Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos

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O L H A R E S

CONSELHO EDITORIAL Priscila Antunes (PRESIDENTE) Júnia Ferreira Furtado Eduardo França Paiva Eliana Regina Dutra Regina Horta Duarte

ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS DO SÉCULO XVIII: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA ATRAVÉS DOS TESTAMENTOS

ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS DO SÉCULO XVIII: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA ATRAVÉS DOS TESTAMENTOS EDUARDO FRANÇA PAIVA

Infothes Informação e Tesauro

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

ESCRAVOS E LIBERTOS NAS MINAS GERAIS DO SÉCULO XVIII: ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA ATRAVÉS DOS TESTAMENTOS

Coordenação de produção Joaquim Antonio Pereira Paginação Ray Lopes Capa Carlos Clémen

CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Cecilia de Almeida Salles Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara 1ª edição: julho de 2009 © Eduardo França Paiva ANNABLUME editora . comunicação Rua Martins, 300 . Butantã 05511-000 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754 www.annablume.com.br

Isso aqui ô ô é um pouquinho de Brasil yá yá ... Ary Barroso. Isto aqui o que é?

AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que das formas mais diversas contribuíram para o bom andamento deste trabalho. Agora, no momento de enumerá-las, receio estar me esquecendo de alguém. Então, entre outros, registro meu agradecimento ao meu orientador, Prof. Douglas Cole Libby, aos meus amigos Célio Macedo Alves, Ceres Prado, Darlan de Oliveira Bento, Euler José da Silva, Fernanda Falci R. Tunes, Lucy Gonçalves Fontes, Mônica Massara, Reinaldo Nunes Ribeiro, Robson França Paiva e Valmiki Vilela Guimarães. Aos professores, colegas e funcionários do Mestrado em História da UFMG, principalmente à Profa. Carla Maria Junho Anastasia. Aos funcionários do Arquivo Público Mineiro e do Museu do Ouro de Sabará. Aos meus familiares, principalmente meus pais, que souberam compreender a minha constante ausência. Agradeço, também, o apoio material recebido das Faculdades Integradas Newton Paiva e a bolsa de estudos concedida pela CAPES.

SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO DA 3ª EDIÇÃO

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A PRESENTAÇÃO

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INTRODUÇÃO – O SISTEMA ESCRAVISTA NA COMARCA DO RIO VELHAS: AS CARTAS DE ALFORRIA E A VIDA DOS LIBERTOS

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REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA DE TRABALHO

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CAPÍTULO I – DISCUSSÃO

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TESTAMENTOS E IMAGINÁRIO SOCIAL. AS DISPOSIÇÕES TESTAMENTAIS A RESISTÊNCIA NO ESCRAVISMO MODERNO: BIBLIOGRÁFICA A RESISTÊNCIA ESCRAVA

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CAPÍTULO II – CAMINHOS DA LIBERTAÇÃO

DAS

SOBRE AS FONTES: OS TESTAMENTOS E A TEMÁTICA DA RESISTÊNCIA NA HISTORIOGRAFIA

A SOCIEDADE ESCRAVISTA

EM

UMA REVISÃO

MINAS GERAIS: POPULAÇÃO NEGRA, ESTRUTURA

ECONÔMICA E MANUMISSÕES

00

AS DUAS FACES DA ALFORRIA

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CADERNO DE IMAGENS

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C APÍTULO III – A

MULHER NEGRA NA SOCIEDADE MINEIRA

ESCRAVAS E LIBERTAS

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A NOVA CONDIÇÃO SOCIAL: A LIBERTA

-

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CAPÍTULO IV – ALGUMAS

IMPRESSÕES SOBRE A SOCIEDADE MINEIRA

ATRAVÉS DOS TESTAMENTOS

00 00 00

PESSOAS, FAMÍLIAS E MORADIAS DÉBITOS, CRÉDITOS, PENHORES E DOAÇÕES ESCRAVOS: UMA AVALIAÇÃO GERAL

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OBSERVAÇÕES FINAIS

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

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ANEXO I – RELAÇÃO

DOS VALORES DE COARTAÇÕES , ALFORRIAS E

ARRESTOS A PARTIR DOS TESTAMENTOS INVESTIGADOS DA COMARCA DO DAS

RIO

VELHAS - 1720-1784

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ANEXO II – T RANSCRIÇÃO : APM/CMOP - CAIXA 4, DOC . 50 DOCUMENTAÇÃO NÃO ENCADERNADA DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS

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ANEXO III – TESTAMENTO DE BÁRBARA GOMES DE ABREU E LIMA (1735)

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ANEXO IV – TESTAMENTO COSME TEIXEIRA PINTO DE LACERDA (1769)

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ANEXO V – TESTAMENTO CUSTÓDIO BRANDÃO COELHO (1740)

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ANEXO VI – TESTAMENTO FRANCISCA PODEROZA (1742)

LISTA DE QUADROS

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Quadro dos habitantes de Minas Gerais, 1776

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Quadro dos habitantes de Minas Gerais, 1776 (Total de habitantes por comarca)

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Percentagem de escravos na população de Minas Gerais, 1786-1823

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População das principais vilas da capitania de Minas Gerais - 1808

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População livre e escrava em Minas Gerais - 1821

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Filhos ilegítimos entre testadores livres e libertos da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784. 153

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Família escrava entre os plantéis de testadores da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784

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Famílias escravas e processos de libertação a partir de testamentos da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784

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Regiões de origem e de procedência dos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784

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Estado civil dos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784.

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Escravaria dos engenhos de açúcar e de farinha pertencentes aos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784

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Origens dos escravos pertencentes aos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784. 259

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00 Distribuição de escravos entre os testadores/proprietários arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 00 Estrutura de posse de escravos entre os testadores/proprietários arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784

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LISTA DE ABREVIATURAS UTILIZADAS

APM/CMOP APM/CMS APM/SG cód. doc. f. MO/CPO-TEST oitav. r. v.

-

Arquivo Público Mineiro/Câmara Municipal de Ouro Preto Arquivo Público Mineiro/Câmara Municipal de Sabará Arquivo Público Mineiro/Secretaria de Governo códice documento folha Museu do Ouro/Cartório do Primeiro Ofício-Testamentos oitavas de ouro réis verso

APRESENTAÇÃO À 3ª EDIÇÃO

SOBRE MUDAR AS IDÉIAS E SOBRE A CONSTRUÇÃO DOS TEMAS: AUTOCRÍTICAS, ACERTOS E REEDIÇÕES Não obstante o peso da tradição e das permanências, as idéias, assim como a História e a vida, não são estáticas no tempo e no espaço, não são topoi imutáveis, nem são invariáveis, infalíveis e eternas. Por isso mesmo o cotidiano dos homens, desde os aspectos mais banais até os mais elaborados, campos tão plenos de idéias, sempre provocaram fascínio, desafios e transformações, o que significa ressaltar sua dinâmica inventiva. O olhar e o explicar do historiador não seriam, obviamente, dimensões estranhas a essa dinâmica humana, pois resultam exatamente dela. As idéias mudam lastreadas em alterações que marcam as trajetórias e os usos de conceitos, assim como na (re)valorização dos objetos de investigação, na emergência dos problemas, na exploração dos testemunhos e na adoção dos métodos, entre outras motivações. Mutação é, portanto, uma propriedade importante da História e isso não a torna menos confiável. Ao mesmo tempo, é esse o elemento que expõe a fragilidade porosa e pantanosa da disciplina e é, também, o que nutre sua vitalidade. Pensar sobre as mudanças ocorridas na nossa própria trajetória é um exercício necessário, embora nem sempre seja fácil apreendê-las e muito menos explicá-las. Parece ser menos complicado entender os casos e as irregularidades alheias, sobretudo quando o tempo se encarrega de torná-los distantes e quando uma falsa perspectiva nos desliga e nos isenta “do outro”. Mas não foi esse o perfil que busquei imprimir nesse texto. Ao contrário, me perguntei, desde a primeira intenção de escrevê-lo, o que mudou na minha forma de entender e de escrever História nos quinze anos que separaram a elaboração da Dissertação de Mestrado que se transformou nesse livro e

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a sua terceira edição. Elencar as diferenças não me contentou: senti necessidade de evocar outro desses fundamentos da História e me perguntar o porquê. Não se trata de contradição: a tradição, aqui, é instrumento essencial para que as alterações possam ser apreendidas e explicadas. De fato, o diálogo profícuo entre a tradição e o novo é um viés muito instigante para a História e é o que mais tem me envolvido nos últimos anos. Estranho: tenho a impressão nítida de que acabei de perceber isso claramente. Nunca antes essa operação tinha sido tão clara pra mim como agora, ao escrever este parágrafo. Há tempos venho tentando entender como têm se processado mudanças nítidas com relação ao que eu pensava e escrevia no início dos anos 90 do século passado (e como pesa essa expressão!). Não se trata de negar uma realidade e o que ela me levou a expressar. Ao contrário, entendo mesmo que essa trajetória é plena de complementos e, obviamente, há maturidade e, também, maior serenidade a partir das quais continuei a focar o escravismo, os escravos, os libertos e os livres não-brancos que coproduziram a sociedade brasileira no período colonial e no século XIX, estendendo esse olhar historiográfico ao Brasil pós-abolição, à “raça”, à mestiçagem e aos projetos de Nação que apareceram nesse período. Igualmente importante, para mim e para quase todos os historiadores, é também considerar o diálogo estabelecido com o conjunto historiográfico que eclodiu na mesma época e que resultou, pelo menos no meu caso, em revisões e em incorporações conceituais, metodológicas e temáticas, bem como na investigação de novas fontes e na integração a grupos mais ampliados de interlocutores no país e no exterior. É nesse quadro, creio, que se pode identificar a definição de resistência no texto que ora se reedita e o entendimento do mesmo conceito em trabalhos realizados nos últimos anos.1 Quando escrevi o texto original, esse conceito era central em minha proposta de leitura daquela sociedade, assim como o era na essência de meu olhar sobre os documentos e no diálogo que com eles estabeleci. Partindo daí, me propus a escrever sobre liberdades, autonomias, relações de poder e, obviamente, sobre escravos e escravidão. Já naquele momento, entendia por resistência algo distinto do que a sociologia e a historiografia mais influenciadas pelo pensamento marxista e pela dimensão mais ortodoxa de Política apresentavam. Isso, aliás, fica claro no final do primeiro capítulo, parte na qual as idéias que revisei e seus respectivos autores encontram-se registrados. Resistir, nessa releitura, não significava apenas fugir, rebelarse e agir violentamente contra senhores e seus representantes. Isso não era tão óbvio

1. Ver, sobretudo, PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

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naquela época como tornou-se posteriormente. Vários historiadores que me precederam, com quem tenho dívida intelectual, já haviam iniciado a crítica a essa visão simplificada e redutora de resistência e seus nomes e obras estão citados devidamente no texto. Eu, por assim dizer, “engrossei o coro” a partir da documentação do Setecentos mineiro, ressaltando o cotidiano, as ações do dia-a-dia, por vezes silenciosas e quase invisíveis, e elegendo a mulher escrava e a forra como agentes centrais dessa história. Ainda imbuído de visão marcadamente sistêmica da história (nem me dava conta disso, é claro...) escrevi nas últimas páginas do Capítulo I que resistir “ao sistema significou diversificar as estratégias de acordo com as peculiaridades de cada região e de cada período do escravismo”. Bem, pelo menos já aparecia aí algo que cultivei com mais empenho nos anos que se seguiriam e o faço até hoje, isto é, a necessidade de relativização na História e a importância absoluta de jamais a destituir de suas historicidades o ocorrido, as interpretações e os personagens. Já a visão sistêmica, essa perdeu espaço daí pra frente e a definição de resistência, inicialmente, ampliou-se, incorporando dimensões que não faziam parte da compreensão anterior, como afetos, devoções, gratidões, amizades, amores, enfim, dimensões da vida das gentes que não me pareciam, até então, imprescindíveis para a análise do passado; mesmo porque, apareciam rara e sutilmente apenas na documentação. Mas, o olhar não estava mesmo direcionado para elas: isso, hoje, fica evidente. Mesmo empenhado em reformular o conceito, ampliá-lo, relativizá-lo e tomálo em suas historicidades, devo reconhecer que, no entanto, continuava reduzindo as relações humanas a formas de resistência, transformando uma coisa em sinônimo da outra. Um grande problema aí embutido era entender que viver no passado escravista e, por extensão, no presente, era, na verdade, resistir. Há tempos percebi que essas ações quase bélicas – a ainda tão propalada “luta” cotidiana dos povos oprimidos – não era a única e nem mesmo a mais importante característica da vida das pessoas, pobres ou ricas, de qualquer “condição” (livre, forro, escravo) e “qualidade” (negro, preto, crioulo, mulato, pardo, cabra, mestiço, branco, etc...), como se definia na sociedade colonial. Não continuei, portanto, a emprestar essa perspectiva aos agentes históricos do passado, nem aos atuais. Contudo, isso não significa dizer que “deletei” as disputas de poder, as formas de domínio exercidas por alguns sobre outros, os conflitos e as lutas da história. Não as superestimo, não as inflamo, nem as torno exclusivas, no entanto. Resistência, com o passar do tempo, acabou desaparecendo do corpus conceitual com o qual passei a operar historiograficamente. Isso me permitiu perceber nas próprias fontes pesquisadas, incluídas aí, as iconográficas, cada vez mais valorizadas por mim, como as relações humanas sempre foram mais ricas, mais delicadas e, ao mesmo tempo, mais complexas e diversas que qualquer categoria teórica que ouse decodificá-las. Ajudou-me enormemente, já durante a produção do 19

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texto original, ler e reler um dos clássicos produzidos no século XX, que começava a ser reabilitado nos anos 80, e sempre descobrir mais possibilidades sob suas linhas e daí retirar mais e mais informações. Refiro-me a Casa Grande & Senzala2, obviamente. A atualidade desse texto chega a ser constrangedora e desconcertante: instiga-me a produzir análise que, pelo menos, espelhe parte de sua importância, mas, a genialidade do texto é uma, em si, advertência sobre minha pretensão descomedida. O li pela primeira vez em 1990, tarde, avalio hoje, e não mais perdeu a condição referencial para mim. Freyre foi um modernista mais moderno que os de 22, pois infinitamente mais mundializado, embora oriundo de centro em decadência. Dialogou com o mundo para entender o Brasil, mais que a Nação, o brasileiro, mais que o nacional. A obra foi produzida em contexto que buscava esses modelos um tanto gerais de povos e de comportamentos, continha a pretensão das sínteses históricas das nações, perspectiva em voga na época e, ainda que inovadora, não fugira completamente dos modelos de análise adotados internacionalmente. Freyre, contudo, estabeleceu, avant la lettre, como o fez para boa parte de sua extensa obra, o diálogo entre o locus e o orbis. Em suma, fez História Social da Cultura antes da História inventar essa área e de incorporá-la como um traço identitário fundamental da disciplina e do conhecimento aí produzido. Por isso, novamente, Casa Grande & Senzala serviu-me de mestra, dando norte no texto original. Para mim, um aspecto fundamental dessa obra é, de maneira inédita, o autor ter situado no primeiro plano da história o negro africano (obviamente, aí incluídas as mulheres) e seus descendentes, tratando-os de colonizadores do Brasil.3A partir daí, ficou muito mais evidente para mim o que o então revisionismo historiográfico da época preconizava e o que o Escravos e libertos passava a corroborar: aqueles homens e mulheres submetidos à condição de escravos, muitos desde o nascimento, eram, acima de tudo, agentes históricos e não coisas. Ainda que timidamente, o texto original caminhava, ao ser elaborado, no sentido de apresentar as muitas possibilidades existentes no universo urbano das Minas Gerais Setecentistas, tanto as aproveitadas, quanto as produzidas pelos escravos, de conquistarem a alforria e de galgarem ascensão econômica e social. Contrariamente ao ocorrido com o conceito de resistência, o de mobilidade aí introduzido tornar-seia, nos anos seguintes, foco de atenção redobrada e base dos estudos que eu viria a desenvolver. Mas não se tratava puramente de escolher conceitos mais ou menos convincentes, de aplicá-los aos documentos e de descrever os resultados dessa

2. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala; formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 27ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. (1ª edição: Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933) 3. Especialmente no Capítulo IV – O escravo negro na vida sexual de família do brasileiro.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA operação. Muito pelo contrário, as opções teórico-conceituais e metodológicas da Dissertação tinham sido construídas no seio de uma experiência histórico-arquivística fundamental. Tive a oportunidade de ser estagiário de um projeto de identificação e de organização de milhares de documentos avulsos existentes no Arquivo Público Mineiro, sobre os quais pouco se sabia.4 O mergulho no cotidiano colonial mineiro, por meio dos registros deixados (direta e/ou indiretamente) por agentes os mais diversos, permitiu-me constatar a diversidade, a complexidade e o dinamismo que marcavam aquela sociedade e as relações sociais ali engendradas. Muitas vezes, o que se podia vislumbrar junto à documentação era muito distinto do que se podia ler nas interpretações mais tradicionais sobre o período, a região e seus habitantes. Claro estava: era preciso reescrever boa parte daquilo. A experiência de pesquisa com a documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais (mais recentemente esses documentos receberam nova denominação) propiciou-me identificar um dos temas-chaves do texto que se reedita agora. Aliás, a meu ver, hoje, ele é, justamente, o elemento que mais bem explica o interesse dos pesquisadores mais jovens por esse livro. Trata-se da coartação, uma prática muito comum nas Minas Gerais, pela qual escravos compravam suas alforrias, pagando-as em parcelas, que podiam ser semestrais ou anuais, durante vários anos, dependendo do que combinavam com seus senhores. Quase desconhecida dos historiadores até então, essa fórmula acabou servindo-me de lupa, através da qual pude compreender melhor a dinâmica social ali processada, permitindo aproximar-me de alguns dos mais instigantes protagonistas da construção desse universo mineiro Setecentista. Por isso mesmo é que, inclusive, resolvi acrescentar a reprodução fotográfica de antigos documentos e de suas respectivas transcrições a essa nova edição, o que facilitará o acesso dos interessados a alguns desses ricos testemunhos.

4. Na segunda metade da década de 80 do século XX, um grupo de professores da UFMG (Lucy Gonçalves Fontes, Beatriz Ricardina de Magalhães, Douglas Cole Libby, Valmik Vilela Guimarães e Carlos Magno Guimarães), em associação a pesquisadores do Arquivo Público Mineiro (Marta Heloísa Melgaço Neves, principalmente) deram início à identificação e à organização de papéis avulsos do período colonial, parte de um conjunto ainda maior que havia sido distribuído entre outras instituições. Esse conjunto documental era o que sobrara e ficara durante anos guardado no APM, sem que pesquisador algum soubesse o que havia ali. Fiz parte da primeira turma de estudantes de História selecionados como estagiários para trabalharem junto à documentação. Mais tarde, ganhei uma bolsa de Iniciação Científica do CNPq para pesquisar o que havia sobre escravidão entre esses papéis antigos. Em seguida, depois de formado, recebi nova bolsa do CNPq, agora de Aperfeiçoamento, e desenvolvi, junto à mesma documentação, Monografia de Bacharelado sobre as coartações em Minas Gerais, sob a orientação do prof. Caio César Boschi. Foi essa a base sobre a qual produzi a Dissertação de Mestrado, sob a orientação do prof. Douglas Cole Libby.

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A coartação não foi prática exclusiva da região das Minas, nem foi inventada aí tampouco. Desde o século XVI houve coartados negros e mulatos na Cidade do México e em Lima e é bem possível que antes disso fosse comum em cidades ibéricas, tais como Sevilla e Lisboa. É possível, também, que fórmulas semelhantes existissem tradicionalmente em áreas escravistas africanas, muito antes do tráfico atlântico fornecer milhões de escravos às Américas.5 Não obstante, nas vilas e arraiais mineiros ela foi amplamente empregada e, quase sempre, resultou de negociações entre as partes envolvidas: escravos e seus proprietários. Afirmar que a coartação foi prática comum e que nasceu de acordos estabelecidos diretamente entre senhores e escravos significa, ao mesmo tempo, e não de maneira explícita, uma série de outras coisas. Inicialmente, significa vislumbrar-se mobilidade social e capacidade de trabalho autônomo, de poupança e de decisão por parte dos escravos. Afinal, após o acordo estabelecido, seja verbalmente, seja por meio de uma “Carta de Corte”, na qual se especificavam deveres, direitos, prazos, formas de pagamento, etc..., coartados e coartadas passavam a responsáveis por sua própria manutenção, isto é, por sua alimentação, vestimenta e saúde, assim como por seus atos. Em vários casos, um fiador foi exigido pelo proprietário e coube aos escravos o encontrarem, o que demonstra, claramente, como eles participavam de redes sociais antes mesmo de se coartarem e/ou de se libertarem. Pequena parte dos tratos foi, no entanto, registrada em documento específico, como a “Carta de Corte”. Na maioria das vezes fiou-se um na palavra do outro e, eventualmente, sobretudo quando o proprietário estava à beira da morte, essas coartações foram registradas em testamentos. Nos casos em que o proprietário tinha morrido ab intestato (sem testamento), elas apareceram, geralmente, nos inventários post-mortem. A proximidade cotidiana entre senhores e escravos, às vezes existia mesmo intimidade, apareciam aí com clareza, desacreditando interpretações posteriores demasiadamente dependentes da perspectiva antagônica classista. Quando esses acordos de coartação, por algum motivo, não se cumpriam a contento o caminho foi recorrer à Justiça, o que equivale dizer, pelo menos no período colonial, solicitar aos governadores de capitanias que interviessem no caso. Apenas nesses momentos a negociação saía da órbita particular. O mais interessante e, diante do que se sabia sobre a escravidão colonial, surpreendente é que em vários desses processos judiciais as autoridades atenderam as reivindicações dos coartados. Outros

5. Entre os autores que abordaram esses temas ver BERNAND, Carmen. Negros esclavos e libres em las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2001 e GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e Direitos Costumeiros: Apelos Judiciais de Escravos, Forros e Livres em Minas Gerais (1716-1815). Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGH-UFMG, Belo Horizonte, 2006.

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mitos que reificavam gente eram, então, contestados pela documentação: escravos autônomos, que recorriam à Justiça, que eram ouvidos pelas autoridades e que saíam vencedores de pendengas com proprietários. Finalmente, seguindo a trajetória de coartados, até onde se fez possível, e investigando a de libertos que haviam conquistado a “condição” via coartação foi possível constatar junto à mesma documentação mais três traços marcantes na vida de muitos desses homens e mulheres que viveram nas Minas e que atuaram fortemente na construção daquele universo colonial: não foram poucos, longe disso na verdade, que ascenderam economicamente e, também, socialmente e, ainda, se tornaram proprietários de escravos. Todo esse conjunto de evidências históricas, trabalhado nas páginas de Escravos e libertos, contribuiu para uma importante revisão de idéias comuns até então: de escravos como coisas e não como gente e agentes históricos; de escravos exclusivamente vítimas de sistema e de senhores cruéis; de seres majoritariamente passivos e alienados; de milhões de homens e mulheres “bonzinhos”, sem vontade própria, ignorantes de conhecimentos, de competências e, inclusive, de atitudes políticas; de gente que por ser submetida à escravidão não exerceria poder sobre outrem; de população que não se distinguia cultural e etnicamente; de massa imoral, sem famílias, de costumes degenerados e promíscuos; de turba bárbara concentrada nos engenhos e nas fazendas, sem correspondência nas áreas urbanas. A esse “imaginário do tronco”6, como mais tarde apelidei esse rol de equívocos, as fontes Setecentistas e os processos de coartação ofereciam incontáveis desmentidos, aliás muito eloqüentes. Ademais, abriam outra perspectiva que foi apenas timidamente explorada no texto original. Trata-se da percepção de que, no geral, a escravaria das áreas urbanas mineiras (certamente se pode ampliar para outras áreas escravistas igualmente urbanizadas), ao buscar as alforrias, tanto pela coartação, quanto pelas várias outras fórmulas existentes, não almejava apenas libertar-se e ascender social e economicamente, mas intentava fortemente tornar-se proprietária de escravos. Seguese daí constatação aparentemente absurda, isso se vista sob ângulo de nossos dias, mas não se enfocada historicamente: a escravidão foi prática legal e legítima até, pelo menos, a primeira metade do século XIX e não apenas no Brasil. Ora, como agentes históricos e homens de seu tempo, os escravos, salvo exceções, eram, obviamente, co-produtores dessa construção social, com ela corroboravam de variadas formas e de seus valores compartilhavam em grande medida. Não deriva disso alienação e ausência de consciência de classe, falta de solidariedade, incapacidade política ou coisa que o valha, como por vezes se entendeu a complexa realidade escravista colonial que, ainda assim, teimava em emergir dos documentos. 6. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural... op. cit. p. 24/25.

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Tanta mobilidade social e física e tão frenética dinâmica social resultaram na formação de uma sociedade centrada na diversidade e na miscibilidade, tanto biológica, quanto cultural, social e, ainda, da natureza. A Minas Gerais do século XVIII se diferenciou das demais capitanias brasileiras e de outras regiões escravistas da época menos por soluções peculiares e por fórmulas inéditas e muito mais pela dimensão alcançada aí por todos esses aspectos. Não há dados comparativos que nos permitam afirmar categoricamente, mas é possível inferir-se que, por exemplo, ao final do século XVIII, vivesse nas vilas, arraiais e, também, nas áreas rurais mineiras, senão a maior, pelo menos uma das maiores populações de libertos e de descendentes diretos deles que o mundo conhecera até aquele momento, muito fortemente marcada por mestiçagens de todos os tipos. Esse contingente “mineiro”, na verdade formado de gente de origem muito diversa, proveniente de várias partes do mundo, contava com mais de 300.000 pessoas já na década de 70 do século XVIII, o que significava a maior população entre as capitanias da América portuguesa. Mais de 70% desse total era composta por não-brancos, isto é, por pretos (geralmente, foi essa a designação usada para os negros africanos), crioulos (negros nascidos no Brasil, filhos de mães africanas), mulatos, pardos, cabras e mestiços de variada origem. E quanto mais se aproximou do fim do período colonial7, mais intensas tornaram-se as mesclas biológicas, em paralelo ao aumento das alforrias, à elevação das taxas internas de nascimento de escravos, bem como à de crioulos e mestiços livres. Concomitantemente, aumentou, também, o ingresso de africanos escravizados na região, tendência que se intensificou, ainda mais, até 1850 (posteriormente a essa data, o tráfico interno continuou provendo as Minas Gerais tanto de africanos, quanto de crioulos e mestiços escravos). Depreende-se daí, a constituição de um verdadeiro crisol de culturas, de conhecimentos, de práticas, de formas de viver e de maneiras de pensar, que, nessa perspectiva, ainda merece mais atenção por parte da historiografia. No processo de formação dessa sociedade mineira Setecentista as mulheres não-brancas, tanto as escravas, quanto as forras e as nascidas livres, desempenharam papel muito relevante. Nas atividades do dia-a-dia, no trato cotidiano, nas relações mais corriqueiras e também em dimensões menos triviais elas se fizeram fortemente presentes. Impressiona a quantidade de mulheres, mães, nem sempre envolvidas em relacionamentos duradouros, que aparece na documentação investigada, deixando testamentos, registrando seus filhos naturais, suas trajetórias de vida, seus desejos,

7. Deu-se, oficialmente, ao final de 1815, com a elevação do Brasil à categoria de reino, unido aos de Portugal e Algarve, por lei promulgada pelo príncipe regente D. João, antes de ser aclamado rei, o que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1816, e de voltar a Lisboa, em 1821.

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sua autonomia e sua importante atuação como promotoras e mantenedoras de núcleos familiares, de redes de informação e de solidariedade e, ainda, como co-produtoras e como exploradoras de extraordinários espaços de sociabilidade. Essas inestimáveis agentes históricas, ainda que continuem sendo personagens pouco evocadas pela historiografia, imprimiram dimensão matrifocal ao cotidiano das povoações mineiras, lastreando-se, obviamente, na dinâmica mais ampla da Capitania, já caracterizada aqui. Algumas delas aparecem no texto em situações detalhadas, o que foi permitido por seus testamentos e inventários post-mortem. É certo que elas não os escreveram, mas, certamente, muito de seus discursos e impressões estão ali, mesmo que sob a caligrafia de um escrivão. As testadoras forras e as não-brancas nascidas livres deixaram uma quantidade significativa de testamentos e de inventários post-mortem que seguem guardados em arquivos mineiros. As histórias narradas nesses papéis amarelados e, muitas vezes, corroídos pela tinta férrica usada antigamente e rendados pela ação de insetos, revelam porções enormes da realidade colonial nas Minas e esclarecem aspectos muito mais amplos, que ultrapassam a dimensão da Capitania e da América portuguesa. Verdadeiros elos de conexões históricas em perspectiva mundializada, essas histórias não deixam de ser, em momento algum, relatos produzidos por um grupo muito especial, que segue até hoje sub-representado nas interpretações que se produzem sobre o passado. Tratam-se, primeiramente, de mulheres, que, como se sabe, deixaram muito menos registros escritos que o fizeram os homens. Ademais, eram mulheres não-brancas, que viveram experiências as mais diferentes. Muitas tinham nascido no continente africano, em sociedades de castas, de mobilidade social quase inexistente e marcadamente misóginas. Submetidas à condição de escravas, atravessaram o maroceano, marcharam pela costa de outro continente, pelos seus “sertões”, subiram e desceram montanhas, embrenharam-se por trilhas e caminhos estreitos e perigosos, chegaram a povoações relativamente novas, as quais ajudaram a moldar. Nessa terra nova forraram-se, a maioria pagando por sua alforria e a de seus rebentos e, até mesmo, comprando a libertação dos parceiros. Deve-se, então, atentar para um fato instigante: grande parte das escravas “africanas”8 que entram no Brasil dificilmente poderia experimentar nas regiões de origem tamanha mobilidade física e social. Obviamente, a observação não é uma justificativa a posteriori da escravização de gente pretensamente bárbara, como

8. O uso das aspas, nesse caso, justifica-se simplesmente por empregar aqui um indicativo de origem que se tornou usual muito mais tarde, já, talvez, no fim do século XIX. Até o fim do período colonial, esses “africanos” eram designados e se designavam como angolas, benguelas, minas, moçambiques, congos, cobus, cabo verdes, sabarus, xabas, etc... e não da forma como o fazemos atualmente, sem tomar o devido cuidado de não os fundir em uma única identidade, opção à qual recorri eu mesmo, quando escrevi o texto original dessa reedição.

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ingenuamente ou capciosamente alguns poderiam pensar. Aliás, na História, é preciso indagar para além do que é culturalmente aceitável ou permitido. Nesse sentido, seriam importantes os estudos que pudessem avaliar o impacto das notícias de mobilidade e de possibilidades de enriquecimento existentes em sociedades americanas não apenas na Europa, como se fez, mas nas várias regiões africanas que, ao longo de quatro séculos, forneceram milhões de homens e mulheres escravizados ao Novo Mundo. Indubitavelmente, os testemunhos dessas testadoras forras africanas, que chegaram, inclusive, a tornar-se rainhas nas Américas, são imprescindíveis para se conhecer melhor essa história. Várias outras testadoras investigadas haviam nascido na América portuguesa, sob a condição de escravas, posto que o era a mãe, como rezava antiga norma jurídica em vigor na época. Entre essas, assim como ocorreu entre as “africanas”, algumas se destacaram com relação à fortuna acumulada, aos bens adquiridos, às devoções declaradas, ao número de escravos possuídos, às atividades desempenhadas, à rede de amizades e de negócios e à autonomia demonstrada. Houve, inclusive, as que se rivalizaram, em fortuna, com homens brancos ricos. Algumas delas transitavam por extensas regiões da América portuguesa e, no conjunto, essas testadoras não-brancas conformaram uma espécie de camada média urbana, de razoável poder aquisitivo, consumidoras de produtos oriundos de várias partes do mundo, por vezes elaborados, em boa medida, para elas, como o foram tecidos fabricados em possessões portuguesas na Índia.9 Junto às libertas estavam as crioulas e as mestiças nascidas livres, que ampliavam o grupo, tornando-o ainda mais importante. Entretanto, as pardas e as mulatas nem sempre registraram a “qualidade” em seus testamentos e inventários post-mortem. Isso é indicativo claro de que, assim como ocorria nos outros grupos sociais, essas mulheres não viviam irmanadas, identificando-se como iguais e promovendo ações de solidariedade entre si. Ao contrário do que se idealizou a posteriori e do que muitas vezes se afirmou, elas e os demais não se confundiram em um único grupo de desvalidos e de desafortunados, mas reproduziam as distinções e as hierarquias sociais vigentes e mesmo as tonificavam no dia a dia. A tez de pele, o grau aparente de miscigenação biológica, o local de moradia, as vestimentas e ornamentos, os relacionamentos sociais e os costumes praticados, entre outros aspectos, serviam-lhes de distintivos e, na verdade, foram largamente empregados por homens e mulheres de toda “condição” e “qualidade” naquelas Minas e em toda a sociedade colonial. Percebe-se com clareza

9 Ver CARREIRA, Ernestine. Au XVIIIe siècle: l’Océan Indien et la traite négrière vers le Brésil. In: MATTOSO, Kátia de Queirós. (dir.) Esclavages; histoire d’une diversité de l’océan Indien à l’Atlantique sud. Paris: L’Harmattan, 1997 e PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural... op. cit.

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na documentação como as mestiçagens biológicas e culturais e os termos usados para designar as muitas facetas daí resultadas eram categorias importantes naquele universo, eram empregadas amplamente pela gente e, a bem da verdade, há séculos, já se constituíam em instrumentos com os quais se distinguiu e se aproximou pessoas e grupos sociais. Essa perspectiva é tênue no texto que se reedita e, por esse motivo, optei por mais essa autocrítica. Nos últimos anos tenho dedicado parte de minhas pesquisas a melhor compreender as mestiçagens produzidas, as dimensões e o alcance delas, suas historicidades e os significados atribuídos a elas em contextos, regiões e por grupos diferentes. Comparações entre o universo mineiro colonial e outras regiões das Américas portuguesa e espanhola, sobretudo, têm revelado semelhanças impressionantes, ofuscadas por décadas de visões historiográficas nacionalistas. Não me parece mais possível manter essas histórias ilhadas, como se jamais tivessem se complementado, se constituído em paralelo e em conexões, não obstante produzirem uma enorme gama de diferenças. Finalizo esta apresentação recorrendo a dimensões historiográficas que não faziam parte de meu horizonte de historiador quando escrevi o texto. Advirto, no entanto, que não entendo isso como anacronismo, mas como uma leitura a posteriori de um texto que continua circulando hoje, depois de tantas alterações importantes no quadro acadêmico, institucional e historiográfico brasileiro. Essa leitura, mesclada com autocríticas, serve mais, talvez, para mim do que para o leitor futuro, eventual, bem como para os que, antes de mim, experimentaram a sensação de revisitar seu próprio texto e rever conceitos que deixaram de ser importantes. Encaro essa apresentação como exercício de análise de um texto já meio velho e de consolidação de minha convicção de que à história e às interpretações dos historiadores não se destitui jamais suas historicidades. Por isso mesmo é que, a meu ver, o nosso campo de conhecimento continuará sendo poroso, movediço, mas, ainda assim, fascinante e imprescindível. É igualmente o motivo de mudanças e permanências terem tornadose elementos naturais e legítimos da história e dos livros de História. EDUARDO FRANÇA PAIVA Sevilla, 27 de dezembro de 2007

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APRESENTAÇÃO

A descoberta de depósitos auríferos na região mais tarde denominada Minas Gerais deflagrou um processo histórico que iria transformar, de maneira definitiva, a vida do Brasil colonial, bem como a da metrópole portuguesa. O chamarisco do metal e, posteriormente, das pedras preciosas atraiu, num curtíssimo espaço de tempo, legiões de imigrantes de todos os pontos do território brasileiro, de Portugal e de outros países europeus e, de modo forçado, dos portos alimentadores do comércio negreiro da África ocidental e meridional. Pensando em termos de tempo histórico, era como se, da noite para o dia, houvesse emergido uma nova sociedade na Colônia, distinta da anterior, não obstante seu alicerce nitidamente escravista. Em termos econômicos, a ocupação das Gerais e as atividades mineradoras lá empreendidas reanimaram um regime colonial abalado pela concorrência do açúcar antilhano: o ouro extraído lubrificou a economia-mundo européia já em fase de consolidação, enquanto a variada demanda dos centros de mineração gerou, pela primeira vez, um mercado interno de dimensões realmente nacionais. Embora a ausência de fontes confiáveis não permita precisar uma cronologia, em algum momento da primeira metade do século XVIII a capitania das Minas Gerais passou a abrigar o maior contingente populacional de todas as unidades administrativas – posição esta mantida até meados do século XX. Mais importante que o tamanho, no entanto, foi a natureza da sociedade que se configurou no espaço mineiro. Se o mestre Sérgio Buarque de Holanda exagerou ao qualificar a organização social de “democrática”, acertou quando, ao contrapô-la à hierarquia rígida que dominava o Brasil dos engenhos e plantações açucareiros, descreveu o meio social mineiro como uma “estrutura movediça”, marcada, sobretudo, pela mobilidade de todas as suas partes constituintes.

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O setecentos mineiro é repleto de temas que continuam inspirando os historiadores, brasileiros e estrangeiros, de todas as tendências. Se, por muito tempo, o fausto aurífero e diamantífero atraía as atenções dos estudiosos, mais recentemente, em consonância com as correntes teórico-metológicas de ambos os lados do Canal da Mancha, as camadas sociais excluídas e marginalizadas têm merecido maiores esforços investigativos. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento cultural das Gerais, inegavelmente sem paralelo no novo mundo colonial, prossegue fascinando os historiadores, agora cada vez mais preocupados em desvendar a variada origem étnica, racial e social dos artistas, artesões, arquitetos e músicos cujos trabalhos coloriam a vida da capitania mineradora. É nesta mistura de raças, classes e condições sociais que reside o que havia de mais original do mundo mineiro do setecentos. Se a miscigenação e as alforrias faziam parte do escravismo brasileiro desde o começo, foi nas Minas Gerais que se tornaram a própria tônica da evolução social. Os primeiros censos, datando do último quartel de século XVIII – na verdade estimativas baseadas em métodos ainda de cunho pré ou proto-estatísticos –, vêm no sentido de corroborar nossa assertiva: cerca de dois terços da população livre de Minas Gerais era “de cor”. Fruto, por excelência da já referida “estrutura movediça”, tal população surgiu de encontros ocasionais ou de uniões entre raças com graus diversos de estabilidade, além das múltiplas formas de libertação de escravos de origem africana ou aqui nascidos. Na verdade, é inútil e até mesmo errado analisar em separado a miscigenação e alforria que tão indelevelmente marcaram a História das Minas Gerais no setecentos. São duas faces de uma mesma moeda, a qual, já neste século, iria alimentar noções de “democracia racial” e de brandura da escravidão brasileira. Trata-se de noções historicamente enganosas que levaram gerações de historiadores a óbvios desacertos e devem ser evitadas pelas atuais gerações com o intuito de elucidar uma realidade complexa que, nem de longe, se esgota no binômio senhor/escravo ou na dicotomia rebeldia/submissão. Como se davam as relações senhor/escravo no cotidiano de Minas Gerais do século XVIII? Quais as formas de alforria e quais as estratégias para alcançá-la? Qual era o sentido da liberdade gozada pelos forros e como sobrevivia nesta nova condição? São estas as principais questões abordadas pelo presente texto. Eduardo França Paiva procura responde-las de maneira inovadora, porém, aputada numa larga e cuidadosa pesquisa empírica. O êxito deste jovem autor deriva principalmente de duas opções investigativas bastante originais. A primeira diz respeito à eleição dos testamentos como fontes primárias básicas do trabalho. A moda do momento é valorizar os inventários post mortem como fontes para captar as nuanças do dia-a-dia passado mais remoto e, portanto, menos documentado, seja pelo olho público, seja pelo privado. Na ausência de estatística confiáveis, os inventários são indispensáveis para reconstituição de séries de preços 30

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e, sem dúvida, jogam luz sobre o cotidiano material e sobre as relações familiares e domenares na hora da partilha dos bens do falecido. Porém pouco nos dizem sobre a visão de mundo dos envolvidos e os caminhos que os levam à acumulação desses bens. Já os testamentos representam o momento em que os indivíduos poderiam revelar suas almas, fosse na esperança da salvação divina, fosse no intuito de reputação diante dos presentes ou da posteridade. Às vezes, os testamentos constituíam verdadeiras histórias da vida, claro que na visão do moribundo. Estas são as ricas fontes que revelam uniões entre livres e escravas, relações familiares pouco ou nada convencionais e alforrias de toda sorte, exemplarmente exploradas no texto. Outro ponto de originalidade reside na recusa em catalogar atitudes e comportamentos escravos em nítidas categorias dividas, sobretudo, entre a rebeldia e a submissão. Ora, não resta nenhuma dúvida de que, no Brasil e, particularmente, no caso da Minas setecentista, as práticas de manumissão constituíam uma espécie de válvula de escape para suavizar a reprodução de um conturbado sistema escravista. Mas, tais estratégias abriam brechas, na maioria das vezes inimaginadas, à escravaria, cujas relações de aparente submissão podiam representar contra-estratégias para a obtenção da carta de alforria. Trata-se aqui de exemplos extremos, mas a verdade muito bem revelada nesta obra é que a resistência escrava era a uma constante, passível de leituras diversas e divergentes por parte de senhores e cativos. Guiados pela própria empiria de sua pesquisa. Eduardo Paiva envereda para um exame mais detalhado das vidas de escravos e forras, pois, como fica demonstrado o elemento feminino foi “agraciado” com a alforria em proporções bem superiores às da participação de mulheres na população escrava. A esperteza e engenhosidades femininas, mesmo diante de situações mais difíceis, vão se delineando e é neste trecho que afloram algumas das histórias de vida mais fascinantes. As fontes também reclamam uma análise da famílias e de suas moradias, das intrincadas relações entre credores e devedores e, ainda, da surpreendente diversificação da distribuição da propriedade em escravos que marcavam aquela época. Tudo é habilmente analisado pelo autor que juntamente com a historiografia brasileira está de parabéns. Dificilmente o leitor poderá largar este texto, claro e agradável, sem enriquecer sua visão do setecentos mineiro, pois estará diante de uma revisão do revisionismo historiográfico. Se a ênfase no fausto era exagerada e pouco esclarecedora da realidade, agora a insistência na desclassificação e na desordem sociais começa a soar pouco convincente. Mas deixemos ao leitor a prazerosa tarefa de julgar por si mesmo. DOUGLAS COLE LIBBY

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INTRODUÇÃO O SISTEMA ESCRAVISTA NA COMARCA DO RIO DAS VELHAS: AS CARTAS DE ALFORRIA E A VIDA DOS LIBERTOS

For Edward and Dorothy Thompson who know that history is about people not things, and that all own work is about the present as well as the past. In gratitude. (Christopher Hill. The English Bible and the SeventeenthCentury Revolution.)

A descoberta de ouro nos sertões da colônia brasileira, no final do século XVII, significou o começo de um período de inusitada riqueza para a coroa portuguesa, bem como de esperança de enriquecimento imediato por parte de seus súditos. A região recebeu, num curto espaço de tempo, aventureiros de muitas partes do Império, juntamente com grandes levas de africanos escravizados e brasileiros de outras áreas. Esse emaranhado de pessoas, culturas e expectativas deu início à formação de uma sociedade que centralizaria as atenções e os interesses mais díspares, às vezes oriundos de fora dos domínios portugueses, durante boa parte do setecentos. O território foi desbravado por gente ávida de pedras e metais preciosos que, assim, contribuíram com a demarcação das Minas Gerais, cuja história permanece pouco conhecida. Embora uma nova historiografia sobre a Capitania venha sendo empreendida de forma mais criteriosa1, é evidente a necessidade de intensificação das pesquisas 1. Entre outras obras importantes, podem ser citadas: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder; irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo, Ática, 1986; GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700/1750). In Revista do Departamento de História, Belo Horizonte, n.2 p.7-36, 1986; MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. “La société ouroprétaine selon les inventaires `post-mortem’ (1740/1770)”, tese de doutoramento apresentada à Universidade de Paris, 1986; SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro; a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1986.

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envolvendo esse período. A “historiografia revisionista”2, ao problematizar teses havidas como definitivas, acaba vislumbrando uma sociedade com limites menos modestos, demonstrando uma realidade sócio-econômica e administrativa mais complexa e abrindo caminhos para novas e imprescindíveis análises. Certamente, a leitura da bibliografia clássica sobre a história de Minas3 não é dispensável. Vêm daí uma série de subsídios que fomentam as reflexões à frente esboçadas. Entre os elementos determinantes e menos conhecidos da sociedade mineira colonial está o objeto de discussão ora proposto: o sistema escravista aqui engendrado. O escopo, porém, é demasiadamente amplo, o que induz à opção por três aspectos que serão privilegiadamente abordados: o processo de libertação do escravo, o papel desempenhado pelo elemento forro - sobretudo a mulher - na organização sócioeconômica da Capitania e o exame das relações sociais retratadas nas nossas principais fontes de pesquisa, isto é, nos testamentos. A extensão espaço-temporal da pesquisa ateve-se a limites que possibilitaram a melhor compreensão do assunto e a maior verticalização do estudo. Assim, a escolha recaiu sobre a Comarca do Rio das Velhas, cuja sede, a Vila de Sabará, e seu termo receberam enfoque privilegiado. O período investigado estendeu-se do final da segunda década até a década de 80 do setecentos. A região atraiu os primeiros aventureiros e ostentou importante e diversificada economia desde os primórdios da ocupação, não obstante o pequeno interesse dos pesquisadores sobre seu desenvolvimento histórico. Já o período indicado, justifica-se, primeiramente, pela criação da Capitania das Minas em 1720, o que significou a instalação, pelo Estado, de um mecanismo de controle definitivo sobre a mais importante área da Colônia no século XVIII. O segundo marco expressa, por sua vez, um momento em que a estrutura político-administrativa encontravase consolidada, a rede urbana achava-se constituída e a atividade mineradora já havia declinado enormemente, sem, entretanto, decretar a decadência de toda a economia. 2. Ver LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista; Minas Gerais no século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1988, p.13. 3. Ver entre outros: BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte, s/ed, 1972; BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil; dores de crescimento de uma sociedade colonial. (trad.) São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1969, p.53-105; FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. Rio de Janeiro, Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1944; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In História Geral da Civilização Brasileira. (dir.) 3 ed. São Paulo, DIFEL, 1973, t1, v2, p.259-310; LIMA JUNIOR, Augusto de. A capitania de Minas Gerais. Rio de Janeiro, Z. Valverde, 1943; PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da história do Sabará. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1942, 2v.; TORRES, João Camilo de Oliveira. O homem e a montanha. Belo Horizonte, Livraria Cultura Brasileira, 1944; VASCONCELOS, Diogo L. Pereira de. História média das Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1918; VASCONCELOS, Sylvio de. Mineiridade, ensaio de caracterização. Belo Horizonte, s/ed., 1968.

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H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS A facilidade de acesso à documentação, bem como a qualidade e a quantidade dela, foram condições decisivas para a opção apresentada acima. Os acervos pertencentes ao Arquivo Público Mineiro (APM) e ao Museu do Ouro de Sabará (MO), forneceram quase a totalidade das fontes primárias e muitas das fontes secundárias utilizadas. Estudados, os testamentos reafirmaram uma série de características peculiares à formação histórica de Minas, que a distinguiram das outras capitanias. Talvez a mais importante delas e a que constituiu o ambiente propício às demais tenha sido a urbanização ocorrida durante boa parte do setecentos, resultando na formação de uma extensa rede de centros urbanos. Junte-se a isto, a diversificação da economia (mineração, comércio, agricultura, pecuária, artesanato, prestação de serviços), o grande contingente escravo e a significativa população forra nas vilas e arraiais, a complexa estrutura administrativa implantada e a formação de um mercado interno, todos capazes de absorver e incentivar um movimento intenso de manumissões, sem precedentes na Colônia. Todas essas características marcaram a formação históricas da região de Sabará, embora de maneira não exclusiva. A maior das comarcas da Capitania até o final do setecentos (a Comarca do Paracatu, com terras desmembradas da Comarca do Rio das Velhas, foi criada em 1815) contava, também, com vários núcleos urbanos de relevo e sua sede transformara-se numa das mais importantes vilas do período. Ao final do século XVIII Sabará abrigava uma grande população e ostentava uma economia complexa e diversificada. Ponto geograficamente estratégico, a Vila esteve em estreito contato com todo o centro e norte mineiro, captando boa parte dos recursos gerados pela mineração, comércio e agropecuária. Na virada do século rivalizava-se, levando algumas vantagens, com as tradicionais Mariana e São João Del Rei. A capital Vila Rica já experimentava certa decadência. Em linhas gerais, este é o cenário que envolve o estudo dos processos de libertação e da vida dos libertos, elementos de enorme importância para a melhor compreensão da sociedade mineira setecentista. Na historiografia sobre a escravidão brasileira e em obras mais genéricas, é reconhecida a importância alcançada pelas manumissões em Minas Gerais, ainda que prevaleçam as abordagens superficiais.4 4. Sobre o assunto podem ser consultados os seguintes autores: GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5a ed. São Paulo, Ática, 1988, p.354-355 e 455-462; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais ... op. cit. p.259-310; KLEIN, Herbert S. A escravidão africana, América Latina e Caribe. (trad.) São Paulo, Brasiliense, 1987, p.243 e 250-255; LEWKOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. In Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/ Marco Zero, n.17 p.101-114, 1989; LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. A presença do elemento forro no conjunto de proprietários de escravos. In Ciência e cultura. v.32 p.836-841, 1980; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil.(trad.) 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1988, p.169; RAMOS, Donald. A social history of Ouro Preto - stresses of dynamic urbanization in colonial Brazil - 1695-1726. The University of Florida-PhD, 1972, p.226-241; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos; engenhos e escravos na sociedade colonial.(trad.) São Paulo, Cia. das Letras/ CNPq, 1988, p.368.

