Electra [1 ed.]
 978-85-7480-712-6

  • Commentary
  • Tradução Trupersa
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TRUIIERSA trupe de tradução de teatro antigo apresenta

ELECTRA de

ruRrrÍLôeç ornnçÃo DE TRADUçÃo E cooRoENeçÃo cERAL TEREZA vrncÍNrA RrBErRo BARBosA

Apoio

FAPEMIG

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Copyright O zor5 by Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (tradução)

SUMARIO

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.6ro de r9 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cIn)

(Câmara Brasileira do Livro,

sP,

Brasil)

Eurípides, 484 a.C. Electra de Eurípides / tradução Trupersa; direção de tradução e coordenação geral TerezaVirgínia Ribeiro Barbosa. - Cotia: Ateliê Editorial, zor5. rsrN 978-85-748o-7rz-6

Título original: Elektra Bibliografia.

Electra, uma Traduçao para Baco

r. Teatro grego (Tragédia) I. Barbosa, Tereza Virgínia Ribeiro. IL Título.

Prefácio

con-882

15-o613'4

antiga

882

Mosca

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Advertência

Índices para catálogo sistemático: r. Teatro: Tragédia: Literatura grega

- Anita

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Radiotragédia de um Capítulo Só: Lelectra no Divã do Dr. Franz (Baseado na TragédiaElectra, de Eurípides, Esquilo, Sófocles... e Quem Mais Direitos reservados

à

ArelIÊ Eutonler

Ficha Técnica de Electra

Estrada da Aldeia de Carapicuíba,897

- Granja Viana - Cotia - SP Telefax (t) +6n'g666 www.atelie.com.br / [email protected] o67o9-3oo

20r5

Printed in Brazil Foi feito o depósito legal

Bibliografia.

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Chegar!)

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II i I

ELECTRA, TJMA TRADUçAO PARA BACO

li

Anita Mosca

o grupo Trupersa,

sob a direção de tradução de Terezavirgínia Ri-

beiro Barbosa, professora de Língua e Literatura gregas da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, enfrenta mais um desafio e apresenta a tradução de uma nova tragédia, Electrade Eurípides.

Electra, filha do rei Agamêmnon de Micenas e da rainha Clitemnestra, comete o matricídio com a cumplicidade do seu irmão, orestes, para vingar o assassínio do próprio pai, perpetrado pela mãe e seu amante Egisto. O mito de Electra, na versáo euripidiana (lembrando que a personagem foi recriada também por Sófocles e por Ésquilo, que a apresenta na sua trilogiaOréstia, na segunda peça, intitulada Coéforas), é apresentado com a particular preocupação de

l.

Anita Mosca é dramaturga, diretora e atriz. Seus trabalhos mais recentes foram, em2Ol4, Liolà de Luigi Pirandello, espetáculo no qual fez a direçáo, adaptação e dramaturgia (Teatro Goldoni, Brasília) e, em 2013, La Cena, espetáculo de que assinou a dramaturgia original e em que atuou como diretora e atriz. Somem-se a esses o Interno Familiare (Nápoles, Itália, 20L0); Parole e Ud de Elias Khuri (Torino, Itália, 2010) e La Svergognata,livre adaptação do romance homônimo de Sahar Khalifah, com atuação, direção e adaptação próprias (Nápoles, Itália, 2008). Anita Mosca estudou com Enzo Moscato, Michele Monetta, Marcello Bartoli, Eugenio Barba, |ulia Varley, Kai Bredholt e Cristina Castrillo, entre outros. Atualmente é discente na área de literatura e tradução da Faculdade de Letras cla

Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível en'r: .

