Educação e luta de classes
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Table of contents :
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Educação e Luta de Classes

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ANÍBAL PONCE 1//1

EDUCA AO EWTADE CLASSES Tradução de José Severo de Camargo Pereira (Do Instituto de Matemática e Estatística da USP)

18ªedição

�C.ORTEZ �EDITOR�

EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES Aníbal Ponce

Capa: DAC Revisão: Agnaldo Alves de Oliveira Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do tradutor e do editor. ©do espólio Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 - Perdizes 05009-000 - São Paulo - SP Tel.: (11) 3864-0111

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Impresso no Brasil - abril de 2001

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ponce, Aníbal, 1898-1938 Educação e luta de classes/ Aníbal Ponce, tradução de José Severo de Camargo Pereira. - 18. ed. - São Paulo : Cortez, 2001 . Bibliografia ISBN 85-249-0241-8

1 . Conflito social 2. Educação - História I. Título II. Série.

CDD-370.9 -303.6 -310. 1 9

90-01 31

Índic�s para catálogo sistemático: 1. Educação: História 370.9 2. Educação e Sociedade 370.19 3. Luta de classes: Sociologia 303.6

SUMÁRIO Prefácio da segunda edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio da tradução brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I.

A EDUCAÇÃO NA COMUNIDADE PRIMITIVA . . . . . . . . .

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II.

A EDUCAÇÃO DO HOMEM ANTIGO . . . . . . . . . . . . . . . . . .

35

Primeira parte - Esparta e Atenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

35

A EDUCAÇÃO DO HOMEM ANTIGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segunda parte - Roma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

61

IV.

A EDUCAÇÃO DO HOMEM FEUDAL . . . . . . . . . . . . . . . . . .

81

V.

A EDUCAÇ ÃO DO HOMEM B URGU Ê S . . . . . . . . . . . . . . . .

111

Primeira parte - Do Renascimento até o Século XVIII . . . .

111

A EDUCAÇÃO DO HOMEM B URGUÊ S . . . . . . . . . . . . . . . .

1 33

Segunda parte - Da Revolução Francesa ao Século XIX . . .

1 33

VII. A NOVA EDUCAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

153

Primeira parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

153

III.

VI.

61

VIII. A NOVA EDUCAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1 67

Segunda parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1 67

Bibliografia

1 83

.

.................................... .. ....

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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO Em fins de 1 963, veio à luz a primeira edição da tradução brasileira deste livro de Aníbal Ponce, publicado originalmente em 1937, pouco antes da trágica e prematura 1 morte do seu Autor, num desastre, no México. Foi bem acolhida pela crítica e pelo público em geral, mas a época escolhida para o seu lançamento não foi muito feliz, como logo se constatou pelos acontecimentos políticos que se desencadearam no Brasil logo no início do ano seguinte. Os exemplares existentes em livrarias e depósitos foram recolhidos compulsoriamente e durante o "qüinqüênio revolucionário" seguinte a presente obra esteve fora de mercado no Brasil. 1. Aníbal Norberto Ponce Speratti nasceu em Buenos Aires em 6 de junho de 1898 e faleceu na Ciudad de México etn 18 de maio de 1938, em conseqüência dos ferimentos recebidos num desastre de automóvel ocorrido perto de Zitácuaro, na estrada que liga Morelia à Capital.

Aníbal Ponce fez seus estudos elementares na cidade de Dolores e os secundários no Colégio Nacional Central da capital argentina, ingressando em seguida na Faculdade de Medicina, que abandonou no 3º ano, sem completar o curso. Sua carreira de escritor, primeiramente como ensaísta e depois como filósofo, historiador e cientista, começou muito cedo, em 1917, na revista Nosotros, dirigida por Alfredo Bianchi. Em 1920, Ponce conhece Ingenieros, com quem conviveu estreitamente nos cinco anos seguintes e que o influenciou profundamente, moldando a mentalidade liberal, positivista e pré-socialista do jovem Aníbal. Com a morte de Ingenieros, Ponce continua sozinho o seu amadurecimento intelectual, encaminhando-se pouco a pouco para o materialismo dialético, que acaba abraçando definitivamente por volta de 1930, depois de uma estada na Europa, principalmente em Paris. De volta à pátria, inicia Ponce uma militância socialista ativa entre operários e estudantes, especialmente entre estes últimos, pronunciando conferências, ministrando cursos e escrevendo artigos. Em 1930, funda com outros intelectuais portenhos o Colégio Livre de Estudos Superiores, onde ministrou, em 19 34, um curso de História da Educação que se converteria,

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Hoje, decorridos quase 20 anos desde o seu lançamento original, já em "plena abertura", a tradução brasileira de Educación y Lucha de Clases está sendo relançada, praticamente sem modificações. Apenas as alterações ortográficas necessárias e a atualização da nota (do Tradutor) nº 7 da página 1 56, segundo os dados do Censo de 1 970, publicados no A nuário Estatístico do Brasil, 1 978. Essas informações atualizadas (os dados do Censo de 1980 ainda não foram publicados) são as seguintes: 1 . Pessoas de 10 anos e mais que sabem ler e escrever: 44. 848 . 1 08 (68%), das quais 22.889.036 são homens (5 1 %) e 2 1 .959.072, mulheres (49%); 2. Pessoas de 10 anos e mais que não sabem ler e escrever: 2 1 .098 .428 (32%), das quais 9.657.476 são homens (46%) e 1 1 .440.952, mulheres (54%); 3. Pessoas de 10 anos e mais que têm curso primaria (de completo, inclusive cursos supletivos: 8. 796. 754;

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anos)

4. Pessoas que possuem curso médio completo, inclusive cursos supletivos ( I° e 2º graus): 4.789.776; 5. Pessoas que possuem curso superior completo: 593.009. José Severo de Camargo Pereira

São Paulo, fevereiro de 1 9 8 1

três anos mais tarde, n o presente livro. Em 1933, preside em Montevidéu o Congresso Latino-Americano Contra a Guerra Imperialista. Em 1 936, funda a revista Dialética. Essa atividade política acaba despertando a ira das autoridades ditatoriais argentinas (em 6/9/30, o Presidente Yrigoyen havia sido deposto pelo General Uriburu) e Ponce é demitido pelo General-Presidente Agostini Justo da sua cátedra de Psicologia do Instituto Professoral Secundário e do seu cargo no Laboratório do Hospicio de las Mercedes, sob o pretexto de que lhe faltava um diploma de curso superior para exercer essas funções. Impedido de continuar trabalhando em sua pátria, Ponce emigra então para o México, no início de 1 937, onde continua sua carreira de professor e de escritor até sua morte, no ano seguinte. Suas obras são numerosas, com destaque especial para as seguintes publicações: Problemas de Psicologia Infantil ( 193 1 ) , Dos Hombres: Marx y Fourier ( 1933), A mbiciôn y Angustia de los Adolescentes ( 1 936), Educaciôn y Lucha de C/ases ( 1937), Humanismo Burgués y Humanismo Proletario ( 1 938) e El Viento en el Mundo ( 1939), títulos nem sempre respeitados nas diversas edições que conheceram.