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Uma vez constatadas essas especificidades na relação senhor/escravo surge a seguinte questão: porque as alforrias, em Minas, teriam alcançado número mais elevado que em outras regiões escravistas? No final dos anos 60 e na década seguinte, pensouse tratar de uma sociedade mais “nivelada”, onde havia existido uma maior distribuição da riqueza.5 As “feições democráticas” da sociedade mineira setecentista teriam resultado da marcante difusão da propriedade em escravos. Numa outra interpretação, porém, pode inferir-se dessa difusão uma circulação de riquezas que, certamente, facilitou o pecúlio e, conseqüentemente, a compra da alforria pelo escravo. Ainda nos anos 70, o número de manumissões foi explicado através de uma suposta crise econômica que se instalara antes de 1740 e que se ampliara simultaneamente à crescente escassez do ouro.6 Em outras palavras, num período de crise econômica, a mão-de-obra transformava-se em encargo insustentável, acarretando sua liberação imediata. A economia mineira, entretanto, já vinha consolidando outras atividades lucrativas, resposta a uma crise localizada no setor minerador, iniciada bem antes dos anos quarenta. Um provável indício dessa crise se deu em 1733, quando o rei português, dom João V, ordenava reduções na remuneração de autoridades administrativas em Minas, aceitando o argumento de não mais existir o mesmo número de mineiros ricos como havia dez antes.7 Nos anos 80, com o incentivo das comemorações do centenário da abolição no Brasil, vários estudos foram publicados, inclusive sobre Minas Gerais, mas a explicação sobre o índice de manumissões na Capitania permaneceu pouco esclarecido. Não obstante, o liberto mineiro foi objeto de alguns artigos e de pesquisas iniciadas.8

(5) - Ver BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros ... op. cit. p.107-116; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais... op. cit. p.259; VASCONCELOS, Sylvio de. Mineiridade ... op. cit. p.61-63; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos... op. cit. p.368. (6) - RAMOS, Donald. A social... op. cit. p.226. Ver também: GORENDER, Jacob. O escravismo... op. cit. p.354 e MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo... op. cit p.184. (7) - APM/CMOP - caixa 4, doc.50 - Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais. A transcrição integral desse documento constitui o Anexo II. Ver também APM/SG - caixa 3, doc. 33 Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais. Nesse documento, feito em 1744, os oficiais da Câmera da Vila de São José delatavam, ao rei português, a existência de muitos mineiros que extraíam pouco ouro, devido à “decadência dos jornais que sucessivamente se vai experimentando nestas Minas desde o seu princípio, dificultando-se agora cada vez mais os serviços ...”. Sobre a diversificação das atividades econômicas em Minas, desde cedo, ver GUIMARÃES, Carlos Magno & REIS, Liana Maria. Agricultura ... op. cit. (8) - Entre outros: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de & MAGALDI, Ana Maria. Negras de tabuleiro e vendeiras: a presença feminina na desordem mineira do século XVIII. In Ciências Sociais Hoje-1984. São Paulo, Cortez Ed./ANPOCS, 1984, p.179-214; LEWCOWIKZ, Ida. Herança... op. cit.; LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. A presença... op. cit. e PAIVA, Eduardo França. Coartações, alforrias e escravidão urbana na capitania de Minas Gerais. Monografia de Bacharelado apresentada ao Departamento de História/UFMG, Belo Horizonte, 1989 (datilog.).

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Neste estudo, além do porquê, será abordado o como se processaram as alforrias na região de Sabará, analisando-as, não diante de uma “sociedade mais democrática”, mas inseridas numa estrutura social que as incorporou enquanto elemento importante da dinâmica assumida pelo sistema escravista colonial em Minas. Virão à tona, dessa forma, mecanismos de manutenção do próprio sistema escravista - as alforrias como instrumentos de coerção ideológica sobre a população -, mas, também, estratégias de resistência que, tomando a forma de um certo código de comportamento cotidiano, visava, pragmaticamente, a libertação. Assim, é possível que as manumissões, em Minas, tenham sido distintamente compreendidas por senhores e escravos. Para os primeiros, elas teriam representado um mecanismo que garantia a manutenção da ordem escravista e da estrutura de classes dela proveniente, além de uma espécie de válvula de escape para os conflitos inerentes ao sistema. Para os segundos, teria significado o mais importante objetivo de vida, pelo qual valia a pena adaptar-se ao sistema - real ou teatralizadamente -, incorrendo numa espécie de resistência pragmática; é claro que muitos outros escravos resistiram ao cativeiro e buscaram libertar-se através de formas mais contundentes - fugas, rebeliões e atitudes violentas -, embora seja difícil afirmar qual dos caminhos obteve maior sucesso. Vários relatos testamentais explicitaram o vínculo entre a conquista da alforria e a incorporação, por parte dos libertos e “libertandos”, de valores e comportamento dominantes. A resistência pragmática objetivou não apenas a obtenção da manumissão, mas também foi adotada pelos forros - sobretudo pelas forras - como instrumento de ascensão, quando não social, pelo menos econômica. Participar, de maneira mais efetiva, de uma sociedade controlada por brancos livres e ricos significou permanecer resistindo ao sistema, adaptando-se às fronteiras impostas ao estatuto de liberto e, concomitantemente, criando condições para suplantá-las. O crescimento quantitativo das alforrias, no decorrer do período e em todas as comarcas, parece ter ligado-se não a uma crise, como se entendeu nos anos 70, mas às possibilidades colocadas pela diversificação econômica, sobretudo em áreas urbanas. Isto explicaria o costume generalizado das coartações.9 Esse costume é um dos pontos centrais desta discussão, uma vez que a sua ocorrência e a sua intensidade respaldaram, em boa medida, esta problematização. A análise das alforrias e coartações, assim como de outras questões já mencionadas encontra nos testamentos um terreno fértil. Esses documentos

9. A coartação foi um tipo de manumissão paga parceladamente pelo escravo e/ou por terceiros, no qual o coartado afastava-se, geralmente, do domínio direto do senhor, conseguindo deste último autorização por escrito - Carta de Corte - para trabalhar em outras regiões e para obter pecúlio. Às vezes, a coartação era acertada verbalmente e dispensava o acordo por escrito.

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costumam, também, oferecer esclarecimentos sobre os costumes e o pensamento dos testadores, bem como sobre o exame de consciência e os atos caridosos para com os menos favorecidos - escravos, forros e livres pobres -, realizados diante a iminência da morte ou durante a agonia da doença. No conjunto documental destacam-se, qualitativa e quantitativamente, as libertas testadoras. Essas mulheres descreveram o ambiente cotidiano - físico e ideológico onde conviviam, deixando entrever sua efetiva participação nas adaptações processadas junto às relações sociais. Informações sobre a família, o casamento, os filhos havidos em cativeiro, as relações afetivas com os antigos senhores, as atividades econômicas desempenhadas, os plantéis de cativos, os bens possuídos e os créditos e débitos contraídos, podem ser extraídas dos testamentos das libertas. Existem, também, alusões a uma espécie de autonomia jurídica alcançada pelas forras casadas, que ao testarem determinavam seus legados e vontades, declarando os seus bens e distinguindo-os dos pertencentes aos maridos. Entre essas negras parece ter vigido um conjunto de atitudes conformadoras de um comportamento social recorrente, embora quase sempre tivessem aplicação individualizada. A partir das informações e dos dados coletados, foi possível mergulhar na relação senhor/escrava e vislumbrar a formação da família negra e a inserção feminina na economia e sociedade mineiras. O universo que envolve o processo de libertação de cativos e a atuação dos forros na sociedade mineira colonial, não apresenta correspondência entre sua complexidade e importância e o reduzido número de estudos empreendidos sobre ele. Este estudo não pretende, todavia, sanar tal deficiência, mas contribuir para o esclarecimento de alguns dos problemas levantados, bem como trazer à discussão outras questões pertinentes ao tema. Assim, serão discutidas as relações estabelecidas entre os libertos e a estrutura escravista, onde o conceito de liberdade aparece indissociado à qualidade de branco e onde a Carta de Alforria pretendeu representar o limite da “liberdade” do ex-cativo.

REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA DE TRABALHO Em todos os capítulos desta dissertação foram abordados aspectos diversos da vida cotidiana de escravos forros e coartados. O desenrolar do dia-a-dia foi visto como a “vida do indivíduo”, heterogênea e hierarquizada de acordo com a estrutura sócio-econômica na qual inseria-se e o indivíduo foi entendido enquanto um ser, simultaneamente, particular e genérico.10 O “ser particular”, isto é, o “Eu”, não pode

10. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. (trad.) Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p.18.

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ser tomado como expressão da “essência humana”, ao mesmo tempo em que o “ser genérico” é a expressão das relações ético-sociais dos indivíduos.11 No caso específico, as impressões de cada testador são, essencialmente, reflexos de sua vivência coletiva; e o princípio é aplicável tanto às relações cotidianas, quanto à formação da memória do testador.12 Representações, discursos, acordos e conflitos daí provenientes, serviram de base para a constituição de estratos sociais e, nesse caso, originaram novas e renovadas relações, inter e intra-grupais. Entre os agentes formadores desses estratos incluemse componentes característicos dos indivíduos, como cor, etnia, crenças religiosas, laços afetivos ou de parentesco, além da condição de escravos, forros e livres. Como numa perspectiva thompsiana de classe, trata-se de “uma formação social e cultural”13 em oposição a “clássicas” concepções marxistas de classe, que a definem “segundo a posição dentro da estrutura econômica ou da relação com os meios de produção.”14 De acordo com E.P.Thompson, se se detiver a história num determinado ponto, verifica-se que não há classes, mas “uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências”.15 Já o exame desses indivíduos num “período adequado de mudanças sociais”, identificaria padrões em suas relações, instituições e idéias, sendo a classe definida, então, “pelos homens enquanto vivem sua própria história”.16 A sociedade e o emaranhado cultural na região e período em foco é algo bastante complexo, mas é possível identificar, pelo menos, três classes que aí constituíram-se: livres, forros e escravos. Essa divisão permite a captação de um universo menos rígido, que envolvia as relações sociais exercidas por indivíduos diferentemente classificados, contrariamente ao determinado pela tradicional polarização entre senhores e escravos, isto é, proprietários e propriedades. As três classes sociais foram inflexivelmente identificadas pela própria sociedade colonial, embora tenham ocorrido alterações na classificação, quando, por exemplo, escravos se libertavam e, em alguns casos, forros eram reconduzidos ao cativeiro. Existiram famílias compostas por representantes das três classes, formadas,

11. id. ibid. p.20-21. 12. Sobre a memória coletiva ver: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. (trad.) São Paulo, Vértice, 1990 e RAMOS, Ramón. Maurice Halbwachs y la memoria colectiva. Revista de Occidente. Madrid n.100 p.63-81, 1989. 13. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa; a árvore da libertação. (trad.) Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, v.1, p.12. 14. DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn. (org.) A nova história cultural. (trad.) São Paulo, Martins Fontes, 1992, p.68. 15. THOMPSON, Edward P. A formação ... op. cit p.12. 16. id. ibid. p.12

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geralmente, por um pai livre, uma mãe forra - o que não significava ser livre - e um ou mais filhos ainda cativos do ex-senhor da mãe. Tão flagrante importância da “condição” - livre, forro ou cativo - e da “qualidade” - branco, negro, mulato, pardo, cabra, etc -17 como forma de distinção social dos indivíduos (embora a qualidade não definisse as classes), não impediu a formação de grupos compostos pelos três elementos e, principalmente, por livres pobres e forros. Estas duas últimas categorias, muitas vezes proprietárias dos meios de produção, tiveram igual acesso a bens de consumo, foram senhores de pequenos plantéis de cativos e almejaram ascensão social de forma semelhante, uma vez que os cargos mais importantes estavam reservados aos brancos ricos. É provável, ainda, que tenham desempenhado atividades sócio-econômicas idênticas e, em alguns casos, conjuntamente; não foram incomuns as relações afetivas e casamentos entre livres pobres e forros.18 Uma intricada rede de relações sociais parece ter sido construída no decorrer do processo histórico enfocado, gerando formas de convivência e conformando um imaginário coletivo. Vinculado a este último, encontravam-se várias das estratégias empregadas pela população negra mineira, no curso das mútuas adaptações engendradas entre ela e o sistema escravista colonial. Coube, portanto, a investigação de um certo “código de bom comportamento”, como foi definido por Bronislaw Baczko 19, constituído por atitudes e representações modelares e incorporado por uma determinada comunidade. Aqui, fica clara a nossa intenção de buscar auxílio teórico-metodológico na Antropologia para processar uma análise mais voltada ao simbólico e ao ritual. Novamente é possível relembrar E. P. Thompson. Mais resistente que os franceses da “Nova História”20 a uma virtual fusão da História com a Antropologia o revisionista inglês, aliado a Keith Thomas e Natalie Davis, declarava em 1977: Para nós, o impulso antropológico é percebido, sobretudo, não na criação de modelos, mas na demarcação de novos problemas, no modo de ver, com novos olhos, os velhos

17. Estas expressões são usuais na documentação manuseada. 18. Uma certa fluidez marcou a vida colonial mineira e modelou as relações sociais implementadas na Capitania. Neste sentido são elucidativas as análises empreendidas por SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados... op. cit. p.141-213, LIBBY, Douglas Cole. Transformação... op. cit. p.53-64 e 83-124 e LARA, Silvia Hunold. Campos da violência; escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro - 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 208-236. 19. BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In Enciclopédia Einaudi. (trad. port.) vol.5. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, p.309. 20. Ver LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. (trad. port.) Lisboa, Edições 70, 1986, p. 48-49.

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problemas, numa ênfase em normas ou sistemas de valor e rituais, na atenção às funções expressivas das formas de tumultos e distúrbios e nas expressões simbólicas de autoridade, controle e hegemonia.21

Essas balizas teóricas subsidiaram, evidentemente, a metodologia do trabalho, o diálogo mantido com as fontes. Estiveram presentes durante todo o processo de pesquisa e ajudaram nos recortes efetuados, na interpretação das respostas obtidas e na seleção das informações e dos dados resgatados de papeis amarelados e, às vezes, transformados em delicadas rendas. O conjunto documental investigado e que forneceu a base empírica da dissertação constituiu-se de 4 códices de cópias de testamentos, pertencentes ao fundo arquivístico CMS-Câmara Municipal de Sabará, do APM-Arquivo Público Mineiro e de outros 14 códices de testamentos, pertencentes ao acervo do Cartório do Primeiro Ofício do MO-Museu do Ouro de Sabará. Ao todo foram manuseados 18 livros e 620 testamentos, sendo selecionados 357 desses testamentos (57,5% do total) como fontes da pesquisa. Para a seleção foram considerados alguns critérios que merecem ser registrados. Foram excluídos os documentos com datas anteriores a 1720 e posteriores a 1785. No período compreendido entre 1750 e 1785, para o qual existe um volume maior de registros testamentais, adotou-se uma tabela seletiva que excluiu os documentos datados nos anos 2, 3, 4, 7 e 8. Assim, optou-se por trabalhar com os documentos escritos no primeiro ano de cada década, em dois anos de meio (5 e 6) e nos últimos anos (9 e 0) de cada década. Com esses cinco anos escolhidos de forma espaçada, pretendeu-se identificar virtuais tendências e mudanças de costumes entre os testadores, que poderiam não aparecer entre os documentos arrolados se o critério de seleção fosse, por exemplo, os cinco primeiros anos de cada década. Embora não tenha sido possível eliminar todos os riscos, conseguiu-se, certamente, diminuir as possibilidades de perda de importantes características que, em hipótese, teriam desenvolvido-se durante dois ou três anos consecutivos. Esse critério não foi aplicado aos testamentos escritos entre 1720 e 1749, dado o menor volume documental remanescente desse período. Nesse caso, os livros foram integralmente examinados. Para chegar ao corpus de fontes analisado, os 357 documentos, foi necessária a aplicação de outros critérios. Foram automaticamente incluídos todos os testamentos

21. THOMPSON, E. P. Folklore, Anthropology, and Social History; citado por DESAN, Suzanne. Massas ... op. cit. p.71.

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de libertos(as), assim como os de homens e de mulheres livres que alforriavam, coartavam e arrestavam escravos; que registravam qualquer relacionamento social com a população negra; que explicitavam mecanismos de dominação ou que deixavam escapar estratégias de resistência enfrentadas; que, voluntaria ou involuntariamente, expunham para, o futuro, as normas e as mazelas daquela sociedade escravista colonial. Ocorreu, então, que a maioria dos testamentos de homens e de mulheres livres, dentro dos parâmetros acima especificados, foi incorporada ao conjunto de fontes utilizado. O exame desse conjunto documental foi bastante facilitado a partir da codificação dos principais dados dele extraídos e da seleção de informações qualitativas importantes, que, em seguida, foram registrados num programa de computador. Assim, foi possível montar um banco de dados extenso, cruzar os diversos itens existentes e montar séries quantitativas esclarecedoras, difíceis de serem montadas sem a aplicação desses recursos da informática. Algumas dessas séries, é importante dizer, são “crias” do banco de dados. A leitura da documentação, mesmo sendo feita repetidas vezes, não foi suficiente para explicitar a potencialidade informativa dos testamentos. Apenas a leitura da máquina, embora dentro de parâmetros por mim estabelecidos, foi capaz de revelar elementos que o conjunto das fontes ocultava. Porém, esse procedimento não garantiu, sozinho, a construção desta nossa história. Ele forneceu uma base mais sólida para nossas percepções, menos mecânicas, mais permissivas e hipotéticas, parciais e emanadas de uma visão de final de milênio sobre uma sociedade e um tempo passados há mais de duzentos anos. Na verdade, a tecnologia e a percepção humana agiram em conjunto, permitindo esta “viagem” ao passado e ensejando reflexões sobre sua proximidade e seu distanciamento com relação à nossa realidade. Não foi o suficiente, é claro, para responder a muitas de nossas perguntas, de nossas inquietações. Não conseguiu aprofundar-se em alguns aspectos inicialmente considerados importantes e que deixaram de sê-lo com o passar do tempo. Talvez, o mérito mais relevante do trabalho tenha sido de cunho pessoal, isto é, essa “viagem” ampliou minhas incertezas e instigoume a continuar buscando respostas mais completas sobre um universo passado que ainda atua sobre nossas vidas.

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CAPÍTULO II DISCUSSÃO SOBRE AS FONTES: OS TESTAMENTOS E A TEMÔTICA DA RESISTÓNCIA NA HISTORIOGRAFIA

A produção da história é sempre uma forma do poder, uma forma de poder. Creio que numa sociedade o poder se exprime, em particular, como tentativa consciente ou inconsciente de imprimir uma imagem sobre o futuro. (Jacques Le Goff. Reflexões sobre a História.)

TESTAMENTOS E IMAGINÁRIO SOCIAL O tipo de documento que subsidia esta discussão é um dos mais complexos registros históricos disponíveis em nossos arquivos. Os testamentos são relatos individuais que, não raro, expressam modos de viver coletivos e informam sobre o comportamento, quando não de uma sociedade, pelo menos de grupos sociais. Em sua essência, durante o século XVIII, encontram-se elementos definidores do mundo material, bem como da esfera mental da vida colonial. Dois foram os tipos de testamento conhecidos neste período e ambos eram feitos sob mediação do oficial público. Trata-se dos nuncupativos, feitos in extremis, de viva voz ou escritos pelo próprio punho do testador, com a presença de testemunhas e do tabelião público, e os místicos e ológrafos, inteiramente escritos, datados e assinados pelo punho do testador ou a seu rogo, cerrados e lacrados, devendo só serem abertos depois da morte do testador.1 1. MARCÓLIO, Maria Luiza. A morte de nossos ancestrais. In: MARTINS, José de Souza(org.) A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo, Hucitec, 1983, p.68. Uma explicação mais detalhada

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O relato testamental é um local privilegiado para que aflorem os símbolos, cuja função, como esclarecem Berger e Luckmann, “ não é apenas instituir uma classificação, mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos”.(2) É importante ressaltar então que se um símbolo não consegue fixar-se, nem modelar os comportamentos humanos é, sobretudo, por conta de uma certa autonomia daquilo que Bronislaw Baczko chama de comunidade de imaginação.(3) Em última análise, é esta comunidade que aceita ou não incorporar os símbolos, determinando a construção de imagens, a conformação das estruturas mentais e influenciando a dinâmica das relações sociais. O grau de consistência e de consciência existente nas comunidades de pensamento é o que impede a absoluta imposição de valores dominantes e determina a adaptação do cotidiano ao sistema. Entretanto, mesmo diante da diversificação de estratégias de resistência, as estratégias de dominação continuam obtendo êxitos e se renovando incessantemente. Neste sentido, adverte Baczko que “os mais estáveis dos símbolos estão ancorados em necessidades profundas e acabam por se tornar uma razão de existir e agir para os indivíduos e para os grupos sociais”, o que pode facilitar a sua manipulação por parte do poder.4 Os símbolos compõem os hábitos e costumes do dia-a-dia e as atitudes diante a festas, cultos, cerimônias, visitas e viagens, diante, também, do nascimento e da morte. E é esta última expressão da vida que dá sentido ao tipo de documento aqui estudado. Muitos testadores registraram suas últimas vontades quando pressentiram o fim, num momento em que a agonia do corpo e do espírito provocou alterações em seus sentimentos e em seu modo de viver.

é dada por OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: o seu mundo e os outros; Salvador, 1790/ 1890. São Paulo, Corrupio/CNPq, 1988, p.6, onde se pode ler: “O testamento público era lavrado por tabelião, em livro próprio, na presença de cinco testemunhas; o testamento cerrado ou místico era redigido em carta sigilosa, pelo testador ou alguém de sua confiança, autenticado e lacrado pelo tabelião perante cinco testemunhas e registrada nota de aprovação em livro notarail; o testamento ológrafo ou particular podia ser escrito pelo testador ou a seu pedido, diante de cinco testemunhas que deviam tomar conhecimento de seu conteúdo e assiná-lo; o testamento oral ou nuncupativo, realizado perante seis testemunhas; o testamento de mão-comum, feito por marido e mulher, com instituição recíproca, era reconhecido só pelo costume. 2. BERGER, P. L. and LUCKMANN, T. The social construction of reality: a treatise in the Sociology of knowledge. New York, Doubleday, 1966 citados por BACZKO, Bronislaw. Imaginação ... op. cit. p.296-332, p.311. 3. BACZKO, Bronislaw. Imaginação ... op. cit. p. 325. 4. BACZKO, Bronislaw. Imaginação ... op. cit. p.311.

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Walter Benjamin conseguiu captar nos períodos de agonia algumas das transformações comuns aos moribundos. Num de seus textos, onde o objeto de análise é o narrador, ele comenta: Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens - visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.5

A agonia é para o doente o espaço da derradeira narrativa que assume imediatamente, com exceção dos delírios, a condição de verídica junto às pessoas que o rodeiam. Mais do que isso, é o momento de revelar segredos guardados por vários anos, espaço reservado às confissões, à prática dos mais nobres sentimentos cristãos e à tentativa de um acerto de contas espiritual, visando a absolvição divina. Os testamentos setecentistas funcionaram como canais para a expressão destas atitudes, por parte dos habitantes das Minas e do restante da colônia brasileira. Contudo, ao final do século XVIII, esses documentos parecem sofrer alterações importantes em sua estrutura e função. Alguns estudiosos do tema observaram tais mudanças e comentaram o fato. Maria Luiza Marcílio escreve: Até meados do século XVIII, a preocupação religiosa é mais importante que o legado dos bens. O testamento era então um documento para a salvação da alma, era uma verdadeira prece generosa feita a Deus, à `gloriosa Virgem Maria’ e aos intercessores celestes, ante a morte iminente. Só mais tarde ele tornou-se um texto que apenas regulamentava as questões materiais.6

5. BENJAMIN, Walter. O narrador; considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas; magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1987. 6. MARCÓLIO, Maria Luíza. A morte ... op. cit. p.68.

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Kátia Mattoso estudou os testamentos de libertos baianos dos séculos XVIII e XIX dividindo-os em duas séries temporais: 1790-1826 e 1863-1890. A autora identificou algumas alterações importantes ao comparar as duas séries. Entre elas destaca-se uma aguda diminuição, no segundo momento, de homens e mulheres ligados a Irmandades. A porcentagem de testadores sem filiação torna-se superior a 80% entre ambos os sexos, enquanto que no primeiro momento somente 15% dos homens e 17% das mulheres encontravam-se nessa situação.7 Continuando as comparações, Mattoso demonstra para a segunda metade do oitocentos um aumento acentuado do número de testamentos onde não são pedidos qualquer tipo de sufrágio e uma perda da importância dada ao modo de sepultamento, à mortalha a ser utilizada e ao lugar da sepultura.8 As alterações não se restringiam ao grupo dos forros, mas faziam parte de transformações mais profundas na mentalidade da população baiana. Ainda que o empobrecimento geral de Salvador no final do século XIX fosse importante fator, o econômico é incapaz de, sozinho, explicar a metamorfose comportamental ocorrida, embora a autora não tenha apontado outros aspectos.9 Transformações em toda a estrutura da vida cotidiana foram sentidas na Europa setecentista, o que, de uma forma geral, parece ter sido a matriz das alterações processadas por aqui. Michel Vovelle, num texto sobre a morte e a história das mentalidades, consegue resumir em um parágrafo os acontecimentos no velho mundo. De acordo com ele, essas grandes reviravoltas da sensibilidade coletiva não afetam unicamente a representação da morte, mas desde a família aos sistemas de valores tudo é afetado. Inclui-se, nesse caso, por exemplo, a mudança que ocorreu nas mentalidades ocidentais em fins do século XVIII, aproximadamente em 1760, em uma fase em que tudo se alterou: atitudes diante da vida, do casamento, da família e do sagrado. Essas são crises nas estruturas profundas e aparentemente melhor enraizadas da sociedade. Mais do que a peste negra no declínio da Idade Média, foi a crise da sociedade feudal ou cavaleiresca que determinou a instabilidade geral da qual a dança macabra não foi senão uma das expressões.10

7. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX; uma fonte para o estudo de mentalidades. Salvador, Centro de Estudos Baianos/UFBa, 1979, p.23. 8. id. ibid. p.24 e 25. 9. id. ibid. p.31 e 46. 10. VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades (trad.). São Paulo, Brasiliense, 1984, p.149-150.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA O século XVIII foi palco de grandes rupturas com o velho estilo ocidental de viver e serve, também, como referência privilegiada para o nascimento do mundo e do homem modernos. Na América, sobretudo nas regiões de colonização ibérica, o antigo sistema colonial persistiria até as primeiras décadas do oitocentos, não obstante as alterações ocorridas no dia-a-dia dos colonos, o estreito contato com a nova realidade européia e as tentativas internas de transformações sociais. O escravismo determinava toda a dinâmica de vida em extensas áreas do Novo Mundo. Ao sistema, adaptaram-se mecanismos de dominação e de resistência e moldaram-se as relações mais ordinárias entre colonizador e colonizado, livres e libertos e senhores e escravos. Muitas foram as formas usadas para preservar a ordem dominante e várias foram as alternativas de resistência encontradas. Neste último caso, os registros deixados não são tão numerosos e nem sempre encontram-se explicitamente descritos. Contudo, o resgate deste universo é possível. É o que se pretende demonstrar a seguir com a análise do conteúdo dos testamentos, partindo-se do individual em direção às expressões coletivas.

AS DISPOSIÇÕES TESTAMENTAIS Os mais de seiscentos testamentos copiados nos dezoito códices investigados pertenceram a homens e mulheres diferentemente classificados na escala sócioeconômica colonial. Isto equivale a dizer que os testadores integravam grupos sociais distintos como o dos livres e o dos libertos ou como o dos brancos, o dos negros, o dos crioulos e o dos mestiços, existindo, também, as diferenciações internas baseadas no sexo, no trabalho e na fortuna. As impressões contidas nos documentos, embora produzidas no âmbito coletivo, requerem, inicialmente, um exame individualizado. Geralmente elaboradas em momentos de pouca nitidez entre os limites da vida, da morte e do além, as disposições de cada testador expressavam, explícita e implicitamente, o seu passado e o que nele ficou bem ou mal resolvido. Neste contexto a omissão costuma fazer-se freqüente, emprestando maior valor aos silêncios e às entrelinhas do texto. É interessante notar que as declarações (e por conseguinte algumas omissões mais comuns) têm lugar apropriado no corpo do testamento, fato certamente vinculado a regulamentações oficiais, que estipulavam o modelo para a produção documental. Os testamentos apresentavam, em geral, quatro ou cinco partes bem definidas: 1a) Invocação da Santíssima Trindade; localização e datação do documento; identificação do testador (nome/ condição - no caso de libertos -/ naturalidade/ nacionalidade/ filiação/ domicílio/ estado civil/ cônjuge/ filhos/ ofício; a data de nascimento ou mesmo a idade aproximada nunca eram registradas) e indicação do(s) testamenteiro(s) e herdeiro(s) universal(is).

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2a) Disposições e legados espirituais local e forma detalhada do sepultamento, número de missas por intenção da própria alma e pelas almas de outras pessoas, bem como o local ou locais dessas missas). 3a) Inventário resumido (às vezes completo) dos bens móveis e imóveis; alforrias, coartações, arrestos e vendas de escravos; disposições e legados materiais e identificação de dívidas e créditos. 4a) Disposições gerais, assinatura ou sinal do testador, assinaturas do escrivão e do oficial responsável pelo registro, pela aprovação e pela abertura do testamento. 5a) Codicilos (poucos testamentos os apresentavam). Vejamos, em cada parte, os virtuais subsídios para o estudo proposto; deve ser lembrado que a documentação aqui analisada é representativa de uma só região da Capitania: a comarca do Rio das Velhas. É pertinente observar, ainda, que nem todas as pessoas faziam seus testamentos e outras não os registravam. Boa parte da população livre e liberta nada tinha para legar. Os poucos bens que alguns possuíam não justificavam a feitura de um testamento, mesmo considerando-se os desejos espirituais que eventualmente pudessem ter ou problemas de sucessão familiar. Entre os grupos abrangidos pelo universo documental aqui utilizado não se incluem aqueles formados entre a camada mais pobre da população. Não obstante, alguns desses últimos, como por exemplo o dos escravos, o dos recém libertos e o dos enjeitados, mereceram freqüentes referências nos testamentos dos senhores e dos criadores, minorando as dificuldades surgidas da quase inexistência de seus próprios testamentos. O fato de as informações sobre esses indivíduos passarem pela ótica de grupos dominantes não invalida a utilização dos documentos, cabendo ao investigador a leitura crítica dos mesmos. Passemos então às cinco partes acima especificadas. Na primeira, as informações que identificam o testador são as mais importantes. Através delas é possível proceder uma série de divisões, começando por se observar a proporção de homens e de mulheres, de portugueses(as), de estrangeiros(as), de brasileiros(as) livres, de libertos(as) brasileiros(as) e africanos(as). Dados e informações dispostos nos capítulos posteriores demonstrarão que o grupo de maiores posses era o dos homens livres, entre os quais os portugueses eram mais numerosos e ostentavam privilegiada situação financeira. Quantitativa e hierarquicamente, as mulheres forras dariam prosseguimento a esta escala de posses, seguidas das mulheres livres e dos homens forros. A classificação acima não diverge do resultado obtido após o exame de listas de contribuintes do Real Donativo, feitas em Vila Rica, entre 1727 e 1733. Lá, as mulheres forras formavam a segunda categoria que mais pagou tributos sobre as

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E DUARDO F RANÇA P AIVA vendas e os escravos possuídos.11 A situação alcançada pelas libertas influenciou as atitudes cotidianas e a mentalidade do grupo, como se observará mais à frente. As declarações concernentes ao estado civil e aos nomes do cônjuge e filhos trazem, por sua vez, informações importantes. Aqui, tanto as declarações quanto as omissões em relação aos filhos ilegítimos são freqüentes, sobretudo por parte dos homens. O alto índice de bastardos pode ser constatado nesta primeira parte dos testamentos e será melhor discutido nos capítulos III e IV. Passemos à segunda parte dos testamentos: disposições e legados espirituais. Aí se concentram uma série de informações sobre as crenças e atitudes religiosas dos testadores diante da morte iminente. Eles dispunham sobre a forma de sepultamento do corpo, assim como de seu cortejo até o jazigo, cuja pompa pode ser dimensionada através do número de párocos que deveriam acompanhá-lo e rezar missa(s) de corpo presente, da irmandade que deveria encaminhá-lo à tumba e das velas que, às vezes, eram distribuídas entre os demais componentes do cortejo. De uma forma geral, optava-se por envolver o corpo em hábitos de São Francisco ou de Nossa Senhora do Carmo e na falta deles, o que parece ter sido comum, em lençóis e túnicas de bretanha. Por causa da falta dessas peças mortuárias, alguns testadores adquiriam o hábito de sua preferência antes que morressem. Optava-se, também, pelo local da sepultura. Geralmente, indicava-se a igreja, preferindo-se, em Sabará, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição e, no caso dos libertos, a Capela de Nossa Senhora do Rosário. Por vezes, a indicação era mais precisa, como no caso de Joana da Rocha, preta forra, domiciliada no Caquende, em Sabará, em 1758. Joana determinava que seu corpo fosse sepultado na Capela de Nossa Senhora do Carmo, “ao pé da pia de água benta”, se ela morresse no “sítio e fazenda de Francisco da Silva Forte”, onde parecia estar hospedada. Se, no entanto, ela morresse em Sabará, o sepultamento deveria ocorrer na Capela de Nossa Senhora do Rosário, amortalhada em hábito de São Francisco, sendo o corpo acompanhado por três sacerdotes, “entrando o meu Reverendo Pároco” e os outros a rezar missa de corpo presente.12 Entre os libertos testadores, foi muito comum a absorção desses costumes cristãos e europeus. Da mesma forma, tinham o hábito de mandar celebrar dezenas e até centenas de missas por intenção da própria alma e da alma de outras pessoas. Algumas testadoras forras chegaram a mandar celebrar missas pelas almas dos antigos senhores.

11. APM/CMOP - códices nos 23, 24, 26 e 29. 12. APM/CMS - códice 24, f.48. Testamento de Joana da Rocha - Fazenda de Nossa Senhora do Carmo do Rio Abaixo 30 JUN 1758.

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Africanos e crioulos libertos dispuseram sobre o sepultamento de seus corpos de forma muito semelhante à observada entre os europeus e seus descendentes na Colônia. Uma das formas mais eficientes de dominação utilizada pelos colonizadores -a imposição de valores culturais e religiosos- faz-se presente no cativeiro e na vida dos libertos, embora tal mecanismo não tenha conseguido erradicar as manifestações das várias culturas africanas presentes na Colônia. Não obstante, a incorporação de valores dominantes moldou a vida daqueles negros, sobretudo a vida dos libertos, expressando-se no dia-a-dia das relações sociais. As informações contidas na terceira parte dos testamentos subsidiam as observações feitas no parágrafo anterior. Elas revelam, também, nobres atitudes e sentimentos - benevolência, piedade, estima, gratidão e reconhecimento - que povoavam o espírito dos moribundos de todas as condições e que certamente, para eles, representavam o ingresso no reino de Deus. Por vezes os primeiros legados materiais destinavam-se às igrejas e às causas religiosas. É claro que as doações variavam conforme as posses e as intenções dos testadores. Muito ricos, foram os legados desse tipo feitos por Izabel Moreira de Castilho, paulista da Vila de Taubaté, moradora em Sabará, em 1756, e casada com o Alferes André Francisco Braga sem que tivessem filhos. Izabel deixava 100.000 réis para o ornato do altar da Matriz de Sabará, onde deveria ser colocada uma imagem de Nossa Senhora do Carmo que havia sido encomendada ou para serem utilizados naquilo que os irmãos achassem mais necessário; uns brincos e um laço de diamantes que possuía, para o ornato da imagem; 200.000 réis para ajudar na pintura do corpo da Matriz; 30.000 réis para o ornato do altar do Senhor dos Passos da Matriz; 30.000 réis para a compra de cera para se rezar o terço no altar de Nossa Senhora do Rosário; 60.000 réis para o ornato do altar da Capela de Nossa Senhora do Ó de Sabará; 30.000 réis para o ornato do altar do Senhor São José, de quem era devota, na Matriz; 400.000 réis para ajudar seu sobrinho, o Doutor João Baptista Lopez, a se ordenar; 400.000 réis para ajudar outro sobrinho, Thomaz de Faria, a se ordenar; 100.000 réis para os lugares santos de Jerusalém; 100.000 réis para as obras do convento de São Francisco em Lisboa e 100.000 réis para o vigário da freguesia, que deveria distribuí-los entre pessoas pobres.13 O inventário dos bens dos testadores também revelam aspectos interessantes da vida cotidiana. Entre as mulheres foi mais comum o arrolamento de utensílios domésticos e jóias, enquanto que os bens imóveis, as roupas, os créditos e os escravos eram relacionados por testadores de ambos os sexos.

13. APM/CMS - códice 24, f.27v. Testamento de Izabel Moreira de Castilho - Sabará 18 SET 1756.

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As mulheres, sobretudo as libertas, possuíam freqüentemente tachos e bacias de cobre usadas para fazer doces, garrafas e copos de vidro e, em alguns casos, chocolateiras. As jóias mais comuns eram os cordões de ouro e brincos de ouro e pedras. Já entre as vestimentas, eram muito citadas as saias de seda e de baeta e as camisas de linho e de bretanha. Note-se que a posse daqueles utensílios domésticos esteve associada, em muitos casos, à atividade comercial - vendas e tabuleiros - desenvolvida pelas mulheres forras ou por suas escravas. Em relação às jóias e a outros valores - ouro em pó e objetos em metal e pedras preciosas - é importante ressaltar que foram freqüentemente empenhados, fazendo parte de um eficaz e generalizado sistema de créditos e débitos, integrado por forros e livres de ambos os sexos. Este fato evidencia a monetização do universo mineiro colonial. O mais importante de todos os bens era, contudo, o escravo. Neste aspecto, os testamentos são fontes de grande valor, uma vez que trazem, quase sempre, a identificação de cada cativo, seu nome e sua origem. Mais raramente eram indicados a idade aproximada, a filiação, o estado civil, o nome dos filhos e as características pessoais de cada um. Além disso, os testadores registravam as alforrias e coartações, assim como as condições exigidas para efetivá-las. Em alguns casos, os proprietários procuraram dar rumo à vida de seus escravos após receberem suas cartas de alforria, através de legados materiais previstos nos testamentos. Houve libertos que herdaram moradias, instrumentos e condições de trabalho. Facilitado o acesso aos meios de produção, vários escravos construíram e gerenciaram suas fontes de rendimento, o que garantiu para uns a efetivação da alforria e para outros o início de um processo de libertação. Na verdade essas práticas são expressões de um sistema mais amplo e ainda pouco conhecido, no que se refere à Minas colonial, cuja estrutura comportava a chamada “brecha camponesa” e suas similares urbanas, bem como as coartações e o “ganho”. Se essas estratégias possibilitavam a manumissão de cativos, por outro lado, elas utilizavam-se exatamente desta possibilidade para imprimirem um controle físico e ideológico sobre a população negra, escrava e liberta. A condição de forro embranquecia, por assim dizer, os valores e as atitudes mais cotidianas dos libertos. Também entre os cativos, para alcançar-se a alforria, seria necessária a adoção de procedimentos aparentemente pouco contestatórios. Isto, é claro, não reabilita a escravidão, nem debilita a resistência negra, mas concede a esta última uma dimensão mais ampla. Considerando-se, a grosso modo, que o maior objetivo de um escravo era libertar-se e que por parte do forro era tornar-se proprietário, resistir à instituição tão intrinsecamente violenta pode ter significado, até mesmo, a absorção de valores dominantes, tendo em vista objetivos preestabelecidos.

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Ainda assim, é possível vislumbrar-se um código de comportamento que credenciava escravos à libertação e forros ao status de proprietário, tanto de imóveis quanto de escravos. Entre os primeiros, foram comuns as alforrias condicionais que previam o bom comportamento, a obediência e prestação de serviços por mais alguns anos para serem, então, definitivamente libertados, bem como as alforrias vinculadas aos bons serviços prestados aos senhores. Entre os libertos, sobretudo entre as mulheres e as crianças, o recebimento de dotes e legados materiais previstos em testamento esteve, em muitas ocasiões, vinculado ao posterior “bom comportamento”; para as meninas isto significou, inclusive, a preservação da virgindade ou o não estabelecimento de vida sexual regular até o casamento. Foi, ainda, de grande serventia a participação em irmandades e a incorporação de princípios e costumes cristãos.14 Uma análise mais profunda sobre esses assuntos encontra-se nos próximos dois capítulos. Esta terceira parte dos testamentos prima, talvez em maior grau que as anteriores, pela riqueza informativa. Tal característica não se repete, porém, nas duas partes finais. Na quarta parte finaliza-se formalmente o texto através de disposições operacionais - prazo dado ao testamenteiro para cumprir cada item exposto, aprovação e abertura - e das assinaturas. Os codecilos, por sua vez, não eram comuns. Quando registrados tinham por objetivo alterar legados ou disposições anteriores, embora não tenham representado modificações profundas nos textos originais. Não obstante a divisão dos testamentos aqui adotada, é necessário observar a existência de algumas questões que fugiam às características de cada parte e não tinham localização determinada a priori. Trata-se sobretudo de confissões ou de desvelamentos cujos conteúdos, em alguns casos, parecem ter sido minimizados pela agonia e pela morte. Noutros casos, reconhecer faltas e tornar conhecidas algumas intimidades, podem ter objetivado o perdão humano e divino, bem como a manutenção na memória coletiva de uma imagem ou de um perfil que se desejou duradouro. Como escreveu Walter Benjamim, “a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar”.15 O testador é também um narrador e, neste sentido, utiliza-se de seu texto de morte como instrumento difusor de sua narrativa. As expressões mais importantes e, também, as condições cotidianas de uma convivência material, espiritual e intelectual, encontram-se registradas nos testamentos. É certo que a utilização destes

14. Ver BACZKO, Bronislaw. Imaginação ... op. cit. p.309 onde o autor observa a existência, em toda comunidade, de um certo código de bom comportamento que instala modelos formadores como o do “chefe” e o do “bom súdito”, sustentando todo o imaginário social em vigor e mantendo ativos os instrumentos de manipulação do imaginário social por parte do poder. 15. BENJAMIN, Walter. O narrador ... op. cit p.208

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documentos requer a avaliação de seu alcance social, isto é, o conhecimento de seus limites enquanto fontes históricas e de sua representatividade em relação a uma sociedade complexa, como foi a desenvolvida em Minas durante o setecentos. Uma vez identificada a potencialidade dos testamentos para o resgate do universo colonial, cabe à leitura crítica do historiador o aproveitamento do conjunto de informações daí provenientes.

A RESISTÊNCIA NO ESCRAVISMO MODERNO: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA A política mercantilista adotada pelas coroas européias a partir do século XVI determinou novas estratégias de exploração e comércio e inaugurou nova fase de dominação político-econômica, hoje chamada de colonialismo moderno. Os países ibéricos deram início ao período das grandes navegações e foram os primeiros a se apropriarem das terras americanas, no final do século XV. Décadas mais tarde a Espanha já contabilizava enorme quantidade de ouro e prata proveniente de suas colônias, ao tempo em que os portugueses, sem sucesso junto aos metais preciosos, já estavam trocando o extrativismo vegetal na mata costeira do Brasil pela produção sistematizada de açúcar, principalmente no litoral nordestino da colônia. A introdução da cana-de-açúcar no Novo Mundo parece remontar à segunda viagem de Cristóvão Colombo à América, em 1493, quando haveria transportado mudas da planta, da Ilha da Madeira - onde morava e se casara - para as Antilhas. O historiador norte-americano Stuart Schwartz pensa que nova fase do deslocamento da cana-de-açúcar rumo ao oeste estava se iniciando. A manufatura do açúcar de cana tem origem nas baixadas de Bengala ou no Sudoeste asiático e chegou à costa oriental do Mediterrâneo através de conquistadores árabes, que a trouxeram da Pérsia. Em maior escala foi produzido em Chipre, em Creta, no norte da África e na Sicília, antes de chegar às ilhas ibéricas da costa africana, no século XV, onde o processo produtivo aperfeiçoa-se. Em todos esses momentos a servidão e o trabalho escravo foram utilizados, o que provocou o seguinte comentário de Schwartz: “O sistema de grande lavoura, ou regime de engenhos, havia amadurecido nas latitudes meridionais, e podia, agora, cruzar o Atlântico com trágica desenvoltura”.16 O escravismo veio junto com a cana para o Novo Mundo e as populações nativas foram escravizadas. Nas colônias espanholas “as Leis Novas põem fim, em 1542, à exploração irrestrita da mão-de-obra aborígine, dando lugar à encomienda de

16. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p.21-39.

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tributos e ao repartimiento de índios”.17 Já no Brasil a escravização legal dos índios durou de 1500 a 1570 aproximadamente, embora fossem utilizadas “ várias formas de coerção, bem depois dessa época, para se obter o trabalho indígena”.18 Pressões religiosas sobre as coroas ibéricas no sentido de reconhecerem a “humanidade” de seus súditos indígenas e de convertê-los à fé católica, bem como a suscetibilidade dos nativos às doenças trazidas pelos europeus, concorreram para que ao final do século XVI fossem introduzidos os escravos africanos, principalmente no nordeste brasileiro e no Caribe. Ao findar o quinhentos o açúcar já havia alcançado importante lugar na dieta da elite européia e a sua produção precisava, cada vez mais, de mão-de-obra escrava, o que parece ter contribuído com a rentabilidade do tráfico atlântico. Durante os mais de trezentos anos que se seguiriam alguns milhões de negros africanos cruzariam o Atlântico amontoados nos desumanos “tumbeiros”19 e outros tantos milhares morreriam antes de alcançar a costa brasileira ou logo que aqui desembarcassem. Muitas são as estimativas sobre o número total de escravos africanos introduzidos no Brasil e no restante da América escravista, mas a quantidade exata jamais será conhecida, como observa Robert E. Conrad.20 Philip D. Curtin, em sua síntese crítica da produção historiográfica sobre o tráfico, calcula terem sido trazidos para as regiões escravista um total entre 9,5 e 10 milhões de escravos, no período que se estende do século XVI ao século XIX. Desse total, aproximadamente, 35% teriam vindo para o Brasil, 15% para as colônias espanholas, o mesmo tanto para as Índias Ocidentais Inglesas e para as colônias francesas, separadamente, e o restante distribuído entre as colônias holandesas, os Estados Unidos e as colônias dinamarquesas.21 Os dados apresentados por Curtin parecem estar subestimados, o que ele mesmo reconhece. Mesmo diante de cifras diferentes22, não restam dúvidas que no século XVIII o tráfico internacional alcançou seu ápice, embora, no caso brasileiro, essa afirmativa seja válida para o século XIX. Mas, no contexto setecentista, é importante

17. CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIGNOLI, Héctor Pérez. História econômica da América Latina; sistemas agrários e história colonial, economias de exportação e desenvolvimento capitalista. (trad.) Rio de Janeiro, Graal, 1984, p.79. 18. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos... op. cit. p.40 19. CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros; o tráfico de escravos para o Brasil. (trad.) São Paulo, Brasiliense, 1985. Numa nota do prefácio do livro o autor explica: “O termo `tumbeiros’ referia-se não apenas aos navios negreiros, mas também aos caçadores ou compradores de escravos na África, que os conduziam até a costa. Os navios negreiros também eram chamados de `túmulos flutuantes’.”, p.10. 20. CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros... op. cit. p.34. 21. CURTIN, Philip D. The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison, Wisconsin, 1969, p.47-49. 22. Ver CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros ... op. cit. p. 34-35 e 44.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA frisar, o Brasil e o Caribe importaram a maior parcela dos africanos vindos para o Novo Mundo e Minas Gerais foi, certamente, uma das regiões que mais forçaram o aumento da demanda internacional. Não obstante a grandeza e complexidade do sistema escravista aqui engendrado, preferiu-se escolher um tema para ser abordado nesta revisão, evitando torná-la demasiadamente extensa. Assim, optou-se pela resistência escrava, um dos eixos centrais deste estudo, que será confrontada com uma bibliografia também selecionada.

A RESISTÊNCIA ESCRAVA Há algum tempo os estudos sobre a escravidão vêm tentando aprofundar suas análises com relação a resistência escrava no Novo Mundo. De simples instrumentum vocale, resquício da teoria jurídica romana23, e de coisa, o negro cativo vem sendo examinado enquanto agente do processo histórico, o que efetivamente o foi. Vem sendo desfeita a imagem de um ser inteiramente submisso ao poder e aos desejos do senhor, sem qualquer espaço para a expressão de suas tradições culturais e de suas convicções, desprovido de cabedais e de possibilidade de influenciar nas transformações sociais, no que se refere ao estatuto da propriedade privada. Da mesma forma vem sendo contestado o entendimento de resistência somente enquanto fuga, rebelião e violência contra o senhor ou representante, o que tem criado alguma polêmica entre os partidários das diferentes concepções. Um dos precursores desse revisionismo foi o sociólogo Gilberto Freyre que em 1933 edita sua obra mais importante: Casa-grande e senzala. Já naquela época, esse pernambucano rejeitava a noção de inferioridade dos negros em relação aos brancos, explicitava o destacado papel desempenhado pelos negros na formação da sociedade brasileira - refutando, dessa forma, a necessidade de embranquecimento da população defendida pelas elites - e trazia os escravos e seus descendentes para o primeiro plano de sua análise. Embora passível de críticas, sobretudo no que concerne à sua visão idílica da sociedade e das relações escravistas no Brasil (camuflando os conflitos entre classes e a violência da instituição), o pioneirismo e a atualidade do autor são incontestáveis. Freyre ainda exerce influência sobre as gerações mais novas de cientistas sociais, aqui e no exterior, e sessenta anos após a edição de seu primeiro livro mantem-se como um dos estudiosos do tema mais citados e mais causadores de polêmica.24

23. Sobre esse aspecto da escravidão antiga e do Direito Romano e sobre sua sobrevivência junto à escravidão moderna ver: ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. (trad. port.) Porto, Afrontamentos, 1982, p.24 e GENOVESE, Eugene D. A terra prometida; o mundo que os escravos criaram. (trad.) Rio de Janeiro, Paz e Terra/CNPq, 1988, p. 22-23. 24. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala; formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 27a ed.,Rio de Janeiro, Record, 1990.

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A negação da visão benevolente de Gilberto Freyre viria a partir dos anos 50, com os estudos de Roger Bastide e Florestan Fernandes, e dos anos 60, com os trabalhos de Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.(25) Caía por terra a idéia de um paraíso racial no Brasil, fruto de uma integração harmoniosa das raças obtida a partir da formação católica do povo brasileiro - imagem contrária ao que teria ocorrido no sul dos Estados Unidos, difundida através dos trabalhos de Frank Tannenbaum, nos anos 40 e de Stanley M. Elkins, nos anos 50, ambos influenciados pela leitura de Gilberto Freyre.26 A revisão historiográfica empreendida negava a análise patriarcalista e idílica e passava a enfocar a violência das relações senhor/escravo. Com isto, entendeu o cativo mais como objeto dessas relações e menos como agente histórico, limitando a resistência às três formas mencionadas acima. São representativas do pensamento da época as seguintes afirmações de Emília Viotti: Entre a casa-grande e a senzala houve sempre uma tensão permanente que os mecanismos de acomodação e controle social mal conseguiram disfarçar. Nem a `benevolência patriarcal’ com que às vezes se tratava o escravo, nem a dureza dos castigos aplicados com o objetivo de intimidá-lo, conseguiam evitar a indisciplina e a revolta. Insurreições, fugas e crimes expressavam, por toda parte, o protesto do escravizado. O sistema escravista assentava-se na exploração e na violência e recorria à violência para se manter.27

25. BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo in Anhembi, n.10 p.433-490 1953/ n.11 p.14-69,242-277 e 434-467 1953/ n.13 p.39-71 1953; BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1958 (citados por LARA, Silvia Hunold. Campos ... op. cit.); COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. 3a ed., São Paulo, Brasiliense, 1989; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional; o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo, Difel, 1962; IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. São Paulo, Difel, 1962 e IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. 26. A escravidão no sul dos Estados Unidos teria se dado de forma mais violenta e cruel, uma vez que os senhores influenciavam diretamente na organização eclesiástica e que, naquele país, vigorava uma estrutura econômica mais capitalista, dentre outros fatores. TANNENBAUM, Frank. El negro en las Americas. (trad.) Buenos Aires, Paidós, 1968 e ELKINS, Stanley M. Slavery; a problem in American institutional and intellectual life. Chicago, The University of Chicago Press, 1959. 27. COSTA, Emília Viotti. Da senzala... op. cit. p. 469.

