Editora Vozes Assim falava Zaratustra - Uma chave de leitura 9788532654410, 9783423301244

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Assim falava Zaratustra - Uma chave de leitura
 9788532654410, 9783423301244

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Assi,11 f~1h1uc.1 Zaratustra é a obra n1ais conhecida de Friedrich Nietzsche, e talvez a sua obra 1nais difícil, pois nela o leitor encontra, en1 igual 1nedida, un1 filósofo poeta e un1 poeta filósofo que parecem recusar qualquer sistemática. A isso se acresce a problemática de urna história extraordinária do texto, igualmente ligada a falsificações e apropriações ideológicas. Contudo, encontrará aqui u1n in1portante auxílio quem ignora os conceitos de "alé1n-do-hornern" ou de "vontade de potência" e:.·.- _· .. , deseja ou até n1esn10 precisa le(Útr.: ~(·:--i•: . . · original as já muito con~entadâs{'\.tjf:_\\ obras de Nietzsche. Este livro :_·:·-'":'.-'·_·-\: ..: -f ten1 a tarefa de, ao lado de dois · · ·• ·.,, ·. · experientes leitores de Nietzsche; .~ trilhar o árduo caminho da gradual familiarização com a peculiar linguagem desse filósofo radical, para ao final permitir ao leitor não iniciado enfrentar o próprio texto de Nietzsche con1 ganho e prazer. .·..





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ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

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Coleção Chaves de Leitura

Coordenador Robinson dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Schmidt, Rüdiger Assim falava Zaratustra : uma chave de leitura / Rüdiger Schmidt, Cord Spreckelsen ; tradução Diego Kosbiau Trevisan. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. (Coleção Chaves de Leitura) Título original : Also sprach Zarathustra : Eine Lese-Einführung Bibliografia ISBN 978-85-326-5441-0 1. Filosofia alemã I. Spreckelsen, Cord. II. Título. III. Série.

17-02287

CDD-193 Índices para catálogo sistemático: 1. Alemanha : Filosofia 2. Filosofia alemã

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3. Filósofos alemães 193

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Rüdiger Schmidt Cord Spreckelsen

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA Uma chave dp-1a~..f::-u_.... ,.,.,_ _ _ _ _ __

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Tradução de Diego Kosbiau Trevisan

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1995 Deutscher Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, München.

Título original em alemão: Nietzsche für Anfiinger: Also sprach Zarathustra - Eine _ / Lese-Einführung, by Rüdiger Schmidt e Cord Spreckelsen , , Direitos de publicação em língua portuguesa - Brasil: 2017, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br Brasil

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

CONSELHO EDITORIAL Diretor

Gilberto Gonçalves Garcia Editores

Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros

Francisco Morás Leonardo A.R.T. dos Santos Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J. Berkenbrock

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DEDALUS -Acervo - FFLCH

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Secretário executivo

João Batista Kreuch

Editoração: Flávia Peixoto Diagramação: Mania de criar Revisão gráfica: Nilton Braz da Rocha Capa: Renan Rivero Ilustração de capa: Alexandre Maranhão ISBN 978-85-326-5441-0 (BrasilV ISBN 978-3-423-30124-4 (Alemanha) Editado conforme o novo acordo ortográfico. Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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Para Sabine e Sílvia.

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SUMÁRIO

Nota preliminar, 9

Um caso para o leitor, 11 Um livro para todos e para ninguém?, 29 O outro sábio, 52 Pontos de fuga, 135 Os quatro livros de Zaratustra, 171 Ler Zara tustra, 18 5 Apêndice, 187 Índice, 193

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NOTA PRELIMINAR Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas - o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele-, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade (KSA 6, 259).

Assim falava Zaratustra "ocupa um lugar à parte". Ele setornou o livro mais conhecido de Nietzsche; ele foi compreendido, louvado e execrado como uma busca por um novo escrito sagrado. O Zaratustra de Nietzsche causa mais incômodo do que seus outros livros: a obra não é um tratado filosófico no sentido comum do termo e tampouco é poesia; mas mais do que tudo ela se distingue formalmente dos demais escritos de Nietzsche. Em nenhum outro lugar ele constitui uma figura central, em nenhum outro lugar se encontram tantas ressonâncias estilísticas de livros religiosos. O livro se furta de várias formas a uma classificação.