I ELECTRA

ELE?TRA, UMA TRADUçÃo PARA BACo

entregar uma dimensão humana aos personagens. Electra, Orestes, Clitemnestra e mesmo Egisto são desenhados com uma variedade

puristas e eruditas que respeitem todas as normas da língua culta e áulica, enquanto o Teatro enfoca o fundamento do texto e reivindica a essência da messa in scenA, o ritual dionisíaco. O resultado desse

I lr

de nuances e facetas que os subtrai a uma fácil colocação entre o bem e o mal. Neste sentido, Clitemnestra é assassinada pela filha no momento em que mostra amor e cuidado materno, se dispondo aos trabalhos rituais purificatórios necessários ao pós-parto de Electra; Egisto é morto por Orestes com o auxílio de seu fiel amigo Pílades, no momento em que oferece sacra hospitalidade aos dois ignotos estrangeiros. Electra, infeliz em seu exílio, busca resgatar e integrar Orestes, o qual, por sua vez, hesita em cometer atos cruéis e se move sob as supostas ordens de Apolo. Por fim, as atrocidades perpetua-

diálogo ausente

éa

existência de traduções inacessíveis destinadas a

poucos especialistas em língua e literatura grega e a produção de espetáculos baseados nas antigas tragédias, com violentos e, frequentemente, arbitrários cortes de textos. i

tI ic

Também é forçoso considerar que a tradução de um texto teatral apresenta peculiares complexidades, sendo que o texto em si não costura o corte entre escrita e cena, entre narração e fisicalidade,

entre mera descrição e movimento, entre literatura e ato. A lingua-

das não acontecem segundo os princípios honrosos e nobres dos he-

gem teatral, definitivamente, não é o texto, mas sim a composição

róis da tragédia grega esquiliana

de uma complexa rede de linguagens que se entretecem para criar a

e

sofocliana, mas de forma covarde

e infame, com

um Orestes que ataca Egisto pelas costas e com uma Electra que engana sua mãe para atraí-la ao lugar do morticínio. Os sentimentos de culpa e de remorso dos dois irmãos após o matricí-

relação entre vida e palavra em movimento.

dio também denotam

assumem uma nova dimensão de complexidades, pois o texto é apenas um

a

natureza instável

e

vacilante dos protagonis-

tas, que os torna frágeis e extremamente terrenos.

Elaborada não na solidão do gabinete de um professor ou do escritório de um tradutor, a tradução daElectra qve neste volume se

Com a tradução de teatro, os problemas de tradução dos textos literários elemento na totalidade do discurso teatral. A linguagem na qual o texto da peça e escrito serve como um signo na rede a qual Thadeus Kowzan denomina signos auditivos e visuais. E já que o texto de teatro é escrito para ser

falado, o texto literário contém também um conjunto de sistemas paralin-

apresenta é fruto de um trabalho coletivo entre tradutores e atores, que ao longo do processo criativo trocaram experiências, vivências

to, etc. são todos significativos. Além disso, o texto de teatro contém em seu

e visões distintas para recuperar e recriar as múltiplas camadas da

interior o subtexto ou o que podemos chamar de texto gestual, que determina

antiga escrita de Eurípides.

Hoje, que uma tradução seja um ato criativo é argumento consolidado nos estudos de tradução literária, mas que a tradução de um texto dramático apresente especificidades de gênero e deva ser fruto de um trabalho coletivo que envolva diferentes figuras profissionais, isso é algo ainda inovador.

Em relação à tradução do teatro grego, normalmente, os linguistas e os tradutores de um lado e os profissionais das artes cênicas

de outro seguem o próprio trabalho de interpretação dos textos de forma, amiúde, isolada e antagônica. A Academia defende traduções

guísticos, onde grau de intensidade, entonação, velocidade de emissão, acen-

os é

moümentos que um ator, ao dizer o texto, pode realizar. Desta forma, não

apenas o contexto, mas também o padrão gestual, codificado da própria

lin-

guagem, que contribui para o trabalho do ator, e o tradutor que ignora todos os sistemas fora do puramente

literário está correndo sérios riscos'.

Contudo, o registro escrito do teatro é imprescindível para contrastar o aspecto intrínseco da arte cênica, o efrmero, baseado no dogma que se repete há milênios nas apresentações do "aqui e agora".

2. Susan Bassnett, Estudos de Traduçao,p.172.

ELE1TRA, UMA TRADUçÃo PARA BACo

ELECTRA

13

cia, alimentadas pela urgência de tornar alcançável e cognoscível ao

favoravelmente aceita em todo o território nacional, a segunda por ser uma construção extremamente formal para Se referir a alguém

grande público a inestimável herança grega.

estrangeiro.