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Ainda na década de 40 havia surgido os primeiros sinais de ampliação do conceito de resistência. Eric Williams chegou a empregar a expressão “resistência passiva”, o que significava ociosidade tanto quanto possível, para designar uma das pressões exercidos pelos escravos em prol da libertação.28 Esta noção acabaria abrindo espaço para afirmativas como a de Emília Viotti, reproduzida acima, no que tange à “acomodação”. De toda forma, as idéias de acomodação(adaptação) e de resistência começavam a ser percebidas como não excludentes, embora posições antagônicas sobre o assunto sejam atuais, o que tem gerado discussões e contundentes críticas por parte de estudiosos das mais variadas formações acadêmicas. A historiografia dos anos 70, sobretudo a norte-americana, é que vai intensificar os estudos sobre o universo das relações senhor/escravo, restituindo a este último seu lugar de agente histórico, bem como expurgar o discurso abolicionista e racista que vinha sendo reproduzido pelas ciências sociais até a década anterior. Eugene Genovese publica Roll, Jordan, Roll; the world the slaves made (A terra prometida; o mundo que os escravos criaram, em português), que traz no título a clara intenção do autor: demonstrar o destacado papel desempenhado pelos escravos na formação da sociedade escravista norte-americana.29 O paternalismo é visto de duas formas por Genovese. Por um lado como instrumento de dominação e como estratégia para impedir a solidariedade entre os negros, mas, também, como maneira de extrapolar a contradição fundamental da coisificação, ao estabelecer mútuas obrigações entre as duas partes; este era o entendimento senhorial. A leitura dos escravos não era a mesma. Tratava-se, para eles, de uma estratégia de resistência: aceitava-se o paternalismo em troca da proteção senhorial. A religião era tomada pelos negros como outra arma de defesa e a música religiosa tornava-se um importante meio de protesto. O conjunto dessas regras de convivência permitiu aos escravos norte-americanos conquistarem condições de vida iguais ou até melhores que as dos trabalhadores livres europeus, assim como construírem uma estrutura familiar estável, embora dificilmente conseguissem a manumissão.30 No mesmo ano de 1974 foram publicados “Roll, Jordan, Roll...” e Time on the cross; the economics of american negro slavery de Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, outra obra geradora de muita polêmica.31 Partindo de pequenas amostras quantitativas os autores apresentaram estimativas contestadoras do nível de vida dos

28. 29. 30. 31.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão.(trad.) Rio de Janeiro, Ed. Americana, 1975, p.224. GENOVESE, Eugene D. A terra ... op. cit. GENOVESE, Eugene D. A terra... op. cit. p.23-25 e 81-106. FOGEL, Robert W. e ENGERMAN, Stanley L. Time on the cross; the economics of american negro slavery. Boston, Little, Brown and Co., 1974.

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escravos norte-americanos até então divulgado e reproduzido pela historiografia. Mais do que isto, demonstraram que o sistema escravista do sul dos Estados Unidos não havia sido instalado sobre a irracionalidade dos proprietários, que era próspero na segunda metade do oitocentos, que os cativos eram capazes de aprender e que eram eficientes comparados à mão-de-obra livre. Nos campos as taxas de lucro real por ano eram altas e nas cidades as indústrias fabris utilizavam-se do trabalho escravo, obtendo altos índices de produtividade. Assim, os autores provavam que a escravidão não era incompatível com a sociedade industrial. Em certos aspectos as obras de Genovese e de Fogel e Engerman abonam-se mutuamente. Um sistema escravista tão bem instalado e próspero pressupunha um controle social quase perfeito da escravaria. Dada a pouca tradição das manumissões e a rara ocorrência de fugas e rebeliões, a resistência negra utilizara-se do paternalismo como instrumento de conquistas sociais, tais como a redução dos índices de exploração senhorial, a manutenção de razoáveis condições materiais de vida e de rico regime alimentar e o reconhecimento da família escrava, de suas peculiaridades culturais e religiosas. A sociedade sulista constituía-se e desenvolvia-se sobre costumes e regras construídos por escravos e senhores. Outro importante estudo é o de Herbert G. Gutman, The black family in slavery and freedom - 1750-1925, lançado em 1976.32 Gutman reforça as conclusões dos autores precedentes no que se refere à família escrava. De acordo com os registros de casamento investigados, o autor conclui que a unidade familiar havia sido a norma antes da Guerra de Secessão, inclusive em grandes plantations. Aceitação das uniões conjugais por parte dos senhores sem que a legislação as reconhecesse, casamentos duradouros, incentivos para a reprodução natural, número médio elevado de filhos, regime alimentar satisfatório e fortes relações de parentesco são características que completam o perfil traçado por Gutman. A origem dessa organização social remontaria ao início do século XVIII e se manteria no XIX, fato desautorizador das afirmações feitas por abolicionistas norte-americanos que propagavam a inexistência da família escrava. As teses defendidas nessas três obras abriam caminho para uma série de novos estudos. A rigidez das relações senhor/escravo estava sendo posta em discussão, pois era perceptível um certo acordo estabelecido pelas partes, sobre o qual o sistema se mantinha. Com relação à escravidão norte-americana, resta saber se esse acordo foi suficientemente vantajoso para os escravos a ponto de compensar as poucas alforrias. Já no que se refere ao Caribe e ao Brasil a possibilidade de libertação parece ter incentivado múltiplas formas de resistência, inclusive as disfarçadas.

32. GUTMAN, Herbert G. The black family in slavery and freedom - 1750-1925. New York, Vintage Books, 1976.

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A guinada empreendida pela historiografia nortista não exerceu influência imediata sobre os historiadores brasileiros. Ainda na década de 70, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender enfatizavam o Modo de Produção Escravista Colonial, historicamente novo, baseado na violência, no paternalismo e na reificação do escravo.33 Vale ressaltar que, nesse esquema, não existe espaço para qualquer tipo de acordo, e que é imputado aos cativos o papel de objeto nas relações sociais, exceto quando são partícipes de rebeliões, fugas e atos violentos. Concepções distintas já eram, contudo, apresentadas por outros historiadores no Brasil. Em 1979, Kátia M. de Queirós Mattoso publicava o artigo intitulado Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX; uma fonte para o estudo de mentalidades.34 As influências da “Nova História” francesa se faziam presentes nos estudos sobre a escravidão brasileira. Mattoso ampliava a análise até os libertos, identificando estratégias utilizadas para alcançar-se a manumissão e para, depois dela, obter-se uma certa ascensão econômica. Uma dessas táticas passava pela absorção da mentalidade branca dominante, isto é, adaptações necessárias à sobrevivência no mundo branco e discriminador. Não obstante a riqueza das fontes e do universo mental investigado, a autora explora pouco as formas de resistência registradas, explícita e implicitamente, pelos testadores libertos. Nesse mesmo ano Mattoso lança, na França, a síntese sobre a escravidão no Brasil (basicamente na Bahia) intitulada Autre esclave au Brésil, posteriormente traduzido para o português. Na passagem reproduzida abaixo, ela expõe com mais clareza algumas estratégias e o principal objetivo da resistência empreendida: Falamos também do caráter dessa vida escrava de duas caras, dupla hierarquia, dupla moral e dupla regra de conduta, única solução possível, visto que a repulsa violenta que é a fuga ou a revolta quase sempre são frustadas. (...) Na verdade o escravo termina por adaptar-se, acomodar-se; mas se continuasse escravo, sem possibilidades de promoção individual, ele se integraria de maneira imperfeita ao corpo social global. Somente ao tornar-se homem livre, ou ao menos quando começa a divisar a possibilidade de alforriar-se, é que o escravo cruza a passagem que transforma o prisioneiro infeliz num ambicioso

33. CARDOSO, Ciro Flamarion S. O modo de produção escravista colonial na América. in SANTIAGO, Theo (org.) América colonial: Ensaios. Rio de Janeiro, Pallas, 1975, p.110-124. e GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. 34. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Testamentos ... op. cit.

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alerta, movido por uma esperança tenaz. Então, o escravo adapta-se verdadeiramente a seu meio (...) através da astúcia, arma eficaz dos fracos e dos oprimidos, que possibilita ao escravo fingir-se obediente, fiel e humilde ante seus senhores, fraternal e digno junto aos companheiros de servidão. A dupla adaptação do escravo é, pois, vivida como coisa transitória, devendo levar a um mundo melhor, não o remoto paraíso prometido pelos padres, mas à alforria conquistada, penhor de um futuro palpável.35

O conjunto historiográfico sobre a escravidão nas Américas diversificara-se teórica e metodologicamente com o passar dos anos. Muitos caminhos haviam sido abertos e à década 80 estava reservada uma enorme e mais variada produção científica sobre o tema. Entre os estrangeiros selecionados está Stuart B. Schwartz, Sugar plantations in the formation of Brazilian society: Bahia, 1550-1835, onde preocupou-se em chamar a atenção para a necessidade de se empreender estudos sobre a família escrava no Brasil, dada a importância e a pequena produção dos historiadores sobre o assunto. O autor discorda das opiniões que crêem ter a escravidão impedido a formação de núcleos familiares, embora reconheça as restrições impostas pela instituição. Schwartz adverte sobre a trivialidade do conhecimento público em torno dos “aspectos mais comuns e corriqueiros referentes ao lar, à família, ao trabalho e à recreação”, identificando aí a razão de não terem sido registrados. Neste sentido, afirmava: As limitações do escravismo eram reais e freqüentemente também destrutivas, mas daí crer (...) que a força inerente ao poder dos senhores e o funcionamento da instituição da escravidão determinaram, sozinhos, os parâmetros da vida escrava, é deixar de lado o papel essencial dos cativos na criação de sua própria cultura.36

Uma noção de resistência às vezes parecida com a Schwartz é exposta por Rebecca J. Scott em Slave emancipation in Cuba; the transition to free labor, 18601899.37 A autora dá especial atenção à legislação em vigor, sobretudo à Lei Moret de 35. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo ... op. cit. p.167. 36. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p.311-313. 37. SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho livre - 1860-1899. Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/ED. da Unicamp, 1991.

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1870 que passou a regular a gradual libertação dos escravos cubanos, em detrimento das anteriores pressões exercidas pelos cativos. Em determinados momentos a autora vincula a resistência às possibilidades deixadas pela legislação, e coloca em oposição as idéias de “acomodação” e “resistência”. De acordo com Scott, (...) contestar o senhor, uma resistência medíocre, era mais seguro e mais provável de render frutos. O escravo que resistia a ser açoitado na década de 1860 arriscava-se até a um castigo maior e tinha pouca chance de influir permanentemente sobre sua situação; o patrocinado que levava a acusação de crueldade para as juntas na década de 1880 tinha alguma chance de conquistar a liberdade, e essa possibilidade podia ajudar a contrabalançar a ameaça de retaliação.

E, mais à frente, concluía: Acomodação durante a escravidão podia render privilégios e favores, mas era mais adequado simplesmente para se afastar do sofrimento. Sob o patronato, acomodação que levava à economia de alguns estipêndios do ano e à venda de um porco podia significar liberdade jurídica. Os que depositavam seu dinheiro com as juntas reconheciam que o senhor tinha controle jurídico, mas eles estavam contestando seu direito de conservá-lo. As iniciativas de patrocinados sugerem, portanto, como uma atividade híbrida, nem totalmente de acomodação nem totalmente de resistência.38

Adaptar-se significa, de acordo com a autora, criar a possibilidade de se libertar. Nesta perspectiva, não é cabível a oposição entre acomodação e resistência escrava. Resistir ao sistema significou diversificar as estratégias de acordo com as peculiaridades de cada região e de cada período do escravismo. Num país tão extenso e tão internamente diferenciado como o nosso, a instituição, naturalmente, não foi construída dentro de um único padrão. A historiografia dos anos 80 parece ter se conscientizado disso e passou a empreender estudos com marcos espaço-temporais mais limitados, sem a pretensão de generalizar os resultados obtidos para todo o conjunto brasileiro. O caso mineiro passou a receber maior atenção por parte dos

38. SCOTT, Rebecca J. Emancipação... op. cit p.179-180.

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pesquisadores, uma vez identificado aqui um sistema escravista particularmente complexo e pouco conhecido. A população negra da Capitania (escravos e libertos) transformou-se em objeto de análise de historiadores de várias partes, advindo daí o interesse crescente sobre o papel desempenhado pelas mulheres negras nessa sociedade. O artigo de Luciano Raposo de Figueiredo e Ana Maria Magaldi enquadra-se perfeitamente nesse contexto. Demonstrando a importância que as vendas (de secos e molhados) representavam junto a economia mineira do setecentos, sobretudo em áreas urbanas, os autores destacam o predomínio feminino sobre este ramo comercial, bem como a função por elas assumida de amalgamar as forças de contestação e de forjar “uma identidade entre seus pares pobres, explorados, mas até então diversos”.(39) Minas Gerais era, de acordo com estimativas do último quartel do século XVIII, a Capitania mais populosa da Colônia.40 Um dos estudos mais respeitados sobre o período é de Caio César Boschi. Sua análise incide sobre a atuação das irmandades leigas na Capitania e sobre as intricadas relações de poder que por elas passavam, resgatando, assim, um seguimento pouco explorado da história mineira. Ao abordar as irmandades de negros o autor não deixa de reconhecer que, como as demais, serviram como instrumentos de controle e cooptação social, mas afirma: Se é verdade que as irmandades de negros não lutaram pelo fim do sistema escravista, não é menos verdade que, sem elas, certamente, desapareceria qualquer propósito de solidariedade intra-grupal. Embora não objetivassem a destruição do sistema, as irmandades davam aos negros a oportunidade de desabafar suas agruras, expressar suas necessidades e, até mesmo, tentar influir em seu futuro, procurando tornar suas vidas mais suportáveis.(...) E, nessa medida, os negros souberam utilizarse delas como um instrumento de defesa e de proteção contra os rigores da escravidão41

Continuavam tímidas as discussões em torno da resistência negra e quando se tratava de estudos específicos prevaleciam as abordagens tradicionais anteriormente 39. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de & MAGALDI, Ana Maria. Negras ... op. cit. p.197. 40. Ver ALDEN, Dauril. The population of Brazil in the late eighteenth century: a preliminary survey. Hispanic American Historical Review, n.43 p.173-201, 1963. 41. BOSCHI, Caio César. Os leigos ... op. cit. p.152. 42. GUIMARÃES, Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1983. e REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil; a história do levante dos malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986.

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discriminadas, sem com isso pretender desmerecê-las. Desta forma se caracterizam os trabalhos de Carlos Magno Guimarães e João José Reis, onde exaustivas pesquisas desvendam a surpreendente quantidade de quilombos em Minas Gerais e subsidiam uma nova leitura da rebelião dos malês na Bahia em 1835, respectivamente.42 De maneira semelhante expressa-se Leila Mezan Algranti em seu trabalho sobre as relações escravista no meio urbano. Tomando como cenário o Rio de Janeiro, entre a chegada de D.João VI e a independência brasileira, e como principais fontes de pesquisa os registros da Intendência da Polícia do Rio de Janeiro, Algranti diferencia sua análise quando estabelece alguns padrões de criminalidade escrava. Assim, a violência é discutida dentro dos seguintes itens: • crimes contra a ordem pública • crimes de violência • crimes contra a propriedade • fugas de escravos 43 A mudança de concepção em torno da resistência escrava tem como seu principal marco a publicação de Campos da violência, primeiro livro da historiadora Silvia Hunold Lara, em 1988.44 Lara desloca o foco de análise da violência intrínseca para o universo cotidiano das relações escravo/senhor, destacando os “acordos” estabelecidos pelas partes objetivando uma convivência menos dolorosa e problemática. A abordagem da autora restitui aos cativos o papel de agentes históricos, responsáveis diretos pelo estabelecimento de padrões de sobrevivência e pela criação de sua própria cultura, como já assinalava Stuart Schwartz.45 Influenciaram a discussão de Sílvia Lara, como já vinha acontecendo com outros autores, o pensamento de alguns expoentes da “Nova História” francesa e do revisionismo marxista inglês, principalmente o de Edward P. Thompson.46 A relações de dominação, as estratégias de resistência e o cotidiano das vivências foram buscados

43. ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente; estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988. 44. LARA, Sílvia Hunold. Campos ... op. cit. 45. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos... op. cit. p.312 46. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir; o nascimento das prisões.(trad.) Petrópolis, Vozes, 1977; LEFORT, Claude. Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas. In: As formas da História.(trad.) São Paulo, Brasiliense, 1979; THOMPSON, Edward P. The poverty of theory & other essays. London, The Merlin Press, 1978 e THOMPSON, Edward P. La sociedad inglesa del siglo XVIII: lucha de clases sin clases? In: Tradición, revuelta y consciencia de clase.(trad.) Barcelona, Ed. Critica, 1979, p.13-61.

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nos processos criminais e nos autos de inquirição de escravos fugidos. A opção metodológica determinou os excelentes resultados obtidos. Ao concluir seu estudo Lara observou: Ora, ao longo deste trabalho nos deparamos com escravos que formalmente reiteravam as expectativas senhoriais de fidelidade, obediência e trabalho assíduo para obter suas alforrias ou cumprimento de tratos sobre alimentação e vestuário, escravos que aproveitaram a ocasião de sua própria venda para escolher seu senhor, que se recusaram a certos trabalhos, fugitivos que depois de capturados tentavam ainda esconder-se de seus senhores através de respostas propositalmente erradas nos Autos de Inquirição.47

E continuou à frente: negavelmente, estas são formas de resistência. Não estão abarcadas, porém, nem pelo binômio ação-reação, nem por uma classificação baseada na `violência’. Mais ainda: muitas delas constituem ações de resistência e ao mesmo tempo de acomodação, recursos e estratégias variados de homens e mulheres que, em situação adversas, procuravam salvar suas vidas, criar alternativas, defender seus interesses.48

O esforço de Sílvia Lara rendeu frutos imediatos. Um ano depois João José Reis e Eduardo Silva (re)lançavam vários artigos em forma de livro, buscando discutir as diversas maneiras de resistir e de ver a resistência. A negociação, empreendida no dia-a-dia, integra, com destaque, as reflexões dos autores, que crêem ser instaurada a ruptura - a fuga e a revolta, por exemplo - após a falha das negociações ou mesmo quando elas nem chegavam a se realizar.49 A participação das mulheres negras junto a essas práticas contestatórias permaneceu, todavia, quase que inteiramente desconhecida. Isto é constatado num

47. LARA, Sílvia Hunold. Campos... op. cit. p.344. 48. LARA, Sílvia Hunold. Campos... op. cit. p.345. 49. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito; a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p.7-11.

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estudo de Liana Maria Reis que aponta para o descuido da historiografia com questão tão relevante, sobretudo em áreas urbanas.50 Ainda nesta linha de estudos Sidney Chalhoub promove uma discussão sobre a escravidão na Corte brasileira, em seus últimos anos de vida. Retomando Genovese e Thompson o autor mostra que a interpretação da liberdade pelos escravos não era a mesma feita pelos senhores. Enquanto que para os primeiros o significado envolvia a desvinculação do cativeiro e o direito ao movimento, os segundos objetivavam a criação de uma rede de dependentes ao seu redor. Chalhoub enfatiza, ainda, que as alterações ocorridas na legislação - reconhecimento de alguns direitos adquiridos foram conquistas oriundas das pressões cotidianas dos escravos.51 A historiografia brasileira vem, sem dúvida, avançando bastante em seu esforço de compreensão do sistema escravista que por mais de trezentos anos perdurou no país e que, por isso, marcou definitivamente nossa sociedade. Entender os escravos como agentes históricos que transformaram o seu tempo e construíram nossa cultura, como homens e mulheres que resistiram de todas as formas e a todo custo, inclusive adaptando-se ao sistema, à sua redução a meros objetos do poder senhorial, não é negar a violência da escravidão nem reabilitá-la, como entende Jacob Gorender.52 Trata-se, sim, de impedir que a virulência da instituição continue ocultando a discordância de milhões de negros -inclusive os libertos- e os diversos caminhos encontrados por eles, coletiva e individualmente, para minimizá-la e/ou destruí-la, conquistando, então, a libertação. Cabe assinalar que a cada nova estratégia de dominação, novas estratégias de resistência são desenvolvidas e vice-versa; no escravismo imposto a vastas regiões americanas, durante todo o tempo, tanto os escravos adaptaram-se ao sistema, quanto este último adaptou-se aos primeiros, talvez com maior intensidade. No caso brasileiro e, mais especificamente, no caso mineiro, os acordos acertados entre proprietários e propriedades, no dia-a-dia das relações, assumiram contornos ainda pouco conhecidos pela historiografia. As variadas maneiras para que a libertação se concretizasse, assunto do capítulo que segue, é um desses traços merecedores de maior atenção.

50. REIS, Liana Maria. Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII. Revista do Departamento de História. UFMG, Belo Horizonte, n.8 p.72-85 1989. 51. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade; uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990. 52. GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo, Ática/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990.

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CAPÍTULO III CAMINHO DA LIBERTAÇÃO

“É uma experiência e tanto viver com medo. Isto é que é ser um escravo.” (Ridley Scott. Blade Runner.)

Para melhor compreender e contextualizar o universo mineiro colonial é importante examinar os dados censitários disponíveis para a região. Com isso, será possível estabelecer a composição populacional, em termos de condição legal (livre, liberto ou escravo) e qualidade (branco, preto, negro, crioulo, pardo, mulato, cabra), o que indicará a crescente importância da população liberta e de seus descendentes livres no quadro de habitantes da Capitania. Componente importante dessa ascensão numérica dos forros, era o conjunto de práticas de libertação, principal objeto de estudo deste capítulo, largamente utilizado nos numerosos centros urbanos instalados em Minas. A confrontação entre as informações censitárias permitirão, também, vislumbrar a importância das vilas e arraiais até o final do século XVIII e subsidiarão observações sobre a destacada posição alcançada pela Vila de Sabará nesse período. É evidente que as cifras relativas ao tráfico atlântico darão início a esse exame. Centenas de milhares de africanos escravizados, como já se demonstrou, tinham sido introduzidos no Brasil, até o final do século XVII, demandados pelas plantations açucareiras e pelos demais ramos da economia colonial brasileira. Com a descoberta de ouro e de pedras preciosas no sertão a necessidade de braços escravos é abruptamente ampliada, resultando em novas e maciças importações de africanos.

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Quase 2.000.000 desses negros entraram pelos portos brasileiros até o final do século XVIII, mais que o triplo das cifras dos períodos precedentes.1 Pode-se estimar que entre 1/4 e 1/3 das importações humanas empreendidas através do tráfico negreiro para o Brasil, durante o setecentos, tenham sido destinados a Minas Gerais, uma vez que a região tornara-se o mais importante centro econômico de todo o império português.2 Contudo, o conjunto da escravaria incluía os nascidos no Brasil, fossem eles crioulos (filhos de pais africanos e/ou crioulos) ou mestiços (filhos da miscigenação entre brancos, negros e aborígines, isto é, mulatos, pardos e cabras), o que tornava a população em cativeiro mais expressiva ainda. Dados censitários sobre os habitantes de Minas, durante o período colonial, são fragmentados e nem sempre trazem informações precisas sobre a realidade observada ou a discriminação entre os estratos sociais aos quais pertenciam os indivíduos computados. Porém, diante da inexistência de documentação alternativa e mais exata, são os precários censos, relações de contribuintes do erário régio e mapas e listas populacionais que têm possibilitado aos historiadores vislumbrar o número de pessoas aqui instaladas. Na verdade, os dados disponíveis devem ser compreendidos como estimativas incompletas e subnumeradas sobre a população real. Partindo, então, de cifras e de fontes primárias citadas por diferentes autores, segue um quadro de informações quantitativas, intencionado a servir de referência geral para a discussão sobre as manumissões na Capitania. 1. Uma discussão sobre as estimativas feitas por vários autores em relação ao número de escravos traficados da África para o Brasil, entre os séculos XVI e XIX, encontra-se em CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros ... op. cit. p.34-43. Até o final do século XVII, o total de escravos transportados para o Novo Mundo e Europa alcançou a marca de 1.637.000 indivíduos. Ver FOGEL, Robert W. & ENGERMAN, Stanley L. Time ... op. cit. p.16. Philip Curtin estimou que a entrada de escravos africanos no Brasil tenha alcançado 50.000 negros no século XVI, o que representou 20% do tráfico para as Américas no mesmo período. No século XVII, entraram 560.000 escravos (41,8% do tráfico para as Américas); para os séculos XVIII e XIX os números são, respectivamente, 1.891.400 (31,3%) e 1.145.400 (60,3%). Ver CURTIN, Philipe D. The Atlantic ... op. cit. p.268. Revisões posteriores tendem a elevar os números, mas não alteram as proporções por região. Ver ELTIS, David. Economic growth and the ending of the transatlantic slave trade. Oxford, Oxford University Press, 1987, p.243-254. (2). Uma fonte oficial britânica (Report of the Lords) calculou, em 1789, que o conjunto das colônias portuguesas na África exportava entre 18 e 20 mil escravos por ano. "Isso incluía 8000 destinados ao Rio de Janeiro e às minas interioranas de Minas Gerais, 5 a 6 mil destinados a Bahia, 5000 a Pernambuco e 1500 ao Pará e Maranhão." Ver CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros... op. cit. p.40. Ver também KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit. p.83-84, onde afirma que " já em meados do século XVIII, cerca de 60 por cento dos escravos que chegavam ao porto de Salvador estavam sendo reexportados para as minas de ouro do interior." Em seu recente trabalho, João Luís Ribeiro Fragoso estima que entre 1822 e 1833 48,4% dos escravos "exportados" do Rio de Janeiro eram transportados para Minas Gerais. Ver FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992, p.146-147.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA Inicialmente, só duas categorias comporão este cotejamento: livres e escravos. Os libertos receberão análise similar mais à frente. Assim, o historiador norteamericano, Herbert S. Klein, afirma que em 1710 havia 20.000 brancos e a mesma quantidade de escravos em Minas Gerais e que sete anos mais tarde o número desses últimos elevara-se a 33.000, ultrapassando o total de brancos.3 Já o Professor A. J. R. Russell-Wood, baseando-se nos censos de 1735 e 1786 e nas declarações de pagamento do “quinto” e do “subsídio voluntário”, além de fontes secundárias apresenta os seguintes dados sobre o contingente escravo4: 1698 1716/17 1717/18 1718/19 1719/20 1723 1728 1735 1738 1739 1749 1786

-

não havia negros escravos em Minas Gerais 27.909 35.094 34.939 31.500 53.000 52.000 96.541 101.607 96.010 88.286 174.135

Para o ano de 1743, Russell-Wood toma as duas matrículas feitas nas cinco Intendências mineiras e chega à seguinte totalização5: Vila Rica Vila do Carmo Sabará Rio das Mortes Serro do Frio Sertão

-

21.643 e 21.746 25.495 e 24.820 22.148 e 22.740 15.380 e 15.340 8.009 e 7.513 895 (uma matrícula)

3. KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit., p.83. As fontes secundárias de onde foram retiradas essas informações encontram-se conjuntamente citadas no primeiro parágrafo das Notas Bibliográficas referentes ao Capítulo 4 - "Escravidão na América portuguesa e espanhola no século XVIII", à p.297. 4. RUSSELL-WOOD, A.J.R. The black man in slavery and freedom in colonial Brazil. Oxford, The MacMillan Press Ltd, 1982, p.110. 5. id. ibid. p.232. O autor não esclarece sobre os limites administrativos referentes a cada uma das regiões incluídas, mas é quase certo que sejam os termos de Vila Rica (Ouro Preto) e de Vila do Carmo (Mariana) - os dois termos faziam parte da mesma comarca de Vila Rica - e as comarcas do Rio das Velhas (Sabará), do Rio das Mortes (São João Del Rei) e do Serro do Frio (Vila do Príncipe, atual Serro). A dúvida permanece, entretanto, para a região denominada "Sertão".

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Quadro I - “Quadro dos habitantes de Minas Gerais, 1776” Homens Comarca Vila Rica Rio das Mortes Sabará Serro do Frio TOTAL

brancos 7.847 6.277 8.648 8.905 41.677

pardos 7.981 7.615 17.011 8.186 40.793

negros 33.961 26.199 34.707 23.304 17.171

total 49.789 50.091 60.366 39.395 199.641

negras 15.187 10.862 16.239 7.536 49.824

total 28.829 32.690 39.210 19.339 120.128

Mulheres Comarca Vila Rica Rio das Mortes Sabará Serro do Frio TOTAL

brancas 4.832 13.649 5.746 4.760 28.987

pardas 8.810 8.179 17.225 7.103 41.317

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Quadro II - “Quadro dos habitantes de Minas Gerais, 1776” (Total de habitantes por comarca)

Comarca Vila Rica Rio das Mortes Sabará Serro do Frio TOTAL

Total (homens e mulheres) 78.618 82.781 99.576 58.794 319.769

Alguns comentários devem ser feitos com relação aos dois quadros anteriores. Percebe-se, claramente, que no final da década de 70 os homens continuavam constituindo a maior parcela da população mineira, mantendo-se à frente do conjunto feminino nas categorias brancos e negros. O número de mulheres suplantava o de homens somente entre os mulatos, a categoria menos diretamente influenciada pelas variações relacionadas a maior ou a menor dimensão dos movimentos migratórios e do tráfico africano. Os mulatos somados aos negros (africanos e brasileiros) formavam a população negra brasileira (escravos e libertos), que nessa época, em Minas Gerais, era três vezes e meia maior que a população branca. Esta última concentrava-se em mais larga escala na comarca do Rio das Mortes, enquanto que o maior conjunto de negros e mulatos encontrava-se na comarca do Rio das Velhas (Sabará), também a mais extensa e populosa de todas.7 Outro importante quadro organizado por Maxwell trata da evolução populacional mineira e inclui as categorias livres (libertos incluídos) e escravos, conforme abaixo reproduzido8:

7. A comarca do Paracatú, cujas terras foram desmembradas da comarca do Rio das Velhas, foi criada pelo Alvará de 16 de Maio de 1815. Ver BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, Promoção-da-Família Editora, 1971, p.341. 8. MAXWELL, Kenneth R. A devassa ... op. cit. p.302. As fontes utilizadas pelo autor encontram-se em "Documentos Diversos-População da Província de Minas Gerais", Revista do Arquivo Público Mineiro, IV (1899) 294-295.

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Quadro III - “Percentagem de escravos na população de Minas Gerais, 1786-1823” Ano

Livres

Escravos

Tota

Escravos%

1786

188.712

174.135

362.847

47,9

1805

218.223

188.761

407.004

46,4

1808

284.277

148.772

433.049

34,3

1821

343.333

171.204

514.537

33,3

1823

378.620

140.365

518.985

27,0

As informações acima podem ser complementadas com dados organizados por Jacob Gorender e discriminados por categorias idênticas. Em 1742, Minas Gerais contava com 80.000 livres e 94.128 escravos num total de 174.128 habitantes, quando os escravos representavam 54% da população. Em 1776, existiam 156.529 livres, 163.240 escravos, totalizando 319.769 pessoas; a proporção de escravos alcançava 51%.9 É após 1776 que a porcentagem de cativos em relação à população global cai para menos de 50% e passa a apresentar uma tendência contínua de baixa. Isso não significa que a população branca tenha aumentado rapidamente e que o conjunto mancípio tenha diminuído em termos absolutos. Ao contrário, o aumento do contingente de livres esteve possivelmente ligado a taxas positivas de crescimento alcançadas pelo grupo composto por libertos e seus descendentes, taxas maiores, inclusive, que as obtidas pelos outros segmentos da população. Neste caso, pode-se conjeturar sobre a existência de equilíbrio, mais acentuado entre os negros livres e libertos, no que tange aos sexos e às idades propícias para a reprodução - no Quadro I, os dados referentes aos pardos e pardas subsidiam este raciocínio. Isto explicaria, satisfatoriamente, as características assumidas pelo quadro populacional mineiro, identificadas para os anos posteriores a 1776. Ainda assim, outros fatores devem ser considerados. A enorme atração que a região mineradora exerceu sobre os moradores da Colônia atingiu, também, os libertos de outras capitanias. O fluxo migratório de forros do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Maranhão, Espírito Santo, dentre outras regiões, estabeleceu-se muito cedo e este fator concorreu para a existência, em Minas, desde os primeiros momentos da ocupação, de expressivo núcleo de ex-escravos. Entre os que tranferiram-se para a região do ouro, muitos eram escravos que vinham acompanhando seus proprietários e aqui alcançaram a manumissão. Após a crise da extração mineral, a migração pode

9. GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. p.454.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA ter continuado marcante, uma vez que a expansão das atividades voltadas para o mercado interno oferecia oportunidades para as camadas mais humildes da população. Resta lembrar que a quantidade e os vários tipos de manumissão empregados em Minas significaram a transferência de um bom número de escravos para o grupo dos livres, conforme nomenclatura utilizada por Maxwell. Examinada a partir da “condição” social, a composição populacional mineira apresentava uma estrutura diferente da sugerida por Maxwell e Gorender. Até o final do século XVIII o grupo mais numeroso continuava sendo o dos escravos, seguido pelo grupo dos libertos e dos descendentes negros livres e, por último, pelos brancos. Algo em torno de 400.000 pessoas, a maior concentração humana entre as capitanias brasileiras, que se distribuía por áreas rurais e por uma rede de núcleos urbanos sem precedente na Colônia. Esta situação levou Herbert Klein a afirmar: Na segunda metade do século, Minas Gerais tinha uma dúzia de cidades com população entre 10 mil e 20 mil pessoas que levavam um estilo de vida urbana altamente desenvolvido, fortemente baseado em trabalho escravo qualificado e não-qualificado.10

Durante todo o século XVIII, moradores das vilas e dos principais arraiais mineiros ostentaram um dos estilos de vida mais refinados do Brasil. Houve demanda constante por utensílios domésticos, de agricultura e de mineração, por adornos em metais e pedras preciosas, móveis, tecidos de inúmeros tipos, artigos alimentares do reino e de outras partes. O ambiente urbano contribuiu, decisivamente, para a incrementação da produção artística local, notadamente a pintura, a escultura e a música, além do desenvolvimento da arquitetura e das técnicas construtivas. Vários mineiros estudaram em Coimbra e Montpellier e aplicaram, nas Minas, o conhecimento adquirido em áreas como letras, direito e medicina. 11 Já nas primeiras décadas do 10. KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit. p.86. 11. A Real Academia Médico-Portopolitana, fundada no Porto, em 1749, era dividida em doze círculos espalhados por Portugal, Espanha e respectivos domínios. Entre eles, existia o Círculo Brasileiro, que contava com sete acadêmicos, sendo que um morava no Rio de Janeiro e os outros em Vila Rica e Mariana. A informação foi retirada de FILGUEIRAS, Carlos Alberto L. O despertar do pensamento científico no Brasil. Belo Horizonte, UFMG, 1989(mimeo.). No segundo quartel do século XVIII, um funcionário da coroa portuguesa fez uma descrição de Minas, que, hoje, encontra-se guardada na Biblioteca Nacional de Lisboa. De acordo com Manoel Soares de Sequeira, "Para se suprirem os negros que continuamente morrem nas Minas é preciso que entrem cada ano 6 mil negros ao menos. Hoje as Minas teriam 150 mil pessoas - os negros seriam 100 mil. A maior parte das gentes são roceiros e mineiros. Os letrados que há nas Minas estão em Vila Rica 15, no Ribeirão do Carmo 9, no Sabará 8, no Rio das Mortes 4. Os médicos são em Vila Rica 3, no Ribeirão um, no Sabará 2. Os cirurgiões serão 80 e as boticas talvez não sejam 30. O mais são oficiais mecânicos, mercadores e taverneiros." citado por MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca; uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993, p.23.

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setecentos, formava-se o “primeiro mercado nacional, que contribuiu para a ligação de unidades até então fechadas em si mesmas e que só agora se abrem, pelo comércio, uma às outras.”12 É certo que as áreas rurais, às vezes prosseguimentos territoriais das zonas urbanas e bastante diferenciadas das monoculturas de exportação nordestinas, contribuíram em boa medida para a conformação dessa sociedade e de um peculiar sistema escravista de produção aí engendrado. Mas coube aos núcleos urbanos sustentarem a dinâmica social processada na Capitania. Vila Rica e Mariana sempre foram rivais na pompa e na importância política e contavam, para tanto, com as atividades mineradoras, ainda produtivas na segunda metade do século, com um ativo comércio praticado pelos moradores e com os privilégios provenientes do fato de serem, respectivamente, sedes dos governos civil e eclesiástico de Minas. Não diferia muito, tanto qualitativa como quantitativamente, a situação ostentada por duas outras vilas: Sabará e São João Del Rei. Nessas duas cabeças de comarca a população dedicava-se à mineração e ao comércio e esteve ligada às atividades agropastoris em muito maior escala que nos outros dois centros. Além disto, Sabará e São João Del Rei localizavam-se, estrategicamente, entre as zonas de produção primária e as áreas mineradoras centrais, que precisavam ser abastecidas. Por esses motivos é que em 1808, no final do período colonial, Sabará ultrapassara todas as outras vilas no que diz respeito ao número de moradores, como pode ser visto através dos dados retirados de mapas de população e reproduzidos abaixo13:

12. A afirmativa é de IGLÉSIAS, Francisco. Minas e a imposição do Estado no Brasil. Revista de História. São Paulo, n.50 p. 257-273, 1974, p.260. 13. Este quadro foi originalmente publicado em CAMPOLINA, Alda Maria Palhares et. al. Escravidão em Minas Gerais. Belo Horizonte, Secretaria de Estado da Cultura - Arquivo Público Mineiro/ COPASA MG, 1988, p.31.

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Quadro IV - “População das principais vilas da capitania de Minas Gerais” - 1808 Vilas Vila Nova da Rainha (Caeté)

Brancos

Pretos

Mulatos

570

2.987

1.713

Sabará

11.318

30.976

34.071

São José (Tiradentes)

7.422

10.884

5.837

São João Del Rei

9.064

10.577

5.811

Vila Rica (Ouro Preto)

3.646

10.663

7.913

Mariana

9.114

22.472

18.224

Pitangui

6.379

6.485

4.879

Paracatu do Príncipe (Paracatu)

1.436

5.305

6.097

Queluz (Conselheiro Lafaiete)

4.907

9.316

6.117

Vila do Príncipe (Serro)

7.431

21.752

21.655

Barbacena

5.614

6.266

4.423

São Bento do Tamanduá

7.133

5.316

3.581

TOTAL ......................................

74.034

142.999

120.321

TOTAL GERAL ...........................

337.354

(Itapecerica)

Não obstante os números acima confirmarem a destacada posição assumida por Sabará na virada do século XVIII para o século XIX, eles precisam ser vistos com alguma cautela. A principal ressalva a ser feita refere-se ao fato de que os dados incluem, é quase certo, os moradores dos arraiais, distritos e freguesias que compunham os termos de cada uma dessas vilas. Além disso, o quadro está incompleto uma vez que não constam informações sobre as importantes vilas de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí e da Campanha da Princesa, instaladas, respectivamente, em 1789 e 1798. Não se trata, portanto, da população das vilas em si, o que explica a obtenção de resultados tão elevados. Assim exposto, torna-se mais fácil compreender, por exemplo, porque Sabará aparece com mais de 76.000 habitantes. Ora, o termo da Vila era formado por arraiais, distritos e freguesias importantes, onde residiam alguns milhares de indivíduos. Entre eles destacavam-se Santa Luzia, Santa Quitéria, Congonhas do Sabará, Curral Del Rei, Sete Lagoas, Contagem das Abóboras, Capela Nova do Betim, Venda Nova e Raposos. Fora desses núcleos urbanos havia muitas propriedades rurais, inclusive vários engenhos de açúcar, aguardente e farinha de mandioca, onde os plantéis de escravos eram maiores que a média urbana, além da expressiva presença de agricultores livres trabalhando com suas famílias.

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Para efeito de comparação, mesmo extrapolando os marcos temporais desta pesquisa, é necessário reproduzir estatísticas utilizadas por Raimundo José da Cunha Matos, em sua obra datada de 1837.14 O quadro que segue é um resumo dos dados relativos à “População da Província de Minas Gerais - 1821 (Silva Pinto) - Sumário Demográfico”. Nele encontram-se inseridas novas Vilas, eregidas após 1808, e alguns Julgados importantes. As informações referem-se aos termos de cada localidade e os libertos e seus descendentes foram incorporados à coluna “Livres”.15 Quadro V - População livre e escrava em Minas Gerais - 1821 Termo Vila Rica Mariana São João Del Rei São José Del Rei Queluz Barbacena Tamanduá Campanha Baependi Jacuí Sabará/Curvelo Caeté Pitangui Vila do Príncipe Minas Novas Paracatu São Romão/Salgado/Araxá Desemboque TOTAL GERAL

Livres

Escravos

Total

12.240 30.924 20.152 15.604 12.064 12.990 17.732 29.317 19.012 11.646 44.107 19.022 18.005 40.105 18.620 9.335 6.261 6.458 343.594

5.985 20.751 10.877 13.342 8.609 8.334 7.535 9.595 10.523 2.332 20.640 13.703 7.875 16.781 8.073 2.413 1.439 2.397 171.204

18.225 51.675 31.029 28.946 20.673 21.324 25.267 38.912 29.535 13.978 64.747 32.725 25.880 56.886 26.693 11.748 7.700 8.855 514.798

Comparando-se os números dispostos nos Quadros IV e V, é possível identificar as regiões mais populosas de Minas, base da proeminência sócio-econômica exercida por algumas delas. No que tange às comarcas mineiras, nesse mesmo ano, Cunha Matos identificou uma acentuada concentração populacional na do Rio das Mortes e na do Rio das Velhas. Seus moradores representavam, juntos, algo próximo a 64% do

14. MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Minas Gerais (1837). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1981. 2v. 15. Id. ibid. p.57-61.

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total dos habitantes de Minas. O restante distribuía-se, em ordem decrescente, pelas comarcas do Serro do Frio, do Ouro Preto e do Paracatu.(16) Já no que se refere às sedes dos termos, é provável que a disputa pela posição de maior e mais populosa continuasse entre a cidade de Mariana e as vilas de Sabará e de São João Del Rei, embora uma nova concorrente estivesse destacando-se: Campanha da Princesa. Resumindo todas as informações reproduzidas acima, Minas Gerais que no início do século XVIII contava com um total aproximado de 40.000 habitantes, entre brancos e escravos e excluindo a população aborígene, chegava ao final do setecentos com um número dez vezes maior de moradores, aproximadamente. Mais de 170.000 escravos, entre africanos e crioulos, formavam a principal força de trabalho empregada, complementada por mais de 120.000 libertos e descendentes livres de negros.17 Diante disso é preciso perguntar-se sobre a estrutura sócio-econômica engendrada na Capitania, que permitiu, após os primeiros indícios do declínio da produção aurífera, desde a década de 30, manter o maior conjunto mancípio da Colônia e abrigar a maior população negra liberta e livre de todo o Novo Mundo escravista.18

A SOCIEDADE ESCRAVISTA EM MINAS GERAIS: POPULAÇÃO NEGRA, ESTRUTURA ECONÔMICA E MANUMISSÕES A diversificação econômica foi um dos elementos norteadores para a construção do complexo universo mineiro colonial. Desde as primeiras décadas da ocupação do território houve quem preferisse investir em atividades agro-pastoris, comerciais ou artesanais a arriscar-se na aventura da garimpagem e da faiscação. Produzir e vender para quem pagava com ouro em pó transformou-se em lucrativa opção e não raro existiram os que, além de minerar, plantavam, criavam animais e comercializavam simultaneamente. Um mercado interno em contínuo crescimento garantia a diversidade dos investimentos, assim como a circulação de variada gama de mercadorias, de forma semelhante ao que ocorria nas principais praças européias.19 Entre as comarcas existia uma certa especialização das atividades produtivas ou, pelo menos, de alguns ramos delas, embora em cada uma dessas divisões

16. Id. ibid. p.62. 17. Ver GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. p. 458 e KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit. p.85. 18. Ver KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit. p. 85 e 97. 19. O principal estudo sobre o assunto foi realizado por MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. La société ... op. cit. Ver, também, LISANTI FILHO, Luís. Negócios Coloniais.Brasília, Ministério da Fazenda/ São Paulo, Visão, 1973, v.1.

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administrativas quase todo o elenco de mercadorias de abastecimento estivesse sendo produzido em maior ou menor escala. Assim, os laticínios do Rio das Mortes e o açúcar, o melaço, a farinha de mandioca e a aguardente do Rio das Velhas supria o déficit dos mesmos itens, caso isto ocorresse no Serro do Frio e no Ouro Preto. Nos arraiais e nas vilas, o comércio daqueles artigos e dos importados era feito em larga escala, valendo-se da grande demanda criada por uma sociedade monetizada desde os seus primórdios. Os negócios costumavam ser acertados, lícita ou clandestinamente, nas lojas de mercadorias mais sofisticadas, nas vendas de secos e molhados, nos mercados públicos, nas paragens de tropeiros e no meio das ruas, neste caso, notadamente através das negras de tabuleiro. As ruas também serviam de base para o trabalho cotidiano de outros tantos indivíduos, que ofereciam mão-deobra qualificada ou braços para tarefas de toda sorte. Nelas instalavam-se oficiais mecânicos escravos e libertos, geralmente com suas tendas, divididos entre sapateiros, ferreiros, seleiros, alfaiates e barbeiros, dentre outras ocupações. Aguardando a oportunidade de serviços eventuais ali encontravam-se carregadores, aguadeiros, prostitutas e mendigos.20 As esferas da produção (agrícola e de algumas manufaturas), do comércio e dos serviços, além das atividades mineradoras, em crise, mas ainda importantes para o provento popular, conformavam o complexo, amplo e dinâmico universo econômico da Capitania. A base sobre a qual se desenvolvia, é mister reafirmar, eram as relações sociais de produção escravistas. E é desse emaranhado social que nasciam duas das características peculiares à região: uma relação mais próxima entre senhores e escravos e uma efetiva possibilidade de alforria para esses últimos. Descrevendo o ambiente mineiro na primeira metade do século XVIII, RussellWood afirma: A grande incerteza da indústria [mineradora] e o exorbitante custo do trabalho nos primeiros estágios da descoberta e a exploração ao máximo criaram uma relação entre senhor e escravo diferente da que existia nas sociedades de plantation, afetando a natureza da escravidão em Minas Gerais.21

Eram, com certeza, relações diferentes. A começar pela dependência mais estreita dos proprietários em relação ao trabalho de seus poucos escravos; o plantel médio na 20. Um quadro mais detalhado sobre essas ocupações e que pode ser utilizado, com pequenas ressalvas, para o caso mineiro é possível ser observado em OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p.15. 21. RUSSELL-WOOD, A.J.R. The black ... op. cit. p.109.

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Capitania variou entre 3,7 e 6,5 escravos, embora a posse deles fosse “amplamente distribuída entre a população”.22 Tal proximidade entre as partes acabou moldando cumplicidades cotidianas e acordos implicitamente firmados. Neste sentido, não se pode permitir que a tradicional polarização senhores e escravos camufle uma realidade bem mais complicada, onde parte significativa dos proprietários era constituída por libertos, negros livres e brancos pobres. Não raramente, isto acarretou a divisão de um mesmo espaço de habitação, de trabalhos manuais, da comida e, até mesmo, de intimidades entre possuidores e possuídos. Nesses casos a sobrevivência era igualmente difícil, embora para aqueles últimos a própria condição trouxesse problemas adicionais. Contudo, o desempenho e a fidelidade, reais ou teatralizados, desses cativos poderiam render a almejada libertação. Dois casos exemplificam, satisfatoriamente, as situações descritas acima. O primeiro refere-se a Roza de São Payo, natural do Rio de Janeiro, moradora em Sabará, onde fez seu testamento em 1766. Declarava a testadora nunca ter se casado e não ter filhos. Instituía seu antigo escravo, Raymundo Ribeiro de São Payo, como testamenteiro e universal herdeiro e relatava ter sido ele “nascido de uma escrava minha por nome Jozefa, criei com muito amor mandando aprender ofício de seleiro, na maior idade lhe dei liberdade e lhe passei Carta de Alforria”. Roza registrou, também, que mesmo depois de casado e forro seu herdeiro lhe tinha sido “sempre obediente e humilde e afetuoso maiormente nesta minha enfermidade reconhecendo sempre o benefício que lhe fiz.” Uma vez explicada a situação, ela finalmente declarava: (...) e porque o mesmo Raymundo Ribeiro de São Payo tenho comunicado os particulares de minha convivência e outras disposições que novamente lhe declaro e nenhuma carta que achada que seja por minha morte só ele abrirá e mais ninguém por esse motivo não faço disposições algumas por não querer que meus particulares e segredos passem a outras pessoas e por este motivo torno o declarar por meu testamenteiro e universal herdeiro.23

O segundo caso diz respeito a Vitória do Nascimento, preta forra, mãe solteira, vinda da Cidade da Bahia e moradora em Sabará, onde fez seu testamento em 1762. Dos oito escravos que ela possuía cinco eram negras africanas, além de uma crioula,

22. Os cálculos foram feitos por Francisco Vidal Luna, citado por SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p.368. 23. APM/CMS - códice 53, f. 68v e 69. Testamento de Roza de São Payo - Sabará 23 JAN 1766.

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uma mulatinha e de um único africano. Em sua companhia achava-se, ainda, uma enjeitada que estava criando, uma parda e uma ex-escrava cabra. Tratava-se de uma concentração de mulheres sob o comando de uma negra liberta, que parece ter ascendido economicamente. Entre os testadores arrolados, vários brancos e a maior parte dos forros possuíam plantéis numericamente inferiores. A explicação para a privilegiada situação em que Vitória se encontrava ficou registrada em testamento: “(...) há muitos anos que vivo da ocupação de coser pano para vender ao povo pelas minhas escravas à vista e fiado (...)”.24 Uma parte do trabalho que sustentava a casa era realizada pela proprietária (talvez suas companhias fossem, na realidade, suas auxiliares de costura) ao passo que a outra parte era responsabilidade das escravas. Estas últimas devem, eventualmente, ter participado de todo o processo de produção, isto é, a compra dos tecidos e dos aviamentos necessários; o corte e a costura; os arremates e os possíveis bordados; a venda e a cobrança dos vencimentos dos negócios efetuados à prazo; excluídas aqui as tarefas domésticas que, concomitantemente, deveriam ser executadas. Não era uma situação desvantajosa para elas uma vez que adquiriam uma certa qualificação, permaneciam temporariamente longe do domínio senhorial e podiam desenvolver estratégias para a formação de pecúlio. Nos dois casos citados aflora, também, a confiança depositada pelas senhoras em seus mancípios, o que espelha uma prática comum no universo urbano mineiro, construída menos sobre laços de amizade e respeito que sobre o imperativo da necessidade e da conveniência. Mais próxima a este padrão encontra-se a outra peculiaridade mineira, mencionada acima: a real possibilidade da alforria. Novamente, a junção entre a ampla rede urbana, a diversificação precoce da economia e o mercado consumidor daí emergido formam um dos elementos determinantes do movimento de manumissões presente na Capitania. Outro elemento fundamental e não necessariamente derivado do primeiro, embora dele dependente, são as ocupações assumidas pelos escravos, muitas vezes vinculadas à herança cultural trazida pelos africanos e adaptada ao Novo Mundo. O pequeno comércio é o melhor exemplo. Largamente praticado pelas mulheres negras, crioulas e mestiças, escravas e libertas, ele estava bastante próximo ao papel feminino na produção de comida e nas atividades de mercado, desempenhado em tradicionais sociedades africanas, principalmente na África Ocidental, de onde saiu a maioria dos cativos para o Brasil.25

24. APM/CMS - códice 53, f. 13. Testamento de Vitória do Nascimento - Sabará 02 JUL 1762. 25. Muito importante para a abordagem do tema é o recente estudo de BUSH, Barbara. Slave women in Caribbean society - 1650-1838. Kingston, Heinemann, 1990. Sobre o papel das mulheres na sociedade africana ver p. 48-49.

