1991, P· 185.

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Uma vez que o povo judeu ainda não existia na época de Caim e Abel e que este era considerado como o primeiro dos profetas colectivamente assassinados, as mortes dos profetas não podem, com toda a evidência, ter a ver apenas com o povo judeu e não é para atacar os seus compatriotas que Jesus insiste nestas violências. Tal como sempre, as suas afirmações têm mna significação universalmente humana. A segunda razão que torna a alusão de Abel deveras importante, no contexto da «fundação do mundo», é que constitui um regresso ao que diz o Livro do Génesis na história de Caim, tuna adopção deliberada da tese que acabo de expor, a sabe.r que a primeira cultura humana vê as suas raízes num p'r irneiro assassínio colectivo, análogo à crucificação. O que prova que é exactamente disto que se trata é a expressão, comum a Mateus e Lucas, «desde a fundação do mundo». O que se produz desde a fundação do mundo, quer dizer desde a fundação violenta da primeira cultura, são assassínios sempre análogos à crucificação, fundados no mimetismo, assassínios fundadores por consequência, por causa do equívoco a respeito da vítima, causado pelo mimetismo. As duas frases sugerem que a série de assassínios é extremamente longa, pois remonta à fundação da primeira cultura. Este tipo de assassinato, comum ao de Abel e à crucificação, desempenha um papel fundador em toda a História da Humanidade. Não é por acaso que os Evangelhos comparam este assassinato à katabole tau kosmou, a fundação do mundo. Mateus e Lucas sugerem que o assassínio tem um carácter fundador, que o primeiro assassínio e a fundação da primeira culttu-a são a mesma coisa. Há no Evangelho segundo São João urna frase equivalente às de São Mateus e São Lucas e que confirma a interpretação que lhes acabo de dar. É a frase que se encontra no centro do grande discurso de Jesus sobre o Diabo e que já foi 113

comentada no capítulo rn. É, também ela, uma definição do que Mircea Eliade chama o assassínio criador: Desde 11 origem [o Di11bo] foi um /10micid11 .

A palavra para origem, início, começo, é arche. Não se refere à cr~ação ex n.ihilo que, por ser divina em absoluto, não pode fazer-se acompanhar de violência. Refere-se, forçosamente, à primeira cultura humana. Assim, a palavra arche tem o mesmo sentido que katabole tau kosm.011 nos Evangelhos sinópticos, trata-se da fundação da primeira cultura. Se a relação do assassínio com o começo fosse fortuita, significaria simplesmente que, desde que há homens sobre a Terra, Satanás os teria empurrado para o assassínio e São João não teria mencionado a palavra «origem» a propósito do primeiro assassinato, assim como.São Mateus e São Lucas não teriam relacionado a h.mdação do mundo com o assassínio de Abel. Estas três frases, por um lado, as de Mateus e Lucas, por outro lado, a de João, significam a mesma coisa: chamam-nos a atenção para o facto de que, entre a origem e o primeiro assassinato colectivo, há uma relação que não é fortuita. O assassínio e a origem constituem uma coisa só. Se o Diabo foi homicida desde a origem, isto quer dizer que também o é na continuação dos tempos. Todas as vezes que surge uma cultura, começa por este mesmo tipo de assassinato. Assim, temos uma sequência de assassínios todos análogos à Paixão e todos eles fundadores. Se o primeiro foi a origem da primeira cultura, os que se seguiram deverão ser a origem das culturas subsequentes. Tudo isto encaixa na perfeição com o que vimos mais atrás sobre Satanás ou o Diabo, a saber, que este é uma espécie de personificação do «mau mimetismo», quer no que diz respeito aos aspectos conflituais e desagregadores quer quando se trata dos aspectos reconciliadores e unificadores. Satanás, ou o Diabo, é quem sucessivamente fomenta a d~sordem, é o

se:neador de escândalos e aquele que, no paroxismo das cnses que ele mesmo provoca, lhes dá um final brusco ao e~pulsar a desordem. Satanás expulsa Satanás por inte ,d10 d as v1' f ima,s mocentes . rme que sempre conseguiu condenar. Uma ;ez que e o mestre do mecanismo vitimário, Satanás é tambem_o mestre da cultura humana, que não teve outra origem o a nao t ser 1o homicídio. Em {utima análise é o Diabo ou, P - r o~1 ras pa avras, o mau mimetismo que está na ori em nao ' m de tod a e qua lg . 1 soda cultura caimnista mas tarnbe quer Clutura humana . I

