Ensaios sobre Heidegger e Outros [1 ed.]
 9727712037

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ENSAIOS SOBRE HElD EGGER EOUTROS RICHARD RORTY

INSTITUTO

PIAGET

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Titulo original:

Essays on Heidegger and Others Philosophical Papier Volume 2 Autor:

Richard Rorty Colec~ao:

Pensamento e Filosofia DireCl;ao de Ant6nio Oliveira Cruz Tradu~ao:

Eugenia Antunes Capa:

Dorindo Carvalho © Copyright: Cambridge University Press, 1991

Direitos reservados para a lfngua portuguesa: INSTITUTO PIAGET Av. Joao Paulo II, lote 544,2.°-1900-726 Lisboa Telef. 83717 25 E-mail: [email protected] Pagina~ao:

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Silvas - Coop, Trab. Graficos, CRL Dep6sito legal n.o 143 429/99 ISBN - 972-771-203-7 Nenhuma parle desta publica~ao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo eIeclr6nico, mec.inico ou lotografico, induindo fotoc6pia, xeroc6pia ou grava~30, sem aulorizac;ao pr~via e escrita do editor.

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AGRADECIMENTOS

«Filosofia como Ciencia, MetMora e Politica» foi uma contribui,ao para urn simposio realizado na U niversidade de \liena em celebra,ao do 50. aniversario de Krists der Europilischen Wtssenschaften de Husser!' Foi publicada uma tradu,ao ale rna em Die Krise der Phiinomenologie und die Prag;matik des Wissenschaftsfortschritts, Michael Benedikt e Rudolf Burger, eds. (Viena: Verlag der Osterreichischen Staatsdruckerei, 1986), pp. 138-149. Uma versao revista e aumentada do original ingles (a versao aqui reimpressa) surgiu em The Institution of Philosophy, Avner Cohen e Marcello Dascal, eds. (La Salle: Open Court, 1989), pp. 13-33. «Heidegger, Contingencia e Pragmatismo» e aqui publicado pela primeira vez. Aparecera tambem em Reading Heidegger, Hubert Dreyfus e Harrison Hall, eds. (Oxford: Blackwell, a publicar). Inclui passagens de «Heidegger wider den Pragmatisten», Neue Hefte flir Philosophie 23 (1984), pp. 1-22. A ultima e a versao de uma palestra proferida em Haverford College, e apareceu apenas na tradu,ao ale rna. «Wittgenstein, Heidegger e a Reifica,ao da Linguagem» foi uma contribui,ao num simp6sio que celebrava 0 100. aniversario dos nascimentos de Heidegger e Wittgenstein, realizado na Universidade ]. W. Goethe, Frankfurt am Main, em Abril de 1989. Nao foi anteriormente publicado em ingles, mas apareceri tambem em The Cambridge Companion to Heidegger, Charles Guignon, ed. (a publicar). 0

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«Heidegger, Kundera e Dickens» foi apresentado como uma palestra na Sixth East-West Philosophers' Conference, realizada na Universidade do Havai em Agosto de 1989. Aparecera nas aetas dessa conferencia. «Desconstru~ao e Circunscri~ao» come~ou por ser uma palestra intitulada «Agora que desconstruimos a metaffsica, teremos de desconstruir tambem a literatura?» proferida durante a Summer School Of Criticism and Theory, realizada na Universidade Northwestern em 1983. Foi publicada uma versao revista em Critical Enquiry II (Setembro de 1984), pp. 1-23. E reimpressa com a permissao da University of Chicago Press. «Dois Significados de "Logocentrismo"» foi escrito em resposta a «Philosophy as Not Just a Kind of Writing», de Christopher Norris, que era em parte a sua res posta a «Philosophy as a Kind of Writing» (incluido na minha obra Consequences of Pragmatism). 0 ensaio de Norris e a minha resposta foram publicados em Redrawing the Lines: Analytic Philosophy, Deconstruction and Literary Theory, Reed Way Dasenbrock, ed. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989), pp. 204-216. «Derrida e urn Fil6sofo Transce!'dental?» apareceu no Yttle Journal of Criticism de Abril de 1989. E aqui reimpresso com autoriza~ao.

«De Man e a Esquerda Cultural Americana» e uma versao revista da ultima das tres Romane!! Lectures proferidas na Universidade da Virginia em Janeiro de 1989. Tomou de emprestimo alguns padgrafos do meu texto «Two Cheers for the Cultural Left», South Atlantic Quarterly 89, pp. 227-234, e alguns outros do meu texto «Deconstruction», em The Cambridge History of Literary Criticism, vol. 8 (a publicar). «Freud e a Reflexao Moral» foi proferido em 1984, como parte da Edith Weigert Memorial Leeture no Forum for Psychiatry and the Humanities, em Washington, D. C. Apareceu em Pragmatism's Freud: The Moral Disposition of Phsychoanalysis, Joseph H. Smith e William Kerrigan, eds. (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986), pp. 1-27. «Habermas e Lyotard sobre a P6s-modernidade» apareceu em Praxis International 4 (Abril 1984), pp. 32-44. E aqui reimpresso com autoriza~ao.

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«Unger, Castoriadis e 0 Romance de urn Futuro National» apareceu na Northwestern University Law Review 82 (Inverno de 1988), pp. 33 5-351. E aqui reimpresso com autoriza~ao. «Identidade Moral e Autonomia Privada: 0 Caso de Foucault» foi proferido numa conferencia em memoria de Foucault, organizada por Fran~ois Ewald e realizada em Paris em Janeiro de 1988. Apareceu traduzido para frances nas aetas desta copferencia: Michel Foucault Philosophe: Rencontre Internationale (Paris: Editions du Seuil, 1989), pp. 385-394. Uma versao ligeiramente reduzida do original ingles foi publicada com 0 titulo «FoucaultiDeweylNietzsche» em Raritan 4 (Primavera de 1990), pp. 1-8. Agrade~o aos organizadores das conferencias, institutos e simposios onde estes ensaios foram apresentados e aos editores dos varios jornais e colec~6es onde os mesmos apareceram. Gostaria tam bern de expressar a minha continuada gratidao it Funda~ao John D. e Cath~ine T. MacArthur. A maioria dos ensaios deste volume e do anterior foram escritos enquanto fui bolseiro dessa funda~ao.

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INTRODUC;Ao

o PRAGMATISMO E A FILOSOFIA POS-NIETZSCHIANA

Este i 0 segundo volume de uma sirie de ensaios escTitos durante os anos 1980. 0 volume I i composto pOT ensaios que discntem temas e fignms da filosofia analftica. Ao contrario, a maioT paTte deste volume i sobre Heidegger e Derrida. A parte I i composta por quatro ensaios sobre Heidegger - 0 reS1lltado de uma tentativa infrntifera e abandonada de eserever um livro sobre 0 mesmo. A parte II con tim tres ensaios sobre Derrida, a par com uma dissertafiio que discnte 0 uso que Paul de Man e os seus seguidores fizemm de algumas das ideias de Derrida. A parte III i mais heteroginea. Dos quatro ensaios incluidos nesta parte, 0 primeiro) e tambim 0 mais ambicioso, chama-se «Freud e a Ref/exiio Moral". Este ensaio distingue e salienta alguns aspectos da obra de Freud que se coadunam com a imagem de Quine e Davidson do eu como uma teia sem centro de erenfas e desejos - imagem que tambim utilizei no capitulo 2 da minha obm Contingency, Irony and Solidarity. Os restantes tres ensaios siio discnssoes de teorias sociais e atitndes politicas de varias figuras contemporlmeas (Habermas, Lyotard, Unger, Castoriadis, Foucault); estes ensaios amplificam as opinioes sociopoliticas apresentadas na parte III do volume I. No segttimento desta introdufiio farei alguns comentarios gemis sobre a "elafiio entre a tradifiio pos-nietzschiana do pensamento franco-germanico, discntida nestes ensaios, e a tradifiio pragmatista anti-representacionalista no ambito da filosofia analitica discntida no volume I.