À vista disso, novas e inadiáveis perguntas tomam consistên-

É possível praticar uma abordagem diferente paraatradução do

teatro grego? A tradução do teatro grego demanda dois tipos de traduções, uma que satisfaça às exigências acadêmicas e outra que possa servir ao processo de adaptação cênica, ou é viável a produção de uma única tradução que possa harmonizar a perspectiva acadêmica com aquela teatral? Como conjugar o conhecimento dos linguistas, que têm acesso até à mais sofisticada filigrana da palavra do grego antigo, com a experiência do supremo artesanato praticado por atores e diretores em cena? Qual a durabilidade da tradução de teatro? Responder a essas perguntas e a novas que vão surgindo, abrindo inusitadas linhas de pesquisa, é a proposta do grupo Trupersa, que convida ao diálogo com os vários profissionais das artes cênicas e da tradução. Assim como ocorreu com a tradução da Medeia de Eurípides, o Trupersa segue consolidando suas próprias vivências, prevendo uma primeira fase na qual os tradutores da Faculdade de Letras da área de língua e literatura grega discutem e trabalham a versão primária da tradução do texto. A segunda fase contempla o debate entre o grupo de tradutores com o coletivo dos atores para conferir a "temperatura" das palavras, a consistência das expressões, a adaptabilidade do material traduzido para a cena. Durante os en-

contros, os atores questionaram, no texto apresentado inicialmente, um excessivo uso da inversão que, empregado do português (S.V.O. sujeito, verbo, objeto), a título de topicalízaçáo da fala, dificultava a construção dos personagens, acabando por torná-los álgidos e distantes. Detalhes que trariam mais corpo e materialidade para as falas foram propostos. Em específico, em relação a Electra nos versos 69, 70, 75, 76, 265,288, em relação a Colono nos versos 79, 8r. Destacou-se também o uso de expressões como "Ô de fora" (versos 248, 3o5, 335) e "Ô forasteiro" (versos z6o,267,286,35r,786,824,818), a primeira por remeter a uma forma dialetal que poderia não ser

Procedimentos assim, no conjunto, tornam-Se, sem dúvida, a fase mais delicada do percurso, durante a qual as reivindicações de competências distintas disputam pedaços de territórios da autoafirmação. Entretanto, é difícil para um tradutor de grego renunciar a uma palavra que em muitos casos custou horas de pesquisa, assim como é extremamente duro, para um ator, pronunciar algo que se percebe auditiva e semanticamente como estranho e desagradável. Ao longo dos encontros a inversão da estrutura tradicional português (s.v.o) foi diminuída, o uso de "Ô de fora" e o de "Ô forasteiro" foi aceito na medida em que criava uma gradação ao longo do texto. Exercício de tolerância e humildade, necessário não só à gente do teatro e a pesquisadores, mas à vida social. De qualquer forma, o que interessa é que tornou-se central uma nova figura profissional, apta a dialogar com o mundo acadêmico e com o ambiente teatral: o diretor da tradução profissional, que acompanha os ensaios e Segue o Processo de construção das personagens baseado na primeira versão traduzida, que vai se modificando e se sem se afastar do texto original e sem descaracterizá-1o, com razáo de causa, isto é, pelo teatro vivo e encenáve[, a partir das questões que os atores apresentam; problemas e perguntas acer-

adequando

-

ca do artesanato da cena e em relação ao

próprio processo de cons-

trução da personagem. Assistindo aos ensaios do Trupersa, a sensação é que algo novo está acontecendo. Os tradutores conferem através das propostas dos atores o próprio trabalho, e os atores alimentam através das pontuapena lembrar ções dos tradutores o próprio processo criativo. Vale a que a metodologia do teatro experimental, desenvolvida por figuras como André Antoine, Constantin Stanislávski, lerzy Grotowski

e Eugenio Barba, entre outros, evoluiu no século xx e revolucionou a figura do ator e do diretor de cena, colocando os dois papéis