* * * Como é qu~ se deve interpretar a ideia do assassínio fun~ador? Corno, e que pode uma ideia como esta concretizar-se? orno podera ela deixar de parecer fantasista e até mesmo absmda? Sabemos que ?.assassínio age como uma espécie .de calmante, de tranq~uhzante, pois os homicidas, quando satisfazem. o seu ªfehte de violência à custa de urna vítima não pertmente, sao de forma rntúto sincera persuadidos de que desembaraçam ~ comunidade do responsável pelos seus ~~les. Mas esta ilusão não pode, por si só, bastar para \1stificar a crença na virtude fundadora do assassínio acerca da qual acabámos de constatar que é comum ~ão só a tod_os os grandes mitos fundadores, mas também a~ Génesis e, fmalmente, aos Evangelhos. A interrupção temporária da crise não chega para explicar ª , c~ença d~ tantos religiosos no poder fundador do homic1d10 colechvo, no _seu poder, não só de fundar comunidades, ma~ de lhes ga.ranhr urna organização durável e relativamente estavel. O efeito reconciliador do assassínio por surpreendente · nao - consegue prolongar-se durante ' gerações . q ue seJa, Sozmh h · , d · , . . - o, o onuCI io nao e capaz de criar e perpetuar as ins-· htmçoes culturais.

cr~nça

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114

I

Existe uma resposta satisfatória para esta questão que acabo de colocar. Para a descobrir, é preciso, evidenteme~te, recorrer à primeira de todas as instituições humanas apos o assassínio colectivo, a saber a repetição ritual do mesmo. De um modo breve, passalTtOS a questionarmo-nos sobr~ a forma como se coloca, na minha opinião, a questão da ongem das instituições culturais e das sociedades humanas. .. Desde a época das Luzes que esta questão se define em termos ditados pelo racionalismo mais abstracto. Concebe-se os primeiros homens como se fossem pequenos Descartes no . conforto dos seus quartos e diz-se que conceberam forçosamente de forma abstracta, puramente teórica para começar, as instituições que desejariam ter para si. Em seguida,. ao passarem da teoria à prática, ~ste~ primeiros homens tenam realizado 0 seu projecto institucional. Portanto, n~nhuma instituição pode existir sem uma ideia prévia ~ue guia a sua elaboração prática. É esta a ideia que determina as culturas · reais. Se as coisas se tivessem realmente passado deste modo o religioso não teria tido qualquer papel na génese das i~sti­ tuições. E, com efeito, no contexto racionalista que contm.ua a ser 0 da etnologia clássica, o religioso não desempei:-ha qualquer papel, não tem qualquer utilidade. Quando mmto~ é supérfluo, superficial, está a mais, por outras palavras, e

supersticioso. . . . Como explicar então a presença uruversal do religioso perfeitamente inútil no centro de todas as instituições? Quando se coloca esta questão num contexto racionalista, só ~á .uma resposta verdadeiramente lógica, a de Voltaire: o religioso teve que parasitar as instituições úteis ~elo lado de fo~a. Foram os padres «pérfidos e ávidos» que .ªs inventaram a fim de explorarem em seu proveito a credulidade do bom povo. , Esta expulsão racionalista do religioso - na nossa epo~a, tentamos velar-lhe um pouco o simplismo, mas no essenoal _ continua forçosamente a dominar a antropologia contem116

porânea. Não é possível repudiá-la com franqueza sem se transformar a omnipresença dos ritos nas instituições humanas num tremendo ponto de interrogação. As ciências sociais modernas são, na sua essência, anti-religiosas. Se o religioso não fosse uma espécie de erva daninha, um problema irritante mas insignificante, o que é que podena fazer-se com ele? Corno, ao longo de toda a História, foi o elemento inalterável nas diversas instituições em transformação, não pode renunciar-se à pseudo-solução que faz dele urna pura nulidade, um parasita insignificante que para nada serve, sem se ser confrontado com a possibilidade inversa, ba.stante desagradável para a anti-religião moderna, aquela que faria dele o centro de qualquer sistema social, a verdadeira origem e a forma primitiva de todas as instituições, o fundamento universal da cultura hurnana3. Esta solução é tanto mais difícil de se ne Óo-ar quanto desde os tempos áureos do racionalismo, se conhece melhor as sociedades arcaicas e, em muitas delas - é impossível não o constatar-, as instituições que as Luzes consideravam corno indispensáveis à Humanidade não existem; no seu lugar existem apenas ritos sacrificiais. Sob o ponto de vista dos ritos, pode distinguir-se grosso modo três tipos de sociedades. Em primeiro lugar, 1) urna sociedade em que o rito desapareceu por completo ou quase: a nossa sociedade, a contemporânea. Depois, existem, ou melhor existiam outrora, 2) sociedades nas quais o rito d~ alguma maneira acompanha e reitera todas as instituições. E aqui que o mito parece acrescentado a instituições que não necessitam dele. As sociedades antigas e, num outro sentido a sociedade medieval, inserem-se nesta I

3 Sobre a «estranha» a lergia da investigação moderna a toda s as formas de sagrado, ver a admiráve l reflexão de Cesareo Bandera no início de Tire Sncred Gnme. The R o~e of the Sncred i11 t/1e Genesis of Moder11 Litemry Fiction, Uni versity Park, Pens1lvarua, The Pennsylvania University Press, 1994.