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A massa escrava participava ativamente das trocas mercantis das cidades mineiras, prestando serviços de toda sorte e consumindo parcela do que era oferecido. A mobilidade característica do sistema em zonas urbanas permitia a construção de uma eclética rede de relações pessoais e comerciais da qual os escravos participaram com certa astúcia, extraindo dela, por exemplo, o pecúlio necessário para a autocompra. Quanto mais dinâmica fosse a economia maiores seriam as oportunidades de nela, sobretudo de maneira informal, buscar o valor das alforrias. Pelo menos em duas situações esse expediente foi utilizado sistematicamente. Pelo escravo de ganho, que tinha de satisfazer os jornais pré-determinados pelo proprietário para depois disto garantir seu sustento diário e algum excedente a ser empregado no futuro pagamento da libertação.26 Neste caso, nada além da conveniência para o senhor ou do poder de persuasão do cativo, assegurava a finalização do processo da forma como desejava este último. O outro usuário das possibilidades oferecidas pela estrutura sócio-econômica das Minas foi o coartado. Entre o cativeiro e a libertação, o coartado inseria-se no mercado de trabalho resguardado, geralmente, por um documento, assinado pelo proprietário, denominado Carta de Corte. Este escrito conferia ao legítimo portador o direito de procurar, próximo ou distante do domínio senhorial, os meios para saldar prestações referentes à compra de sua Carta de Alforria. Stuart Schwartz comenta o seguinte sobre essa variação da condição social de escravo: (...) o costume português no Brasil reconhecia a condição de `coartado’, ou seja, o escravo que conseguira o direito, expresso por seu proprietário em testamento ou outro documento, de pagar pela própria alforria; a esse cativo era permitida uma certa liberdade de movimentos ou a capacidade de obter e conservar a posse de bens que lhe permitissem acumular a quantia necessária. Em síntese, o coartado era um escravo em processo de transição para a condição social de livre.27

Muito comum nas Minas colonial a coartação tornou-se usual desde, pelo menos, a segunda década do setecentos. Homens, mulheres e até mesmo crianças estiveram envolvidos nesse processo, durante um período médio que variou entre

26. O negro de ganho foi estudado por alguns historiadores e é assunto já bem conhecido. Ver ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ... op. cit. p.65-73; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo ... op. cit. p. 140-143; OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p. 18-20. 27. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p. 214.

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quatro e seis anos, obrigados a pagar preços às vezes inferiores e outras vezes similares ou superiores aos de mercado (ver Anexo I). As prestações poderiam ser saldadas a cada semestre ou ano, dependendo do acerto firmado com os proprietários. Um costume largamente praticado foi a concessão de mais tempo aos beneficiados após o vencimento do prazo inicialmente estabelecido, o que parece ter sido uma conquista obtida pelos coartados. É verdade, porém, que alguns senhores não o reconheciam e, caso as cláusulas previstas fossem desrespeitadas, não tinham dúvidas quanto a anulação do processo e a automática volta do escravo ao cativeiro. Um dos exemplos mais interessantes da prática em Minas, embora não deva ser tomado como regra geral, é o do crioulo Cosme Teixeira Pinto, ele próprio um caso atípico, coartado três vezes em 200 oitavas de ouro (300.000 réis) por seu senhor, o Doutor Francisco Jozé de Carvalho Lima, morador em Paracatú e uma quarta vez pelo escrivão das exclusões de Sabará, Jozé de Freitas Pacheco, que o havia comprado do anterior. A primeira coartação ocorreu em 1763 e seis anos depois o caso havia se tornado um processo judicial bastante complicado. Existiam acusações mútuas entre as duas partes envolvidas na querela e os relatos de cada uma eram bastante diferentes. De verídico foi possível apurar que a ocupação do crioulo no Arraial do Paracatú, da qual retirava os proventos destinados a saldar sua dívida, era “escrever nos cartórios (...) para o que tem inteligência”. Também era verdade as quatro coartações que se haviam procedido, nenhuma com sucesso, assim descritas por Cosme: (...) que o suplicante [Cosme] assaz e muito mais tinha pago a sua liberdade a aquele seu Senhor Doutor e que esse o andava logrando nos contratos que como suplicante fez, só a fim de desfrutar melhor e conservá-lo em cativeiro contra todas as leis pelas quais aqueles contratos são válidos e logo que o suplicante deu fiador a eles ficou livre por lei e só obrigado a pagar o preço como qualquer homem livre e na falta do suplicante os seus fiadores e assim injustamente tem procedido o dito seu Senhor Doutor que está muito bem pago não só pelo que o suplicante ganhou, mas também por um rol de esmolas que o suplicante tirou e como o suplicante feito escravo desvalido, miserável e sujeito com novo cativeiro não pode disputar esta injustiça com o dito Doutor, nem com Jozé de Freitas Pacheco, que hoje o possui, implora a piedade e misericórdia de Vossa Excelência (...).28 28. APM/SG - caixa 164, doc. 6 - Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais.

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A fala (talvez seja a escrita) desse escravo é valiosa no que diz respeito à legislação ou costume vigente nas Minas sobre o assunto. Além disso, sugere um conhecimento das mesmas regras que outros indivíduos em iguais condições podem ter tido acesso. Finalmente é sugestiva quanto a consciência e a resistência cotidiana empreendida pelos escravos no sentido de alcançarem a libertação. Por sua vez, as acusações feitas pelo primeiro senhor e pelo fiador de Cosme e registradas no processo judicial devem ter atrapalhado, em muito, as pretensões do escravo (a sentença final sobre o caso não foi localizada), mas deixa transparecer uma autonomia de vida que o escravo havia adquirido, tornando-o dificilmente controlável. O Doutor Francisco Jozé de Carvalho Lima dizia que Cosme andara “provocando ao preto Jozé Batista, procurador da Irmandade do Rosário para dar a mesa o ouro por ele” e em relação ao ouro que o coartado deveria lhe passar, frisava: “isso nunca vi, porque tudo quanto ganhava era pouco para o gastar em se vestir e emburrachar (sic) com peralvilhadas”. Já o fiador, Luiz Pereira de Amarim, declarava sobre Cosme: “na verdade era bêbado, não que caísse na rua porém sempre andava a baforar pela boca ou mão cheiro de cachaça ou aguardente de cana ...”. 29 Não foi possível saber quem estava mentindo ou omitindo informações. É provável que os três estivessem usando tais subterfúgios. Contudo, o mais importante é que o processo acaba revelando aspectos pouco conhecidos da relação senhorescravo, tornados comuns no universo das vilas e arraiais mineiros setecentistas. A comparação entre os processos de autocompra ocorridos em Minas e os de outras regiões é dificultado pela pouco extensa bibliografia existente sobre o assunto. Sabe-se, entretanto, que elas foram freqüentes em regimes escravistas do Novo Mundo. Em Cuba, por exemplo, a coartación também foi difundida com maior intensidade nas áreas urbanas, mas parece ter adquirido algumas características diferentes. Segundo Rebecca Scott trata-se de uma instituição muitas vezes mencionada como característica do estatuto jurídico do escravo cubano com relação aos escravos de outros lugares (...). De acordo com a lei espanhola, um escravo que oferecesse uma quantia substancial como pagamento inicial sobre seu preço de compra - tornando-se desse modo coartado - obtinha alguns privilégios. Não podia ser vendido por um preço maior que o valor estimado na época da coartación e tinha direito a uma parte dos rendimentos se

29. id. ibid.

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fosse alugado. Em teoria, a coartación proporcionava um meio para a auto-emancipação e criava uma categoria intermediária entre o escravo e o livre. Contudo, conforme o preço dos escravos subia, a possibilidade de que um escravo fosse capaz de acumular o preço de compra se tornava reduzida.30

A previsão de venda e de aluguel durante o período de coartação e as respectivas garantias legais não parecem ter sido muito importantes em Minas Gerais. Pelo menos não foram mencionadas nas raras cópias das Cartas de Corte (elas, geralmente, não eram registradas em cartório) nem nos processos, aos quais às vezes foram anexadas as cópias, movidos pelos coartados contra os proprietários, junto à Secretaria de Governo da Capitania. As reclamações estavam relacionadas à não incomum reescravização dos coartados, quando eles não conseguiam efetuar os pagamentos em tempo hábil ou quando os senhores usavam de má fé e interrompiam o processo antes do tempo previsto originalmente, como no caso do crioulo Cosme. O fato desses acordos manterem-se restritos à órbita da relação senhor-escravo, não obstante a existência de documento comprobatório do acerto, conduziu a variadas irregularidades no processo, cometidas por ambas as partes. Os litígios revelaram, entretanto, uma importante nuança, pouco explorada pela historiografia: a possibilidade do escravo recorrer ao Estado para tentar solucionar as desavenças com seu dono.31 Mas os processos de coartação, nem sempre significaram operações problemáticas ou resultaram em litígios judiciais. Os acordos eram um tanto flexíveis e previam, como já foi dito, a cessão de mais tempo ao beneficiado, após o costumeiro prazo de quatro ou seis anos, caso ele não conseguisse saldar a dívida contraída. Pequenos desentendimentos e imprevistos eram resolvidos entre as partes e dispensavam a interferência do Estado. Casos como o da testadora Felícia Ferreira, preta forra, moradora em São Miguel, termo da Vila de Caeté, em 1776, exemplificam bem o ocorrido com boa parte dos escravos envolvidos em processos similares. Dizia Felícia, ser natural da freguesia do Senhor Bom Jesus da Mata Grande da cidade de Pernambuco e fui rematada na praça da mesma cidade por dívida que o senhor que me criou devia, cuja rematação foi feita sendo eu de menor

30. SCOTT, Rebecca J. Emancipação ... op. cit. p.31. 31. Sobre a coartação em Minas Gerais podem ser consultados os seguintes trabalhos: RAMOS, Donald. A social ... op. cit., PAIVA, Eduardo França. Coartações ... op. cit. e LEWKOWICZ, Ida. Herança ... op. cit. p.101-114, 1989.

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idade e logo vim em direitura para estas minas e não me lembro de meus pais nem tão pouco do primeiro senhor que me criou e meus pais foram cativos e já são defuntos e em mão e poder de Francisco Pereira de Mello, por eu ser cativa do dito, este me passou meu papel de quartamento para ser forra, pelo preço e quantia de duas libras de ouro que são duzentas e cinqüenta e seis oitavas de ouro, no limpo do valor de mil e quinhentos réis cada oitava, e como eu do meu trabalho satisfiz a dita quantia mencionada se me passou a minha carta de alforria e me acho forra pela mercê de Deus.”32

A própria quantidade de coartações acertadas durante todo o século XVIII é um indicativo da boa aceitação delas, tanto por parte dos senhores, quanto por parte dos escravos. Entre os 357 testamentos pesquisados, a coartação é um recurso presente em 143 deles (40,06%), o que resultou em 278 escravos beneficiados. Este último número representa apenas 8,49% dos 3.274 cativos pertencentes aos testadores arrolados, mas significa 38,45% dos 723 escravos que tiveram suas libertações registradas nos testamentos dos proprietários. O costume fez-se presente desde o início do setecentos, mas parece ter tornado-se muito comum a partir do final da década de 30. Daí em diante, houve um significativo crescimento do número de coartações em testamentos, à cada década. É possível que um aumento similar tenha ocorrido de maneira geral, algo que os dados testamentais não servem, sozinhos, para comprovar. Um detalhe que merece ser registrado é o número de alforrias passadas pelos mesmos 143 testadores mencionados acima. São 160 alforrias pagas, gratuitas ou condicionais que se contrapõem às 278 coartações acertadas. Parece existir aqui uma tendência entre os senhores, que adotaram as coartações, em valorizá-las, em detrimento das alforrias. Pode ser que parte deste grupo de testadores constituía-se de proprietários menos abastados e que estavam utilizando-se do recurso para, também, aumentar seus rendimentos. Entretanto, quase 2/3 deles eram homens livres e brancos, responsáveis por mais de 60% de todas as coartações registradas. Este fato demanda alguma cautela de análise, mas sugere que as coartações tenham se tornado, para boa parcela dos testadores, preferíveis às alforrias. Para uma noção mais clara sobre essa possível tendência, seria necessária uma investigação detalhada sobre os acertos entre senhores e escravos não registrados em testamento, o que foge aos limites deste

32. MO/CPO-TEST - códice 52, f.45v e 46. Testamento de Felícia Ferreira - São Miguel, termo da Vila de Caeté 03 JAN 1776.

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estudo. Seria, também, de grande valor para o melhor conhecimento do assunto, a comparação mais detida entre os dados mineiros e os disponíveis para outras regiões. As dificuldades já mencionadas dificultam, entretanto, este procedimento. A análise das coartações cubanas e das autocompras ocorridas em outras regiões do Brasil difere, ainda, do caso mineiro, quando são explicadas à luz de crises econômicas precedentes. Assim entendido, o processo assemelha-se a uma equação com resultado previsto, isto é, em momentos de crise econômica, o sustento do escravo torna-se por demais oneroso, o que significa o aumento do volume de manumissões pagas, revelando-se uma ótima opção para o senhor.33Embora não seja esclarecida a maneira pela qual o escravo obtinha, em períodos de crise econômica e de diminuição das oportunidades de trabalho34, o valor necessário para a compra da alforria, esse modelo parece adequar-se à realidade dessas regiões. Entretanto, a sua transposição literal para o universo das Minas não é pertinente. Crise no setor minerador não correspondeu, em Minas, a estagnação ou a depressão econômica. Como já foi dito, desde as primeiras décadas de ocupação desenvolvera-se uma economia dinâmica e diversificada na região, com relações de troca altamente monetizadas, o que minorou os efeitos da violenta queda no volume de ouro extraído. Daí o ininterrupto aumento, durante todo o século XVIII, das populações cativa e liberta. Os escravos de mineradores falidos puderam buscar no mercado as oportunidades de trabalho que viabilizavam a autocompra. Este recurso foi largamente utilizado pela escravaria mineira que, de alguma maneira, havia negociado a libertação com os proprietários. Acertos prevendo a manumissão de escravos foram freqüentemente firmados em Minas. Concorriam para tanto as mais variadas situações, desde dificuldades financeiras enfrentadas pelos senhores até a gratidão sincera pela fidelidade e pelos bons serviços prestados pelo escravo. Por seu turno, os postulantes à alforria estiveram

33. Vários autores adotam este argumento. Para Cuba ver SCOTT, Rebecca J. Emancipação ... op. cit. p. 212. Para o Brasil, de uma forma geral, ver GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. p. 357 e 458. Em relação a Bahia podem ser consultados os estudos de MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo ... op. cit. p.184; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A propósito de Cartas de Alforria, Bahia 1779-1850. in Anais de História (Assis) n.4 p.23-52, 1972, p.35; SCHWARTZ, Stuart B. The manumission of slaves in colonial Brazil: Bahia, 1684-1745. The Hispanic American Historical Review. n.4 v.54 p.603-635, 1974, p.607 e 623 e OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p. 26. Também para Minas Gerais, um processo similar foi apontado por RAMOS, Donald. A social ... op. cit. p.226. 34. De acordo com Maria Inês C. de Oliveira, a crise econômica iniciada na Bahia, após a Independência, acarretou “o empobrecimento geral, permitiu o aumento das manumissões, mas aviltou o poder aquisitivo e possibilitou a retração de todos os setores da economia, diminuindo as oportunidades de trabalho.” OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p.42.

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sempre dispostos a aproveitar ou construir as oportunidades de libertação. Para alcançar este objetivo tudo valia a pena, até mesmo forjar amor e fidelidade ao opressor, incorporar valores dominantes ou prostituir-se. Assim, os primeiros esforços devem ter sido destinados à garantia da promessa de manumissão, concentrando-os em seguida na busca do pagamento. Com base nos legados testamentais, foi possível observar que num total de 723 coartações e alforrias registradas pelos proprietários, 380 (52,56%) foram pagas e 343 (47,44%) foram gratuitas ou condicionais. Levando-se em consideração que os legados pios eram mais comuns diante da ameaça da morte, pode-se supor que fora dos testamentos aumentasse a vantagem do primeiro tipo de libertação sobre o segundo. Neste sentido é provável que a maior parcela das alforrias, em Minas, tenha sido paga e que a numerosa população forra da segunda metade do século XVIII não tenha resultado de uma crise econômica de maiores proporções. Ao contrário, parece tê-la possibilitado, a dinâmica assumida pela economia e pelo sistema escravista engendrados na região. Esta conjunção contribuiu, fortemente, para que na década de 80 a população negra liberta e livre alcançasse a marca de 123.000 indivíduos, o que equivalia a mais de 70% do conjunto mancípio mineiro, chegando, na primeira metade do século XIX, a ultrapassar a escravaria.35 Tal inversão populacional não impediu que a economia continuasse em desenvolvimento.36 Talvez tenha mesmo concorrido para essa intensificação. Existiram, porém, outros tipos de manumissão nas Minas. Destacavam-se entre eles as alforrias gratuitas e as condicionais, muito comuns nos testamentos. Não havia grupos preferenciais destinatários de um ou outro tipo e a concessão dependia muito da condição financeira do testador e da convivência anterior entre senhor e escravo. Ainda assim, é preciso destacar a gratuidade generalizada para as crianças libertadas no ato do batismo e para os filhos ilegítimos dos senhores com suas escravas; talvez as duas únicas exceções a esse comportamento. É conseguindo a gratuidade ou mesmo a manumissão condicional que as estratégias cotidianas de resistência ao sistema se mostravam mais ou menos eficazes. A adaptação às circunstâncias do cativeiro poderiam significar um melhor tratamento

35. Ver KLEIN, Herbert S. A escravidão ... op. cit. p. 85 e 97 e LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores - análise da estrutura populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). São Paulo, IPE/USP, 1981, p.133-134. Com relação às alforrias pagas, procedidas na Bahia, Schwartz acredita que elas representaram 47,7% do total, no período compreendido entre 1684 e 1745. O autor aponta, ainda, o aumento desse percentual entre os anos 1680 e 1720. Ver SCHWARTZ, Stuart B. The manumission ... op. cit. p.623. 36. Um dos estudos mais recentes e mais elucidativos sobre o assunto é LIBBY, Douglas Cole. Transformação ... op. cit. Ver especialmente os capítulos 3, 4 e 5.

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e, mais tarde, a Carta de Alforria. Neste caso o objetivo é alcançado através de um misto entre resistência e alienação, real ou teatralizado, o que confere a tais estratégias um caráter eminentemente pragmático. Zelar pela boa alimentação e pela saúde do senhor, pela manutenção da ordem doméstica, pela conservação dos bens materiais, assim como satisfazer os desejos do dono e defendê-lo publicamente representou, muitas vezes, não a aceitação do estatuto inferior, mas a procura de caminhos que levassem ao seu abandono. Nem sempre a estratégia alcançou êxito, mas, com certeza, muitos escravos deveram a ela sua libertação. A melhor maneira de avaliar a dimensão assumida por essas pragmáticas estratégias na relação cotidiana entre senhores e escravos, talvez seja quantificar as alforrias sem ônus monetário passadas pelos testadores. Elas, mais que as coartações e as manumissões pagas, podem ter sido reflexo de afeto, gratidão e consideração por parte do proprietário, assim como de cumplicidades entre as partes. Antes disto, porém, é bom observar que as alforrias pagas, às vezes, também refletiam certa aproximação afetiva entre possuidor e possuído, embora o primeiro não abrisse mão da quantia a receber. É o caso do baiano Custódio Coelho Brandão, cujo testamento foi aprovado na Vila Nova da Rainha (Caeté), em 1740. Custódio deixava forra a negra Rita e o filho dela, Joaquim, alegando os bons serviços (...) que dela tenho recebido e me ajudar adquirir a minha fazenda e me assistir nas minhas doenças com muito zelo e lealdade (...) e os hei por forros depois de meu falecimento para o que os tomo na minha terça para mais segurança de tudo por ser minha vontade e lhe fazer esta esmola (...) e depois de meu falecimento possa ir para onde quizer tratar de sua vida com o dito seu filho, forros e livres como se tais nascessem.

E continuava mais à frente: Declaro que tenho recebido da dita negra Rita meia libra de ouro que me deu em conta de sua alforria e de seu filho e quando não chegue a minha terça para a sua alforria se lhe levará em conta a dita meia libra de ouro, visto ter recebido para sua alforria.37

37. MO/CPO-TEST - códice 4, f.22. Testamento de Custódio Coelho Brandão - Vila Nova da Rainha 12 AGO 1740.

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De maneira semelhante, o padre João de Sarges de Alvoquerque(sic), residente em Roça Grande, em 1744, declarava forra uma mulatinha, sua afilhada, chamada Michaella e observava sobre a mãe dela: possuo assim mais uma crioula, por nome Mariana, a qual deixo coartada em 100 oitavas, que dando a dita quantia se lhe passará sua carta de alforria por ser esta minha comadre.

O prazo para o pagamento era de um ano, podendo ser estendido por mais cinco meses.38 Voltando, então, às alforrias gratuitas ou condicionais, elas foram passadas em 151 testamentos, o que significa 42,29% do total de 357 investigados, beneficiando 343 escravos. Estes últimos representam 10,47% do plantel total de mancípios pertencentes aos testadores arrolados e 47,44% do conjunto de escravos alforriados ou coartados em testamento. Daqueles 151 testadores, 105 eram homens livres (69,53%), responsáveis por 251 alforrias dentro daqueles padrões, isto é, quase 3/4 do total de benefícios. Entre os 343 manumitidos, 176 eram homens e 167 eram mulheres, quase não havendo, assim, diferença numérica entre os gêneros. Os escravos brasileiros foram muito mais beneficiados que os africanos: foram 255 brasileiros (74,34%), divididos em 124 homens e 131 mulheres, aí incluídos 40 meninos e 51 meninas. Os 64 africanos (18,65%), dividiam-se em 35 homens e 29 mulheres, e apenas dois meninos fazem parte do cômputo. Outros 17 homens e 7 mulheres não tiveram suas origens registradas nos testamentos. Embora aqui as mulheres encontrem-se em desvantagem numérica em relação aos homens, no quadro geral dos escravos alforriados ou coartados, elas detêm uma pequena vantagem. Era prerrogativa senhorial a opção entre a gratuidade e o condicionamento das alforrias, embora os virtuais beneficiados pudessem influenciar na decisão final.39

38. MO/CPO-TEST - códice 13, f.100v-101v. Testamento de João de Sarges de Alvoquerque - Roça Grande 18 FEV 1744. 39. Os argumentos mais utilizados pelos testadores que alforriaram gratuita ou condicionalmente seus escravos foram: “pelo amor de Deus”; “pelos bons serviços que tem me prestado”; “por ser cria de minha casa”; “pelo amor com que lhe criei”; “pelo amor com que sempre me tratou”; “por sua submissão e fidelidade”; “pelo amor com que me tratou em minhas enfermidades”; “por caridade” e “por esmola”. As alforrias condicionais não eram propriamente gratuitas, uma vez que os beneficiados tinham que servir outras pessoas, durante um certo período estipulado pelo proprietário, antes de serem libertados. Mesmo assim, resolvemos quantificá-las junto com as alforrias gratuitas pelo motivo de não envolverem transações monetárias.

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Uma maior afeição por um escravo pode ter incentivado manumissões sem ônus para ele e para outros membros de sua família, enquanto que, no mesmo plantel e simultaneamente, outros indivíduos amargavam condições para a libertação, eram coartados, vendidos, arrestados ou, simplesmente, permaneciam cativos. Um bom exemplo é o testamento datado de 1759, pertencente a André Francisco Braga, português, viúvo e sem filhos, morador em Sabará. Seus treze escravos eram: Antônio mina, Salvador angola, Félix angola, Paulo angola, Manoel angola, Jozé angola, Gonçalo angola, Francisco angola, Francisco crioulo, Maria crioula, Luzia crioula, Jacintha mulata e “Joanna menor mulata”. Declarava o testador: (...) todos os meus escravos serão vendidos assim como os mais bens de arbítrio de meu testamenteiro universal e deles reservará os seguintes: a mulata Jacinta declarada no testamento de minha defunta mulher Izabel Moreira de Castilho por forra na parte que tocava a sua meação a declaro inteiramente forra e liberta e meu testamenteiro lhe passará sua Carta de Liberdade // ao crioulo Francisco pelo bem que me tem servido declaro também forro e liberto, mas com a condição de servir ao Doutor João Baptista Lopes o tempo de seis anos para o reger e doutrinar enquanto é rapaz dentro dele aprender o ofício que se inclinar no fim de seis anos meu testamenteiro lhe passará sua Carta de Liberdade // A mulatinha Joanna a declaro também forra e liberta com a condição de servir o tempo de seis anos a minha sobrinha Eulália Moreira mulher de Manoel da Costa Vianna para a reger e doutrinar e no fim de seis digo a reger e educar e no fim de seis anos meu testamenteiro lhe passará sua Carta de Liberdade e Alforria // A Maria crioula deixo coartada em a quantia de cinqüenta oitavas de ouro para as dar no tempo de quatro anos no fim das quais ainda antes se der o preço do seu corte meu testamenteiro lhe passará sua carta de alforria e liberdade // a minha escrava Luzia crioula com uma filha por nome Felippa deixo coartada em sessenta oitavas de ouro pelo tempo de quatro anos e no fim deles ainda antes pagando a quantia do seu Corte meu testamenteiro lhe passará sua Carta de Alforria e Liberdade.

André legava à mulata Jacinta “pelo bem que me tem servido uma cama inteira que consta de enxergão, travesseiros, quatro lençóis de pano de linho e um colcha de 90

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serafina lavrada, além disto meia dúzia de pratos de estanho e algumas colheres de metal, um tacho de cobre meião que tenho, duas toalhas de mesa, seis guardanapos usados, quatro tamboretes, uma banca inferior e fora destes trastes os da cozinha e outros comuns inferiores a eleição do meu testamenteiro em que entrem algumas toalhas de aguar as mãos.”40 Todas as mulheres do plantel do testador foram beneficiadas por algum tipo de alforria, até mesmo a filha da crioula Luzia, que não havia sido mencionada, embora fosse escrava de André. Este fato reflete uma maior facilidade das escravas em influenciar as decisões dos proprietários, atitude comum em Minas e que será melhor discutida à frente. A mulata Jacinta foi a mais beneficiada de todas, recebendo de André a alforria incondicional e um significativo conjunto de bens materiais. Note-se, contudo, que ela já havia sido libertada na meação testamentária da esposa falecida o que significava estar, até a morte de André, cumprindo a condição de também ser libertada na meação deste último. Esta situação era vivida há três anos por Jacinta, uma vez que Izabel Moreira de Castilho, mulher de André, citada no capítulo II, tinha feito seu testamento em 1756, onde declarava possuir “uma mulata por nome Jacinta a quem desejo dar liberdade pelos bons serviços que dela tenho recebido e pelo seu bom procedimento e com efeito pelo que toca a minha parte a deixo e a declaro forra e livre de todo o cativeiro e rogo a meu marido queira da sua parte fazer o mesmo para que fique mais hábil para cazar honestamente e se continuar em proceder bem deixolhe para seu dote duzentos mil réis os quais se entregarão tomando estado a contento do meu marido.”41 Embora não tenha sido dito por nenhum dos dois testadores, Jacinta devia ser cria da casa, isto é, filha de alguma escrava do plantel. Em sua convivência cotidiana com o casal de proprietários ela parece tê-los cativado o suficiente para deles ganhar a libertação e bens materiais para iniciar sua vida dentro da nova condição. Já os outros escravos beneficiados não parecem ter possuído o mesmo poder de sedução. Entretanto, conseguem algumas vantagens em seus processos. Os dois alforriados com condições tinham tempo definido de cativeiro e teriam, pelo menos foi o determinado em testamento, de ser educados por quem os receberia temporariamente, cabendo ao tutor do crioulo Francisco possibilitar-lhe o aprendizado de um ofício. Já às coartadas foi exigido um preço muito abaixo da média de mercado para ser pago em quatro anos. As 50 e 60 oitavas de ouro que as coartadas deveriam pagar correspondiam, respectivamente, a 70.000 e 90.000 réis, quando o preço médio de um escravo com

40. APM/CMS - códice 24, f.54. Testamento de André Francisco Braga - Sabará 24 MAI 1759. 41. APM/CMS - códice 24, f. 27v. Testamento de Izabel Moreira de Castilho - Sabará 18 SET 1756.

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boa saúde, em Minas, girava em torno de 270.000 réis na segunda metade do século XVIII.42 Para efeito de comparação e com base nas informações extraídas dos testamentos, o preço de compra/venda de escravas africanas variou entre 192.000 e 450.000 réis, no termo da Vila de Sabará, entre 1722 e 1746. Embora o resultado da variação pareça estar superestimado, o preço médio dessas escravas atingiu 302.000 réis. É interessante notar, ainda, que nenhum dos africanos listados escapou de ser vendido, quadro similar aos encontrados em outros testamentos, excetuando-se as cartas dos africanos libertos. No caso acima pode ser conjeturada a possibilidade dos alforriados e coartados fazerem parte de uma única família crioula, talvez formada por uma avó, suas filhas e seus netos, o que teria reforçado a exclusão do restante do plantel em relação aos benefícios concedidos. Vejamos, como contraponto, um exemplo onde os africanos não recebem o mesmo tratamento. Em testamento feito no arraial de José Correia, freguesia de Roça Grande, termo da Vila de Sabará, em 1770, Pascoa Gomes dos Santos, africana da Costa da Mina e forra dizia possuir um plantel de quatorze escravos assim constituído: “José mina, Manoel mina, Antonio crioulo, Manoel crioulo, Francisco mina, outro Francisco mina, Antonio angola, Ignácio mina, Maria crioula, Joanna crioula pequena, Jozefa crioula, ambas filhas de Maria crioula, Elena crioula, Manoel crioulinho de peito filho de Maria crioula”, além de uma africana chamada Ignácia que se achava coartada. Entre todos esses mancípios, aliás, quantidade incomum entre os testadores libertos, os únicos beneficiados eram dois africanos. Ignácia, já mencionada, havia sido coartada em meia libra de ouro (algo em torno de 96.000 réis) para ser paga em cinco anos e caso não conseguisse saldar a dívida no prazo o testamenteiro deveria lhe conceder mais tempo, entregando-lhe, após a conclusão do processo, a Carta de Liberdade. Com relação a José mina Pascoa declarava: “atendendo ao muito que me tem servido o forro e hei por forro e liberto do dia de meu falecimento em diante o meu testamenteiro lhe passará logo sua Carta de Liberdade”. Pascoa não privilegiava em nada os seus crioulos, nem mesmo as crianças; a única menção feita a um deles foi a doação de Antonio ao filho da testadora.43 Uma certa identificação ou até mesmo “solidariedade” intragrupal parece se fazer presente nesse caso, embora fosse provavelmente mais forte entre indivíduos de igual condição, isto é, entre senhores e entre escravos e não entre senhores e

42. Ver RUSSELL-WOOD, A.J.R. The black ... op.cit. p.109. Ver também BESSA, Antonio Luiz de. História financeira de Minas Gerais em 70 anos de república. Belo Horizonte, Secretaria de Estado de Fazenda, 1981, v.1, p.31 e PAIVA, Eduardo França. Coartações ... op. cit. p.67. 43. MO/CPO-TEST - códice 48, f.135 e 135v. Testamento de Pascoal Gomes dos Santos - Arraial de Jose Correia, Freguesia de Roça Grande 21 DEZ 1770.

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escravos. Não obstante, o fato de a proprietária e os dois beneficiados serem da Costa da Mina precisa ser destacado. Assim, a herança cultural africana estava sendo preservada entre os escravizados vindos para o Brasil, mesmo com adaptações, o que pode ter significado, em última análise, a formação de comunidades parcialmente fechadas ao universo branco e cristão. Embora a ligação com o caso acima seja bastante frágil, é necessário observar que a discriminação dos africanos, criada pela sociedade escravista colonial, frente aos crioulos e, principalmente, mulatos deve ter recrudescido essa forma de resistência. As características sócio-culturais dessas comunidades não foram, evidentemente, explicitadas nos testamentos. Estes documentos pertenciam à estrutura organizacional da sociedade em que foram obrigados a viver e como partícipes dela lançaram mão de tal regra para garantir a disposição legal de seus bens, assim como a manutenção material de seus descendentes e amigos. De acordo com Maria Inês Côrtes de Oliveira, Os contatos mantidos com africanos, fora do âmbito familiar, tendiam a reforçar a memória cultural e ao mesmo tempo criar substitutivos para vínculos subitamente rompidos com sua vinda para o Brasil. De tudo quanto pudemos perceber, nos testamentos, sobre a organização da comunidade africana, existe um dado sumamente importante. Além da pequena família sanguínea, os libertos possuíam uma verdadeira `família extensa’ formada por parentes de consideração e por companheiros de trabalho. Eram madrinhas, padrinhos, comadres, compadres, afilhados, ‘crias’, amigos, filhos de amigos, ‘discípulos’, ‘camaradas’, ‘parceiros’, profusamente mencionados nos testamentos e que aparecem como herdeiros, na falta absoluta dos parentes consangüíneos ou ao menos como legatários de doações.44

Não é de todo impossível, então, que alguns escravos africanos de senhores africanos libertos tenham sido alforriados com base nesses vínculos comunitários. No entanto, também eles tiveram que criar oportunidades junto aos proprietários e buscar condições financeiras para obterem suas manumissões. Além disso, nem todos os testadores africanos dispensaram tratamento especial aos seus escravos vindos do

44. Ver OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p.70.

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mesmo continente frente ao resto do plantel, o que reafirma existirem limites no esquema de identidade cultural entre possuidores e possuídos. Junte-se a isto a reprodução no Brasil de possíveis rivalidades entre nações e tradições culturais adversas, trazidas da África. Escravos africanos, crioulos, mulatos, pardos, cabras, todos eles tiveram que achar ou criar caminhos, dentro do sistema escravista colonial, para deixarem o cativeiro e, em seguida, construírem uma certa estrutura material de vida. Mas o processo de adaptação social não tinha um único sentido, ele ocorria em “mão-dupla”. O sistema escravista, principalmente o engendrado em Minas, teve que se adaptar ao enorme conjunto mancípio existente e, dessa forma, garantir sua sustentação e o controle da população. As alforrias fazem parte dessa estratégia de dominação social, uma vez que representavam, para os submetidos, a oportunidade legal de abandonarem essa condição. Neste sentido, elas tornaram-se eficazes instrumentos de manutenção da ordem, porque, pelo simples fato de existirem virtualmente, acabavam inibindo rebeliões, revoltas e outros movimentos contestatórios, nos planos coletivo e individual. Contudo, as alforrias simultaneamente incentivavam, entre os escravos, o desenvolvimento de estratégias que proporcionassem obtê-las. Por isso, não podem ser vistas apenas enquanto concessões, mas, também, como conquistas de uma massa anônima de agentes históricos. Não obstante a população forra de Minas alcançar número muito expressivo somente na segunda metade do século XVIII, como já foi demonstrado, a coroa portuguesa mostrava-se preocupada com o assunto desde muito cedo. Em 1732, uma ordem real ao Conde das Galveas, então governador da Capitania, determinava averiguações sobre os inconvenientes de haver negros forros, sobre o número deles e sobre a freqüência na concessão das alforrias. A resposta merece ser transcrita na íntegra. Senhor. O que se me oferece dizer a Vossa Majestade em ordem aos negros forros é que estes ordinariamente são atrevidos, mas no mesmo tempo trabalham todos nas lavras do ouro, nas dos diamantes, nas roças e comumente faíscam para si de que se segue a Vossa Majestade a utilidade de seus quintos que seriam menos se eles não minerassem, o número desses como os não distingue a cor nem o serviço dos mais escravos não é fácil o saber-se porque não houve até agora quem o examinasse, quanto a serem freqüentes as alforrias não há dúvida que muitas se fazem, umas por gratidão de seus mesmos senhores por algum serviço que deles recebem e outra com o

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dinheiro que ajuntam os mesmos negros, mas sempre se fazem estes contratos por entrepostas pessoas porque pela sua mão não seria fácil o conseguirem, porque os senhores lhe tomariam o dito como causa própria, não só por ser adquirido pelo escravo, mas porque certamente procedia dos furtos que lhe tinham feito: os mulatos forros são mais insolentes porque a mistura que tem de brancos os enche de tanta soberba, e vaidade que fogem ao trabalho servil com que poderiam viver, e vive a maior parte deles como gente ociosa que escusa de trabalhar: Deus guarde a muito alta e muito poderosa pessoa de Vossa Majestade. Vila Rica 7 de outubro de 1732 o Conde das Galveas.45

A Coroa, ciosa de seu poder e do controle social exercidos de maneira inédita na Colônia, adiantava-se a uma virtual insurreição de escravos e libertos, numa região já tão acostumada aos conflitos. Talvez por isso, a necessidade de se observar uma certa sutileza no processo censitário, como previa a ordem real de 1733: “com toda cautela e segredo”. O contrário disto poderia provocar reações indesejáveis. Ciente do fundamento das preocupações portuguesas e conhecedor da realidade das minas o Conde procurava demonstrar, em sua primeira resposta, que os forros eram um mal necessário e que era significativa a contribuição deles com o Erário Régio. Era impossível cercear as alforrias na região, tanto pelos funestos resultados que daí emergiriam, quanto pelo costume já arraigado entre senhores e escravos. A própria coroa acabaria incentivando as alforrias à medida que buscava incrementar a extração de diamantes. Em 1734 entrava em vigor uma lei prevendo a libertação do escravo que encontrasse diamante igual ou maior a 20 quilates; o proprietário deveria ser indenizado em 400.000 réis pela Intendência.46 Não existem estimativas sobre o total de beneficiados por essa legislação, mas o número não deve ter sido elevado.47 Entre os raros exemplos de documentos 45. APM/CMOP - códice 35-”Registro de editais, cartas, provisões e informações do Senado de petições e despachos - 1735-1736", f.118-118v. Em Julho de 1733, nova ordem real insiste na apuração, “com toda cautela e segredo”, do número de libertos em Minas Gerais. No mesmo mês segue para Lisboa uma carta do Conde das Galveas informando que havia ordenado aos oficiais de milícia, assistentes nas freguesias, que listassem todos os libertos e suas respectivas ocupações, mas que a maior parte das relações não havia chegado às suas mãos, dadas as dificuldades impostas pela “larguesa e vastidão deste País”. Entretanto, enviava as listas disponíveis e observava ser possível, através delas, “fazer um cômputo prudencial dos que poderão haver nestas Minas”. APM/CMOP - códice 35 op. cit. f.130-130v. 46. A referência à legislação foi feita por Perdigão Malheiro e citada em GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. p.456-457. 47. id. ibid. p. 456-457.

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comprobatórios da alforria de escravos envolvidos na descoberta de grandes diamantes encontra-se um emitido em Lisboa, em 1797, pelo Marquês de Ponte de Lima, Mordomo Mor da Rainha e Presidente do Real Erário. O prêmio de um conto de réis é repassado à Junta da Administração da Real Fazenda da Capitania de Minas Gerais para libertar, simultaneamente, quatorze escravos que se achavam na extração das cabeceiras do Rio Abaeté, quando “um diamante grande do peso de oitavas e três quartos” foi encontrado. O interessante é que esses cativos não estavam minerando, mas exerciam a função de soldados na extração. O total das gratificações pecuniárias elevava-se a dez contos e quatrocentos mil réis e se estendia, dentre outros agraciados, a: “seis soldados pardos a duzentos mil réis a cada um ........................................... 1:200$000 quatro soldados pretos forros a duzentos mil réis a cada um ................................. 800$000 quatorze soldados pretos cativos a cem mil réis a cada um ................................. 1:400$000 mais para resgatar e por em liberdade os ditos quatorze pretos cativos um conto de réis ............................................................................................... 1:000$000”.48

Note-se que, além do prêmio destinado às manumissões, cada um dos quatorze soldados escravos recebeu 100.000 réis de gratificação. A dúvida fica por conta de se saber quem extraiu o diamante, uma vez que isto não foi mencionado no documento. Geralmente esse trabalho era feito por escravos, o que justificaria, inclusive, a presença dos vinte e quatro soldados arrolados. Neste caso, parece que o indivíduo descobridor não foi em nada beneficiado, a não ser que os quatorze soldados cativos também fossem os mineradores. Aliás, a participação do corpo administrativo e dos indivíduos ligados à defesa da área de exploração deve, com freqüência, ter abrangido a procura do ouro e das pedras preciosas, bem como a burla ao Erário Régio. Não é por outro motivo que as autoridades coloniais estavam aptas a conceder alforrias aos escravos delatores de irregularidades praticadas por seus senhores nas áreas de mineração, sendo-lhes prometida, ainda, parte dos bens confiscados do infrator.49 Os caminhos para a libertação mais comuns em Minas Gerais, durante o setecentos, foram os identificados acima. É certo, porém, que todos eles sofreram variações quanto a gratuidade ou não, com relação a quem pagava as alforrias onerosas e quanto ao registro documentado ou o acordo verbal sobre as manumissões, firmados entre senhores e escravos.

48. APM/SG - caixa 159, doc.15 - Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais. 49. Ver GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit. p.457.

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Cabe ressaltar outra vez que a escravaria renitente constituía-se de agentes históricos responsáveis pela conformação do universo de sua relações pessoais e da sociedade onde encontravam-se inseridos. A massa de indivíduos violentamente explorados jamais aceitou tal degradação da condição humana. Por isto resistiu das mais variadas maneiras, fugindo, matando, agredindo, mantendo as tradições culturais ou adaptando-se ao sistema, o que muitas vezes foi indevidamente tomado como alienação. Criticando as idéias restritivas da capacidade de ação dos escravos, bem como de sua efetiva atuação na transformação da realidade, escreve Silvia Hunold Lara em seu primoroso livro: Tais concepções, ao salientarem a coisificação e a alienação do escravo, restringem-lhe a humanidade à sua ação criminosa, a ações de resistência explícita, como a fuga e o quilombo, ou a iniciativas senhoriais de ensinar ofícios ao trabalhador cativo. Posta nesses termos, essa caracterização da figura do escravo anula a possibilidade de entender que os escravos eram seres que agenciavam suas vidas enquanto escravos, resistindo e se acomodando, e que a relação senhor-escravo era fruto dessa dinâmica, entre esses dois pólos, e não uma construção imposta de cima para baixo, unicamente pela vontade senhorial.50

Resistir na acomodação e acomodar-se resistindo são nuanças imprimidas pelos escravos às relações sociais de dominação na Colônia, que só muito recentemente têm chamado a atenção da historiografia brasileira. Daí as críticas que a nova vertente vem recebendo, na maior parte das vezes injustamente.51 Não obstante tais barreiras, o que se tem tentado é resgatar a voz e as atitudes da massa anônima de brasileiros e de nacionalizados compulsoriamente, que doaram ao país suas experiências, seu trabalho, suas aspirações e expectativas.52 Neste sentido foram construtores de seu tempo e impeliram o sistema escravista colonial a constantes readaptações. O estudo dos libertos mineiros é uma excelente oportunidade para demonstrar isto. 50. LARA, Silvia Hunold. Campos ... op. cit. p. 353. 51. Uma das mais ferrenhas críticas à nova historiografia brasileira sobre escravidão foi feita por GORENDER, Jacob. A escravidão ... op. cit. 52. Não é tão recente o esforço de resgate histórico da atuação popular. Desde os anos cinqüenta a Nouvelle Histoire francesa e o revisionismo marxista inglês têm se preocupado com o tema. Um dos livros mais representativos dessa vertente é o clássico RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra 1730-1848. (trad.) Rio de Janeiro, Campus, 1991, originalmente publicado em inglês, em 1964.

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AS DUAS FACES DA ALFORRIA Durante todo o período colonial (e durante o Império também) Minas Gerais contou não só com o maior plantel mancípio, mas, ainda, com a maior população forra da Colônia. Esta última formou-se a partir de uma estrutura social inédita, constituída por ampla malha urbana, economia diversificada, mercado de consumo dinâmico e por um grande número de senhores, detentores de pequenos grupos de escravos, em média. As relações cotidianas entre possuidores e possuídos desenvolveram-se sobre a mesma base e, como resultado, assumiram contornos específicos. A Capitania experimentava uma complexidade das relações de dominação talvez incomum nas outras regiões escravistas do Novo Mundo, pelo menos em igual dimensão. Mas porque o Estado, tão fortemente instalado na região, permitiu e até incentivou, embora com certa apreensão, a prática das alforrias em larga escala? E que motivos teriam levado os proprietários a adotá-la de maneira generalizada? Não estariam os poderosos incorrendo em estratégia equivocada de dominação? Estado e proprietários mais abastados viam as alforrias de maneira diferente dos escravos. Para os primeiros elas representavam um dos canais mais eficazes de controle social. Eram vistas como um mecanismo que, ao tornar-se uma possibilidade real, modelava e pacificava o dia-a-dia da relação senhor-escravo e inibia os conflitos coletivos. Tratava-se, portanto, de um expediente fundamental, concreto e não baseado na exceção, capaz de deter uma população de oprimidos muito superior, numericamente, ao grupo de opressores. O intento principal era manter a ordem escravista e a hierarquia de privilégios onde o topo permanecesse sendo ocupado por brancos ricos. Para tanto, acompanhavam as alforrias uma série de outras estratégias de controle social que envolviam os indivíduos ainda no cativeiro, perseguindo-os durante toda a sua vida de libertos. Incluídos aí encontram-se a repressão da herança cultural africana e a imposição de valores europeus, a cristianização forçada e a integração ao universo dos livres através do trabalho manual e de uma possível ascensão econômica; essa estrutura será mais detidamente analisada no capítulo quarto. Já para os escravos as alforrias eram, acima de tudo, o meio mais descomplicado de abandonar o cativeiro em definitivo. Eram, também, a concretização de seu mais premente anseio. Pela manumissão tudo valia a pena, até mesmo fazer da vida uma representação. Neste caso, os recursos de resistência adotados diferenciam-se bastante dos quilombos, fugas e rebeliões e na maioria das vezes não buscavam romper com o sistema. Nem por isso podem ser classificados como alienação. Na verdade o alvo a ser alcançado, pelo menos de imediato, não era a supressão do escravismo ou a transformação do Estado, mas o abandono da condição de submetido. Nesta perspectiva 98

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tornar-se ou fazer-se passar por passivo, amável e fiel resultou em muitas cartas de alforria justificadas nos “bons serviços prestados”, na “lealdade e sujeição”, expressões recorrentes nos testamentos e utilizadas mesmo quando tratava-se de manumissões pagas. Nesse momento as estratégias engendradas no dia-a-dia obtinham sucesso. A partir daí, nova fase de adaptações iniciava-se como maneira de garantir a sociabilidade e a sobrevivência dos libertos. Porém, uma série de medidas legislativas e de costume aguardavam pelos exescravos em sua nova condição social. Padrões rígidos de participação política e comunitária estabeleciam os limites da “liberdade” dos forros e reforçavam a inalcançável “superioridade natural” dos brancos. Jamais conseguiriam ser livres e mesmo depois de várias gerações e da miscigenação ainda carregariam o estigma da cor de pele. O porte de armas lhes era impedido, a filiação a determinadas irmandades leigas e ordens terceiras lhes era negada, suas expressões culturais, como danças e cantorias, bem como as práticas religiosas foram duramente reprimidas. A condição de liberto, enfim, era freqüentemente igualada à de escravo. É o que se depreende, por exemplo, do acórdão estabelecido pelo Senado da Câmara de Vila Rica, em 1732. De acordo com ele, deveriam ser lançados editais obrigando todas as vendas a fecharem “logo que tocarem as avemarias” e proibindo, depois desse momento, que vendessem “a negro algum”, excetuando-se os casos de necessidade, quando estivessem portando “escrito de seu senhor”.53 Mesmo não estando explícita, a proibição estendia-se aos forros, sobretudo aos africanos e aos crioulos, que claramente entendiam o significado da expressão “a negro algum”. Uma das formas de negar a antiga condição era tornar-se senhor de escravos após a alforria. De possuído a possuidor: a trajetória de vida dos libertos muitas vezes obedeceu este parâmetro. Alguns chegaram a formar plantéis numericamente superiores à média da Capitania, mas a maior parte deles nada adquirira ou era, no máximo, proprietária de um escravo apenas. Diante de uma improvável ascensão social restava ao liberto, mesmo com todos os tipos de dificuldades práticas que se impunham, tentar uma ascensão econômica, o que lhe garantiria uma colocação social menos discriminada. A tarefa não era fácil e poucos conseguiram cumpri-la. Aos homens libertos interditava-se qualquer possibilidade de ocuparem cargos de poder, tanto na esfera civil quanto na eclesiástica, embora tenham existido casos de descendentes de negros, principalmente livres de terceira geração em diante, exercendo funções administrativas. O crioulo Cosme Teixeira Pinto, mencionado acima,

53. APM/CMOP - códice 28 - “Termos de acórdãos”, f. 14v-15.

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escrivão nos cartórios de Paracatu e, ao que parece, nos de Sabará também é um bom exemplo. Embora não fosse exatamente uma ocupação da estrutura administrativa oficial, o crioulo encontrava-se atuando numa posição reservada, a priori, para os brancos, não para negros e muito menos para escravos. Aos ex-escravos era negada, assim, a primazia do mando, prerrogativa masculina na casa, na rua e na política. Curiosamente, situação menos complicada era vivida pelas forras. Sem pretensões de ocuparem posições de relevo e de influência, uma vez que nem mesmo às brancas era possível, as ex-escravas acabaram adquirindo uma autonomia de vida mais intensa que a existente entre os homens de igual condição e entre as mulheres livres. Em Minas Gerais elas foram mais numerosas que os forros e constituíram-se, por assim dizer, na segunda categoria mais importante, abaixo somente dos homens livres. No período de cativeiro elas estiveram mais próximas de seus proprietários e parece terem, perfeitamente, sabido tirar proveito dessa oportunidade. Dos intercursos sexuais à sustentação econômica e o bom tratamento das doenças dos senhores, elas tudo fizeram e não permitiram escapar qualquer chance que as levasse à libertação. Já depois de forras, essas mulheres gerenciaram audaciosamente suas vidas. Muitas ascenderam economicamente e no conjunto chegaram a dominar dois lucrativos ramos do comércio urbano: os tabuleiros e as vendas de secos e molhados. Foram referência e suporte de resistência coletiva e, simultaneamente, reproduziram em seus filhos padrões culturais dominantes. Assumiram a chefia da casa sem que para isso tivessem tornado-se viúvas e chegaram, até, a comprar a alforria de seus maridos. Nos testamentos das libertas moradoras na comarca do Rio das Velhas muitos aspectos de suas trajetórias de vida foram registrados. Outros tantos fizeram-se implícitos nas entrelinhas, mas nem tão ocultos à leitura mais atenta e às perguntas do historiador. Dada a importância assumida pelas forras no universo mineiro colonial e pelo pouco conhecimento que se tem sobre o assunto encontra-se justificado o enfoque especial a elas reservado no capítulo que segue. Complementarão a base da análise os testamentos das outras categorias, sobretudo os dos homens livres, bem como subsídios bibliográficos.