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Heidegger e Derrida sao frequentemente referidos como filOsofos «pos-modernos». Utilizei por vezes 0 termo «pos-moderno» no seu sentido mais estrito definido por Lyotard como «desconfianra das metanarrativas». Mas agora preferiria nao 0 ter feito. 0 termo tem sido tao utilizado que causa mais problemas que 0 necessario. Desisti da tentativa de encontrar algo em comum entre os edificios de Michael Graves, os romances de Pynchon e Rushdie, os poemas de Ashberry, as varias formas de musica popular, e as obras de Heidegger e Derrida. Tornei-me mais hesitante em re/arao a tentativas de periodizarao da cultura descrever cada parte de uma cultura como se de repente virassem numa mesma nova direcrao aproximadamente ao mesmo tempo. As narrativas dramaticas podem bem ser, como MacIntyre sugeriu, essenciais para a escrita da historia intelecwal. Mas parece-me mais seguro e mais pratico periodizar e dramatizar cada disciplina ou ginero separadamente, em vez de ten tar ve-Ios como varridos conjuntamente por mudanras importantes. Em particular, parece me/hor pensar em Heidegger e Demda simplesmente como fil6sofos pos-nietzschianos - atribuir-Ihes um lugar numa sequencia coloquial que parte de Descartes, passa por Kant e Hegel ate Nietzsche e para Iti dele, em vez de encara-Ios como iniciando ou manifestando uma ruptura radical. Embora eu admire sem quaisquer reservas a originalidade e poder dos dois pensadores, nenhum deles pode evitar ser encaixado em certos contextos pelos seus leitores. 0 mtiximo que uma figura original pode esperar fazer e recontextualizar as suas ou os seus predecessores. Ele ou ela nao pode aspirar it realizariio de uma obra que seja incontextualiztivel, tal como um comentador como eu nao pode aspirar a encontrar 0 contexto «certo» no qual encaixar essas obras.

o contexto no qual os melts ensaios colocam a filosofia pos-nietzschiana e, como seria de esperar, 0 pragmatismo. Vejo Nietzsche como a figura que mais fez para convencer as intelectuais europeus das doutrinas que eram veiculadas aos americanos por James e Dewey. Muito do que Nietzsche tinha para dizer pode ser encarado como 0 seguimento da sua afirmarao de que «"0 conhecimento em si" e um conceito tao impermissivel como 0 de "coisa em si"»1 e da sua sugestao de que «{as categorias da razaoJ nao representam mais do que a conveniencia de uma certa rara e 1 The Will to Pown', trad. Kaufmann (Nova Iorque: Random House, 1967), sec. 608.



especie - so a sua utilidade e a sua "verdade"»2. A sua famosa descririio de "Como 0 "Mundo Verdadeiro" se Tornou uma Fdbula» em o Crepusculo dos idolos estd, se exceptuarmos 0 sarcasmo ao cristianismo, bastante proxima da visao de Dewey do progresso intelectual da Europa. A versao de Nietzsche do pragmatismo tinha, com certeza, pouco a ver com as aspiraroes sociais caracteristicas de James e de Dewey. 0 seu perspectivismo, a sua recusa em considerar a norao de verdade dissociada de interesses e necessidades, fazia parte de uma luta pela peifeirao individual, pelo que ele considerava como pureza espiritual. Nietzsche detestava tanto 0 seu pais como 0 seculo em que vivia, por isso a combinarao emersoniana de autoconfianra e patriotismo que observamos em James e em Dewey e para ele estranha 3. Tudo 0 que tomou de Emerson, digamos assim, foi a autoconfianra; nao existe analogia entre os seus trabalhos e 0 sentido americano de Emerson de um novo tipo de liberdade social. Quando Nietzsche leu as polimieas abolicionistas de Emerson, comiderou-as provavelmente como meramente 0 infeliz residuo de Jraqueza crista em alguem que de outro modo seria um homem forte. Apesar desta diferenra, Nietzsche era tao anticartesiano, anti-representacionalista e anti-essencialista como Dewey. Era tao dedicado a questao "que diferenra fard esta crenra sobre a nossa conduta?» como Pierce ou James. Se 0 vosso interesse se prende apenas com a epistemologia ou a filosofia da linguagem, por oposiriio afilosofia moral e social, nao fard grande diferenra a vossa conduta posterior ler Nietzsche ou os pragmatistas cldssicos. Mais, e tao simples enxertar os ultimos pragmatistas da linguagem - Quine, Putuam, Davidson - em Nietzsche como em Dewey. De facto, quando mudamos do discurso de Dewey sobre a experiencia para 0 discurso 2 Ibid., sec, 515. Existem passagens «pragmatistas» espalhadas

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longo da obra

de Nietzsche, mas a melhar fonte sao as sees, 480-544 de The Will to Power. Num livro a editar sabre a teoria da verdade de Nietzsche, Maudmarie Clark fornece uma explica~ao hastante convincente e lucida da sua viragem gradual para uma versao mais pura e mais consistente do pragmatismo.

3 Tbe Ame1'ican Evasion of Philosophy: A Genealogy of Pragmatism (Madison: University of Wisconsin Press, 1989) de Cornel West e bastante util para a compreensao da rela~ao de Emerson com Dewey. 0 que West apelida de «0 projecto de Dewey de uma cultura emersoniana de democracia radical» (p. 128) seria ininteligivel para Nietzsche que acreditava que se tencionavamos ser democniticos, para seguir 0 rebanho, entao nao poderfamos ser radicais.

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de Quine e Davidson sobre frases, torna-se mais simples entender 0 Jamoso comenta,.io de Nietzsche em «Verdade e Mentira num Sentido Extra-Moral» de que a verdade i «um exircito movel de metaforas.» Interpreto este comentario ii luz da minha disC1lSsiio do tratamento da metaJora por Davidson na parte II do volume 1. Creio que 0 que ele quer dizer que as frases siio a tinica coisa que pode ser verdadeira ou Jalsa, que 0 nosso repertorio de frases cresce ii medida que a historia avanfa, e que este crescimento em grande parte uma questiio de literalizafiio das metaforas de romances. Pensar na verdade desta maneira auxilia-nos a passa.· de uma imagem cartesiana-kantiana do progresso intelectual (como uma imagem melhor e a que melhor se encaixa entre a mente e 0 mundo) para uma imagem darwiniana (como uma capacidade progressiva de molda.· as ferramentas necessarias para ajudar as especies a sobreviver, a multiplicar-se e a transformar-se). Ver Darwin posicionado atris de Nietzsche e Dewey (e assim, de uma so passagem, atras do que no volume I descrevi como 0 fisicalismo niio redutor de Davidson) ajuda-nos a ver a filosofia europeia pos-nietzschiana e a filosofia analitica pos-positivista convergi1'em para uma unica explicafiio da interrogafiio pragmatista - grosso modo a explicafiio oferecida em «Questionamento como Recontextualizafiio» no volume 1. Segundo esta, a linguagem um conjunto de ferramentas em vez de um conjunto de representafoes - fen'amentas que, devido ao que Dewey cha1nO'it 0 «continuum meios-Jim», modifham os seus zttilizadores e os resultados da sua milizafiio. Abandonar a nOfiio de representafiio significa livrarmo-nos do enxame de problemas sobre 0 "ealismo e 0 anti-realismo que disC1lti na introdufiio ao volume 1. No entanto, a nOfiio de frases como fenamentas i uma nOfiio que associamos a Wittgenstein em vez de a Heidegger e a Denida. Apesar do pragn,atismo de Ser e Tempo (salientado por Mark Okrent e disC11tido na parte I deste volume), e apesar dos paralelos Derrida-Wittgenstein apresentados por Henry Staten e os paralelos Davidson-Derrida apresentados por Samuel Wheeler (disC1ltidos na parte II), Heidegger e Denida partilham uma tendencia para pensar na linguagem como algo mais do que simplesmente um conjunto de ferramentas. 0 Heidegger da ultima Jase persistentemente, e Denida ocasionalmente, tratam a lingnagem com se fosse um quase-agente, uma presenfa taciturna, algo que vigia de perto e esta contra 0 ser humano. As minhas criticas a Heidegger na parte I e a Denida na parte II centram-se na ma incapacidade de ter uma visiio darwinista calma e