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Os ritos ditos ~e passagem ou de iniciação baseiam-se, tal corno todos ?s n _tos, no sacrifício, na ideia de que toda a mudança radical e urna espécie de ressurreição enraizada na morte que a ~recede e que só ela pode repor a força vital N_u rna primeira fase, que é a «da crise », os postul~dos rnor~iam de algum modo na infância e, na segunda fase ressusci tavarn capazes ' do ravan te, d e ocupar o lugar que ' lhes . pertencia no_ mundo dos adultos. De vez em quando, nalgumas co~umda_des, ~contecia que um dos postulantes não ress~s.citava, nao saia vivo da prova ritual, o que era bom augur~o para to~os os_ outros postulantes. Via-se nesta morte ~1~ -~e~orç? providencial da dimensão sacrificial do processo uuciab.co.

categoria. É este tipo, erradamente concebido como universal pelo racionalismo, que serviu de base à tese do religioso parasitário. E, por fim, as. sociedades «muito arcaicas» que não têm instituições tal como as entendemos, mas que sempre tiveram ritos. E são as únicas instituições que têm. Os velhos etnólogos viam as sociedades arcaicas como as menos evoluídas, as mais próximas das origens e, não obstante, tudo o que foi dito para desacreditar a sua tese, prima pelo bom senso. Contudo, não podemos adoptá-la sem sermos irresistivelmente levados a pensar que não só o sacrifício desempenha um papel essencial nos primeiros ternpos da Humanidade, mas que poderia mLúto bem ser o motor de tudo o que nos parece especificamente humano no Homem, de tudo o que o distingue dos animais, de tudo aquilo que nos perrrúte substituir ao instinto animal o desejo propriamente humano, o desejo rrúmético. Se o futuro humano fosse, entre outras coisas, a aqLúsição do desejo mimético, seria evidente, para começar, que os homens não podiam passar sem as institLúções sacrificiais que reprimem e moderam o tipo de conflito inseparável da hominização. Muitos observadores já constataram que, na s sociedades exclusivamente rituais, as sequências rituais, sacrificiais, já desempenham, até um certo ponto, o papel que incumbirá, mais tarde, a todas as instituições que temos o hábito de definir a partir da sua função concebida de forma racional. Apenas um exemplo, os sistemas de educação: não existem no mundo arcaico, mas o ritos di~os de passagem ou de iniciação têm um papel que os prefiguram. Os jovens não se iniciam em segredo nas suas próprias culturas; entram por intermédio de procedimentos sempre solenes e que dizem respeito à commudade inteira. Estes ritos frequentemente ditos «de passagem» comportam «provas» muitas vezes penosas que lembram, inelutavelmente, os nossos exames ditos «de passagem», as nossas «provas» de 12.º ano, etc. A observação destas analogias é tão banal quanto possível.

Por força de serem repetidos, os ritos modificam-se e transformam-se em práticas que parecem elaboradas múca;ent~ ~ela razão .h umana, ao passo que, na realidade, derivam ore ~g1oso. O~ ntos surgem sempre num dado momento em que ha uma cnse a resolver e com razão An tes d . sacrºf' · ' · e mais, os i ic10s sao a resolução espontânea, pela violência unâ-

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Diz:r que estes_ rit~s «substituem» os nossos sistemas de e~ucaçao e ~utras instituições é pôr o carro à frente d b .

S_ao, cer~amente, as instituições modernas que substit~:rno~s~ ntos apos terem coexistid_o durante rnLúto tempo. d Tudo suge~e. que os ntos sacrificiais são primordiais em to . os os ~omuuos, em toda a história real da Humanidade Existem ntos de execução capital, o apedrejamento do Levítico. P?~ ex~mplo, ritos de morte e de nascimento, ritos matrimo~ ruais, ntos_d: caça e ~e pesca nas sociedades que se dedicam a estas ac~ividades, ntos agrícolas nas sociedades que praticam a agncu1tura, etc. . . Tudo aqLúlo que chamamos as nossas «instittúções culturais» se reduz. ' originalrnen te, a comportamentos rituais de t~1 rno~o . polidos pelos anos que perderam as suas conotaçoes religiosas e se definem em função do tipo de . «cnse» que se destinam a resolver.