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PERSONAGENS, COSTUMES E OBJETOS DAS MINAS GERAIS

Figuras 1 a 6 Pintura de teto, baseada na parábola A volta do filho pródigo, c. 179. Conceição do Mato Dentro, MG - Prédio da Escola Estadual São Joaquim Antigo Instituto São Joaquim 1

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Figuras 7 a 13 – Três figuras de homens mulatos (e detalhes) – madeira recortada, pintada, dupla face – séc. XIX - Pertenceram à Igreja de Nossa Senhora das Mercês. Museu do Diamante, Diamantina, MG - SPHAN

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Figuras 14 a 20 – Cinco figuras de irmãos (e detalhes – originalmente ficavam presas ao redor do andor de Nossa Senhora das Mercês) - madeira recortada, pintada, dupla face – séc. XIX - Pertenceram à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, Diamantina, MG.

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Figuras 21 a 33 – Noticia summaria do gentilismo da Asia com dez riscos iluminados. Ditos de figurinhos de brancos, e negros dos uzos do Rio de Janeiro, e Serro do Frio. Fim do século XVIII. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

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CAPÍTULO IV NEGRA NA SOCIEDADE MINEIRA – ESCRAVAS E LIBERTAS

Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais (João Bosco e Aldir Blanc. O mestre-sala dos mares.)

Instrumento da maior importância na vida de um ex-escravo, a Carta de Alforria era, ao mesmo tempo, indicativo da estreiteza dessa condição social. Quem tem o dever de comprovar sua liberdade, livre não é. O documento funcionava como demarcador de fronteiras sociais e lembrava aos portadores os limites intrínsecos ao novo status, determinados de cima para baixo. O antigo escravo permaneceria assim identificado e reconhecido, o que lhe impedia, mesmo quando enriquecido e senhor de escravos, tornar-se membro do grupo dominante. Sem sua Carta, o liberto poderia ser facilmente tomado por um mancípio e este fato demonstrou-lhe a necessidade de criar uma estrutura de vida suplementar, que garantisse seu posicionamento diferenciado na sociedade escravista colonial. A alforria constituía-se na mais importante meta do escravo, mas ele já sabia que para valorizála seria preciso, por exemplo, ascender economicamente. As possibilidades oferecidas pelo universo econômico das Minas serviram como alicerce para o futuro dos libertos. Eles, inclusive, podiam contar com exemplos bem sucedidos entre a população forra, às vezes iniciados no período de cativeiro. Não é difícil, portanto, compreender porque para muitos escravos e forros, em Minas, importou mais resistir ao sistema escravista adaptando-se aos seus padrões de dominação, que confrontá-lo através de levantes e/ou fugas. É bom lembrar que a escravidão e outros tipos de trabalho compulsório existiam há vários séculos em boa parte das sociedades humanas, embora imbuídos de significados diferentes em cada

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região e em cada período histórico. Por isso e pelos valores adquiridos no Novo Mundo, a instituição fazia-se presente, e de certa forma justificada, no imaginário dos africanos e de seus descendentes brasileiros. Neste sentido, a negação da antiga condição passou, constantemente, pelo tornar-se proprietário de outrem. Mesmo em importantes quilombos como o de Palmares, uma outra forma - talvez mais visível de resistir ao sistema escravista, a escravidão não foi abolida e destinava-se aos negros capturados a força pelos quilombolas.1 Adaptar-se ao sistema escravista colonial significou, também, transformá-lo e moldá-lo de acordo com as expectativas de escravos, libertos e livres. Aos grupos dominantes coube entender o perigo da inflexibilidade para a manutenção da ordem vigente; preferiram as concessões à provocarem conflitos sociais de grande alcance e perderem o comando do processo. Aos “dominados” coube, concomitantemente, buscar minorar e superar as barreiras impostas e a discriminação generalizada. Evidentemente, esses acordos avançaram, retrocederam ou nem mesmo chegaram a existir em alguns casos. Eles sofreram alterações durante todo o período escravista, incorporaram peculiaridades influenciadas espacial e temporalmente e jamais aniquilaram, completamente, visões e anseios antagônicos entre os envolvidos. Os caminhos para a libertação e as dificuldades posteriores de sobrevivência eram problemas enfrentados com dificuldade, sobretudo para os que se encontravam em posições desprivilegiadas. Entre a massa de submetidos, contudo, as mulheres desfrutaram de condições menos rígidas, muitas vezes resultantes do esforço empreendido por elas no dia-a-dia da relação possuidor/possuído. Para se constituírem na maioria da população forra mineira as escravas contaram com um elenco diversificado de estratégias que, combinadas à dinâmica econômica das áreas urbanas, possibilitaram mobilidade social e abriram caminhos para as alforrias. Embora formassem um conjunto de atitudes semelhantes,esse tipo de resistência feminina não era, exatamente, coletivo. As conquistas se davam na esfera do particular, isto é, vinculavam-se à relação entre cada escrava e seu senhor e o sucesso das partes não dependia do sucesso do todo. Mesmo em um único plantel, dificilmente todas as escravas conseguiram benefícios idênticos. É preciso observar, entretanto, que essas atitudes individuais transformaram-se em costume e como tal foram reproduzidas entre várias gerações. Além disso, eram reforçadas por tradições culturais mais antigas, tanto portuguesas quanto africanas.2 Era uma luta calada e cotidiana contra a desumanização das relações. 1. Ver MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo ... op. cit. p.160. 2. Gilberto Freyre observa a predileção popular dos portugueses pela mulher morena, no que se refere ao amor físico, baseada na imaginária figura da “moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual”. Primeiramente aplicada às índias, essa imagem, em

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Um dos expedientes largamente utilizados foram os intercursos sexuais mantidos com os senhores ou com outros proprietários. Estratégia quase exclusiva das mulheres, a intimidade amorosa sofreu variações e resultou em situações bastante diversas. Os contatos foram efêmeros, ocorreram periodicamente ou transformaram-se em uniões duradouras; foram mantidos em segredo ou assumidos pelos parceiros; caracterizaramse pela presença de filhos e ensejaram número significativo de alforrias, das mães e dos rebentos bastardos. Eles podiam propiciar, também, uma vivência menos penosa no período de cativeiro e condições materiais básicas para a vida após a manumissão. O íntimo relacionamento de senhores com suas escravas foi muito mais comum que o reconhecimento, por parte dos primeiros, de seus filhos ilegítimos. Uma ressalva feita por João Gonçalves da Costa, português, casado e pai de oito filhos, morador em Sabará, onde fez seu testamento em 1748, ajuda a avaliar a intensidade alcançada por esse hábito na sociedade mineira. Dizia o testador: (...) forrei, e a minha mulher um mulato por nome Manoel dandolhe Carta de Alforria há anos com a condição de me servir a mim e a minha mulher enquanto formos vivos em todas as obras que forem do ofício de carapina a que eu o mandei ensinar, e ler, e escrever, mas declaro que não é meu filho e só o forrei por lhe fazer esmola e a rogos de minha mulher.3

Para que ninguém o acusasse de estar negando a paternidade o testador logo tratou de diferenciar seu caso dos demais. Para conceder-lhe veracidade não teve dúvidas em utilizar-se da aprovação de sua esposa, o que deve ter sido real. O fato mais importante dessa declaração é, entretanto, algo que não foi explicitado, isto é, a adversão sobre a existência de costume, entre os homens brancos, de libertarem seus filhos ilegítimos sem os declararem como tal. Essa situação foi vivenciada pelo pardo forro Pedro da Costa, filho da africana Maria da Costa,natural e morador em Sabará, embora tenha feito seu testamento no Rio de Janeiro, em 1744. De acordo com seguida, é transferida à mulata que passa a ser “celebrada pela beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues, quindins e embelegos” (grifo meu), em detrimento das “virgens pálidas” e das “louras donzelas”. Daí o ditado brasileiro reproduzido pelo autor: “Branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar”. Vale lembrar que a mulata é o resultado da miscigenação entre brancos e negras e que, à estas últimas, a idéia de trabalho deve ser aplicada num sentido mais amplo. FREYRE, Gilberto. Casa-grande ... op. cit. p. 9-10. Barbara Bush, por sua vez, demonstra que as escravas transformaram-se no principal expoente e protetoras da tradicional cultura africana nas sociedades escravistas do Novo Mundo. Elas assumiram papéis proeminentes na religião, no trabalho (o comércio por exemplo) e nos “ajustamentos que os negros tiveram que empreender em suas variadas situações.” Ver BUSH, Barbara. Slave ... op. cit. p. 48-49, 151-160. 3. APM/CMS - códice 20, f.6v. Testamento de João Gonçalves da Costa - Sabará 29 ABR 1748.

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Pedro, sua mãe haveria declarado no dia em que faleceu, na frente de testemunhas e “para desencargo de sua consciência”, que o pai do testador era Manoel da Costa Barreto, antigo proprietário dela e do filho. Segundo Pedro, ela teria dito também que depois ela se forrara pelo seu valor que lhe dera e também a dita minha mãe me forrou a mim sendo pequeno por meia livra de ouro que a dita deu ao dito Manoel da Costa meu pai (...).

E continuava observando sobre Manoel: (...) e nunca me tratara nem trata por filho porque mostrando eu sempre obediência de filho pelo pai, e ele a não quis (...) eu mesmo desencarrego sendo de justiça Divina e humana o dito meu pai ser meu herdeiro o instituo no que por direito lhe tocar depois de pagar minhas dívidas e gostos funerais, sendo caso que visto o que eu tenho dito e o dito por seu filho me não ter admitido e não lhe pertença herdar nada de meus bens então instituo a minha alma por minha universal herdeira de todos os meus bens (...).4

Este caso apresenta uma certa inversão dos papeis entre o liberto e o antigo senhor e acaba confirmando a denúncia implícita feita pelo testador precedente. O documento mostra, ainda, que nem sempre as estratégias das escravas lograram completo êxito. Maria conseguiu libertar-se, mas para isto pagou o seu valor junto a seu proprietário e amante. Este, não satisfeito, cobrou pela libertação de seu próprio filho. Alguns bastardos enfrentaram situação similar à de Pedro e outros, mais infortunados, chegaram a ser vendidos pelos pais. Era a ameaça que pairava sobre Manoel, filho da parda Vitoriana Maria e de João Henriques, seu proprietário, morador em Mariana, em 1784. Este havia coartado a escrava junto com os filhos, que também eram seus, e depois de saldada a dívida e passadas as cartas de alforria resolveu rasgá-las, reescravizando-os. Intencionava vender o filho ilegítimo, quando Vitoriana entrou com processo na Secretaria de Governo da Capitania e buscou o auxílio da madrinha de Manoel, Luiza Maria da Rocha, como testemunha de defesa. O resultado final da querela não foi localizado.5

4. APM/CMS - códice 24, f.123. Testamento de Pedro da Costa - Rio de Janeiro 19 NOV 1744. 5. APM/SG - caixa 58, doc.13 - Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais.

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Havia, também, os testadores que reconheciam seus herdeiros bastardos, mas não deixavam de registrar a incerteza do ato, muitas vezes na tentativa de amenizar as reprovações sobre um relacionamento ilícito e sobre a pouca atenção dispensada a um filho; no imaginário setecentista isso contava para o ingresso no reino celeste. O português Bonifácio Antunes, casado e pai de seis filhos, morador em Sabará, declarou, em 1761, ter mais um mulato por nome Félix, filho de uma escrava minha por nome Antonia o qual diz ela ser meu filho havido do tempo de solteiro e por ela assim o dizer, não obstante que no tempo da concessão andava pelas ruas com toda a liberdade vendendo de tabuleiro, contudo, por segurar o posto da consciência e na dúvida, o instituo com os mais por meus universais herdeiros, para que hajam de suceder na minha herança pagos os meus legados e as dívidas que devo (...).6

Por certo, Bonifácio não tinha dúvidas em relação à paternidade. A palavra de sua escrava, que parece ter desfrutado de alguns privilégios (e certamente não eram gratuitos), não teria mais valor que a sua vontade e, além disso, ele não fez qualquer referência a Félix como seu escravo (partus sequitur ventren), nem que o havia libertado em algum momento. Mais ainda, a terça parte de sua fortuna seria dividida não por seis, mas por sete herdeiros: a inclusão do sétimo herdeiro seria aceita pelos filhos legítimos e pela esposa se a paternidade não fosse notória? Dos casos parcialmente reproduzidos acima emergem detalhes esclarecedores da relação senhor-escrava. Eles endossam a suspeita de que o número de filhos cativos de pai livre foi muito maior que o especificado em testamentos, inventários, livros de assentos de nascimento e outros registros. Neste sentido, torna-se mais compreensível a recorrente menção dos testadores livres a “mulatinhos” e “mulatinhas” integrantes de seus plantéis. A contrapartida do não reconhecimento desses bastardos pode, algumas vezes, ter significado a libertação gratuita de mãe e filho, além de gratificações pecuniárias. Assumir um filho mulato (e principalmente escravo) representava alguns problemas para um homem livre no sistema escravista colonial. Além de contrariar os mandamentos católicos e de ser alvo para recriminações racistas, havia os inconvenientes relacionados à herança e se ocupasse algum cargo administrativo

6. APM/CMS - códice 24, f.86. Testamento de Bonifácio Antunes - Sabará 02 AGO 1761.

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importante, podia significar a abertura de um flanco para os ataques de adversários e oportunistas. Era mais vantajoso ignorar a paternidade ou comprar o silêncio da mãe através da alforria e de privilégios. Muitas vezes, os familiares do pai tornavam-se cúmplices e permaneciam mantendo as aparências, mesmo após a morte dele. Um exemplo muito interessante é o do lisboeta e sargento-mor Francisco Xavier da Costa, solteiro, morador em Sabará, onde, em 1749, fez seu testamento. Deixava como herdeira universal e testamenteira a sua mãe, D. Catharina Maria de Moura, trazida de Lisboa para viver em sua companhia. Em seu testamento não há qualquer ostentação de riqueza, fato raro entre homens de mesma condição, mas destaca-se a seguinte declaração: possuo uma escrava por nome Antonia que pelos bons serviços deixo forra e livre e isenta de cativeiro a qual tem uma filha por nome Anna a quem passei carta de alforria e novamente a declaro forra para que com uma e outra se não entenda e na minha terça tomo o valor delas e rogo a dita minha herdeira e testamenteira conserve em sua companhia a dita mulatinha Anna alimentando-a do necessário, como eu fizera se vivo fosse fazendo-lhe por esmola todo o bem que for sua vontade o que se não entenderá legado obrigatório, mas rogos de filho.7

A atenção devotada à mulatinha era especial. Ela recebera a alforria antes de sua mãe (talvez na pia batismal) e era assistida paternalmente por seu ex-proprietário, o que fica claro nas recomendações feitas, curiosamente, à testamenteira e não à mãe de Anna. Poucos testadores livres com similar afeição a alguma criança, escrava ou liberta, mostraram-se tão preocupados com o futuro delas como o sargento-mor. Aliás, ele não parecia duvidar que sua morte era uma questão de horas (aconteceu daí três dias), quando, discretamente, lamentou não mais poder cuidar de Anna. Contudo, através do testamento de D. Catharina Maria de Moura, feito em Sabará, quatro anos mais tarde e registrado em seguida à morte dela, é possível verificar que os “rogos” do filho estavam sendo observados a contento. Declarava a testadora: nomeio e instituo por minha herdeira e testamenteira a Antonia Xavier da Costa pelos bons serviços que me tem feito, com a obrigação de dar cumprimento a todas as verbas deste testamento (...) e dar conta do testamento do dito meu filho de

7. APM/CMS - códice 20, f.36. Testamento de Francisco Xavier da Costa - Sabará 12 JUN 1749.

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quem fui testamenteira e até o presente não dei conta da dita testamentaria, no caso de que ao tempo do meu falecimento a não tenha dado (...).8

E continuava: Declaro que uma mulatinha filha da dita minha herdeira e testamenteira a criei e me tem feito bons serviços e boa assistência e é minha vontade deixar-lhe uma esmola para se alimentar e tomar estado [de casada], a qual mulatinha se chama Anna Maria Xavier Evangelhista, a qual deixo que sua mãe e minha testamenteira conservará em sua companhia, educandoa e dando-lhe o necessário e dando-lhe estado quando ela estiver em termos de o tomar, fazendo-lhe seu dote com o que eu lhe deixo der lugar, o que muito lhe recomendo e deixo por legado e para dar expediente às verbas deste meu testamento concedo à minha testamenteira quatro anos dentro dos quais não será obrigada a dar contas em Juízo.9

Raramente as mães de mulatinhos e mulatinhas conheceram a mesma trajetória de Antonia Xavier da Costa: de escrava e mãe solteira a herdeira universal e testamenteira da provável avó de sua filha. Aqui, além da ascensão econômica, pode ser identificada uma certa ascensão social das forras através da testamentaria, uma vez que o responsável por ela encontrava-se investido de autoridade diante da burocracia colonial. Por isso mesmo é que a função de testamenteiro esteve preferencialmente reservada aos homens brancos e ricos. Os portugueses solteiros e pais dessas crianças mestiças ostentavam, freqüentemente, laços de conhecimento com outros homens importantes e com autoridades civis, militares e eclesiásticas. A escolha dos executores de seus legados pretendia deixar explícito, para a posteridade, o status adquirido em vida. A indicação de mulheres e homens libertos para desempenhar essa função honrosa expressava, certamente, ligações consolidadas no cotidiano e não explicitadas nos testamentos. Outras formas de recompensa, porém, eram buscadas pelas escravas que geraram filhos bastardos de homens livres, notadamente de seus senhores. A alforria, sem dúvida, era o alvo mais cobiçado, embora não exclusivo. Bens materiais, também,

8. APM/CMS - códice 20, f. 134. Testamento de D. Catharina Maria de Moura - Sabará 03 JUL 1753. 9. id. ibid.

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eram almejados por essas mulheres, dada a necessidade de condições de sobrevivência pós-cativeiro. Não foram raros os casos bem sucedidos, como por exemplo o de Antonia Xavier da Costa, acima citado, e o da escrava Ignácia mina. Esta última era mãe de Miguel mulato, Ana crioula e Joana crioula e avó de Maria mulata, Zidoro mulato e Paula mulata, todos cativos (e descendentes?) de Antônio Ribeiro Vaz, português, solteiro, morador em Sabará, cujo testamento foi escrito em 1760. Dos quinze escravos que possuía, Antônio libertou esses sete e, curiosamente, não estendeu o benefício a outros quatro filhos e um neto de Ignácia, todos crioulos (talvez não descendessem do testadador). Em relação às alforrias, Antônio as justificava alegando bons serviços prestados e em seguida declarava: (...) deixo as casas em que vivo aos ditos libertos para nelas morar os que quiserem e os que nelas não quiserem morar irão para onde quiserem pelo que ordeno se não vendam (...) e os mais [bens possuídos] ordeno fiquem para os mesmos libertos e deles se sirvam (...).10

Com relação aos restantes oito escravos, nenhuma especificação foi feita por Antonio a seu testamenteiro. É possível, então, que eles constem do conjunto de bens mencionado pelo testador e legado aos forros, de acordo com a determinação transcrita acima. Nem sempre os irmãos dos filhos de escravas com seus senhores foram excluídos dos legados testamentais, como é possível vislumbrar-se no caso anterior. Um exemplo interessante é o do português Antônio Alvares Coelho, solteiro, morador na Fazenda do Taquaraçú de Cima, termo da Vila de Sabará, onde escreveu seu testamento em 1772. Ele era pai da crioula Josefa Alvares Coelho, filha de uma escrava que já havia falecido. Dos treze escravos que possuía, Antonio coartou cinco, concedendo-lhes o prazo de cinco anos para efetuarem os pagamentos. O grupo era composto por duas crioulas e três crioulos, sendo que quatro deles, Pedro, Luiz, Félix e Maria eram filhos da mesma mãe de Josefa. Intencionando, claramente, facilitar a tarefa dos coartados, o testador declarava: (...) caso queiram trabalhar e plantar na parte que me toca de minha fazenda [era sócio de seu irmão], meu testamenteiro e herdeira lhes darão terras para isso por serem crias da casa e não ser razão correr com eles, antes peço lhe faça todo o favor para conseguirem melhor a sua liberdade, mas querendo os

10. APM/CMS - códice 24, f.117v e 118. Testamento de Antônio Ribeiro Vaz - Sabará 14 FEV 1760.

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mesmos fora da fazenda tratar da vida se lhes não impedirá correndo o tempo de cinco anos.11

Além do testamenteiro a recomendação dirigia-se à herdeira, irmã dos coartados, não só porque estes últimos eram “crias da casa”, mas, talvez, para tentar reforçar os laços familiares e, até mesmo, satisfazer um desejo da mãe falecida. Não é improvável, neste caso, que a crioula Josefa tenha, também, interferido favoravelmente no destino dos irmãos cativos, assumindo o papel de protetora do grupo na ausência da mãe. De toda forma, não restam dúvidas sobre a influência exercida por algumas escravas na vida dos proprietários, principalmente no caso das concubinas. Dados quantitativos, como os que seguem, podem auxiliar no melhor esclarecimento sobre o assunto. Quadro I - Filhos ilegítimos entre testadores livres e libertos da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 TESTADORES

No TOTAL ILEGÍTIMOS

COM FILHOS

% SOBRE O TOTAL

HOMENS LIVRES (HL)

231

67

29%

HOMENS FORROS (HF)

23

4

17,39%

MULHERES LIVRES (ML)

30

3

10%

MULHERES FORRAS (MF)

73

28

38,35%

TOTAL GERAL

357

102

28,57%

Fontes: APM/CMS códices 20, 24, 53 e 73; MO/CPO-TEST códices 1,2,4,8,11,12,13,16,19,48,49,50,51,52

Antes de analisar estes dados, fazem-se necessárias algumas observações. A maior parte desses indivíduos integrava segmento social interposto entre os não proprietários de escravos e um restrito grupo de ricos. Entre os homens livres testadores, alguns faziam parte desse último grupo, enquanto que os despossuídos eram raros em todas as categorias. Por isso, os resultados obtidos têm que ser vistos apenas como indicativos da realidade social da Capitania. Aliás, as conclusões formuladas não podem ser estendidas a outras comarcas de Minas, dados os limites do universo quantitativo e espacial da pesquisa. Outra ressalva importante diz respeito às mulheres livres. Na verdade, a maior parte delas constituía-se de mestiças filhas de libertas e não de brancas, como a designação “livre” sugere. Por outro lado, como a

11. APM/CMS - códice 53, f.86. Testamento de Antonio Alvares Coelho - Fazenda do Taquaraçú de Cima 07 MAI 1772.

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ascensão econômica foi mais comum entre as forras que entre os forros, os homens descendentes de ex-escravos quase não testaram e, portanto, muito dificilmente encontram-se incluídos na categoria dos homens livres. Com relação às porcentagens dispostas no quadro acima, apenas três delas são realmente significativas, uma vez que resultam de universo numérico mais representativo. Entre os homens livres, quase 30% (desses, 4/5 eram solteiros e 2/3 eram portugueses) atestaram ter filhos ilegítimos e esta cifra, embora bastante sugestiva, só não é mais alta devido às freqüentes omissões, nos testamentos, de declarações sobre filhos bastardos. Estes, em sua quase totalidade, descendiam de mães negras ou mestiças, notadamente escravas. Quando o proprietário encontravase diretamente envolvido, o fato acarretava modificações na relação cotidiana entre ele e sua escrava, propiciando alforrias e privilégios para essas últimas e seus filhos. Dificilmente as mulheres forras deixavam de declarar seus filhos ilegítimos, nascidos, na maior parte das vezes, no período de cativeiro. Por este motivo a proporção de testadoras nessa condição aparece, naturalmente, maior que entre os homens livres: próxima de 40%, sendo que um pouco mais de 2/3 eram africanas e um pouco mais de 3/4 eram solteiras. No total, quase 1/3 de todos os testadores arrolados declararam possuir filhos ilegítimos, o que demonstra, claramente, a extensão social assumida pelo costume. As implicações já mencionadas, provocadas por esses intercursos sexuais entre senhores e escravas, acabam possibilitando novos entendimentos sobre as relações escravistas. Alforrias e privilégios não foram, unicamente, concessões feitas de cima para baixo, mas conquistas alcançadas, no caso, por mulheres submetidas. A exploração sexual sofrida pelas escravas, elemento até hoje tão comum no imaginário sobre a escravidão, parece ter sido, na verdade, o lado propositadamente mais conhecido de uma relação mais complexa.12 Um outro, talvez equivocadamente escamoteado por uma mentalidade machista e estrategicamente ocultado pelo discurso abolicionista, foi gerenciado por aquelas mulheres, que de vítimas passam a provocadoras dos contatos sexuais. A intenção, evidentemente, era facilitar a vida em cativeiro, forçar a libertação e tentar garantir recursos materiais para o futuro.

12. Privilegiar a exploração sexual das escravas, acreditar na inexistência da família mancípia e considerar a violência como elemento quase que exclusivamente determinante da relação possuidor/possuído, são formas de compreender os escravos enquanto vítimas, retirando-lhes o papel de agentes históricos por eles desempenhado efetivamente. Diferentes correntes historiográficas empreenderam análises com base nessas concepções. Ver, entre outros, CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo ... op. cit.; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala ... op. cit.; GORENDER, Jacob. A escravidão ... op. cit.; GORENDER, Jacob. O escravismo ... op. cit.; IANNI, Octavio. As metamorfoses ... op. cit. e IANNI, Octavio. Raças ... op. cit.

126

E DUARDO F RANÇA P AIVA A observação não pretende, de maneira alguma, minorar a dimensão da violência intrínseca ao sistema e às relações escravistas, mas, tão-somente, sublinhar a condição de agentes históricos ostentada por essas escravas. Ò vítima, como lembra Silvia Lara, “é possível somente um discurso de pena, proteção, discurso que tira desses homens e mulheres sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas.” 13 Embora seja uma imagem recorrente sobre os escravos e, principalmente, sobre as escravas, esse discurso nunca foi o reflexo perfeito da realidade desses indivíduos, não obstante muitos deles o terem usado com perspicácia. O estereótipo do desprotegido, incorporado pragmaticamente, resultou em relações de compadrio, de amizade e de interesses entre homens livres e cativos. Isto assegurou, muitas vezes, a defesa dos “pobres coitados” diante de proprietários inescrupulosos e de autoridades insensíveis. Nem mesmo a busca deste tipo de proteção fora do plantel e junto a indivíduos “superiores” pode legitimar o discurso da vítima. Ao contrário, tal recurso é mais um dos vários caminhos encontrados para resistir à desumanização e, portanto, ao próprio sistema. Outra estratégia muito comum foi a constituição de laços familiares dentro dos plantéis e, neste caso, sem a participação direta dos proprietários.14 Desta maneira é a família que assume o estereótipo do desprotegido, embora, por outro lado, signifique uma possível reprodução natural, vantajosa para os senhores. Separar uma família escrava pode ter representado um peso insustentável para a consciência cristã dos proprietários e não era necessário que eles pressentissem a morte para que tal culpa se manifestasse. Porém, são os testamentos as principais testemunhas dessa trama psicológica barroca.15 Para tentarem remediar as faltas cometidas, inclusive as vendas 13. LARA, Silvia Hunold. Campos ... op. cit. p.355. 14. Autonomia dos escravos no que se refere ao acasalamento e à formação de famílias, apesar da constante possibilidade de separação através da venda, foi identificada no sul dos Estados Unidos por GUTMAN, Herbert G. The Black ... op. cit. p.86-87 e 93-96. 15. Vários autores já se debruçaram sobre esta questão, interpretando o Barroco não apenas como estilo artístico, mas, propositadamente, ampliando seu significado, compreendendo-o como uma peculiar concepção do mundo. E é desta concepção, onde sobressai o sentido dramático, conturbado, psicologicamente conflituoso, que advêm os valores, os modos de ser e estar no mundo, as expectativas que, em conjunto, dão a tônica, a unidade, a coerência do Barroco não apenas como manifestação artística, mas, sobretudo, como “estilo de vida”, como forma de cultura transplantada e perfeitamente adaptada aos trópicos. O pasmo diante da vida e da morte, sedimentado, em grande medida, pela atuação da Igreja Católica no período, será o fio mais visível desta teia psicológica em que se debaterá o homem do setecentos. Estas observações foram gentilmente redigidas por Mônica Massara, a quem agradeço. Ver ÔVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas - textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte, Centro de Estudos Mineiros, UFMG, 1967. 2v; CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na Capitania das Minas - o século XVIII. In: Revista do Departamento de História. UFMG, Belo Horizonte, n.4 p.3-24; MASSARA, Mônica. Santuário do Bom Jesus do Monte - fenômeno tardo barroco em Portugal. Braga, Confraria do Bom Jesus do Monte, 1988, p.11-31 e REIS, João José. A morte é uma festa; ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Cia. das Letras, 1991.

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ou empréstimos de parentes escravos, muitos testadores legavam missas por intenção dos que já haviam morrido e dos que continuavam em cativeiro. Nenhum outro moribundo expressou tão bem o seu propósito como o português Manoel da Cunha Ribeiro, morador em Cocais, em 1775. Ele deixava “mais cinqüenta missas pelas almas de meus escravos falecidos, por todos os descuidos que tenho tido no meu dever para com eles.”16 A declaração englobava passado e presente e não parecia estar dirigida restritamente aos mortos. A destruição da família escrava, mesmo que temporária, deve ter obrigado muitas dessas missas, além de compensações menos espirituais. As informações expostas abaixo permitem conjeturas gerais sobre o assunto. Quadro II - Família escrava entre os plantéis de testadores da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 TESTADORES

No TOTAL

No ESCRAVOS

ESCR.EM LAÇOS FAMÍLIA

TEST. COM FAMÍLIA NO ESCR. PLANTEL

ESCR % em LF S/ TOTAL

% TEST. COM FEP S/ TOTAL 41,55%

HL

231

2619

449

96

17,14%

HF

23

93

19

6

20,43%

26,08%

ML

30

212

39

13

18,39%

43,33%

MF

73

350

122

32

34,85%

43,83%

TOTAL GERAL

357

3274

629

147

19,21%

41,17%

Fontes: vide Quadro I

Os dados relativos aos homens forros e às mulheres livres serão, novamente, excluídos da análise que segue, devido a motivos já identificados. Os laços de parentesco existentes podem ter sido estabelecidos a partir de relações estáveis ou efêmeras, internas ou externas aos plantéis. É impossível, porém, avaliar a importância de cada uma dessas variáveis, dado que a mãe aparece, somente ela, em mais de 75% de todos os casos onde qualquer parente das crianças escravas foi mencionado. Com relação a estas últimas, deve ser ressaltado que muitos “crioulinhos(as)” e “mulatinhos(as)” que aparecem nos testamentos arrolados não estão incluídos entre os números acima, porque não tiveram parente algum especificado pelos testadores. Na maioria desses casos existiam mulheres e homens adultos no mesmo plantel e, certamente, eram os pais desses escravinhos. Isto significa que os resultados incluídos entre a quarta e a sétima colunas do quadro acima estão subestimados.

16. MO/CPO-TEST - códice 51, f.92v. Testamento de Manoel da Cunha Ribeiro - Cocais 08 JUN 1775.

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Os dados referentes aos homens livres, dispostos nas mesmas colunas, devem ter sido superiores na realidade. Cabe relembrar que vários desses testadores não reconheceram os filhos havidos com suas escravas - e este fato implicava em laços de família no plantel -, além de omitirem outras tantas famílias existentes. Essa é uma das explicações cabíveis ante a reduzida proporção de famílias cativas registradas nos testamentos dos homens livres, sobretudo se comparada ao resultado obtido para as testadoras forras. Por outro lado é preciso lembrar da presença maciça de homens nos plantéis dos testadores livres (eles representavam mais de 70% do total de escravos possuídos, sendo sua composição majoritariamente africana), que diminuía as oportunidades de formação de famílias e, portanto, pressionava para baixo o número de parentes num mesmo conjunto mancípio. Daí, a acentuada diferença entre a taxa de testadores livres que declararam famílias escravas em seus plantéis e o índice desses cativos envolvidos em laços familiares. É interessante notar que tal disparidade não se deu nos plantéis das testadoras forras arroladas. Entre elas, foi possível constatar um equilíbrio quase perfeito entre os sexos e as origens dos seus cativos, ambiente, portanto, favorável à reprodução natural. Dos seus 350 escravos, 168 eram homens, 179 eram mulheres e apenas 3 não foram identificados adequadamente. Desse total, 23,14% eram africanos, outro tanto idêntico era constituído por brasileiras, 22,85% eram africanas e 21,42% eram brasileiros; os restantes 9,45% não tiveram origem e/ ou sexo registrados. A proporção de testadores livres e de testadoras forras que identificaram famílias escravas em seus plantéis é muito semelhante, embora o mesmo não ocorra quanto às declarações referentes aos escravos aparentados. É bem possível que, na realidade, também nesse último caso as taxas fossem similarmente altas. De toda maneira, os resultados obtidos são indicativos de uma faceta ainda pouco conhecida pela historiografia sobre a escravidão no Brasil e em Minas Gerais: a família escrava e a reprodução natural.17 17. Entre os estudos existentes sobre Minas Gerais, ver LIBBY, Douglas Cole & GRIMALDI, Márcia. Equilíbrio e estabilidade: economia e comportamento demográfico em um regime escravista, Minas Gerais no século XIX. Papeis Avulsos. n.7 p.26-43, 1988; LUNA, Francisco Vidal & CANO, Wilson. Economia escravista em Minas Gerais. Cadernos IFCH/UNICAMP. Campinas, n.10, out. 1983; PAIVA, Clotilde Andrade & KLEIN, Herbert S. Escravos e livres nas Minas Gerais do século XIX: Campanha em 1831. Estudos Econômicos. IPE-USP, São Paulo, n. 22 p.129-151, 1992; PAIVA, Clotilde Andrade & LIBBY, Douglas Cole. The middle path: alternative patterns of slave demographies in nineteenth-century Minas Gerais. Latin American Population History Bulletin. n.23 p.2-15, 1993 e PAIVA, Clotilde Andrade, LIBBY, Douglas Cole & GRIMALDI, Márcia. Crescimento da população escrava: uma questão em aberto. In: Anais do IV Seminário sobre a economia mineira. Diamantina, 1988, p.11-32. Sobre outras regiões ver COSTA, Iraci del Nero da, SLENES, Robert W. & SCHWARTZ, Stuart B. A família escrava em Lorena. Estudos Econômicos. IPE-USP, São Paulo n.17 p.245-295, 1987; GUTIÉRREZ, Horácio. Criolos e africanos no Paraná, 1798-1830. Revista

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Tratava-se de um acerto estabelecido entre possuidores e possuídos e que significava vantagens para ambas as partes? Certamente. Mães e filhos num mesmo plantel, na hipótese da ausência paterna, resultava numa provavelmente lucrativa renovação do conjunto de trabalhadores e numa exploração da mão-de-obra infantil desde muito cedo. A manutenção dos escravinhos menores pode, em muitos casos, ter ficado à cargo das mães, que os amamentavam enquanto atuavam no comércio ambulante, nas vendas ou nas prestações de serviços em geral. Mais crescidos, eles estavam aptos a ajudar nas ocupações maternas ou mesmo trabalhar diretamente para o senhor, na agricultura, na faiscação ou nas tarefas domésticas. O incentivo à procriação, aparentemente comum entre os testadores, pode, também, ter significado uma economia de recursos aos numerosos pequenos proprietários das Minas, sobretudo nas áreas urbanas. Eles, assim, substituíam, pelo menos em parte, a compra de escravos adultos - africanos e/ou brasileiros - pelas “crias da casa”. Simultaneamente, a formação das famílias significou a construção de laços de solidariedade entre os escravos. Ajuda mútua, suporte material e espiritual. A família funcionava como receptora de angústias e expectativas comuns e como fortificante para a luta cotidiana. Ela tornou-se um dos mecanismos de defesa e sua estruturação impôs-se como estratégia de resistência à desumanização e à indignidade do cativeiro.18 Ocupando o lugar central na instituição encontrava-se, na maioria das vezes, a mãe escrava ou, como se verá mais à frente, liberta. Dela dependia, em boa medida, o espírito resistente ou alienado dos filhos. Era ela a principal responsável pela reprodução cultural e pela consolidação e transformação das formas de se adaptar ao sistema escravista colonial, enfrentando-o ou incorporando-o, real ou teatralizadamente. Também era ela que parecia estar à frente dos processos de alforrias e coartações do grupo familiar. É grande o risco de se cometer exageros ao empreender esta abordagem matrifocal, ignorando a presença e as atribuições do pai junto às famílias escravas ou libertas. Porém, a falta de informações sobre os pais negros é facilmente constatada na documentação em geral. 19 Os números abaixo demonstram a importante presença da mãe em detrimento de uma virtual atuação paterna não registrada nos testamentos. Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, n.8 p.161-188, 1988; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: estrutura de posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829). Tese de Doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo, 1990; MOTTA, José Flávio. Família escrava: uma incursão pela historiografia. História: Questões e Debates. n.9 p.104-159, 1988 e SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo, Marco Zero, 1989. 18. A solidariedade entre os escravos e a importância das redes de parentesco e da comunidade para eles, no sul dos Estados Unidos, foram assuntos destacadamente analisados por GUTMAN, Herbert G. The black ... op. cit. 19. As atribuições do pai na família escrava, embora pouco evidenciadas pela documentação oficial, foram identificadas por Gutman em documentos privados. Parece ter sido prerrogativa masculina a prática de dar nomes aos filhos, privilegiando a figura e a linhagem paternas. GUTMAN, Herbert G.

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Quadro III - Famílias escravas e processos de libertação a partir de testamentos da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 ESCRAVOS MÃES AFRICANAS

101

ALFORRIADOS

COARTADOS

27

30

MÃES BRASILEIRAS

45

11

13

MÃES SEM ORIGEM IDENTIFICADA

46

12

3

TOTAL DE MÃES

192

50

46

FILHOS

218

100

20

FILHAS

184

85

34

TOTAL DE FILHOS

402

185

54

Fontes: vide Quadro I

Os cativos incluídos neste quadro representam 18,14% de todo o conjunto mancípio possuído pelos testadores arrolados. Essas mães e os seus respectivos filhos e filhas somam, ainda, 95% do universo de parentes resgatado nos mesmos documentos; o restante deles constituía-se de pais, avós e avôs. Do total de mães escravas identificadas pelos testadores, 50% foram alforriadas gratuita ou condicionalmente ou foram coartadas. E com relação aos descendentes delas, contando com os filhos dos senhores, 59,45% também foram beneficiados com alforrias ou coartações. Um aspecto importante, relativo a esses últimos, é que o número de forros chega a ser mais de três vezes maior que o número de coartados, enquanto que entre as mães quase não existe variação. Números também bastante sugestivos e que permitem dimensionar, mesmo que de maneira preliminar, a importância da família escrava como estratégia de resistência, são os que seguem. As 250 alforrias conquistadas pelos escravos, cujos laços de parentesco foram declarados pelos testadores, representam 56,17% das 445 manumissões registradas na documentação examinada. Proporção menor, mas não

The black ... op. cit. p.46, 59-60, 86, 189-191, 247-250 e 307-308. Observações semelhantes são feitas por BUSH, Barbara. Slave ... op. cit. p.93. A autora, após chamar a atenção para a importância dos pais escravos, diz: “The argument presented here, then, does not seek to deny completely the existence of a matrifocal form of family organization in slave society, but to refute the notion that it was the dominant form of slave family organization.” Para o caso brasileiro, essa matrifocalidade é discutida no recente livro de DEL PRIORI, Mary. Ao sul do corpo; condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/Edunb, 1993.

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menos importante, resulta de idêntica comparação feita entre os coartados: as 103 coartações de escravos em família, representam 37,05% do total de 278 autocompras identificadas. Somadas, as alforrias e coartações de escravos com laços de parentesco representam 48,82% de todos os casos existentes nos testamentos. Não é pertinente tentar explicar esses índices através, unicamente, dos intercursos sexuais entre os senhores e suas escravas e das libertações, quase que obrigatórias, dos filhos reconhecidos, resultados dessas relações. Aliás, o número de mancípios incluídos nessa situação (reconhecidos nos testamentos dos pais/senhores) é relativamente pequeno: 21 homens e 18 mulheres, todos alforriados, mesmo porque foram declarados herdeiros dos pais. É bom relembrar, contudo, que trata-se de quantidades subestimadas e que, ainda assim, são indicativos importantes sobre a dimensão assumida por aquelas relações. Exemplos de alforrias e coartações de mães africanas e dos filhos crioulos, passadas por senhores brancos, são comuns na documentação. É verdade que esses testadores, no caso de quererem omitir seus bastardos escravinhos, poderiam identificálos como “crioulinhos” (filhos de negros e/ou de crioulos nascidos no Brasil), ao invés de mencioná-los como crianças mulatas ou pardas. Contudo, isso não aconteceu sempre e, além do mais, o fato de possuir “mulatinhos” no plantel não significava serem filhos do senhor. E quando não pretendiam assumir a paternidade era-lhes possível lançar mão de mecanismos mais eficazes, como, por exemplo, o suborno. Não obstante a virtualidade dessas atitudes, servem-lhe de contra-ponto os casos que seguem. O português Manoel Fernandez Aleixo, solteiro, morador em Santa Luzia, em 1762, atestava: Declaro que minha escrava Francisca mina e sua filha Vicência crioula, quero e é minha última vontade que fiquem ambas forras e com efeito as hei por forras, livres e libertas como se forras nascessem do ventre de sua mãe, sem que lhes fique obrigação alguma do cativeiro e as forro pelo amor de Deus e pelos bons serviços que delas tenho recebido e quando eu em minha vida lhe não tenha passado suas Cartas de Alforria, não tenha dúvida meu testamenteiro em lhas passar logo para tratarem de suas vidas como forras que ficam sendo.20

Já o português Antônio Carlos Moreyra de Sam Payo, solteiro, morador em Sabará, em 1751, dizia possuir uma negra chamada Marta e um “crioulinho” cujo nome não é mencionado e seguia declarando 20. APM/CMS - códice 24, f.96v. Testamento de Manoel Fernandez Aleixo - Santa Luzia 22 MAI 1762.

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que à dita negra Marta dei licença para ir para o Paracatu a tratar de sua alforria e por conta dela tenho recebido trinta e duas oitavas de ouro por tê-la coartado, a ela e a seu filho, em cento e sessenta oitavas de ouro, os quais escravos me pertencem e por esquecimento não fiz declaração deles quando nomeei os mais e no caso que a dita negra dê o resto da quantia com que a coartei e a seu filho o meu testamenteiro lhe passará Carta de Alforria.21

Seja por vínculos de parentesco com o proprietário ou pelas possibilidades econômicas aproveitadas em grupo, seja por atrair preferencialmente os legados pios dos testadores ou simplesmente por existir em grande quantidade, a família escrava aparece como mais um elemento das estratégias de resistência cotidiana. Enquanto instituição, ela conseguiu forçar alforrias e coartações, canalizando-as para seus membros. Para tanto, ainda foram necessários os “bons serviços prestados” ao senhor e isto incluiu, freqüentemente, a renda diária auferida através do trabalho realizado fora do domínio senhorial; o cumprimento adequado das tarefas domésticas; dengues e manhas lascivas; tratamento de achaques; atenção dispensada na agonia; “submissão” e “fidelidade”. Quando os esforços despendidos durante anos parecem ter sido em vão, quando todos os sonhos de libertação são violentamente avariados pela insensibilidade e pela falta de escrúpulos humanitários do proprietário, os laços familiares entre os escravos representaram uma das derradeiras chances. Um desses senhores deixou registrado, em testamento, prova de sua insensatez, ao mesmo tempo em que mostrou-se impotente diante dos vínculos de parentesco mancípio. Trata-se do português Jorge Mendes de Carvalho, morador em Sabará em 1740. Ele era solteiro, mas tinha dois filhos naturais com uma sua escrava chamada Marta. Os filhos foram reconhecidos, alforriados e declarados herdeiros universais de Jorge, enquanto que a mãe deles não desfrutava, aparentemente, de qualquer benefício. Segundo o testador: Declaro que a minha negra Marta mãe dos meus filhos a houve por título de compra que dela fiz a Sebastiam Ferreira de Sá, como consta da escritura que em meu poder se acha, a qual negra emprestei a Maria de Afonceca, mulher parda, moradora na cidade do Rio de Janeiro, para a servir enquanto fosse minha vontade, a qual negra poderão os ditos meus herdeiros haver a si como sua mãe que é.22 21. APM/CMS - códice 20, f.85v. Testamento de Antonio Carlos Moreyra de Sam Payo - Sabará 10 FEV 1751. 22. MO/CPO-TEST - códice 8, f.152. Testamento de Jorge Mendes de Carvalho - Sabará 26 SET 1740.

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Uma complicada relação parece querer explodir dessa declaração. O que teria levado o testador a, além de não libertar ou, pelo menos, coartar sua concubina e mãe de seus filhos, emprestá-la, como outro escravo qualquer? Teria a negra intensamente reivindicado sua alforria e, por isso, incomodado em demasia seu amante e senhor? Talvez uma grande irritação possa esclarecer a atitude tomada por Jorge Mendes de Carvalho. Afinal, ele acaba por separar mãe e filhos, transferindo-a para uma distante localidade e emprestando-a, por tempo indeterminado, a uma outra mulher, provavelmente forra e com ele amancebada. Se esta conjetura condiz com a realidade, o fato de ser mãe dos bastardos do senhor certamente impediu que Marta fosse vendida ou, até mesmo, que sofresse maus-tratos. Daí, um certo conformismo manifestado pelo testador ao final da declaração acima transcrita. Por via indireta e com um atraso talvez não previsto por Marta, ela obteria, finalmente, a alforria. Após a morte de Jorge, ela talvez conseguisse desfrutar de condições materiais de vida que compensassem o infortúnio anterior. O desejo de deixar de ser escravo conduziu, então, a diversificação das estratégias cotidianas de resistência e adaptação às relações sociais escravistas. Conduziu, também, o enfrentamento de toda a sorte de imprevistos e retrocessos nos acertos estabelecidos com o senhor. As mulheres, mais que os homens, parecem ter apreendido e manejado com competência mecanismos de defesa que demandavam astúcia, obstinação e pragmatismo. Todo esse aprendizado as dotou de experiências concretas e virtuais, muito importantes no norteamento de suas atitudes diante da sociedade escravista colonial. O know-how serviu-lhes como base inicial para sua convivência com aquela sociedade, agora na condição de forras. É claro que novas estratégias deveriam ser desenvolvidas, ampliando o elenco de recursos utilizáveis na luta para se tornarem, efetivamente, ex-escravas. Neste sentido, o item que segue privilegia o estudo da vida dessas libertas, a partir, também, de suas cartas testamentárias.

A NOVA CONDIÇÃO SOCIAL: A LIBERTA Pelo menos duas questões básicas se colocavam às mulheres já nos últimos momentos de cativeiro e as acompanhavam na nova vida. Onde morar? Como sobreviver? Na verdade, a resposta encontrada para a segunda pergunta implica na solução da primeira. Há casos específicos em que o testador, sem parentes próximos, resolve legar a casa em que morava para os escravos que deixava libertos. Noutros casos, mesmo depois de forros, os escravos recebem de herança a casa do antigo senhor. Contudo, a maior parte dos que receberam alforria através do testamento do proprietário não teve sorte idêntica. O testamento de Antônio Ribeiro Vaz, citado anteriormente, é um exemplo perfeito para aquela primeira situação delineada. Português, solteiro e sem filhos, 134

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morador em Sabará em 1760, Antônio libertou sete membros de uma família escrava, legando-lhes a casa em que morava, assim como os demais bens que possuía.23 Heranças desse tipo não foram exclusivas de núcleos urbanos mais dinâmicos. Nos arraiais sem muita expressão sócio-econômica, incrustados entre sítios, pequenas fazendas e plantações de subsistência, ocorreram atitudes semelhantes. Um exemplo muito interessante é oferecido pelo testamento de Antônio Gonsalves Lima, português, solteiro, morador em Ribeiro Manso, freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Rio das Pedras, termo da Vila de Sabará, em 1731. Entre os seus bens encontrava-se um sítio, uma roça, um cavalo, cinco armas de fogo, um espada e sete negros, além de Lauriana angola e de três filhos dela (com Antônio?), os mulatinhos “Jozé com 8 a 9 anos, Antonio com 7 a 8 anos e Manoel com 5 a 6 anos”. Mãe e filhos já haviam sido libertados, eles na pia batismal e ela posteriormente. As cartas já haviam sido lançadas no livro de notas do tabelião, mas continuavam morando junto do ex-senhor. Dedicação dos forros para com o antigo proprietário ou impossibilidade de mudarem de vida? Talvez as duas explicações sejam pertinentes. O certo é que tal esforço acabou sendo recompensado. O testador confirmava as alforrias dos quatro e dizia ainda: (...) à dita mãe, pelos serviços que dela tenho recebido, a deixo somente obrigada a servir os ditos filhos emquanto for viva e peço os meus testamenteiros que a favoreçam e cazem com algum negro ou mulato forro e dos escravos que possuir no tempo de meu falecimento, deixo por esmola e pelo amor de Deus três negros, dois minas e um angola, os quais lhe entregarão à medida de seu desejo e lhe deixo mais de esmola o sítio em que eu me achar ou possuir no tempo de meu falecimento estando pago, lhe deixo mais alguns móveis de casa o que servir de cozinha e mesa, os quais ditos mulatinhos e negra encarrego e dou por obrigação o encomendarem minha alma a Deus todos os dias rezando o que puderem enquanto forem vivos (...).24

Mesmo sem a moradia assegurada definitivamente (o legado condicionava-se à finalização do pagamento do sítio), pelo menos por algum tempo eles teriam onde ficar. De toda forma, a matriarca receberia três escravos e outros bens com os quais

23. APM/CMS - códice 24, f.117v e 118. Testamento de Antônio Ribeiro Vaz- Sabará 14 FEV 1760. 24. MO/CPO-TEST - códice 11, f.30v. Testamento de Antônio Gonsalves Lima - Ribeiro Manso 12 JUN 1731.