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naturalista sobre a linguagem. Vejo-os ambos como, certo ponto, ainda sob a influencia da distin;ilo diltheyana entre Geist e Natur que critiquei na parte I do volume 1. POI'isso, em «Wittgenstein, Heidegger e a Reifica;ilo da Linguagem», critico 0 Heidegger da ,Utima fase por SZIC1lmbir ao impulso de tornar a linguagem uma quase-divindade. Em «Derrida um FilOsofo Transcendental?» critico a tentativa de Rodolphe Gasche de apresentar De17'ida como oferecendo «condi;oes de possibilidade» para 0 uso da linguagem. Ambos os conj,mtos de criticas silo protestos contra 0 facto de se deixal' a «Linguagem» tornal'-se 0 ,i!timo substituto para «Deus» ou a «Mente» - algo misterioso, incapaz de ser descrito nos mesmos termos em que descrevemos mesas, drvores e titomos. problema de se dar muita importlincia lingliagem, ao significado, a intencionalidade, ao jogo dos significantes, ou differance i corrermos 0 l'isco de perder as vantagens que ganhdmos pela apropria;ilo de Darwin, Nietzsche e Dewey. Assim que come;amos a reificar a lingliagem, comeramos aver falhas a ab"irem-se entre os tipos de coisas descritos por Newton e Dm"7lJin e os desez·itos por Freud e Den"ida, em vez de vermos convenientes divisoes dentro de uma caixa de ferramentas - divisoes entre grupos de fe1Tamentas linguisticas para vdrias tarefas diferentes. Cmnermnos a ficar fascinados pm- frases como «0 inconsciente esto estT1lturado como uma lingllagem», porque come;amos a pensar que as linguagens devem ter uma est1"1ltura distintiva completamente difel'ente da estrutura do cerebro, dos computadOl'es ou das galdxias (em vez de apenas concord01mos que alguns dos termos que utilizamos para descrever a linguagem podem, de facto, descrever p"oveitosamente outras coisas, como por exemplo, 0 inconsciente). Encaramos a in'edutibilidade do intencional - a irredutibilidade de descz'i,oes de atitudes sentenciosas como cren,as e desejos em descz'i,oes do movimento de partiC1llas elementares - como de algum modo mais filosoficamente significantes do que a irredutibilidade de desez"i,oes de casas em descri,oes de madeh'a, ou de Jesez'i,oes de animais em descz'i,oes de cflulas. Tal como argumentei no volume I, um pragmatista tem de insistir que tanto a redescritibilidade como a in'edutibilidade silo fdceis. Nunca i muito dificil redescrever qualquer coisa de que gostamos em termos que silo izndlltiveis para ou indefiniveis em termos de uma descri,iio anterior dessa mesma coisa. Um pragmatista deve tamhem insistir (com Goodman, Nietzsche, Putnam e Heideggel) que 0 modo como uma coisa i em si prop"ia nilo existe, sob qualquer descz'i,ilo, para alim de qualquer uso que 0

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ser humano Ihe queira dar. A vantagem de insistir nestes pontos i que qualquer dualismo que encontremos, qualquer divisao que encontremos um filOsofo a querer preencher au ligar, pode fazer-se com que pare;a uma simples diferen;a entre dais conjuntos de descri;oes do mesmo grupo de coisas. «Poder fazer-se de modo a que pare;a» nao contrasta neste contexto com a que «realmente i». Nao i como se houvesse um procedimento para descobrir se estamos de facto a lidar com dais grupas de coisas 01' com um. A coisa em si, a identidade, depende da descri;ao. Nem i a caso de a linguagem real mente ser apenas cadeias de sinais e ruidos que as organismas utilizam para conseguirem a que querem. A descri;ao nietzschiana e deweyniana da linguagem i tao-pouco a verdade sabre a linguagem como a descri;ao que Heidegger faz dela como sendo «a casa do Ser» au a de Derrida como «0 jogo de referencias significantes». Cada uma delas i apenas mais uma verdade Iitil sabre a linguagem - mais uma daquilo a que Wittgenstein apelidou de «notas para um objectivo particular». o objectivo particular desempenhado pela lembran;a de que a linguagem pode ser descrita em term as darwinian as i ajudar-nos a fugir daquilo a que, na introdu;ao ao volume I, chamei «representacionalismo» e, desse modo, da distin;ao realidade-aparencia. Obviamente considero que as melhores partes de Heidegger e Derrida sao as que nos ajudam a perceber como as coisas sao sob descri;oes niio representacionalistas e nao logocentristas - como sao quando come;amos a tamar a relatividade da coisalidade it escolha da descri;ao como garantida, e entao come;amos a perguntar como podemos ser uteis em vez de como ser correctos. Considero que as piores partes de Heidegger e de Derrida sao aquelas que sugerem que eles proprios finalmente acertaram sabre a que i a linguagem, que a representaram com precisao, tal como ela i. Foram estas partes que tentaram Paul de Man a dizer coisas como «a literatura (. . .) i a unica forma de linguagem que esta livre da faUcia da expressao espontlinea» 4 e Jonathan Culler a insistir que uma teoria da linguagem deveria "esponder a questoes sabre «a natureza essencial da linguagem»5. Foram tambim estas partes que levaram uma gera;ao inteira de teoricos literarios americanos a falar «da descoberta do caracter nao referencial 4 Paul de Man, Blindness and Il1sight, 2.a edi~ao (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1983), p. 17. 5 Jc;>nathan Culler, On Deconswllct;on: Theo1,] and C"iticism After St1'uct1lratism (Itaca, N. I.: Cornell University Press, 1982), p. 118.

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da linguagem», como se Saussure, Wittgenstein ou Derrida ou alguem tivesse demonstrado que a referencia e a representa,ao eram ilusiies (contrariamente a serem no,oes que, em certos contextos, podiam perfeitamente ser dispensadas). Se a tratamos simplesmente como uma lembran,a, em vez de como uma metafisica, entao acho que 0 que se segue e uma boa maneira de aproximar a conelusao tiltima tanto da tradi,ao Quine-Putnam-Davidson sobre a filosofia analitica da linguagem como da tradi,ao Heidegg,,~Derrida do pensamento pos-nietzschiano. Considere as frases como cadeias de sinais e ruidos emitidos por organismos, cadeias capazes de formarem pares com as cadeias que nos proprios emitimos (da forma a que chamamos "traduzir>>}. Considere as cren,as, os desejos e as inten,oes - geralmente atitudes sentenciosas - como entidades destinadas a ajudar a p"ediz,,' 0 comp011amento desses organismos. Agora, pense nesses organismos evoluindo gradualmente como resuftado de produzirem cadeias mais compridas e mais complicadas, que Ihes permitem fazer coisas que nao conseguiam fazer com a ajuda de cadeias mais pequenas e menos complicadas. Agora, pense em nos como um exemplo desses organismos aftamente evoluidos, nas nossas melhores esperan,as e medos mais profundos como tornados realidade devido, entre outras coisas, ii nossa capacidade de produzir as cadeias particulares que emitimos. Depois, pense nas quatro frases que antecedem esta, como outros exemplos dessas mesmas cadeias. Penuftimamente, pense nas cinco frlises que antecedem esta, como um esbo,o para um novo desenho da casa do Ser, um novo lar para nos, pastores do SeT: Por fim, pense nas tiftimas seis frases como ainda um DutrO exemplo do jogo dos significantes, um outro exemplo da maneira como 0 significado e infinitamente afteravel atraves da recontextualiza,ao dos signos. As ti!timas sete frases sao uma tentativa de deter animais, Dasein e differance numa tinica visao: mostrar como podemos passar da visao de Darwin an'aves da de Heidegger para a de Derrida, sem muito esfor,o. Sao tambim uma tentativa de mostrar que 0 que e importmite em ambas as tradi,oes, a que segue ate Davidson e a que vai ate Derrida, nao e 0 que elas dizem, mas 0 que nao dizem, 0 que evitam e nao 0 que p1"Opoem. Repare que nenhuma delas menciona 0 sujeito pensante nem 0 objecto do conhecimento. Nenhuma fala sobre uma quase-coisa chamada linguagem que fitnciona como intermediario entre 0 sujeito e 0 objecto. Nenhuma permite a ref01mtda,ao de problemas sobre a natureza ou possibilidade de

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representnfiio ou intencionnlidnde, Nenlmma tenta reduz;,' a que quer que seja noutra coisa, Nenhuma, em cone/usiio, nos poe nos limites especificas 110S quais a tradifiio repl esentacionalista cartesiana e kantiana nos puseram, E 56 pm'a isso que se,..,)em as duas tradifoes? Senf que todos estes pensado,-es eminentes nos estiio simplesmente a mostrar a saida de uma empoeirada, de 1I1na easa do SC1' em minas? Estou jonemente tentado a diz,,': "Com certeza, 0 que mais i que pensavam que iI'iam tirar da jilosojia contemp01'linea?» Mas isto pode parecer redutor. Assim seria se eu estivesse a negar que as obms destes pensadores siio indejinidamente 1wontextualiztiveis, e assim podn'iam tomar-se ,iteis numa variedade injinita de contextos p,'esentemente imprevistos, Mas niio i redutor dizer: niio subestime os efeitos de esvoarar dentro dessa gal,afa, Niio se subestime 0 que nos pode1 ia acontece1; no que nos pode1Iamos to'rnar, coma resu!tado de sainnos de Iti. Niio se subestime a utilidade de uma eserita '11tel'a111ente terapeutica, 'l11erarnente «desconstrutiva». Ninguim pode estabelem' a priori limites para 0 que a mudanra pode fazel' na opiniiio jilos6jica, tal conlD para 0 que a mudanfa pode fazer na opiniiio cientifica au politica, Pensar que podemos conhecer esses limites i tiio mau como pensar que, agora que jti sabemos que a tradifao ontoteol6gica esgotou as suas possibilidades, devemos apressar-nos a remodelar wdo, a fazel' wdo de novo, A mudanfa na perspectiva jilos6jica nao i intrinsecamente central nem intrinsecamente marginal - as seus resultados sao tiio imprevisiveis como a mudanfa em qualqu,,' outra tirea da cu!tura, Os ensaios neste volume e no ant,,'i01' nao tentam predizer quais seriio os efeitos da adoNao do pragmatismo com1lm a estas duas tradifoes, Os meus e11saios deveriio s,,'lidos como exemplos do que um grupo de jil6sofos italian os contelnpordneos chamaram «pensamento dibil»6 - reflexiio jilos6jica que nao tenta faZel' 1I1na cTitiCfl mdical da cu!tura contemporlinea, nao tenta 'I'eflinda-Ia Ott remotivd-la, mas simplesmente 'I"Cline chamadas de [ltenfaO e sug,,'e algumas possibilidades interessantes, o