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PREFÁCIO DA TRADUÇÃO BRASILEIRA Foi com inegável prazer que indicamos este livro de Aníbal Ponce para integrar esta COLEÇÃO DE ESTUDOS SOCIAIS E FILOS ÓFICOS, e que nos encarregamos da sua tradução. Não nos moveu, ao fazê-lo, outro motivo que não o de alargar os horizontes bibliográficos do leitor brasileiro em geral, e dos alunos das nossas escolas normais, institutos de educação e faculdades de filosofia em particular. No campo da História da Educação, a bibliografia acessível ao leitor brasileiro é extremamente pobre. Nós nos lembramos muito bem de que quando iniciamos o nosso curso de escola normal - é bem verdade que numa cidade do interior do estado, mas numa cidade relativamente grande, Piracicaba -, só tínhamos à nossa disposição dois livros nesse terreno: um antigo e já bastante surrado compêndio francês, escrito por Gabriel Compayré, que líamos na biblioteca da escola, e as Noções de História da Educação, de Afrânio Peixoto, hoje, ao que sabemos, esgotadas, mas que, na época, conseguimos comprar, numa bela encadernação de percalina vermelha, em uma das livrarias da cidade. Já quase no fim do curso, apareceu nas livrarias da minha terra, que naquela ocasião eram quatro, e eu acho que ainda são, outro livro de História da Educação, que foi um sucesso, apesar de ser uma simples brochura, sem capa de percalina vermelha e sem título em letras douradas: o de Paul Monroe, não o grande, em cinco volumes, em inglês, que isso seria exigir demasiado de livreiros do interior, mas o pequeno, a tradução publicada pela Companhia Editora Nacional na sua coleção intitulada Atualidades Pedagógicas. E esta situação de verdadeira penúria bibliográfica não mudou muito no decênio seguinte: os mesmos dois livros mencionados, mais três novas publicações: uma de L. Luzuriaga, outra de T. M. Santos, ambas também da Nacional, 9

e um compêndio publicado pela Saraiva. Mais um decênio e, novamente, apenas mais dois livros vieram enriquecer o mercado brasileiro, ambos da Editora Nacional, um de René Hubert e outro do já citado Lorenzo Luzuriaga, mas este último tratando somente de um aspecto do problema: a história da educação pública. Em relação aos livros estrangeiros, a situação não era muito melhor: no interior, nada, mas nas livrarias das grandes cidades existiam à venda alguns poucos exemplares da primeira edição castelhana da presente obra, e uns tantos mais do bem documentado e bem escrito livro de H. I. Marrou (Histoire de l'Éducation dans ! 'Antiquite"'), e nada mais. O trabalho de Marrou é um bom livro de História da Educação, não há como negar, mas o seu alto preço coloca-o fora do alcance do bolso do público estudantil em geral, ao mesmo tempo que as suas massudas 600 páginas desencorajam qualquer leitor que não esteja decididamente interessado cm História da Educação, e isso dando de barato que o francês seja um idioma facilmente lido e compreendido pela maioria dos nossos estudantes de pedagogia. Além disso, esse livro de H. I. Marrou aborda apenas um campo relativamente restrito dentro da História da Educação, mais restrito ainda do que o seu título sugere, porque ele, na realidade, praticamente só trata da educação na Grécia e no Império Romano. Nessas condições, não temos dúvidas em afirmar que o presente livro de Aníbal Ponce vem contribuir bastante para aumentar a bibliografia acessível aos que se interessam pelos problemas histórico-educacionais em nossa terra. Mas o presente trabalho não foi indicado por nós à Editora Fulgor apenas porque são poucas as obras de História da Educação existentes no mercado brasileiro. A nosso ver, o trabalho de Aníbal Ponce apresenta, sobre os mencionados, algumas vantagens. Em primeiro lugar, ele não é uma simples exposição das práticas pedagógicas , dos sistemas escolares e das correntes filosófico-educacionais que encontramos nos diferentes povos e nas diversas épocas da história da humanidade. O autor considera a educação como um fenômeno social de superestrutura e, portanto, defende, ao longo de toda a obra, a idéia de que bs fatos educacionais só podem ser convenientemente entendidos quando expostos conjuntamente com uma análise sócio-econômica das sociedades em que têm lugar. Assim, juntamente com a apresentação dos fatos educacionais e com a exposição das concepções filosófico-educacionais, o Autor procura sempre, e às vezes com rara felicidade, fazer uma análise da subestrutura econômica da sociedade correspondente. Em segundo lugar, o presente livro não é uma exposição desconchavada da História da Educação. De fato, lendo-se o trabalho de Aníbal Ponce, 10

percebe-se claramente a existência de uma idéia central ao longo de toda a obra. O Autor defende uma idéia, defende uma tese; ele mostra, através dos sucessivos capítulos, isto é, através dos diversos povos e das diferentes épocas, que a principal característica da educação, desde o instante do aparecimento da sociedade dividida em classes - vale dizer, desde o início dos tempos propriamente históricos -, pode ser encontrada numa progressiva "popularização" da cultura. Propriedade praticamente exclusiva das classes dominantes, a educação era, inicialmente, negada quase que totalmente às classes menos favorecidas. Mas as transformações econômicas por que passaram inevitavelmente todas as sociedades foram provocando modificações sensíveis no status quo, foram fazendo com que massas cada vez maiores de indivíduos tivessem acesso a uma educação conveniente. Todavia, é claro que essas transformações mencionadas não ocorreram sempre suavemente. Muito ao contrário. As mais das vezes, as classes desfavorecidas tiveram de lutar, e freqüentemente de modo violento Revolução Francesa e Revolução Soviética, os dois exemplos principais, a emancipação da burguesia e a libertação do proletariado - pelos seus direitos. Nessas condições, no fim de contas, o estudo da História da Educação é inseparável do estudo dessas lutas mantidas pelas classes desfavorecidas contra as classes dominantes, no sentido de conquistarem o direito sagrado de se educarem. Aliás, essa idéia de defender uma tese ao longo de um trabalho de História da Educação não é própria única e exclusivamente do livro de Aníbal Ponce. É o que também acontece, por exemplo, com o de Marrou, citado logo no início deste Prefácio. De fato, esse autor, logo na Introdução do seu livro, esboça o plano geral do seu trabalho, tece considerações a respeito do fenômeno educativo em geral e tenta traçar a sua "curva evolutiva" a partir do século X a.C., afirmando que, a partir dessa data, a história da educação reflete a passagem progressiva de uma cultura de nobres guerreiros, para uma cultura de escribas. Não há dúvida de que a afirmação de Marrou é verdadeira, só que ele percebeu apenas uma faceta do problema e, na realidade, apenas a faceta exterior. Por detrás da mudança apontada, existe toda uma realidade sócio-econômica, toda uma luta de interesses, toda uma luta de classes, que não foi percebida pelo autor francês. Outra característica importante do livro de Aníbal Ponce reside no Capítulo II da sua obra, em que o Autor trata do problema da educação grega. Não que haja, aí, grandes novidades, na apresentação ou na interpretação dos fatos. Quase tudo que se encontra nesse capítulo pode também ser encontrado em Morgan, por exemplo, ou nos autores da chamada escola do materialismo histórico, em Engels, por exemplo. Mas isso não quer dizer que a interpretação apresentada da sociedade grega e 11