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poderia dar início a uma nova fase de sua vida e de seus descendentes. Era este, inclusive, o desejo aparente do testador, uma vez que instruía seus testamenteiros a arranjar-lhe um casamento; talvez tentasse legalizar uma situação que ele próprio não resolvera. O mais importante desses legados materiais é que, em vários casos, eles tornaram-se a base com a qual as ex-escravas inseriram-se, vantajosamente, no universo dos livres. Porém, eles, por si só, foram insuficientes para que essas mulheres alcançassem ascensão econômica, dado que a ascensão social era dificultada. Mesmo as que chegaram a conquistar fortuna nunca recebiam tratamento similar ao dispensado às mulheres brancas, ricas e de boa família, principalmente as portuguesas. Estas últimas eram facilmente identificadas na documentação oficial setecentista, uma vez que os respectivos nomes eram sempre precedidos pelo título de Dona. Se às forras era interditado tratamento e dignidade senhoriais, elas acabaram conquistando, para compensar, liberdades e autonomias jamais experimentadas pelas Donas da Colônia. Em espaços como a casa e a rua, nos domínios do privado e do público, as libertas protagonizaram eventos cotidianos de toda a natureza que, em última instância, permitiram-nas responder por elas mesmas, independente de possuírem maridos ou filhos homens que, como era costume, cumprissem tal função. Entre as tituláveis, situação semelhante quase nunca se concretizava, a não ser que fossem viúvas sem filhos homens ou tivessem eles idades insuficientes para tutorar a própria mãe. Asseguradas as autonomias e as liberdades, ficava menos difícil, para as libertas, assumirem certa proeminência social. Isto não significa que elas tenham ascendido socialmente, como já foi dito, nem que tenham ostentado grande poder de influência sobre o mundo dos livres. No entanto, entre a população negra, liberta e escrava, assim como entre os brancos pobres, as forras e seus descendentes assumiram destacada posição e conseguiram, às vezes, sobressair no universo dos dominantes. Inegavelmente, o processo de vida dessas libertas tomou como exemplo outros processos similares e anteriores e passou a representar um modelo a ser seguido por muitas mulheres que permaneciam em cativeiro. Entretanto, tornar-se forra não era sinônimo de ascender economicamente. Para isso, era preciso solucionar o problema imediato da sobrevivência e a partir daí, galgar o maior número possível de degraus na hierarquia colonial. Assim, elas não titubearam em utilizar-se de todas as atividades que pudessem lhes proporcionar melhores condições de vida. Fizeram-se intensamente presentes no comércio local, exploraram os segredos da cozinha e da sexualidade, transformaram-se em solicitadíssimas parteiras, impuseram-se como guardiãs principais das tradições culturais africanas e afro-brasileiras, estabeleceram, na medida do possível, laços de amizade e de interesse com os mais bem classificados na escala social setecentista. 136

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Note-se que todos os procedimentos indicados foram iniciados no período de cativeiro, embora tenham melhor desenvolvido-se posteriormente, sem os entraves naturais impostos pela submissão. Por isso mesmo, ao tentarem negar a antiga condição e resistirem à desumanização imposta pelo sistema escravista colonial, as forras precisaram estar imbuídas de valores dominantes, também incorporados já no cativeiro. Isto, contudo, não pode ingenuamente ser tomado como absoluta alienação, mas, principalmente, como adaptações necessárias, o que será discutido à frente. No momento, faz-se importante demonstrar, com exemplos reais, algumas estruturas de vida criadas pelas libertas e por descendentes delas que, com o passar das gerações, tornaram-se mulheres livres. As atividades comerciais, principalmente os tabuleiros e as vendas de secos e molhados, estiveram concentradas nas mãos das negras, ora menos, ora mais intensamente, em ambientes urbanos, até o final do período colonial. Mas é preciso ressaltar que nossa amostragem é pequena e, por isso, não autoriza conclusões generalizadas sobre a força de trabalho feminina e sobre todos os tipos de atividade por elas desempenhadas.25 A produção de comida e a participação efetiva nas transações mercantis, como já foi mencionado, eram costumeiras ocupações femininas em sociedades africanas tradicionais.26 A atuação das mulheres nesses setores ocorreu, freqüentemente, no Caribe e no Brasil e proporcionou às negras independência

(25) - As pesquisas desenvolvidas por Douglas Cole Libby para o século XIX mineiro mostram que, já nas primeiras décadas após a Independência, a mão-de-obra feminina, livre e escrava, deixara de concentrar-se no pequeno comércio. Boa parte dessas mulheres trabalhava, em zonas urbanas e rurais, como fiandeiras, tecedeiras e costureiras, o que explica a importância adquirida pela “indústria têxtil doméstica mineira” nesse período. Ver LIBBY, Douglas Cole. Transformação ... op. cit. p.79 e 85. É curiosa essa transformação sofrida pela mão-de-obra feminina. Encontrar-se-ia aí um reflexo de uma suposta diminuição das taxas de alforria no século XIX? Estaríamos diante de uma “domesticação” da força de trabalho feminina, a partir de sua migração para a indústria textil? A atividade comercial das negras mineiras foi analisada em FIGUEIREDO, Luciano Raposo de & MAGALDI, Ana Maria. Negras ... op. cit. p.179-214 e FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida & MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Quitandas e quitutes; um estudo sobre rebeldia e transgressão femininas numa sociedade colonial. In: Cadernos de Pesquisas. São Paulo, n.54 p.5061, 1985. Ver também RAMOS, Donald. A social ... op. cit. p.226-241. Para Salvador - Bahia ver ANDRADE, Maria José de Souza. A mão-de-obra escrava em Salvador, 1811-1860. São Paulo, Corrupio, 1988, p.141-143; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo/Salvador, Hucitec/Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978 e OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes. O liberto ... op. cit. p.11-21. Para o Rio de Janeiro ver KARASCH, Mary. Slave life in Rio de Janeiro 1808-1850. Princeton, Princeton University Press, 1987 e SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo, Hucitec, 1988. Para São Paulo ver DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1984. 26. Ver BUSH, Barbara. Slave ... op. cit. p.48 e 49.

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financeira e uma certa autonomia frente aos homens, muitas vezes frente aos maridos. Novamente, tradições culturais que prevaleciam em solo africano eram reproduzidas no Novo Mundo escravista. É muito sugestivo o grande número de bacias e tachos de cobre ou tachos “para fazer doce”, chocolateiras, pratos e talheres de estanho, copos e garrafas de vidro, balanças, entre outros utensílios imprescindíveis à cozinha e às vendas, registrados nos testamentos de libertas. Algumas vezes, objetos como facas, foices e alavancas complementavam o conjunto de bens materiais declarados. Embora raramente tenham deixado claro suas ocupações, esses bens inventariados indicam a forma de sobrevivência encontrada por várias libertas. A preta forra Quitéria Gomes Ferreira, natural da Costa da Mina, com um filho mulato ilegítimo, moradora em Santa Luzia, em 1779, deixou um testamento bastante elucidativo e, por isso mesmo, de grande valia. Dizia ela possuir uma “morada de casas”, além de (...) um crédito que me deve Manoel Gonçalves, carapina, que se acha em poder de Antônio Fernandes Rozado da quantia de vinte e uma oitavas de ouro, uma dívida que me deve Joanna de Barros, no valor de treze oitavas e seis vinténs, trinta e duas oitavas de ouro lavrado, empenhados por outra tanta quantia em poder de Jozé Pinto, um cordão empenhado na mão de Francisco de Andrade, dois pares de brincos, um de aljofres e outro de ouro, um laço de diamantes que emprestei a Manoel Carvalho da Roza para a sua mulatinha, um tacho de cobre grande, cabendo aproximadamente três barris de água, outro tacho de cobre com capacidade de um barril de água, uma bacia de cobre de capacidade de dois barris de água, uma bacia de doce, uma saia de veludo preto, dois pratos grandes de estanho e vários trastes de casa, trastes e medidas sortidas de venda e assim mais algumas dívidas que da venda se me deve por rol e alguns bilhetes que constarem, também as mais roupas de meu uso.27

O comércio de secos e molhados parece ter sido a principal atividade exercida pela testadora e os objetos arrolados acabam sugerindo que parcela do que era vendido em seu estabelecimento vinha de uma produção doméstica. Para tanto ela contava

27. MO/CPO-TEST - códice 50, f.40 e 40v. Testamento de Quitéria Gomes Ferreira - Santa Luzia 08 JAN 1779.

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com o trabalho de dez escravos: quatro mulheres brasileiras, três homens brasileiros e três homens sem origem declarada. É provável que todos eles estivessem envolvidos, direta ou indiretamente, no funcionamento da venda de Quitéria. Talvez ela tenha intencionado recompensá-los quando, em seus testamento, passa carta de alforria a três mulheres brasileiras e declara coartados dois de seus escravos brasileiros, juntamente com a quarta escrava de seu plantel. É importante observar, ainda, que ascensão econômica como a experimentada por Quitéria engendrava relações cotidianas com homens brancos, que ocupavam posições sociais importantes. Isto pode ser comprovado pela lista de testamenteiros indicada pela preta forra, encabeçada pelo Reverendo Joam Carvalho de Barros e prosseguindo com os nomes do capitão Antonio Barboza Sylva e de Manoel Carvalho da Roza (que havia tomado-lhe emprestado um laço de diamantes), finalizando com a indicação do tesoureiro dos defuntos e ausentes. Muito interessante é, também, o caso da crioula forra Izabel Gouveia de Vasconcellos, natural do Rio de Janeiro, solteira e mãe de três filhos, moradora em Sabará, onde fez seu testamento em 1768. Ela parece ter diversificado bastante suas atividades, encontrando-se entre os utensílios que possuía “um tacho grande de fazer sabão” e “duas bacias de fazer pão-de-ló”. Além disso registrava um grande número de créditos provenientes, quase todos, do que parece ter sido sua ocupação principal: parteira. A maior parte das usuárias de seus serviços era constituída por mulheres escravas e forras e o preço cobrado por cada intervenção era de 4 oitavas de ouro. Izabel possuía, ainda, três escravas africanas que, certamente, auxiliavam-na durante os partos e na produção e comercialização do sabão e de quitutes. As três negras cativas foram coartadas pela testadora, e duas delas estavam sendo especialmente citadas. Uma, chamada Maria angola, tinha recebido o benefício porque estava “para casar” e outra, chamada Roza angola, cujo prazo acertado para o pagamento total já havia findado, deveria ser cobrada “com toda a brevidade para os gastos do meu funeral”28. Também aqui, tanto a coartação quanto a flexibilidade do tempo para saldar a dívida sugerem uma certa proximidade entre possuidora e possuídas, construída no dia-a-dia da relação. Entre todas as testadoras libertas arroladas, uma das que registrou maior pompa, diversidade de bens materiais e de relacionamentos pessoais foi a crioula Bárbara Gomes de Abreu e Lima, natural de Sergipe Del Rei, “filha legítima de Antonio benguela e de sua mulher Maria Gomes do gentio da mina, escrava do capitão Francisco Gomes de Abreu e Lima”. Bárbara era solteira e seus único filho já havia morrido. Por isso,

28. APM/CMS - códice 53, f.44 a 45. Testamento de Izabel Gouveia de Vasconcellos - Sabará 24 JAN 1768.

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instituía sua alma como herdeira. Ela residia em Sabará, em 1735, numa “morada de casas no Largo da Igreja Grande e defronte da Igreja Matriz desta Villa, as quais houve por título de compra que dela fiz a Domingos Ferreira de Souza”. Seu testamento começa a se diferenciar dos demais a partir da lista de testamenteiros indicados, assim constituída: (...) Capitão-Mor Jozé Ferreira Brazam, Lourenço Jozé de Queiros Coimbra, Vigário da Vara da comarca do Rio das Velhas Dom Jozé de Castro Solto Mayor, Manoel Marques Cardozo, Jozé Rodrigues de Souza, nesta Vila, Mestre-de-Campo Agostinho Dias, Sargento-Mor Manoel Ferraz nestas Minas, Lopo Gomes de Abreu e Lima, Afonço da Costa Moreira, Salvador da Silva na Bahia, Sargento-Mor Romão Grancioso, o Tenente Coronel Ignácio da Cruz no sertão no caminho dos currais.

Tantos testamenteiros em lugares diferentes indica um círculo amplo e selecionado de relações pessoais cultivado pela testadora, assim como negócios espalhados por várias regiões. Não é à toa que Bárbara dispunha de tantos objetos feitos de material nobre e despertava em outras mulheres o desejo de tê-la como comadre. Entre as posses declaradas encontravam-se: seis cordões pesando cento e uma oitavas, um se acha empenhado na mão de Thereza de Jezus, mulher de Antônio Alves por vinte oitavas e três na mão de Jozé Ferreira Brazam donde se acham dous cordões emendados que fazem um, quarenta oitavas, um cordão com uma águia, um pente, uma estrela, uma argola solta, um coração, tudo em ouro, também empenhado na mão de Jozé Ferreira Brazam, um cordão de ouro, um feitio de menino Jesus de ouro pesando cinco oitavas, umas argolinhas de ouro pesando quatro oitavas, uma senhora de feitio de Nossa Senhora da Conceição pesando três oitavas e meia, uns brincos de aljôfar e uns botões de ouro, umas argolinhas de ouro pequenas, uma bola de âmbar, uma bolta (sic) de corais engranzadas em ouro, um coral grande com uma figa pendurada, tudo de ouro, quatro colheres de prata pesando oito oitavas cada uma, quatro garfos de prata e uma faca com cabo de prata, duas memórias de emberessadeiras (sic), dois pares de botões de anáguas abertos no buril, tudo

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empenhado na mão de Manoel de Magalhaens por sete oitavas, o que meus testamenteiros desempenharão. Item tenho empenhado mais um cordão de ouro com o peso que se achar na mão de Jozé Rodriges de Souza por vinte oitavas que meus testamenteiros desempenharão. (...)um tacho grande de cobre e outro pequeno, doze pratos de estanho e dois grandes, uns corais, quatro saias, duas de seda preta e uma de rossa (sic) grana (sic) parda e uma de camelão e a roupa branca que se achar (...) três panos de dois covados, um preto, um azul e um verde, um colchão de lã (...).

Possuía, ainda, um plantel de sete escravos, composto por dois crioulinhos, três mulheres africanas e duas crioulinhas, dos quais deixava coartado, apenas, um dos crioulinhos. Bárbara era madrinha de Quitéria “filha de minha comadre Joanna Alves, que foi escrava de Jozé Antunes”, a quem legava 200.000 réis “caso que ela case e não casando lhe não deixo coisa alguma, em tal caso se aplicará esta esmola para uma orfã à eleição de meo testamenteiro”. Legava 100.000 réis a outra afilhada,” Anna, mulatinha, filha de minha comadre Roza escrava de meu senhor Gervazio Ribeiro de Andrade [a quem legava 50.000 réis], morador no Ribeirão do Carmo”, fazendo ressalva idêntica à anterior.29 Sem dúvidas, trata-se de um caso que de forma alguma refletia o padrão de vida da maior parte das forras mineiras. Para alcançar tal posição, a testadora não deve ter medido esforços e, em certa medida, acabou adotando valores culturais dominantes, como é possível depreender-se a partir da condição imposta às afilhadas para que recebessem a herança. Não obstante a incorporação do modus vivendi dominante, inclusive dos padrões religiosos católicos, alguns dos bens inventariados no testamento de Bárbara sugerem ter ela adotado práticas sincréticas e místicas. Destacam-se, entre eles, objetos raramente encontrados em outros testamentos de forras, como o pingente em forma de águia, a bola de âmbar, a estrela, a figa e a quantidade de corais que possuía. Outros, mais comuns, assumiam um significado místico, sobretudo, porque faziam parte de um conjunto bastante intrigante. É o caso dos numerosos cordões de ouro e dos brincos de aljôfar.30 Talvez tenha sido para

29. MO/CPO-TEST - códice 2, f.87 a 89v. Testamento de Bárbara Gomes de Abreu e Lima - Sabará 12 JUL 1735. 30. Dificilmente conseguiríamos encontrar os significados reais de cada um desses objetos para quem os possuía, assim como discriminar as influências de culturas européias, africanas e americanas. Entretanto, de uma maneira geral, todos eles parecem estar simbolizando a ligação entre o humano

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melhor guardar esses bens de grande valor pessoal (ela os manda resgatar) e para se resguardar de eventuais delações é que Bárbara os tinha empenhados nas mãos de dois homens de sua confiança, sendo um deles, simultaneamente, capitão-mor e testamenteiro dela. A testadora representava, certamente, um modelo a ser seguido por outras libertas que almejavam ascensão econômica e por escravas que buscavam estreitar o laço de amizade que as unia. As relações comadrescas não eram incomuns entre libertas, entre elas e as escravas ou, até mesmo, entre elas e as mulheres brancas. Mais raro, foi o registro feito pelas testadoras libertas das alforrias passadas a elas por seus padrinhos e madrinhas. Na verdade, nenhum registro desse tipo foi feito nos testamentos arrolados, embora a libertação de escravas(os), sobretudo quando crianças, realizada por estes parentes tortos fossem numerosas. Isso acontecia, geralmente, na pia batismal, isto é, no momento em que a criança era batizada. Quase nunca os proprietários aceitavam tornar-se “parentes” de seus próprios cativos, evitando ter que libertá-los ou protegêlos conforme o costume em vigor. A esse respeito, Stephen Gudeman e Stuart Schwartz comentam: (...) Os laços incompatíveis foram mantidos separados. Na verdade, sustentaríamos o argumento até o ponto de reintroduzir decisões individuais. A despeito de quem escolhia

e o sobrenatural, o poder, a sexualidade e a condição feminina. A águia representa a “encarnação, substituto ou mensageiro da mais alta divindade uraniana e do fogo celeste - o sol, que só ela ousa fixar sem queimar os olhos.” Ela sempre representou os maiores deuses e heróis. Em todos os continentes “xamãs, sacerdotes, adivinhos e, igualmente, reis e chefes guerreiros tomam seus atributos para participar de seus poderes.” O âmbar “amarelo chama-se, em grego, eléctron, nome do qual deriva a palavra eletricidade. Os rosários e os amuletos de âmbar são uma espécie de condensadores de corrente. Ao se autocarregarem, descarregam de seus próprios excessos aqueles que os usam ou que lhes defiam as contas. (...) fio psíquico que liga a energia individual à energia cósmica, a alma individual à alma universal. Ordinariamente, atribui-se aos heróis e aos santos um rosto de âmbar, que significa um reflexo do céu sobre sua pessoa e a força de atração que eles exercem.” As estrelas representam a fonte de luz. “Seu caráter celeste faz com que eles [os astros] sejam também símbolos do espírito e, particularmente, do conflito entre as forças espirituais (ou de luz) e as forças materiais (ou das trevas).” O coral “participa do simbolismo da árvore (eixo do mundo) e do simbolismo das águas profundas (origem do mundo). Sua cor avermelhada o aparenta com o sangue. Suas formas são atormentadas. Todos esses signos fazem dele um símbolo das vísceras. Na Antiguidade, o coral era usado como amuleto, para defender do mau-olhado. Muito usado na sua forma natural pelos ourives barrocos da Europa central, do século XVI ao século XVIII, ele deu origem, associado a figuras de metal precioso [no caso, a figa], a toda espécie de monstros e seres míticos, que fazem dele uma representação material inata do imaginário, do fantástico.” Os colares (cordões), brincos e pérolas (aljôfar) estavam revestidos de significados ligados ao erotismo, à sexualidade e à feminilidade. Todas estas explicações foram retiradas de CHEVALIER, Jean et CHEERBRANT, Alain. Dictionaire des Symboles - mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris, Segher, 1974, 4v.

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os padrinhos, parece provável que os senhores recusavam-se a servir de padrinhos para seus próprios escravos, porque se assim o fizessem, sugeririam inclinação a revogar algo de seu próprio poder. Se apadrinhavam escravos seus recentemente alforriados é uma questão diferente.31

Embora não esclareça sobre a maneira como conquistou sua alforria, Joanna Pires, natural da Costa da Mina, moradora em Sabará, em 1761, deixa uma instrução sugestiva a seu marido e testamenteiro, o preto forro mina Francisco Dias Serafim. Ela legava, “por esmola”, quatro oitavas de ouro à sua “madrinha e senhora Joana, que por nome não perca, parda casada com Jozé Alvres”.32 Não é possível afirmar que sua madrinha a libertara, mas a herança que a forra deixava para a antiga senhora (descendente de negros) indicava um sentimento de gratidão, talvez cultivado por muitos anos e relembrado na hora da morte. Às vezes, as relações existentes entre proprietários e padrinhos ou madrinhas parecem ser íntimas, mas emergem confusas nos testamentos, o que complica a análise feita a posteriori. Casos como os que seguem, acabam subsidiando questões pouco tratadas pela historiografia e, em conseqüência, ainda não debeladas. Uma delas refere-se à escolha dos protetores. Quem os escolhia? Os pais? Os senhores? Os afilhados quando, mais crescidos, recebiam o batismo?33 A preta forra mina Thereza Pereira dos Santos parece ter controlado todo o processo de batismo e de alforria de uma sua crioulinha. Moradora em Sabará, em 1769, ela reconfirmava, no testamento, duas alforrias passadas a ex-escravos. Dizia, então, ter libertado uma crioulinha por nome Angélica, filha da minha escrava Rita, mandei batizar na Pia do Batismo por forra e livre de toda a escravidão e suposto na Carta de Alforria que lhe passei se declara que recebi da mão do seu padrinho vinte e tantas oitavas de ouro para mais segurança de sua liberdade, agora declaro que tais oitavas não recebi porque atendendo aos bons serviços da dita sua mãe e pelo amor de Deus lhe dei a dita Alforria e para mais validade dela pelo presente meu 31. GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII.(trad.) In: REIS, João José (Org.). Escravidão & invenção da liberdade; estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras/CNPq, 1988, p.43. 32. APM/CMS - códice 24, f.132v. Testamento de Joanna Pires - Sabará 12 NOV 1761. 33. Gutman identificou práticas de apadrinhamento que não privilegiavam, necessariamente, o senhor e seus familiares ou outros brancos, e sim, as pessoas envolvidas em relações mais imediatas, isto é, outros escravos ou forros. Ver GUTMAN, Herbert G. The black ... op. cit. p.220-223.

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testamento torno a retificar-lhe a sua alforria e liberdade a qual meus herdeiros nem testamenteiros nem outra pessoa lhe ponha empedimento algum pois é minha vontade se trate como forra e livre de toda a escravidão como se tal nascesse.34

Outro relato interessante é o oferecido pela crioula forra Luiza Rodriguez, natural de Recife, solteira, também moradora em Sabará, onde fez seu testamento em 1754. Possuía cinco escravos, sendo que quatro deles faziam parte de uma mesma família, além de uma crioula. O núcleo familiar era composto pela mãe, uma negra chamada Leonor e pelos seus três filhos crioulos: Agostinho, Manoel “de peito” e Jozé. A negra Leonor era objeto de uma disputa judicial ainda pendente e, talvez, por isso, Luiza ordenasse a seu testamenteiro que vendesse os dois primeiros meninos mencionados, “a quem por eles mais der”. É provável que Luiza quisesse, assim, impedir que seu patrimônio fosse dilacerado, caso viesse a perder a tal disputa e, para tanto, parecia não se incomodar quando promovia a separação entre mãe e filhos. O curioso, entretanto, é que um dos três irmãos, Jozé, mereceu a especial atenção da testadora. Quem sabe tentando minorar a falta que cometia com o restante dos parentes, ela declarava: (...) o outro filho da dita negra é forro e se chama Jozé, que o criei e lhe passei Carta de Alforria que se haja em meus papéis e se entregará com o mesmo crioulo à sua madrinha Flor Rodrigues, que também criei, a qual peço pelo amor de Deus o crie, sustente e vista lhe fazendo apreender um ofício, aquele que ele se inclinar e o mesmo crioulo a servirá enquanto não puder ganhar pelo ofício que aprender e se sustentar e vestir e não o fazendo assim peço de mercê ao meu testamenteiro o faça à custa de minha fazenda.35

Novamente, a proprietária parece ter controlado o amadrinhamento de seu escravo, desta vez, através de um acerto estabelecido com uma “cria” de sua casa. Aqui, os laços entre senhora e madrinha são inegavelmente estreitos. Quando escravas, várias testadoras buscaram no apadrinhamento (ou nele foram envolvidas) um suporte para a libertação. Após conseguirem-na, não eximiramse em tornar-se madrinhas de infortunados cativos e em contribuir para suas alforrias.

34. APM/CMS - códice 24, f.105. Testamento de Thereza Pereira dos Santos - Sabará 28 AGO 1769. 35. APM/CMS - códice 24, f.111. Testamento de Luiza Rodriguez - Sabará 21 DEZ 1754.

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De certa forma, elas reproduziam a relação de poder junto à qual, um dia, tiveram que se deixar envolver. No seio das relações de dominação escravistas, forjavam-se padrões de poder que foram incorporados por livres e libertos e, evidentemente, reproduzidos no trato cotidiano entre a população. Uma das maneiras mais utilizadas pelas forras, para melhor posicionarem-se na sociedade colonial, foi adotar, mesmo que mascaradamente, o modelo católico de vida. E a religião, que buscava dominar as atitudes, as intenções e o próprio homem colonial, serviu, involuntariamente, como meio de defesa e de resistência cotidiana para as populações oprimidas. O padrão religioso se impunha sobre a esfera espiritual, ou pelo menos, sobre a forma de representá-lo no dia-a-dia. Eram as missas, as orações, as promessas e penitências, os sentimentos e os atos pios para com os menos favorecidos. Já a participação efetiva dos fiéis, dava-se através das Irmandades e, em Minas Gerais, vinculada a uma estrutura leiga. De todo jeito, a arma empregada pelos colonizadores servia como escudo protetor para os sincréticos e “hereges” mineiros. 36 Disfarce religioso e fé misturavam-se nos enunciados formais dos testamentos coloniais, sobretudo nos testamentos dos libertos. As mulheres, desempenhando um papel de guardiãs de tradições culturais africanas, atuaram incisivamente junto à conformação e difusão de elementos sincréticos característicos da religiosidade popular.37 Entretanto, a abertura dos testamentos, onde a Santíssima Trindade, anjos e santos eram invocados, caracterizava-se por uma tal padronização, que dificilmente identificar-se-ia qualquer elemento não católico. No restante do documento, lugar mais provável para a aparição de indícios sincréticos, muito poucas testadoras ousaram registrá-los, como o fez a crioula Bárbara Gomes de Abreu e Lima, acima mencionada. Na parte testamental destinada aos assuntos espirituais - a abertura -, pelo menos até o final do século XVIII, não houve variações significativas no caso das

(36) - Sobre religiosidade popular e sincretismo religioso na colônia ver: SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz; feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo, Cia. das Letras, 1986; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados; moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1989. Sobre as irmandades mineiras, o estudo mais completo e elucidativo é BOSCHI, Caio César. Os leigos ... op. cit. (37) - Sobre a importância das mulheres para a preservação da herança cultural africana no Novo Mundo escravista ver BUSH, Barbara. Slave ... op. cit. p. 70, 80, 110-119. Ver, com relação ao sincretismo religioso, OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p.47-51. A autora transcreve, integralmente, o testamento da crioula Rosa Maria de Paiva Aleluia Lima, falecida, na Bahia, em 1842, através do qual legava a seu primeiro testamenteiro uma “gibóia grande, que tem oito palmos e meio de comprido”, um crucifixo de ouro e prata lavrada. A grande serpente era um símbolo religioso, identificado nos sistemas jeje-nagô e ioruba, o que levou a autora a concluir sobre a ligação de Rosa com o culto Oxumaré.

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libertas. A totalidade delas deixou registros muito semelhantes ao da preta forra angola, Izabel Pinheira, moradora em Roça Grande, termo da Vila de Sabará, em 1741. Izabel, desejosa de por sua “alma no caminho da salvação, por não saber o que Deus nosso Senhor de mim quer fazer e quando será servido de me levar” fazia seu testamento e encomendava sua alma à Santíssima Trindade. Rogava pela intercessão da Virgem Maria, dos santos celestiais, do Anjo da Guarda e da Senhora do Rosário, de quem era devota. E prosseguia: e quando minha alma deste corpo sair, porque como verdadeiro cristão protesto de viver e morrer na santa fé católica e crer o que tem e crer na Santa Madre Igreja de Roma, em esta fé espero salvar a minha alma, não por meus merecimentos, mas pelos da Santíssima paixão do unigênito filho de Deus.

Izabel gostaria, ainda, de ser sepultada em hábito de São Francisco, como era costume, escolhia o templo onde seu corpo seria depositado e descrevia a forma que seu cortejo deveria assumir. Incluía o acompanhamento de “seu pároco” e mais sacerdotes, assim como da Irmandade das Almas, que cederia seu esquife, além da missa de corpo presente.38 Uma das maiores vantagens em fazer parte de alguma irmandade colonial era, como no caso acima, assegurar um enterro digno de bons cristãos. Com relação ao cortejo, quanto mais pomposo se mostrasse, mais facilmente alcançava seu objetivo primeiro: explicitar a importância adquirida, em vida, pelo que agora jazia e criar uma imagem adequada do defunto para a posteridade. Nessa perspectiva, melhor seria ter feito parte de mais de uma irmandade, sobretudo se fossem as mais poderosas. Aqui, os testadores negros levavam grande desvantagem. Por isso e para compensar a interdição às Ordens Terceiras de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos fez-se influente e disseminada por toda a Capitania. Devoção e obediência aos preceitos católicos, como as demonstradas pela negra Izabel, serviram como instrumentos de controle sobre a população negra liberta, mas também camuflaram, perfeitamente, infrações cometidas contra a moralidade cristã. As devotas libertas, entre casadas e solteiras, continuavam, como no tempo de cativeiro, utilizando-se da fé e cultivando os prazeres mundanos.39 Várias delas

38. MO/CPO-TEST - códice 4, f.80 e 80v. Testamento de Izabel Pinheira - Roça Grande 04 JUN 1741. 39. Ver sobre o assunto os recentes trabalhos de DEL PRIORE, Mary. Ao sul ... op. cit. e MOTT, Luiz. Rosa ... op. cit.

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perceberam claramente, como observa Michel Foucault, lembrado por Barbara Bush, que “a sexualidade constitui um ponto de transferência, particularmente denso, nas relações de poder”.40 Pequenos poderes, informais, até mesmo, invisíveis, eram conquistados através de intercursos sexuais, de ligações duradouras e da geração de bastardos descendentes de homens com boa posição social. A estratégia do sexo propiciava ganhos materiais, ampliação do rol de amizades e de conhecimentos, proteção e exercício de influências, aumentando-lhes a capacidade de mobilização social. Todo esforço despendido era compensado por um padrão de vida menos austero, pelo respeito, mesmo que truncado e pouco profundo, da sociedade em que se encontravam inseridas. Para desvincular-se da antiga submissão, tornaram-se senhoras, para mostrarem-se dignas, buscaram a ascensão econômica, para negarem a desumanização intrínseca ao sistema, adaptaram-se pragmaticamente a ele. Adotaram valores dominantes e conservaram tradições africanas, reinventando, assim, o universo cultural brasileiro. As mulheres negras, sobretudo as mães, submeteram-se a um certo código de comportamento social e ocuparam lugar central no que se refere à difusão desse sincrético modo de viver. No seu interior, evidentemente, fundiam-se reproduções e transformações da realidade escravista colonial. Como resultado, microcosmos, como a casa e a rua, em boa medida delineados pela intervenção feminina. Para tornar a vida menos áspera elas não temeram negar sua ascendência africana e sua cor de pele. Parece ser o caso de Maria do Nascimento Sylva, natural e batizada na Paraíba do Norte, solteira e sem filhos, moradora em Sabará, em 1761. Maria não deixou explícito em testamento as suas condição e qualidade, mas seu padrão de vida, a autonomia de decisões que demonstrava possuir e o fato de ter vindo sozinha do nordeste da Colônia para as Minas, sugerem tratar-se de uma crioula forra ou descendente de forros. Proprietária de seis escravos e impregnada de valores dominantes, a testadora certamente omitira sua marca de identificação social, talvez buscando forjar um embranquecimento para a posteridade. Assim, ela instituía como herdeira universal uma mulatinha, Sebastiana Inês, que tenho em minha companhia, a quem sempre tratei com amor de mãe e atendendo o grande amor que sempre tive peço encarecidamente a meu testamenterio que logo que eu morrer tome conta dela pondo-a em uma casa honrada a educar-se até ter idade de tomar o estado de casada que lhe procurará dar meu testamenteiro com um homem branco ainda que pobre ...

40. BUSH, Barbara. Slava ... op. cit. p.111.

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Maria impunha uma maneira de viver à mulatina a quem dedicava tanto apreço, contribuindo para que também esta última adotasse, desde cedo, valores dominantes como base de convivência social. Neste sentido, era uma tentativa de reprodução do modelo que havia propiciado ganhos materiais e mobilidade à própria testadora. De forma muito semelhante, embora menos contundente, ela procurou passar a receita do bem viver à uma sua escrava, a crioulinha Joanna, filha de sua crioula Bonifácia. Deixava para a menina “uma saia de camelão e oito varas de linhagem(?)”, com a condição de proceder-se “bem quando estiver para tomar o estado de casada”41, isto é, de manter-se virgem até o casamento, conforme os mandamentos da Igreja. Era o projeto de normatização da mulher colonial, operacionalizado através do ideal de passividade e de submissão feminina ao mando masculino 42, mas que, muitas vezes, serviu de máscara para a resistência cotidiana. Se ao imaginário colonial incrustou-se um código de bom comportamento, é bom lembrar que ele desempenhou dupla função.43 As atitudes e as representações modelares vivenciadas no dia-a-dia serviram, inegavelmente, como instrumento de controle da população, quando criavam a imagem do “bom escravo”, das “relações honestas” e do “bom cristão”. Contudo, tornaram-se, também, instrumentos perfeitos para dissiparem suspeitas e acobertarem infrações à ordem estabelecida. Resistência pragmática, que não desperdiçou qualquer brecha existente no sistema, resultou em privilegiadas situações para muitas escravas e libertas. Haja vista que a ascensão econômica entre as mulheres era mais comum que entre os homens ex-escravos, resultando em um número muito superior de testadoras forras. Até mesmo na hora da morte prevaleceu o pragmatismo dessas negras. Entre o Deus branco e seu séquito de santos e as divindades africanas, optava-se, muitas vezes, por uma via sincrética, afro-brasileira, que pudesse garantir a salvação do espírito. Mesmo assim, nos testamentos, encomendavam suas almas no melhor estilo católico barroco. Todos os caminhos eram válidos quando se tratava de alcançar um objetivo desejado de maneira contumaz. As libertas, que deixaram testamentos, formam a base desta análise, mas não podem ser consideradas uma síntese perfeita do numeroso grupo de ex-escravas e de suas descendentes. A maior parte delas não desfrutou do mesmo nível de vida experimentado por essas testadoras, tanto no que diz respeito aos aspectos materiais,

41. APM/CMS - códice 24, f. 82v. e 83. Testamento de Maria do Nascimento Sylva - Sabará 02 JUL 1761. 42. Ver DEL PRIORE, Mary. Ao sul ... op. cit. p.28-29. 43. Sobre o imaginário social e os códigos comportamentais ver: BACZKO, Bronislaw. Imaginação ... op. cit. p.309.

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quanto ao conseqüente posicionamento social adquirido. Contudo, a trajetória pessoal de cada testadora guarda semelhanças básicas com o processo de libertação e de vivência coletiva experimentado pelo restante da população negra. Em última análise, enriquecidas ou miseráveis, carregavam todos o estigma da cor e da origem, isto é, da qualidade e da condição, que a sociedade escravista colonial, em momento algum, deixou de usar como instrumento de segregação. Neste sentido as estratégias de resistência, assim como de adaptação ao mundo dos brancos foram igualmente empregadas por negros(as) integrantes de diferentes realidades econômicas e culturais. Resulta daí, uma dinâmica e complexa rede de relações sociais, inter e intra-grupais, objeto da análise que segue.

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CAPÍTULO V ALGUMAS IMPRESSÕES SOBRE A SOCIEDADE MINEIRA ATRAVÉS DOS TESTAMENTOS

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (Karl Marx. O 18 Brumário de Luís Bonaparte.)

Seria lamentável se a riqueza informativa dos testamentos não fosse aproveitada de uma maneira mais completa neste trabalho. Embora os principais recortes temáticos tenham sido abordados nos dois capítulos anteriores, outros dados e informações importantes sobre o universo mineiro colonial formam a base da discussão que segue. Neste sentido, vários assuntos serão examinados à frente, dando a este capítulo uma característica diferente, isto é, transformando-o numa espécie de mosaico multifacetado do setecentos mineiro. Por conta disto é que foram esboçadas tantas análises ligeiras.

PESSOAS, FAMÍLIAS E MORADIAS Declaro que fui casada com João Roqueyro, de cujo matrimônio tivemos uma filha por nome Maria Roqueyro, para cujo matrimônio me dotou meu tio, o defunto Manoel Homem, com três carijós Remotio, Joaquim, Joze copé e um bastardo por nome Jordam os quais pertenciam ao dito meu tio por pagar certa quantia pelo dito meu marido, em o livrar de vários crimes e dívidas que devia e depois de casado comigo o dito defunto meu marido os jogou (sic) e me deixou ao desamparo com a

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dita filha que nos ficou, por ir para os sertões do que [...] cuja administração dos carijós me trespassou o dito meu tio para mim e meus descendentes bocalmente; na ausência do dito meu marido tive dois filhos na dita Vila de Itu (?) a saber João, filho de Feliciano Coelho e Francisco, filho de André dos Santos sendo estudante e para remar a vida para que o dito meu marido me não matasse me passei para as minas, sem bens algum, se não só com a minha pessoa e depois dele falecido tive dois filhos naturais a saber Maria da Conceição, filha do licenciado Domingos Macial Aranha, morador no Pitangui e Francisco Xavier, filho de Antonio Pereyra do Serro do Frio.”

Este relato foi feito, em 1742, pela mestiça Anastácia, natural da Capitania de São Paulo, filha ilegítima de Pascoal Homem e Moxiacor-jos (índia?) e que ao transferirse para Minas Gerais, mudara o nome para Francisca Poderoza. Um sugestivo pseudônimo para uma mulher que conseguiu sobreviver à pretensa fúria do marido, mudar de domicílio e de vida, envolver-se com vários homens, adquirir muitos bens materiais e, talvez por essas conquistas, julgar-se vitoriosa.1 Um dos aspectos mais interessantes do relato acima é o registro da atração que as Minas provocavam entre os moradores de outras regiões brasileiras. As imagens do Eldorado, do Sabarabuçu, da Serra das Esmeraldas e o sonho de enriquecimento instantâneo parecem ter intensificado, pelo menos durante as primeiras décadas de ocupação e de exploração, um deslocamento populacional em direção à Capitania.2 Migrantes que procuravam a fortuna e, também, o esconderijo (parece ter sido o caso de Francisca), gente de todas as partes da Colônia e de fora dela, vieram instalarse nas Minas Gerais. Segundo o jesuíta italiano João Antônio Andreoni, mais conhecido como Antonil, cujo livro foi publicado, pela primeira vez, em 1711, A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os

1. MO/CPO-TEST - códice 13, f.92. Testamento de Francisca Poderoza - Pitangui 06 AGO 1742. É importante mencionar a relativa riqueza da testadora, adquirida depois de migrar para as Minas. Os filhos com os diferentes homens sugerem, nesse caso, que um relaxamento de costumes que pode ter servido de fonte principal para a aquisição de bens materiais e meios de vida. 2. Sobre os lugares míticos de extrema riqueza e sobre a mentalidade dos homens coloniais que vieram procurá-los na região das Minas ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do paraíso; os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2 ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1969, p.34-64.

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das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e em outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar. Cada ano, vêm nas frotas quantidades de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa.”3

No rasto dos metais e pedras preciosos, muitos homens aventuraram-se pelos sertões desconhecidos, abandonando suas famílias para povoar outras paragens, como fez o marido de Francisca Poderoza. O fenômeno parece ter marcado a sociedade paulista colonial, o que levou Mary Del Priore a afirmar: Solitárias e amalgamadas às suas proles, as mães resistiam à violência, mas, sobretudo, à solidão, este sério percalço inerente às migrações masculinas que aumentaram a partir do século XVIII em função da descoberta do ouro. Desamparadas ou `deixadas’, vivendo da rotina do comércio de gêneros, da prestação de serviços, as mulheres tentavam romper as barreiras da pobreza e do isolamento, valendo-se para isso do círculo de comadres e vizinhas.4

A maior parcela dos migrados para as Minas, excluindo os escravos, era constituída por homens, mas várias mulheres fizeram a mesma opção. É o caso de Felicianna Maria dos Santos, originária da “cidade da Paraíba do Norte”, “filha natural

3. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3 ed. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Ed. USP, 1982, p.167. 4. Ver DEL PRIORE, Mary. Ao sul ... op. cit. p.61.

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de Manoel Jozé de Macedo e de Maria Soares”, que já haviam falecido à época que Felicianna fez seu testamento. A testadora era solteira, não tinha filhos, morava em Roça Grande, em 1749, onde possuía uma “morada de casas térreas, sitas à Rua do Fogo”, compradas ao licenciado Ignácio Parreyra. Entre os bens que possuía, ela destacava dois escravos, Martinho mina e Bonifácio crioulo, três tachos de cobre, “dois novos e um furado”, ouro lavrado e suas roupas. Esses dois últimos itens ela legava à sua afilhada Felicianna crioula, “filha de compadre Lourenço Pereyra e de Antônia que por sobrenome não perca, crioulos moradores na fazenda de Manoel Rabello, freguesia de Roça Grande”.5 Da mesma forma que Francisca, o marido dela e Felicianna, muitas outras pessoas transferiram-se ou foram transferidas de suas terras natais para viverem em Minas Gerais. Uma amostra pequena, mas diversificada e interessante, foi montada a partir das informações sobre o local de origem dos 357 testadores arrolados nesta pesquisa. O quadro que segue é um reflexo do deslocamento populacional em direção à Capitania, que parece ter sido constante durante todo o setecentos.

5. MO/CPO-TEST - códice 16, f.140 e 141. Testamento de Felicianna Maria dos Santos - Roça Grande 28 JUN 1749.

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Quadro I - Regiões de origem e de procedência dos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 REGIÃO

Portugal

No DE TESTADORES H

HF

ML

MF 0

185

0

3

Açores

11

0

2

0

Ilhas Canárias

0

0

1

0

Ilha da Madeira

1

0

0

0

Outros estrangeiros livres*

10

0

0

0

Angola

0

1

0

6

Cabo Verde

0

0

0

1

Costa da Mina

0

14

0

39

Costa do Marfim

0

1

0

0

Guiné

0

0

0

2

Nação Courana

0

0

0

1

São Tomé

0

0

0

2

Outros africanos

0

1

0

4

Bahia

11

1

3

5

Espírito Santo

0

0

1

0

Maranhão

1

0

0

0

Minas Gerais

2

4

7

2

Pará

2

0

0

0

Paraíba

0

0

2

0

Pernambuco

1

1

3

3

Rio de Janeiro

2

0

1

3

Rio Grande do Norte

1

0

0

0

Sergipe

1

0

0

1

São Paulo

1

0

2

0

Outros brasileiros

1

0

1

1

Forros sem origem identificada

0

0

0

3

Livres sem origem identificada

1

0

4

0

231

23

30

TOTAL TOTAL GERAL

73 357

Fontes: vide Quadro I, capítulo IV. * Não identificados.

Basta comparar os números relativos a Minas Gerais com o restante do quadro, para se vislumbrar a dimensão do fluxo migratório ocorrido. É claro que o tráfico africano é uma migração forçada, não espontânea como nos outros casos, mas os negros trazidos daquele continente formavam o maior conjunto de estrangeiros na

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Capitania. Entre os livres, os portugueses eram os mais numerosos, seguidos pelos brasileiros de outras regiões e pelos naturais das ilhas da costa atlântica africana. Os baianos e pernambucanos, que aparecem com destaque no quadro, transferiram-se, provavelmente, diante da crise que atingiu o setor açucareiro nordestino durante várias décadas do século XVIII. A observação estende-se aos testadores(as) forros, que, em sua quase totalidade, vieram como escravos, acompanhando seus proprietários. A pequena quantidade de mulheres brancas foi uma constante na Capitania. Isso, em larga medida, contribuiu para a miscigenação da população e para a formação de numeroso grupo de mestiços. As índias num primeiro momento e em seguida as negras e mestiças, foram as principais parceiras da população masculina mineira. Já foi dito que boa parte dos testadores livres era constituída por solteiros, o que deve ter sido um padrão seguido pelo restante da população colonial. Nessa perspectiva, as uniões consensuais tornaram-se muito comuns, como acontecia nas outras regiões brasileiras, o que resultou em um modelo de família bem diferente do desejado pela Igreja Católica, sobretudo após o Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563.6 Homens e mulheres vivendo em concubinato, mães solteiras chefiando a casa (geralmente negras ou mestiças) e filhos bastardos, à vezes de mais de um pai ou mãe, este era o perfil da família colonial. O casamento de acordo com as normas eclesiásticas era, naquele tempo, um processo caro, complicado e cheio de obstáculos a serem superados.7 Mais valia a pena permanecer solteiro, como indica os dados reunidos abaixo.

6. Sobre as regras do Concílio de Trento para o casamento e a dificuldade encontrada pelos colonos para observá-las ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo, T.A. Queiroz/EDUSP, 1984, p.83-155. 7. id. ibid. p.47-58. A autora aponta os seguintes empecilhos ao bom andamento do processo matrimonial na Capitania de São Paulo: a vadiagem dos homens; o atraso da agricultura e os conseqüentes problemas com a subsistência; as exigências da burocracia eclesiástica e o recrutamento para o serviço militar.

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Quadro II - Estado civil dos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 ESTADO CIVIL TESTADORES

CASADOS

TOT %

SOLTEIROS

TOT %

OUTROS *

TOT %

TOTAL

TOT %

HL

37

16,01

156

67,53

38

16,46

231

100

HF

8

34,78

11

47,82

4

17,40

23

100

ML

11

36,66

9

30,00

10

33,33

30

100

MF

16

21,92

46

63,01

11

15,07

73

100

TOTAL

72

20,17

222

62,19

63

17,64

357

100

*Viúvos, concubinos, viúvos e concubinos, não identificados. Fontes: vide Quadro I, capítulo IV.

O Quadro II sugere que a preponderância de solteiros não teria sido tão marcante entre os testadores forros e as testadoras livres. Não obstante, o conjunto de dados relativos a essas duas categorias é bastante reduzido e isto compromete as ilações possíveis de serem feitas. No caso das mulheres livres, única categoria em que o número de casados aparece maior do que o de solteiros, é bom lembrar que algumas brancas testadoras encontram-se incluídas, fato que pressiona o índice de matrimônios para cima. São, portanto, os dados referentes aos homens livres e às mulheres forras, os únicos passíveis de estarem próximos à realidade. Ainda assim, é preciso considerar que se alguns dos testamentos investigados tiverem sido motivados por problemas relacionados à sucessão, isto é, se o documento fosse feito exatamente por pessoas atingidas por situação civil irregular, este fato elevaria, artificialmente, a quantidade de solteiros. É possível que este fator possa estar contribuindo para elevar um pouco os índices dispostos no quadro acima. Entretanto, a tendência é que o casamento perante a Igreja, devido aos obstáculos já mencionados, fosse mais comum entre indivíduos que possuíssem recursos materiais suficientes para arcar com os altos custos da formalidade. Estas pessoas eram, também, virtuais testadores. Já a massa de gente que não tinha o que testar, também não contava com recursos para casar-se e permanecia, certamente, no estado de solteiro. É provável, então, que a taxa encontrada para os solteiros, 62,19% dos 357 testadores arrolados, esteja realmente próxima da situação vivida pela população colonial. Numa pesquisa feita para Salvador, Maria Inês Côrtes de Oliveira utilizou-se de testamentos de libertos e de libertas, dividindo-os em dois períodos: 1790/1850 e 1851/1890. Com relação ao estado civil desses testadores ela encontrou dados que podem ser comparados aos nossos. No primeiro período, em um total de 112 homens, 53,6% eram casados, 25,9% eram solteiros e 20,5% eram viúvos. Entre as 147

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mulheres, 38,1% eram solteiras, 34,7% eram viúvas, 23,1% eram casadas e 4,1% não declararam o estado civil. Para o segundo período foram detectadas algumas alterações. Entre os 128 homens arrolados, 57,8% eram solteiros, 30,5% eram casados e 11,7% eram viúvos. Para as mulheres, os números eram os seguintes: das 95 testadoras, 48,4% eram solteiras, 26,3% eram casadas, 16,8% eram viúvas e 8,4% não declararam o estado civil.8 O padrão encontrado para as libertas mineiras assemelha-se ao encontrado para as baianas. Menos parecida, mas ainda assim comparável, fica a situação dos forros, nas duas capitanias. De uma forma geral, a tendência ao celibatarismo parece ter sido marcante em toda a Colônia e ter se estendido a uma larga parcela da população, tanto entre os homens, quanto (e principalmente) entre as mulheres.9 Embora em menor número, os casamentos ao molde tridentino existiam e, mesmo sendo mais comum entre os descendentes diretos de europeus e entre os membros de famílias ricas, uniram casais de diferentes classificações na escala sócioeconômica colonial. Assim, seguindo as instruções da Igreja, o português Estevão Rodrigues Maya, morador no Arraial do Pompéu, freguesia de Sabará, em 1765, declarava ter casado-se “nestas Minas, na forma do lugar do Concílio Tridentino com Roza Maria Ferreira”, com a qual teve cinco filhos; ela era branca, provavelmente, uma vez que no testamento não há qualquer menção à sua “qualidade”. Estevão tinha um cunhado como sócio em um empreendimento ligado, simultaneamente, à mineração e à agricultura. Antes de morrer, vendeu sua parte na sociedade a Roza, conforme uma “escritura pública feita na nota do tabelião Custódio Pereira da Rocha, na forma que nela se declara” e, em seguida, advertia: “quero que a mesma escritura se dê toda a validade”. Estevão escolhia a própria mulher como testamenteira e nomeava “a dita minha mulher Roza Maria Ferreira por tutora e administradora de meus filhos por conhecer nela boa capacidade e prudência para a sua criação e educação”.10 Outro casamento realizado nos mesmos moldes ocorreu entre o português, Domingos da Costa Loureiro, e a preta forra Francisca da Costa, do qual nasceram sete filhos. Em seu testamento, Domingos declarava Francisca como sua primeira testamenteira e lembrava que os bens do casal haviam sido avaliados em um conto, trezentos e quatorze mil réis e que ele vendera a sua “meação” a sua esposa “por

8. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto ... op. cit. p.58-59. 9. Ver sobre o assunto DEL PRIORE, Mary. Ao sul ... op. cit. p.66-71; FREYRE, Gilberto. Casa... op. cit. p. 307; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema ... op. cit. p.17-63; SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados ... op. cit. p.143-161; VAINFAS, Ronaldo. Trópicos ... op. cit. p.69-106. 10. APM/CMS - códice 24, f.154v e 155. Testamento de Estevão Rodrigues Maya - Arraial do Pompéu 16 SET 1765.