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6 Veja-se Gianni Vattimo e Pier Aida Ravatti, eds., II Pensiero debote (Milao: Feltrinelli, \983),

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PARTEUM

FILOSOFIA COMO CLENCIA, COMO METAFORA E COMO POLiTICA

PARA ALEM DA FlLOSOFIA CIENTiFICA No nosso seculo, tern sido dadas tres respostas it pergunta de como devemos conceber a nossa rela~ao com a tradi~ao filos6fica ocidentaI, respostas essas que sao acompanhadas por tres concep~6es do objectivo de filosofar. Sao elas a resposta husser!iana (ou «cientffica»), a resposta heideggeriana (ou «poetica») e a resposta pragmatista (ou «polftica»). A primeira resposta e a mais con hecida e era comum a Husser! e aos seus oponentes positivistas. Segundo ela, a filosofia toma como modelo a ciencia e distancia-se relativamente tanto da arte como da polftica. As respostas heideggeriana e pragmatista sao reac~6es a esta conhecida resposta cientffica. Heidegger desvia-se do cientista para 0 poeta. 0 pensador filos6fico e a unica pessoa que se encontra ao mesmo nfvel do poeta. Os progressos dos grandes pensadores tern tao pouco a ver com a ffsica matematica ou a arte de governar como os progressos dos grandes poetas. Pelo contrario, pragmatistas como Dewey viram-se dos cientistas te6ricos para os engenheiros e os assistentes sociais - as pessoas que tentam fazer com que as pessoas se sin tam mais seguras e confortaveis usando a ciencia e a filosofia para 0 conseguirem. 0 heideggeriano pensa que a tradi~ao filos6fica necessita de ser reapropriada pelo facto de ser vista como uma serie de conquistas poeticas: 0 trabalho de Pensadores, pessoas que «nao tern outra escolha a nao ser encon-

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trar palavras para 0 que urn ser ina historia do seu Ser»l. 0 pragmatista pensa que a tradi,ao necessita de ser utilizada da maneira que utilizamos uma caixa de ferramentas. Algumas dessas ferramentas, desses «instrumentos conceptuais» - incluindo alguns que continuam a gozar de urn prestfgio desmerecido - acabarao por nao ter mais utili dade e podem ser deitados fora. Outros pod em ser renovados. As vezes pod em ter de ser inventadas imediatamente novas ferramentas. Enquanto que 0 heideggeriano ve a fe de Husser! «na possibilidade da filosofia enquanto tare fa, isto e, na possibilidade de urn conhecimento universal»2 como urn cientista, matematizando a incompreensao da grandeza da tradi,ao, 0 pragmatista ve-a como uma nostalgia sentimental, uma tentativa de manter vivos antigos lemas e estrategias mesmo depois de ja terem deixado de ter utilidade pratica l . H usserl pensava que a sugestao para que desistissemos do ideal de urn conhecimento filosofico universal, a-historico e fundador, sugestao comum ao pragmatismo e a Nietzsche, era a ultima fase de uma desastrosa «mudan,a que se instalou na viragem do seculo passado na avalia,ao geral das ciencias».4 Segundo 0 seu ponto de vista, «a total visao mundial do homem moderno, durante a segunda metade do seculo XIX, deixou-se determinar pelas ciencias positivas e cegar pela "prosperi dade" que as mesmas produziram» e tal facto, por sua vez, produziu «urn afastamento indiferente das questoes que sao decisivas para uma genufna humanidade».5 Husser! via 0 racionalismo tradicional e 0 cepticismo empirico como dois lados da mesma moeda «objectivista»6. Tentou colo car 1 Heidegger, Nietzsche II (pfullingen: Neske,

1962), 37. Traduzido em Heidegger,

Nietzsche, vol. IV, trad. F. A. Cappuzi (Nova Iorque: Harper and Row, 1982), 7.

2 Husserl, Tbe O'isis of Em'opeon Sriences and T1'lImcendental Pbenomen%gy, trad. David Carr (Evanston: Northwestern University Press, 1970), 17. 3 0 facto de aqui nao discutir 0 marxismo, e de usa-Io, em vez do pragmatismo americana, para rcpresentar a concep~ao «poIftica» da actividade filosofantc, deve-se It conviq:ao de que 0 marxismo uma mistura inconsistente do pragmatismo das «Teses sabre Feuerbach» com 0 cienticisno comum ao marxismo e ao positivismo. A historia do marxismo de Kolakowski demonstra como cada tentativa de tornar 0 marxism a mais pragmatico e menos cienticista tern sido firmemente reprimida pel as instituir;oes que 0 proprio marxisma criau. 4 Ibid., 5. 5 Ibid., 6. 6 Veja-se ibid., 83, sabre Descartes e Hobbes.

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ambos dentro do ambito da sua propria fenomenologia transcendental. Heidegger concordou com Husser! quanto a relativa importancia da distin~ao empirista-racionalista e tam bern quanto aos perigos de uma cultura pragmatica. Mas Heidegger considerava que 0 pragmatismo e a fenomenologia transcendental eram meramente rna is dois produtos da tradi~ao «objectivista». Tentou por tanto 0 repudio pragmatista do «espirito» como a tentativa de Husser! para 0 recuperar dentro da sua propria descri~ao da «metaffsica ocidental». Concordou com Husser! que urn filosofo autonomo com vontade de se libertar de todos os preconceitos [... ] deve ter 0 discernimento de que todas as coisas que toma como garantidas siio preconceitos, que todos os preconceitos sao obscuridades que se desprendem de uma sedimenta~ao da tradi~ao [ ... ] e que tal e verdadeiro mesmo para a grande tarefa e ideia a que se chama «filosofia.»7 Mas Heidegger pensava que nem Husser! nem os pragmatistas eram suficientemente radicais nas suas critic as ao auto-entendimento dos seus antecessores. Desconfiava da tentativa pragmatista de substituir a ideia platonico-cartesiana do «conhecimento universal» pelo sonho de Bacon de controlo maximo sobre a natureza. Mas tam bern desconfiava da tentativa de Husser! de ver a techne galileana como «fundada» em algo «transcendenta!». Para Heidegger, os projectos de «fun dar» uma cultura - quer sobre necessidades human as concretas ou sobre a subjectividade transcendental - era simplesmente Dutra expressao dos «preconceitos» que era necessano veneer.

Embora a avalia~ao de Heidegger acerca dos perigos do nosso seculo se aproximasse rna is da de Husser!, as suas doutrinas filosoficas estavam rna is proximas das de Dewey. Tal como Husser!, Heidegger acreditava que «a crise europeia tinha as suas raizes num racionalismo mal conduzido».8 Mas pensava que uma procura de fundamentos era em si propria urn sintoma deste raciona7 Ibid., 72. 8 Ibid., 290.