E o próprio Nietzsche? Ele também resiste a assimilações. A passagem citada acima sobre o Zaratustra se encontra no Ecce homo, seu último escrito preparado para publicação, uma profilática exposição de si mesmo: "Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo: perceberão por que publico este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos comigo" (KSA 6, 365). Também Ecce homo provoca incômodo, ainda que aqui referido 9

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ao próprio Nietzsche: "Por que sou tão sábio", "Por que sou tão inteligente", "Por que escrevo tão bons livros", "Por que sou um destino", são os títulos de alguns dos capítulos da obra. Esse último escrito autobiográfico dá testemunho de extremos e rupturas. E ainda assim, muito embora as instabilidades do Ecce homo possam se explicar pelo colapso que Nietzsche teve em Turim e que marcou o desfecho catastrófico de seu trabalho de pensamento, esse autocomentário reflete a vivacidade de seu pensamento, formula autoavaliações radicais bem como dúvidas radicais de si mesmo, sugerindo-se, aqui, o motivo de valer a pena ler Nietzsche: Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão ... Talvez eu seja um bufão ... E apesar disso, ou melhor, não apesar disso - pois até o momento nada houve mais mendaz do que os santos-, a verdade fala em mim (KSA 6, 365).

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UM CASO PARA OLEITOR Nietzsche, um homem vigiado Sobre poucos autores filosóficos sabemos tanto quanto sobre Friedrich Nietzsche, seus trabalhos, seus sonhos e anseios. Temos relatos de quase todos os dias, podemos reconstruir todas as viagens e, ao lado disso, ainda sabemos que, na década de 80 do século XIX, a viagem de Florença até Genoa de trem era mais rápida do que hoje em dia. O próprio Nietzsche forneceu uma base para tanto, uma vez que ele conservou diários e bilhetes, marcando os lugares por onde passava para posteriormente remeter-se novamente a eles, e então escrevia em um caderno de anotação de trás para frente, até chegar à página do primeiro relato. Uma base adicional foi dada, desde bem cedo, por sua irmã Elisabeth, que nasceu em 1846 - dois anos depois de seu irmão - e conservou todas as anotações de Nietzsche, mesmo quando ele explicitamente desejava queimar uma caixa de antigas anotações. Depois do colapso de seu irmão (1889) ela sistematizou todo seu legado manuscrito, fundou em 1894 o Nietzsche-Archiv em Naumburg e organizou uma busca sistemática por outros relatos escritos, sobretudo as cartas do filósofo. Desde o início, contudo, o interesse pelo homem Nietzsche constituiu uma significativa parte da literatura sobre ele. Desde bem cedo consolidou-se uma pesquisa biográfica, que até hoje não se encerrou e ainda permanece à caça de novos detalhes. Já em 11 Digitalizado com CamScanner

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1894 Lou Andreas-Salo1né publicou o livro Friedrich Nietzsche em suas obras. Aqui se encontra a talvez mais bela descrição do homem Nietzsche, dando informações sobre o modo de sua fala, seus movitnentos, suas mãos. A esse relato seguiram-se lembranças de sua irmã e de seus amigos. A partir de 1894 foi organizada a primeira grande edição de seus escritos e de seu legado manuscrito, começando, assim, uma nova história até hoje não encerrada. Cmno se ele viesse de um país onde, de resto, Nietzsche ainda mora (Erwin Rhode).

Etapas Não fosse a história sempre uma teodiceia cristã disfarçada, fosse ela escrita com maior justiça e ardor da compaixão, então seria ela verdadeiramente a menos própria a desempenhar o papel que desempenha hoje: servir de ópio contra toda a transformação e renovação. O mesmo ocorre com a filosofia: a maioria gostaria somente de aprender a compreender mais ou menos as coisas - muito mais ou menos! -, a fim de se conformar com elas. E mesmo seus mais nobres representantes ressaltam tão claramente seu poder de acalmar e consolar que os preguiçosos e os que aspiram ao repouso acabam acreditando buscar o mesmo que a filosofia. Parece-me, ao contrário, que a questão mais importante de toda filosofia é a de saber até que ponto as coisas são de uma natureza e de uma forma inalteráveis: a fim de, tendo respondido a essa questão, lutar com uma coragem sem reservas pela melhora da parte reconhecidamente modificável do mundo (KSA 1,445).

Isso foi escrito em 1876 pelo professor de Filologia Antiga, Friedrich Nietzsche, então co1n trinta e um anos de idade - e empossado como professor na Basileia já havia três anos e meio. Ele

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desejava modificar a incrustada Alemanha, que, após a vitória militar sobre a França, acreditava ter triunfado também culturalmente. Poré1n, conforme Nietzsche acreditava, mesmo a vida cultural como puro entretenimento refletia uma sociedade indiferente - indiferente aos valores que marcavam a antiga Grécia. Para o professor de línguas antigas, essa era, contudo, uma Grécia que não era o belo e simples da cultura clássica.