ELE:TRA, uMA TRADUçÃo PARA BACo

ELECTRA

para sua qualidade e consistência superaram os confins nacionais Polevar, mundo afora, singulares poéticas e linguagens inovadoras' rém, a herança da cultur a 1rega, que, indiscutivelmente, através do o viés europ eu, fazparte da variada mistura cultural que caracteriza

em uma nova relaçáo, recíproca e paritária. O diretor torna-se um olho externo à cena, capaz de elaborar e suPervisionar todos os aspectos do espetáculo, continuamente em sintonia com os estímulos enviados pelo ator que, por sua vez, não é mais aPenas um mero

Brasil, não é suficientemente valorizada e investigada, o que a relega da língua e a ser privilégio de poucos eleitos, eruditos e apaixonados messa in de cultura helênicas. Significativas e louváveis experiências

executor. Nesse novo olhar, o ator contribui com o Processo artístico, influenciando e caracterizando cada escolha do longo caminho que vai da primeira abordagem ao texto até a realízaçâo do espetáculo. Trupersa carrega essa recente herança da história teatral, e o

país, scenade teatro grego já foram realizadas em várias cidades do a custam contudo os programas de festivais e de eventos culturais apresentar títulos de teatro grego. Assim, gerações de brasileiros

ator-criativo é figura indispensável ao método de tradução de teatro grego experimentado pelo grupo. Essa experiência de tradução enfoca a função do texto a ser tra-

duzido. Electra de Eurípides foi escrita Para ser representada, portanto o aspecto performativo e a relação com o público representam

d

I .Ir

os eixos nevrálgicos da pesquisa. Sendo assim, a troca entre atores e tradutores é focada continuamente na questão "funciona ou não

l:

funciona?", direcionando a própria emPresa ao momento performativo e escolhendo como interlocutor o esPectador em lugar do leitor.

á

A proposta não é, assim, oferecer uma simples tradução,

$

mas

sim soprar nova vida, encher de carne, jorrar sangue dentro de uma escrita pensada para a cena e recriada com a intenção de voltar à cena com renovada potência. A Electra aqui apresentada pulsa de autenticidade e é fruto de um longo percurso de mútuas contaminações entre tradutores e atores. O texto logrado apresenta na escolha de cada detalhe um terreno fértil Para o ator atuar e recriar em cena as multíplices imagens presentes no texto de Eurípides. Os sentimentos primordiais de amor de uma filha para com o pai, de

inveja e ciúme em relação à mãe, da cumplicidade de dois irmáos, que Eurípides apresenta e que nessa tradução são investigados com a preocupação de torná-los contemporâneos, irrompem no esPaço cênico com surpreendente intensidade, conseguindo ultrapassar o tempo e nos contar, repetidamente, o ser humano. Por fim, cabe uma última consideração sobre o teatro grego no Brasil. O teatro brasileiro conta com exPeriências notáveis, que Por

deixam de conviver com os mitos gregos, com sua potência didática e formativa, com sua função catártica' o processo catártico experimentado durante as tragédias per-

mitia (em grande escala, porque tudo era aPresentado a multidões) que seus espectadores se livrassem dos deságios do espírito elas os e da alma e experimentassem as próprias emoções sem que oprimissem, "sentindo inteligentemente" e "entendendo sentimentalmente". Como constatava Aristóteles, a catarse é uma drenagem emocional, mas também uma compreensão intelectual das próprias pulsões. Ora, não seria razoâvelperder essa conquista proporcionada jâpelo teatro antigo. Hoje a distância entre esse magnífico patrimônio cultural e a sociedade contemporânea brasileira é em parte devido a problemas julgade acessibilidade e de fruição dos textos originais' Por isso, mos a ação do Trupersa, que mira a encenaçáo de tragédias gregas provando o sabor dos frutos de uma nova abordagem de traduçáo,

como particularmente louvável e merecedora de especial aplauso urgente legitimação.