da sua educação seja bastante conhecida. Ao contrário, é bastante comum, mesmo nos chamados bons livros de História da Educação, ou de História da Civilização, encontrarmos interpretações "românticas", inteiramente di­ vorciadas da realidade. De fato, a época cantada por Homero - cerca de 1 500 a.C. tem sido freqüentemente descrita como uma verdadeira "idade média", em virtude de possíveis analogias formais existentes entre a estrutura políti­ co-econômico-social da sociedade de então, e a da Idade Média propriamente dita. Nessa linha de idéias, reconhece-se, comumente, que, nos primórdios da sociedade grega, existia um rei, que vivia cercado por uma aristocracia de guerreiros, uma verdadeira corte, no sentido moderno do termo. Essa comunidade de guerreiros teria durado até o momento em que o rei, em paga dos serviços recebidos, distribuiu, aos seus companheiros de armas, verdadeiros "feudos" que, pouco a pouco, foram-se tornando hereditários. A cultura grega, nas suas origens, tem sido apresentada, por muitos historiadores, como um privilégio dessa classe de guerreiros, cuj os membros aparecem como verdadeiros cavaleiros, no sentido medieval do termo. Eles são apresentados como se entretendo com jogos de salão, com divertimentos musicais, com torneios de caça, com batalhas, como apreciadores da beleza, como respeitadores da mulher e como amantes das coisas do espírito. Essa imagem da vida grega é inteiramente falsa. Na época heróica, cantada por Homero, a Grécia já havia sido conquistada pelos helenos que, descendo das regiões montanhosas do Norte, subjugaram e expulsaram os habitantes da Hélade. Nessa ocasião, as tribos gregas já se apresentavam unidas e habitavam cidades não muito numerosas nem muito populosas, onde as gens e as fratrias viviam mais ou menos independentemente umas das outras. Havia já um começo de aristocracia, baseada na incipiente desigualdade de fortuna (desigualdade essa que, aliás, viria a se acentuar demasiadamente com o correr do tempo), e a escravatura já era uma prática estabelecida, mas os antigos costumes comunistas tribais primitivos ainda não estavam inteiramente esquecidos, nem havia desaparecido total­ mente a antiga organização social gentílica. O próprio Homero nos dá disso testemunho, ao pôr na boca de Nestor estas palavras, dirigidas a Agamenon, por ocasião da Guerra de Tróia: " ... disponha as tropas por fratrias e tribos, de modo que a tribo auxilie a tribo, e a fratria auxilie a fratria... " (Ilíada, II, 362.) Por essa ocasião, os gregos, do mesmo modo que outros povos do estágio superior da Barbárie, estavam organizados em gens, fratrias e tribos que, mais tarde, viriam a se unir para formar cidades-nações, como a ateniense e a espartana, por exemplo. A autoridade político-administrativa estava nas mãos de um Conselho (Bulê, em grego), protótipo dos senados modernos, formado pelos chefes de gens . Esse Conselho tomava resoluções a respeito de todos os assuntos, mas tinha a 12

sua liberdade de ação limitada por uma Assembléia Popular (Ágora, em grego) naqueles problemas de magna importância. Essa Assembléia era constituída por todos os gentios e, nela, todos, sem exceção, tinham o direito de se fazerem ouvir. Havia, ainda, um chefe, impropriamente considerado como um rei por muitos autores, o Basileus, que era eleito livremente pelos gentios. Esse chefe tinha funções sacerdotais, militares e, em alguns casos, também judiciais. O Basileus não era, portanto, um rei, nem na acepção moderna da palavra, nem no sentido medieval do termo. No próprio Homero, nunca um Basileus aparece desempenhando o papel de rei. Agamenon, por exemplo, que era um Basileus, aparece na Ilíada apenas como o comandante supremo de um exército confederado, em operações de guerra. E, mesmo como comandante militar supremo, o seu poder não era discricionário, porque as suas ações eram limitadas por uma Á gora democrática. Aristóteles também testemunha no mesmo sentido de que o Basileus não pode ser considerado um rei. De fato, ao se referir à época heróica, afirma que a Basiléia (Governo do Basileus, expressão essa que, muitas vezes, tem sido impropriamente traduzida pela palavra reino) era um governo sobre homens livres, e que o Basileus era, ao mesmo tempo, um chefe militar, um juiz e um sacerdote. Confira-se, nesse sentido, Aristóteles: Política, capítulos IX e X. Um dos principais responsáveis por essa falsa interpretação da estrutura político-social da sociedade grega da época heróica foi um escritor inglês do século passado, Gladstone, que, no seu livro Juventus Mundi, apresentou os chefes gregos como reis e príncipes adornados por qualidades "cavalheirescas". Desde essa época, como faz ressaltar Haldane (La. Filosofía Marxista y las Ciencias), essas inverdades históricas têm sido constantemente repetidas e difundidas. A respeito desse assunto, as palavras de Morgan não deixam margem a qualquer dúvida: "A Monarquia é incompatível com as instituições gentílicas pelo fato de estas serem essencialmente democráticas. Cada gen, fratria ou tribo era um corpo autônomo, completamente organizado; e onde várias tribos se fundiram em uma nação, o governo resultante estava organizado em harmonia com os princípios que animavam as suas partes constituintes." Confira-se Morgan: La Sociedad Primitiva, página 224. Consulte-se, também, no mesmo sentido, o excelente e poucas vezes citado livro de Fustel de Coulanges: A Cidade Antiga. Não devemos, portanto, ter dúvidas de que, nos seus primórdios, as instituições político-sociais dos gregos eram essencialmente democráticas, pela razão mesma de serem gentílicas. É só a partir do século VII a.C., mais ou menos, que essas instituições começaram a sofrer transformações de vulto, como uma conseqüência das 13

mudanças experimentadas pela infra-estrutura econômica da sociedade grega de então. Até essa época, as tribos gregas viveram baseadas numa economia quase que inteiramente agrícola. Havia ainda alguma atividade pastoril e também um pouco de indústria doméstica. Não se cogitava de trocas de caráter propriamente comercial; nas obras de Homero, são poucos os comerciantes que aparecem, e, assim mesmo, estrangeiros, fenícios. Os gentios eram os donos da terra, e a trabalhavam por suas próprias mãos, auxiliados por seus familiares e também por escravos. Mas é conveniente esclarecer que, até essa época, esses escravos eram os descendentes dos antigos habitantes da região, ou eram prisioneiros de guerra, a quem se perdoara a vida em troca de trabalho; ainda não se cogitava da escravização dos companheiros tribais, mas esta nova escravidão não deveria tardar a aparecer, com o advento do capitalismo comercial, que já se fazia anunciar. Mas, a partir do século VII a.C. , a economia comercial, com o maior rendimento do trabalho humano, produzido pelas novas técnicas descobertas, começou a sobrepujar nitidamente a economia agrícola gentílica que predominara até então, provocando modificações de vulto na estrutura social, as mais importantes das quais foram a acentuação das desigualdades de fortuna, que levaram ao aparecimento das classes sociais, o aparecimento da escravidão dos companheiros tribais, o desaparecimento das instituições gentílicas democráticas, a busca e a conquista de novos mercados etc. Essas modificações na estrutura social, como não poderia deixar de ser, tiveram importantes reflexos na educação. Mas não é necessário continuar porque, agora, não faríamos mais do que repetir a matéria exposta, e com muita propriedade, no Capítulo II. Uma observação, ainda, em todo caso. O Autor passa muito de leve sobre um dos importantes aspectos da educação grega: o problema da homossexualidade e da pederastia, que impregnaram toda a vida grega e, em particular, a educação. Não é este o momento adequado para tecermos considerações a respeito do assunto, porque este Prefácio já vai longo demais, mas não nos podemos furtar à obrigação de chamar a atenção do leitor para a importância do problema - basta lembrar, por exemplo, o "batalhão sagrado de Tebas", formado por pares de jovens amantes - indicando, por exemplo, o citado livro de Marrou, onde há um bom estudo do problema, e onde o leitor interessado também encontrará indicações bibliográficas especializadas. O presente livro de Aníbal Ponce apresenta ainda outra vantagem que, eventualmente, para certo tipo de leitor, poderia ser uma desvantagem. É um livro de síntese. São quase duzentas páginas para tratar de toda a história da educação, desde as sociedades primitivas, até as tendências educacionais contemporâneas. "Nessas condições, é evidente que o Autor tem de se limitar a discutir os problemas tratados em rápidas pinceladas, que apanhem, apenas, as li nhas gerais de desenvolvimento, deixando 14

