Elites industriais e democracia: hegemonia burguesa e mudança política no Brasil

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Elites Industriais e Democracia (Hegemonia burguesa e mudança política no Brasil)

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BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Série: Sociologia Vol. n9 13

Coordenadores: Braz José de Araújo Eurico de Lima Figueiredo Conselho Editorial: Charles Pessanha Evaristo de Moraes Filho Luís Antônio Machado da Silva Ruben Oliven

1979 Edição com base na versão modificada da tese em inglês National In­ dustrial Elites and lhe State in Post-64 Brazil: Inslitutional Mediations and Political Change, Ph.D. Dissertation The University of Michigan, Ann Arbor, 1978. - Traduzida ao português por Patrick Burglin e revista pelo autor.

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por EDIÇÕES GRAAL Ltda. Rua Hermcnegildo de Barros, 31-A - Glória - RJ. CEP: 20.241 - Fone: 252-8582 Copyright © by Renato Raul Boschi

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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RENATO RAUL BOSCHI

ELITES INDUSTRIAIS E DEMOCRACIA

(Hegemonia Burguesa e mudança política no Brasil)

Traduzido por Patrick Burglin

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□ Fundador: MAX DA COSTA SANTOS

CAPA : Sônia Maria Goulart •

Ficha Catalográfica

CIP-Brasil. Catalogaçâo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B752e

Boschi, Renato Raul. Elites industriais e democracia: hegemonia burguesa e mudança política no Brasil / Renato Raul Boschi; tra­ dução de Patrick Burglin. - Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. (Biblioteca de Ciências sociais; v. n. 13)

Tradução de: National Industrial Elites and the State in Post-1964: Brazil Institutional Mediations and Political change Apêndice Bibliografia 1. Brasil - Política econômica 2. Brasil - Política e go­ verno 3. Classe média - Brasil 4. Capitalismo I. Título II. Série

79-0822

CDD - 320.981 301.441098 CDU - 32(81) 323.32(81)

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índice

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APRESENTAÇÃO .... AGRADECIMENTOS i

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INTRODUÇÃO

PARTE I

ABORDAGEM TEÓRICA E CONTEXTO HISTÓRICO CAPÍTULO I

ABORDAGEM TEÓRICA: ESTADO E SOCIEDADE DE UMA PERSPECTIVA INTEGRADA: Definindo o Problema: Estado e Sociedade como uma Dicotomia Analítica Estado e Sociedade no Brasil: Uma Avaliação Crítica de Contribuições Recentes Especificando as Relações Estado/Sociedade: A perspectiva do setor privado frente ao Estado Conclusões: Considerações Teóricas Quanto às Noções de Poder e Mudança Política CAPÍTULO II ELITES EMPRESARIAIS E A CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA (1930-1964) ...

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Introdução 1930-1945: Emergência da Indústria e as Bases Políticas para o Capitalismo Industrial no Brasil 1945-1964: A Elite Industrial e o Projeto de Industrialização Autônoma (O Nacionalismo Reconsiderado) Conclusões PARTE II AS ELITES INDUSTRIAIS NACIONAIS NO BRASIL PÔS-1964

CAPÍTULO III AS EMPRESAS NACIONAIS NO CONTEXTO DE UMA ECONOMIA INTERNACIONALIZADA: A DÉCADA DE 1970 Burguesia NACIONAL ou BURGUESIA Nacional? (Discussão Preliminar Sobre a Transição da Década de 1960) Empresas Nacionais, Estrangeiras e Estatais: Uma Análise das Maiores Firmas Industriais na Economia Brasileira da Década de 1970 Conclusões

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CAPÍTULO IV AS ELITES INDUSTRIAIS NACIONAIS E O ESTADO NA DÉCADA DE 1970: PAPEL POLÍTICO, VALORES E PERCEPÇÃO DA MEDIAÇÃO DE INTERESSES 131 Suposições Iniciais e Metodologia Fragmentação, Ausência de Hegemonia e Burguesia Periférica Reconsideradas Os valores Políticos da Elite Industrial e sua Percepção do Processo Político na Década de 1970 Percepção das Mediações dc Interesses Conclusões

CAPÍTULO V A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO DAS INDÚSTRIAS DE BASE (ABDIB): UM ESTUDO DE CASO DE MEDIAÇÃO DE INTERESSES ..................... 181 Introdução Caracterização do Setor de Bens de Capital Sob Encomenda O Padrão de Atuação da ABDIB como Grupo de Interesse ao Longo do Tempo: 1964-1976 Observações Finais: Mudança Política sob Reexame

CONCLUSÃO .

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BIBLIOGRAFIA

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LISTA DE TABELAS

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Distribuição Percentual das Indústrias Paulistas por Vo­ lume de Capital e Número de Empregados, 1930 Distribuição Percentual das Maiores Empresas na Econo­ mia Brasileira por Origem do Capital e Ramos de Ativi dade Industrial Segundo o Valor do Patrimônio Líquido, 1974 .................................................... Ordenação das Maiores Empresas na Economia Brasilei­ ra Segundo o Valor do Patrimônio Líquido, por Ramos de Atividade Industrial e Origem do Capital, 1974 Distribuição (em Números Absolutos) das Maiores Em­ presas Estatais por Ramos Selecionados da Atividade In­ dustrial e Valor do Patrimônio, 1974 Distribuição Percentual das JVIaiores Empresas Estrangei­ ras por Ramos de Atividade Industrial e Valor do Patri­ mônio Líquido, 1974 *............................. Distribuição Percentual das Maiores Empresas Nacionais por Ramos de Atividade Industrial e Valor do Patrimônio Líquido, 1974 Distribuição Percentual das Maiores Empresas por lucro Líquido/Número de Empregados em Ramos Selecionados de Atividade Industrial Taxa de Crescimento do Patrimônio Líqifido para as Dez Maiores Empresas Estatais, Nacionais e Estrangeiras na Economia Brasileira, 1970-1974 Distribuição Percentual do Patrimônio Líquido das Maiores Empresas Industriais por Origem do Capital e Setores da Atividade Industrial, 1974 Valor Médio (em CrS 1.000.000,00) do Patrimônio Líqui­ do e N úmero de Empresas por Origem do Capital e Selo res da Atividade Industrial, 1974 Distribuição da Liderança dos Empresários Industriais Nacionais por Setor da Atividade Industria) e Auto-

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Percepção como entrevistado 141 Distribuição das Empresas Envolvidas no Estudo de Eli­ tes Industriais por Data de Fundação e Setor da Ativida-' de Industrial ............................ 150 Associações Extra-Corporativas da Indústria Brasilei­ ra, 1978 ............... 190 Filiados à ABDIB por Localização Regional e Origem Nacional .................................................................................. 192 Número de Empresas Representadas pela ABDIB (19641977) 193 Participação de Capital Estrangeiro entre os 114 Associa­ dos da ABDIB (em Milhões de Cr$) ;................... 194 Participação da Indústria Nacional de Bens de Capital sob Encomenda no Atendimento à Demanda Interna .;’ 195 Distribuição das Atividades da ABDIB em Seis Variáveis, 1964-1976 200 Conteúdo das Atividades da ABDIB por Ano, 19664-1976 202 Distribuição das Atividades da ABDIB por Agências da Administração Pública, 1964-76 (% e Números Absolu­ tos) . 204 Atividades da ABDIB por Tipo de Agência e Períodos Governamentais (1964-76) .............................. 205 Padrão de Atuação da ABDIB: Tipo de Contatos por Es­ feras da Administração Estatal (1964-1976) 206 Proporção de Demandas Localizadas, por Ano 207 Atividades da ABDIB: Grau de Êxito por Ação Localiza­ 207 da vs. Dispersa-(1964-1976) Atividades da ABDIB: Grau de Êxito por Tipo de Agên­ 208 cia (1964-1976) CACEX: Número de “Acordos Setoriais” Aprovados e Percentagem da Participação Nacional sobre o Volume 211 Total de Investimentos por Ano (1968-1976) FINAME: Número de Operações Financeiras Aprova­ das, Valor em Bilhões de Cruzeiros, e Aumento Percen­ 212 tual (1969-1976) Demandas Econômicas e Políticas dos Empresários Atra­ vés dos Meios de Comunicação: Jornal do Brasil, 1977 ... 215


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ELITES EMPRESARIAIS E A CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA (1930-1964)

Introdução

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O propósito básico do presente capítulo é o de esclarecer a parti­ cipação burguesa na criação de condições institucionais favoráveis à expansão do capitalismo industrial no Brasil. Muito tem sido dito na literatura acerca da transformação histórica da sociedade brasileira de 1930 até os dias atuais como sendo o processo de “revolução bur­ guesa” (Fernandes 1975). No entanto, a não ser numa análise recente (Cerqueira 1977), muito pouco tem sido de fato esclarecido acerca de como a burguesia contribuiu para a passagem de uma economia agro-pexportadora para a sociedade industrial avançada da década de 1970 no Brasil.

Nosso argumento geral neste capítulo é o de que, contrariamen­ te ao que se tem sugerido em análises anteriores referentes ao tópico da participação burguesa, os grupos industriais nacionais tem-se mostrado bastante ativos na promoção das condições institucionais básicas para a expansão capitalista no Brasil. Apesar da dependência dos grupos industriais nacionais em relação ao Estado, os empresá­ rios puderam estabelecer um estilo de interação entre os setores privado/público abrindo um espaço à participação direta em questões53

chave relacionadas aos seus interesses enquanto classe. Essas ques­ tões referem-se, genericamente, às possibilidades de acumulação de capitai para a promoção do crescimento industrial. Examinaremos a participação burguesa ao longo do tempo em termos de três áreas de problemas, todas as quais referem-se às con­ dições para a acumulação de capital: 1) a posição dos empresários frente à classe trabalhadora; 2) suas posições frente à intervenção es­ tatal na economia, do ponto de vista do controle burocrático do Es­ tado sobre a economia e da expansão do Estado como agente produ­ tivo e 3) as posições dos empresários quanto ao capital estrangeiro. As áreas de problemas acima mencionadas aparecem simulta­ neamente em diferentes momentos ao longo do período que investi­ garemos (1930-1964). Contudo, não só cada uma delas adquire um significado variável dependendo do contexto estrutural específico em que emerge, como também tende a ocorrer uma seqüência em que cada uma dessas questões aparece . como predominante. Por ordem, tal seqüência é: (a) a questão trabalhista em fins da década de 1920 e início da de 1930; (b) intervenção estatal na economia entre fins da década de 30 e início da de 40 (primeiro em termos de contro­ le burocrático sobre a iniciativa privada, a seguir em termos da ex- . pansão do Estado como agente econômico) e (c) a participação do capital estrangeiro na economia durante a década de 1950. A participação empresarial na criação da legislação trabalhista definiría os limites do controle da iniciativa privada sobre um dos fa­ tores de produção mais fundamentais: o trabalho. A forma pela qual tal controle estabeleceu-se em termos de negociações com o Estado ditou os limites à participação dos empresários no que se refere a ou­ tro fator importante em sua consolidação como classe: os limites da capacidade reguladora do Estado sobre o mercado. Pelo fato de um estilo de interação “cooptaiivo” ter resultado do contato inicial dos empresários com o Estado, eles ver-se-iam privados de controle autô­ nomo sobre as condições de expansão industrial. Finalmente, a ex­ pansão do Estado como agente produtivo e a participação do capital estrangeiro constituiríam o terceiro e quarto elementos a permitir um padrão de desenvolvimento industrial capitalista. O Estado expandir-se-ia em áreas infra-estruturais de produção (geralmente nas ati­ vidades de base estratégicas tais como mineração, siderurgia e petró­ leo), ao passo que capitai estrangeiro promovería o apoio tecnológi­ co e uma base de acumulação que eventualmente se refletiría na ex­ pansão das industrias nacionais. 54

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Contudo, além das limitações impostas pelo Estado aos empre­ sários nacionais e do papel chave desempenhado pelas atividades do Estado e do capital estrangeiro, o que mais pode ser dito acerca da iniciativa da burguesia Jocal com referência à criação de um quadro institucional para a integração do mercado, por um lado, e para sua expansão como classe, por outro? Colocaremos essa questão como o principal eixo analítico na exposição a seguir. Como parte do nosso argumento geral neste capítulo, desejamos oferecer igualmente uma interpretação da seqüência de aspectos da participação burguesa como relacionada ao processo de mudança política a longo prazo. Tal procedimento nos permite tratar parte substancial da questão da mudança que teoricamente nos ocupa. Tentaremos estabelecer um paralelo entre os principais problemas que compõem a agenda do empresário industrial e o desenvolvimen­ to do sistema político no Brasil ao longo do tempo, partindo da in­ corporação do polo urbano da sociedade ao processo político em 1930, até o debate sobre o nacionalismo na república populista da década de 1950. A um nível menos geral, a consideração da correspondência en­ tre transformação macropolítica e aspectos da prática burguesa per­ mitirá a descrição do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil como relacionado à auto-identificação, expansão, e consolida­ ção dos empresários industriais nacionais enquanto classe. Para investigar a relação que acabamos de mencionar, focaliza­ remos a participação pública de um segmento dos empresários indus­ triais nacionais no Brasil. Esse segmento é a liderança da indústria paulista, inicialmente organizada como grupo independente e mais tarde agrupada na FIESP (Federação de Indústria do Estado de São Paulo), após a criação da estrutura corporativa na década de 1930. Pelo fato de se observar uma tendência crescente à concentração industrial em São Paulo da década de 1930 em diante, grande parte do que resta em termos de documentos históricos sobre a participa­ ção pública da burguesia industrial no Brasil refere-se aos líderes da FIESP (dentre os quais Jorge Street, Roberto Simonsen e Horácio

I O estado de São Paulo concentrou uma proporção progressivamente mais elevada do valor total da produção industrial no pais de 1907 a 1958. Em 1907, essa pro­ porção representava 16,5%; ela aumentou para 31,5% em 1920, 43,2% em 1938 e 55% em 1958 (Lopes 1976, p. 10).

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Lafer foram talvez os mais notórios).2 Desta maneira, ao concentrarmo-nos no grupo da FIESP, acreditamos poder falar sobre um grupo bastante importante das elites industriais brasileiras em nossa retros­ pectiva histórica. Os líderes individuais variaram ao longo do perío­ do que aqui consideraremos. No entanto, estaremos sempre nos refe­ rindo aos empresários da FIESP em seu papel de porta-vozes da clas­ se industrial como um todo, a menos que se especifique o contrário. Nosso material empírico no presente capítulo consiste em docu­ mentos coletados sobre a participação da elite industrial no decorrer do tempo. Em alguns casos, esses documentos relatam a participação direta da elite industrial em agências oficiais, como seus próprios grupos de interesse e segmentos da burocracia estatal. Em outros ca­ sos utilizamos jornais, atas de vários congressos da indústria e os tex­ tos de legislações específicas.3 Para tratar da questão da prática burguesa e do debate institu­ cional no Brasil, teremos de nos basear em material que tenha me­ lhor expressado a natureza deste debate em diferentes momentos. Tal material consiste em pontos de vista dos intelectuais quanto à confi­ guração do sistema político e quanto à natureza do processo político brasileiro. Num sistema elitista como o brasileiro, os vínculos orgâ­ nicos entre a produção intelectual e os arranjos políticos concretos tendem a ser muito fortes. Esse tem sido historicamente o caso, e ain­ da agora, em grande medida, dado que a natureza fechada do sistema político potencializa a necessidade de informação. Por essa razão, a produção intelectual não só tem um impacto direto sobre a política, como também constitui uma boa base empírica para o estudo históri­ co do próprio processo político. Assim, tomaremos os representan-

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. 2 Roberto Simonsen, por exemplo, além da sua posição como líder da indústria, dei­ xou uma vasta obra publicada sobre os problemas do desenvolvimento econômico e industrial brasileiro (Simonsen 1935, 1937, 1939, 1943, 1944). 3 Parte do material empírico utilizado neste capítulo foi coletado no projeto de pes­ quisa "O Empresário Nacional e o Estado no Brasil: Uma Comparação de Dois Períodos" realizado no IUPERJ em 1975-1976 sob minha direção e de Eli Diniz Cerqueira. Esta última foi responsável por toda a pesquisa referente aos documen­ tos históricos no período 1930-45 e que aqui retomamos. Nossa assistente de pes­ quisa Angela Maria de Castro Gomes coletou e organizou todo o material referen­ te à criação da legislação trabalhista. Finalmente, devo agradecer o trabalho dos meus alunos Gilson Antunes da Silva, César Romero Jacob e Walmer Jacinto que mc permitiram utilizar material empírico que coletaram sobre a década de 1950 para um curso que lecionei no IUPERJ em 1977.

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tes mais expressivos da tradição do pensamento político brasileiro durante as décadas de 1930 e 1950, para examinar a articulação entre a sua produção e os pontos de vista dos empresários industriais. (

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O período de que nos ocupamos vai de 1930 a 1964. As princi­ pais transformações estruturais na sociedade brasileira no decorrer desse longo período envolvem um crescimento acentuado da popula­ ção urbana, um aumento na proporção da população economica­ mente ativa na indústria e um decréscimo na percentagem da popula­ ção economicamente ativa em atividades rurais.

Em 1920, 10,7% do total da população brasileira vivia em cida­ des de 50.000 habitantes e mais. Em 1940, essa proporção aumenta para 12,6%, subindo para 16,3% em 1950, para finalmente alcançar 22,9% em 1960 (Lopes 1976, p. 14). Em 1970, a proporção da popu­ lação morando em cidades de 20.000 habitantes e acima chega a 36,7% (Almeida 1974, p. 65). Segundo Almeida, a taxa de urbaniza­ ção no Brasil entre 1920-1970 é comparativamente mais alta que a da maioria dos países em desenvolvimento no mesmo período e pouco mais elevada que a apresentada pelos países europeus entre 1850 e 1930 (Almeida 1974, p. 65).