A Electra

está pronta. Chi é di scena?

e

--T

PRErÁcro

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem uma quentura, um querer bem, um bem

zln libertas quae

sera tamen

que um dia traduzi num exame escrito:

"Liberta que serás também,'

Electr4 a de Eurípides â

*

fiF

Mais uma vez Eurípides nos desafia a encenar e traduzir. Focalizamos agora uma matricida, a filha de Agamêmnon, Electra. Nesta peça que se lhes oferece, por parte dessa moça malvada, não há remorsos, não há culpa. Se alguma falta deve ser imputada, ela recaírá apenas sobre os deuses que permitiram que ações nefastas fossem

perpetradas; assim determinaram os Meninos de zeus, os gêmeos Dióscuros. Mas como entender (e transpor) tal proposta cênica atualmente, se questiona, ainda mais do que Eurípides, a existência da divindade?

ou mesmo quando, admitida

a sua

existência, ela é concebida

como entidade negligente ou impiedosa? Em nossa opinião a mensagem é segura e contemporânea, embora conhecida: violência gera violência. por tal caminho, traduzir encenar Electra, de Eurípides, devolve, infelizmente, um fardo pesado para a humanidade. Desmascara um problema e nos instiga a e

l.

Do poema "Minha Pátria", de Vinicius de Moraes. Disponível em: '

processo tradutório que visa a resgatar o ofício teatral Para o teatro antigo de Baco e, nessa empreitada, Eurípides se aPresenta como es-

túrgica de seus textos, seja pela temática que ele apresenta, urgente 19. Patrice

P

avis, T eatro Cr uzamento de

F

ronteiras, p. 124.

e

PREFACIO

ELECTRA

atual, ou mesmo pelo anseio de liberdade e evasão que se materializam aPartir de suas peças.

Astro maior, o filho de Mnesarco nascido em Salamina foi realmente uma celebridade em sua época. Poeta e comPositor, autor popular e querido que agradou a inúmeros e incomodou a outros, Eurípides tem a qualidade de exprimir com destreza, de modo fa-

miliar e em linguagem leve e simples, as coisas do humano, Por prómais sofisticadas e comPlicadas que elas sejam'o. Atento ao seu prio tempo, mirando o passado e aPontando saídas Para um futuro, a nós ele toca os sentimentos de todos do mesmo modo que, talvez, brasileiros, toca um Carlos Gomes, um Manuel Bandeira, uma Chiquinha Gonzaga, um Noel Rosa, um chico Buarque e, em alguns momentos, quando necessário um lirismo mais popular ainda, até mesmo um Roberto Carlos. Mestre nos jogos de pensamento e palavras, o filho de Mnesarco, com tiradas cortantes, fala Para o erudito e para o sambista do boteco da esquina. É dele, Por exemplo, o verso que Baden Powell e Paulo César Pinheiro - talvez sem saber do autor - adotaram no choro-sambinha Refém da Solidao, e que aqui transcrevemos em grego": ríç

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Foi por isso que, inicialmente, para Promover a traduçáo cultural necessária nessa PeÇa, postulamos uma imersão no contexto 20. Frederick Apthorp Paley, Euripides with an English commentary,p.rdli. de Eurípides): "Quem da 2L. Refem da Solidao (em grifo, o. rr"rro, do fragmento 833/Nauck Não vai nem vem/ ,oiidao fez seu bem/ Vai terminar seu refém/ E a úda para também/

as coisas banais/ E o ser humano eu nada frzl Não fui feliz nem inirl Infelizmente pra onde íncapazde prosseguir/ sem ter de morrer/ Mas pra felizl Eu fui someite um aprendiz/ Daquilo que eu não quis/Aprendiz Se essa úda existe/ descobri/ nunca Mas üü/ E eu viver/ necessário Foi morrer/ aprender a vida passar/ E essa ó., .rru gente é que insiste/ Em dizer que é triste ou que é felizl Vendo a ver até que essa vida vida é uma atrizi Que corta o bem na raizl Efaz do mal cicatrizl Vai é morte/ E a morte é/ A vida que se quer"'

Vira uma certa pazl eue náo faz nem desfaz/Tornando

29

cultural musical popular brasileiro para nossos tradutores. Procuramos canções brasileiras que registram situações de emoçáo (abandono, rejeição, júbilo, vingança. . . ) vividas pelas Personagens euripidianas nesse drama para experimentarmos (em laboratório dramatúrgico) a expressividade, em língua portuguesa e numa chave afetiva, dos nossos sentimentos comuns com os gregos.