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escritura pública feita na nota do tabelião (...) com o embargo de pagar a dita quantia de quatrocentos e trinta e dois mil réis a mim ou a meus herdeiros, em oito pagamentos que vêm a ser cinqüenta e quatro mil réis por ano.”11 Alguns casais libertos também adotaram o modelo matrimonial tridentino. É o caso de Maria da Costa, preta forra originária da Costa da Mina, ex-escrava do padre Simão de Moura, que declarava em testamento ter sido batizada em Minas Gerais e casada “ao serviço de Deus, como manda o sagrado Concílio Tridentino, com Bernardo Borges, preto forro e não tenho filhos nem herdeiros ...”. A testadora instituía o marido como seu herdeiro universal e testamenteiro e dizia ainda: “possuímos um escravo por nome Francisco cobú e assim mais Rosa mina, Francisco mina, Elenn(?) crioula e Anna crioula”.12 Em dois dos exemplos reproduzidos acima aparece mencionado um costume muito difundido entre os casados. Trata-se do regime de “carta metade”, isto é, da divisão dos bens adquiridos pelo casal, no caso da morte de um dos cônjuges. O curioso é que, em alguns casos, a parte de um dos cônjuges era vendida ao outro, ao invés de ser herdada. O dinheiro arrecadado com a negociação poderia ser, provavelmente, empregado ao gosto do vendedor sem que tivesse de se prender às regras vigentes ou estivesse passível de interferência por parte do parceiro. É por isto, talvez, que alguns testadores fizeram questão de declarar o tipo de matrimônio que haviam contraído. Mesmo instituindo o marido como testamenteiro e universal herdeiro, a preta forra, Josefa da Costa Barreto, nascida na Costa da Mina, batizada em Sabará e moradora nessa vila, em 1765, atestava: “e no estado de escrava fui da defunta Martha da Costa a qual pelo seu falecimento me deixou forra graciosamente(?) da sua terça e no estado de liberta me casei com Félix Cardoso de Barros por Carta de a Metade, cujo matrimônio não tive filho algum, nem outro algum herdeiro que por meu falecimento haja de suceder em meus bens.”13 Uma certa independência material entre marido e mulher, sobretudo entre os libertos, parece estar por trás desse costume. É possível que a instabilidade das uniões também estivesse induzindo os cônjuges a tentarem assegurar uma estrutura material de vida, no caso de separações. O certo é que na sociedade mineira setecentista conviviam tipos diferentes de casamento e, conseqüentemente, tipos também diferentes de estrutura familiar. Um

11. APM/CMS - códice 24, f.149v. Testamento de Domingos da Costa Loureiro - Sabará 09 JUL 1766. 12. APM/CMS - códice 24, f.77. Testamento de Maria da Costa - Arraial do Brumado, termo da Vila de Caeté 02 AGO 1752. Neste caso, o casamento ao molde tridentino pode ter ocorrido sob influência direta do ex-senhor da testadora. 13. APM/CMS - códice 24, f.137v. Testamento de Josefa da Costa Barreto - Sabará 28 JUN 1765.

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padrão bastante rígido, onde o pai julgava-se e era aceito como senhor do destino de seus dependentes, caracterizou a família do mestre-de-campo português, Manoel Pereyra Crasto, casado com Francisca Romeira da Foncequa, nascida em Taubaté, moradores em Sabará, em 1717. Além dos seis filhos legítimos, Manoel reconhecia ter um filho mulato, chamado João, havido com a mulata Tomazia, escrava de Antônio de Basto. O bastardo já tinha sido alforriado e o pai pedia aos testamenteiros para o tratarem como seu filho liberto “até darem estado que sirva”. Com relação aos descendentes legítimos, declarava Manoel: (...) peço me levem meus filhos e as fêmias(?) a serem freiras e os filhos dar-lhes aquele ensino e estado dirigido ao serviço de Deus e do próximo; a todo aquele ou aquela filho meu que for contra esta minha vontade os hei por amaldiçoados para que nunca secrentam(?) como filhos de benção e a maldição é para que vivam mendigando de porta em porta; peço à minha mulher, quando Deus me separe a alma do corpo, faça com os meus testamenteiros vendam escravos e escravas, reservando uma dúzia de negros para conservar as lavras como [...] e outra dúzia para o engenho, para bem de se lamentarem(?) enquanto estiverem nas minas e se sustentarem este sítio na mesma forma que eu faço para bem do ensino de meus filhos; peço mais a dita minha mulher acompanhe a seus filhos para o Reino a fazer assistência [...] em um convento com suas filhas, a ver o estado e educação que os filhos têm, aonde passar o resto da vida com muita paz e quietação de sua alma, seguindo a nossos filhos a constituo tutora e curadora deles e fazendo o contra, ordeno a meus testamenteiros lhe tirem a administração de tudo o que não foi dela. (...) Indo a tudo minha mulher contra esta minha última vontade não poderá herdar mais do que inteiramente lhe tocar, tirado de sua parte seis mil cruzados que seu pai me prometeu do dote que me não deu nada e casamos sem condição alguma e em tal caso, herdará minha mulher o remanescente de minha terça.14

Maldições e condicionamentos, propriedade sobre o futuro da mulher e dos filhos, inflexíveis regras de moralidade, que nem sempre valeram para o próprio autor 14. MO/CPO-TEST - códice 11, f.105v, 106, 108v, 109. Testamento de Manoel Pereyra Crasto - Sabará 19 ABR 1717.

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das imposições, eis um caso de poder paterno maximizado. Entretanto, não eram todas as famílias coloniais submissas aos mandos do pai. Um exemplo que se opõe ao anterior é o de Jozefa Maria de Souza, originária da capitania do Espírito Santo, filha ilegítima de Izabel de Souza e Luiz de Souza, casada fora do regime de carta metade com Antônio José Dias dos Santos, “que não está presente”. A testadora morava em Sabará, em 1759 e sobre o marido dizia: “nunca fez vida comigo”. Dizia, ainda, que ele nunca a sustentara, que não havia trazido nada para os bens que ela possuía, que de seus três filhos nenhum descendia de Antônio e que quando ele a visitava “era só comer o que se achava”.15 Este caso encontra-se muito mais próximo que o antecedente do perfil adquirido por grande parte das famílias coloniais, onde a rigidez, como a observada acima, não era a regra. Ao contrário, os casamentos ou as uniões consensuais contraídos pela maioria da população caracterizaram-se pela fluidez comportamental, pela mistura de raças e de tradições culturais e por uma divisão sexual de funções, entre os cônjuges, um tanto flexível. Casamentos consensuais ou sacramentados entre brancos e negras foram freqüentes nas Minas. Já foi citado o caso do português Domingos da Costa Loureiro e da preta forra Francisca da Costa. Outro exemplo é mencionado pelo padre Francisco Coelho, português, morador em Sabará, em 1749. Ao estipular seus legados testamentais ele declarava: (...) tenho em casa um mulato por nome Ignacio, filho de Anna Maria, preta forra, casada com um homem branco, Theodózio da Costa, o qual mulatinho lhe dou de esmola quatrocentos mil réis e declaro (...).16

O português Manoel Macedo de Guimarains, solteiro, morador na Fazenda do Mocambo, no Papagaio, em 1738, fornece, em seu testamento, um relato muito interessante: Declaro que de uma escrava minha, mulata, por nome Francisca, tive quatro filhos a saber Caetano, que nascendo no Sabará o mandei batizar por forro e passar-lhe sua carta de alforria, a qual se há de achar no cartório da ouvidoria em que serviu Luis Teronio de Albuquerque, padrinho que foi do dito menino, Jozé , Valentim e Thomás, aos quais mandei passar também

15. APM/CMS - códice 24, f.47. Testamento de Jozefa Maria de Souza - Sabará 18 JAN 1759. 16. APM/CMS - códice 20, f.39. Testamento de Francisco Coelho - Sabará 08 JAN 1749.

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carta de alforria neste cartório de Papagaio pelo tabelião Lourenço de Seabra(?) e Souza (...) o que ao depois passei carta de alforria à dita Francisca, que sendo já forra tive dela mais os filhos seguintes a saber Pedro, Maria, Archangello, Bernardo, Lourenço e Florencia, os quais nasceram já depois de forra a mãe e assim estes seis, com os quatro acima os há(sic) liberto e hei por meus filhos e como foi os criei e os hei por meus herdeiros necessários para da minha fazenda herdarem.”17

Fica patente aqui, uma união duradoura entre um branco e um mulata, exescrava e mãe dos filhos dele. Após ser libertada, Francisca permanece junto ao amante e consolida os laços de afeição, que parecem ter sido fortes antes mesmo da alforria. Contudo, nem todas as mães libertas conseguiram, como Francisca, formar uma família ou, pelo menos, ter os filhos a seu lado. Algumas, ao testarem, lamentavam não saberem do paradeiro dos rebentos e se eram vivos. Esta foi a situação vivida pela pernambucana, parda forra, Luiza de Souza, viúva, moradora em Sabará, em 1755. No tempo de cativa e antes de se casar, Luiza teve sete filhos, sendo que dois deles já haviam morrido no tempo que fez seu testamento. Dos cinco restantes, ela sabia do paradeiro de três, dois casados “no sertão” e um que mesmo casado vivia em sua companhia. As duas restantes eram Maria e Simoa, que de acordo com Luiza: (...) tive no tempo que era cativa de Francisco Gomes Ribeiro, este como senhor das ditas minhas filhas Maria e Simoa as vendeu e me não lembra a quem, tenho feito grandes diligências a procurá-las e não tenho delas achado notícia e assim caso que apareçam são, também, minhas herdeiras forçadas, que herdarão em igual parte com os outros (...) declaro que sem embargo de não saber se as ditas minhas filhas Maria e Simoa se são mortas ou vivas ou se estão forras ou cativas, quero que as suas legítimas que lhe tocarem por meu falecimento, por serem de mais de trinta anos cada uma, fiquem as ditas legítimas das ditas minhas duas filhas em ser na mão de meu testamenteiro que aceitar este meu testamento, o qual fará

17. MO/CPO-TEST - códice 2, f.38 e 38v. Testamento de Manoel Macedo de Guimarains - Fazenda do Mocambo, Papagaio 12 JUL 1738.

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alguma diligência por cartas a procurá-las (...) as quais tenho procurado com excesso e não tenho achado notícias delas.18

Outras mães e, em menor número, pais libertos buscavam reconstruir suas famílias através do resgate de seus filhos, que permaneceram em cativeiro. Esse objetivo foi alcançado por Joanna Luiza do Vale, preta forra, natural da Costa da Mina, casada com Thomas Ribeiro da Cunha, preto forro, moradores em Sabará, em 1777. Os três filhos de Joanna, Manoel Luis, crioulo, Jozé Luis, crioulo e Maria Luiza, parda, não descendiam de Thomas e haviam nascido antes do casamento da mãe. A testadora instituía os três como seus herdeiros e declarava: (...) os meus filhos Jozé Luis e Manoel Luis os rematei na praça por cento e sessenta oitavas de ouro, segundo minha lembrança, e os libertei e por isso, querendo entrar na herança de meus bens, virá essa quantia para o monte para se fazer a partição por não ficar prejudicada a outra herdeira.19

Não obstante o instinto maternal ou paternal se fazerem presentes, algumas situações relatadas em testamento revelam uma noção diferente de família. Às vezes, parece que os laços consangüíneos não eram suficientemente fortes para conformarem um núcleo familiar, pelo menos ao molde cristão e europeu que vigia, também, na colônia. A relação mãe(pai)/filho(a) parecia, com algum tempo de distanciamento, ir perdendo valores inerentes, como a proteção das crias. Assim, Innocência de Siqueyra Távora, liberta e natural do Rio de Janeiro, solteira e moradora em Sabará, em 1745, não estava muito empenhada em trazer sua filha para junto de si, ao mesmo tempo em que a filha parecia não se importar muito com a mãe. Innocência explicava que tinha uma filha “que houve no tempo que era cativa de Felippe Soares e por esta razão ficou ela dita minha filha ficando cativa do dito Senhor, de cujo poder mandei libertar, ou mandei o dinheiro para isso por ela me mandar pedir”. Não fosse a solicitação da filha, a testadora não teria pago o valor do resgate E as declarações que seguem acabam confirmando esta impressão. Segundo Innocência, (...) a minha filha Antônia Gonçalves, acima declarada, estando em poder de seu senhor, ainda cativa, me escreveu várias vezes 18. APM/CMS - códice 20, f.125 e 125v. Testamento de Luiza de Souza - Sabará 30 AGO 1755. Outro caso interessante encontra-se no APM/CMS - códice 24, f.104-106. Testamento de Thereza Pereira dos Santos - Sabará 28 AGO 1769. 19. APM/CMS - códice 53, f.104v. Testamento de Joanna Luiza do Valle - Sabará 20 MAI 1777.

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lhe mandasse o dinheiro para haver de se libertar; e compadecendo-me dela lhe mandei duzentos e quarenta mil réis para sua liberdade, a qual quantia mandei por modo de empréstimo e como vindo para estas Minas não quis acomodarse comigo, em minha companhia, mas se ausentou de mim para onde não tenho notícia dela. Meus testamenteiros, na partilha que fizerem da herança que lhe houver de tocar, entrarão com os ditos duzentos e quarenta mil réis que lhe comprei para a sua liberdade. Declaro, nomeio e instituo a dita minha filha Antônia Gonçalves por minha herdeira de tudo o que das outras partes de meus bens (...).20

De maneira semelhante, Antônio Cedrim, preto forro, natural da Costa da Mina, solteiro e morador em Sabará, em 1752, preocupou-se em libertar seu filho quando escrevia seu testamento, talvez diante da iminência da morte e do desejo de alcançar o paraíso, através de boas ações praticadas em vida. Antônio contava, então, ter sido escravo de Francisco Dias Cedrin e ter tido um filho com “uma preta por nome Luiza, escrava que foi de Roza de São Payo”. O filho chamava-se Martinho e era escravo de Leonardo Coelho da Sylva. Após essas explicações, Antônio declarava: (...) para descarga de minha consciência, deixo que meus testamenteiros de minha fazenda forrem o dito meu filho por aquilo que se ajustarem com seu senhor e depois dele forro (...) do que constar de minha fazenda se fará em três quinhões, dois se entregarão ao dito meu filho e outro quinhão se distribuirá. (...) Item declaro que se o senhor do dito meu filho não quizer forrar o dito rapaz, meus testamenteiros lhe façam toda a diligência para se cumprir com esta minha vontade e caso que se não consiga a dita liberdade, então lhe deixo por esmola cem oitavas de ouro ao dito meu filho (...).21

Famílias desmembradas ou unidas sob um mesmo teto, casamentos consensuais ou pelas normas tridentinas, relações marido/mulher e pais/filhos harmoniosas ou conflituosas, em todas as situações, a organização familiar fazia-se presente, de forma

20. APM/CMS - códice 20, f.70v. Testamento de Innocência de Siqueyra Távora - Sabará 07 JAN 1745. 21. APM/CMS - códice 20, f.105v e 106. Testamento de Antônio Cedrim - Sabará 20 JUN 1752.

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marcante, no universo cotidiano da população mineira setecentista. Guardadas algumas características diferentes que a riqueza e a nobre origem ou a ausência delas podem implementar, para brancos, negros e mestiços, livres, libertos ou escravos, a família parece ter representado um dos pilares mais importantes para a convivência social. Mesmo, como nos últimos exemplos reproduzidos, quando a distância e a perda do contato diário começam a dilacerá-la, ainda assim a família serve de referência central para seus membros. A organização material das famílias e das pessoas é ponto de muita importância no contexto examinado. Moradias, unidades produtivas e posses diversas, todas interrelacionadas, surgem como base do arranjo familiar e são os assuntos abordados à frente. É importante relembrar nossa intenção de tentar retratar a diversificação da sociedade mineira colonial através de pinceladas sugeridas pelos testamentos. Mais para os livres e libertos e, algumas vezes, para os escravos, a casa significava uma referência importante. Domínio do privado, teto sob o qual vivia a família, a casa era organizada e comandada por uma pessoa que respondia por ela e pelos moradores dela. Os “cabeça de casal” ou “chefes dos fogos” podiam ser homens (principalmente nas famílias à moda cristã e européia) ou mulheres (sobretudo no caso das libertas). Nas áreas urbanas das Minas, essas últimas existiam em grande quantidade. Mesmo casadas, elas pareciam dar as regras na casa. O caso da liberta Ilenna da Rocha, natural da Costa da Mina, moradora em Sabará, em 1756, é exemplar. Dizia ela ser casada com “Benedicto da Sylva, meu escravo que foi por compra que dele fiz a Jozé Izidoro Pereira e a Matheuz Pinto da Cunha, o qual por este casamento ficou conseguindo a liberdade e o declaro e deixo forro e livre de toda a escravidão”.22 No restante do testamento, Ilenna não instituía o marido como seu herdeiro, nem como seu testamenteiro e dispunha de seus bens de forma completamente autônoma. Os chefes eram, em última análise, os responsáveis pela manutenção da família e da casa, coordenando o trabalho da escravaria e auferindo os lucros daí provenientes. Muitas vezes, senhores(as) e escravos(as) labutavam lado a lado, como já foi demonstrado, executando trabalhos manuais para obter os rendimentos necessários à sobrevivência. Nas vilas e arraiais, as atividades econômicas mais comuns, como era de se esperar, ligavam-se aos setores de mineração, prestação de serviços e comércio.23

22. APM/CMS - códice 24, f.15. Testamento de Ilenna da Rocha - Sabará 21 MAR 1756. 23. Alguns proprietários de lojas e vendas mencionaram em seus testamentos existirem livros de notas, onde a contabilidade dos estabelecimentos, assim como os nomes de credores e de devedores eram registrados. É lamentável que esses documentos particulares, de grande importância para o melhor conhecimento dos hábitos de consumo da população setecentista, tenham se perdido com o passar do tempo.

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A agricultura e a pecuária eram muito mais expressivas fora das zonas urbanas. Contudo, as maiores fortunas pertenciam aos indivíduos que diversificavam seus investimentos e que mantinham ligações econômicas em áreas rurais e urbanas. O espaço da casa não servia, portanto, apenas como habitação. Servia, também, como local de trabalho, de lazer, de manifestações culturais, de esconderijo e onde podia ser produzida parte do sustento cotidiano. Nas casas, onde certos cômodos eram transformados em vendas de secos e molhados, situação mais comum entre as forras, a esfera do privado acabava sendo parcialmente incorporada pela esfera do público. Nestes casos, as portas abriam-se aos infratores em fuga, aos revoltosos em potencial, aos prazeres libidinosos e a outras demandas da comunidade. Em algumas casas, mais do que em outras, não ocorreu a separação estanque entre o teto protetor, a fonte de proventos e o palco de divertimentos, prazeres e angústias coletivas. Talvez exista aí uma certa resistência de tradições africanas, adaptadas ao universo colonial. Ainda assim, servir de moradia e de unidade produtiva, em toda sua extensão física, parecem ter sido as funções mais recorrentes da casa. Morar fora dos limites urbanos, em fazendas, sítios e chácaras, significou, constantemente, envolvimento dos proprietários com plantações, engenhos e criação de animais. Em localidades mais ao norte da comarca do Rio das Velhas a criação extensiva de gado bovino e eqüino foi marcante. Às vezes, a pecuária era complementada pela agricultura e por engenhos. O português Manoel Pinto de Souza, solteiro, morador em Macacos, freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas (Nova Lima), em 1772, dizia ter uma “sociedade com Francisco Fernandes Lima, em negócio de conduzir cavalos do sertão e vir vendê-los a estas Minas, na qual sociedade entrei eu com o principal para fundos da dita sociedade.” Além disto, declarava possuir um “negócio de escravos”, que eram trazidos do Rio de Janeiro para serem vendidos em Minas; criações de “gado vacum”, ovelhas, carneiros, cavalos e “outras criações miúdas”; “seriço mineral”; várias capoeiras e “uma roça, com suas casas de morada e paiol, tudo coberto de telhas”, localizada no “Córrego do Feijão, no Paraopeba”. Manoel possuía apenas 17 escravos, número bastante reduzido para quem possuía tantos empreendimentos, mas, talvez, reflexo de uma alta rotatividade desses bens em suas mãos.24 Já o alferes Jozé Teixeira de Macedo, português, solteiro, morador no Sítio do Riacho Fundo, no sertão do Papagaio, em 1745, dizia possuir “um sítio de criar e lugar(sic) gado”, onde morava, 11 cavalos, 6 escravos, uma roça com quatro alqueires e meio de milho plantado e outra com quarenta mil covas de mandioca plantadas.25 O 24. MO/CPO-TEST - códice 52, f.35, 35v e 36. Testamento de Manoel Pinto de Souza - Macacos, freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas 20 MAI 1772. 25. MO/CPO-TEST - códice 16, f.118 e 118v. Testamento de Jozé Teixeira de Macedo - Riacho Fundo, Papagaio 04 DEZ 1745.

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português, Jozé Gomes Vieyra, solteiro, morador na Fazenda das Barreiras, distrito do Papagaio, em 1749, tinha atividades semelhantes às do alferes citado acima. Jozé Gomes declarava possuir uma fazenda de gado, chamada Olho d’Água, com 300 cabeças; um engenho “moente e corrente de canas, com seus cobres e dezoito escravos velhos e novos”; outros 18 escravos e um sítio, chamado Barra da Paraúna, em sociedade com um irmão.26 Outro caso que merece ser citado é o do sergipano, capitão-mor, João Jorge Rangel, solteiro, morador em São Romão, em 1742. O testador era rico o suficiente para legar 2.000 cruzados à “mulatinha Escolástica, criada e assistente na minha casa, filha de Launa(?)” e mais 3.000 cruzados a Anna dos Reys “assistente em minha casa, sendo ela viúva e por me ter servido muitos anos”. Declarava, também, (...) que entre as fazendas que possuo, é uma chamada o Rio do Sono, sita na Ribeira de Paracatú, com terras próprias que houve por sesmaria, a qual fazenda deixo de esmola para de seus rendimentos se conservar e aumentar a minha capela sita no Buriti, onde moro [dizia também morar em São Romão, onde o testamento foi feito], a qual fazenda meus testamenteiros inteiraram com oitocentas fêmeas de vaca de minhas fazendas não as tendo ela e todos os machos que nela se achar, doze cavalos e quatro escravos que nela se acham (...) passem a um sacerdote que aceitar por capelão na dita capela. (...) nunca se tirará gado da fazenda, em forma que fique diminuta das oitocentas fêmeas (...).

E continuava mais à frente: Declaro que sou senhor e possuidor de nove fazendas de gados na Ribeira do Paracatu, da freguesia de Manga a saber São José, Maravilha, São Jerônimo, avereda(sic), Cana Brava, Mandacarú, Santa Ana, Rio do Sono, Sacra Família meus testamenteiros não tomarão conta delas porque tenho feito doação dela(sic), por escritura, à capela de Santa Ana (...) três fazendas no Maranhão a saber Santo Amaro, a Passagem e a Ilha das Cabras, mais duas ditas na Grassa (sic), uma chamada

26. MO/CPO-TEST - códice 16, f.146v. Testamento de Jozé Gomes Vieyra - Fazenda das Barreiras, Papagaio 30 JUN 1749.

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a mesma Grassa, outra a Fazenda do Meio, mais possuo a Fazenda do Riacho da Arca e São João (...) vinte e cinco escravos que assistem por fábricas das ditas fazendas.

E declarava ainda: (...) que sou e fui interessado no contrato dos caminhos (...). Declaro que também sou interessado nos dízimos de miunsas (sic) que teve princípio em agosto de trinta e dois e findou em quarenta e um (...). Declaro que também sou senhor de um contrato grosso de dízimos de gados vacum e cavalar em que é interessado meu compadre Paullo de Araújo em um quarto e Manoel Antunes em outro quarto e da minha a metade, dei um décimo a meu compadre Mathias de Crasto, o qual contrato está pago (...).27

É pequeno o número de escravos empregados nas diversificadas ocupações de cada testador acima. Um engenho de cana com 18 cativos para, possivelmente, cuidar de um processo complicado, que se estende desde a plantação até o beneficiamento final.28 Uma fazenda com centenas de reses e somente quatro escravos trabalhando. De uma forma geral, são padrões de posse de escravos, sobretudo no segundo caso, encontrados, com freqüência, nas áreas urbanas mineiras. Se mais ao norte da comarca predominavam as fazendas de gado, nas zonas rurais mais próximas à sede parecem ter sido muito comuns, durante todo o setecentos, os engenhos de açúcar e aguardente, bem como os de “fazer farinha” de mandioca. Entre os 357 testadores investigados, 38 (10,64%) encontravam-se envolvidos com esses engenhos, sendo que a maioria os tinha como ocupação principal. Dos 38 proprietários de engenho, 11 declararam ter, também, atividades ligadas à pecuária, à mineração ou ao comércio (de cavalos, de negros, lojas e vendas). Apenas 2 deles tinham investimentos nos quatro setores. Quase todos diziam possuir alguns animais

27. MO/CPO-TEST - códice 16, f.154 a 156v. Testamento de João Jorge Rangel - São Romão 14 NOV 1742. 28. Nas paróquias açucareiras do Recôncavo Baiano, em 1816/1817, 15,2% dos plantéis tinham entre 10 e 19 escravos. Essa taxa estava abaixo das encontradas para a Jamaica e mais parecidas com as encontradas para os Estados Unidos, em anos próximos. A comparação mais pormenorizada, assim como a descrição de todo o processo de fabricação do açúcar foram feitas por SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p. 95-121 e 368-376.

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E DUARDO F RANÇA P AIVA (cavalos, bois, porcos, ovelhas), mas em pequena quantidade, o que não está sendo considerado aqui como pecuária. Com relação à escravaria, os proprietários de engenhos possuíam 1.105 cativos, o que representa 33,75% dos 3.274 escravos pertencentes a todos os testadores investigados. Isto significa que 1/3 de todo o conjunto mancípio arrolado concentravase nas mãos de apenas 10,64% dos testadores. Resulta daí, uma média de 29 escravos para cada dono de engenho, taxa bastante superior à encontrada por Francisco Vidal Luna, para todo o século XVIII mineiro, e que variava entre 3,7 e 6,5 escravos por proprietário.29 Comparando-se com as paróquias açucareiras baianas, em 1816/1817, estudadas por Stuart Schwartz, a média calculada a partir dos testamentos mineiros assemelha-se à taxa encontrada para 20,6% dos senhores de engenhos daquela capitania, isto é, os que possuíam entre 20 e 49 escravos.30 Deve ser ressaltado, todavia, que as fontes pesquisadas são poucas e muito específicas e que o índice encontrado por nós vale, estritamente, como um elemento para comparação. Embora possa estar próximo à realidade dos plantéis de alguns proprietários de engenho mineiros, esse índice é irreal diante da posse média de escravos levantada por Luna e aceita para a Capitania. Mais pertinentes são os resultados encontrados com relação à origem e ao sexo da escravaria pertencente a esses proprietários de engenho, bem como os dados sobre alforrias e coartações passadas por eles, em seus testamentos. São estes dados que compõem o quadro abaixo. Quadro III - Escravaria dos engenhos de açúcar e de farinha pertencentes aos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784. ESCRAVOS

TOTAL GERAL

HA * HB HO TH MA MB MO TM ESO TOTAL

1.085 454 223 1.762 281 381 82 744 768 3.274

PLANTEL DOS PROPR ENGENHO 294 140 59 493 52 80 18 150 462 1.105

%

27,09 30,83 26,45 27,97 18,50 20,99 21,95 20,16 60,15 33,75

TOTAL ALF. & COART. 114 204 27 345 122 224 31 377 1 723

ALF.& COART. DOS PROPR. ENGENHO 10 37 3 50 16 24 2 42 92

%

8,77 18,13 11,11 14,49 13,11 10,71 6,45 11,14 12,72

* HA = Homem Africano; HB = Homem Brasileiro; HO = Homem sem Origem identificada; TH = Total de Homens; MA = Mulher Africana; MB = Mulher Brasileira; MO = Mulher sem Origem identificada; TM = Total de Mulheres; ESO = Escravo sem Sexo e Origem identificados. Fontes: vide Quadro I, capítulo IV.

29. LUNA, Francisco Vidal. Minas ... op. cit. p.57. 30. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos ... op. cit. p.374.

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De acordo com os dados e como se podia imaginar, entre os plantéis dos proprietários de engenho predominava a força de trabalho masculina. O número de escravos era mais de três vezes superior ao número de escravas, isto sem considerar a variável ESO. Nesta última rubrica foram lançados todos os registros de escravos, cujos sexos e origens não foram discriminados pelos testadores. No caso dos proprietários de engenho, houve declarações como a de Ignácio Gomes de Abreu, português, casado, morador em Sabará, em 1736: “(...) haverá neste casal, repartidos por todos os sítios que tem, duzentos escravos pouco mais, entre velhos e moços, fêmeas e crianças (...)”.31 Declarações como esta, geralmente feitas para grandes plantéis, foram enquadradas em ESO. Pode-se afirmar, contudo, que a maioria desses cativos era constituída por homens, uma vez que as atividades dos proprietários encontravam-se ligadas, principalmente, à agropecuária e à mineração. Neste sentido, é possível que a proporção de escravos homens tenha sido ainda mais acentuada do que o apontado acima. Outro aspecto importante é a nítida vantagem numérica dos homens africanos sobre os brasileiros, refletindo uma tendência generalizada entre os testadores. O fato sugere uma preferência, entre os proprietários da Comarca, pela mão-de-obra africana, em detrimento dos nascidos no Brasil. Mesmo entre as mulheres, onde as brasileiras são, aparentemente, mais numerosas, a diferença não chega a ser tão marcante. É preciso considerar, também, que os cativos sem origem identificada - HO e MO eram, provavelmente, africanos. Isto, porque foi possível notar uma tendência entre vários testadores em discriminar a “qualidade” (crioula, parda, mulata, cabra) das brasileiras e referir-se a outras mulheres, do mesmo plantel, como “minha escrava” ou “a escrava”. Com relação às alforrias e às coartações, os proprietários de engenho foram responsáveis por 92 casos, o que significa 12,72% do total de 723 benefícios registrados nos testamentos investigados. Pode parecer um resultado pouco expressivo para quem detinha 1/3 de todos os escravos arrolados, mas é bom relembrar que esses testadores representam apenas 10,64% do grupo total. Morar fora das zonas urbanas significou, portanto, o estabelecimento de padrões específicos, como a criação de animais em larga escala, a transformação de boa parte da produção agrícola através dos engenhos e a formação de plantéis de cativos maiores que nas áreas urbanas. É possível conjeturar-se, ainda, sobre um padrão mais concentrado de distribuição de escravos entre os proprietários rurais.

31. MO/CPO-TEST - códice 8, f.62v. Testamento de Ignácio Gomes de Abreu - Sabará 08 ABR 1736.

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Os moradores das vilas e arraiais setecentistas também tinham suas especificidades. A começar pelas próprias casas. Geralmente eram mais modestas que as sedes das grandes fazendas, tendo muitas delas cobertura vegetal ao invés de telhas. Nas vilas e na única cidade mineira setecentista (Mariana), a ocupação do solo era regulamentada através dos aforamentos e do código de posturas, criados e gerenciados pelos Senados da Câmara. Por esses instrumentos as autoridades locais cediam lotes de terra pública, diante de pagamento anual de um tributo - os foros para neles a população construir suas moradias. Através das posturas municipais legislava-se sobre a construção dos prédios. Os limites laterais de cada aforamento eram, na maioria das vezes, outros aforamentos, ruas e becos ou limites naturais, tais como morros e córregos. Ò frente eram limitados pelas ruas e ao fundo, geralmente por um córrego ou, como foi uma denominação comum, uma “aguada”. Por isso, várias casas setecentistas apresentavam fachadas estreitas e construídas muito rentes às ruas e quintais, também estreitos, mas muito compridos. Menos extensos que os terrenos anexos às fazendas e sítios, os quintais urbanos serviam, todavia, como espaços de lazer e, principalmente, de produção em pequena escala. Neles cresciam bananeiras e hortas e engordavam galinhas e porcos, assim como algumas vacas e cavalos. A importância assumida pelos quintais na economia doméstica da população setecentista pode ser atestada através dos instrumentos agrícolas mencionados, com freqüência, nos testamentos dos moradores. Alavancas, enxadas e foices desempenharam importante papel para o sustento cotidiano de boa parte dos habitantes das vilas e arraiais das Minas. Muitas vezes aquelas peças achavam-se misturadas a outros utensílios e ferramentas, que indicavam a diversificação das atividades econômicas de seus donos. Assim, em vários casos, foi possível observar ligações concomitantes dos testadores com a agricultura, a mineração, o comércio e os ofícios mecânicos. De dois ou mais desses setores, saíam os proventos de muitos homens e mulheres mineiros. Ainda os quintais, parecem ter sido o lugar preferencial para serem instaladas as poucas senzalas mencionadas na documentação. Mais comum entre os ricos, essa separação física entre possuidores e possuídos contrastava-se com a situação vivenciada pelo restante dos proprietários. Geralmente eles dividiam o mesmo teto com seus escravos e não raramente, e auxiliados pela austeridade do mobiliário colonial, dividiram a cama com alguns deles(as). Cama, aliás, que parece ter sido única na maioria das residências e, por isso, ter se transformado em um objeto cobiçado por quem não o possuía. A cama tinha um grande valor de uso e foi legada, geralmente, para pessoas especiais, como prova de estima. É o caso do português Balthazar Nunes, solteiro, morador no arraial do Pompéu, em 1765. Dos cinco escravos que possuía, ele mandava vender dois e aos restantes - Jozé mina, Rita mina e Antônio crioulinho - passava-lhes carta de alforria e legava-lhes a casa onde vivia, com a 171

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ressalva de “tratarem do crioulinho com eu tratei até aqui”. E deixando mais claro seu afeto pelo menino, legava-lhe “a minha cama e todos os mais trastes de minha roupa”.32 De forma muito parecida, procedeu a crioula forra, Barbara de Oliveira, nascida na Bahia, solteira e mãe de uma filha com quem havia perdido o contato, moradora em Sabará, em 1766. A testadora dispensava uma atenção especial a uma mulatinha chamada Jozefa, às vezes carinhosamente tratada por Jozefinha, a quem já havia passado carta de alforria. Legara-lhe, ainda, alguns bens móveis e roupas “para tomar estado de casada”, além de “um catre de jacarandá preto torneado”.33 Já o português, André Francisco Braga, citado no capítulo III, além de alforriar sua escrava Jacinta mulata, legava-lhe, “pelo bem que me tem servido, uma cama inteira que consta de enxergão, travesseiros, quatro lençóis de pano de linho e uma colcha de serafina lavrada”.34 Na verdade, os móveis eram poucos e nem sempre contavam com acessórios. Às vezes, os testadores mais abastados relacionavam uma maior variedade de bens materiais, mas, certamente, não se tratava do padrão médio vigente. Entre um extremo e outro, um exemplo interessante é o do português Joam Pereira Foncequa, solteiro, pai de três filhos (a mãe não é identificada), proprietário de seis escravos, morador no Ribeirão de Santa Bárbara, em 1738. A declaração de bens de Joam inclui: uma casa de telha onde vivia; um machado; uma trempe de ferro; três tachos, “dois velhos e um novo”; dez pratos de estanho “pequenos e grandes, novos e velhos”; duas colheres e quatro garfos de prata; uma espingarda prateada; um espadim de prata dourada; uma espada com punho de prata; um cavalo russo selado e enfreado; uma caldeira velha de estanho; um vestido de pano; uma toalha de mesa de Guimarães com cinco guardanapos; duas toalhas de renda e mais duas grossas, sendo uma de mesa e outra de mão; um alforje de couro; uma caixa; uma cama; um cobertor; quatro lençóis e seis travesseiros.35 Já a preta forra de nação courana, Roza Florência, solteira, proprietária de 4 escravos (duas mulheres e dois homens), moradora no arraial de Santa Luzia, em 1741, possuía menos bens. Além da casa onde vivia, ela mencionava dois tachos; uma caixa; uma cama com quatro lençóis de linho e 60 oitavas em ouro lavrado “que vêm a ser em peças, um cordão de ouro, uns brincos pequenos, um anel, uma cruz de pescoço, tudo de ouro dito lavrado e, também, uma corrente do braço com sua verônica de São Bento, também uma imagem de Nossa Senhora da Conceição.”36

32. 33. 34. 35.

APM/CMS - códice 53, f.15. Testamento de Balthazar Nunes - Arraial do Pompéu 25 AGO 1765. APM/CMS - códice 53, f.20. Testamento de Barbara de Oliveira - Sabará 19 AGO 1766. APM/CMS - códice 24 - Testamento de André Francisco Braga - Sabará 24 MAI 1759. MO/CPO-TEST - códice 2, f.6v e 7. Testamento de Joam Pereira Foncequa - Ribeirão de Santa Bárbara 06 JUL 1738. 36. MO/CPO-TEST - códice 11, f.19v e 20. Testamento de Roza Florência - Santa Luzia 18 OUT 1741.

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Mais ricos eram os adornos que os móveis de casa e, embora não faça menção, provavelmente rica era, também, sua indumentária. Gastos com vestimenta e com adornos em ouro, prata e pedras preciosas eram elevados na sociedade mineira colonial, tanto entre as mulheres, quanto entre os homens.37 Desde aquele tempo, andar enfeitado parece ter sido uma demonstração de maiores posses, um símbolo de prestígio e de poder. Na realidade, entretanto, alguns dos que ostentavam brilhos, como as negras e mestiças, conviviam, cotidianamente, com limites sociais e com estigmas que as diferenciavam da camada branca e dominante. Objetos de valor eram, também, como se verá melhor à frente, garantia de crédito, quando necessário. Assim, o sargento-mor Joam Carvalho Barros, português, solteiro, proprietário de 17 escravos e fazendas com muitos cavalos e gado bovino, morador no sítio do Rio do Peixe, distrito de Papagaio, em 1738, dizia possuir: (...) e a roupa branca que são camisas de meu uso, três camisas e véstia e calção de fustão(?) e outra farda de baeta preta (...) e as camisas que se acharem de bretanha (...) e um vestido inteiro com véstia de crepe e o mais de baeta preta (...).38

O também português, João Freire de Macedo, casado, mas sem filhos, proprietário de 10 escravos e envolvido em atividades comerciais em Sabará, onde morava, em 1720, arrolava vestimentas e acessórios em seu testamento. Dizia ele possuir: um crucifixo de ouro com um cordão, que pesavam “cinqüenta e tantas oitavas de ouro” e encontravam-se empenhados; uma espada com capuz; um punhal de prata; uma clavina e três espadas “mais usadas”; fivelas de prata; dezoito botões de prata; camisas de bretanha e de cambraia.39 Entre as mulheres, principalmente entre as brancas ricas e as libertas mais bem sucedidas, existia uma maior variedade de adornos e de imagens católicas em material nobre. As posses de Maria da Encarnação, nascida nas Ilhas Canárias, solteira, proprietária de 4 escravos, moradora em Santa Barbara, em 1737, não chegavam a

37. O mesmo costume ocorria no restante da Colônia, sobretudo entre as mulheres negras. Ver MOTT, Luiz. Rosa ... op. cit. p.39 e 40. Um interessante glossário e uma relação de pesos e medidas referentes aos artigos comercializados na Colônia, principalmente aos tecidos aqui negociados, encontra-se em LISANTI FILHO, Luis. Negócios ... op. cit. p. LI - XCVI. 38. MO/CPO-TEST - códice 2, f.24. Testamento de Joam Carvalho Barros - Sítio do Rio do Peixe, Papagaio 28 JUN 1738. 39. MO/CPO-TEST - códice 1, f.120 e 120v. Testamento de João Freire de Macedo - Sabará 07 OUT 1720.

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ser extraordinárias, mas servem como exemplo. Ela possuía, em ouro lavrado, uma cruz pesando 10 oitavas e meia; um cordão de três varas de São Guido pesando 12 oitavas e meia; dois pares de botões pesando 10 oitavas; uma imagem de Nossa Senhora da Conceição pesando 7 oitavas; quatro memórias pesando 5 oitavas e meia; uma corrente pesando 4 oitavas e 1 cruzado; um par de brincos pesando 5 oitavas e outro de aljofres.40 Mais suntuosos são os conjuntos de bens que seguem reproduzidos e que pertenceram a duas libertas. Catherina Pereira Barboza não declarou o local onde nasceu, mas dizia ser forra, solteira e mãe de uma filha, moradora em Sabará, em 1733. Além da “casa no arraial, coberta de telhas” onde vivia, Catherina tinha, em ouro lavrado, dois pares de botões grandes e sete pares de pequenos pesando 29 oitavas; duas memórias; dois pares de argolas pesando 12 oitavas e meia; duas cruzes com seus cordões pesando 40 oitavas e meia; “uns brincos de aljôfar” pesando 2 oitavas; dois fios de corais da Costa da Mina pesando 39 oitavas; dois vestidos de seda e uma saia de chamalote.41 A segunda liberta é Pascoa Gomes dos Santos, nascida na Costa da Mina, batizada na Cidade da Bahia, solteira e mãe de dois filhos, proprietária de 14 escravos e moradora no arraial de José Correia, freguesia de Roça Grande, termo da Vila de Sabará, em 1770. Pertencia a ela uma casa coberta de telhas, onde vivia, e (...) uma cruz de ouro, com suas pedras de diamantes, que pesa cinco oitavas e um cruzado de ouro e assim mais um par de brincos de ouro com seus diamantes, que pesam uma oitava e três quartos e dois vinténs e assim mais um par de brincos de ouro com seus alsafrões (sic) e um crucifixo de ouro que tudo pesa quatro oitavas e assim mais dois tachos (...).42

Como já foi dito antes, esses objetos em pedras e metais preciosos adornavam e eram facilmente penhorados quando preciso. Por conta disto e, evidentemente, por viver num mercado bastante dinâmico, a população mineira acostumou-se, desde cedo, com operações de compra e venda, de crédito e débito realizadas, sem maiores

40. MO/CPO-TEST - códice 2, f.27v. Testamento de Maria da Encarnação - Santa Barbara 11 FEV 1737. 41. MO/CPO-TEST - códice 2, f.104v e 105. Testamento de Catherina Pereira Barboza - Sabará 12 FEV 1733. 42. MO/CPO-TEST - códice 48, f.135 e 135v. Testamento de Pascoa Gomes dos Santos - Arraial de José Correia, freguesia de Roça Grande 21 DEZ 1770.

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complicações, no cotidiano dos relacionamentos sociais. Trata-se de uma marcante característica do setecentos mineiro, muito comum nas áreas urbanas da Capitania e que demanda uma análise menos superficial.

DÉBITOS, CRÉDITOS, PENHORES E DOAÇÕES. Já nas primeiras décadas após a chegada de aventureiros no sertão das Minas a sociedade instalada vivia, intensamente, o movimento econômico típico de áreas de grandes e lucrativos garimpos. Muita gente, muitos sonhos de enriquecimento rápido, ouro com fartura e uma grande demanda por todo tipo de mercadoria. Este quadro inicial sofreu rápida transformação e logo investiu-se em plantações e criações para o abastecimento dos arraiais e das primeiras vilas criadas. A colonização da terra e a permanência da população estavam facilitadas, o que contribuía com a incessante entrada de novos moradores, livres e escravos. Nessa sociedade, onde tudo se comprava com o dinheiro, poucas moedas circulavam. Em compensação, o ouro em pó ou como era comum denominar-se, as oitavas de ouro, circulavam com muita intensidade, mesmo após a instalação das primeiras Casas de Fundição em 1719. A monetização fazia parte da rotina dos moradores. Não é à toa que o comércio de todo tipo fez-se presente e constituiu-se em uma das mais importantes atividades econômicas na Capitania. Negociava-se de tudo: escravos, animais, gêneros alimentícios, bebidas, tecidos, ferramentas, medicamentos, adornos e objetos das mais diferentes espécies, produzidos na região ou trazidos de fora. As lojas e vendas, principalmente estas últimas, existiam em grande número, tanto nas vilas, quanto nos menores arraiais. Negras, com seus tabuleiros de quitandas, enchiam as vias urbanas e, muitas vezes, intensificavam o comércio ilegal, isto é, aquele que não recolhia impostos ao Erário Régio. Compras a crédito e pagamentos parcelados, assim como dívidas corriqueiras, provenientes de pequenas negociações, e anotadas em livros específicos, eram operações realizadas com freqüência e sem muita parcimônia. As coartações, já analisadas acima, são bons exemplos do sistema informal de crédito existente na Capitania. Não obstante a maior parte dos negócios realizar-se com base na palavra dos interessados, sem a mediação de terceiros e sem documentação comprobatória, quando uma das partes não cumpria o trato, ações legais poderiam ser iniciadas. Foi o que aconteceu com o filho da preta forra, Thereza Pereira dos Santos, citada no capítulo IV. O crioulo Jozé Pereira parece ter aproveitado ao máximo a boa vontade e os recursos econômicos que a mãe dispunha. Além de o resgatar do cativeiro, pagando 100 oitavas de ouro pela carta de alforria, ela vivia cobrindo as dívidas assumidas por Jozé. Assim, dizia ela: 175

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Declaro que para o dito meu filho tomar estado do matrimônio o forrei do poder de seu senhor, a quem dei as ditas cem oitavas de ouro para sua alforria e depois de casado, paguei por ele e por conta da sua legítima a saber a Antônio Ribeiro de Miranda, vinte e cinco oitavas de ouro por um negro que o dito meu filho comprou a Antônio Pereira, por crédito, que abonei por conta dele, lhe paguei meia libra de ouro. Pelo que paguei ao Moreira por um cavalo que o dito meu filho lhe comprou e lhe tinha eu abonado a crédito, por conta dele lhe paguei dezoito oitavas de ouro. Declaro que um negro que o dito meu filho comprou a Bonifácio Antunes, por crédito que abonei, como o não pagou foi obrigado por justiça pelo credor e por lhe não rematarem seus bens, houve compaixão ficando a dívida em cento e cinqüenta oitavas de ouro e para satisfação deles lhe empenhei na mão do dito credor os dous escravos nomeados, Anastácio crioulo e sua mãe Anna, os quais se acham ainda empenhados. Paguei mais, a Sebastião de Almeida, vinte oitavas de ouro, que o dito meu filho lhe devia, a João Baptista as dez oitavas de ouro que já vão declaradas, que todas estas parcelas que paguei importam em trezentas e oitenta e sete oitavas de ouro (...).43

As pequenas dívidas contraídas no dia-a-dia também eram mencionadas nos testamentos. Francisco da Silva Pinto, natural do Rio de Janeiro, solteiro, morador em Sabará, em 1766, declarava: (...) costumo tomar pão a Leonor Correa, preta forra, e se lhe pagará o que lhe ficar devendo e disser o meu escravo Antônio cobu.44

Um outro procedimento recorrente naquela sociedade monetizada foi o penhor de bens, principalmente de artefatos em metais e pedras preciosos. O negócio acabava sendo a salvação de endividados e parece ter rendido bons lucros para os credores.

43. APM/CMS - códice 24, f.105 e 105v. Testamento de Thereza Pereira dos Santos - Sabará 28 AGO 1769. 44. APM/CMS - códice 24, f.144v. Testamento de Francisco da Silva Pinto - Sabará 30 JUN 1766. 45. APM/CMS - códice 24, f.152. Testamento de Félix da Silveira - Sabará 27 JAN 1757.

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Dos 357 testadores investigados, 38 (10,64%) encontravam-se envolvidos nessa atividade, incluindo os proprietários que penhoraram seus escravos. Deste índice, porém, estão excluídas as pessoas que já haviam utilizado-se do penhor e, quando fizeram seus testamentos, não os tinham pendentes. A proporção de usuários era, então, mais elevada. Além disso, vários testadores declararam bens penhorados na mão de mais de um credor, assim como os credores guardavam pertences de diferentes indivíduos. Entre os credores que mencionaram sua atividade e identificaram os objetos que encontravam-se em seu poder encontra-se o padre Félix da Silveira, nascido no “Rio Grande do Norte de Natal”, morador em Sabará, em 1757. O padre Félix possuía, ainda, sociedade em um engenho de açúcar e em um sítio, uma “rossa de serviço de tirar ouro, aparelhada de todo o necessário” e 29 escravos. Declarava ter, também, (...) vários penhores a saber uma verônica com seu trancelim, uma Senhora da Conceição com seu cordão, quatro cordões de ouro embrulhados em um papel de Manoel Rodrigues de Almeida, por meia libra de ouro que lhe dei (...) uma barrinha de ouro que tem sessenta e seis mil, novecentos e setenta e três réis, a qual está na caixa grande (...) um cordão pequeno de uma crioulinha, no Caquende, por nome Ignácia, tem o dito oito oitavas e meia de peso e deve em o uso sete oitavas (...).45

Muitos outros objetos, pertencentes, sobretudo, a mulheres, encontravam-se sob a guarda do padre. A “caixa grande”, inclusive, deve ter servido de depósito para todos eles, uma vez que não foram mencionados cofres ou similares em seu testamento. Já Andreza Martinz Cardoza parece ter tido mais cuidado com o ouro penhorado em sua mão. A testadora não declarou seu estado civil, e o local de seu nascimento, nem suas qualidade e condição, mas dizia morar no arraial do Pompéu, em 1758, onde possuía “duas moradas de casas” de seu uso e dez escravos. Entre os bens que declarava ter, citava dois “cofres de Macau, um grande e outro pequeno”, certamente utilizados para, também, guardar os penhores. 46

46. APM/CMS - códice 24, f.37v. Testamento de Andreza Martins Cardoza - Arraial do Pompéu 04 OUT 1758. 47. APM/CMS - códice 24, f.49v. Testamento de Antônio Ferreira Milhão - Arraial do Pompéu 10 MAR 1746.