A urbanização foi grandemente dependente da industrialização, embora as migrações e a expansão dos serviços tenham também de­ sempenhado um papel significativo no crescimento das cidades. As­ sim, enquanto a proporção da população economicamente ativa nas atividades agrícolas de crescia progressivamente de 65,9% em 1940 para 59,9% (1950), 53,7% (1960) e 44,3% (1970), a proporção da po­ pulação economicamente ativa na indústria aumentava de 10,4% em 1940 para 14,5% em 1950, 13,8% em 1960 e 17,9% em 1970 (Almeida 1974, p. 75). Dividiremos nossa apresentação em duas partes que correspon­ dem à periodização clássica na historiografia brasileira: a primeira, que se estende de 1930 a 1945 e a segunda, de 1946 a 1964, desta ma­ neira cobrindo as características da atuação burguesa sob distintos formatos do sistema político, num caso envolvendo um regime auto­ ritário e mais rígido e, noutro, sob a ágide de um regime mais compe­ titivo e representativo, pelo menos em termos de sua aparência exte­ rior. Finalmente, na seção de conclusões retomaremos a discussão da mudança política a longo prazo, oferecendo um resumo das prin­ cipais transformações da sociedade brasileira em função dos estilos de participação da elite industrial no decorrer do tempo. 57

1930-1945: emergência da indústria e as bases políticas para o capitalismo industrial no Brasil Nesta seção, começaremos apresentando uma interpretação da transição política da década de 30 em relação ao processo de emer­ gência e expansão dos grupos industriais nacionais como classe. Para investigar essa relação, especificaremos primeiro a medida em que os grupos industriais se diferenciavam das classes agrícolas e o grau de organização apresentado pela classe empresarial. A seguir, focaliza­ remos as posições dos grupos industriais referentes à legislação tra­ balhista como passo importante em sua busca de identidade e na de­ finição dos parâmetros de sua ação com relação ao Estado. Final­ mente, concentrar-nos-emos nas interações entre os grupos indus­ triais e o Estado como forma de avaliar a natureza de seus valores políticos básicos e o apoio que tais valores representaram à instaura­ ção da estrutura corporativa que preside as relações entre os setores privado e público no Brasil. A nível muito geral, a mudança envolvendo os grupos indus­ triais como classe poderia ser descrita em termos de um processo ca­ racterizado por quatro estágios: (1) antes de serem efetivamente in­ corporados ao processo político, os grupos industriais são bastante importantes do ponto de vista econômico, mas seus interesses estão dispersamente representados em algumas poucas associações de inte­ resse, conquanto autonomamente organizados com relação ao Esta­ do; (2) em seguida à incorporação dos grupos industriais ao processo político, os empresários procuram alargar sua base de representação como meio de reforçar a indústria do ponto de vista político e social. A esse estágio, no entanto, a busca de identidade dos grupos indus­ triais implica em organização ao nível de sua liderança; (3) embora envolvida na tarefa de aumentar a importância da indústria no siste­ ma, a liderança tende a se desprender do resto da classe, dando assim lugar para o Estado se antecipar na definição dos parâmetros da par­ ticipação dos grupos industriais; e (4) o estabelecimento pelo Estado de tais parâmetros, não pretende, contudo, excluir a participação da indústria, mas garantir a administração do conflito. Assim, a este es­ tágio, os grupos industriais apelam para um estilo de negociação que poderia atender melhor a seus interesses. Através de um estilo coopativo de início, e a seguir através de sua institucionalização num ar­ ranjo corporativista, os grupos industriais eventualmente definem uma base direta, embora restrita, para suas mediações com o Estado. 58

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Tendo como referencial essa visão geral da mudança da perspec­ tiva dos empresários industriais, é possível reinterpretar algumas das noções mais importantes que permeiam as análises da transição da década de 1930, bem como reavaliar o papel dos empresários indus­ triais nas alianças então estabelecidas. Assim, por exemplo, a litera­ tura ora enfatiza o completo deslocamento das forças agrícolas pelos grupos industriais, ora minimiza estes últimos como não apresentan­ do interesses constituídos à esta época. É interessante observar que, embora a revolução de 1930 seja vista como uma evolução para o capitalismo industrial, a participa­ ção empresarial como tal tem sido objeto de poucas análises empíri­ cas. Até muito recentemente, a maior parte da literatura se dedicava às condições sócio-estruturais e econômicas da industrialização (Car­ doso 1960a; Luz 1961; Furtado 1973; Pelaez 1972), mas não à pers­ pectiva dos empresários neste importante realinhamento, com exce­ ção, talvez, do trabalho de Dean (1975) e algumas referências espar­ sas na análise de Fausto sobre a Revolução de 1930 (Fausto 1975). O recente trabalho de Carqueira (1977) é provavelmente a me­ lhor análise empreendida até o momento, focalizando os empresários industriais nacionais de forma sistemática e oferecendo uma base para a compreensão do significado da sua participação política antes e depois da revolução de 1930. Embora se ocupe da identificação dos empresários enquanto classe e do seu subseqüente processo de expan­ são e diferenciação, a autora não oferece um modelo explícito de como se opera a mudança no sistema e nem estabelece correspondên­ cia entre o que ela verifica ao nível da própria classe com o formato institucional do sistema político em determinados pontos do tempo. É possível, no entanto, abstrair de sua abordagem um interesse na di­ nâmica das relações Estado/sociedade. Numa tentativa de avaliar a transição política da década de 1930 do ponto de vista das mudanças na organização dos empresários in­ dustriais como classe, as seguintes questões devem ser respondidas: (a) os grupos industriais deslocaram as forças agrícolas dos arranjos de poder? Se sim, em que sentido e, se nãó, que tipo de arranjo ocor­ reu? (b) quão diferenciados eram os interesses industriais com rela­ ção aos agrícolas? (c) Quão organizados eram os interesses da classe industrial? Buscaremos responder a esse conjunto de questões numa tenta­ tiva de nos dirigirmos à problemática dos empresários industriais en- • quanto classe. 59

A primeira questão é bem respondida por Cerqueira (1977). De acordo com esta autora, a transição da década de 1930 expressa, a um tempo, os aspectos da conservação e da renovação na emergência das forças sociais urbanas. O aspecto conservador pode ser visto nas medidas protecionistas do café adotadas após a revolução numa ten­ tativa de garantir um sistema econômico ainda em grande parte ba­ seado no mercado exportador. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para os aspectos decorrentes do papel do país na divisão in­ ternacional do trabalho à luz do impacto da crise do sistema mundial de 1929 sobre a mecânica interna do sistema político. O impacto da crise externa é importante por causa da implica­ ção direta da defesa do setor externo em termos das possibilidades de expansão industrial. Por um lado - argumenta Cerqueira - as medi­ das protecionistas poderíam atuar contra o estabelecimento de alian­ ças entre os setores da burguesia que produziam para o mercado in­ terno ou estavam ligados ao setor exportador. Por outro lado, a polí­ tica de proteção do café contribuiu para a expansão industrial, parti­ cularmente em vista da desvalorização da taxa cambial como medida para o reforço da economia interna. Uma das implicações da política de desvalorização foi obviamente o fato de que os preços das impor­ tações aumentariam, favorecendo assim a produção interna de bens manufaturados. A segunda tendência aponta para um elemento de continuidade no sistema. Outro elemento de continuidade pode ser encontrado no proces­ so de formação dos próprios grupos industriais. O fato de ter havido efetivamente uma maciça transferência de capital da atividade agrí­ cola para a indústria nesse período pode ser visto como facilitando os arranjos que, em última análise, levariam os industriais ao realinhamento das alianças após 1930. Como foi apontado em algumas análi­ ses (Cardoso 1960, 1960a; Dean 197.5), a própria atividade cafeeira representava uma base substancial para a acumulação de capital, ca­ nalizada para a atividade industrial.4

4 O capital para a expansão industrial no Brasil proveio de três fontes diferentes: re­ cursos transferidos da atividade cafeeira, o setor importador e crédito obtido em empresas e bancos estrangeiros. Entretanto, a exata proporção representada por cada uma dessas fontes não foi ainda estabelecida em termos empíricos. Além do café, sugere-se que o papel dos imigrantes foi muito significativo na formação da indústria paulista, particularmente porque as fontes internas de crédito só vieram a ser criadas em 1937 com a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil. Daí o fato de os imigrantes terem sido capazes de expandir suas empresas a

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Mas, este fato mesmo, leva-nos à segunda questão, referente à existência de interesses industriais diferenciados no período ou se, pelo contrário, as atividades agrícolas e industriais eram complemen­ tares. • Numa análise da indústria paulista na década de 1930 com base em dados de censo e numa listagem quase exaustiva das empresas in­ dustriais, Boschi e Cerqueira mostram que o setor industrial era bas­ tante importante em comparação com as atividades primárias e bas­ tante diferenciado internamente (Boschi e Cerqueira 1977). À época, o setor industrial caracterizava-se por um grande nú­ mero de pequenas empresas. Mas dado o fato da proporção de pe­ quenas empresas ser geralmente elevada - não apenas no Brasil, onde representa cerca de 90% do setor industrial, mas também em países altamente industrializados - o que importa apontar é a existência, já na década de 1930, de um pequeno número de empresas relativamen­ te grandes, compreendendo certamente um grupo de elite que não deve ser subestimado.5 .

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Além disso, proporção significativa das grandes empresas indus­ triais hoje existentes no Brasil foi fundada nessa época, de acordo com Pereira (1967, pp. 25 e 28.) Algumas são mais antigas, datando de 1914 e mesmo de períodos anteriores, como mostra um recente estudo sobre as origens dos grandes grupos industriais brasileiros (Queiroz e Evans 1977). Quanto à avaliação do setor industrial com relação a outros se­ tores à época, o estudo de Villela e Suzigan (1973) demonstra que a taxa de crescimento industrial foi bastante intensa, particularmente entre 1933 e 1939. De acordo com esses autores a participação do se-

níveis mais significativos, na medida em que esses grupos tinham acesso mais fácil a agências externas de financiamento (Boschi e Cerqueira 1977). 5 È necessário enfatizar o fato de que a indústria de transformação brasileira nessa época era basicamente representada pela empresa privada nacional. O setor produ­ tivo do Estado só veio a aparecer com a criação, a partir de 1940, da Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, Fábrica Nacional de Alcalis, e Companhia Vale do Rio Doce. Ver Wirth (1973) e Martins (1973). O capital es­ trangeiro, por outro lado, limitava-se a alguns sub-setores tais como indústrias far­ macêuticas, borracha, frigoríficos e montagem de veículos. Quanto a esse aspecto ver Queiroz e Evans (1977).

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Tabela 1. - Distribuição Percentual das Indústrias Paulis­ tas por volume de Capital e Número de Empregados, 1930.6

Tamanho das Empresas

Estrato Inferior Estrato Médio Estrato Superior Total

Volume de

Capital 57 28 15 100% (N=2806)

Número de empregados

66

28 6 100% (N=2732)

Fonte: Estatística Industrial de São Paulo, 1930.

tor industrial no produto interno do país aumentou de 21% em 1919 para 43% em 1939. Ademais, a.taxa média de crescimento industrial entre 1929-39 foi 8,4% ao ano, em comparação com um reduzido 2,2% para a agricultura (Villela e Suzigan 1973, pp. 210-11).7 Finalmente, quanto à terceira questão, isto é, o nível de organi­ zação política dos grupos industriais por volta da década de 1930, é possível identificar associações de interesses bastante ativas, muito embora não estivessem completamente integradas numa estrutura coesa e de base ampla de representação. A primeira associação im­ portante dos grupos industriais foi fundada em 1904 como resultado da fusão de duas organizações menores representando setores especí-

6 Tabela resumo de dados calculados com base em firmas individuais como unidade de análise. Os pontos de cone na variável volume de capital seguiram outras classi­ ficações para tamanho de empresas (Barros, Robalinho e Modenesi 1973; Fausto 1975). resultando nas categorias: até 30 contos de reis (estrato inferior); entre 31 e 200 contos de reis (estrato médio) e 200 contos de reis e mais (estrato superior). Quanto ao número de empregados, 1 a 10, 11 a 100 e 101 e mais, respectivamente, em cada um dos estratos. O N varia dada a exclusão dos “missing data”. 7 Outra indicação da natureza diferenciada dos interesses industriais em oposição aos agrícolas pode ser encontrada na temática que caracterizou a agenda política durante a década de 1920. Era esta a discussão entre indústrias naturais vs. artifi­ ciais, isto é, aquelas que seriam “adequadas” ao nível de desenvolvimento econô­ mico do país dada sua natureza complementar à atividade agrícola, em oposição às indústrias que impunham limitações adicionais à capacidade do país de se susten­ tar economicamente dada a criação de necessidades extras.

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ficos de atividade industrial. Foi esta o Centro Industrial do Brasil que engloba o Centro de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro e a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. A diretoria do CIB in­ cluía líderes empresariais do Rio e São Paulo que mais tarde ganha­ riam uma notoriedade nacional (Castro Gomes 1976, p. 4; Carone 1977). A necessidade da tradução de poder socialmente definido em poder politicamente definido (materializada na redefinição das alian­ ças em 1930) segue-se, então, ao nascimento da indústria como grupo com interesses claramente diferenciados em relação aos das elites ru­ rais tradicionais que comandavam o processo político na República Velha. Acresce-se a isto o fato de que este grupo já apresentava um grau significativo de organização. Em termos de uma interpretação global de como a mudança ocorre em seguida à emergência de um grupo social como ator políti­ co, vale a pena mencionar dois aspectos. Primeiro, como foi mencio­ nado anteriormente, há uma busca de auto-identidade.por parte do grupo. Essa tendência expressou-se ao nível da organização de gru­ pos de interesses empresariais termos de um progressivo alargamento de sua base de representação e ao nível da prática política da classe na natureza geral das demandas que, em geral, tinham o propósito último de chamar a atenção para a importância da indústria no con­ texto da economia nacional. Segundo, há o estabelecimento de uma liderança, que de início, paradoxalmente se desprende das bases, na medida em que, dentro da própria liderança, há uma tentativa de se articular as posições dos industriais num conjunto de demandas mais coeso e específico. Por volta de 1930, o quadro que se esboça é o da tentativa do grupo de consolidar os espaços políticos recentemente conquistados. O conteúdo e a natureza da prática política dos industriais modificar-se-iam nos anos seguintes, evoluindo para a especificação, na me­ dida em que os interesses se tornavam mais complexos e diferencia­ dos ao longo do tempo. Num contexto de consolidação do espaço político, ao contrário do que se poderia esperar, seria mais vantajoso que o grupo adquiris­ se notoriedade e ganhasse apoio para sua causa do que adotar uma tática de confronto com outras forças sociais. Nesse sentido, impor­ tante porção da atividade política dos empresários industriais não se dirigia inicialmente ao Estado como tal. O tipo de processo acima descrito chama a atenção para a faceta autônoma do comportamento dos empresários industriais que te63

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riam importantes conseqüências no futuro devido a que, neste estágio, foram lançadas as bases para a sua participação futura. A percepção dos empresários da necessidade de controle sobre setores-chave de suas atividades só ocorrería mais tarde, quando o aparato de Estado se desenvolvería num organismo mais complexo compreendendo um conjunto de agências burocráticas para a definição do que seria, já então, uma política industrial embrionária. A integração do mercado, nesse sentido, exceto por umas pou­ cas medidas esparsas tais como a reforma do sistema tributário que teve lugar na década de 30, não se devia, primordialmente, a uma ne­ cessidade de controle direto, por parte da burguesia, sobre a política econômica do governo. Como foi apontado por Santos (1977, pp. 3637) a forma específica como a prática liberal evoluiu no Brasil devese precisamente à falta de controle, por uma burguesia nacional or­ ganizada, dos pilares mais importantes de uma sociedade liberal: as organizações militares, o sistema educacional e a burocracia pública. Outro aspecto dessa tendência dos empresários para um aumen­ to da visibilidade da indústria pode ser documentado, nesse estágio de sua emergência, por seu esforço de ampliação da base de represen­ tação de suas associações de classe. A eficácia de um grupo de inte­ resses pode ser avaliada em função do âmbito dos interesses repre­ sentados e do tamanho da organização em termos de um número substancial de membros que dão suporte à sua ação. Nessa época, os grupos industriais optavam pela quantidade, ao invés da qualidade, dos interesses representados. Ao invés de se orientarem no sentido de associações com interes­ ses específica e estreitamente definidos, a tendência à visibilidade condicionou a criação de uma organização de base nacional. Como resultado, tal organização se transformaria num foro de demandas amplamente definidas que, com freqüência, não eram claramente es­ pecificadas sob a forma de políticas ou dos meios para sua imple­ mentação. É assim que, em 1933, o Centro Industrial do Brasil transformase na Confederação Industrial do Brasil, numa tentativa de unir as federações já existentes em nível regional. A iniciativa da criação des­ sa confederação originou-se nas quatro maiores associações então existentes (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul). O CIB seria mais tarde a base da estrutura corporativa que per­ siste até nossos dias como Confederação Nacional da Indústria, cria­ da em 1943 (Castro Gomes, 1976). 64.