praticamente de lado qualquer análise mais detalhada da situação. Trata-se, portanto, de uma obra de síntese e isso, como dissemos, pode ser um bem, ou pode ser um mal, dependendo do tipo de leitor considerado. É um bem porque se trata de um tipo de livro de leitura mais amena, menos cansativa e mais interessante, capaz de atingir um público bastante numeroso, composto tanto pelo leitor não iniciado nos problemas de história da educação, que deseja, apenas, uma visão geral do assunto, quanto pelo leitor especialista na matéria, que deseja urna obra de coroamento de estudos, que possa sintetizar, em poucas linhas, as muitas informações, talvez um pouco desconexas, que tem a respeito da educação das diversas sociedades e das diferentes épocas . E isso porque esta obra de Aníbal Ponce, apesar de ser de síntese, não é superficial. Por outro lado, o presente trabalho não se destina àqueles que pretendem realizar um estudo minucioso e sistemático dos problemas histórico-educacionais, porque esses não irão encontrar, nesta obra, os detalhes informativos por que anseiam. Foi pelas razões expostas acima que indicamos, com prazer, o presente livro de Aníbal Ponce, para integrar esta COLEÇÃO DE ESTUDOS SOCIAIS E FILOS ÓFICOS, da Editora Fulgor. São Paulo, março de 1 963 JOS É SEVERO DE CAMARGO PEREIRA

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CAPÍTULO

1

A EDUCAÇÃO NA COMUNIDADE PRIMITIVA Os trabalhos de Morgan· a respeito dos índios norte-americanos tão admirados por Marx, a ponto de inspirar-lhe um livro que, aliás, apenas teve tempo de esboçar, mas que Engels conseguiu reconstruir em grande parte2 - demonstraram a existência de um comunismo tribal como origem pré-histórica de todos os povos conhecidos. Coletividade pequena, assentada sobre a propriedade comum da terra e unida por laços de sangue3 , os seus membros eram indivíduos livres, com direitos iguais, qu�e ajustaram as suas vidas às resoluções de ui:n conselho formado democraticamente por todos os adultos, homens e i:nulheres, da tribo. O que era produzido em comum era repartido com todos, e imediatamente consumido. O pequeno desenvolvimento dos ins­ trumentos de trabalho impedia que se produzisse mais do que o necessário para a vida cotidiana e, portanto, a acumulação de bens. Mesmo em tribos contemporâneas, como acontece no sudoeste de Vitória, muitas vezes não se encontra nenhum instrumento de produção além de uma grosseira acha de pedra. Apenas com tais recursos, é 1 . Morgan: La Sociedad Primitiva. Engels: E/ Origen de la Familia, de la Propiedad Privada y dei Estado. No prólogo da primeira edição, aparecida em 1884, Engels afirmava que o seu livro constituía a execução de um testamento, na medida em que procurava suprir, com dificuldade e baseado em anotações de Marx, o livro que este não havia podido terminar. 2.

3. A palavra gens, que Morgan empregava para designar estas comunidades, significa engendrar e alude ao caráter de um grupo que se jacta de ter uma ascendência comum.

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perfeitamente compreensível que a tribo despenda todas as horas de cada dia só para substituir o que foi consumido no dia anterior. Se o estágio de desenvolvimento de uma sociedade deve ser avaliado pelo domínio que ela conseguiu sobre a natureza, é evidente que o nível das comunidades primitivas não poderia ser mais baixo. Escrava da natureza, a comunidade persistia, mas não progredia. A execução de determinadas tarefas, que apenas um membro da comunidade não podia realizar, deu lugar a um precoce começo de divisão de trabalho de acordo com as diferenças existentes entre os sexos, mas seni: o menor submetimento por parte das mulheres. Como debaixo do mesmo teto viviam muitos membros da comunidade - e, às vezes, a tribo inteira -, a direção da economia doméstica, entregue às mulheres, não era, como acontece entre nós, um assunto de natureza privada, e sim uma verdadeira função pública, socialmente tão necessária quanto a de fornecer alimentos, a cargo dos homens. Entre os bosquímanos atuais, por exemplo, as mulheres, além de cuidarem do acampamento, recolhem as larvas, as formigas e os gafanhotos que fazem parte da sua alimentação, e são tão conscientes da igualdade dos seus direitos em comparação com os homens que, segundo conta Paul Descamps, não dão formigas aos seus esposos sempre que estes fracassam nas suas caçadas . . . 4. Na comunidade primitiva, as mulheres estavam em pé de igualdade com os homens5 , e o mesmo acontecia com as crianças. Até os 7 anos, idade a partir da qual já deviam começar a viver às suas próprias expensas, as crianças acompanhavam os adultos em todos os seus trabalhos, aj uda­ vam-nos na medida das suas forças e, como recompensa, recebiam a sua porção de alimentos como qualquer outro membro da comunidade. A sua educação não estava confiada a ninguém em especial, e sim à vigilância difusa do ambiente. Mercê de uma insensível e espontânea assimilação do

seu meio ambiente, a criança ia pouco a pouco se amoldando aos padrões reverenciados pelo grupo. A convivência diária que mantinha com os adultos a introduzia nas crenças e nas práticas que o seu grupo social tinha por melhores. Presa às costas da sua mãe, metida dentro de um saco, a criança percebia a vida da sociedade que a cercava e compartilhava dela, ajustando-se ao seu ritmo e às suas normas e, como a sua mãe andava sem cessar de um lado para o outro, o aleitamento durava vários 4. Descamps: État Social des Peuples Sauvages, pág. 1 29. 5. Uma das idéias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que, na origem da sociedade, a mulher foi escrava do homem. Entre tod ôs os selvagens e entre os bárbaros do estágio médio e inferior, e em grande parte até mesmo entre os do estágio superior, a mulher não só tem uma posição livre, como também é muito considerada. Engels, ob. cit., pág. 46.

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anos, a criança adquiria a sua pnme1ra educação sem que ninguém a dirigisse expressamente. 6 Um pouco mais tarde, quando a ocasiao o exigia, os adultos explicavam às crianças como elas deveriam comportar-se em determinadas circunstâncias. Usando uma terminologia a gosto dos educadores atuais, diríamos que, nas comunidades primitivas, o ensino era para a vida e por meio da vida; para aprender a manejar o arcos a criança caçava; para aprender a guiar um barco, navegava. As crianças se educavam tomando parte nas funções da coletividade. E, porque tomavam parte nas funções sociais, elas se mantinham, não obstante as diferenças naturais, no mesmo nível que os adultos. Nunca eram as crianças castigadas durante o seu aprendizado. "Dei­ xam-nas crescer com todas as suas qualidades e defeitos. As crianças são mimadas pela mãe e quando, em algum momento de impaciência, esta chega a castigá-las, o pai por sua vez castiga a impaciente."7 Apesar de entregues ao seu próprio desenvolvimento - Bildung, como diriam séculos mais tarde Goethe e Humboldt -, nem por isso as crianças deixavam de se converter em adultos, de acordo com a vontade impessoal do ambiente: adultos tão idênticos uns aos outros que Marx dizia, com justiça, que ainda se encontravam ligados à comunidade por um verdadeiro "cordão umbilical". 8 Este fato parece-me suficientemente importante para justificar um momento de reflexão. Se os pais deixavam os filhos em completa liberdade, como é que os adultos iriam assemelhar-se tanto, uns aos outros, mais tarde? Se não existia nenhum mecanismo educativo especial, nenhuma "escola" que imprimisse às crianças uma mentalidade social uniforme, em virtude de que a anarquia da infância se transformava na disciplina da maturidade? Estamos tão acostumados a identificar a Escola com a Educação, e esta com a noção individualista de um educador e um educando, que nos custa um pouco reconhecer que a educação na comunidade primitiva era uma função espontânea da sociedade em conjunto, da mesma forma que a linguagem e a moral. E, do mesmo modo que é óbvio que a