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O português, Antônio Ferreira Milhão, solteiro e pai de uma filha mulata, morador no mesmo arraial do Pompéu, em 1746, possuía uma venda de secos e molhados, 6 escravos e vários objetos com ele penhorados. Antônio definia assim esta sua última atividade: Declaro que tenho emprestado e pedido emprestado algumas coisas mais de algumas pessoas que me dão a guardar vários trastes a que tudo se achará por assento em uma folha de papel.47

O sistema informal de crédito que existiu na Capitania tinha muito movimento e era funcional. E os testamentos tornaram-se documentos privilegiados para se avaliar, também, esses hábitos comerciais da população colonial. De certa forma, eles representavam a derradeira oportunidade de se exteriorizar virtudes e de saldar as dívidas terrenas, antes de se partir, preferencialmente, para o paraíso celeste. Por conta disso, quase todos os testadores reconheceram débitos pendentes e obrigações não cumpridas durante a vida. Junto às vendas, lojas e boticas, assim como junto aos próprios produtores, era possível comprar fiado. Daí a marcante quantidade de dívidas, grandes e pequenas, reconhecidas pelos testadores. Elas provinham do fornecimento cotidiano de alimentos, como era o caso de Francisco da Silva Pinto, citado acima, que comprava pão da preta forra, Leonor Correa. Outras, eram adquiridas através de tratamento de saúde. Era o caso de Roza Correya, forra, casada com o escravo Ignácio, moradora na Vila Nova da Rainha, em 1743. Roza declarava que “na mão de meu compadre João Gonçalves Correya deixo oitenta oitavas lavrado para pagamento de cirurgiões e boticas (...)48

Algumas eventualidades acarretavam dívidas para os testadores, curiosamente aceitas pouco antes da morte. Os testamenteiros eram, então, encarregados a pagálas. O paraense, Jozé de Seixas Borges, casado, morador no arraial de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas, termo da vila de Sabará, em 1721, declarava que por engano, um escravo meu apanhou um cavalo no Arraial Velho e este foi para o Rio de Janeiro, em cuja viagem morreu,

48. MO/CPO-TEST - códice 11, f.8v. Testamento de Roza Correya - Vila Nova da Rainha 20 JAN 1743.

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sendo que o devo, o procure meus testamenteiros lhe paguem de sorte que me desencarreguem desta pensão.49

De maneira semelhante, o português Manoel Martins Correa, casado, morador em Sabará, em 1761, reconhecia: (...) que devo restituir a Francisco da Sylva Coelho, morador na sua fazenda do Arraial Novo, a quantia que o dito disser valia um escravo seu, já de idade, ao qual, indo eu junto com uns capitães do mato a um quilombo, lhe dei com uma azagaia, sem ânimo de o querer matar, de cuja ferida, dizem, morrera na cadeia desta vila, o que declaro para desencargo de minha consciência.50

Até mesmo o pecúlio de algum escravo guardado com o proprietário, algo raro de acontecer, era especificado nos testamentos e mandado devolver ao legítimo dono. O padre Antônio Marques Ferreira, português, morador no Morro Vermelho, termo da Vila Nova da Rainha, em 1722, dizia: (...) tenho na minha mão cinqüenta e nove oitavas de ouro que são da minha negra Andreza, as quais se entregarão e querendo ela ir para o Reino, para meus herdeiros, meu testamenteiro a imporá(?) e lhe fará os gastos necessários para o que se tirarão de meus bens cem oitavas de ouro para os gastos que ela fizer e não querendo ela ir para o Reino, a deixo coartada em duas libras de ouro, pagas que sejam a meu testamenteiro lhe passará carta de alforria.”51

Nas Minas setecentista, guardados os perigos das generalizações, todos deviam a todos e até mesmo escravos eram credores de seus proprietários, como a escrava mestiça Luzia Martins que tinha 92.000 réis na mão de seu senhor, o sargento-mor Joam Carvalho Barros, dívida reconhecida por ele e procedida “de dois cavalos que se lhe venderam a dezesseis, que me emprestou”.52 A escrava Andreza, citada acima, 49. MO/CPO-TEST - códice 1, f.150. Testamento de Jozé de Seixas Borges - Arraial de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas 30 AGO 1721. 50. APM/CMS - códice 24, f.79v. Testamento de Manoel Martins Correa - Sabará 19 JAN 1761. 51. MO/CPO-TEST - códice 1, f.254v. Testamento de Antônio Marques Ferreira - Morro Vermelho 13 FEV 1722. 52. MO/CPO-TEST - códice 2, f.20. Testamento de Joam Carvalho Barros - Sítio do Riacho do Peixe, Papagaio 28 JUN 1738.

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conseguira um pecúlio considerável e conquistou até o direito de escolher se queria partir ou não para o Reino. Tal privilégio, entretanto, não era estendido a todos os cativos. Independente de suas vontades, muitos foram penhorados, arrestados, alugados, emprestados ou doados. Além de trabalhadores forçados eles eram bens preciosos e como tais, passíveis de negociações de todos os tipos. O português, Antônio Fernandes Francisco, solteiro, morador em sua fazenda chamada Jagoara, localizada na freguesia de Santo Antônio do Bom Retiro da Roça Grande, termo da vila de Sabará, em 1775, indicava como seu devedor, Antônio de Macedo Castro, por uma escritura que está no cartório das execuções de resto de uma fazenda que lhe vendi (...) já arrematada e vários escravos penhorados e certa conta de milho (...).53

Mais comum, parece ter sido o costume de arrestar escravos. Este recurso deveria ser utilizado como forma de garantir o pagamento de uma dívida, mas, por vezes, apareceu nos testamentos como um simples penhor, embora não fosse assim denominado. De toda forma, foi um procedimento que envolveu 29 (8,12%) dos 357 testadores e 39 (1,19%) dos 3274 escravos arrolados nos testamentos. Quase a totalidade dos arrestados era constituída por homens e entre eles, a maioria era formada por africanos. Alguns aluguéis de escravos também foram mencionados pelos testadores. Novamente, o testamento da crioula forra, Barbara de Oliveira, oferece um bom exemplo. Ela possuía um escravo crioulo, Jozé, que fora alugado para cozinhar para o padre Antônio Jozé de Araújo, “a razão de 3/4 por semana”. O padre falecera e um irmão dele alugou o crioulo Jozé, mas, reclamava a proprietária, nenhum dos dois havia pago os jornais relativos aos serviços prestados pelo escravo.54 Já a mineira, Quitéria Vicência da Cruz, solteira, moradora em Sabará, em 1764, oferece, em seu testamento, um interessante, mas complicado, relato sobre seus escravos. Dizia ter uma escrava por nome Catharina, de nação crioula e Anna mulatinha, filha da dita crioula, as quais estão penhoradas com execução de Jozé Carlos Henrique, as quais possuo por

53. MO/CPO-TEST - códice 51, f.112. Testamento de Antônio Fernandes Francisco - Roça Grande 02 NOV 1775. 54. APM/CMS - códice 53, f.18v. Testamento de Barbara de Oliveira - Sabará 19 AGO 1766.

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favor que me faz Jozé Simoens de Brito, que delas me faz mercê para me servirem e por doação particular, tanto que por sentença final se lhe julgarem provados os embargos de ter [...], senhor e possuidor com que se opor a penhora neles feita, me sede também o domínio e posse dos mesmos escravos para deles usar e dispor como meus, que ficam sendo, mas(?) por nenhum modo convém que em minha vida, como bens meus se rematem, nem eu deles possa dispor e se por minha morte me faculta a disposição deles. Item possuo mais um crioulinho por nome Vicente, filho da dita crioula, o qual se acha penhorado em execução de Marcos Peixoto Guimaraens, de cuja execução só lhe resto quinze oitavas de ouro e caso que o tempo de meu falecimento se não tenha pago o dito resto, meu testamenteiro o satisfará e quero que esteja sujeito a João Jozé Neto Albernos até a idade de vinte anos, servindoo como que fosse seu escravo e completa a idade de vinte anos, o dito crioulo, meu testamenteiro lhe passe carta de alforria graciosamente, pelo amor de Deus e pelo da criação.”55

Doação, penhora e empréstimo de escravos num único plantel. É o que se pode averiguar no testamento de Quitéria, que parece ter envolvido-se em uma situação jurídica bastante complicada e pouco comum. Contudo, o relato acima atesta, claramente, as várias possibilidades representadas por um escravo, além de seu trabalho rotineiro. Até o final do período colonial, eles foram bens de alto valor e, por isso, muito cobiçados por livres, libertos e por seus congêneres. No item que segue, partindo das informações e de dados resgatados junto aos testamentos setecentista, eles serão o ponto central da análise.

ESCRAVOS: UMA AVALIAÇÃO GERAL. A identificação dos escravos pertencentes aos testadores não é, muitas vezes, uma tarefa possível de ser cumprida. De forma contrária à enorme importância que eles tinham no funcionamento do mecanismo colonial, não se dispensou muita atenção quanto a suas idades (mesmo que aproximadas), condições físicas, local de nascimento, laços de parentesco, entre outras informações que poderiam constar nos testamentos. Este certo descaso atingiu africanos, crioulos e mestiços, homens, mulheres e crianças.

55. APM/CMS - códice 24, f.133v. Testamento de Quitéria Vicência da Cruz - Sabará 30 DEZ 1764.

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As designações negro(a), preto(a) ou moleque(a) parecem ter referido-se, na maior parte das vezes, a africanos(as), enquanto que os crioulos(as) parecem ter sido escravos(as) de cor negra nascidos no Brasil e que aos mestiços reservava-se os termos pardo(a), mulato(a) e cabra. Contudo, houve testador, como Maria Xavier Villas Boas, que além de não indicar o local de seu nascimento, se autodeclarou uma “crioula preta forra”.56 Não sabendo ler, nem escrever, o testamento de Maria foi redigido por alguém capaz, mas que aceitou registrar o equívoco e, talvez, o tenha repetido quando listou os escravos dela. Não obstante esses contratempos, a classificação das origens, acima exposta, foi tomada como base para a montagem do quadro que segue. Quadro IV - Origens dos escravos pertencentes aos testadores arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 ORIGEM DOS ESCRAVOS

NÚMERO TOTAL

HA

1.085

% SOBRE O TOTAL GERAL 33,14

HB

454

13,87

HO

223

6,81

TH

1.762

53,82

MA

281

8,58

MB

381

11,64

MO

82

2,50

TM

744

22,72

ESO

768

23,46

TOTAL GERAL

3.274

100,00

Fontes: ver Quadro I, capítulo IV.

56. APM/CMS - códice 20, f.15. Testamento de Maria Xavier Villas Boas - Sabará 20 MAI 1747. Outras identificações confusas foram registradas nos testamentos. Por exemplo: a testadora Anna Vieyra que declarava ser uma “crioula de Angola” - MO/CPO-TEST - códice 4, f.126v. - Testamento de Anna Vieyra - Sabará 27 SET 1741; o escravo “mulato Miguel, natural de Angola”, assim nomeado pelo padre Francisco Ferreyra Mendes - MO/CPO-TEST - códice 13, f.119 - Testamentos de Francisco Ferreyra Mendes - Sabará 07 DEZ 1743; o “negro Jozé de nação cabra” - MO/CPO-TEST - códice 48. f.131v. - Testamento de Joam Ferreira Bessa - Sumidouro 20 MAR 1775 e o “escravo por nome Domingos crioulo, natural de São Tomé, oficial de sapateiro” - MO/CPO-TEST - códice 52, f.34 - Testamento de Manoel Pinto de Souza - Macacos, freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas do Sabará 20 MAI 1772.

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Os homens são muito mais numerosos que as mulheres, chegando mesmo a representar algo perto de 3/4 de todo o conjunto mancípio arrolado. Como já se explicou antes, é certo que a maior parte dos indivíduos abarcados pela categoria ESO (Escravos sem Sexo e Origem identificados) constituía-se de homens, o que embasa a proporção suposta acima. Os homens africanos, sozinhos, representavam 1/3 do total, isto sem considerar os incluídos em ESO, o que, mantida a tendência geral, significaria um acréscimo de, aproximadamente, 244 indivíduos à variável HA. Embora minoritário, o conjunto de mulheres era significativo e representava pouco mais de 1/5 do total de escravos. Da mesma forma como se concluiu a partir do Quadro III deste capítulo, não parece ter havido uma diferença grande entre o número de africanas e de brasileiras. É importante saber, também, como os escravos encontravam-se distribuídos entre os proprietários testadores, como segue exposto no próximo quadro. Quadro V - Distribuição de escravos entre os testadores/proprietários arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784. TESTADORES/No HL 221

HF 22

ML 25

MF 65

TOTAL 333

HA

912

48

HB

336

12

44

81

1.085

31

75

HO

194

454

6

11

12

223

ESCRAVOS

TH

1.442

66

86

168

1.762

MA

160

14

27

80

281

MB

225

9

36

81

381

MO

57

3

4

18

82

TM

472

26

67

179

744

ESO

57

705

1

59

3

768

TOTAL

2.619

93

212

350

3.274

MÉDIA POR TEST./PROPR.

12

4

8,5

5,5

10

Fontes: ver Quadro I, capítulo IV.

57. O número de escravos incluídos em ESO é maior entre os testadores livres devido à existência de alguns testamentos de proprietários muito ricos que não se preocuparam em listar nome por nome de seus cativos, limitando-se, apenas, a designar a quantidade deles. O arrolamento nominal deve constar nos inventários desses testadores, que, infelizmente, não foram localizados.

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Tomados em conjunto ou por origem, os escravos pertencentes aos homens livres são muito mais numerosos que o total das outras três categorias de testadores. Talvez, o único dado parcial que fuja à regra seja o número, aparentemente pequeno, de escravas africanas pertencentes aos homens livres. Se fosse possível distinguir as africanas incluídas em MO (Mulher sem Origem identificada) e em ESO, os resultados da coluna MA (Mulheres Africanas) provavelmente ficariam bem mais altos, talvez ultrapassando a soma das MB (Mulheres Brasileiras). Quanto as categorias HF (Homens Forros) e ML (Mulheres Livres), o universo investigado é muito reduzido para poder-se chegar a conclusões, mesmo que parciais. Já em relação às mulheres forras (MF), os dados indicam uma situação diferente da observada junto aos homens livres e já discutida no capítulo IV. Os dados demonstram um equilíbrio numérico quase perfeito entre os sexos e as origens dos escravos pertencentes a essas testadoras. Um relativo equilíbrio também parece ter caracterizado o plantel das mulheres livres. Há indícios, portanto, da existência de uma clara distinção entre a composição dos plantéis pertencentes a homens e mulheres. Caso tal equilíbrio tenha ocorrido generalizadamente entre as proprietárias mineiras coloniais é possível que ele tenha, também, contribuído para índices de formação de famílias e de reprodução natural maiores que entre os plantéis dos proprietários. A reprodução natural entre os escravos das proprietárias, teria sido uma estratégia adotada mais intensamente por elas que pelos senhores mineiros? Teriam esses últimos, dada a natureza de suas atividades econômicas (engenhos, grandes plantações e criações e comércio em maior escala), optado pela importação de escravos, garantindo plantéis adultos em mais curto prazo? Embora insuficientes, os dados acima parecem apontar, pelo menos, para procedimentos diferenciados entre homens e mulheres proprietários de escravos em Minas. Assim, a média de 5,5 escravos por testadora forra/proprietária pode ter sido alcançado através de um certo planejamento e estímulo ao acasalamento, pautados em possíveis taxas positivas de reprodução natural. Por outro lado, os 12 escravos possuídos, em média, por cada testador livre/proprietário, pode estar refletindo uma opção pela maior importação de mão-de-obra, o que não exclui, em absoluto, a possibilidade de crescimento natural nesses plantéis. De novo, é bom lembrar que a nossa média geral encontrada, 10 escravos por proprietário, é superior ao resultado encontrado por Luna (entre 3,7 e 6,5 escravos) e mais aceito para a Capitania. As médias de escravos por proprietário encontradas a partir dos testamentos estão superestimadas, dada a própria natureza das fontes. Muitos proprietários de um ou dois escravos, com poucos bens móveis ou sem problemas de sucessão não devem ter submetido-se ao burocratizado processo testamentário. Outros, intencionavam oficializar seus legados, mas morreram antes de fazê-lo. Dessa forma, a maior parte dos testadores era constituída por indivíduos mais abastados, o que 184

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justifica, principalmente entre os homens livres, as taxas encontradas. É importante, então, demonstrar como o conjunto mancípio arrolado estava distribuído entre os testadores, o que encontra-se disposto no quadro abaixo. Quadro VI - Estrutura de posse de escravos entre os testadores/proprietários arrolados da comarca do Rio das Velhas - 1720-1784 No DE ESCRAVOS

PROPRIETÁRIOS ESCRAVOS POSSUÍDOS ESCRAVOS

H

M

TOTAL %

No %

1

23

6

29

8,71

29

2

26

10

36

10,82

72

0,89 2,19

3

24

16

40

12,01

120

3,67

4

27

10

37

11,11

148

4,52

5

11

10

21

6,30

105

3,20

6 A

10

57

31

88

26,42

682 20,84

11 A

20

48

4

52

15,62

768 23,45 610 18,64

21 A

40

20

2

22

6,61

41 E mais

7

1

8

2,40

740

22,60

TOTAL

243

90

333

100,00

3.274

100,00

Fontes: ver Quadro I, capítulo IV.

Conforme foi dito acima, entre os testadores arrolados, principalmente entre os homens livres, o maior número de escravos concentra-se junto aos proprietários cujos plantéis são superiores a 5 indivíduos. Nesta faixa estão incluídos 160 (48,04%) dos 333 testadores/proprietários investigados e 2800 (85,52%) dos 3274 escravos arrolados. Na faixa que abarca os donos de 1 a 5 indivíduos observa-se, evidentemente, uma tendência inversa: mais proprietários e menos escravos possuídos. A maior concentração de testadores(as)/proprietários(as) era formada por aqueles que tinham plantéis de 6 a 10 escravos. Já o maior grupo individual de escravos era o que pertencia aos proprietários(as) de 11 a 20 indivíduos. Essa massa de homens, mulheres e crianças submetidos, integrantes de pequenos, médios e grandes plantéis, não formava um grupo amorfo, sem identidade cultural, uma multidão de objetos históricos sem vontade própria. Como vem sendo demonstrado, entre os escravos existiam objetivos e estratégias para alcançá-los e a atuação deles contribuiu, em muito, para que as relações escravistas de produção vivessem em constante transformação. Para alcançarem a alforria, principal objetivo do escravo, foi preciso adaptarse pragmaticamente ao sistema, das mais variadas maneiras, de acordo com as oportunidades surgidas e/ou construídas. O tema já foi discutido nos capítulos anteriores, mas alguns de seus aspectos merecem ser ainda abordados. 185

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No período de cativeiro, quanto maior fosse o grau de adaptação, real ou teatralizada, conseguido pelos escravos, maior seria a possibilidade de bom tratamento e de uma vida menos indigna. Dessa forma, alguns conseguiram aprender a ler e a escrever, através de aulas pagas pelos proprietários. Em capítulo precedente já foi mencionado o caso do mulato Manoel, escravo de João Gonçalves da Costa, mas este não foi o único. A pernambucana, Francisca Xavier Ferreira, “filha incógnita, criada em casa do Capitão Antônio da Costa Souza”, casada havia 26 anos, sem filhos, moradora em Sabará, em 1762, custeava a educação de um seu escravinho. Embora dissesse que havia tido pouca sorte na vida e reclamasse das “muitas perdas de mortandade de negros e fintações e despesas com enfermidades”, Francisca declarava: (...) e assim mais tenho empenhado na mão de João Vieira dos Santos, mestre de meninos, morador nesta Vila, uma imagem de Nossa Senhora da Conceição que pesa três oitavas e quatro vinténs de ouro, do ensino de um crioulinho de ler e escrever.58

Já o português, Manoel Rodrigues Soares, primo do famoso rebelde Manoel Nunes Vianna, solteiro, morador na Fazenda da Tabua, freguesia de Santo Antônio da Manga, em 1736, declarava ter criado um rapaz chamado Caetano Rodrigues Soares, que está na Cidade da Bahia em companhia de meu primo (...) seguindo os estudos até se por capaz de passar para Coimbra, aonde os meus testamenteiros lhe assistirão com o que lhe for necessário, preciso, em até se doutorar ou tomar o capelo.59

Na verdade, tratava-se de um filho bastardo, havido com sua ex-escrava, a mulata Antônia Alves de Mendonça, com quem teve mais três “raparigas”. Manoel legava 2.000 cruzados a Antônia e quanto às três filhas, reservava-lhes um futuro menos pomposo: ordenava aos testamenteiros colocá-las “em qualquer convento de Portugal”.60 Às vezes, a instrução era acompanhada e em outras substituída pela aprendizagem de um ofício mecânico. De toda forma, eram ganhos qualitativos de enorme importância para quem tinha nascido escravo e, portanto, destinado aos trabalhos considerados mais desprezíveis. 58. APM/CMS - códice 24. f.128. Testamento de Francisca Xavier Ferreira - Sabará 07 NOV 1762. 59. MO/CPO-TEST - códice 2, f.129. Testamento de Manoel Rodrigues Soares - Fazenda da Tabua, freguesia de Santo Antônio da Manga 08 MAR 1736. 60. id. ibid.

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A atenção e o interesse por determinados escravos era demonstrada pelos proprietários, também, quando aqueles ficavam doentes ou faleciam. O já citado Manoel Pinto de Souza, por exemplo, declarava: (...) ordeno a meu testamenteiro que o meu escravo Manoel mina, que deixo forro gratuitamente, lhe assista com alimentos usuais(?) e precisos no caso que o dito não possa trabalhar para isto e falecendo lhe mandar dar sepultura (...)”61

Não é à toa que, agradecidos por alguma atenção um dia dispensada a eles e muitas vezes conquistada por eles, vários libertos(as) lembraram, em seus testamentos, de seus antigos senhores. Legaram-lhes missas e, até mesmo, bens materiais e oitavas de ouro. Misturando atitudes a priore díspares, mas no viver cotidiano passíveis de alianças e de usos complementares, como alienação e resistência/adaptação, gratidão e pragmatismo, vários escravos e libertos conseguiram minimizar o fardo imposto pelos estigmas da qualidade e da condição social. Priorizaram, pois, o bem viver na terra ao invés da promessa de vida eterna e de liberdade no paraíso celeste. Como portadores da mesma essência humana cultivada pelos brancos europeus, escravos e libertos transformaram o conviver através de avanços e retrocessos, de coerências e de contradições. Não é demais, então, usar de um último exemplo, talvez reflexo das relações sociais engendradas nas Minas. Trata-se de Genobeba Lourença, preta forra, moradora no Arraial do Piolho, termo da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, em 1752. Dizia a testadora ser solteira, não ter filhos, nem herdeiros, senão o meu senhor Jozé Lourenço, que foi o que me passou carta de alforria, que suposto foi por ouro que lhe dei, também me deu agência com que pudesse ganhar, o qual instituo por meu universal herdeiro e de tudo o que sobrar de minha fazenda e cumpridos os meus legados, lhe peço pelo amor de Deus queira ser meu herdeiro e testamenteiro e torno a pedir (...).62

61. MO/CPO-TEST - códice 52, f.36v. Testamento de Manoel Pinto de Souza - Macacos, freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas do Sabará 20 MAI 1772. 62. APM/CMS - códice 20, f.109v. Testamento de Genobeba Lourença - “Arraial do Piolho nesta Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará” 29 DEZ 1752.

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OBSERVAÇÕES FINAIS

Foi visto que, ao se iniciarem, os testamentos apresentam um discurso-modelo, relacionado principalmente com as representações religiosas dos colonos, com suas devoções e com suas atitudes diante da morte iminente. Tal discurso, utilizado por livres e forros, acabava por imprimir um perfil religioso padronizado do testador, socialmente desejado pela Igreja e pelo Estado que assim atestavam, em nome de Deus, a salvação daqueles fiéis. O controle comportamental parecia triunfar sobre os colonos que usavam declarar sua subserviência e seu temor a Deus a qualquer tempo de suas vidas, fato reforçado pelas atitudes registradas em testamento. Com isso, além de se julgarem aptos à redenção celeste, os testadores legavam à posteridade uma idéia de bons sujeitos e de bons cristãos, cuja essência deveria ser reproduzida pelos descendentes e por toda a sociedade. Dito de outra forma, forjava-se para as gerações futuras uma imagem pessoal construída pelo próprio testador que, assim, abonava um padrão de comportamento a ser reproduzido. Não obstante todo esforço despendido pelos testadores em torno de suas memórias, muitos haviam sido os pecados cometidos por eles, vários deles passíveis de identificação nas cartas testamentárias, mesmo que nas entrelinhas: filhos ilegítimos, relações proibidas, assassinatos, ambições e injustiças. Estas, dentre outras falhas, acabavam por ser reconhecidas, tentando-se às vezes repará-las através de legados materiais e espirituais. Deve-se observar, então, que o controle comportamental imposto à sociedade colonial não havia triunfado integralmente. Nos mesmos testamentos onde se tentava idealizar a imagem pessoal eram registradas as atitudes contrárias ao enquadramento modelar. Assim, legava-se também à posteridade os limites das estratégias de dominação e a descrição, mesmo que obscurecida, de algumas das

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estratégias de resistência empregadas. A dualidade dos testamentos enseja o exame de aspectos culturais da vida mineira, ainda pouco conhecidos pela historiografia e o conjunto de informações disponíveis vem reafirmar a complexidade adquirida por aquela sociedade setecentista. Um dos principais responsáveis pela complexidade das formas de convivência no setecentos mineiro foi o grupo de habitantes negros, incluídos africanos, crioulos e mestiços, escravos e forros. Entre eles, um papel muito importante e claramente identificado na documentação colonial foi desempenhado pelas mulheres. Partícipes de peso na economia mineira e, muitas vezes, gerentes de seus próprios negócios, escravas e libertas atuaram, com astúcia e desenvoltura, em outros setores das relações sociais. No cativeiro ou longe dele, essas mulheres foram, em grande parte, responsáveis pela formação e manutenção de núcleos familiares que, simultaneamente, atenderam demandas senhoriais, mas serviram também como um dos vários mecanismos de resistência empreendidos na Capitania. Adaptações aos padrões dominantes de vida social, muitas delas realizadas sob um pragmatismo quase invisível, talvez tenha sido um dos traços definidores do perfil dessas negras nas Minas. A luta contra o sistema iniciava-se no esforço, individual e coletivo, para minorar a violência e desumanização inerentes ao escravismo. Uma boa estratégia para usufruir de alguns privilégios reservados aos livres foi, certamente, facilitar a miscigenação étnica e o sincretismo cultural e religioso. A partir daí e distante do poder institucionalizado ou das regras de classificação social mais visíveis, instala-se um sistema de influências mútuas, uma verdadeira via cultural de mão dupla, que acaba atenuando a discriminação. Amantes negras e bastardos mestiços souberam usar, com habilidade, essas fendas oportunas apresentadas pelo sistema de dominação. Vislumbra-se, então, um universo muito mais complexo que aquele imaginado através, apenas, das relações Metrópole/Colônia e senhor/escravo; um contexto histórico muito mais rico do que o explicitado pela documentação oficial. Relações sociais muito intricadas que levam à recusa de epítetos injustos, tais como “vencidos” e “dominados”, ainda de uso corrente. Diante do incontestável poderio das forças repressivas foi necessária a adequação das armas de defesa. Assim, em inúmeras ocasiões, a astúcia da população negra colonial venceu as chibatas, as espadas e as espingardas senhoriais. Embora revoluções ao molde haitiano não tenham ocorrido no Brasil e o sistema escravista colonial tenha estendido-se até 1888, é inegável que também ele foi obrigado a adaptar-se à massa de cativos e de libertos, em outras palavras, às relações sociais transformadas por esses legítimos agentes históricos. É incontestável, ainda, o reconhecimento de que as atitudes mais cotidianas, que visavam tornar mais humana e menos violenta a convivência entre brancos e negros, entre livres, libertos e cativos, tenha sido uma maneira de resistir ao sistema e de modificálo. 190

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Talvez, pelas peculiaridades mineiras já mencionadas antes, as formas de adaptação/resistência tenham sido aqui tão variadas e eficazes, assim como o foram as estratégias de dominação. A incorporação de valores dominantes por parte dos escravos, dos libertos e de seus descendentes, ocorrida verdadeiramente ou de maneira teatral, ensejou um grande número de manumissões e uma menor, mas significativa, quantidade de ascensões econômicas. Neste sentido, alienação e resistência não foram elementos excludentes num único e pragmático projeto de vida no setecentos escravista, tenha sido esse projeto individual ou tenha ele servido a um grupo. Conciliar atitudes aparentemente tão opostas deve ter sido um aprendizado valioso e talvez seja uma das matrizes de nosso famoso “jeitinho”, que se abre caminho para a alienação e para a corrupção, continua nos servindo, também, como estratégia de resistência não mais à escravidão, mas à desumanização, à segregação e à violência dos tempos atuais.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

1 - FONTES 1.1 - Fontes manuscritas Arquivo Público Mineiro Códices CMOP no 6 - “Registro de Cartas do Governador e mais autoridades do Senado, de bandos, ordens, provisões, portarias, propostas, requerimentos ou petições - 1717-1733” CMOP no 23 - “Listas dos contribuintes para o Real Donativo e contas dos provedores 1727-1728.” CMOP no 24 - “Listas dos contribuintes para o Real Donativo e conta dos provedores 1728-1730.” CMOP no 26 - “Listas dos contribuintes para o Real Donativo e conta dos provedores 1730-1731.” CMOP no 28 - “Termos de acórdãos.” CMOP no 29 - “Listas dos contribuintes para o Real Donativo dos provedores e outros atos relativos à matéria - 1731-1736.” CMOP no 35 - “Registro de editais, cartas, provisões e informações do Senado de petições e despachos - 1735-1736.”

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CMS no 20 - “Testamento - 1748-1754.” CMS no 24 - “Registro de Testamentos - 1754-1762.” CMS no 53 - “Registro de Testamentos - 1762-1784.” CMS no 73 - “Testamento e Inventários - 1784.”

Documentação não encadernada da Capitania de Minas Gerais No da caixa

No do documento

SG 3 58 159 164

33 13 15 6

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CMOP

Museu do Ouro - Sabará Códices - (Cartório do Primeiro Ofício - Testamentos) Nos 1, 2, 4, 8, 11, 12, 13, 16, 19, 48, 49, 50, 51 e 52.

1.2 - Fontes impressas ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3 ed. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Ed. USP, 1982, p.167. .COELHO, José João Teixeira. Instrucção para o governo da capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, n. p.399-581, 1903. COUTO, José Vieira. Memória sobre a capitania de Minas Geraes (1799). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n.11 p.289-335, 1848. ESCHWEGE, W. L. Von. Pluto Brasiliensis. (trad.) Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Ed. USP, 1979, 2v.

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ANEXO I

RELAÇÃO DOS VALORES DE COARTAÇÕES, ALFORRIAS E ARRESTOS A PARTIR DOS TESTAMENTOS INVESTIGADOS DA COMARCA DO RIO DAS VELHAS – 1720/1784. COARTACÕES: ANO

SEXO

PREÇO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1720 1720 1720 1722 1722 1722 1722 1729 1734 1735 1738 1738 1738 1738 1738 1738 1738 1738 1738 1738 1739 1739 1740 1740

M M F F M F F M M M M M F M F M F F F F F M F F

2 libras 2 libras 150 oitav. 124 oitav. 100 oitav. 100 oitav. 2 libras 50 oitav. 60.000 r. 25 oitav.

384.000 284.000 225.000 186.000 150.000 150.000 384.000 60.000 60.000 37.500 150.000 150.000 96.000

“escravo” “escravo” Cabo Verde “negra”, mãe 3 filhos “negro”, vaqueiro “negra” “negra conga” Mina Angola “crioulinho” “escravo Mina” Angola Mina Congo, 34a., casado crioula, 28a., mulher do escravo acima “negro” mulata, mãe de 1 filha filha da mulata acima “negra” Mina, 40a. “escrava” “moleque barbeiro” “crioulinha” Mina

64 oitav. 300.000 1 libra 200 oitav. 2 libras 100 oitav. 1 libra 40 oitav. 100 oitav.

192.000 300.000 384.000 150.000 150.000 192.000 200.000 60.000 150.000

E SCRAVOS

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DO

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ANO

SEXO

PREÇO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1740 1740 1741 1741 1741 1741 1741 1743 1743 1743 1743 1743 1744 1744 1744 1744 1744 1744 1744 1744 1745 1745 1745 1745 1747 1747 1748 1748 1748 1749 1749 1749 1749’ 1749 1750 1750 1750 1750 1750 1751 1751 1751 1751 1751 1751 1751 1751 1751 1751 1753 1754 1755 1756 1756 1756 1756 1756 1757 1757

F F F F F M

128 oitav. 100 oitav. 1/2 libra 50 oitav. 1libra 1/2 libra 1 quarta 1 e1/2 lb.

110 oitav. 30 oitav. 90 oitav. 100 oitav. 1 e1/2 lb. 100 oitav. 150 oitav. 150 oitav. 100 oitav. 140 oitav. 96 oitav. 160 oitav. 100 oitav. 1 quarta 120 oitav. 1 libra 60 oitav. 96 oitav. 40 oitav. 160 oitav. 180 oitav. 128 oitav. 1/2 libra 1/2 libra 64 oitav. 60 oitav. 1 libra 50 oitav. 90 oitav.

192.000 150.000 96.000 75.000 192.000 96.000 48.000 288.000 55.000 100.000 165.000 45.000 135.000 150.000 288.000 150.000 225.000 225.000 150.000 210.000 144.000 240.000 150.000 48.000 180.000 192.000 90.000 144.000 60.000 240.000 270.000 92.000 96.000 96.000 96.000 90.000 192.000 75.000 135.000 “

Courana Mina “escrava” “escrava”, mãe de 1 cabra “escrava”, mãe de 3 filhos filho da escrava acima no ventre da escr. acima Mina, barbeiro crioulo mulato “negra Mina”, mãe de 2 filhos filha de peito da negra acima Angola “negro” “negro” “negro” crioulo crioulo crioula, mãe 1 mulatinha “preta Mina” “negra Mina”

oitav 1 libra

144.000 192.000

80 oitav. 100 oitav.

96.000 150.000

M/ 1 e1/2 lb. 100.000 r. 100 oitav. 1 libra 40 oitav. 40 oitav. 100 oitav. 100 oitav. 100 oitav. 1/2 libra 1 quarta 1 quarta

160 oitav 288.000 100.000 150.000 192.000 60.000 60.000 150.000 150.000 150.000 96.000 48.000 48.000

206

M M M F F M M M M M M F F F F F M F F F F F M M M M F F M F F M F\ M /120 F F\ M/ F F\ F M M F M M M M M F F M

“escrava” Mina “Mina, nação Courana” Mina “negra Mina” “preta Mina”, 40 a. crioula, 13 a. “preto Mina”, casado “negro Mina” Mina crioulo crioula “crioulinha”, 9a. Mina “negra” mulata negro Angola” “negra Mina”, mãe 3 filh crioula, criança crioula “negra Mina”, mãe 1 filh crioulo, criança Mina, mãe de 1 filha “negra”, mãe de 1 filho 240.000 “crioulinho” Mina Mina crioulo “negra nagô, já velha” Mina, 60 a. “negro Congo” “escravo” “moleque nação Angola” “escravo” “negra Angola” “negra”, mãe 4 f. e avó neto da negra acima

E DUARDO F RANÇA P AIVA

ANO

SEXO

PREÇO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1757 1757 1757 1757 1757 1758 1758 1758 1758 1758 1758 1759 1759 1759 1759 1760 1760 1760 1760 -1760 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1761 1762 1762 1763 1763 1763 1764 1764 1764 1765 1765 1765 1766 1766 1766 1766 1766 1766 1766 1766 1767 1767 1767 1767 1768 1768 1768

F F M M F M F M F F M F F F M M M. F M M F F M M F M M M F M F F M F M M F F F\ F/ F F M F\ F M/ F F F F M M F F F M M F

50 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 96 oitav. 2 libras 128 oitav. 50 oitav. 64 oitav. 256 oitav. 1 libra

75.000 75.000 75.000 75.000 144.000 384.000 192.000 75.000 96.000 384.000 192.000

60 oitav. 50 oitav. 100.000

90.000 75.000

filha da negra acima filha da negra acima filho da negra acima filho da negra acima “negra Angola”, mãe 2 f. “negro Mina” “negra Mina” “negro Mina” “negra Mina” “negra Mina”, mãe 3 filh “negro Mina”, 40 a. crioula, mãe de 1 filha filha da crioula acima crioula “negro Mina” mulato crioulo “negra” crioulo “escravo” “preta, nação sabarú” crioula crioulo crioulo “preta Courana” crioulo “preto nação Congo” mulato “negra Mina” “negro Angola”,minerador crioula mulata “negro Mina, ainda moço” “negra Courana” “negro Angola” “negro Benguela” Mina, mãe 1 f.”de peito” “mulatinha” crioula,mãe 1 “cabrinha” “cabrinha” acima “negra Mina” crioula “moleque Mina” crioula,mãe 2"cabrinhas” “cabrinha” acima

150 oitav. 200 oitav. 120 oitav. 100 oitav. 1 libra 100 oitav. 80 oitav. 1 quarta 200 oitav. 1 libra 140 oitav. 200 oitav. 256 oitav. 1 libra 100.000 r. 165 oitav. 160 oitav. 65 oitav. 100.000 r. 115.000 r. 1/2 libra

200.000 280.000 225.000 300.000 180.000 150.000 192.000 150.000 120.000 48.000 300.000 192.000 210.000 300.000 384.000 192.000 100.000 247.500 240.000 97.500 100.000 115.000 96.000

200.000 r 1/2 libra 1 quarta 50 oitav.

200.000 96.000 48.000 75.000

1 libra

192.000 “cabrinha” acima

100 oitav. 1 quarta 1/2 libra 40 oitav. 100 oitav. 32 oitav. 50 oitav. 20 oitav. 20 oitav. 100 oitav. 70.000 r. 1/2 libra

48.000 96.000 60.000 150.000 48.000 75.000 30.000 150.000 70.000 96.000

150.000 crioula “negra Courana”,mãe 1 f. filha da negra acima crioula crioulo crioulo } crioula } irmãos 30.000 crioula } crioula } “moleque Angola” “negro Angola” “negra”

207

E SCRAVOS

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

ANO

SEXO

PREÇO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1768 -1768 -1768 1769 1769 1769 1769 1769 1769 1769 1769 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1770 1771 1771

F F F F F\ F/ M M F F M M M M M M M M M M M M M M F M F\

100 oitav. 160 oitav. 160 oitav. 80 oitav.

150.000 240.000 240.000 120.000

1 libra 1 libra 100 oitav. 1 libra 50 oitav. 1/2 libra 100 oitav. 200.000 r. 100.000 r. 100.000 r. 100.000 r. 100 oitav. 1/2 libra 130 oitav. 50 oitav. 130 oitav. 130 oitav. 130 oitav. 130 oitav. 80.000 r. 1/2 libra

192.000 192.000 150.000 192.000 75.000 96.000 120.000 200.000 100.000 100.000 100.000 120.000 96.000 156.000 60.000 156.000 156.000 156.000 156.000 80.000 96.000

1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1771 1772 1772 1772 1772 1772 1772 1772 1772 1772 1772 1774 1774 1774 1774 1774 1775 1775

F F/ F M M M M\ F\ M\ M\ M/ M/ F/ F/ F F F F M M M F M M M F F F M M M F M F

200.000 r

200.000

100 oitav. 100.000 r. 200.000 r. 200.000 r.

150.000 100.000 200.000 200.000 “negro”, casado

“preta nação Courana” “preta Angola” “preta Angola” “preta Mina”,mãe 3"criou linhos” crioula, mãe de 1 filha crioula,filha da cr.acim “pardo” “mulato” “moleque Angola” crioula “escrava Angola”,mãe 2f. “negro Angola”, 42 a. crioulo Angola mulato Benguela “Combunda” Angola mulato Angola Mina, “surdo” crioulo crioulo crioulo crioulo “cabrinha” “negro nação cabra” “negra”, mãe 2 “mulatinhas”,2 “crioulinhas”,1 crioula e 1 “mulatinho” “crioulinha” acima “crioulinha” acima crioula acima “mulatinho” acima “negro” “negro”

208

600.000 r

600.000

64 oitav. 64 oitav. 100 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 50 oitav. 100 oitav. 100 oitav. 60 oitav. 60 oitav. 150.000 r. 40.000 r. 1/2 libra 32 oitav. 100 oitav. 128 oitav. 32 oitav. 100.000 r.

6.000 96.000 150.000 75.000 75.000 75.000 75.000 75.000 150.000 150.000 90.000 90.000 150.000 40.000 96.000 48.000 150.000 192.000 48.000 100.000

Mina, mulher negro acima filho do casal acima filho do casal acima filho do casal acima filho do casal acima filha do casal acima filha do casal acima “negro Mina” mulata crioula crioula crioulo } crioulo } irmãos crioulo } crioula } crioula “crioulo de São Tomé” Mina crioula crioula crioula pardo “escravo Mina” “escravo Mina” “negra Mina” mulato crioula }

E DUARDO F RANÇA P AIVA

ANO

SEXO

PREÇO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1775 1775 1775 1775 1775 1775 1775 1775 -1775 -1775 1775 1775 1775 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 1776 -1776 1776 1777 1777 1777 1778 1778 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1779 1780 1781 1781 1781 1781 1781

M F F M F F F M M F M M M M M M F F M F M F\ M/ M F F F F M F\ M M/ F M M F F F F F F M M M F F M M F\ F/ M M M M F\ M/

100.000 r. 40 oitav. 100 oitav. 100 oitav. 64 oitav. 50.000 r. 25.000 r. 40.000 r. 150.600 r. 135.000 r. 80.000 r. 80.000 r. 10 oitav. 50.000 r. 1/2 libra 1/2 libra 80.000 r. 100.000 r. 100.000 r. 100.000 r. 120.000 r.

100.000 60.000 150.000 150.000 96.000 50.000 5.000 40.000 150.600 135.000 80.000 80.000 15.000 50.000 96.000 96.000 80.000 100.000 100.000 100.000 120.000

138.400 r 100.000 r. 32 oitav. 32 oitav. 32 oitav. 32 oitav. 20 oitav.

138.400 100.000 48.000 48.000 48.000 48.000 30.000

130 oitav.

195.000

2 libras 32 oitav. 1/2 libra 192 oitav. 192 oitav. 1/2 libra 100 oitav. 75 oitav. 100.000 r. 100.000 r. 60.000 r. 100 oitav. 64 oitav. 12 oitav. 1/2 libra 100.000 r.

384.000 48.000 96.000 288.000 288.000 96.000 150.000 112.500 100.000 100.000 60.000 150.000 96.000 18.000 96.000 100.000

100 oitav. 50 oitav. 48 oitav. 48 oitav. 48 oitav.

150.000 75.000 72.000 72.000 72.000

60 oitav.

90.000

crioula } irmãos crioula Mina,mãe 2 f. “pequenos” “escravo nação Congo” “mulatinha” Mina, mãe 5 filhos “crioulinha” filha escrava acima “mulatinho” f. escr. ac. “escravo nação Angola” crioula cabra cabra “cabrinha” “negro nação Mina” Cobu Angola crioula parda São Tomé, barbeiro parda “Xamba” mãe de 1 filho filho mencionado acima “escravo Mina” crioula crioula Mina cabra “já de idade” “escrava”, mãe 2 filhos filho da escrava acima filho da escrava acima preta forra, testadora Angola, velho, escr. da testadora acima Mina Courana Mina “menina” crioula crioula Mina Angola Angola, barbeiro crioulo crioula “preta Nagô”,mãe 1 filha crioulo Mina cabra, mãe de 1 filha crioula, filha acima “escravo nação Angola” crioulo crioulo Angola Mina, mãe de 3 filhos “crioulinho ainda de peito”, f. escr. acima

1783 1783 1783 1783 1784 1784 1784 1786

F F F M M F F F

60.000 r. 100.000 r. 80.000 r. 64 oitav. 1 libra 1 libra 100 oitav. 68 e 1/2 oitav. e 7 1/2 vinténs

60.000 100.000 80.000 96.000 192.000 192.000 120.000 82.562

crioula, mãe de 1 filho crioula Mina “escravo nação Benguela” “preto Mina” “escrava nação Mina” Mina, mãe 1 “crioulinho” e parda

209

E SCRAVOS

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

ALFORRIAS: ANO

SEXO

PREÇO DOCUMENTO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

1720 1720 1721 1736 1737 1738 -1740 -1740 -1741 1741 -1744 -1748 -1751 -1752 -1754 -1758 1766 -1768 -1769 -1771 -1771 -1776 -1777 1784

F F F M F M F F F F M F F F F F M F F F M F F M

136 oitav. 2 libras 200 oitav. 600.000 r. 1 libra 50 oitav. 1 libra 300 oitav. 128 oitav. 1 quarta 1/2 libra 200 oitav. 2 e1/2 lb. 2 libras 200 oitav. 2 libras 1 quarta 350 oitav. 1 libra 300 oitav. 1 libra 48.000 r. 200 oitav. 200.000 r.

204.000 384.000 300.000 600.000 192.000 75.000 192.000 360.000 192.000 48.000 96.000 300.000 480.000 384.000 300.000 384.000 48.000 525.000 192.000 450.000 192.000 48.000 300.000 200.000

SEXO

PREÇO DOCUMENTO

CONVERSÃO EM RÉIS

ESPECIFICIDADE

M M M M M M M M M M F M F M M M M M M F M M M

160.000 r. 64oit.e1/4 96.37 140 oitav. 84oit e1/2 126.750 90 oitav. 100 oitav. 70 oitav. 73 oitav. 130oit,1/2 80 oitav. 67 oitav. 100.000 r. 32 oitav. 100 oitav. 153.800 r. 120.000 r. 150 oitav. 100.000 r. 46.200 r. 64 oitav. 29 oitav. 130.000 r. 50 oitav.

160.000

“negro Mina” Mina negro” “negro nação Angola” “negro Mina” “negro Mina” Angola crioulo “negro Mina” crioulo “negra Mina” Angola crioula, mãe de 1 filha Mina “negro Benguela” Angola crioulo Mina crioulo “negra Angola” crioulo “moleque Benguela” crioulo

forra testadora “negrinha” mulato Mina, mãe de 1 filha “mulatinho” preta forra, testadora preta forra, testadora preta forra, testadora mulata pardo, criança preta forra, testadora preta forra, testadora preta forra, testadora preta forra, testadora preta forra, testadora “mulatinho” crioula forra, testadora, mãe de 3 filhos preta forra, testadora preta forra, testadora, mãe 4 filhos “já homens” crioulo parda preta forra, testadora casado

ARRESTOS: ANO -1734 1740 1745 1746 1749 1749 1750 1750 1750 1750 1755 1760 1762 1762 1765 1769 -1770 -1770 -1770 1771 1772 1784 1784

210

210.000 “ 135.000 150.000 105.000 109.500 195.750 120.000 100.500 100.000 48.000 150.000 153.800 120.000 225.000 100.000 46.200 96.000 43.500 130.000 60.000

E DUARDO F RANÇA P AIVA Símbolos utilizados acima: - = antes do ano indicado = escravos do mesmo proprietário \ / = coartação conjunta

CONVERSÃO DE OITAVAS DE OURO EM RÉIS, EM MINAS GERAIS ____________________________________________________________ PERÍODO

1 OITAVA DE OURO

Até Janeiro de 1725

1.500 réis

De 01.02.1725 até 24.05.1730

1.200 réis

De 25.05.1730 até 04.09.1732

1.320 réis

De 05.09.1732 até Junho de 1735

1.200 réis

De 01.07.1735 até Julho de 1751

1.500 réis

Em 01.08.1751

1.200 réis

Posteriormente*

1.500 réis

Fonte: BESSA, Antônio Luiz de. História ... op. cit. p.31. * O autor menciona que Roberto Simonsen considerava 1 oitava igual a 1.600 réis, embora não indique o período.

ALGUMAS CONVERSÕES EXISTENTES NA DOCUMENTAÇÃO INVESTIGADA PADRÕES

FONTE

3 quartas de ouro = 96 oitava de ouro

-APM/CMS - cód.20, f.71. Test. de Innocênscia de Siqueyra Távora,Sabará 07JAN 1745

1 oitava de ouro = 1.200 réis

MO/CPO-TEST - cód.49, f.97. Test. de Manoel Pereira Malta, Paracatu 03 OUT 1770

1 oitava de ouro = 1.500 réis

MO/CPO-TEST - cód.49, f.5. Test. de Paulo Carneiro Villar, São Gonçalo do Rio Abaixo 19 JAN 1771

1 oitava de ouro = 1.200 réis

APM/CMS - cód.73, f.50v. Inventário de Bernanrdo Pinheiro, Sabará 26 AGO 1784

1/2 libra de ouro = 64 oitavas ouro

APM/CMS - cód.53, f.138. Test. de Jozé deda Silva de Andrade, Sabará 03 MAR 1784

1 oitava de ouro = 1.200 réis

APM/CMS - cód.73, f.301. Inventário de Lionor Gonçalves Bahia,Sabará 19 AGO1786

211

ANEXO II

TRANSCRIÇÃO: APM/CMOP - CAIXA 4, DOC.50 DOCUMENTAÇÃO NÃO ENCADERNADA DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS “Dom João por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, em Ôfrica Senhor de Guiné etc Faço saber a vós oficiais da Câmera de Vila Rica que se viu o que respondeu o Conde das Galveas, Governador e Capitão General dessa Capitania das Minas em carta de oito de Outubro do ano passado, a ordem que lhe foi sobre o que me expusestes a cerca dos Ouvidores levarem mais pelas vistorias daquilo que por uso antigo lhes era dado: representando-me o dito Governador, que examinando ele esta matéria achava que o Governador dom Lourenço de Almeida, por representação que lhe fizeram os Guarda-mores e o Superintendente das terras minerais pelo regimento dos salários das Justiças dessas Minas, não falar propriamente nas vistorias minerais, mandara passar uma portaria pela qual arbitrara os salários que eu veria, da mesma portaria os quaes, ainda que naquele tempo em que foram feitos, que havia dez anos, seriam justos, atendendo a haver maior número de mineiros ricos do que hoje há, se devia fazer alguma diminuição nos ditos salários, parecendo ao dito Conde Governador que aos superintendentes, a quem se davam dezoito oitavas de ouro de cada vistoria e seis de caminho, se reduzam a quatro de caminho e a dez de vistoria; ao seu escrivão, que tinha nove oitavas por vistoria e de caminho três, fique em duas oitavas de caminho de cada vistoria em cinco; os guarda-mores, que tinham de vistoria doze e de caminho quatro, fiquem em seis por vistoria e por caminho em três; os seus escrivães, que tinham seis de cada vistoria e de caminho duas, fiquem em três por vistoria e por caminho as mesmas duas; em cuja redução podiam entrar

E SCRAVOS

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

as vistorias que faz essa Câmera dentro dessa Vila, reduzindo-se as trinta e duas oitavas de ouro que leva essa Câmera por cada uma das ditas vistorias a dezesseis oitavas e que sobre as espóstulas que levam os Ouvidores nessas Minas devia eu mandar observar o regimento na maneira em que fora feito, não atendendo a qualquer pretexto, costume ou estilo que haja em contrário. Me pareceu dizervos que ao dito Governador ordeno mande proibir por um bando, geralmente em todo esse governo, levarem-se maiores emolumentos do que os referidos na sua informação, como também exceder-se em coisa alguma o regimento que se fez para os salários dos oficiais de Justiça dessas Minas, sem admitir-se interpretação alguma para aumentar os ditos salários, no enquanto eu não estabelecer novo regimento para os mesmos salários e constando-se que algum ministro ou oficial excede, levando mais salários dos sobreditos, o advertirá de que nas suas residências se lhes há de dar em culpa e que ele Governador me dará conta de assim o haver executado com individuação do caso, havendo-a. El Rei nosso senhor o mandou pelo Doutor Manoel Fernandez Vages e Gonçalo Manoel Galvão de Lacerda, Conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. Antônio de Souza Pereira a fez em Lisboa ocidental em vinte e sete de Junho de mil setecentos e trinta e três.”

214

ANEXO III

E SCRAVOS

216

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

217

E SCRAVOS

218

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

219

E SCRAVOS

220

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

221

E SCRAVOS

222

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

223

E SCRAVOS

224

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

225

E SCRAVOS

226

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

228

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

229

E SCRAVOS

230

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

232

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

ANEXO IV

E SCRAVOS

234

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

235

E SCRAVOS

236

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

237

E SCRAVOS

238

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

239

E SCRAVOS

240

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

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S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

242

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L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

243

E SCRAVOS

244

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

246

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

247

E SCRAVOS

248

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

ANEXO V

E SCRAVOS

250

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

251

E SCRAVOS

252

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L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

253

ANEXO VI

E SCRAVOS

256

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

257

E SCRAVOS

258

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

259

E SCRAVOS

260

E

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NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

261

E SCRAVOS

262

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

263

E SCRAVOS

264

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

265

E SCRAVOS

266

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

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L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

269

E SCRAVOS

270

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII

E DUARDO F RANÇA P AIVA

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E SCRAVOS

272

E

L IBERTOS

NAS

M INAS G ERAIS

DO

S ÉCULO XVIII