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Tendo caracterizado os aspectos gerais referentes à emergência dos empresários nacionais enquanto classe, cumpre examinar as po­ sições da elite industrial quanto à criação da legislação trabalhista. Como foi dito anteriormente, a questão social foi provavelmente o tema que prevaleceu nesse estágio.inicial de formação e consolidação da burguesia. Apesar das revoltas e greves ocorridas entre 1917-19, a revolu­ ção de 30 se deu como uma resposta às pressões das massas urbanas em acelerado crescimento mas não levou à incorporação das classes trabalhadoras no processo político. Pelo contrário, a ampliação do círculo de elite nesta época admitiu apenas a inclusão dos empresá­ rios industriais, cuja incorporação significava, simultaneamente, o controle da classe trabalhadora por uma legislação trabalhista im­ posta pelo Estado. A legislação trabalhista só foi estabelecida como um todo em 1937, seguindo um longo período de debates dentro da própria classe industrial e uma série de greves e conflitos entre 1930 e 1935. Novamente, essa é outra questão em relação à qual a participação dos empresários envolveu as contradições da fase inicial da sua cons­ tituição como classe. Por um lado, a questão foi ela própria colocada pelas greves e inquietação social da classe operária e de maneira ne­ nhuma prevista pelos empresários como área importante sobre a qual deveríam exercer controle. Por outro lado, ela envolveu agudas disputas dentro da liderança da classe industrial, ela própria em bus­ ca de consolidação neste período. Daí o fato da literatura ver a bur­ guesia quer como absenteista, quer como extremamente consciente do papel da legislação social em termos de favorecer a acumulação. Uma avaliação adequada desse aparente paradoxo envolve o re­ conhecimento de que, embora as duas interpretações tenham uma re­ lação concreta com o processo real subjacente à implementação da legislação do trabalho, nenhuma em particular foi capaz de relacio­ nar essa questão ao processo mais amplo da formação de classe a este estágio. Por um lado, os empresários industriais defrontavam-se com outras demandas urgentes e, assim, grande parte do seu esforço orga­ nizacional foi canalizado para a atividade de definir os limites de um programa industrial que confrontasse as reações de um setor agroexportador ameaçado de deslocamento. Por outro lado, embora sem clareza quanto a implicações a longo prazo do controle estatal sobre a área das relações de trabalho, os empresários estavam particular­ mente conscientes dos aspectos negativos de algumas das medidas propostas, do ponto de vista de seus interesses. 65 .

A legislação do trabalho envolveu efetivamente a interação de três atores exibindo diferentes recursos de poder à época: os empre­ sários industriais, a classe operária e o Estado. Este último é chama­ do a promover um tipo de mudança levando a um novo estágio na economia brasileira - com a transformação das relações de produção em relações mais avançadas - através da regulamentação desse im­ portante fator de produção. Assim, o Estado cria as bases para re­ produção da acumulação capitalista industrial áo nível da empresa (Oliveira 1972). . Nesse sentido, a legislação trabalhista pode ser vista em seu as­ pecto favorável ao poder de Estado e em seu papel reforçador das condições de reprodução e expansão da classe capitalista. A análise de Rowland (1974) bem como a de Weffort (1976) favorece a primei­ ra interpretação, apontando que a legislação trabalhista eventual­ mente reforçou o poder pessoal de Vargas, que precisava de autono­ mia no exercício da sua função política. Em acréscimo, a legislação trabalhista minimizou a possibilidade de conflitos urbanos origina­ dos dentro das próprias elites industriais e conflitos entre capital e trabalho. A análise de Vianna, por exemplo, favorecia esta última in­ terpretação (Vianna 1976). Contudo, como apontado por Castro Gomes, o primeiro tipo de interpretação nega a possibilidade de alguma consciência da parte dos grupos industriais ao enfatizar seu total desligamento da classe política, ao passo que o outro implica uma percepção de desenvolvi­ mentos futuros a longo prazo que os empresários de fato não pare­ ciam possuir (1976, p. 26.). O que realmente ocorreu foi uma marcada distinção entre as posi­ ções dos empresários antes e após 1930. No primeiro período houve severas críticas e reações às duas importantes leis sobre a questão so­ cial. Foram estas a Lei de Férias (1925/26) e a Regulamentação do Trabalho dos Menores (1926-27). O Centro Industrial do Brasil reco­ nhecería finalmente estas medidas, desde que fossem definidas den­ tro dos limites do “respeito à liberdade, propriedade e à conservação da iniciativa privada” (Castro Gomes 1976, p. 40). A principal im­ plicação da participação dos empresários com relação à questão so­ cial nesse período foi a de que seus contatos com a burocracia públi­ ca (conduzidos principalmente através das associações de classe exis­ tentes) conseguiram adiar a implementação real de uma política glo­ bal na área. Essa tendência ao adiamento e à não-decisão com referência à legislação trabalhista se transformaria, após 1930, num padrão de es66

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pecificação mais clara de políticas concretas com relação a esta e ou­ tras questões. Entre outras coisas, as greves dos trabalhadores foram reativadas, lado a lado com a grande instabilidade política nos anos imediatamente posteriores à revolução. Por outro lado, o próprio aparelho de Estado tornara-se mais complexo e diferenciado com o estabelecimento de novas agências especialmente dedicadas a políti­ cas referentes ao setor industrial na área de política econômica e de relações de trabalho. A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio imediatamente após a revolução foi positivamente ava­ liada pelas classes operária e industrial. A existência, ao nível institucional, de um locus de negociação, onde projetos de legislação social seriam elaborados, levou a organi­ zação da classe empresarial a se mover em diferentes direções. A ne­ cessidade da legislação do trabalho era, então, claramente reconheci­ da por membros da liderança industrial. Por outro lado, o governo demonstrava urgência na implementação dessa política, bem como, simultaneamente, maior aceitação da participação do setor privado em sua elaboração. A partir desse ponto, a questão da legislação trabalhista é citada na agenda empresarial, lado a lado a um número de demandas adi­ cionais bastante específicas, tais como a supressão de impostos inter­ estaduais, a instituição de um conselho conjunto de contribuintes e de delegados do Estado e a criação de crédito industrial. Todas es­ sas medidas sugeridas em 1931 por importante líder industrial, apon­ tam com bastante clareza para os fatores básicos fundamentais à ex­ pansão da atividade industrial quando não da burguesia enquanto classe. A primeira demanda aponta para a integração do mercado in­ terno transformando sua base local numa base nacional. A segunda in­ dica uma tendência embrionária para o estabelecimento de negocia­ ções com o Estado numa base corporativista para a discussão e deci­ são a respeito da capacidade extrativa do Estado. A terceira chama a atenção para o problema da capitalização das empresas industriais facilitando sua expansão. Finalmente, o controle da força de traba­ lho pelo Estado é visto como um passo necessário. De uma plataforma bastante vaga que caracterizava a ação dos empresários industriais no período pré-1930, é então possível obser­ var uma redefinição em termos de interesses mais específicos e orga­ nizados, cuja contrapartida institucional seria o eventual estabeleci­ mento de uma estrutura corporativista em 1937. É interessante notar que não apenas em relação à questão da legislação trabalhista, mas .67

também no que diz respeito a outros aspectos da prática burguesa, todos os elementos tenderam a convergir nesta direção. De fato, uma série de leis trabalhistas foram aprovadas entre 1930 e 1937 com total participação dos empresários privados em to­ dos os estágios de sua elaboração, segundo Castro Gomes (1976, p. 49). Por volta de 1934, o governo de fato convidou os empresários a participarem de comitês especiais, alguns dos quais no próprio Cen­ tro Industrial, ao invés de nas agências do governo. A legislação tra­ balhista foi finalmente consolidada em 1937 como resultado de um conjunto de medidas tomadas no período pós-1930 que envolveram: (a) a lei de 1931 exigindo que 2/3 dos trabalhadores em qualquer em­ presa fossem cidadãos brasileiros; (b) a lei sindical (exigindo a orga­ nização das classes operária e industrial numa estrutura sindical) que se começou a tramitar em 1931 e foi aprovada em 1943; (c) a exigên­ cia de identidade profissional (em que o desempenho profisional do indivíduo deveria ser registrado num documento formal) em 1932; (d) a lei das horas de trabalho industrial (estabelecendo uma jornada de 8 horas) em 1936; (e) a regulamentação do trabalho feminino em 1932 e (f) o estabelecimento de um salário mínimo em 1937. Apesar de um estilo bilateral de negociação entre a burocracia estatal e os empresários no processo decisório referente à legislação do trabalho e outras questões, as discussões revelam grande número de conflitos. Esse conflito entre as esferas privada e pública indica, em nossa opinião, uma preocupação com a definição de espaços nas interações entre os setores público/privado e, particularmente, da si­ tuação dos empresários industriais no novo contexto de relações de poder. Como foi apontado anteriormente, a burocracia não foi apri­ sionada pelos grupos privados. Pelo contrário, ela manteve sua auto­ nomia no decorrer do tempo, embora inaugurando um estilo de inte­ ração com o setor privado que teria raízes profundas na estrutura do sistema político nos anos a seguir. Por outro lado, nesse padrão de intervenção não esteve ausente a iniciativa por parte dos grupos pri­ vados que, num determinado ponto do seu itinerário, perceberam o corporativismo como um formato adequado de mediação de interes­ ses. Outros aspectos da prática burguesa nos anos que se seguiram à década de 30 revelam também uma clara tendência à consolidação das suas posições de barganha, a esta altura, particularmente no que se refere as agências do Estado enquanto tais. Em primeiro lugar, há uma preocupação crescente com a ausência de uma política indus­ trial claramente definida, a qual se traduziría na proposta de deman68



das cada vez mais específicas que, curiosamente, tendiam a coincidir com uma visão gradualmenteuntervencionista acerca de questões de regulamentação estatal junto com o apoio de uma prática antiliberal. Como não poderia deixar de ser essa tendência levaria eventualmente ao apoio da burguesia ao regime de 1937. que inaugurou um período de dominação autoritária que durou até 1945.(o Estado Novo). Passaremos agora ao último aspecto da prática burguesa duran­ te a década de 1930 que nos ocupa nesta seção. Tentaremos primeiro caracterizar alguns dos valores básicos dos empresários que levaram ao apoio de um sistema político não-competitivo para nos concen­ trarmos, a seguir, nos aspectos mais específicos da contribuição bur­ guesa aos arranjos institucionais corporativistas. Começaremos retomando as semelhanças entre os pontos de vis­ ta dos intelectuais e dos empresários quanto à natureza do sistema político apontado por Cerqueira em seu trabalho. Um paralelo pode ser estabelecido entre alguns dos pontos de vista dos industriais quanto à questão da intervenção e controle estatais e o pensamento autoritário que prevaleceu durante essa época (Cerqueira 1977, pp. 124-ss). Particularmente representado nos trabalhos de Azevedo Amaral, Oliveira Vianna e Francisco Campos, o pensamento autori­ tário desempenharia importante papel em termos da reconstrução institucional ocorrida após 1937. Os pontos básicos do pensamento autoritário, no que se refere à nossa discussão, têm a ver com a interpretação das crises institucio­ nais brasileiras como um divórcio entre instituições políticas e as condições sociais materiais do país. Daí a necessidade inevitável de um Estado forte e intervencionista, particularmente face à diferencia­ ção social trazida pela industrialização (Vianna 1974; Campos 1941; Amaral 1938). Uma organização corporativa da sociedade é então, contrastada à democracia, pelos autoritários, como solução para todo tipo de de­ sequilíbrios. Dentre estes últimos, a polarização entre forças locais e regionais e poder centralizado é talvez o mais importante. Flutuações desse tipo são vistas pelos intelectuais basicamente como resultado do funcionamento do mercado numa base liberal e, nesse sentido, os autoritários argumentaram que o fortalecimento do Estado está inti­ mamente ligado à sua intervenção na vida econômica. Por um lado, o Estado seria o agente disciplinador do mercado e, por outro, atua­ ria como produtor em áreas onde a iniciativa privada fosse incapaz de entrar. 69

Os intelectuais autoritários sugeriam, por outro lado, uma parti­ cipação das elites econômicas na condução dos negócios públicos através do estabelecimento de conselhos técnicos, cujo objetivo bási­ co era o de favorecer a expansão capitalista, antes que inibi-la. Neste sentido, o tradicionalismo das elites rurais era percebido por esses in­ telectuais como nocivo e as elites industriais eram apontadas como o grupo politicamente mais capaz. Um aspecto adicional diz respeito às opiniões desses autores quanto à questão do nacionalismo e da po­ sição do país na divisão internacional do trabalho. O atraso econô­ mico só poderia ser superado e a emancipação só poderia ser conse­ guida através da industrialização e do controle dos recursos estraté­ gicos. Sua concepção de soberania nacional, no entanto, não elimi­ nava a participação do capital estrangeiro nó processo de industriali­ zação. Segundo Cerqueira, os valores da liderança industrial nessa épo­ ca tendem a convergir para a mesma escala de prioridades básicas. Em primeiro lugar, os empresários rapidamente associam os interes­ ses da indústria aos da nação (um fato que, no contexto da competi­ ção com as forças agrárias, adquire um significado especial). O cres­ cimento. é assim equacionado a “grandeza da nação”. Em segundo lugar, a idéia da elite empresarial de renovação econômica através da industrialização estava ligada a uma percepção da necessidade do país ocupar uma nova posição na divisão internacional do trabalho como produtor de manufaturados industriais e não como exportador de bens primários. Terceiro, os industriais colocavam uma necessida­ de de se defender os recursos estratégicos do país através do controle estatal. No que diz respeito a este ponto, a intervenção estatal era consensualmente aprovada entre as elites industriais. Enquanto nessas questões gerais da relação entre independência econômica e desenvolvimento industrial o paralelo entre o pensa­ mento autoritário e o dos grupos industriais pode ser facilmente constatado, o mesmo não se aplica a aspectos mais específicos dos arranjos institucionais no sistema político. Em nenhum outro aspec­ to essa correspondência é mais reveladora que no caso das fontes corporativas de ambas as tendências. Assim, os industriais mostra­ vam notável simpatia pelo fascismo, juntamente com uma visão bas­ tante anti-liberal das funções da intervenção estatal. No último sentido, a intervenção estatal é pensada em termos do . favorecimento de uma entidade coletiva (a nação) mas na base de uma demanda particularista (os interesses da indústria). Os indus­ triais pretendiam que a intervenção estatal significava, em última 70.

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análise, a possibilidade de se assegurar o bem-estar da classe operá­ ria. . Além disso, a intervenção estatal é vista, como no pensamento autoritário, como basicamente restrita à função regulatória. A fun­ ção produtiva era admitida no caso das industrias de base estratégi­ cas, muito embora os industriais estivessem longe de propor soluções técnicas para a implementação de programas nessa área. A dificulda­ de de se levar à frente o programa da indústria siderúrgica é um exemplo (Wirth 1973). Por volta de 1937, e particularmente após esta data, a posição dos industriais quanto ao estilo corporativo de participação tornouse cada vez mais clara. Tal estilo foi particularmente valorizado pelos empresários quando as primeiras agências consultivas entraram em operação ( a primeira em 1934, a segunda em 1937). Essas agências eram o Conselho Federal do Comércio Exterior e o Conselho Técni­ co de Economia e Finanças. A principal mudança introduzida pela criação dessas agências foi a legitimação das negociações diretas entre o setor privado e a bu­ rocracia, minimizando, assim, a necessidade de outras mediações • políticas. Embora positivamente valorizada pela classe industrial por implicar a conquista de um espaço político dentro da burocracia es- . tatai, essa prática de negociações diretas também implicava a frag­ mentação da classe industrial como um todo. A negociação direta maximizava as oportunidades de empresas individuais exercem pres­ são numa base individual, mas também favorecia um padrão de de­ mandas particuiaristas e imediatas. Outra implicação foi a do Estado assumir a posição de evitar coordenação externa pelos grupos empresariais em questões de pla­ nejamento global, bem como em questões-chave referentes ao equilíbrio de poder do país na comunidade internacional. Um exemplo da tendência recém-mencionada diz respeito ao Tratado de Livre Comercio, que constitui uma área importante de disputa entre os industriais e o Estado. Esse tratado foi assinado pelo Brasil e os Estados Unidos em 1935 e envolvia reduções tarifárias de uma série de itens: os americanos isentariam de impostos os produtos de exportação brasileiros como café e borracha, em troca de isenções similares para os bens manufaturados americanos importados pelo Brasil. ’. I

8 Esse tratado teve implicações diretas em termos das manobras de Vargas na políti­ ca externa. O comércio exterior como parte dessa política, assumiu um caráter ex-

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Visto que o tratado alteraria as bases internas de competição, os empresários concentraram sua ação política no sentido de criticar o tratado, insistindo particularmente no fato de que a representação corporativa não tinha prevalecido ao decidir-sésua aprovação. O mesmo se aplicaria ao planejamento global da economia na­ cional. A ausência de propostas técnicas para resolver as questões em jogo, juntamente com o caráter urgente e limitado das demandas dos empresários forçava o governo a assumir uma posição mais autôno­ ma quanto ao tratamento de questões ligadas ao planejamento. Assim, ao mesmo tempo em que havia áreas de conflito na rela­ ção entre os empresários e o Estado em fins da década de 30, havia uma percepção clara entre eles da necessidade de apoiar um Estado intervencionista, particularmente em vista da incapacidade dos em­ presários de lidarem com as esferas-chave de sua atividade, tais como o controle da classe operária e a integração do mercado. Os limites contraditórios da ação burguesa neste contexto inauguraram um pa­ drão de dependência do Estado que prevalecería no futuro como uma das principais características do papel desse grupo no sistema de alianças. As elites industriais passaram de um modelo relativamente descentralizador no início da década de 30 para um modelo altamente centralizador à época do Estado Novo, que eles finalmente apoia­ ram, tendo em vista a necessidade de manutenção do capitalismo in­ dustrial. Nesse sentido, enfatizariam claramente a noção de que as alianças não poderíam ser quebradas em detrimento da estabilidade e continuidade do sistema (Cerqueira 1977, p. 154). Por outro lado, foi no fim da década de 1930 que os empresários definiram as bases para a participação do capital estrangeiro no futu­ ro. A liderança industrial nessa época não era contrária, regra geral, ao capital estrangeiro, a não ser naqueles setores onde os empresá­ rios estivessem ameaçados de expulsão - como foi o caso das indús­ trias farmacêuticas e de borracha. Normalmente, sua posição é a de apoiar um programa industrial, embora não necessariamente centra­ do no capital nacional (Cerqueira 1977).

tremamente complexo devido a manutenção de duas frentes de negociação: Euro­ pa e Estados Unidos. A ambigidade foi possível entre 1934 e 1940, quando a Se­ gunda Guerra Mundial forçaria o governo brasileiro a uma definição em favor ou da Alemanha, ou dos Estados Unidos. Ver Wirth (1973).