criança não precisa recorrer a nenhuma instituição para aprender a falar, também devemos reconhecer como não menos evidente que, numa sociedade em que a totalidade dos bens está à disposição de todos, a silenciosa 6. Letourneau: L 'Évolulion de / 'Éducation dans /es Diverses Races Humaines, pág. 39. 7. Descamps, ob. cit., pág. 82. 8. Marx: E/ Capital, tomo I, pág. 54, da tradução de Justo.

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imitação das gerações anteriores9 pode ser suficiente para ir levando a uma meta comum a inevitável desigualdade dos temperamentos indivi­ duais. Devemos, então, dizer que o prim1t1vo não recebia uma educação de acordo com a sua "natureza"? Se, por "natureza", quisermos significar a "essência do homem", tal como apareceria se eliminássemos as influências sociais, salta aos olhos o absurdo da pergunta. Nunca, em nenhum momento, existiu um homem nessas condições. O homem, enquanto homem, é social, isto é, está moldado por um ambiente histórico de que não pode ser separado. O homem das comunidades primitivas também tinha uma concepção própria do mundo, ainda que nunca a tivesse formulado expressamente. Essa concepção do mundo, que nos parece pueril, refletia, por um lado, o ínfimo domínio que o primitivo havia alcançado sobre a natureza e, pelo outro, a organização econômica da tribo, estreitamente vinculada a esse domínio. Uma vez que na organização da comunidade primitiva não existiam graus nem hierarquias, o primitivo supôs que a natureza também estava organizada desse modo: por esse motivo, a sua religião foi uma religião sem deuses. Os primitivos acreditavam em forças difusas!O que 9. "Sob o regime tribal, a característica essencial da educação reside no fato de ser difusa e administrada indistintamente por todos os elementos do clã. Não há mestres determinados, nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores." Dukheim: Éducation et Sociologie, pág. 8 1. 10. Os primitivos têm uma interessante "concepção religiosa" a respeito do mundo em geral: o animismo. De acordo com essa concepção, acreditam que o mundo, desde os objetos inanimados, até o homem, está habitado por uma multidão de espíritos benfazejos e malfazejos. Mas esses espíritos não "pertencem" ao objeto que habitam no momento, porque são passíveis de transmigração. Originariamente, esses espíritos eram quase materiais, mas, depois de uma evolução mais ou menos prolongada, começaram a se desmaterializar, convertendo-se em "puros espíritos". O animismo pode ser dividido em dois períodos: pré-animismo (animalismo, para alguns autores) e animismo propriamente dito. No primeiro período, o mundo ainda não está povoado por espíritos, de modo que o homem seria capaz de influenciar diretamente a natureza, pela própria forç.a do seu pensamento. É de se notar que nunca se encontrou um povo primitivo que estivesse exclusivamente na fase pré-animista. No período animista propriamente dito surgem os espíritos e, simultaneamente, o primitivo passa a acreditar que é capaz de influenciar a natureza de dois diferentes modos: diretamente, pelo poder do seu pensamento (artes mágicas), e indiretamente (sortilégios), influenciando em primeiro lugar os espíritos que a governam. Esses dois modos de influenciar o mundo exterior coexistem e se completam.

No pensar de certos autores, o animismo seria um estágio natural na evolução da humanidade, que passaria por três etapas principais no seu desenvolvimento, a saber: fase animista-mitológica, fase religiosa e fase científica. (Nota do Tradutor.)

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impregnavam tudo o que existia, da mesma maneira que as influências sociais impregnavam todos os membros da tribo. 1 1

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Dessa concepção do mundo - a única possível numa sociedade rudimentar em que todos os seus membros ocupavam a mesma posição na produção - derivava logicamente o ideal pedagógico a que as crianças deveriam se ajustar. O dever ser, no qual está a raiz do fato educativo, lhes era sugerido pelo seu meio social desde o momento do nascimento. Com o idioma que aprendiam a falar, recebiam certa maneira de associar ou de idear; com as coisas que viam e com as vozes que escutavam, as crianças se impregnavam das idéias e dos sentimentos elaborados pelas gerações anteriores e submergiam de maneira irresistível numa ordem social que as influenciava e as moldava. Nada viam e nada sentiam, a não ser através das maneiras consagradas pelo seu grupo. A sua consciência era um fragmento da consciência social, e se desenvolvia dentro dela. Assim, antes de a criança deixar as costas da sua mãe, ela já havia recebido, de um modo confuso certamente, mas com relevos ponderáveis, o ideal pedagógico que o seu grupo considerava fundamental para a sua própria existência. Em que consistia esse ideal? Em adquirir, a ponto de torná-lo imperativo como uma tendência orgânica, o sentimento profundo de que não havia nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses e às necessidades da tribo. 1 2 S e desejássemos, agora, i r colocando marcos decisivos para o de­ senvolvimento deste curso, poderíamos dizer que, numa sociedade sem classes como a comunidade primitiva, os fins da educação derivam da estrutura homogênea do ambiente social, identificam-se com os interesses comuns do grupo e se realizam igualitariamente em todos os seus membros, de modo espontâneo e integral: espontâneo na medida em que não existia 1 1 . Não creio ser necessano recor.dar aqui os trabalhos clássicos de Durkheim, de Lévy-Bruhl e .da sua escola, que confirmam amplamente as interpretações marxistas, tal como B ucárin o indicou em La Théorie du Matérialisme Historique, pág. 2 1 8. 1 2 . Na sessão de 2 de junho de 1 929 da Sociedade Francesa de Filosofia, quando de uma discussão a respeito da "alma primitiva", Lévy-Bruhl mostrou bem que nas sociedades inferiores "a unidade não reside no indivíduo e sim no grupo de que este sente ser membro. Em algumas sociedades, esta solidariedade assume um caráter quase orgânico". Cf. Bulletin de la Société Française de Philosophie, agosto-setembro de 1929. Nestas condições, em relação a essas sociedades, é absurdo falar de "subordinação do indivíduo à sociedade", como muitos o fazem - Auspiais entre eles - e isso pela simples razão de que a noção de indivíduo ainda não está formada. Marx tinha razão quando dizia que "no início da civilização não são as pessoas individuais e sim famílias, tribos etc. que se opõem umas às outras" (Cf. El Capital, tomo 1, pág. 269, da tradução de Justo), mas se equivocava, como reconheceu mais tarde, ao crer que a família fosse anterior à tribo.