----------------~ nime, da todas as crises que se apresentam inopinadamente na existência colectiva. As crises são não só as discórdias miméticas mas também a morte e o nascimento, as mudanças de estação, a fome, os desastres de todos os géneros e ainda mil e uma outras · coisas que, com razão ou sem ela, inquietam os povos arcaicos; e é sempre recorrendo ao sacrifício que as comunidades tentam acalmar as suas angústias. *

* * Por que é que certas culturas enterram as suas vítimas debaixo de amontoados de pedras aos quais dão muitas vezes uma forma piramidal? Para explicar este costume, pode ver-se nisto um subproduto dos apedrejamentos rituais. Apedrejar uma vítima é cobrir o seu corpo de pedras. Quando se atira muitas pedras a um vivo, não só este morre como as pedras tomam, naturalmente, a forma troncónica do «túmulo» que se encontra, mais ou menos geometrizada, nas pirâmides sacrificiais ou funerárias de numerosos povos, a começar pelos Egípcios, cujos mausoléus têm, primeiro, a forma de uma pirâmide truncada e, só mais tarde, terminada em ponta. O mausoléu foi inventado a partir do momento em que o costume de cobrir os cadáveres de pedras se dift.mde na ausência de qualquer apedrejamento. Como conceber a origem ritual do poder político? Por intermédio daquilo a que se chama a realeza sagrada, a qual deve ser pensada, também ela, como uma modificação, ínfima no início, do sacrifício ritual. Para se fabricar um rei sagrado, escolhe-se uma vítima inteligente e autoritária. Em vez de a sacrificar de imediato, retarda-se a sua imolação, deixa-se cozer lentamente a vítima no caldo das rivalidades miméticas. A autoridade religiosa que lhe confere o seu futuro sacrifício vai permitir-lhe não «assumir» um poder que ainda não existe, mas, literalmente,

forjá-lo · A veneraçao - que 0 seu futuro sacrifício · · forma-se pouco a pouco em força «política>)'~ msprra transPode comparar-se a dimensão .. com uma substância mate propriamente religiosa ritos se libertam com o rna, dcom urna placenta da qual os passar o tempo p remem instituições desr1·tua liza d as. As repetiç ara se- transforma, · d · IC1os são as numerosas lambidelas , oes os s. a cnfgrosseirona. da ursaª sua progemtura O verdadeiro guia da Hurnanid d - , carnada mas o rito As . , ~ e nao e a razao desen' · incontave1s repet' passo a passo as institui ões içoes ~odelam a tarde terem inventado eçx ·7 ~lueNos hom.e ns acreditarão mais nz 1 1 o. a reahdad f · · · que as .i µventou para eles. e, 01 o rehg10so As sociedades hrnnanas são obra d . . , . que o rito disciplinou h os processos rrumet1cos · 0 s omens sabem muito b . ommam as suas rivalidades mi , . em que nao d meios. É por esta razão que at 'b mehcas pelos seus próprios mas, que as tomam por d ' . dn duem este controlo às suas víti1vm a es Numa . mente positiva, estão errad . . . perspectiva estritatêm razão. Penso que a Hum~~;~~m ~efilnht1ddo mai.s .profundo, ee a o rehg1oso.

* * * As nossas instituições não odem . ser o resultado de P ser outra c01sa a não um 1ento processo d 1 . em conjunto com uma , . e secu anzação que cionalização» formam espeo: de. «racionalização» e de «funuma so c01sa Há · t0 . gação moderna teria ident'f d · mm que a mvestina realidade, não se tives:e1~e· o~ st~~ v~rdadeira génese se, dade irracional pelo rel · . ixa o irru tar pela sua hostili, ig1oso.

E . tuiçõ!sr~~:a~:: :ep~~c:~e. a po~ssi?ilidade de todas as insti'

nsequencia a própria Hwnanidade

4 Sobreª- questão das realezas sagrqdas em era] . , e de modo ma is particular no Sudao, ver Simon Simonse Kings if D' g , o isnster, E. J. Brill, Leida, 1992.

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serem modeladas pelo religioso. Com efeito, para escapar ao instinto animal e aceder ao desejo com todos os perigos de conflito mimético que o envolvem, o Homem tem necessidade de disciplinar o seu desejo, e apenas pode fazê-lo por intermédio dos sacrifícios. A Humanidade sai do religioso arcaico por meio dos «assassínios fundadores» e dos ritos

A partir do momento em ue a .. , passou um certo limite d ~ . cnatura pre-humana ultra. e rrun1ehsn10 e e . m que mos arumais de protecç-ao contra a v1ol d os mecanis(dominance patterns) , os cor:úl.itos miméti . encia se f esmoronaram sar danos entre os hom M cos iveram que cauens. as estes in · produziram o seu antídoto ao . ecarusmos depressa mários d .. d d . susotaren1 mecanismos v·t·' iv1n a es e ntos sacr·f · . . que n i iciais , d 1i ram a v10lencia no se·10 d os arupos h ' ao so mo eracanalizaram as eneraias em ºd. - llffia~o~, mas também nização. o uecçoes positivas, de humaA