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Poderiamos concluir este breve exame histórico da emergência dos empresários industriais resumindo o que pareceram ser os pro­ cessos envolvidos. Há dois períodos claramente distintos: o primeiro, que pode ser traçado desde o início da década de 20 até inícios da dé­ cada de 30 e o segundo que se estende até o Estado Novo em meados . da década de 40. • O primeiro período pode ser caracterizado pela emergência da atividade industrial como progressivamente diferenciada em relação ao pólo agro-exportador, definindo assim os empresários como ato­ res econômicos importantes. Uma estrutura de organização de inte­ resses aparece, tendo sua ação basicamente voltada para demandas coletivas necessárias à identidade do setor industrial em relação a ou­ tros setores da sociedade. Às atividades políticas dos empresários não são dirigidas predominantemente para o Estado enquanto tal e ’ sua prática caracteriza-se por favorecer opiniões mais liberais e descentralizantes. O segundo período é de progressiva diferenciação interna da classe, lado a lado com a burocratizaçâo das esferas ligadas, às ativi­ dades dos grupos industriais. Sua ação política voltou-se então, cada vez mais para o Estado como principal foco de atenção. A incapaci­ dade dos empresários de lidarem com conflitos intra e inter-classes fortaleceu o poder do Estado no sentido do estabelecimento das ba­ ses de negociação. Os empresários industriais gradualmente passa­ ram para uma posição de favorecer práticas antiliberais e um estilo corporativo de relações com o Estado o que, por sua vez, levaria à su­ bordinação de sua estrutura de representação de interesses. Desen­ volvimentos subseqüentes seriam particularmente influenciados por esta dependência frente ao Estado, em termos do processo de acumu­ lação e em termos da elaboração de políticas globais afetando os in­ teresses dos grupos industriais nacionais com relação a outros seg­ mentos da sociedade.

1945-1964: a elite industrial e o projeto de industrialização autônoma (o nacionalismo reconsiderado) O período entre 1945 e 1964 é caracterizado, como se sabe, como o experimento democrático no Brasil (Skidmore 1975). Parti­ cularmente entre 1935 e 1961, o país passou por um período relativa­ mente estável caracterizado pelo crescimento econômico e a utiliza73

ção do processo eleitoral como caminho legítimo para os cargos públicos. Se, na superfície, esse é o quadro mais geral que pode ser ofereci­ do a. cerca do período, um exame mais atento dos processos em curso revela uma contradição marcada entre várias tendências que emergi­ ram e tiveram o nacionalismo e o desenvolvimentismo como seus ele­ mentos unificadores. . Duas questões foram importantes durante esse período como assuntos predominantes nas discussões empresariais e no debate público. A primeira é a questão da expansão estatal na economia du­ rante fins da década de 40 e inícios da de 50 e a segunda é a questão da participação do capital estrangeiro na promoção do desenvolvi­ mento nacional em fins da década 50 e início da de.60. Essas duas questões refletiram a dinâmica do jogo do poder. Não havia um, mais muitos nacionalismos. A multiplicidade de definições ocorria tanto ao nível da produção intelectual quanto ao nível da prática mais específica dos diferentes segmentos sociais. É nesse período, por exemplo, que a expressão “burguesia nacional” tornou-se de uso corrente, expressando, a um tempo, a visão ideoló­ gica de diferentes definições intelectuais de nacionalismo e o papel supostamente concreto dos empresários industriais locais no procesde desenvolvimento econômico. Nosso ponto de partida é a definição da própria expressão “bur­ guesia nacional” que até agora vínhamos utilizando com reservas. Nesta expressão estão contidas algumas das questões mais funda­ mentais levantadas na seção anterior. Em primeiro lugar, se se enfo­ ca o termo “burguesia” chama-se a atenção para sua efetiva consti­ tuição enquanto classe, seu potencial organizacional em associações de grupos de interesses e seu papel no processo produtivo. Por outro lado, a palavra “nacional” chama a atenção para os valores e com­ portamento políticos dos industriais. Nesta seção focalizaremos o conjunto das questões levantadas pelo termo “nacional”, na tentativa de caracterizar o tipo de progra­ ma político dos industriais brasileiros na década de 1950. A questão a ser respondida refere-se a se os empresários locais tinham ou não efetivamente internalizado um projeto de industrialização nacional. Uma preocupação adicional desta discussão consiste em identificar, no contexto de um sistema político mais aberto, em que medida os industriais tinham aceitado as implicações da competição política em grande escala. 74

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Examinaremos, em primeiro lugar, algumas das opiniões que prevaleceram na literatura quanto ao papel do nacionalismo na déca­ da de 1950, particularmente no que se refere ao apoio das elites in­ dustriais ao chamado projeto de industrialização autônoma. Dado que a produção intelectual do período enfatizava o apoio burguês a uma ampla aliança nacionalista envolvendo as massas urbanas e o campesinato contra o imperialismo, a noção que geralmente se asso­ cia as posições dos industriais nessa época é a de que eles teriam constituído um grupo progressista e nacionalista (no sentido econô­ mico da palavra). Contudo, um exame preliminar dos documentos históricos acerca da participação empresarial durante o período su­ gere que tal não foi o caso. Focalizaremos primeiro o pensamento do ISEB (Instituto Supe­ rior de Estudos Brasileiros) - para então examinar as orientações políticas da elite industrial quanto às mesmas questões, tendo como base as atas de reuniões da indústria e a discussão no “Forum Rober­ to Simonsen” da FIESP - um centro de debates dos industriais pau­ listas, criado durante a década de 1950. Recentes revisões críticas do pensamento da CEPAL formula­ das pelas teorias da dependência sugerem que, no caso da América Latina como um todo, e particularmente no caso do Brasil, o papel nacionalista básico da praxis política da burguesia foi superestima­ do. A razão de tal ênfase reside no papel supostamente estratégico da burguesia no confronto com o capital estrangeiro e no estabeleci­ mento de um complexo industrial autônomo numa época em que a industrialização através da substituição de importações estava no seu auge (Santos, T. 1970; Bodenheimer 1971, 1972; Cardoso e Faletto!970). Por outro lado, intelectuais progressistas e grupos de es­ querda acentuaram o papel nacionalista da burguesia em termos de se juntar às classes trabalhadoras num tipo de aliança que daria lugar à definição de um programa político próprio. Como se sabe, nenhuma das expectativas acima se materializou, visto que o desenvolvimento histórico dos eventos demonstrou por si mesmo a fragilidade, tanto da alternativa econômica baseada num • projeto de industrialização autônoma, quanto da solução política ba­ seada nas alianças populistas. A primeira foi evidenciada pela crise do modelo de substituição de importações e a última pelo golpe mili­ tar de 1964. O que a euforia nacionalista da década de 1950 ocultava era, an­ tes, o fato de que, do ponto de vista econômico, o país tornava-se cada vez mais dependente de investimentos intensivos de capital e da • 75

utilização de tecnologia avançada enquanto, ao nível político, esta­ vam sendo lançadas as bases para o regime de tipo burocráticoautoritário geralmente associado à essa fase particular do processo de acumulação de capital nos países dependentes. (Cardoso 1973-a, p. 4). . Se nada disso constitue novidade hoje, cumpre ressaltar, contu­ do, que a discussão do nacionalismo na década de 1950 obscureccu o papel político desempenhado pelos empresários industriais locais nessa época, tanto em termos da constituição do regime autoritário quanto da definição de uma economia internacionalizada. Não seria exagero dizer que a falta de uma compreensão adequada acerca do nacionalismo burguês a década de 1950 distorce ainda hoje a percep­ ção dos intelectuais acadêmicos sobre as articulações políticas e eco­ nômicas dos empresários industriais nacionais com as empresas esta­ tais e as corporações multinacionais. , É assim, pois, que se torna crucial investigar como os empresá­ rios industriais se posicionaram em termos da discussão do projeto de industrialização autônoma, particularmcnte em vista do fato de que, paradoxalmente, o período se caracteriza efetivamente pelo declínio do modelo de industrialização de substituição de importa­ ções, dando lugar à maciça penetração do capital estrangeiro, acres­ cida da expansão do Estado no âmbito econômico como agente pro­ dutivo que também teve início nesse período, a partir da criação da indústria siderúrgica estatal, durante o Estado Novo. Lado a lado à relativa estabilidade possibilitada a nível institu­ cional pela definição de uma constituição liberal (cujos efeitos seriam sentidos na década de 50), a gênese dos processos que informariam a nova redefinição de alianças em 1964 estava já a caminho. A industrialização através da substituição de importações foi possibilitada pela conjunção de uma série de fatores após 1945. Em primeiro lugar, o período de guerra estimulou a produção interna de bens de consumo que eram previamente importados. Segundo, hou­ ve uma combinação de elementos na política de comércio exterior que contribuiu para a expansão da indústria doméstica de bens de consumo duráveis, ao mesmo tempo estimulando uma capacitação da infra-estrutura industrial através de importações de tecnologia. Esta política discriminava severamente as importações de bens de consu­ mo não essenciais e mantinha tarifas reduzidas para os bens de capi­ tal importados (Tavares 1964, p. 78). Mas o modelo de substituição de importações muito cedo se re­ velaria limitado, no sentido de que a produção interna de bens de 76

consumo acarretava volumosos c pesados investimentos de capital que não poderíam ser supridos internamente, seja em termos de tec­ nologia ou mesmo de recursos financeiros. O fato do Estado ter sido chamado para preencher essas lacunas já era uma indicação dos limites do modelo de substituição de impor­ tações. Entre 1951 e 1954, agências governamentais tais como o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) foram criadas para assegurar a oferta de crédito industrial, bem como o monopólio estatal do petróleo - a Petrobrás - para operar na área de insumos básicos. Outras agências importantes surgiram no período com o objeti­ vo de resolver os problemas da expansão industrial na área de incen­ tivos ligados ao setor exportador, por um lado, bem como da con­ centração industrial, por outro. Entre as primeiras, a mais importan­ te é a CACEX (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil) destinada a facilitar as importações de maquinaria exigidas por no­ vos investimentos. Dentre as agências projetadas para tratar do problema da concentração industrial, podem ser citadas o Banco do Nordeste e a SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia). Mas lado a lado a essas medidas de apoio à expansão industrial, o segundo governo de Vargas (1951-54) implementou uma política de maior proteção das classes trabalhadoras que ía desde políticas sa­ lariais até o estímulo à organização das classes trabalhadoras sob a égide do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). A concepção naciona­ lista de Vargas contemplava a criação de uma nação independente através da industrialização e da intervenção estatal na economia, atendendo assim às aspirações de toda a população. No entanto, seu projeto populista encorajou a resistência por parte de importantes segmentos da população que, num sentido, es­ tavam excluídos de sua política de nacionalismo progressista. Setores dos grandes grupos industriais, por exemplo, dependiam grandemen­ te de tecnologia externa e a política seletiva de Vargas contra o capi­ tal estrangeiro, embora favorecendo a produção de bens de consumo para o mercado interno, dificultava sua expansão. Por outro lado, o país passava por uma considerável expansão das classes médias urbanas que sofriam diretamente os efeitos das políticas inflacionárias. Os militares foram progressivamente excluí­ dos do arranjo nacionalista de Vargas e esse fato acrescia a impossi­ bilidade de reconciliação de um projeto populista progressista com a reação dos segmentos da sociedade internamente excluídos. 77

A partir de Café Filho observa-se uma orientação governamen­ tal definidamente mais favorável para o capital estrangeiro. Em janeiro de 1955, foi instituída “Instrução 113” da SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito). No primeiro parágrafo da instrução definia-se que “a CACEX permite as importações sem cobertura cambiátl para os investimentos estrangeiros no país dirigi­ dos para a complementação de equipamentos ou a melhoria dos já existentes”. Além disso a CACEX tinha também o poder de autori­ zar às empresas brasileiras a importação de equipamento financia­ do no exterior, “desde que o pagamento anual não ultrapasse 20% do valor total dos empréstimos” (Diário do Paraná, Janeiro 20, 1955). Em última análise, a “instrução-113” abriu o caminho para a expan­ são de investimentos estrangeiros diretos no país, restringindo, as­ sim, a industrialização através da substituição de importações ’ Kubitscheck subiu ao poder com uma plataforma que Skidmore denomina de “nacionalismo desenvolvimentista” (1975, p. 207). Em outras palavras, seu programa reconciliava as novas tendências em desenvolvimento baseadas no capital estrangeiro e a dimensão nacio­ nalista não radical sobrevivente do período Vargas. O principal obje­ tivo do Programa de Metas” de Kubitschek era o de acelerar o pro­ cesso de acumulação elevando a produtividade dos investimentos existentes e aplicando novos investimentos em atividades produtivas alternativas (Benevides 1976, p. 210). Assim conseguiu-se a um tem­ po expandir e diferenciar o setor industrial interno, paralelamente a um crescente processo de internacionalização.. A indústria automobilística, por exemplo, fói implantada du­ rante esta época como parte do Programa de Metas. Esse foi um caso típico da natureza complementar das indústrias domésticas e das em­ presas estrangeiras chamadas a desenvolver a indústria automobilís­ tica brasileira, como mostrou Luciano Martins em sua análise do período (1973, p. 532). A indústria automobilística anteriormente consistia numa série de empresas de tamanho médio produzindo

9 Foi durante o segundo governo de Vargas que a Instrução n’ 70 da SUMOC (Su­ perintendência da Moeda e do Crédito) foi baixada, inaugurando uma politica ta­ rifária de acordo com a qual os produtos importados eram classificados quanto à sua possibilidade de serem produzidos internamente. Esse sistema permitiu a im­ portação de bens prioritários para atender à necessidade da indústria nacional, ao mesmo tempo que mantinha barreiras às importações de bens de consumo manu­ faturados (Tavares 1974).

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componentes e peças de reposição para automóveis montados no Brasil. Agora que eles seriam produzidos internamente, os grupos es­ trangeiros, ao invés de deslocarem a indústria local de acessórios, es­ timulariam seu crescimento, bem como absorvendo e também expan­ dindo a produção doméstica de aço. Curiosamente o grupo encarre­ gado dos projetos na área (o GEIA - Grupo Executivo da Indústria Automobilística), apoiava o estabelecimento da indústria automo­ bilística em termos de uma posição nacionalista bastante clara cujo fundamento exato se encontra, não na exclusão do capital estrangei­ ro, mas no fato de a indústria automobilística promover a expansão de empresas domésticas.. Assim, pode-se dizer que várias tendências nacionalistas se abri­ gavam sob o rótulo geral da ideologia nacionalista global que carac­ terizou o período Kubitschek. Skidmore fala de pelo menos de três tipos de nacionalismo vigentes na época. O primeiro seria o neoliberal, que considerava necessidade de capital estrangeiro incondi­ cionalmente, excluindo inteiramente os controles governamentais. O segundo era o desenvolvimentista-nacional que propunha a necessi­ dade de capital estrangeiro, mas controlado por uma série de normas e regulamentações do Estado. O último é o nacionalista radical que se prendia ainda à noção de substituição de importações como me­ lhor alternativa na suposição que a industrialização baseada em im­ portações prejudicaria a economia do país, ainda grandemente de­ pendente da exportação de bens primários (Skidmore 1975, p. 118). Kubitschek conseguiu estabilidade graças a uma política de compromissos entre essas tendências. Do ponto de vista dos empre­ sários industriais, o nacionalismo desenvolvimentista tinha uma van­ tagem sobre o nacionalismo de Vargas na medida em que, entre ou­ tras coisas, desviava a atenção da intervenção estatal na economia destacando, pelo contrário, a função complementar que as empresas controladas pelo Estado poderiam desempenhar em termos do forne­ cimento de insumos básicos (Benevides 1976, pp. 218-219). A outra importante mudança na ideologia do desenvolvimento de Vargas para Kubitschek era que o crescimento econômico não estava mais associado à idéia de emancipação econômica nacional. Mas embora conseguindo assegurar a estabilidade no seu perío­ do de cinco anos na presidência, a questão do capital estrangeiro es­ taria na base da polarização emergente por volta de inícios da década de 1960, particularmente no que se refere à remessa de lucrôs para o exterior. Desenvolveu-se um grande e intenso debate dentro dos círculos de elite mais restritos e através dos meios de comunicação 79

quanto a um caminho para o desenvolvimento econômico do país a partir de então. As raízes desse debate repousam na produção intelectual do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), onde eram confrontadas e expressas as várias tendências, do ponto de vista dos grupos de elite. O ISEB foi criado por decreto durante a presidência de Café Fi­ lho, em 14 de julho de 1955. Embora formalmente vinculado ao Mir nistério de Educação, o ISEB devia funcionar autonomamente com o propósito explícito de pensar o desenvolvimento do país, congregan­ do um número de intelectuais importantes cujas discussões constitui­ ríam, após sucessivas reinterpretações por diferentes grupos da es­ querda, a base ideológica para a mobilização que ocorreu em inícios da década de 1960 que, como se sabe, culminou no golpe de 1964. 10 Embora mostrando diferenças internas substanciais, os aspectos do pensamento ISEB que interessam à nossa análise podem ser resu­ midos em termos do alinhamento de opiniões quanto à questão na­ cional. O eixo básico das colocações teóricas do ISEB consistia numa visão dualista da sociedade como função dos setores tradicional e moderno. A nação correspondería basicamente ao setor urbano mo­ derno, ao passo que a anti-nação representaria as forças agrárias tra­ dicionais. Da mesma forma como o dualismo caracterizava o pensamento autoritário da década de 1930, na década de 50, os intelectuais tam­ bém partiam de uma perspectiva dicotômica. Como foi mostrado na seção anterior, a polaridade da década de 30 seria superada a nível teórico pela resposta de uma estrutura política forte e organizada. Na década de 1950, as propostas dos intelectuais para a solução do dualismo eram a via capitalista avançada através do desenvolvimen­ to econômico. É interessante observar que, enquanto na década de 30 a solução do “Estado forte” era pensada como forma de se superar os conflitos decorrentes da incorporação dos setores “atrasados” da sociedade,

10 O ISEB absorveu um pequeno grupo de intelectuais conhecido como o “Grupo de Itatiaia", criado em 1952. Seus membros iniciais incluiram Hélio Jaguaribc, Guerreiro Ramos, Cândido Mendes, Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisicr, composição que mais tarde se expandiría com a inclusão de novos membros, já sob o ISEB.