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nenhuma instituição destinada a inculcá-los, integral no sentido que cada membro da tribo incorporava mais ou menos bem tudo o que na referida comunidade era possível receber e elaborar. Este conceito de educação, como uma função espontânea da sociedade, mediante a qual as novas gerações se assemelham às mais velhas 1 3 , era adequado para a comunidade primitiva, mas deixou de sê-lo à medida que esta foi lentamente se transformando numa sociedade dividida em classes. 14 O aparecimento das classes sociais teve, provavelmente, uma dupla origem: o escasso rendimento do trabalho humano e a substituição da propriedade comum pela propriedade privada. 1 5 l º J á dissemos que, n a comunidade primitiva, uma divisão rudimentar do trabalho distribuiu precocemente as tarefas, em função de sexo e idade. Mas a diferenciação não parou aí. A distribuição dos produtos, a admi­ nistração da justiça, a direção das guerras, a supervisão do sistema de irrigação etc. foram exigindo, pouco a pouco, certas formas de trabalho social ligeiramente diferentes do trabalho material propriamente dito. Com as rudimentares técnicas da época, o trabalho material era de tal modo cansativo que o indivíduo que se dedicava ao cultivo da terra, por exemplo, não podia desempenhar, ao mesmo tempo, nenhuma das outras funções que a vida tribal exigia. Portanto, o aparecimento de um grupo de indivíduos

1 3 . Ernst Krieck escreveu páginas muito justas a respeito da educação espontânea que brota da convivência. Cf. Bosquejo de la Ciencia de la Educaciân, págs. 29, 34 e 67. No entanto, a sua incompreensão do marxismo impediu-o de desenvolver com exatidão o seu pensamento. Tudo quanto escreveu a respeito da influência da "comunidade" é inatacável enquanto se aplica à comunidade primitiva, mas carece de valor para as comunidades não homogêneas, como são todas as sociedades divididas em classes. O mesmo podemos dizer de Wyneken e de Durkheim, se bem que o último tenha suspeitado que a educação difere em função das classes sociais. 1 4. O Capítulo LII do Le Capital (tomo XIV, págs. 2 1 9-22 1 , da tradução de Molitor) chama-se As Classes, e Marx, nele, perguntava que é que forma uma classe? Mas é sabido que, infelizmente, o manuscrito do Capital ficou interrompido nesse ponto. Bucárin define classe social como "um conjunto de indivíduos que desempenham a mesma função na produção, e que têm, na produção, idênticas relações com os indivíduos e os meios de trabalho". (La Théorie du Maté�lisme Historique, pág. 229.) Lenine, num discurso pronunciado no III Congresso Pan-Russo da União das Juventudes Comunistas, de modo mais didático e expressivo, definiu classe social do seguinte modo: "Que são as classes em geral? É o que permite a uma fração da sociedade ll.propriar-se do trabalho da outra. Se uma fração da sociedade apossar-se de todo o solo, passaremos a ter a classe dos proprietários da terra e a classe dos camponeses. Se uma fração da sociedade possui as fábricas, as ações e o capital, enquanto a outra trabalha nessas fábricas, temos a \ classe dos capitalistas e a dos proletários." 1 5. Cf. Engels: Anti-Dühring, págs. 190 e 308. No mesmo sentido, cf. Bucárin: La Théorie du Matérialisme Historique, pág. 309.

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libertos do trabalho material era uma consequencia inevitável da ínfima

produtividade da força humana de trabalho. 1 6

Apesar d e estarem sob a tutela d a comunidade - porque não se lhes reconhecia nenhuma importância especial -, os "funcionários" que receberam a custódia de determinados interesses sociais fizeram derivar desses interesses certa exaltação de poderes. O encarregado da distribuição de víveres, por exemplo, dispunha de alguns homens que cuidavam dos depósitos, e não é difícil imaginar de que maneira a sua relativa preeminência foi-se convertendo com o tempo numa verdadeira hegemonia. No entanto, para nós tem importância ressaltar que as classes sociais, que, posterior­ mente, chegaram a ser "privilegiadas'', desempenhavam, no início, funções úteis. A sua relativa supremacia inicial foi, a princípio, um fato aceito

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voluntariamente e, de certo modo, espontâneo. Qualquer desigualdade de inteligência, de habilidade ou de caráter poderia servir de base para uma diferença que, com o tempo, poderia engendrar um submetimento. No punho de uma clava milenária encontrada em Hieracômpolis (Egito) podemos ver a figura de um rei escavando um canal de irrigação com as próprias mãos 1 7; da mesma forma, se examinarmos com alguma atenção os mais velhos cantos da literatura egípcia, veremos que o Faraó é sempre celebrado como o que irriga e cultiva. Essa íntima ligação existente entre os monarcas egípcios e a agricultura do país demonstra de que modo as suas funções derivaram em grande parte da necessidade de centralizar o controle dos canais de irrigação. À medida que a prática de represar as águas do Nilo foi-se estendendo, mais deve ter-se acentuado a necessidade de um organismo que tivesse a seu cargo a difícil missão de dirigir e controlar essas tarefas, pois a abertura extemporânea das comportas poderia fazer com que as águas baixassem antes da saturação adequada dos terrenos altos, e destruíssem, de passagem, as obras situadas em terrenos mais baixos. Tratava-se, sem dúvida, de tarefas complicadas,

16. "Só quando os homens se alçaram do seu primitivo estado animal e o seu trabalho, portanto, já se apresenta associado em certo grau é que apareceram relaç{Jes em que o supertrabalho de uns constitui condição para a existência de outros. Nos primórdios da civilização, as forças produtivas adquiridas pelo trabalho eram poucas, mas também eram diminutas as necessidades, uma vez que estas se desenvolvem paralelamente com os meios de satisfação. Além disso, proporcionalmente .fá/ando, o número dos que viviam à custa do trabalho alheio era, nesses primórdios, insignificante em relaçüo à massa dos que se entregavam diretamente à produção." Marx: E/ Capital, tomo !, pág. 395, da tradução de Justo. (O itálico é nosso.) 17. Gompertz: La Panera de Egipto, pág. 86. Os primitivos reis-pastores chineses também eram "os reguladores do tempo". Cf. Richard Wilhelm: Histoire de la Civilisation Chinoise, pág. 67. 23

que exigiam larga experiência e um conhecimento exato do calendário solar. O que dissemos a respeito do guardião dos víveres e o que acabamos de dizer do controlador da irrigação também se aplica aos outros funcionários que representavam a tribo no seu contato diário com os poderes misteriosos da natureza. As forças místicas que o primitivo supunha existirem nos seres inanimados e nos animados apresentavam um caráter caprichoso e um humor difícil. Cerimônias complicadas e ritos precisos constituíam, por isso, como que antecâmaras inevitáveis, por que se teria de passar para alcançar essas forças. 1 8 Um "funcionário" - sacerdote, médico e mago -, tão necessário quanto qualquer outro, aconselhava, protegia e curava os membros da tribo. Da mesma forma que acontecia com os outros funcionários, também nele ia surgindo essa nova característica, que iria acentuar-se, cada vez mais, na comunidade em transição: a direção do trabalho se separa do próprio trabalho, ao mesmo tempo que as forças mentais se separam das físicas. 2º Mas esta divisão da sociedade em "administradores" e "execu­ tadores" não teria levado à formação das classes, tal como hoje as conhecemos, se outro processo paralelo não tivesse ocorrido ao mesmo tempo. As modificações introduzidas na técnica - especialmente a do­ mesticação dos animais e o seu emprego na agricultura, como auxiliares do homem - aumentaram de tal modo o poder do trabalho humano que

a comunidade, a partir desse momento, começou a produzir mais do que o necessário para o seu próprio sustento. Apareceu um excedente de produtos, e o intercâmbio desses bens, que até então era exíguo 19, adquiriu