que de deles derivam. A vontade moderna de minimizar o religioso poderia muito bem ser, paradoxalmente, o supremo vestígio do próprio religioso sob a forma arcaica, que consiste, acima de tudo, em guardar uma distância respeitosa em relação ao sagrado, um último esforço para dissimular o que está em jogo em todas as instituições humanas, o evitar a violência entre os membros de uma mesma connuudade. A ideia do assassínio fundador passa por uma invenção bizarra, uma aberração recente, um capricho de intelectuais modernos, estranhos quer à razão quer às realidades culturais. E, no entanto, esta ideia é comum a todas as grandes narrações de origem, à Bíblia e, finalmente, aos Evangelhos. É mais verosínlil do que todas as teses modernas sobre a origem das sociedades, as quais se resumem todas a uma ou outra forma da mesma absurdidade inextirpável, o «contrato social» . · Para se reabilitar a tese religiosa do assassínio fundador e para a tornar plausível no plano científico, basta juntar-se a este assassínio os efeitos cumulativos dos ritos, levando em conta a plasticidade dos rn.e smos, mm1a duração temporal extremamente longa. A ritualização do assassúlio é a primeira instituição e a mais fundamental, a mãe de todas as outras, o momento decisivo na invenção da cultura humana. A força de hominização é a repetição dos sacrifícios num espírito de colaboração e harmonia ao qual devem a sua fecundidade. Esta tese dá à antropologia a dimensão temporal que lhe falta e está de acordo com todas as religiões sobre

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Uma vez que os nossos dese· . , . tam-se e aarupam-se e . JOS sao numetICos, estes inu· , , o m sistemas de 0 . os d posiçao obstmados estereis e contaaiosos· o · escan a1os Q d . . ' e concentran1 meral1ll"a . . uan o se multiplicam ' o ·' in as comurud d . agudizam cada vez m . , ª es em cnses que se . ais, ate ao mon1ent 0 , . que a polarização tmâe rume · em contra uma , · parox1stico ,· o escandalo tmiversal o . b uruca vitima fornece . ' «a cesso de fi a v10lência e recompõe . xaçao», que apazigua 0 conitmto descomposto A , _ . , . . exasperaçao das rivalid d as sociedades humana d . a es n~u~etICas teria impedido · s e se constitmrem x1smo, não tivesse prod uzi.d o o seu pró se, · no seu , . parooutras palavras se m . pno remed10, por · ' 0 ecarusmo v 'f , · . bode expiatório n ão h . i in1ano, ou inecarusn10 do ' e ouvesse intervind A . . que este mecanismo d 1 o. ssim, fm preciso volta do que liaeiros ;es~ ~ua. pouco mais vemos à nossa ciliado as cor:unidad g10s, dt1vesse verdadeiramente recon. es e as otasse de d · . mais tarde institucional , q ue U1es aara ntm . mna or em ntual, temp~ e urna relativa estabilidadeo Sim a p~rrnanencia no nas tem mesmo de ser f'lh d . . ~as sooedades huma. , · 1 as o religioso O sapzens tem de ser filho d e formas . . amda r d.· propno homo u imentares do processo que acabo de de screver. A

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as origens das sociedades. 122



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VIII

AS FORÇAS E OS PRINCIPADOS

O anterior capítulo mostrou-nos que a Brblia e os Evangelhos estãd, no essencial, de. acordo com os mitos na atribuição da fundação e do desenvolvimento das sociedades humanas aos efeitos cumula ti vos dos «mecanismos vitimários» e dos ritos sacrificiais. Por causa da sua origem violenta, satânica ou diabólica, os Estados soberanos, no seio dos quais surgiu o cristianismo, são objecto de uma enorme desconfiança por parte dos cristãos que para os chamarem, em vez de recorrerem aos seus nomes habituais, em vez de falarem de Império Romano, por exemplo, ou de tetrarquia herodiana, o Nov~ Testamento recorre, a maior parte das vezes, a tun vocabulário específico, o das «força s e principados». Se examinarmos os textos evangélicos e neotestamentários em qu~ se fala das forças, constata-se que, implícita ou explicitamente, estas estão associadas ao tipo de violência colectiva de que tenho vindo a falar, o que é bastante compreensível se a minha tese estiver conecta: esta violência é o mecanismo fundador dos Estados soberanos. No início dos Actos dos Apóstolos, Pedro aplica à Paixão uma frase do segundo salmo: «Os reis da Terra apresentaram-se e os seus chefes coligaram.-se contra o Senhor e contra o Seu Ungido.» 125