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lismo mal conduzido. Sein und Zeit est:! repleto de criticas as doutrinas que Husser! partilhava com Descartes. 0 tratamento que no livro se da ao «conhecimento cientifico objectivo» como uma forma secundaria, forma derivada do Ser-no-Mundo, derivada do uso de ferramentas, e da mesma ordem do baconianismo de D ewey9. A dissolu~ao que Heidegger faz de pseudoproblemas filos6ficos atraves do facto de deixar a pratica social ser tomada como elemento primario e inquestionado, em vez de como explanandum, exempli fica 0 que Robert Brandom chamou «a supremacia ontol6gica do social»lO. Outro ponto em que Heidegger e os pragmatistas coincidem e na profunda desconfian~a das metaforas visuais que ligam Husser! a Pia tao e a Descartes. Husser! e Carnap partilham a tradicional esperan~a plat6nica de ascender a urn ponto de vista a partir do qual se podem ver as inter-rela~6es entre todas as coisas. Para ambos, 0 objectivo da filosofia e 0 desenvolvimento de urn esquema formal dentro do qual cada area da cultura podia ser colocada. Sao ambos fil6sofos daquilo que Hillary Putnam chamou «a visao do olho-de-Deus». 0 termo que Heidegger aplicou a tais tentativas de alcan~ar urn entendimento do tipo divino do dominio da possibilidade, essas tentativas de ter urn compartimento pronto para cad a ocasiao que possa ocorrer, e «0 matematico». Define ta mathemata como «esse "sobre" as coisas que ja sabemos de facto»I1. A procura do matematico, de urn esquema a-hist6rico formal, era, segundo Heidegger, a liga~ao escondida 9 Tal como Hubert Dreyfus eJahn Hangeland explicaram, a reac~ao de Husserl a esta parte de Sein wId Zeit foi a pressuposi~ao de que a zllhanden era tanto a farinha do moinho fenomenologico como a vorbanden, e especificamente que uma Zeug era «alga identica, alga sempre identificavel», e por isso alga que demonstraria uma essencia universal. Veja-se Dreyfus e Raugeland, «Husserl and Heidegger: Philosophy's Last Stand» em Michael Murray, ed., Heidegger and Modern Philosophy (New Haven: Yale University Press, 1978), 222-238 (especialmente a cita~ao de urn manuscrito fragmentario de Husserl intitulado «das ist gegen Heidegger» na p. 233). 10 Robert Brandom, «Heidegger's Categories in Being and Time», The Monist,

vol. 66 (1983), 389. 11 Heidegger, Wbat is a Thing?, trad. Barton e Deutsch (South Bend: Gateway,

1967),74.

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I.).,

entre a fenomenologia husserliana, 0 positivismo carnapiano e a tradi~ao objectivista. A insistencia de Dewey na subordina~ao da teoria a pr:hica, e a sua afirma~ao de que a tarefa da filosofia e quebrar a crosta da conven~ao, manifestam a mesma desconfian~a no ideal contemplativo e nas tentativas de tel' urn lugar preparado a priori para qualquer coisa que possa acontecer. Mas as concep~i5es de Heidegger e de Dewey sobre a filosofia eram, apesar de tudo, muito diferentes. A oposi~ao que partilhavam no que diz respeito ao fundacionalismo e as metaforas visuais tomou form as radicalmente diferentes. Seguidamente, pretendo analisar estas diferen~as segundo dois t6picos: as suas diferentes maneiras de encarar as rela~i5es entre 0 metaf6rico e 0 literal, e as suas diferentes atitudes no que diz respeito a rela~ao enrre a filosofia e a politica. Ao virar-me de Dewey para urn fil6sofo cuja obra me parece ser a melhor afirma~ao actual de uma posi~ao pragmatista - Donald Davidson - espero ser capaz de rrazer ao de cima a rei evan cia de uma teoria da metafora para a critica do fundacionalismo. Ao centrar-me na assimila~ao que Heidegger fez da filosofia para a poesia, pre tendo real~ar a diferen~a entre 0 que chamei de resposta «politica» e resposta «poetica» a questao da nossa rela~ao com a tradi~ao filos6fica.

A METAFORA COMO 0 PONTO DE PARTIDA DA LINGUAGEM Permitam-me iniciar 0 t6pico sobre a metafora fazendo uma curta e dogmatica afirma~ao: existem tres maneiras de juntar uma nova cren~a as nossas cren~as anteriores, que assim nos obrigam a tecer de novo 0 tecido das nossas cren~as e desejos - a saber, a percep~ao, a inferencia e a metafora. A percep~ao modifica as nossas cren~as, acrescentando uma nova cren~a na rede de cren~as ja existentes. Se, pOl' exemplo, eu abrir uma porta e vir urn amigo a fazer alguma coisa chocante, terei de eliminar algumas cren~as anteriores acerca dele e repensar as minhas aspira~i5es em rela~ao a esse amigo. A inferencia modifica as nossas cren~as ao fazer"nos vel' que as cren~as anteriores nos comprometem com uma cren~a que nao tinhamos anteriormente - for~ando-nos desse modo a decidir

i

!

l

se alteramos essas cren,as anteriores au se, peio contrario, exploramos as consequencias da nova cren,a. Par exemplo, se eu verifico, atraves de urn raciocinio com plica do ao estilo de urn policial, que as minhas acruais cren,as me conduzem 11 conclusao de que 0 meu amigo

e urn

assassino, terei de reexaminar essas cren, mas «von An/ang all» pode ser lido como lembrando-nos que 0 Dasein nao possui uma natureza, apenas uma existencia hist6rica. A questao continua a scr se Heidegger anteriormente. na altura em que escreveu Se" e Tempo, realmente pensava que 0 Daseil1 - e nao apenas 0 Dusein ocidental possuia uma natureza que a Daseinallalytik pudesse divulgar, au se queria que a «Da» exprimissc historicidade ja naquela epoca. 28 BT, p. 453; SZ, p. 402. 29 BT, p. 487; SZ, pp. 436-437.

que a analitica do Dasein pode ser 0 que mais tarde se tornou: urn mero escadote. Em Problemas Basicos de Fenomenologia Heidegger diz que «mesmo a investiga,ao ontologica que agora conduzimos e determinada pela sua situa,ao historica». Continua dizendo que: Estas tres componentes do metodo fenomenologico - redu,ao, constru,ao, destrui,ao - aproximam-se no conteudo e devem fundamentar-se na sua pertinencia mutua. A constru,ao em filosofia e necessaria mente destrui,ao, isto e, des-constru,ao [Abbau] de conceitos tradicionais desenvolvidos numa recorrencia historica a tradi,ao ( ... ) Porque a destrui,ao pertence a constru,ao, a cogni,ao filosofica e essencialmente ao mesmo tempo, cogni,ao historica 10. Isto parece uma linha de pensamento proto-derrideana, segundo a qual a filosofia se torna identica a ironia historicista e na qual nao existe espa,o para nostalgia. Mas ha muitas passagens nas quais 0 outro lado do dilema, 0 lado ontologico, parece ser apreendido. Na «Introdu,ao» a Problemas Basicos, da qual acabei de fazer uma cita,ao, Heidegger diz que na nossa epoca, como talvez nunca ate aqui, filosofar tornou-se «barbaro como uma dan,a de S. Vito». Tal aconteceu porque a filosofia contemporanea ja nao e ontologia, mas simplesmente a demand a de uma ,20 - serviria tambern para a lapide de Dickens. Mas Dickens realizou 0 seu servi~o em prol da liberdade human a nao com a ajuda da «feroz indigna~ao» que Swift justa mente atribui a si mesmo, mas com algo mais burgues - lagrimas sentimentais e aquilo a que Orwell chamou «ira generosa». Dickens impressiona-nos mais como urn escritor rna is burgues do que como 0 homem que descreveu os Yahoos* porque se sente rna is confortavel com os seres humanos e deposita neles mais esperan~as. Vma indica~ao deste confarto e 0 facto que Orwell comentou na seguinte passagem: Em Oliver Twist, Hard Times, Bleak House, Little Do,.,-it, Dickens atacou as institui~iies inglesas com uma ferocidade nunca dantes abordada. No entanto, conseguiu faze-lo sem se 20 Tradw:;ao de Yeats «, .. imitare si poteris, strenuum pro virili libertatis vindicem.» * Rap imagin;iria de criaturas grotescas que se assemelham a seres humanos, retratadas por Jonathan Swift em As Viagens de Gullivu', (N. E.)

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1

tamar odiado, e, mais do que ista, as proprias pessoas que atacou absorveram-no tao completamente que se tamou ele proprio uma institui~ao nacional 21 .