tal vulto que se foram acentuando as diferenças de "fortuna". Cada um dos produtores, aliviado um pouco do seu trabalho, passou a produzir para as suas próprias necessidades e também para fazer trocas com as tribos vizinhas. Surgiu pela primeira vez a possibilidade do ócio; ócio fecundo, de conseqüências remotíssimas, que não só permitia fabricar outros ins­ trumentos de trabalho e buscar matérias-primas, como também refletir a 1 8 . Robinson: Introduction à l 'Histoire des Religions, págs. 25 e 26. 1 9 . "A troca de mercadorias começa onde terminam as comunidades; nos seus pontos de contato são comunidades estranhas ou são membros de comunidades estranhas. Mas, no momento em que, para a vida extragrurml, as coisas se transformam em mercadorias, a mesma transformação também se dá para a vida intracomunal... Ao mesmo tempo, a necessidade de objetos de uso de procedência estrangeira vai-se arraigando pouco a pouco. A contínua repetição da troca faz dela u m processo social regular. Co1111 o decorrer do tempo, pelo menos uma parte dos produtos é intencionalmente produzida para fins de comércio. A partir desse momento . . . consolida-se a separação entre a utilidade das coisas para a satisfação de necessidades i mediatas, e a sua utilidade para o comércio: o valor de uso se separa do valor de troca." Marx: El Capital, tomo 1, pág. \O, da tradução de Justo. 24

respeito dessas técnicas. Em outras palavras : criar os rudimentos mais grosseiros daquilo que, posteriormente, viria a se chamar ciência, cultura, ideologias. Com o aumento do seu rendimento, o trabalho do homem adquiriu certo valor. Em outros tempos, quando a produção era exígua, e o cultivo

consistia, por exemplo, apenas em semear alguns grãos depois de arranhar o solo entre troncos cortados20, o aumento da natalidade era severamente reprimido.21 A comunidade se mostrava tão incapaz de assegurar a ali­ mentação de indivíduos além de certo número que, quando uma tribo vencia outra, ela se apoderava das riquezas desta, mas também matava todos os seus membros, porque recebê-los no seu seio seria catastrófico. Mas, tão cedo o bem-estar da tribo aumentou, por causa das novas técnicas de produção, os prisioneiros de guerra passaram a ser desejados, e o inimigo vencido passou a ter a sua vida garantida com a condição de transformar-se em escravo. À medida que cresciam os rebanhos, maior era a necessidade de indivíduos que cuidassem deles, mas como a reprodução dos animais era mais rápida do que a humana, era óbvio que apenas a tribo, com a sua natalidade, não poderia satisfazer a mencionada exigência de braços. 22 Agora, incorporar indivíduos estranhos à tribo, para explorar o seu trabalho, era, ao mesmo tempo, necessário e possível. É desnecessário dizer que o trabalho escravo aumentou o excedente de produtos de que a comunidade dispunha, produtos esses que os "administradores", como representantes da comunidade, comerciavam, tanto com as tribos vizinhas, quanto com as longínquas. As coisas continuaram assim até que as funções dos "organizadores" passaram a ser hereditárias, e a propriedade comum da tribo - terras e rebanhos - passou a constituir propriedade privada das famílias que a administravam e defendiam. Donas dos produtos, a partir desse momento as famílias dirigentes passaram também a ser donas dos homens. 23 Essa transformação tem grande importância para nós. Na sociedade primitiva, a colaboração entre os homens se fundamentava na propriedade

20. Era assim que os índios da América do Norte plantavam o milho quando chegaram os conquistadores. Não muito mais perfeita era a Tacla que os incas usavam para cavar, apoiando o pé sobre uns paus em forma de cruz. 21. Descamps, ob. cit., pág. 45. 22. Engels: El Origen de la Familia, de la Propiedad Privada y dei Estado, págs. 51-52. 23. "Esse remanescente de um fundo social de produção e de reserva base de todo o progresso social, político e intelectual, passou a ser patrimônio de uma classe privilegiada que obteve nesse mesmo momento, e por esse meio, a hegemonia política e a direção espiritual." Engels: Anti-Dühring, pág. 208. 25

coletiva e nos laços de sangue; na sociedade que começou a se dividir em classes, a propriedade passou a ser privada e os vínculos de sangue retrocederam diante do novo vínculo que a escravidão inaugurou: o que impunha o poder do homem sobre o homem. Desde esse momento, os fins da educação deixaram de estar implícitos na estrutura total da comunidade. Em outras palavras : com o desaparecimento dos interesses comuns a todos os membros iguais de um grupo e a sua substituição por interesses distintos, pouco a pouco antagônicos, o processo educativo, que até então era único, sofreu uma partição: a desigualdade econômica entre os "organizadores " cada vez mais exploradores e os "executores " cada vez mais explorados trouxe, necessariamente, a desigualdade das educações respectivas. As famílias dirigentes que organizavam a produção social e retinham em suas mãos a distribuição e a defesa organizaram e distribuíram também, de acordo com os seus interesses, não apenas os produtos, mas também os rituais, as crenças e as técnicas que os membros da tribo deviam receber. Libertas do trabalho material, o seu ócio não foi nem estéril, nem inj usto, a princípio. Com os rudimentares instrumentos da época, não seria concebível que alguém se entregasse a funções necessárias, mas não produtivas, a menos que muitos outros trabalhassem para esse alguém. Mas, se a aparição das classes sociais foi uma conseqüência inevitável da escassa produtividade do trabalho humano, também não é menos certo que os que se libertaram do trabalho manual aproveitaram a vantagem conseguida para defender a sua situação, não divulgando os seus conhecimentos, para prolongar a incompetência das massas e, ao mesmo tempo, assegurar a estabilidade dos grupos dirigentes. -

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Nos primeiros tempos da comunidade primitiva, qualquer um podia ser, momentaneamente, juiz e chefe, mas, agora que a estrutura social começava a complicar-se, certos conhecimentos passaram a ser requeridos para o desempenho de determinadas funções, conhecimentos esses que os seus detentores começaram a apreciar como fonte de domínio. Os que conviviam com os "organizadores" dispunham de mais facilidades do que os membros comuns da tribo, para aprender essa missão. Por esse motivo, os funcionários que representavam os interesses comunais costumavam ser eleitos entre os membros da mesma família. Cada "organizador" educava os seus parentes para o desempenho do seu cargo, e predispunha o resto da comunidade para que os elegess�. 24 Com o passar do tempo, essa eleição se fez desnecessária: os "organizadores" passaram a designar aqueles que deveriam sucedê-los e, desse modo, as funções de direção passaram a ser patrimônio de um pequeno grupo que defendia ciumentamente •