- ......._____________ É preciso não se conclLúr que Pedro leva à letra a ideia de

urna participação de «os reis da Terra » na crucificação, pois sabe perfeitamente que a Paixão não chamou a atenção do mundo inteiro, pelo menos não nesta altura. Não exagera a importância propriamente his tórica do acontecimento. A citação sigrúfica que, para lá do incidente por certo menor, Pedro identifica urna relação mui to especial da Cruz com as forças em geral, urna vez que estas têm origem em assassírúos colectivos análogos ao de Jesus. Sem serem a mesma coisa que Satanás, as forças são sempre suas tributárias, pois todas elas são tributárias dos falsos deuses por ele engendrados, quer dizer pelo assassírúo fundador. Por isso, não se trata aqui de religião num sentido puramente individual em que a entendem os modernos, mas, sim, da crença estrita·rnente pessoal à qual o rntmdo moderno se esforça por reduzir o religioso. O que está em causa são os fenómenos sociais gerados pelo assassírúo ftmdador. O sistema de forças, com Satanás por detrás dele, é um fenómeno material, positivo e, simultaneamente, espiritual, religioso num sentido muito particular, ao mesmo tempo eficaz e ilusório. É o religioso mentiroso que protege os homens da violência e do caos, por intermédio dos ritos sacrificiais. Este sistema tem origem numa ilusão, mas a sua acção no mundo é real na medida em que a falsa transcendência pode fazer-se obedecer. O que perturba é o enorme número de denorrúnações que os autores do Novo Testamento inventam para designarem estas entidades equívocas. Ora são chamadas forças «deste mundo », ora, pelo contrário, forças «celestes», e também «soberanias», «tronos», «dominações», «príncipes do império do ar», «elementos do mundo», «arcantes», «reis», «príncipes deste mundo», etc. Porquê um vocabulário tão vasto e, em aparência, heterogéneo? Ao examiná-los, depressa se constata que estas denominações se dividem em dois grupos. Expressões tais corno «forças deste mundo», «reis da Terra », «principados», etc., afir-

n;am o carácter terrestre das for as . caem baixo, no nosso mund Pçl , a sua realidade concreta Ü. e Ü CO t , • como «príncipes do . , . n rano, expressoes tais impeno do ar» «fo l . . msistem na natv,.eza n ao - terrestre u ·' · rças ce .es tes »' etc ., Trata-se, com certez d 'espmtual, destas entidades. os casos. As forças ' ditasª' las mesmas entidades em ambos estes em nad d. . f orças deste mLmdo p ce A d . ªse istmguem das . orque OIS grup d d . Sera, porque os autores d N . os e enommações? o ovo Testame t certo o querem dizer? M .t no nao sabem ao · UI o pelo co t , · , porque sabem penso q . n rano, e precisamente ' , ue osci1am co t duas terminologias. ns antemente entre as Estes autores têm uma consc· A . e ambígu~ natureza da ·1 d iencia bastante clara da dupla · qm o e que falam o . · d ef mir são as combinaçõe d f · que procuram tual que constituem as sobs e . orça material e força espiri, e eramas co . colectivo. m ongem no assassínio I

A esta realidade complexa, os autor nome de forma ta-o , 'd es querem dar-lhe um rapi a e económi que, se multiplicam as fo' ul , ca quanto possível. Penso rm as e porque tl b o te~ os deixam insatisfeitos. , os rest tados que . Dizer que as forças são mundan , . . . lidade concreta neste d as ~ insistir na sua reamun o terreno E bl. . d imensão essencial · d · em su mhar uma . ' am a que em d t . religiosa, que apesar de i·1 , . . e nmento da outra, a . d emasiado reais para se usona ' repito- o, se consegue efeitos p 1 , . rem escamoteados. e o contrano dizer ue f na sua dimensa_o' . 1. . q as orças são «celestes» é insistir re igiosa no p t ' . sobrenatural do qual gozam' os res igio sempre um pouco homens, mesmo nos nossos d . tro~os e os so~eranos entre os adulação que reina J°Ltnto d ias. emo-lo ate no espírito de os nossos go pouco que nos impressionem E t vernos, por muito de modo inevitável tud . s e segundo vocabulário apaga ooqueoprime· d . Como definir numa , l iro estaca e vice-versa. so pa avra 0 p d . d ara oxo de organizaçoes tão reais mas e , , maiza as numa t A . e, porem, eficaz? Se as f A . ranscendencia irreal orças tem mmtos nomes, é por causa A

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deste paradoxo const~tutivo, desta :pt~:~::rd~ei::::r;~7: linguagem humana nao consegue e ples e inequívoca. mca assimilou isto que o Novo A linguagem humana m : n-ao dispõe dos recursos por consequenoa, . d Testamento iz e, . . f de coligação que a falsa necessários para exp~1mir a ~rça 1 material não obstante ' transcendência possui no mtm. ore~', . . d atureza imagmana. a sua falsida e, a sua n · blema que se coloca aos Ao não compreen~~.rem o~ ~~dernos lêem, voluntariaautores neotestamentanos, f - todo o pensante no tema das forças, toda a supers iEçao, lhos me ' , dese1am . tra r nos vange . , ·coque encon mento magi A