Já em Leipzig o estudante Nietzsche trabalhava em uma nova imagem da Grécia. O fio condutor era, para ele, a filosofia de Schopenhauer e toda a obra de Wagner. Nietzsche descobre o pessimismo grego: precisamente porque os gregos tinham conheci1nento do abismo da vida, eles criaram sua grande arte. Dionísio representava os abismos, e Apolo, a arte. Apenas "como fenômeno estético", Nietzsche escreve em seu primeiro livro, "a existência e o mundo são eternamente justificados" (KSA 1, 4 7). Esse livro, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música, publicado em 1872, levou Nietzsche a conquistar reputação científica; eram bem revolucionárias suas teses sobre o lado obscuro da Grécia, era bem claro o propósito de erigir um fundamento histórico-filosófico para os planos de Richard Wagner sobre Bayreuth. Quando até 1nesmo Wagner interveio na polêmica em torno do livro de Nietzsche e publicou no Norddeutschen Allgemeinen uma defesa do livro, a seriedade de Nietzsche foi definitivamente embora. "Em um caso particular eu até mesmo sei", escreve Nietzsche a seu amigo Erwin Rhode, "que um estudante [... ] se deteve em Bonn e, agraciado, escreveu a familiares dizendo agradecer a Deus por não estar em uma universidade onde eu sou professor" (KSA 15, 44 ). Os estudantes sumiram completamente no semestre de inverno: "Trata-se de um fato bem premente, e de certa forma constrangedor, que falte1n filólogos en1 nossa universidade [... ], um fenômeno

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bem peculiar [... ]. Foi com extrema necessidade que tive que oferecer um curso, que contou com dois ouvintes, um germanista e um jurista [... ]. É mesmo muito difícil suportar que essa pequena universidade tenha de sofrer comigo" (KSA 15, 44 ). A universidade da Basileia nunca pronunciou uma única palavra crítica contra Nietzsche. Em 9 de junho de 1872 Cosüna Wagner escreveu em seu diário: Carta [que não chegou até nós] do Professor Nietzsche, que envia o panfleto de H. von Wilamowitz contra ele. Considerações que se ligam a essas novas ignomínias; Richard entende que o estado atual do mundo é desolador; os professores, que se constituem como professores-especiais, não [têm] nenhuma formação humana que se irradia; o ju_rista, por exemplo, não pensa em estudar filologia e filosofia, tudo é apenas especialização (KSA 15, 40).

Trata-se, para Nietzsche, da unidade de vida, trabalho e cultura, trata-se do projeto de Bayreuth, ou seja, da construção de uma grande casa de espetáculos, exclusivamente para a apresentação das óperas de Richard Wagner, a produção de um lugar - quase - místico, a partir do qual a sociedade pudesse se renovar. O entusiasmo de muitos jovens por esse projeto pode ser comparado com o entusiasmo de toda uma geração pelo Woodstock. Quando Nietzsche foi a Bayreuth em 1876 para a abertura do primeiro festival, Wagner não havia lido seu escrito Richard Wagner em Bayreuth e tampouco tinha tempo para "seu" professor. E este não encontrou em Bayreuth revolucionários culturais mas ' ' antes, apenas dinheiro - e a verdadeira nobreza. Nietzsche deixou Bayreuth ainda durante os ensaios e escapou para l(lingenbrunn, onde recebeu em 8 de agosto de 1876 uma carta de sua irmã Eli-

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sabeth: "Wagner me cumprimentou em um intervalo e (disse) que você gostaria de ter vindo, suas composições sempre tinham lhe agradado! Ele foi tão burlesco" (KSA 15, 69). Ora, também é burlesco falar assim. Com alguém para quem o projeto de Bayreuth tinha sido uma verdadeira concepção de inundo e que escrevera um artigo programático para os primeiros festivais, composto de citações - assim o sabemos desde os trabalhos de Mazzino Montinari - de antigos escritos de teor cultural-revolucionário de Wagner. Quase como um espelho: você pensava . . assim antigamente. No verão de 1876 apareceu, contudo, a alta sociedade. Não mais se falava em abrir o festival ao "povo" e tampouco em entender o "Anel dos Nibelungos", a obra total de Wagner, como um guia para a mudança da sociedade e, então, novamente demolir a casa de espetáculos. Nós sabemos hoje que a fuga de Nietzsche não se deu inesperadamente. Em suas anotações encontramos, já desde bem cedo, críticas contra o dogmatismo de Schopenhauer e Wagner. Em 1874 Nietzsche escreve um pequeno texto com o título Sobre verdade e mentira em sentido extramoral. "Extramoral" não tem aqui sentido valorativo. Trata-se de uma análise histórica dos conceitos morais. No entanto, Nietzsche ainda não arriscava publicar seus pensamentos críticos. Sobre verdade e mentira em sentido extramoral permaneceu um escrito secreto. Nele já se encontram elementos de sua filosofia crítica posterior. As Considerações extemporâneas, Schopenhauer como educador e Wagner em Bayreuth, publicados nesse período, são escritos de despedida. Na segunda metade dos anos de 1870 Nietzsche começa cada vez mais a piorar de saúde. Enxaquecas e uma contínua dor nos