A partir da imersão, espontaneamente acabamos por tomar liberdades e homenagear alguns poetas que cantam brasilicamente o que Eurípides helenicamente dramatizou. Os achados líricos de nosso cancioneiro indicaram soluções de tradução interessantes; destarte, no texto que lhes oferecemos, eles 1á estão. Realçamos algumas passagens: no verso 578, Vinicius de Moraes Toquinho, com vestígios do sambinhaComo Dizia o Poeta misturados ao Balanço Zona Sul de Tito Madi e à Cadeira Vazia de Lupie

cínio Rodrigues nos versos que váo de SZg a 601. O Menino Deus de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro também entrou nessa dança de reconhecimento a que se agregou igualmente o coro nos versos 59o-59r. Encerramos a cena entre Electra e seu irmão Orestes com um pedacinho de Chega de Saudade no verso 6ou Jobim arrematou o encontro. Mais à frente do drama, para ajudar neste processo de tradução cultural tão urgente em peça tão antiga, buscamos |oão Bosco com um versinho da canção De Frente pro Crime,:reÍso 77o; em 1191 incorporamos Quantas Lógrimas da velha guarda da Portela (Manacéa); em 1333, Se Todos Fossem lguais a Você, de Tom Jobim e em L34o, Pela Luz dos Olhos Teus quando novamente Vinicius e Tom entram em cena. Há outras intertextualidades tomadas da upr, mas não vamos esgotá-las aqui; o leitor-espectador mais cuidadoso por certo as reconhecerá no verso z5z, Carlos Gomes; nos versos 42:.,73738 e 1068, Villa-Lobos e Dora Vasconcellos; nos versos Lo4L-43, Chico Buarque, Vandré em 1164, um pouco da Itália, para variar, em 1210, pois que o texto sugere, como em Verdi, que la donna para culminar, o Trio Parada Dura em 1341.

à

mobile... e,

PREFACIO

ELECTRA

Basta-nos dizer que, com isso, acreditamos ser Eurípides, por ora, mais nosso do que antes. Foi acolhido no seio da pátria mestiça de modo a quebrarmos as fronteiras do tempo e espaço que nos separavam e ousamos afirmar que hoje o teatro grego de Eurípides soa e ressoa um helenismo mesclado e harmonízado com vozes do passado e do presente. Ele pede Para ser encenado e, de fato, não nos esqueçamos, existe tanto Para a língua grega quanto Paraa portuguesa (e outras línguas, ademais). Tornamo-nos, com a ajuda de tantos (os

tradutores, os atores e os poetas e músicos de nosso imaginário), um só corpo cheio de senso comum e Pronto para ir à cena. |ulgamos ter garantido o estilo que, outrora, Eurípides mostrou nessa realízação. Que estilo é esse que mistura o poPular e o erudito? Ariano Suassuna que nos salve, amém! Eurípides se mostra também sofisticadíssirno e habilíssimo ao dispersar, nas entrelinhas de suas Peças, filigranas do viver e da mecânica do próprio métier. Sofisticadíssimo, recorremos aos Poetas e filósofos menos conhecidos, mais ariscos, estrangeiros amigos e queridos. Com tal procedimento, no verso 756, parafraseamos o grego e utilizamos dois versos de Florbela Espanca no poema "Ao Vento" do Livro de Mágoas: "O vento passa a rir, torna a Passar, em gargalhadas ásperas de

demente..."; de Agostinho de Hipona o lamento Tarde Vos Amei" ocupou o espaço da ponte entre o grego e o português no abraço de adeus de Orestes e Electra (verso r3o8) e Henriqueta Lisboa fê-lo igualmente com a exPressâo olhos de orvalho fixo (verso 1345) do poema "Trânsito" (Flor da Morte). Outros há que foram retomados; quem buscar, achará.