* * * re associadas a Satanás, apesar Apesar de estarem sempd deste as forças são suas de se basearem na tra~scen :n~ia o ~esmo sentido que . , · não sao satamcas n tnbutanas, mas . t r se à falsa transcendenSatanás. Longe de pron:rare~ JlU: ~·~a com Satanás, os ritos · 1 a de aspirarem a uruao rrus i , . oa, on0 e , 1 personagem a distancia, esforçam-se por manter este ter.rnve da commudade. f por~~~nps:~:~~o~r:sso, qualificar-se as forç!s sirr:_ples~en!: . , . o retexto de que sao «mas»' nao de «diabolicas» e, com P . E' transcendência em lhes por sistema. a deve desob e d ecer. s ntmca sã estranhas a que assentam que é diabólic!. As for~: condená-las de olhos Satanás, é um fact~, mas nao s~~;do estranho ao Reino de fechados, tanto mais que, num t ç-ao da ordem É o que - · d· , eis à manu en · Deu~, sao ir: ispensav . a este res eito. Se as forças exisexphca a atitude da Igreia . p [.. desempenhar . ul , r ue tem uma iLmçao a tem, diz Sa? Pa o, e po ~1s O a óstolo é demasiado realista e são autonzadas por De . Rp enda aos cristãos que às forças ecom para declarar ?uerra . ie lhes prestem honras portes as respeitem e mesmo qt . f, es d . .. m de contrário à verdadeira e. quanto que na a ex11a A



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* * O Império Romano é uma força por excelência no tmiverso onde surge o cristianismo. Portanto, tem por base um assassínio fundador, um assassínio análogo ao da Paixão, uma espécie de «linchamento». À primeira vista, esta doutrina parece inverosímil, absurda. O Império é de fundação demasiado recente e artificial, dizemos, para que possamos reportá-lo a uma coisa tão arcaica como o «assassínio h:mdador». E no entanto ... Conhecemos bastante bem os desenvolvimentos históricos que levaram ao nascimento do Império Romano e ·.somos obrigados a constatar que coincidem de modo aciritável com a ideia evangélica deste género de fundação. Todos os sucessivos imperadores vão buscar a sua autoridade à virtude sacrificial que emana de mna divindade da qual usam o nome, o primeiro César, assassinado por muitos homicidas. Por consequência, tal como qualquer monarquia sagrada, o império assenta numa vítima colectivamente divinizada. Há nisto qualquer coisa de tão perturbador, de tão impressionante, que é impossível dizer que se trata de uma pura e simples coincidência. Shakespear, que não era pioneiro neste domínio, recusou aceitá-lo. Em vez de minimizar este dado fundador, em vez de apenas ver nisto uma medíocre propaganda política tal como fazem tantos historiadores modernos, o dramaturgo, sem dúvida porque tem uma consciência aguda dos processos miméticos e da maneira como se resolvem, e também porque é um leitor incomparável da Bíblia, centrou o seu Júlio César no assassínio do herói e definiu de forma mtúto explícita as virtudes fm1dadoras e sacrificiais de um acontecimento que ele associa e opõe à sua contrapartida republicana, a expulsão violenta do último rei de Roma. Uma das passagens mais reveladoras é a explicação que César faz do sonho sinistro na noite que precede o seu assas129

sínio: o intérprete anuncia de modo explícito o carácter fundador, ou melhor refundador, deste acontecimento:

A vossa estátua a cuspir por tantos canais o sangue Em que tantos Romanos se banhavam a sorrir Significa que a grande Roma beberá Vosso sangue regenerador, que grandes homens se empurrarão Para nele tingirem as suas relíquias e insígnias. (II, 2, 85-89)

O culto do imperador é uma continuação do esquema antigo do assassínio ftmdador. A doutrina imperial é, decerto, tardia e, sem dúvida, demasiado consciente de si própria para não comportar algum artifício, mas aqueles que a conceberam sabiam com toda a evidência o que faziam. A sua obra foi eficaz: a História que daí resultou provou-o.

«transcendental » A

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:~:~~~~!:~i~5d::.:E~'.;;so :i:~:~ t~a~:v:l:-::::~~~jv: ~:~~

obedeçam.

ros da comurudade a respeitem e lhe

Por legíti.ma que seja a aproximação a Durkheim pa ce-me excessivo defü · , re defendo Nur-se como «durkheimianas» as teses que f . ao se ei:contra em Durkheim nem o ciclo mimé1co, nem o mecarusmo da vítima única . questão que passo a abordar . / ~en:, s~b1etudo, a

entre as religiões arcaicas e o j~1~a~:o~~=~1~.nc1a insuperável

* * * Para se compreender melhor a concepção neotestamentária das forças, pode-se compará-la à, na minha opinião, melhor teoria antropológica do social, a «transcendência social» de Durkheim. O grande sociólogo identificou nas sociedades arcaicas uma fusão do religioso e do social que se aproxima do paradoxo constitutivo das forças e dos principados. A tmião das duas palavras, «transcendência » e «social», foi bastante criticada. Os espíritos apaixonados pelas ciências exactas acham que a união trai estas últimas em proveito do religioso. Os espíritos religiosos, pelo contrário, vêm-na como uma traição para o religioso em proveito do cientismo. Antes de se criticar, é preciso, primeiro, tentar compreender o esforço de um pensador que procura ir além das abstracções gémeas dos teóricos do seu tempo e do nosso. Faz o que pode para aceder ao problema que coloca no estudo das sociedades a combinação de imanência real e de força