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na década de 50 essa questão é colocada em plano secundário, como se a estabilidade temporária e a natureza aberta do sistema político tivessem, por assim dizer, levado os intelectuais a supor que os prin­ cipais conflitos já tinham sido contornados, possibilitando, portanto,. uma ênfase no desenvolvimento econômico. Assim, de acordo com os intelectuais do ISEB, a contradição básica a ser superada era entre a nação e a anti-nação. Somente num segundo estágio a contradição capital vs. trabalho emergiria, visto que, na opinião desses intelectuais, todos os setores sociais estavam profundamente envolvidos na tarefa de promover o crescimento. Nesse contexto, de acordo com tal raciocínio, um programa na­ cional contra o imperialismo seria particularmente eficaz em vista do seu potencial de promoção do consenso entre as várias forças sociais, modernas e tradicionais. Daí a possibilidade de convergência dos in­ teresses do proletariado, da burguesia industrial, do campesinato, e das classes médias urbanas (Jaguaribe 1958, p. 30). O segmento nacionalista mais pragmático e moderado do ISEB, que incluía Cândido Mendes e Hélio Jaguaribe, tinha uma visão ins­ trumental do nacionalismo. Para estes autores, o nacionalismo serviria ao propósito da manipulação do sistema intermo de alianças pela “burguesia nacional” fundado numa ideologia que propiciaria aos industriais poder de barganha (Mendes de Almeida 1963, p. 333). Outrossim, as posições dos autores acima mencionados quanto ao capital estrangeiro implicavam o controle estatal sobre as atividades dos grupos externos como meio de neutralizar os efeitos negativos da penetração estrangeira. Dever-se-ia exercer controle sobre as impli­ cações espoliativas e colonizadoras do capital estrangeiro para que o país pudesse se beneficiar da sua presença. (Jaguaribe 1958, p. 168; Mendes de Almeida 1963, p. 332). Por outro lado, a versão radical e pragmática do ISEB, repre­ sentada por Sodré e Vieira Pinto, por exemplo, propunha o naciona­ lismo como um lema na luta do país contra o imperialismo. De acor­ do com esses autores, o nacionalismo poderia levar às mais diversas situações, inclusive à configuração histórica que assumiu na Alema­ nha e Itália. Mas num país de estrutura colonial como o Brasil, o na­ cionalismo deveria ser considerado como meio de liberação (Sodré 1963, pp. 180-181). Nessa versão não havia lugar para o capital es­ trangeiro, cujas implicações, de acordo com Vieira Pinto, seriam as de competir internamente com o capital doméstico, além de introdu­ zir interferência política numa área decisória que deveria ser conser­ vada nas mãos da comunidade nacional (Vieira Pinto 1960). Além 81

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disso, Sodré enfatizava que a noção da sobrevivência do país baseada na dependência ao exterior era antiga e superada (Sodré 1963, p. 182). Apesar das distinções entre estas duas versões de nacionalismo dentro do grupo do ISEB (Toledo 1973), suas posições quanto ao pa­ pel político da “burguesia nacional” eram bastante semelhantes. Traduzindo essas colocações numa linguagem mais atual, havia uma expectativa geral de que a burguesia se tornaria hegemônica e final­ mente promovería uma revolução que eliminaria a política clientelista e o Estado “cartorial” (Jaguaribe 1958, p. 99). O projeto de desenvolvimento autônomo pode ser assim resumi­ do em termos de uma revolução conduzida pelo setor moderno da nação representado pela burguesia industrial nacional que, para pro­ mover o desenvolvimento do país, deveria impor à sociedade um con­ junto de transformações, dentre as quais a mais importante seria a necessária eliminação dos privilégios mantidos pelo setor tradicio­ nal. Tal projeto seria possível através de uma aliança da “burguesia nacional” com o proletariado e as classes médias. Como se sabe, uma revolução efetivamente ocorreu, mas não envolvendo o tipo de programa e as razões alegadas por esse grupo de intelectuais. Uma razão pela qual a esperada revolução burguesa não se deu tem a ver com o fato de que os vínculos entre as posições dos intelectuais e as dos grupos industriais nacionais, embora fortes no início, tinham-se progressivamente “desvanecido” desde a criação do ISEB até os anos anteriores ao golpe militar de 1964. Um exame mais atento das posições da liderança industrial nos encontros e con­ gressos da indústria durante a república populista e, mais tarde, no “Fórum Roberto Simonsen”, revela que este foi precisamente o caso. Como resultado da natureza aberta do regime, núcleos alternati­ vos de debate e expressão da sociedade civil começaram a emergir, dentro e fora do aparelho de Estado. Entre 1945 e inícios da década de 1950 a estrutura corporativa oficial atravessava uma fase dinâmi­ ca, constituindo-se num locus para a expressão de interesses indus­ triais, particularmente da sua liderança. Mas a partir de meados de 50, já podiam ser identificados indícios de maior flexibilidade da es­ trutura corporativa. Em primeiro lugar, dado que a Confederação Nacional da In­ dústria seria progressivamente assediada por elementos do regime populista em sua tentativa de absorção dos interesses industriais ao programa nacionalista radical (por volta de inícios de 60), a liderança industrial passaria gradualmente a procurar fontes alternativas de ar82

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ticulaçào de interesses. Assim, a percepção de que a CNI era uma arena demagógica antes que de representação legítima de interesses, teria suas origens nesse período. Em segundo lugar, os grupos industriais paulistas, mais nume­ rosos e fortes em termos dos interesses industriais que representa­ vam, começaram a se ressentir da eleição desproporcional de candi­ datos dos estados menos industrializados para a diretoria da Confe­ deração (cada Estado da Federação representado na CNI tinha, e ainda tem, o direito a um voto nas eleições para a diretoria). Como resultado, começaram a ser organizadas associações civis paralelas à estrutura corporativa, particularmente nos setores mais dinâmicos da atividade industrial, em grande parte sediadas no estado de São Paulo mas com base nacional de representação. A mais expressiva dessas associações - A ABDIB (Associação Brasileira para o Desen­ volvimento das indústrias de Base) - foi fundada neste período e per­ manece ainda hoje como um núcleo poderoso de interesses da indús­ tria. Em terceiro lugar, dentro da própria estrutura corporativa apa­ receram núcleos de expressão da classe industrial relativamente autô­ nomos, lado a lado à crescente freqüência de encontros formais e congressos industriais nacionais (e regionais) organizados com o ob­ jetivo de debater questões específicas da indústria, além do apareci­ mento de publicações ligadas à indústria. As atividades desenvolvidas dentro do segmento paulista da CNI são um caso em questão. O “Forum de Debate Roberto Simonsen” foi fundado em 1955 tendo como objetivo a críação de um local de discussão e formação de opinião dentro da classe industrial pau­ lista (Estatutos Forum Roberto Simonsen 1959). Juntamente com o Pensamento da Indústria (publicação que resumia as atas dos con­ gressos e discursos dos líderes industriais paulistas) o Forum estava ligado à FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo) e à CIESP (Centro de Indústrias de São Paulo). A atividade básica do Forum era a de promover conferências em que os oradores poderiam ser industriais ou intelectuais especificamente apontados por seus diretores. Por esta razão, é possível su­ por que grande parte da discussão que ali teve lugar representa fiel­ mente os pontos de vista da liderança industrial quanto a uma série de questões que ganharam notoriedade durante a década de 1950. Quanto aos encontros formais, os mais importantes foram: (a) a Primeira CONCLAP (Conferência Nacional das Ciasses Produtoras) que teve lugar em Teresópolis em 1945; (b) a Segunda CONCLAP, 83

Araxá 1949; (c) o Segundo Encontro Geral da Indústria, Porto Ale­ gre, 1955; (d) o Terceiro Encontro Geral da Indústria, Recife, 1957 e' (e) a Conferência Internacional sobre Investimentos que teve lugar em Belo Horizonte em 1958. Uma série de encontros regionais dos grupos industriais paulistas também ocorreram no interior do estado de São Paulo. * Considerando em primeiro lugar as posições expressas durante essas conferências, é possível observar que a definição dos empresá­ rios do papel do capital estrangeiro oscilava de uma percepção apu­ rada da necessidade de atração de tais investimentos até uma delimi­ tação mais específica das áreas prioritárias de investimento estrangei­ ro sob o controle estatal. Em termos gerais, as posições dos empre­ sários durante o período analisado revelam uma definição própria de nacionalismo a qual pode ser resumida na fórmula: capital estrangei­ ro, mais iniciativa privada nacional mais controle estatal dos recur­ sos básicos, e ausência de competição entre os três. É nesse sentido que se poderia afirmar que as bases para o modelo internacionaliza­ do da década de 1960 teriam sido lançadas na década precedente. Na primeira CONCLAP (1945), a definição da elite industrial sobre o capital estrangeiro é ainda bastante vaga, embora, por surprendente que possa parecer, apareça uma sugestão referente a um modelo de investimento misto em que o capital estrangeiro seria in­ troduzido no país em associação com o Estado e o capital nacional privado (carta de Teresópolis 1945, p. 9). Como se sabe, a solução dos investimentos conjuntos (“Joint Ventures”) seria uma das mais frequentes após a década de 1970 no Brasil, e é interessante observar que nas primeiras formulações acerca da presença de capital estran­ geiro no país tal modelo já tivesse sido pensado. O cerne do documento de Teresópolis era a recomendação de “facilidades e estímulo ao afluxo do capital estrangeiro destinado a objetivos econômicos e sociais, assegurando as garantias necessárias de tratamento igualitário, salvo nos casos em que os interesses funda­ mentais do país estejam em jogo” (Carta de Teresópolis 1945, p. 9). Os interesses fundamentais do país não são especificados, mas o documento revela claramente uma preocupação com o controle de recursos estratégicos que poderíam eventualmente servir de base à expansão industrial. Tal preocupação aparece em uma das poucas medidas concretas e específicas sugeridas pelo documento, relativa à criação do Ministério das Minas e Energia. Na conferência de Araxá, as posições dos industriais quanto ao capital estrangeiro tornaram-se mais específicas em termos de medi84

das concretas, muito embora, como um todo, ainda se assemelhas­ sem às anteriores. A principal preocupação então era a de sugerir formas pelas quais o capital estrangeiro pudesse ser atraído e integra­ do à economia do país. Uma das recomendações básicas nesta confe­ rência foi a de que “os impostos sobre os lucros remetidos para o ex­ terior não deveríam ser aplicados aos lucros das companhias estran­ geiras reinvestindo no país” (II CONCLAP: Recomendações 1949, p. 97). Novamente neste caso, uma das sementes da internacionaliza­ ção futura estava presente, qual seja, a garantia da multiplicação in­ terna de investimentos estrangeiros através da concessão de incenti­ vos fiscais. No início da década de 50, pois, as tentativas da elite industrial no sentido de chamar a atenção dos investidores estrangeiros para as condições favoráveis vigentes no país tinham ainda muito a ver com uma orientação nacionalista, especialmente porque, através da valo­ rização positiva das qualidades inerentes à nação, aspectos tais como a instabilidade e a agitação políticas podiam ser deixados em segun­ do plano. Luciano Martins, em sua análise de criação do BNDÉ (1973, pp. 493, 500-ss.), por exemplo, sugere que a elite empresarial brasileira que participou nas negociações com o governo dos Estados Unidos para a concessão de ajuda econômica em 1951 chegou a sugerir o tema da defesa contra o comunismo internacional como razão prin­ cipal para aprovação do financiamento. Em outras palavras, em seu esforço por atrair a atenção de investidores estrangeiros, os empresá­ rios brasileiros utilizaram um argumento que geralmente é tido como preocupação dos próprios americanos nessa época.

A “Instrução 113” da SUMOC atenderia parte dessa demanda de investimentos externos. A posição dos líderes industriais quanto a essa instrução foi inicialmente bastante receptiva. O presidente da FIESP, Antônio Devisate, afirmava, num informe de imprensa, que ele era favorável à Instrução embora apontando, de uma perspectiva nacionalista, que “a industrialização do Brasil não ameaçava nin­ guém” (o Estado de São Paulo, janeiro 27, 1955). Referências esparsas adicionais na imprensa durante o mês de janeiro de 1955 mostram que o objetivo do debate era convencer os estrangeiros das condições de investimento favoráveis que o Brasil poderia oferecer. Um editorial de “O Globo” solicitava uma política de ajuda norte-americana enfatizando-a como meio de assegurar o poderio norte-americano na América Latina (O Globo, janeiro 18, 85

1956). Outro importante jornal afirmava a necessidade de circulação de capital no mundo livre, apontando que os Estados Unidos eram a principal fonte de capital, e, portanto, esperava-se que o Brasil bene­ ficiasse com sua presença (Jornal do Brasil, janeiro 11, 1955). Nesse sentido, a política do presidente Eisenhower de estimular investimen­ tos privados americanos no Exterior através da concessão de taxas de redução de até 28% sobre esses investimentos tinha, em grande parte, boa receptividade por parte da imprensa brasileira (O Diário de Notícias, janeiro 9, 1955). O relatório da representação da CNI na conferência InterAmericana de Investimentos de Nova Orleans seguia a mesma linha de argumentação, apontando, além disso, para a aliança que poderia ser estabelecida entre os capitalistas estrangeiros e locais (Relatório da Representação da CNI na Conferência Inter-Americana de In­ vestimentos de Nova Orleans 1955, p. 25). As recomendações da in­ dústria nacional nesse documento indicam também a preocupação dos empresários com o estabelecimento de um nexo complementar entre a indústria e o setor exportador através da concessão de crédito para a mecanização da agricultura (Relatório ..., p. 27), além de me­ didas específicas para o controle das atividades do capital estrangeiro no país. Uma das medidas que a representação brasileira na conferência de Nova Orleans propunha era particularmente reveladora da visão dos industriais quanto ao papel instrumental da intervenção estatal em áreas onde a iniciativa privada era incapaz de exercer controle. Ela afirmava que “os contratos de financiamento externo devem es­ tar sujeitos à intervenção governamental com a participação de re­ presentantes da classe industrial nos casos de interesse de relevância nacional em que a iniciativa privada ou o governo não tenham capa­ cidade de execução” (Relatório... 1955, p. 38). Além de reforçar o poder do Estado, o relatório revela que um padrão consultivo entre as esferas privada e pública vigorava com toda intensidade como, de resto, deixa claro um estudo (Cardoso 1972a). O Segundo Encontro Geral da Indústria que teve lugar em Por­ to Alegre em 1955 acrescentaria um novo elemento a esse conjunto de medidas que progressivamente definiríam o cenário de internacio­ nalização a nível político. A principal sugestão aqui quanto ao capi­ tal estrangeiro refere-se à proposta de absorção de técnicos e equipa­ mentos estrangeiros, “desde que não seja em área em que a indústria nacional esteja atendendo satisfatoriamente o mercado” (Carta de Princípios da Indústria 1955, p. 33). 86

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Nos dois anos seguintes as posições reveladas pelos empresários industriais demonstrariam maior especificidade com relação às con­ dições pelas quais a expansão do Estado e do capital estatal dever-seiam pautar. Mas em nenhum desses casos os empresários chegariam ao ponto de se opor incondicionalmente, seja ao primeiro, seja ao se­ gundo tal cómo preconizado pela idéia de uma burguesia “nacio­ nal” No Terceiro Encontro Geral da Indústria, os industriais aponta­ riam as vantagens recíprocas de países investidores e receptores, além de especificar onde e como os investimentos deveríam ser aplicados. Foram sugeridos uma série de controles sobre o capital estrangeiro, tais como a proibição das empresas estrangeiras de importarem equi­ pamentos a taxas de câmbio mais baixas, bem como de terem acesso às agências de crédito estatais. Esta última limitação aplicava-se a to­ das as firmas que tivessem 50% ou mais de capital estrangeiro (III Reunião Plenária da Indústria, Relatório 1957, p. II). Como vere­ mos, a questão do acesso às agências de crédito estatais se tornaria particularmente controversa no que se refere à participação das cor­ porações multinacionais no modelo econômico da década de 1970. Quanto à questão da intervenção estatal, o relatório menciona­ do especificava claramente as condições de controle estatal dos meios de produção: (a) onde quer que problemas de segurança nacional es­ tivessem envolvidos e (b) onde quer que os investimentos estivessem além da capacidade da iniciativa privada. Em ambas as circunstân­ cias, o formato proposto envolvería consulta prévia a associações de interesses industriais representadas no Conselho Nacional da Econo­ mia. “A indústria acentua o fato de que a livre iniciativa é um fator para o progresso e crescimento do país, mas aproveita a oportunida­ de para apresentar uma moção de confiança na Petrobrás” (III Reu­ nião Plenária ... 1957, p. II). Localizando-se dentro do espaço de uma dependência contradi­ tória ao Estado em termos da consolidação dos setores industriais es­ tratégicos de base por um lado, e do capital estrangeiro em termos de tecnologia para a expansão industrial por outro, as propostas do Terceiro Encontro Geral revelam, finalmente, as primeiras tentativas dos empresários locais na consecução de um certo grau de autono­ mia frente ao Estado. Assim, foi sugerida uma nova lei para substi­ tuir a “Instrução 113” que, de acordo com os industriais, de saída, não havia sido observada. Foi também sugerida a descentralização admi­ nistrativa das agências de crédito oficiais, juntamente com a propos­ ta do estabelecimento de incentivos para as pequenas e médias em-

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presas. Finalmente, porém de não menor importância, constaria das propostas a significativa moção no sentido da criação de uma corpo­ ração que assegurasse o crédito industrial autônomo. Essa corpora­ ção seria a “Fundação do Banco de Desenvolvimento Industrial”, que nunca chegou a existir. Essas propostas, teriam, ademais, a pre­ tensão de conferir à indústria organizada maior controle sobre seg­ mentos relevantes do aparelho de Estado. Em 1956 o presidente da FIESP, Antonio Devisate mostrara preocupação com a frouxidão das regras contidas na “Instrução 113”. Durante a Oitava Convenção de Industriais do Interior de São Paulo, ele foi enfático quanto à necessidade de se alterar a “Instru­ ção 113”, tendo iniciado seu discurso com a afirmativa de que “o Brasil não pode prescindir da ajuda do capital estrangeiro. As opor­ tunidades de investimentos existentes no país vão além da nossa ca­ pacidade de formação de capital. A participação do capital estrangei­ ro é portanto necessária” (o Pensamento da Indústria 1956, p. 17). Contudo, continuava ele, “uma política excessivamente liberal com relação ao capital estrangeiro pode afetar os interesses da indústria nacional se não forem garantidas condições de concorrência igual” (O Pensamento da Indústria 1956, p. 19). Um dos resultados da VIII Conferência dos Industriais do Inte­ rior de São Paulo foi uma mobilização definitiva contra a “Instrução 113”, resultando no envio de um telegrama pelas lideranças ao presi­ dente (O Pensamento da Indústria 1956. pp. 116-117). Novamente era ressaltado o fato de que os investimentos estrangeiros deviam ser seletivos, evitando, portanto, áreas do mercado já saturadas tais como as de têxteis, cerâmicas, calçados e outros setores tradicionais da atividade industrial nacional. Os investimentos estrangeiros deve­ ríam ser dirigidos, ao contrário, para a área de bens de capital - cujo desenvolvimento era necessário para o país - ou para áreas de inves­ timentos com maturação a longo prazo.