o ponto importante e que Dickens nao se tomou odiado. Penso que isto se ficou a dever parcialmente ao facto de ele nao ter atacado nada tao abstracto como a «humanidade como tal», ou a epoca ou a sociedade em que viveu, mas antes casos concretos de pessoas especificas ignorando 0 sofrimento de outras pessoas especificas. Deste modo, conseguiu falar como «urn de nos» - como a voz de alguem que por acaso reparou em algo em rela~ao ao qual se esperaria que 0 resto de nos reagisse com semelhante indigna~ao assim que nisso reparasse 22 . Dickens era, como diz Orwell, «urn antinomiano bern humorado», uma frase que se aplicaria igualmente a Rabelais, Montaigne ou Cervantes, mas dificilmente a Lutero ou a Voltaire ou a Marx. 21 George Orwell, Collected Essays, JOll1'J10lism and Letten (Harmondsworth: Penguin, 1968), vol. I, pp. 414-415. No seu iluminado Tbe Politics of Litermy repmation: Tbe Making and Claiming of 'St. George' On»ell (Oxford: Oxford University Press, 1989), John Rodden notou que neste ensaio Orwell «identificou-se directarncnte com Dickens» (p. 181) e que a identificac;ao funcionou, no sentido em que «0 que Orwell escreveu sabre Dickens [na ultima frase da passagem que citei] em breve se aplicou a si mesmo» (p. 22), Uma das facetas da identificac;ao foi 0 patriotismo comum a ambos as escritores - urn sentido de identificac;ao com a Inglaterra e a sua hist6ria que cortou qualquer teoria sobre 0 lugar da Inglaterra na historia universal. Do ponto de vista do teorizador, 0 patriotismo e invariavelmente suspeito, tal como 0 e qualquer leal dade a urn mero sector espa~o-tempo. Mas para pessoas como Orwell, Dickens e Kundera, 0 unico substituto do patriotismo e a 1iga~ao a qualquer outro sector espacio-temporal, a historia de algo que nao c urn pafs - ex., a historia do romance europeu, «0 desvalorizado legado de Cervantes». 22 Orwell (Collecud Essays I: 460) diz que «Mesmo 0 miliomirio sofre de urn vago sentimento de culpa, como um cao a comer uma perna de carneiro roubada. Quase toda a gente, independentemente da sua conduta, responde emocionalmente a ideia de irmandade humana. Dickens deu voz a urn codigo que era, e que de um modo geral ainda c, acreditado, mesmo por pessoas que 0 violaram. De outro modo e diffcil explicar porque e que tanto podia ser lido pelas classes trabalhadoras (alga que nao aconteceu a mais nenhum romancista da sua estatura) como enterrado na abadia de Westminster.» Se tivessemos perguntado a Dickens se achava esse ideal e esse codigo inerente a natureza humana, au antes urn desenvolvimento historicamente contingente, responderia que nem sabia nem estava intercssado em saber. Esse e 0 tipo de questao que «a sabedoria do romance» rejcita com sem interesse e sem objectivo.

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Por isso, penso que a expressao de Orwell «ira generosa>, significa algo como «ira sem maida de porque acredita que 0 erro Ii ignorancia e nao maldade, acredita que temos apenas de reparar no mal para ele ser remediado». Este foi 0 tipo de ira mais tarde encontrada em Martin Luther King, Jr., mas nao 0 tipo de ira encontrada nos padres ascetas. E que estes ultimos acreditam que a transforma~ao social nao Ii uma questao de mutuo ajustamento, mas sim de re-cria~ao - que para tornar as coisas melhores temos que criar urn novo tipo de ser humano, que esteja consciente da realidade e nao da aparencia. A sua ira nao generosa no sentido em que se destina nao a uma falta de compreensao de pessoas especfficas em rela~ao a outras pessoas especfficas, mas antes a urn dlifice ontologico comum quer as pessoas em geral quer, pelo men os, a todas as da lipoca presente. A generosidade da ira de Dickens, de Stowe e de King torna-se evidente na sua suposi~ao de que as pessoas apenas necessitam de virar os olhos para as pessoas que estao a ser magoadas, notar os detalhes da dor que estao a sofrer, em vez de necessi tarem de ree~truturar todo 0 seu aparelho cogni tivo. Como alega~ao empirica, esta suposi~ao e frequentemente falsificada. Como atitude moral, mal'Ca a diferen~a entre pessoas que contam historias e pessoas que constroem teorias sobre 0 que esta para la da nossa imagina~ao presente, porque esta para la da nossa lingua gem presente. Penso que quando Orwell identificou uma capacidade para a ira generosa como a marca de «uma inteligencia livre», estava a prenunciar 0 mesmo tipo de oposi~ao entre 0 teorico e 0 romancista que eu tenho tentado desenvolver neste ensaio. Anteriormente, afirmei que teoricos como Heidegger viam a narrativa sempre como uma segunda hipotese, uma propedeutica para urn entendimento de algo mais profunda que 0 detalhe visivel. Romancistas como Orwell e Dickens estao inclinados para ver a teoria sempre COffiO uma segunda hipotese, nunca rna is que urn auxiliar para urn objectivo especffico, 0 objectivo de contar melhor uma historia. Sugiro que a historia da transforma~ao social no Ocidente moderno mostra que a ultima concep~ao da rela~ao entre narrativa e teoria Ii a mais produtiva. Dizer que Ii mais produtiva Ii apenas dizer que, quando pesamos 0 bern e 0 mal que os romancistas sociais fizeram contra 0 bern e 0 mal que os teoricos fizeram, damos connosco a desejar

e

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que houvessem mais romances e menos teorias. Desejamos que os lfderes de revolu~6es bern sucedidas tivessem lido menos do tipo de livros que lhes deram ideias gerais e mais do tipo de livros que lhes deram uma capacidade de se identificar imaginativamente com aqueles a quem iam governar. Quando lemos livros como a historia do marxismo de Kolakowski, compreendemos porque e que 0 teorizador do Partido, 0 homem responsavel pela «linha ideologica correcta», tern sido sempre, com excep~ao do proprio !ider maximo, 0 membro rna is temido e odiado do Comite Central. Isto pode lembrar-nos que Guzman, 0 lfder do movimento quase-maoista Sendero Luminoso do Peru, escreveu a sua tese sobre Kant. Pode tambem lembrar-nos que a resposta de Heidegger it prisao dos seus colegas sociais-democratas em 1933 resumiu-se a: «Nao me incomodem com detalhes mesquinhos.» o que e importante quanto aos romancistas quando comparados com os teoricos e que sao bons no que diz respeito a pormenores. Esta e outra razao pol' que Dickens e urn paradigma util do romance. Citando Orwell mais uma vez: «A marca eminente e inconfundivel da escrita de Dickens e 0 detalhe desnecessd1'io»; «Ele e todo fragmentos, todo detalhes - uma pessima arquitectura, mas gargulas maravilhosas - e nunca melhor do que quando esd a construir alguma personagem que posteriormente sera for~ada a agir inconsistentemente.»23 Se tornamos Dickens paradigmatico do Ocidente, como espero que os meus africanos e asiaticos imaginarios fariam, entao veremos que 0 rna is instrutivo sobre a historia recente do Ocidente e a sua capacidade cada vez maior de tolerar a diversidade. Visto de outro modo, esta e uma capacidade crescente de tratar a aparente inconsistencia nao como algo a ser rejeitado como irreal ou mau, mas como uma marca da inadequa~ao dos nossos actuais vocabularios de explica~ao e adjudica~a024. Esta mudan~a no nosso tratamento da inconsistencia aparente esta correlacionada com uma crescente capacidade de nos sentirmos confortaveis com uma variedade de diferentes tipos de pessoas e, 23 Veja-se Onvell, Collected Essnys, I: 450, 454, para as passagens citaclas. 24 Argumcnto em «Freud e a Reflexao Moral» (abaixo) que a crescente popularidade das expJicac;6es freudianas para aetos refractarios tude mudada em re1ac;ao aaparcnte inconsistencia.

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e urn exemplo desta ati-

consequentemente, com uma crescente vontade de deixar as pe5soas em paz para seguirem as suas proprias luzes. Esta vontade est'd reflectida no aumento de democracias burgesas pluralistas, 5Dciedades nas quais a politica se torna uma questao de pedidos sentimentais de alivio do sofrimento, em vez de pedido5 morais de grandeza. Po de parecer estranho atribuir este tipo de vontade ao recente Ocidente - uma cultura frequentemente acusada, com muita razao, de ser racista, sexista e imperialista. Mas e obviamente tambern uma cultura que se preocllpa muito com 0 facto de ser racista, sexista e imperialista, tal como com 0 facto de ser eurocentrica, paroquial e inte/ectualmente intolerante. E uma cultura que se tornou muito consciente da sua capacidade de intolerancia assassina e daf talvez rna is cautelosa em rela~.