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Habilíssimo, ele, Eurípides, como nenhum outro, buscou os jogos de palavras, os duplos sentidos e a manifestaçáo do espetáculo, a óryrq grega, através do texto". Sua linguagem tem potência elevada para engendrar imagens em altos níveis poéticos e dramatúrgicos'a de modo claro e de fácil execução, e nisso ele é mais interessante que Ésquilo, com seus efeitos especiais (que hoje seriam caríssimos), e Sófocles, com sua cena cerebral e um tanto quanto filosófica demais. O último dos dramaturgos atenienses se confirma ideal para a práttíca dessa nossa aventura e para a ousadia de traduzir para o povo brasileiro aquilo que tanto admiramos e que aPrendemos por mais de trinta anos na Universidade Federal de Minas Gerais: a tragédia gregaantiga. Que o teatro grego alcance a terra brasíIica. E um tributo que fazemos, homenagem de respeito e zelo por nossa gente, e iniciativa que denota não menos apreço pelo texto antigo, o qual, motivado pela verve transgressora, incita incisões

e

suturas.

Filigranas Textuais, Desafios de Traduçao Tradição

e

renovação, forças contrárias, mas interdependentes,

complementares, amantes e rivais. Incitamentos mútuos, Provocações frutuosas geraram vários dos detalhes que apontaremos na tradução que aqui se introduz. Expressão de muitos, o texto-resultado mistura os tons tal qual pudemos perceber no grego: a simplicidade honesta do lavrador, o pedantismo de Orestes e Electra, o vigor de

Clitemnestra, o ruralismo lírico das moças do coro, a familiaridade ingenuidade do velho babá de Agamêmnon e de Orestes, o profis-

e

sionalismo de um mensageiro apto a desenhar no ar acontecimentos 22. Confissoes, capítulo x, xxvrr. 38, em tradução de Arnaldo do Espírito Santo, Ioão Beato e Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel: "Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o teu perfume, e eu respirei e suspiro por ti; saboreei-te, e tenho fome e sede; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz".

passados, a ironia absurda, cômica e solene dos Meninos de Zeus,

os Dióscuros, que, mesmo sendo deuses, maldizem os pares, com23. Compartilham com

essa nossa

opinião autores como Mary Stieber,20ll; Froma Zeitlin,

1994; Shirley Barlow, 1986; Maria de Fátima Sousa e Silva, 1986, entre outros. 24. N/f,ary C. Stieber, Euripides and the Language of Craft, p. xxu.

PREFACIO

ELECTRA

32

padecem-se dos mortais e atribuem os crimes dos irmãos Orestes e Electra à imprudência de Apolo. A encenação de suas falas levouh

-nos a perceber estes Meninos de Zeus como deslocados e um tanto

ridículos, clowns celestes enfeitados de purpurina. Em dupla, no texto estabelecido, apenas Cástor tem a Palavra, embora em algunS treChoS, que marcamos com travessões,

ouvir uma sutil intervenção hipotética de seu Parceiro Pólux. Eles se apresentam, contam como são poderosos e quanto trabalho têm na obrigação de proteger os navegantes. Mostram a

seja possível ll. L

situação de sua chegada,logo após o assassinato de Clitemnestra, a irmã deles, e afirmam que julgaram justo o ato perpetrado, apontando imediatamente um culpado entre os deuses. Vê-se, Portan-

to, que estes Moços de Zeus são partidários de gente mortal

e

hostis

Exploramos outrossim a semelhança fonológica entre os vocábulos, dando-lhes um parentesco semântico. Apoiando-nos mais no significante que no significado induzimos (w. 1-3) a escuta do nome divino Ares pelo substantivo ar no plural. No mesmo trecho, deixamos (abolindo a ordem sujeito-verbo-objeto) uma ambiguidade entre sujeito e objeto latente. Distinguimos o sujeito de maneira sutil

com o artigo definido o (que não é marca incontestável de sujeito) e determinamos a ênfase sobre o irmão de Menelau como agente. Seja Ares, o deus-desejo-de-guerra, arrastando Agamêmnon, seja o rei Agamêmnon arrastando o deus-guerra para Troia (como o quer

ó

yr1ç ncÀctov

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yrlv énÀeuoe Tpqúô' Ayopeprvov

óvc(.