24. B ogdanof. Economía Política, pág. 39. 26

os seus segredos. Para os que nada tinham, cabia o saber do vulgo; para os afortunados, o saber de iniciação. As cerimônias de iniciação constituem o primeiro esboço de um processo educativo diferenciado, que, por isso mesmo, já não era espontâneo, mas coercitivo. Elas representam o rudimento do que mais tarde viria a ser a escola a serviço de uma classe. Os magos, os sacerdotes e os sábios - primeiramente simples depositários e, posteriormente, donos do saber da tribo - assumem pouco a pouco, juntamente com a função geral de conselheiros, a função mais restrita de iniciadores. Cada tribo foi recolhendo através dos anos uma larga experiência que foi sendo cristalizada em tradições e mitos. Mescla caótica de saber autêntico e de superstições religiosas, esse acervo cultural constituía o reservatório espiritual que protegia o grupo na sua luta contra a natureza e contra os grupos rivais. Nas cerimônias de iniciação, os sacerdotes explicavam aos mais seletos dos jovens da classe dirigente o significado oculto desses mitos e a essência dessas tradições. Essas cerimônias de iniciação eram acompanhadas ou precedidas por provas duras, dolorosas e, às vezes, mortais, destinadas a experimentar a têmpera dos futuros dirigentes e a salientar de modo . impressionante25 o caráter intransferível das coisas ensinadas. Do ponto de vista educativo, a partir desse momento há uma diferença bem grande de nível entre os iniciados e os não-iniciados; na classe superior, ainda vamos constatar o mesmo fato se compararmos a criança com o adulto. Esta já recebe menos educação e alimentos do que o adulto. Da mesma forma, começa a haver uma hierarquia em função da idade, acompanhada de uma submissão autoritária que exclui o antigo tratamento benévolo demonstrado para com a infância, ao mesmo tempo que surgem as reprimendas e os castigos. Quando a comunidade primitiva ainda não se havia dividido em classes, quando a vida social era sempre igual a si mesma e diferia pouco de indivíduo para indivíduo, a própria simplicidade das práticas morais colocava as crianças sem esforço no caminho do hábito, e não era necessária nenhuma disciplina. Porém, agora que surgiram na tribo as relações de dominância e submissão, agora que a vida social se complicou até diferir bastante de indivíduo para indivíduo, de acordo com o lugar que cada . 25. "Nas festas de iniciação, quando o jovem ingressa no círculo dos adultos, consegue-se essa finalidade [fazer com que ele conheça as obrigações sociais superiores] não só fisicamente, por processos mágicos, mas também através da inculcação dos costumes prescritos pela tribo, especialmente o respeito e a obediência aos velhos, na alma dos jovens, sensibilizada a toda espécie de impressões por meio de jejuns e vigílias. E essa sugestão continua forte durante toda a vida." Graebner: E/ Mundo dei Hombre Primitivo, pág. 38. 27

um ocupa na produção, resulta evidente também que j á não é possível confiar a educação das crianças à orientação espontânea do seu meio ambiente. Estudando 1 04 sociedades primitivas, Steinmetz verificou que em apenas 13 delas a educação era severa. Mas o interessante é notar que esses 1 3 povos já eram relativamente mais civilizados do que os outros.26 A educação sistemática, organizada e violenta, surge no momento em que a educação perde o seu primitivo caráter homogêneo e integral. 27

A primitiva concepção do mundo como uma realidade ao mesmo tempo mística e natural, uma realidade por onde circulam forças difusas, é agora substituída por outra concepção, em que se reflete a mesma noção de hierarquia que apareceu na estrutura econômica da tribo: deuses domi­ nadores e crentes submissos dão um matiz original às novas crenças da tribo. Crenças tão diretamente ligadas à essência das classes sociais, que a continuação da vida depois da morte - comum a todos no início passa mais tarde a ser um privilégio dos nobres. 28 Não é necessário dizer que a educação imposta pelos nobres se encarrega de difundir e reforçar esse privilégio. Uma vez constituídas as classes sociais, passa a ser um dogma pedagógico a sua conservação, e quanto mais a educação conserva o status quo, mais ela é julgada adequada. Já nem tudo o que a educação inculca nos educandos tem por finalidade o bem comum, a não ser na medida em que "esse bem comum" pode ser uma premissa necessária para manter e reforçar as classes dominantes. Para estas, a riqueza e o saber; para as outras, o trabalho e a ignorância. Esse fato se repete com uma regularidade impressionante nas origens de todas as culturas: entre os polinésios, entre os incas, ou entre os chineses. Relata-nos Letourneau que os primeiros europeus que visitaram as ilhas da Polinésia ouviram dos lábios dos membros privilegiados das tribos a seguinte afirmação: "que lhes parecia muito conveniente instruir os seus próprios filhos, mas que era inteiramente inútil fazer o mesmo com os filhos do povo, que estavam destinados a viver sempre em estado servil e a não ter, portanto, nem propriedades, nem servidores".29 Não 26. Citado por Durkheim em L 'Éducation Mora/e, pág. 2 1 0. 27. Saverio de Dominicis: Scienza Compara/a della Educazione, págs. 325 e 470. 28. "É sabido há bastante tempo que os polinésios, que do ponto de vista da organização social possuem classes nobres e não-nobres, espWiituais e não-espirituais, atribuem a essas classes destinos diferentes depois da morte. Ao plebeu, caberá depois da morte um destino sombrio, ao passo que as almas dos nobres e dos caciques subirão até os deuses... Em Tonga, também na Polinésia, a separação ainda é maior: só os nobres têm alma imortal. Para os outros, tudo termina com a morte." Graebner, ob. cit., pág. 78. (O grifo é nosso.) " 29. Letourneau, ob. cit., pág. 1 22. O grifo não está no original.

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pensavam diferentemente as classes dirigentes entre os incas; pelo menos é isso que deduzimos quando vemos Tupaque lupanqui afirmar que não é lícito ensinar às crianças plebéias as ciências que pertencem aos nobres, para evitar que "gentes baixas se elevem, se ensoberbem, desprezem e apoquentem a república; para elas é suficiente aprender os ofícios dos seus antepassados, porque o mandar e o governar não são coisas próprias dos plebeus, ao mesmo tempo que seria um agravo à república e à profissão permitir que os plebeus façam essas coisas". 3º Não teria sido também a mesma voz a que ressoou vários séculos atrás entre os sábios taoístas da China que acreditavam que não se devia conceder o saber ao povo, porque ele desperta desejos, afirmando que ao homem do povo bastariam "músculos sólidos e vontade escassa, estômago satisfeito e coração vazio"?31 Acompanhando as transformações experimentadas pela propriedade, a situação social da mulher também sofreu modificações de vulto. Na comunidade primitiva, em que imperava o matrimônio grupal, ou um casamento facilmente dissolúvel, a paternidade era difícil de ser estabelecida, e a filiação, por esse motivo, se transmitia pela linha materna. O matriar­ cado32 sempre aparece junto a essas formas de comunidade fundadas na 30. Prescot: Historia de la Conquista dei Perú, con Observaciones Preliminares Sobre la Civilizacirín de los Incas, pág. 33. 3 1 . Wilhelm, ob. cit., pág. 1 63. 32. Parece que há aqui uma impropriedade de linguagem da parte do Autor que, provavelmente, queria dizer matrilinearidade, em vez de matriarcado. Essa palavra matriarcado se presta a confundir o leitor não versado em Antropologia, mercê do significado popular do termo. Nesse sentido popular de "governo das mulheres", isto é, de uma sociedade em que o poder político está inteiramente nas mãos das mulheres, nunca existiu, ou, pelo menos, nunca se encontrou uma sociedade primitiva em que se tenha positivado a existência desse tipo de organização político-social. Na concepção antropológica do termo, matriarca! seria qualquer sociedade em que a preeminência feminina está institucionalizada em vários aspectos importantes da cultura, em detrimento da posição masculina. Nesse sentido do termo, temos várias sociedades primitivas - iroqueses, zufii, mairs etc. - em que encontramos organização matriarca!, mas no conjunto das sociedades primitivas conhecidas, a dominação masculina é bastante mais generalizada. Na opinião de Margaret Mead ("Woman Position in Society" in Encyc/opaedia A L : La Dvctdua de la f\/ ueva Educaciôn,

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