A “Instrução 113” não propiciava aos industriais nacionais o acesso à importação de equipamentos, com o que se restringia a re­ novação da maquinaria exigida pela expansão industrial. Contudo, já por volta de 1956, a industrialização com base na substituição nas importações estava condenada ao fracasso, tendo-se já lançado a base de uma economia internacionalizada. A sociedade começou a se polarizar em torno da questão do na­ cionalismo de 1955 em diante e, muito mais, após Goulart chegar à 88

presidência em 1961, seguindo à renúncia dc Jânio Quadros. No que concerne aos empresários é possível observar uma mudança no con­ teúdo das discussões acerca do nacionalismo, de uma preocupação com o papel adequado do capital estrangeiro no modelo econômico para uma discussão em torno da questão da segurança nacional. Esse processo é particularmente visível no afastamento gradual das elites industriais dos intelectuais do ISEB, tal como expresso nos debates do Forum Roberto Simonsen. Duas fases distintas podem ser estabelecidas no funcionamento do Forum entre 1955 e 1964. Uma fase estende-se até 1959, quando os problemas da intervenção estatal e do capital estrangeiro cedem lugar à discussão de segurança nacional, legislação social e do papel das classes trabalhadoras no sistema político. Sob a extrema polari­ zação e divagem em torno da questão das reformas de base, os em­ presários afastam-se dos tipos mais radicais de nacionalismo, ali­ nhando-se com os militares e fínalmente apoiando o golpe. Este últi­ mo período constitui a segunda fase. Passaremos agora à consideração dos debates do Forum para caracterizar como alguns dos processos anteriormente mencionados evoluiram entre 1955-1964. O foco da análise será o conteúdo mutá­ vel das definições de nacionalismo das elites industriais e seu afasta­ mento das formulações do ISEB. Na conferência inaugural que abriu as atividades do Forum, o vice-presidente da FIESP, Manoel da Costa Santos, afirmava clara­ mente a posição dos paulistas quanto ao capitai estrangeiro, “advo­ gando um programa de orientação definitivo, capaz de traçar nossa evolução e de inspirar a confiança do capital estrangeiro (na nação)’’. (Costa Santos 1956, p. 43). A posição era ainda ambígua, embora ti­ vesse progredido ao ponto de fornecer sugestões concretas, tais como a eliminação da “Instrução 113” e a definição de áreas de investi­ mento. Mas à medida em que as discussões acerca do capital estrangeiro tornaram-se cada vez mais identificadas com as posições nacionalis­ tas radicais, os industriais tenderam a tratar a questão mais cuidado­ samente, quando não evitando-a inteiramenle. Tal como expresso pelos debates do Forum, os empresários começaram a associar sua postura frente ao capital estrangeiro ao temor de opiniões nacionalis­ tas extremas. Já em julho de 1955, Roberto de Oliveira Campos, que seria mais tarde Ministro do regime militar, criticava o nacionalismo ra89

dical no Forum por sua incapacidade de propor soluções concretas para os problemas do país (Campos 1956, p. 42). 11 No ano seguinte, época em que os intelectuais mais progressistas ainda tinham voz no forum, um deles foi questionado por um empre­ sário acerca da posição do país com relação a Rússia e China. Outro empresário ainda levantou uma questão sobre se o tipo de leis traba­ lhistas em discussão no país (tais como a participação dos trabalha­ dores nos lucros) não expulsaria o capital estrangeiro (Jaguaribe 1956, pp. 63-68). Já em 1957, Devisate expressava de modo mais claro o temor dos industriais pelo nacionalismo extremo enfatizando que “nosso (dos industriais) nacionalismo não é cego diante da realidade de de­ pendência mútua entre todas as nações” (Devisate 1957, p. 4). Em 1959 os debates no Forum apontavam claramente a irracio­ nalidade do nacionalismo como um projeto, fazendo alusão à ques­ tão do capital estrangeiro (Antunes 1959, p. 171). Finalmente, em 1962, os debates sugerem uma associação na percepção dos empresá­ rios entre Poder econômico e segurança nacional, independentemen­ te da origem do capital (Lira Tavares 1962, p. 36). Tal progressão nas opiniões dos empresários em relação aq capital estrangeiro mostra que não só o casamento entre eles e o ISEB fora bastante efêmero, como também que a chamada “burguesia nacional” estava longe de ser nacional no sentido econômico da palavra. Quanto à questão do controle e intervenção estatal, os debates do Forum passaram de uma posição relativamente inestruturada de sugerir os limites e áreas da ação governamental em 1956, para uma idéia da excessiva intervenção estatal como associada ao totalitaris­ mo, em 1959. (O Pensamento da Indústria 1956; Antunes 1959, p. 163). Aqui novamente, parece que a desconfiança gradual dos indus­ triais na orientação nacionalista do governo os tinha levado a uma

11 “Há uma grande margem de irracionalidade em nossa atitude quanto a esse problema (do capital estrangeiro). Uma das consequências é que o capital estran­ geiro... dirige-se para atividades de distribuição e para atividades manufatureiras. ... Tudo isso é agravado pelo lafo de que os nossos nacionalistas mais ferrenhos ' nunca apresentaram uma contribuição razoável à formulação de uma política ta­ rifária nacional que pudesse realmente estimular, e ao mesmo tempo proteger, os industriais nacionais. Daí a tragédia do nacionalismo sentimental. Ele é suficien­ temente orgânico para.repclir formas úteis de cooperação externa embora insuficientemente orgânico para propor uma alternativa àquilo que rejeita” (Campos 1956, p. 42).

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posição mais crítica quanto ao papel do Estado, apesar da situação de dependência empresarial ao apoio governamental para a expan­ são industrial. Já em 1957 sugeria-se explicitamente nos debates do Forum que o Estado deveria se restringir a atividades menos lucrativas (tais como transporte) embora concentrando seus esforços no desenvolvimento das atividades de base (tais como educação e serviços públicos). Outrossim, criticas à burocracia governamental também passaram a compor a agenda do Forum (Bailão 1957, p. 64). De 1959 em diante, o conteúdo dos debates adquire conotações cada vez mais emocionais, passando para a discussão de questões especifícamente políticas e sobre conflito social. As próprias publica­ ções do Forum incluíam, então, tópicos como “segurança nacional*’ e “legislação social no Brasil”. Em 1961, por exemplo, era questionada a legitimidade do con­ trole estatal sobre a área trabalhista. Os sucessivos aumentos sala­ riais eram vistos como prejudiciais à atividade industrial, tendo sido sugerido inclusive que os critérios salariais deveríam ser individuais e não coletivos. Em outros termos, isso significava afirmar que as deci­ sões sobre salários deveríam ser transferidas do Estado para a fábrica (Batalha 1961, pp. 84 e 99). Este último fato é sobremaneira importante, dada a tradição histórica de participação empresarial na elaboração da legislação do trabalho, além de expressar o grau de auto-afirmação e integração das demandas empresariais num contexto de progressiva polarização e crescente conflito social. Por outro lado, os intelectuais convidados no Forum naquela época eram mais conservadores, desenvolvendo noções que variavam de considerações sobre as implicações negativas da legislação do tra­ balho para o empresário (Nogueira Jr. 1961, p. 12), até os “perigos representados pelo comunismo para" os fundamentos da sociedade ocidental cristã” (Góes 1959, p. 45). Outros tópicos da discussão da elite industrial no início da déca­ da de 1960 tentavam deixar claro que a legislação trabalhista existente era tecnicamente de má qualidade no sentido de que os custos de pre­ vidência social eram demasiado altos para as empresas, ao passo que os benefícios concretos para o trabalhador eram demasiado peque­ nos (Maragliano 1961, p. 48). Além disso, dizia-se que as greves eram feitas por demandas de categorias sociais específicas em detrimento da coletividade (Nogueira Jr. 1961, p. 14).

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Os líderes industriais criticavam amplamente a política nacional de então. Costa Santos critica os líderes demagógicos e pede ordem social sob o pretexto de defender a democracia no país (Costa Santos 1961, p. 45). Devisate, em discursos destinados aos industriais paulis­ tas, ataca severamente a demagogia e a política de clientelismo co­ muns no legislativo (Devisate 1962, p. 38), além de criticar as greves e mostrar extrema preocupação com a manutenção de qualquer ordem legal no Brasil (Devisate 1962, pp. 42-43). A esta altura, o Fórum dedicava-se à discussão da segurança na­ cional como um dos temas principais. Já em 1962, fora apresentada no Forum uma definição de segurança vinculando-a à afirmação do poder dos militares (Lira Tavares 1962, p. 16). No mesmo ano, con­ trapunha-se a disciplina coletiva a uma revolução de esquerda como meio de alcançar o progresso, a revolução cubana era criticada e o medo de que o país pudesse divergir do mundo ocidental era ressalta­ do com bastante clareza. (Macedo Soares e Silva, 1962, pp. 82-87). Em suma, embora seja difícil avaliar quão conscientes os empre­ sários industriais se encontravam no que diz respeito a uma solução institucional do tipo do golpe militar de 1964, o fato é que, dois anos antes desse evento, a opinião da elite estava se formando em termos de idéias que claramente levavam a esta alternativa. É infelizmente impossível inferir a partir desse material empírico o grau de simpatia dos empresários pela idéia de um golpe ou mesmo o seu grau de organização para a Cfensecução de tal fim. O que os de­ bates do Forum deixam claro, no entanto, é o fato de que os indus­ triais estavam incompatibilizados com o governo Goulart desde seu início, em aspectos que vão desde as orientações de política econômi­ ca até os problemas resultantes da tentativa populista de incorporar a classe operária. Ainda em 1962, um debatedor no Forum pedia a organização dos grupos industriais em favor da segurança nacional, exigindo fir­ meza numa posição política contra a subversão (Ferraz 1962, pp. 139 e 165). Além disso, anuncia-se uma ruptura definitiva com o ISEB sob a alegação do seu caráter de agência para a difusão do comunis­ mo às custas dos contribuintes (Ferraz, p. 163). Num outro pronun­ ciamento, o auxílio dos militares é sugerido como solução para a cri­ se política (Pacheco e Silva 1962, p. 170). Finalmente, em 1964, pouco tempo antes do golpe, a polarização total da situação política no país levou os empresários industriais a ficarem do lado das forças autoritárias que promoviam o golpe. Esse alinhamento foi sugerido numa conferência pronunciada no Forum 92

em que a moção era a de que “a indústria de São Paulo daria sua contribuição para o esforço de ajudar o Brasil a resolver o problema institucional” (Mesquita Filho 1964, p. 9). Na década de 1950, pois, os empresários industriais passaram a atacar o nacionalismo radical e adotaram uma alternativa econômica que Cardoso chamou de “desenvolvimento dependente associado”. Além da ideologia que é atribuída aos empresários locais por outros segmentos sociais - em alguns casos ligados ao aparato de Es­ tado (tais como o grupo do ISEB), em outros casos atuando autonomamente (tais -como muitas organizações de esquerda) - é possível que outros fatores possam ter influído na percepção da burguesia como nacionalista, além de nacional. Um fator que tem sido freqüentemente mencionado, por exemplo, tem a ver com uma orientação para o mercado interno que tendeu a caracterizar o comportamento econômico dos empresários brasileiros. Tal orientação, como foi apontado por Kaufman, na medida em que levava apenas a um fortalecimento dos empresários no mercado interno, implicava uma redução de sua capacidade de competir no mercado internacional. Esse autor enfatiza que esse tipo de opinião, dado seu pessimismo, é uma espécie de profecia que se cumpre por si mesma (Kaufman s.d., p. 7). Embota seja certamente difícil verificar se o pessimismo estava efetivamente implícito no comportamento dos empresários, o fato é que, objetivamente falando, seria estrategicamente mais vantajoso a consolidação de sua posição no mercado interno nas fases iniciais do processo de industrialização. Entre outras coisas, a industrialização das áreas periféricas estava ocorrendo numa época em que a possibi­ lidade de concorrência com as economias centrais era remota devido a defasagens tecnológicas. O mercado interno era potencialmente mais promissor e a ocupação de espaços econômicos internos era portanto necessária. Nesse sentido, pois, longe de expressar uma pre­ tensão nacionalista, a orientação para o mercado interno dos empre­ sários locais deve ser vista como uma tentativa do grupo realizar seu próprio potencial econômico. ‘ Finalmente, vale a pena chamar a atenção para o papel desem­ penhado pela ideologia nacionalista na história política brasileira re­ cente. Ao que parece o nacionalismo como um todo representou uma função mais instrumental e circunstancial que um projeto político conscientemente definido da parte do Estado e dos grupos dominan­ tes. .93

Do ponto de vista do Estado,a ideologia nacionalista foi funda­ mental em terrhos do controle político das massas urbanas. Somente talvez no caso da manutenção de setores produtivos estratégicos tais como petróleo, aço e minerais - a abordagem nacionalista che­ gou a constituir o que poderia ser chamado de um projeto político definido pelo Estado. Tal projeto, no entanto, nunca significou a ex­ clusão da cooperação estrangeira como meio de realizar o desenvol­ vimento econômico. Pelo contrário, a discussão sobre o controle es­ tatal de áreas nacionais estratégicas desviou a atenção do problema da penetração do capital estrangeiro em outras esferas de produção durante os primeiros anos da década de 50. Mais tarde, essa natureza instrumental da ideologia nacionalista ficaria clara na identificação do nacionalismo com a noção de segu­ rança nacional, particularmente estimulada pelos militares e absorvi­ da por outros setores dominantes da sociedade, inclusive as elites in­ dustriais. O resultado de toda a discussão sobre o nacionalismo foi então - por volta dos primeiros anos da década de 1960, e particular­ mente após 1964 - a definição de um projeto de crescimento econô­ mico a todo custo. Tal foi o lema que inaugurou a era de autoritaris­ mo vigente no sistema político brasileiro até os dias atuais que, por assim dizer, correspondería à auto-afirmação do país na comunidade internacional.