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TERCEIRA PARTE '

O TRIUNFO DA CRUZ

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SINGULARIDADE DA BÍBLIA

Actualme~te,

os críticos dos Evangelhos já não procuram demonstrar que os Evangelhos e os mitos são análogos, idênticos, intermutáveis. Longe de os perturbarem, as diferenças enchem-nos de satisfação e nada mais vêem. São as semelhanças que, pelo contrário, são suprimidas. Se só existirem diferenças entre as religiões, estas formam apenas uma (mica e vasta indiferenciação. Deixa de poder dizer-se se são mais verdadeiras ou mais falsas do que um conto de Flaubert ou Maupassant. Entre duas obras de ficção, é absurdo considerar-se uma mais verdadeira do que outra. Esta doutrina seduz o mtmdo contemporâneo. As diferenças são objecto de uma veneração mais aparente do que real. Dá-se a impressão de as levar mtúto a sério, ao passo que, na realidade, não se lhes atribui a menor importância. As religiões passam todas por puramente míticas, mas cada uma à sua maneira, que é, obviamente, inimitável. Todos são livres de compararem o que lhes agrada no supermercado do religioso. Gostos e cores não se discutem. Os velhos etnólogos anticristãos pesavam de outra maneira. Tal como os cristãos, acreditavam nwna verdade absoluta.

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Para demonstrarem a vaidade dos Evangelhos, ac~avam por bem revelar, sabemo-lo, que estes últi~os se pareciam dema. d m os mitos para não serem miticos. sia Assim o co tal como eu, procuravam d emir f. · o d a do comum . , . 'e ao evange'l.lC o . Desei·avam-no de tal .forma consiao mihco . . derável que nenhuma diferença maior pudesse mtroduzu~e, se assim podemos dizer, entre os mitos e os Evan~~lhos. ra deste modo que tentavam demonstrar o carácter rmtico destes últimos. d b · que Estes investigadores laboriosos nLmc~ esco nr:m 0 · h a opinião tmham razao em procuravam, mas, na min lh se o b s t.inare m . O dado comum aos mitos e aos Evange os ,· t bemo-lo· é o ciclo mimético ou «sataruco», e a sequen exis e, sa · . d . d ·olência coleccia tripartida, primeiro, da cr.1s~, epo1s, a vi tiva e por fim, da epifania religiosa. . d' P;radoxalmente, era o seu anticristianismo que rmpe ia os velhos etnólogos de descobrirem todas as se_me_lh~nç~s entre os Evangelhos e os mitos. Mantinham-nas a distancia, , 'da com medo de serem novamente abocanhados sen1 d uvi d pelos Evangelhos. Ficariam claramente desonra os ,selos tivessem utilizado tal corno eu fiz nos três primeiros capi~1 os. Os Evangelhos são mais transparentes do que os ~~tos e espalham a transparencia a sua vo ltae'. pois são exphotos . ci-a eito do mimetismo, primeiro conflitual, depois recon . · , t.ico, pe11etrarn a opaciresp Ao revelarem o processo mime liador. . dade dos mitos. Pelo contrário, se nos basearmos nos mitos, nada aprendemos sobre os Evangelhos. . , .. Após termos identificado o ciclo rn1~er~co graças ao~ Evangelhos, encontrárno-lo facilmente, pnmeuo, no apedre ·arnento de Apolónio e, em seguida, em todos os cu~tos Doravante, sabemos que as arcaicas consistem, no essencial, em gerar o ciclo mirn~t=co co~ .ª ajuda dos mecanismos vitirnários e das s~1as re~etiçoes sacrifi~ ciais. Os velhos etnólogos segLúarn o rnetodo mver~o. Julga varn-se moralmente obrigados a basearem-se nos mitos para h

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~tico-rituais.

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atacarem os Evangelhos. Se invertessem ó processo, achavam que estavam a trair a própria causa. Os mitos expõem o mesmo processo mimético que os Evangelhos, certamente, mas, a maior parte das vezes, de forma tão obscura e baralhada que, se nos basearmos apenas neles, não chegamos a dissipar «as trevas de Satanás». Não parto dos Evangelhos para favorecer de modo arbitrário o cristianismo e rejeitar o paganismo. A descoberta do ciclo mimético nos mitos, longe de confirmar a velha crença dos cristãos na singularidade absoluta da sua religião, tornaa, aparentemente, mais improvável, mais indefensável que mmca. Se