T

aparece; 0 ininteligivel reprimido reaparece como a condi,ao do inteligivel. Derrida atinge 0 seu melhor quando conta estas tragicomedias. Mas esta segunda op,ao tern uma desvantagem: lembrar a filosofia, con tar esta hist6ria vezes e vezes sem fim, e estar prestes a fazer 0 que os fil6sofos fazem - propor algum tipo de generaliza,ao do tipo «A tentativa de formular urn vocabuhirio unico, total e fechado ira necessariamente ... » Derrida corre obviamente 0 perigo de fazer isto quando produz uma nova giria metalinguistica, cheio de palavras como trace e differance, e utiliza-o para dizer coisas que soam a Heidegger como «e apenas com base na differance e na sua "hist6ria" que supostamente podemos saber quem e onde "n6s" estamos» (MP, p. 7). Apenas na medida em que tenta fornecer argumentos para teses como «A escrita e anterior a fala» ou «Os textos desconstroem-se a si mesmos» todos esses slogans que os seus seguidores estao tentados a encarar como «resultados da interroga,ao filos6fica» e como fornecendo bases para urn metodo de leitura - e que trai 0 seu projecto. As piores partes de Derrida sao aquelas em que come,a a imitar 0 que mais odeia e come,a a afirmar que pode fornecer «analises rigorosas». Os argumentos apenas funcionam se 0 vocabuhirio no qual se declaram as premissas e partilhado pelo orador e pelo publico. Fil6sofos tao originais e importantes como Nietzsche, Heidegger e Derrida estao a forjar novas maneiras de falar, nao realizando surpreendentes descobertas filos6ficas sobre as antigas. Em resultado, nao serao provavelmente muito bons na argumenta,ao 12 . 12 Culler, no seu livre mencionado anteriormente, teota preservar alguns dos argumentos de Derrida (e, infelizmente, urn dos pi ores argumentos de Nietzsche) e tern sido criticado por Searle por faze-Io (veja-se «The World

Turned Upside Down», New York Review of Books, 27 Out. 1983, pp. 74-79), Penso que Searle tern razao em dizer que muitos dos argumentos de Derrida (para nao mencionar alguns de Nietzsche) sao horrfveis. E bastante perspicaz em reparar que muitos deles dependem da suposi~ao «que a menos que se consiga fazer uma distin~ao rigorosa e precisa nao e realmente uma distinC;ao». ~1as creio que Searle simplifica de mais a situac;ao dialectica e, por isso, nao com preen de e subestima tanto 0 livro de Culler como 0 projecto de Derrida. Diz que Derrida partilha com Edmund Husser! a suposi~ao de que a menos que se estabelec;am «funda~6es [de conhecimento];.;. filos6ficas, «algo esta perdido ou amcac;ado ou prejudicado ou posto em questao» (p. 78). Mas Derrida nao esta interessado na demanda de fundac;6es de conhecimento,

U rna das op,6es do dilema que tenho vindo a esbo,ar consiste em nao dizer nada sobre a filosofia, mas antes mostrar como fica a literatura depois que e libertada da filosofia. A outra op,ao do dilema consiste em superar os fil6sofos no seu pr6prio jogo encontrando uma critica geral da sua actividade - algo camparavel a critica de Parmenides ao Caminho da Opiniao, ou a de Espinosa as ideias confusas, ou a de Kant a procura do incondicionado, ou a de Ayer em rela,ao a inexpressividade cognitiva. 0 dilema pode ser resumido dizendo que qualquer nova tentativa de escrita que nao possua a1'Chai e nao possua telos, nao possuira tam bern hypokeimenon, nao possuini tema/assunto. Assim, a fortiori, nao nos dini nada sobre a filosofia. Ou entao, se nos disser alguma coisa sobre a filosofia, tera archai, nomeadamente, a nova giria metafilos6fica, nos termos da qual descrevemos e diagnosticamos 0 texto da filosofia. Ted tam bern urn telos, englobando e distanciando esse texto. exccpto como urn exemplo pontual da ideia de filosofia como urn tipo de ciencia universal que pode «ordenar» todas as outras actividades culturais descrevendo-as num vocabuIario especialmente claro e transparente - urn vocabuhirio que agarre firmemente 0 mundo tarnanda passivel uma precisao e rigor intrfnsecos (em oposir;ao a simplesmente torna-Io passivel de resolver problemas especificos surgidos numa conjuntura hist6rica contingente; veja-se n.o 7 acima). apenas esta concepr;ao de filosofia que esta pressuposta no elogio muito hus-

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serliano de Searle da «clareza, rigor, precisao, amplitude teoretica, e acima de tuda, conteudo intelectual» que acredita caracterizar a presente «idade de ouro na filosofia da lingua gem», realc;ada pelo trahalho de «Chomsky e Quine, de Austin, Tarski, Grice, Dummett, Davidson, Putnam, Kripke, Strawson, Montague, e uma duzia de outros escritores de primeira categoria». Quando Searle diz que este trahalho e «escrito num nlvel que e largamente superior aquele no qual a filosofia desconstrutivista e escrita», (p. 78) esta a ten tar precisamente 0 tipo de apoteose de problemas de manuais actualmente conhecidos, e dos estilos prevalecentes dentro de uma matriz disciplinar local, que Nietzsche e Derrida tern razao em troc;ar. Esd a fazer exactamente 0 mesmo tipo de suposic;ao que Derrida fez na sua discussao de Austin (veja-se n.o 3 acima), nomeadamente que um autor trabalhando numa tradic;ao desconhecida tern necessaria mente de estar a tentar (e a fracassar) fazer 0 tipo de coisa que autores mais conhecidos para nos estao a fazer. A ideia de que existe alguma coisa chamada «conteudo intelectual», POSSlvel de medir atraves de padroes universais e a-hist6ricos, liga Searle a PIa tao e a Husserl, e separa-o de Derrida. A fraqueza do tratamento de Searle a Derrida e que 0 encara como praticando filosofia da lingua gem amadora, em vez de como colocando questoes metafilos6ficas sobre 0 valor de tal filosofia.

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Assim, agarrar a segunda op~ao produzini mais urn fechamento filosofico, mais urn metavocabuhirio que reclama urn estatuto superior, enquanto que agarrar a primeira nos dani abertura, mas mais abertura do que a que queremos. A literatura que nao se liga a nada, que nao tern assunto nem tema, que nao tern uma moral escondida na manga, a que Ihe falta urn contexto dialectico, e apenas tagarelice. Nao se pode ter urn cenario sem uma figura, uma margem sem uma pagina de texto.

4. DERRIDA E HEIDEGGER Derrida esd profundamente consciente deste dilema. A melhor maneira de ver como ele 0 confronta e ve-Io lutar para se diferenciar de Heidegger. Derrida pensa que Heidegger e 0 melhor exemplo de alguem que tentou, e falhou, fazer 0 que a proprio Derrida quer fazer - esc rever sobre a filosofia desfilosoficamente, faze-Io a partir de fora, ser urn pensador pos-filosofico. No fim, Heidegger decidiu que «ainda prevalece uma considera~ao pela metafisica. Por isso, a nossa missao e parar toda a conquista e deixar a metaffsica entregue a si propria».13 Mas Heidegger nunca conseguiu seguir urn tema: a necessidade de veneer a metafisica. Uma vez que esse tema se demonstrou auto-ilusorio, ficou sem palavras. Heidegger estava tao obcecado pela necessidade de acordar do sonho da filosofia, que 0 seu trabalho se tornou numa insistencia monotona de que toda a gente, mesmo Nietzsche, 0 tinha sonhado. Derrida teria, penso eu, concordado com esta linha de critica a Heidegger, mas quereria leva-Ia mais lange. Segundo 0 seu ponto de vista, as palavras magicas de Heidegger, palavras como Sein e Ereignis e Aletheia, sao tentativas de transportar 0 extase climatico do sonho para a vida, de obter a satisfa~ao do fechamento filosofico atraves da retirada para 0 puro som das palavras, palavras as quais nao e 0 usa que da senti do, mas que possuem for~a precisamente por falta de uso. Deste modo, Derrida cita Heidegger como 13 Heidegger, 011 Time and Beillg, trad.Joan Stambaugh (Nova Jarque, 1972), p. 24.

dizendo: «"De modo a nomear a natureza essencial do Ser ... , a linguagem teria de encontrar uma so palavra, a palavra unica.',»14 Derrida responde dizendo: «Nao hayed nenhum nome singular, mesmo se ele fosse 0 nome do Ser. E temos de pensar nisto sem nostalgia.» Continua acrescentando que temns de 0 fazer sem «0 outro lado da nostalgia, 0 que eu chamo esperanfa heideggeriana» (MP, p. 27). Nesta passagem, e noutras partes, Derrida ve-se a si mesmo nos ombras de Heidegger, vendo mais alem:

o que tentei fazer nao teria sido possivel sem a abertura das perguntas de Heidegger [... ] nao teria sido possivel sem a aten~ao ao que Heidegger chama a diferen~a entre 0 Ser e os seres, a diferen~a ontico-ontologica tal como, de cerra maneira, permanece impensada pela filosofia. Mas apesar desta duvida relativamente ao pensamento de Heidegger, ou antes devido a ele, tento localizar no texto de Heidegger [... ] os sinais de uma perten~a it metaffsica, ou ao que ele chama ontoteologia. [POS, pp. 9-10] Derrida considera que Heidegger nunca foi alem de um agrupamento de metaforas que parrilhou com Husser!, 0 agrupamento que sugere que bem no fun do estamos todos em posse da «verdade do Ser», que simplesmente necessitamos de ser record ados do que esquecemos, recordados por essas palavras «mais elementares» que foram salvas da metaffsica para 0 pensamento 1S . Esta no~ao de que existe algo chamado «a verdade do Ser» parece a Derrida 0 elo escondido entre a tradicional demanda filosofica de um vocabulario total, unico e fechado, e a demanda propria de Heidegger de palavras magicas e unicas l6 . 14 Vcja-sc Heidegger, Early Greek Thinking, trad. David Farrell Krell e Frank A. Capuzzi (Nova rorque, 1975), p. 52. 15 Hcidcgger, Being and Time, trad. John Macquarrie e Edward Robinson (Nova