Conclusões Os processos examinados neste capítulo podem ser corretamen­ te expressos como a revolução burguesa no Brasil, se forem vistos numa perspectiva a longo prazo da transformação de uma economia agro-exportadora para uma sociedade urbano-industrial plenamente constituída. No entanto, até muito recentemente, tal transformação era em grande parte vista da perspectiva do Estado como o condutor dos processos que ocorreram no período. Daí o fato de, paradoxal­ mente, a “revolução burguesa” (isto é, a expansão do capitalismo industrial) ter sido equacionada à falta de “hegemonia burguesa”. Nessa tradição, os grupos industriais locais foram situados como fra­ cos e incapazes de promoverem mudanças favoráveis à sua plena constituição como classe. Decidimos adotar uma perspectiva diferente para avaliar como, independentemente da posição estratégica desempenhada pelo Esta­ do num país de industrialização tardia como o Brasil, a ação inde­ pendente dos empresários industriais efetivamente contribuiu para o 94.

estabelecimento de determinados formatos institucionais no decorrer do tempo. Esses formatos institucionais se expressaram nas maneiras pelas quais os grupos industriais mediaram seus interesses em relação ao Estado, o que, em última análise, contribuiu para o fortalecimen­ to da burocracia pública e de uma classe política relativamente autô­ noma. . - Essa tendência ao fortalecimento do Estado pode ser encontra­ da mesmo em períodos em que o sistema político adquire um forma­ to relativamente aberto, dando lugar à inclusão de segmentos da so­ ciedade que se encontravam marginalizados do processo político. Particularmente em momentos em que a sociedade se torna polari­ zada e se coloca a ameaça de uma ruptura representada por conflitos crescentes que o sistema não consegue mais absorver, os empresários industriais privilegiam uma solução autoritária visando assegurar a estabilidade e a continuidade do processo de acumulação, como bem ilustram os casos de 1937 e 1964. Contudo, houve diferenças substanciais no decorrer do tempo quanto às diferentes alternativas políticas conducentes ao fortaleci­ mento institucional. Dai a importância de se avaliar as principais questões da discussão dos empresários industriais que compõem sua agenda de debates políticos e manifestação pública de opiniões. Pode-se tecer um paralelo entre os tópicos de discussão tomando-se por base os estágios iniciais de emergência dos industriais como ator econômico na década de 1930, por um lado, e a consolidação do ca­ pitalismo industrial avançado que se observa no Brasil na década de 1970, por outro. Em termos gerais, as questões básicas com que de­ frontam os grupos industriais podem ser resumidas em: a) o papel das classes trabalhadoras e os limites da sua participação política; b) o papel do Estado e os limites do controle e intervenção estatais e c) o papel da indústria local e os limites da participação de grupos exter­ nos. O conteúdo das discussões empresariais sobre tais questões, no entanto, variou grandemente no decorrer do tempo. Tal variação pode ser compreendida em função das diferentes nuances que, em cada momento, o enfoque sobre algum desses temas implicava quan­ to à meta da acumulação. Nesse sentido, a literatura parece correta ao enfatizar a percepção imediatista dos empresários em termos das implicações de algumas de suas demandas. Contudo, essa visão limi­ tada pode ser também interpretada, num sentido inverso, como ex­ pressando um padrão de pronta ação e resposta dos empresários in­ dustriais no que se refere à continuidade do processo de industriali95

zaçâo no Brasil, no sentido de que sempre levantaram questões-chave tocando de perto os aspectos da acumulação de capital e da expansão da atividade industrial em diferentes momentos no decorrer do tem­ po. Tal foi o caso da legislação trabalhista na década de 30, da ex­ pansão estatal na esfera das indústrias de base na década de 40 e da atração de capital estrangeiro na década de 50. Num sentido genérico, pode-se afirmar uma certa correspon­ dência entre os processos mais amplos de mudança política e a for­ mação e expansão da classe industrial no Brasil, partindo da defini­ ção de bases políticas do capitalismo industrial na década de 30, até a plena expansão do capitalismo industrial avançado na década de 1970. Em termos de mudança política, esse processo amplo revela três estágios que aproximadamente seguem-se a cada ruptura impor­ tante no sistema: (a) plena penetração do Estado na sociedade com a inclusão dos grupos urbanos (1930); (b) auto-identificação da comu­ nidade nacional no cenário internacional (a República Populista da década de 1950); e (c) a discussão das regras do jogo político entre os atores que compõem um Estado-nação plenamente consolidado (au­ toritarismo vs. democracia após 1964). Em termos dos grupos indus­ triais, as etapas correspondentes seriam: (a) emergência e autoidentificação em relação às classes agrícolas (1930); (b) expansão e diferenciação (1950); e (c) consolidação e diferenciação intra-classe opondo segmentos oligopolistas dos grupos industriais a segmentos de pequenas e médias empresas (1970). O diagrama a seguir (gráfico 2) é uma tentativa de resumir e ilus­ trar a discussão relacionando os processos de formação de classe e de mudança política. Na década de 1930 o país experimenta uma redefinição decisiva em direção ao capitalismo industrial e são lançadas, nesse período, as bases políticas para a expansão capitalista. O Estado desempenhou papel importante nesse processo, no sentido de que restringiu os con­ flitos decorrentes do crescimento da sociedade urbana. A atividade estatal foi particularmente importante em termos de regular os con­ flitos entre capital/trabalho evitando assim rupturas que, em seus es­ tágios iniciais de organização política, os empresários industriais não estavam organizacionalmente preparados a enfrentar. O Estado de­ sempenhou também papel importante em termos de assegurar as fontes de acumulação de capital que ajudariam a financiar a ativida­ de industrial, no sentido, por exemplo, de que as medidas protecio­ nistas para o café contribuíram para a manutenção da base agroexportadora. 96

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Os empresários industriais foram, no entanto, muito ativos, re­ velando capacidade de iniciativa na condução de uma série de medi­ das levando à integração do mercado interno, à criação de fontes de crédito e à garantia de um espaço de negociação direta com a buro­ cracia estatal. Embora nos anos anteriores a 1930 grande parte das atividades dos empresários não estivesse dirigida para o Estado en­ quanto tal (fato esse que contribuiu para o desenvolvimento de uma estrutura de grupos de interesses autônoma), o padrão de negocia­ ções diretas evoluiu mais tarde para a estrutura corporativa criada em 1937 e que ainda persiste. • As discussões anteriores ao Estado Novo revelavam uma preo­ cupação dos grupos industriais em garantir uma base econômica es­ tável e duradoura através da absorção de conflitos potencialmente disruptivos recorrendo a um governo autoritário e fortes mediações institucionais. Os grupos industriais eram, de fato, favoráveis ao for­ talecimento do Estado, como deixa entrever a semelhança entre o pensamento autoritário do período e os pontos de vista dos indus­ triais. Um período de relativa estabilidade e desenvolvimento indus­ trial através da substituição de importações seguiu-se ao período da guerra, mas a expansão industrial não podia se dar mais sem o apoio de atividades estatais em setores básicos e sem fontes externas de ca­ pital. Durante a década de 1950, é possível observar a emergência gra­ dual das duas questões acima apontadas (capital estrangeiro e inter­ venção estatal) como principal área de preocupação dos grupos in­ dustriais. A mola mestra da discussão nos primeiros anos da década de 50 foi, sem dúvida, a atração de capital estrangeiro e o apoio à idéia de investimentos estatais em vários setores-chave, tais como petróleo e mineração. A discussão do nacionalismo, nesse sentido, cumpriu essas duas finalidades. Eis porque da década de 1950 permaneceu uma impressão de que a “burguesia nacional" era um grupo progressista, desejoso de se aliar às classes média e operária com o objetivo de implementar um projeto de industrialização nacional. Mas os industriais rapidamente se afastaram de uma noção de nacionalismo que implicasse resistên­ cia ao capital estrangeiro, na medida em que tal posição vinculava-se a visões radicais do processo de mudança política. Em geral, durante a década de 1950, os grupos industriais ainda operavam com base numa estrutura corporativa, que teve seu perío­ do mais ativo particularmente entre 1945-55. Mas após 1955, a rigi98

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dez do modelo corporativo começou a se fazer sentir. Indicações des­ sa tendência podem ser encontradas na criação de loci alternativos de expressão tais como encontros formalizados com intelectuais e a criação de associações paralelas, operando fora da estrutura corpo­ rativa. Além disso, os grupos industriais já estavam suficientemente desenvolvidos e diferenciados no sentido de poderem atuar indepen­ dentemente em termos da FIESP em base regional, em oposição à CNI de base nacional e gradualmente corrupta. Como principal fonte de unificação durante o regime populista, o nacionalismo começou a perder seu vigor por volta do fim da déca­ da de 1950 e inícios da de 60, não mais exercendo apelo aos empresá­ rios industriais porque estimulava a mobilização das massas, inclusi­ ve a classe operária e o campesinato. Os empresários industriais só haviam favorecido o rótulo do nacionalismo “progressista” até o ponto em que prevalecia o interesse por conquistar um espaço na comunidade internacional, desta forma atraindo os investimentos es­ trangeiros. Assim, retiraram seu apoio à aliança populista, alinhán. do-se com os militares, cuja noção de nacionalismo equacionado à segurança nacional acabaria por favorecer um projeto de crescimen­ to econômico a -todo custo. Após 1964, tais custos seriam sentidos principalmente pelas clas­ ses trabalhadoras urbanas em termos de um programa de contenção da inflação baseado no congelamento dos salários e na absorção da poupança-privada. O crescimento econômico foi possibilitado pela crescente internacionalização do mercado e a expansão estatal em áreas chaves da atividade produtiva. Os efeitos de uma industrialização em grande escala podem ser agora sentidos numa variedade de questões da prática dos empresá­ rios industriais, as quais variam das reformas institucionais concretas da estrutura corporativa de representação de interesses até o esboço de uma nova constituição e de um formato aberto de sistema políti­ co. Esses são alguns dos tópicos que aprofundaremos na segunda parte da nossa análise.

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PARTE II

As elites industriais nacionais no Brasil pós-1964

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CAPÍTULO IU

AS EMPRESAS NACIONAIS NO CONTEXTO DE UMA ECONOMIA INTERNACIONALIZADA: A DÉCADA DE 1970

No presente capítulo será empreendida uma análise oa posição estrutural das empresas nacionais no contexto da economia interna­ cionalizada e estatizada da década de 1970 no Brasil, com duplo ob­ jetivo. Em primeiro lugar, em vista da ênfase que as interpretações prévias acerca da burguesia nacional conferiram à sua fraqueza como classp, decidimos investigar a posição das maiores empresas lo­ cais em relação às empresas estrangeiras e estatais como meio de identificar e caracterizar ao menos um segmento de elite das empre­ sas industriais brasileiras. Em segundo lugar, a caracterização econômica das elites empre­ sariais nacionais serve como base importante para a análise das ques­ tões políticas da maneira como percebidas pela liderança industrial. Muitas das questões que compõem a agenda de discussão da burgue­ sia na década de 70, tais como sua posição em relação ao capital es­ trangeiro e estatal, só podem ser compreendidas se tivermos como re­ ferencial o padrão real das relações econômicas das empresas privadas nacionais frente aos outros dois atores importantes no “modelo” de desenvolvimento no período pós-1964 no Brasil (as empresas estatais e as corporações multinacionais). Por paradoxal que possa parecer, quando os eventos históricos que resultaram no golpe militar de 1964 revelaram o apoio dos em103

presários industriais a um regime autoritário no Brasil, a literatura deixou de ver a burguesia nacional como principal eixo da coalisâo progressista que supostamente implementaria um projeto de indus­ trialização autônoma para enfatizar ex-post factum, a impossibilida­ de de uma solução deste tipo, dada a fraqueza e fragmentação da burguesia nacional como classe. Os dois estudos mais importantes a focalizarem mais especificamente os grupos industriais nacionais que apareceram em fins da década de 1960, por exemplo, preconizaram esta última interpretação (Martins L. 1968; Cardoso 1972a). Ao mesmo tempo, as questões referentes ao capital estrangeiro e estatal tornaram-se objeto de discussão nacional, tanto ao nível da produção intelectual quanto ao nível do debate público. A visibilida­ de destas duas questões levou, particularmente após o surto econô­ mico de inícios da década de 70 no Brasil, a posições polarizadas no que diz respeito à presença das corporações multinacionais e à ex­ pansão das empresas estatais. Essas posições oscilavam da xenofobia total até a defesa incondicional do capital estrangeiro, no que se refe­ re à questão das corporações multinacionais, e do apoio total às ativi­ dades produtivas do Estado até severas críticas ao suposto modelo de capitalismo estatal, no que se refere à questão das empresas estatais. A análise que segue constitui uma base para se ponderar, entre outras coisas algumas das suposições anteriormente mencionadas.

Burguesia N A CIO N AL ou BURGUESIA Nacional? (Discussão Preliminar sobre a Transição da Década de 1960) Na década de 1950, como foi mostrado no capítulo anterior, o nacionalismo econômico estava longe de caracterizar a ideologia dos empresários industriais, nem configurava um projeto político do Es­ tado, parlicularmente durante o período Kubitschek. Entretanto, houve interpretações favoráveis à opinião oposta devido ao fato de ter o nacionalismo radical emergido de um grupo ligado ao aparato de Estado (ISEB). O nacionalismo econômico era antes uma ideolo­ gia atribuída ao Estado e aos empresários por setores das elites inte­ lectuais e grupos de esquerda numa tentativa de definir um projeto de desenvolvimento industrial autônomo com base em alguns pressu­ postos do grupo da CEPAL acerca das perspectivas de desenvolvi­ mento econômico da América Latina. Como sugerimos anteriormen­ te e foi deixado claro em vários estudos sobre a crise do modelo de 104

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substituição de importações (Tavares 1966, 1974), por volta de 1950 um projeto autônomo de desenvolvimento industrial não era viável em termos práticos, dada a penetração do capital estrangeiro e sua centralidade no processo interno de acumulação. Além do aspecto econômico da penetração do capital estrangei­ ro, queremos agora sugerir que a possibilidade de um projeto de in­ dustrialização autônomo (como ideologia atribuída aos grupos sociais dominantes que apoiavam a aliança populista) tornou-se cada vez menos uma realidade política por volta de inícios da década de 60. Em outras palavras, o golpe militar de 1964 significou, entre outras coisas, a institucionalização, a nível político, de uma tendência que já estava presente desde a década de 1950 ao nível da estrutura econô­ mica. Talvez seja essa a mudança qualitativa fundamental que teve lugar com a crise da industrialização através da substituição de im­ portações. É verdade que estamos enfatizando o papel desempenhado pelo capital estrangeiro no decorrer do tempo, particularmente após 1950 e até os dias atuais. Contudo, no contexto da presente discussão acer­ ca da transição da década de 60 deve-se ressaltar que a mudança fun­ damental não se definiu apenas em termos do volume de capital es­ trangeiro na economia brasileira antes e depois de 1964, mas em ter­ mos da incorporação do capital estrangeiro como um projeto político das elites. Como veremos, houve também mudanças quantitativas, parlicularmente no que se refere á diversificação das áreas de ativida­ de industriai do capital estrangeiro. O ponto, porém, reside no fato de que o capital estrangeiro se expande no contexto da economia na­ cional como estratégia de um projeto institucional, baseado na noção de segurança nacional aliada a um padrão de desenvolvimento eco­ nômico a todo custo. Se o papel do Estado como principal agente de acumulação de capital e mediador nas relações entre a sociedade brasileira depen­ dente e o capitalismo internacional já era fundamental antes de 1964, com a transição, torna-se agora crucial. Como meio de atrair recur­ sos e investimentos para o país, o Estado vê-se com freqüência na po­ sição de abandonar certas prerrogativas na proteção dos interesses dos grupos locais de sorte a barganhar com os grupos multinacio­ nais. Os grupos estrangeiros, por sua vez, na medida em que não de­ pendem exclusivamente de fontes internas de financiamento (apesar de terem acesso preferencial a estas fontes em alguns casos) vêm ao 105

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pais com uma capacidade produtiva superior e, portanto, com vanta­ gens comparativas ém relação aos grupos nacionais. 1 Dentro desse quadro definido pela posição estratégica das cor­ porações multinacionais e do Estado, as alternativas políticas de atuação dos grupos empresariais locais tornam-se claramente res­ tritas, além de assumirem um caráter por vezes contraditório. Quanto aos grupos multinacionais, suas relações com os empresários locais podem assumir um caráter ou simbiótico ou antinômico (Stanzick 1972). Considerando as dificuldades de financiamento interno para projetos que demandam grandes investimentos de capital, a importa­ ção de tecnologia freqüentemente aparece como uma solução viável. Neste caso, não apenas se faz com que as dívidas sejam amortizadas à longo prazo, como também que os lucros possam ser obtidos a curto prazo, desta forma favorecendo a alternativa simbiótica. Por outro lado, no que se refere ao Estado, os grupos locais tendem a ocupar uma posição de dependência no sentido de que as agências estatais são fonte essencial, se não a única, de crédito e financiamento. O Ban­ co Nacional de Desenvolvimento’Econômico (BNDE), por exemplo tornou-se a principal fonte de financiamento dos projetos industriais no país. • Tal dependência dos grupos industriais locais merece atenção maior se se tem em mente a compreensão do comportamento político dos empresários. É interessante observar, por exemplo, como o es­ treitamento do processo decisório nos governos posteriores a 1964 reforça a posição dependente dos empresários locais ao castrar sua capacidade política. O Estado se coloca numa posição de acumular funções empresariais e políticas, excluindo assim a participação direta dos empresários locais na definição de diretrizes e políticas econômi­ cas ligadas aos seus interesses específicos. Ao mesmo tempo, o Esta­ do mantém políticas salariais e anti-inflacionárias que requerem con­ trole rígido sobre as classes trabalhadoras, favorecendo assim, para os grupos industriais e nacionais e multinacionais, maiores possibili­ dades de acumulação de capital.

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I Essas vantagens comparativas vão além do nível da utilização de tecnologia avança­ da, que é freqüentemente absorvida em “pacotes” na economia interna do país. Elas ocorrem também em termos da possibilidade de transferência de recursos das matri­ zes para suas filiais locais. Quando se fala de nacionalização de componentes, por exemplo, o que acontece é a transferência de equipamento e tecnologia que as matri­ zes já utilizaram em algum outro lugar. Assim, as multinacionais beneficiam-se da produção interna de itens e componentes que elas anteriormente importavam.