A semântica do significante" se deu em vários momentos, destacamos um deles: a traduçao da interjeição de dor e esPanto g€ú, como féul fel (trocamos o "1" pelo "u"), substantivo comum que significa substância de sabor amargo; ou, simplesmente, amargoL à moda brasileira de falar. Mantivemos, repetindo os recursos utllizados na tradução de Medeia, o uso da interjeição "ara" l"arre" (datada por Houaiss como sendo de r5oz) utilizada por Guimarães Rosa'u (cf. v. ll8) e de seu sentido substantivo, a saber, altar, mesa sacrificial. Presenvamos o significante que coincide em significado com a interjeição do português. Esse modelo de sentidos amontoados foi perseguido com muitos termos. Em outro momento (v. r5r) aproximamos o significante grego do nosso e traduzimos qi ai, ôpunte

rapo por ai, que dói, dói,lateja

a cabeça. Nesse caso, recuperamos as

oclusivas e ajustamos o significado.

à raça celestial.

Eurípides), seja o rei humano arrastando quaisquer ares, ventos sopros de combate feroz para o cerco troiano:

33

e

No ajuste de significados, eis que surge uma tradução mais ousada com cisuras gramaticais e suturas semânticas. Esse

foi o caso,

por exemplo, de, nos versos 22o e 563, traduzirmos a palavra góç (com acento agudo) não por homem, mas por fausto e brilhante. O termo é frequente nos textos épicos e aparece quase sempre casado com àvr1p para gerar o sentido lato de homem, simplesmente. Os adjetivos empregados na tradução, fausto e brilhante, foram escolhidos porque, no nosso ponderar, remetem tanto para o contexto situacional e visual da peça quanto para o sentido épico, pois podem deixar subentender na frase o substantivo homem-pessoa-brilhante. A meta prevista: estabelecer associações entre o significado conceitual, o afetivo, o abstrato e o figurativo, unir o ser, o homem (qóç com acento agudo), à vida que dele emana fulgurante (o vocábulo góç, com acento circunflexo, contrato de gáoç, /r,lz). Nosso crime

Ô da terra! Velha argos! Ô do Ínaco! Córregos donde, certa feita, em barcas mil, arrastouÁres o Agamenão rei. Pra terra troiana zarpou.

25. Cf. fosé Paulo Paes,Tradução aPonteNecessária,p.36. 26. foãoGuimarãesRosa,GrandeSertão:Veredas,pp.T0el44respectivamente:"4íZéBebelo reparou em mim: 'Professor, ara vival Sempre a gente tem de se avistar..."'; "Arre que ele não desconâava, não percebia!" Igualmente, na p. 134: "Permeio com quantos, remoüdo no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda".

ELECTRA

PREFACIO

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confesso tem atenuantes; afinal, Beeks, 2o:ro", indica uma estreita

cofre". A palavra urna, do português arcaico, seria bem oportuna,

conexão entre o termo sânscrito bhás,luz, esplendor, poder e gtui,ç. Segundo Brugmann-Delbriick (apud Beeks) ambos podem ser tra-

levássemos em conta que ela engloba dois dos sentidos enumerados:

tados como advindos daraizbheh.-os. Estes versos resultaram na se-

Sófocles em sua Electra com o primeiro significado.

guinte traduçáo:

Porém na Electra, a de Eurípides, ela vem como mofa ao poeta antecessor, embora guarde um tom melancólico ao acumular sua acepção de "cesto de exposição de crianças que foram abandonadas", afinal essa é a situação de nossa protagonista. O vocábulo em foco, como imagem dramática, objeto de cena, agrega igualmente um significado poderoso: no alto da cabeça da herdeira e filha de Agamêmnon, a lata, o jarro, o vaso ou o que quer que seja pode ser

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