Iorque, 1962), p. 262. 16 Dcrrida reconhece, no entanto, que Husserl estava errado ao interpretar Se,. e Tempo «como um dcsvio antropol6gico da fenomcnologia transcendental» e que Heidegger, no seus uitilllos trabalhos, renunciou implicitamente a sua inicial afirma~ao quasc-fenomenologica de estar a desenvolver «urn vago media entendimento do Ser» humano universal (MP, pp. 118,124),

Derrida diagnostica em Heidegger «0 domfnio de uma completa metaforia de proximidade, de presen~a simples e imediata, uma metaforia associando a proximidade do Ser com os valores de vizinhan~a, abrigo, lar, servi~o, guarda, voz e escuta» (MP, p. 130). Heidegger pode ter renunciado as habituais metaforas platonicas de visao em favor de metaforas auditivas de chamamento e escuta, mas esta mudan~a, ere Derrida, na~ escapa ao cfrculo de no~6es inter-explidveis que liga a tradi~ao ontoteologica a sua crftica insuficientemente radical. «A valoriza~iio da linguagem falada», diz Den'ida, «e constante e massiva em Heidegger» (MP, p. 132 n.O 36). Por isso, Derrida por vezes tenta descrever a sua propria contribui~ao em termos da diferen~a entre as meciforas comuns aver e a ouvir e aquelas que podem ser constitufdas em torno de escrita 17 . A descri~ao de Derrida de Heidegger sugere a seguinte imagem: 0 jovem Heidegger descobre as semelhan~as fatais entre Pia tao e Hegel (apesar do historicismo de Hegel); 0 Heidegger mais velho descobre as semelhanps fatais entre aqueles dois, Nietzsche e si proprio na fase inicial. Derrida ve as semelhan~as fatais entre os quatro e 0 Heidegger mais tardio. Assim encontramos Hegel, Nietzsche, Heidegger, Derrida e comentadores pragmaticos de Den'ida como eu acotovelando-se pela posi~ao de primeiro antiplatonista verdadeiramente radical da historia. Esta tentativa urn pouco semelhante a uma farsa de ser eternamente nao platonico produziu a suspeita que, tal como tantas bonecas de corda, os filosofos deste seculo estejam ainda a realizar as mesmas enjoativas invers6es dialecticas que Hegel fez ate a morte em Phenomenology, as invers6es a que Kierkegaard gostava de chamar «habilidades caninas». A unica diferen~a pode estar no facto de agora toda a gente estar a recuar cad a vez mais do conhecimento absoluto e do fechamento filosOfico, em vez de se aproximaram cad a vez mais. 17 Isto e, penso eu, uma extravagancia da sua parte. Tal como e claro em «Limited Inc», tudo a que sc resume «a prirnacia da cscrita» e aafirma~ao de que certas caracteristicas universais de todo 0 discurso sao vistas mais claramente na caso da escrita do que no caso da [ala. Considero agora que tomci 0 contraste fala-escrita demasiado seriamentc num ensaio sabre Derrida que escrevi ha alguns an05 atras (veja-sc «Philosophy as a Kind of Writing: An Essay on Derrida», incluido em Consequences of Pmgmatism).

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Derrida esta bern consciente do perigo de, apesar desta diferenl;a, podermos (como Foucault disse) estar condenados a encontrar Hegel esperando pacientemente no fim da estrada em que caminhamos (mesmo se andarmos para tras). Mas pensa que encontrou uma maneira de sair do caminho. Faz uma distinl;ao entre a forma de Heidegger de lidar com a tradil;ao, que descreve como «usando contra 0 edificio os instrumentos ou pedras disponiveis em casa», e a tentativa de «mudar de terreno de uma maneira descontinua e irritante, colocando-se brutalmente fora e afirmando uma ruptura e diferenl;a absolutas» (MP, p. 135). Nenhuma delas resultara por si propria. A minha anterior descril;aO do dilema que Derrida enfrenta po de ajudar-nos a perceber porque nao. Na primeira alternativa, nao podemos evitar continuar uma velha conversa, com 0 mesma archai, telos, e assim par diante. Na segunda alternativa nao podemos dizer nada sobre a filosofia, porque perdemos 0 contacto com 0 nosso objecto. Nao podemos afirmar que estamos a falar sobre a tradil;ao filosofica, se nenhuma das palavras que utilizamos se encontra em qualquer relal;aO deduzivel com qualquer palavra utilizada por essa tradil;aO. E ou glosamos 0 que a tradi~ao disse, e assim continuamos pagina abaixo, ou nao 0 fazemos e, assim, estamos nas margens, ignorando a filosofia e sen do ignorados por ela. Derrida prop6e que nao nos coloquemos entre as alternativas deste dilema, mas antes que as un amos numa helice dupla interminavelmente alongada. Diz que «uma nova escrita tern de tecer e intercalar estes dois motivos de desconstru~ao. 0 que quer dizer que temos de falar varias lingua gens e produzir varios textos ao mesmo tempo» (MP, p. 135). Dificilmente se torna claro porque e que isto ajudaria. 0 melhor palpite .que tenho sobre 0 que Derrida pensa que ajudaria e que ele quer invocar a distin,ao entre ligafoes dedllziveis entre frases, as liga~6es que dao as palavras usadas nessas frases 0 seu significado, e associa,oes niio-dedllziveis entre palavras, associa,6es que nao estao dependentes do seu uso em frases 18

is Deixem-me tentar clarificar a distin~ao com

urn exemplo. Nao seremos capazes de utilizar a palavra «angulo» correctamente, de saber 0 significado dessa paiavra, a menos que possamos tambem utilizar muitas palavras como «linha», «quadrado», «cfrculo», etc. Mais especificamente, 0 nosso conhecimento do significado de «angula» consiste largamente na nossa capacidade de saltar

Como Heidegger, parece pensar que se atendermos apenas a primeira ficaremos encurralados na nossa actual forma de vida ontoteol6gica. Desse modo, ele poderia deduzir, temos de nos libertar do significado, pensado da forma Wittgenstein-Saussure como um jogo de diferen~as deduziveis, para algo semelhante ao que Heidegger chamou «for~a», 0 resultado de um jogo de diferen~as nao-deduziveis, 0 jogo de sons - ou concomitantemente com a mudan~a do f6nico para 0 escrito, 0 jogo de caracteristicas passiveis de serem inscritos, de quiragrafia e tipografia. A distin~ao entre estes dois tipos de jogo de diferen~a e a distin~ao entre 0 genera de capacidades que necessitamos para escrever uma gramatica e um lexico de uma linguagem, e 0 genera de que necessitariamos para fazer anedotas nessa linguagem, para construirmos metaforas nela, ou para escrever nela num estilo notavel e original, em vez de simplesmente escrever claramente. A clareza e transparencia procuradas por metafisicos machistas argumen ta tivos pode ser encarada como uma forma de insinuar que apenas as liga~5es deduziveis e que interessam, porque apenas essas sao relevantes para argumenta~ao. Segundo este ponto de vista, as palavras interessam apenas porque com elas fazemos praposi~5es, e assim argumentos. Inversamente, dentra do «quadra de referencia» de Hartman « ... em que as palavras se destacam como palavras (mesmo como sons»>, elas interessam mesmo que nao sejam utilizadas numa frase no indicativo. A distin~ao entre liga~5es deduziveis e associa~5es nao deduziveis e, no entanto, tao indistinta como a distin~ao entre uma palavra e uma frase, ou entre 0 metaf6rico e 0 literal. Existe um continuo entre metaforas tao mortas que mais valia serem incluidas num dicionario como sentidos «litera is» alternativos e metaforapidamente da premissa «Esta a urn angula» para as conclusoes «Esta cnde

varias linhas se encontram», «Esta a urn canto», etc. Mais uma vez, temos de ser capazes de saltar de

«E urn ci'rculo» para «Nao tern angulos». Terfamos no

entanto entendido tanto a uso como a significado mesmo se 0 nosso omido Fosse muito duro para notar as associa~6es nao deduzfveis de «angula», «lnglaterra», «anjo», «anglicanos», etc. Podemos fazer deduc;6es nlpidas tanto em ingles como em latim e ainda assim nao entender a piada de, em 1066 and All That, 0 comentario do Papa aos alunos ingleses (