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A dependência, no entanto, implica uma relação mútua entre as partes envolvidas, a despeito do fato de poder ser assimétrica em fa­ vor de uma delas. Por esta razão, embora a assimetria tenda a favore­ cer o Estado em termos dos aspectos mencionados, é não obstante importante ter em mente que o Estado não pode prescindir do apoio da burguesia nacional no contexto do capitalismo autoritário, espe­ cialmente como base para manter e ampliar a legitimidade do regi­ me. Num estudo recente, O’DonnelI oferece uma sugestiva distinção entre o fundamento e o referencial da ação estatal (1977, pp. 36-43) que é particularmente útil para compreender o problema da depen­ dência mútua entre o Estado e a burguesia nacional sob o capitalis­ mo autoritário burocrático. De acordo com este autor, a cidadania é o fundamento do Estado capitalista no sentido que este se baseia numa noção jurídica abstrata de igualdade entre todos os indivíduos. Por outro lado, o referencial do Estado é a nação compreendida como o conjunto de solidariedades unindo um número de indivíduos delimitados num determinado espaço territorial. Os interesses servi­ dos pelas instituições estatais, argumenta ele, não são referidos à so­ ciedade mais a nação. Desta forma, os interesses privados podem ser atendidos em nome dos interesse coletivos superiores da nação, de onde a legitimidade é extraída. Assim, na medida em que a burguesia é identificada à nação, não só seus interesses específicos podem às ve­ zes ser tratados como os interesses da coletividade, como também, ao favorecer os interesses dos grupos industriais locais, o Estado au­ menta sua base de legitimidade. O quadro esboçado é, em suma, de contradições múltiplas no que se refere à posição estrutural dos atores fundamentais no modelo econômico pós-1964.2 Um aspecto fundamental dessas contradições, 2 O recente debate público acerca da “desestatização” no Brasil, por exemplo, ilustra algumas das contradições envolvidas na posição estrutural dos grupos industriais nacionais. Esse debate revela em seus aspectos fundamentais, cm primeiro lugar uma confusão entre fôrmas democráticas de governo e a ausência de intervenção es­ tatal na economia. Tal confusão nâo tem bases, quer na experiência histórica brasi­ leira onde a ação concreta dos empresários efetivamente impôs a intervenção estatal durante as décadas de 1930 e 1940 — nem em países de democracia representativa onde a intervenção estatal foi necessária e mesmo desejável para confrontar as crises do sistema capitalista internacional. Em segundo lugar,\o debate inclui, além da po­ sição anti-estatal radical, a proposta de abandono, pelo Estado, dos espaços econô­ micos já ocupados por empresas estatais, com o propósito de devolvê-los à iniciati­ va privada. Poucos grupos nacionais, como se sabe, estariam em posição de assumir tal responsabilidade.

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do ponto de vista dos empresários nacionais, por um lado, é que seg­ mentos consideráveis dos grupos industriais locais de fato têm seus interesses ligados aos interesses das firmas internacionais. Por outro, mesmo quando seus interesses divergem, o apelo do nacionalismo econômico não encontraria lugar no sistema de alianças porque este último baseia-se na presença maciça de capital estrangeiro respalda­ do pelo controle político do Estado. Até agora tratamos os empresários locais como se constituíssem um grupo homogêneo do ponto de vista econômico e político. No entanto, tal não parece ser o caso. Análises pormenorizadas do mo­ delo econômico baseado na substituição de importações, por exem­ plo, deixam claro que um dos seus resultados é um aumento efetivo da competição inter-setorial entre segmentos dos grupos industriais nacionais (Baer e Maneschi 1971; Fishlow 1974; Cardoso 1974; Ta­ vares 1974). Essa é uma das razões pelas quais, ao invés de se caracte­ rizar a burguesia nacional como nacionalista, como foi o caso das discussões políticas na década de 1950, a preocupação aqui se volta para a sua caracterização enquanto burguesia. Quanto a esse aspecto é importante avaliar as conexões grupais dos empresários brasileiros em vista da mudança econômica e políti­ ca que teve lugar após 1964. Em outras palavras, a ênfase analítica deve ser deslocada, de uma preocupação com a ideologia atribuída aos empresários, para uma ênfase em sua organização enquanto clas­ se e das implicações políticas que a noção de classes acarreta. Se du­ rante a década de 1950 a literatura enfatiza a noção de uma burgue­ sia NACIONAL, atualmente, o ponto de interesse deve ser a noção de uma BURGUESIA nacional. Só então a análise poderia se con­ centrar na consideração de seus valores políticos. À medida que avançava o processo de industrialização, os pró­ prios grupos industriais tendiam a se atomizar em função de um pa­ drão de produção diversificado e diferenciado. Simultaneamente à atomização dos grupos industriais locais em diferentes áreas de ativi­ dade industrial, seus grupos de interesses tendiam a se multiplicar e se especializar numa variedade de áreas segmentadas. Apóá 1964, ambas as tendências se acentuam, de um lado por um crescimento da competição intersetorial, já mencionada antes, e de outro, pelo apa­ recimento de uma variedade de novas associações de interesses à margem da estrutura corporativa oficial. Aparentemente, a competição inter-setorial e a especialização dos grupos de interesse dificultaria a organização dos grupos empre­ sariais nacionais como um todo em termos de um padrão de ação 108

concertada. Nesse aspecto particular, as análises que enfatizam a fra­ queza da burguesia nacional como classe estariam corretas. Em que aspectos as análises que acabamos de mencionar exigi­ ríam qualificação? Em primeiro lugar, no que diz respeito aos empre­ sários industriais locais como um todo, já mencionamos a importân­ cia de se referir a um segmento nacionalmente delimitado da classe industrial no contexto da legitimidade da ação estatal. Ademais, o papel histórico da iniciativa privada nacional na constituição do ca­ pitalismo industrial no Brasil deveria ser também ressaltado. Outro aspecto a ser mencionado é o fato de que, tomado como um todo, o setor industrial brasileiro compõe-se basicamente de pequenas e mé­ dias empresas nacionais (Boschi e Cerqueira 1977). Em segundo lugar, é importante especificar a que nível podemos efetivamente falar de um segmento organizado de grupos industriais locais. A qualificação mais natural seria então, a identificação de um setor de elite dentro dos grupos industriais nacionais como pri­ meiro passo, e sua caracterização interna como segundo passo. Além da qualificação anterior quanto ao papel dos empresários industriais locais, é importante focalizar as alianças que seus diferen­ tes segmentos podem, com alguma probabilidade, estabelecer quer com o Estado, quer com grupos multinacionais. Com tal procedi­ mento estaríamos aptos a reinterpretar as questões da atomização dos empresários como classe e da competição inter-setorial. Além disso, a concentração nas alianças tem a vantagem de evitar interpre­ tações dualistas acerca do processo de mudança. As interpretações econômicas e políticas da transição de 1964 também tenderam a reproduzir visões polares. Do ponto de vista econômico, por exemplo, as análises tenderam a obscurecer a princi­ pal contradição do modelo de substituição de importações que é a dependência cada vez maior da economia interna ao setor externo como resultado da necessidade de reforçar a indústria doméstica. O trabalho de Tavares (1974) é uma exceção na medida em que oferece não apenas uma visão adequada de como a produção interna se di­ versifica, mas também de como o setor externo estabelece limites ao processo de substituição. A literatura dedicou considerável atenção ao novo modo de de­ senvolvimento associado dependente” da década de 1960 (Cardoso 1970, 1971, 1972b, 1973, 1973a, 1974). Uma das contribuições dessa literatura é a especificação do verdadeiro papel das corporações mul­ tinacionais no modelo econômico internacionalizado da década de 1970. Como o debate público sobre o papel das corporações multina109

cionais parece revelar, no entanto, há uma tendência ao surgimento de interpretações de soma zero no que se refere à inclusão desse novo ator no sistema de alianças. Essa tendência a reproduzir interpreta­ ções de soma zero acerca de transições importantes pode ser vista, para o caso de 1964, num possível exagero quanto à possibilidade das corporações multinacionais deslocarem a iniciativa privada nacional, o mesmo se aplicando ao papel das empresas estatais no Brasil pós1964. Pelo contrário, é precisamente em termos das possibilidades de estabelecimento de alianças, numa situação de ganhos mútuos, que o modelo internacionalizado e estatizado do período pós-1964 signifi­ cou uma mudança importante para os grupos industriais nacionais. Isso se aplica particularmente àqueles segmentos da indústria local que se consolidaram no mercado no decorrer dos anos, podendo as­ sim acompanhar a expansão suscitada pela internacionalização e pe­ las atividades econômicas do Estado. Ê nesse sentido que as articula­ ções políticas dos empresários nacionais estão intimamente relacio­ nadas a seu status econômico no modelo do tripé composto pelas . empresas estatais, as corporações multinacionais e os grupos indus­ triais locais. Em termos gerais, uma análise da posição econômica estrutural desses três atores chamaria a atenção para os problemas da competi­ ção intra-capitalista. A linha básica de conflito, a esse respeito pode­ ría ser estabelecida, não ao longo das linhas da origem do capital, mas quanto aos segmentos oligopolistas/não-oligopolistas do capi­ tal. Embora os dados que utilizaremos na análise a seguir não permi­ tam testar esta hipótese, eles permitem a especificação das principais diferenças entre setores de atividade industrial no que se refere às maiores empresas nacionais, estatais e estrangeiras.

Empresas Nacionais, Estrangeiras e Estatais: Uma análise das Maiores Firmas Industriais na Economia Brasileira da Década de 1970. Uma análise dos dados fornecidos por “Quem é Quem na Eco­ nomia Brasileira” cumpriria o propósito de identificar os grupos in­ dustriais estratégicos compostos pelas maiores empresas na econo­ mia brasileira. Tal análise baseia-se na informação mais recente dis­ ponível a época em que começamos a pesquisa de campo com as eli110

tes industriais paulistas em 1975. Toda a informação, portanto, refe­ re-se ao ano de 1974., Inicialmente, pensamos realizar a análise de uma ser>~ histórica dos dados do “Quem é Quem” para os anos anteriores mas houve várias dificuldades e limitações impostas pelos próprios dados. Em primeiro lugar, as unidades (que são empresas individuais) variavam de ano para ano. Segundo, as variáveis listadas como indicadores eram alteradas substancialmente de um ano para outro; não permi­ tindo, assim, uma codificação padrão das variáveis no decorrer do tempo. Por estas razões decidimos examinar apenas a informação, num único ponto de tempo, para o ano anterior à pesquisa eXplora. tória. Somente num caso foi possível considerar a variação temporal para um número muito pequenc das maiores empresas nos setores estatal, nacional e multinacional da economia. Da mesma forma, era também difícil avaliar o peso das maiores empresas listadas no “Quem é Quem” em relação a atividade indus­ trial total no país. Os dados censitários, por exemplo, não ofereciam base sólida contra a qual confrontar as informações do “Quem é Quem” pelo fato dos primeiros não listarem as empresas em base in­ dividual," além de não oferecerem informação quanto a origem do ca­ pital, nossa principal variável independente na análise. Apesar dessas limitações, o “Quem é Quem” ainda se constituía na fonte sistemática mais confiável relativa às maiores empresas in­ dustriais, financeiras e comerciais no Brasil. Tomando como base a distribuição das maiores empresas de acordo com o valor de seus patrimônios líquidos e classificando as empresas por origem do capital e setores de atividade industrial, de

3 Examinamos cuidadosamente todas as publicações existentes no Brasil que pudes­ sem oferecer uma base de informação no que se refere a empresas industriais indivi­ duais no Brasil. Mais tarde tentamos sistematizar toda essa informação, mas foi vir­ tualmente impossível chegar a um conjunto mínimo de informação padronizada que pudesse servir como base a uma amostra estratificada do setor industrial brasi­ leiro. Entretanto, pudemos estabelecer um catálogo quase exaustivo de empresas in­ dividuais das áreas altamente industrializadas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, que serviu como base para uma amostra aleatória de indústrias em três setores de atividade industriar(bcns de capital, eletrônica c alimentação). Para uma referência ver Empresas e Empresários: ^Características Estruturais das Empresas e Percepção de Incerteza Ambiental (termo de referência n’ I), HJPERJ 1977 - projeto de pesquisa dirigido pelo autor. Este catálogo, no entanto, não ficou pronto até 1977.

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saída torna-se claro que as indústrias de capital nacional apresentam uma atividade econômica bastante diversificada quando comparadas com as empresas estatais. Os grupos multinacionais também apre­ sentam um padrão bastante diversificado em suas atividades econô­ micas. De fato, como é mostrado na tabela 2, um número significativo dentre as maiores empresas de capital nacional aparece em todos os setores de atividade industrial, ao passo que a concentração em seto­ res específicos tende a caracterizar as empresas estatais. Os ramos industriais que abrigam um número proporcional­ mente mais elevado de maiores empresas nacionais são tipicamente o de alimentos e bebidas, seguido por metalurgia, papel e mobiliário, e têxteis (22%, 13%, 11% e 9% do número total de empresas nacionais em cada um desses ramos respectivamente). Quanto aos outros ra­ mos, as empresas nacionais estão distribuídas de maneira dispersa, sendo o único setor notável o de maquinaria, que é responsável por 7% das empresas nacionais. Quanto às indústrias de capital estrangeiro, sua distribuição nos diferentes ramos de atividades industriais é, em geral, menos dispersa que a das empresas nacionais, mas dispersa o suficiente para incluir um número significativo de empresas em todos os ramos. As áreas de maior concentração de grupos estrangeiros são as de maquinaria (15%), produtos químicos (14%), metalurgia (11%), equipamento de transporte e automóveis (9%) e eletrônica e comunicações (8%). As maiores empresas estatais estão claramente concentradas nas atividades de metalurgia e produtos químicos: 51% das maiores em­ presas estatais estão igualmente distribuídas nessas duas áreas, além das atividades de mineração, onde sua presença é também elevada (22%). Por outro lado, as empresas estatais estão totalmente ausentes dos setores menos dinâmicos e mais tradicionais, tais como bens de consumo não-duráveis em geral. Em seu trabalho pioneiro de 1967, Luciano Martins (1967) apontava que os setores dinâmicos da atividade industrial (metalur­ gia, petróleo, automóveis, produtos químicos e petroquímica) eram dominados pelas empresas estatais e-estrangeiras e que, ao mesmo tempo, as empresas nacionais restringiam-se progressivamente às in­ dústrias tradicionais (basicamente bens de consumo não-duráveis). Também previa ele que o espaço econômico ocupado pelas empresas estrangeiras e estatais ampliar-se-ía de forma crescente nos anos se­ guintes. Embora correta quanto à tendência das empresas estrangei­ ras e estatais a se especializarem nos setores dinâmicos, sua predição 112.

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TABELA 2. - Distribuição Percentual das Maiores Empresas na Eco- • nomia Brasileira por Origem do Capital e Ramos de Atividade Indus­ trial Segundo o Valor do Patrimônio Líquido, 1974

Origem do Capital/setores Mineração Não-Metálicos Metalurgia Maquinaria Materiais Elétricos & de Comunicações Transporte e Automóveis Madeira, Papel & Móveis Borracha, Couro & Peles Químicos Plásticos Farmacêuticos & Cosméticos Têxteis Alimentos, Bebidas Vestuário & Calçados Fumo Outros TOTAL

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Estrangeiro

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15 8 9 2 2 14 2 7 5 8 2 1 ___ 5 453 (100%)

Estatal

22 2 25 3 0 7 0 2 27 0 5 0 7 0 0 0 41 2806 (100%)

Fonte: Calculado de Quem é Quem na Economia Brasileira, Sâo Paulo: Editorial Vi­ são, 1975.

merece algumas qualificações quanto ao espaço econômico que as empresas nacionais vieram a ocupar. Nossos dados de 1974 permitem restrições à predição de Mar­ tins em pelo menos duas direções. Em primeiro lugar, apesar da pre­ sença dos grupos nacionais nos setores menos dinâmicos da ativida­ de industrial, sua presença faz-se sentir de forma igualmente signifi­ cativa em ramos como maquinaria e minerais nâo-metálicos, além de metalurgia. Segundo, nossos dados mostram que, se por um lado as empresas estatais tendem a se especializar em áreas estratégicas da atividade industrial, nâo obstante elas estão ausentes de outros ra­ mos importantes. Isso leva à suposição de que o deslocamento dos grupos industriais nacionais nâo ocorre com a expansão das ativida-

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des econômicas do Estado. Pelo contrário, as atividades produtivas do Estado tenderíam a se localizar em áreas previamente ocupadas, mas não em novas áreas, pelo menos no que se refere à porção mais * significativa das atividades econômicas estatais. Como sugerido na tabela 3, 74% das maiores empresas estatais estão concentradas em apenas três ramos industriais, ao passo que a mesma percentagem de empresas nacionais e estrangeiras se distri­ bui, respectivamente, em 9 e 8 ramos. Tal como denotado por sua presença nos três ramos que apre­ sentam maior número de empresas ao longo das distintas categorias de origem de capital, o setor metalúrgico aparece como o mais com­ petitivo. O setor químico constituiría também uma área de concor­ rência entre as empresas estrangeiras e estatais. Em certa medida, a de maquinaria aparecería também como uma área de densidade rela­ tivamente alta de grandes empresas nos setores nacional e estrangei­ ro. Em termos gerais, no entanto, o padrão apresentado é de maior especialização em áreas específicas da atividade industrial que de des­ locamento dos grupos nacionais por empresas estrangeiras ou esta­ tais. As empresas estrangeiras estão bem distribuídas em vários ra­ mos de atividade industrial mas só em alguns poucos casos o número de empresas estrangeiras excede o número de empresas nacionais em atividades comparáveis. A força dos grandes grupos industriais na­ cionais parece residir em sua presença em todos os ramos de ativida­ de industriai, alguns dos quais (como o de alimentos e têxteis) tende­ ríam a constituir o domínio típico dos grandes grupos industriais na­ cionais. Contudo, a importância dos diferentes grupos industriais não pode ser explicada apenas através da distribuição das maiores empre­ sas nos setores da atividade industrial. A informação anterior tem de ser ponderada em confronto com uma análise do valor absoluto do patrimônio líquido da empresas, seus índices de produtividade e o padrão global de concentração de capital.

Para comparar a distribuição das empresas nacionais, estrangei­ ras e estatais decidimos dividir o valor do patrimônio líquido em três categorias. Assim, consideramos um valor de até 18.000 como baixo, entre 18.001 e 38.000 como médio e 38.001 e mais como alto. Todos esses valores foram medidos em milhares de cruzeiros e os cortes se­ guiram o critério da distribuição empírica para o número total das empresas industriais listadas no “Quem é Quem”. 114

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