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olhos fazem com que ele peça uma licença em 1877. Ele passa o inverno de 1877/1878 em Sorrento, Nápoles, junto com a amiga de sua mãe Malwida von Meysenbug, seu antigo estudante Alfred Brenner e com Paul Rée, o autor de Origem dos sentimentos morais. Nietzsche encontra em Rée alguém com quem ele pode filosofar e trabalhar conjuntamente. Em 1878 é publicado Humano, demasiado humano, um livro para espíritos livres. Dedicado à memória de Voltaire. Os amigos de Nietzsche em Bayreuth ficaram assombrados: um livro dedicado a Voltaire, a um francês e um iluminista? Nietzsche escreve sobre Humano, demasiado humano: "Ele se denomina um livro para espíritos livres: quase toda frase dele exprime uma vitória - com ele·eu me libertei de tudo aquilo que não me pertence". O que não lhe pertence, isto é, todo dogmatismo, toda crença - seja em um sistema filosófico. O iluminismo alemão, em vão buscado no século XVIII, ainda deve ser descoberto. Ele é encontrado nos escritos de Nietzsche. Cosima Wagner escreve em uma carta a Marie von Schleinitz: Eu ainda não li o livro de Nietzsche. Apenas tê-lo folheado e lido algumas concisas frases dele já me basta, para mim isto já é o suficiente. No autor foi consumado um processo, que já há muito eu via chegar, contra o qual eu lutei com minhas débeis forças. Muitas coisas confluíram para esse triste livro! Por fim veio Israel na figura de um Dr. Rée, bastante escorregadio, bastante frio, como que completamente dominado e subjugado por Nietzsche, mas na verdade o envolvendo em um embuste, a relação da Judeia com a Germânia [... ]. Malwida nega completamente a má influência do Dr. Rée, quem ela tem em muito boa conta[ ... ]. Ela também me pede para não abandonar Nietzsche, mas para toda frase que eu li eu tenho um comentário, e eu sei que aqui o mal venceu (KSA 15, 83ss.).

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O mal, o iluminismo alemão, o judaísmo. Aqui surge o antissemitismo intelectual: os judeus dissecaram valores, conceitos, destruíram o todo, a totalidade. Também hoje é preciso ser chamada atenção para isso, quando novos apóstolos da integralidade fazem advertências antes de pensar, quando deixam falar a intuição e confiam nos sentidos antes da razão. Em Humano, demasiado humano e nos dois livros que se lhe seguiram, Aurora e A gaia ciência (publicados entre 1878 e 1882), Nietzsche propõe, como indica o subtítulo de Aurora, "reflexões sobre os preconceitos morais". Dirigindo-se contra os sistemas dogmáticos, Nietzsche prefere agora a forma aforística. Nietzsche escreve como espírito livre para espíritos livres. Suas enxaquecas, suas quase constantes enfermidades não mais lhe permitem prosseguir trabalhando. Em 1879 Nietzsche pede dispensa da universidade. Um espírito livre, mas também um andarilho solitário entre os mundos real e espiritual, entre a Suíça, França e Itália. Em busca de algo. Em A gaia ciência ele escreve: "Também a Terra moral é redonda! Também a Terra moral tem seus antípodas! Também os antípodas têm seu direito de existência! Há ainda um outro mundo a ser descoberto - e mais do que um! Todos a bordo, filósofos!" (KSA 3, 529). Ao cabo do -como o próprio diz- "espírito livre" de Nietzsche, desse iluminismo alemão tardio, residem a chocante experiência da morte de Deus e a pergunta pelo que vem depois disso. Nós nos precipitamos adiante, não há um centro, não há mais valores vinculantes e obrigantes. Nós e·stamos sozinhos. Contudo, assim também estava Nietzsche. Já com seus livros para "espíritos livres", Humano, demasiado humano, Aurora e seu significativo subtítulo "Reflexões sobre os preconceitos morais", além de A gaia ciência, Nietzsche perde quase todos os seus amigos, não apenas aqueles

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do Círculo de Bayreuth. Ao lado de Paul Rée ele encontrou sobretudo em Lou Salomé uma parceira de diálogo com igualdade de direitos pela qual se apaixonou. É inútil ficar hoje especulando se quem arruinou a amizade foi a irmã de Nietzsche, o próprio Nietzsche ou Lou. O importante é que Nietzsche entendeu Lou e Lou entendeu Nietzsche, como escreve Montinari, que então pede: "Devolvamos a estes dois seres humanos sua autonomia". Esta reside nas reflexões, nos escritos, nas tentativas e nos fracassos. Após a derrocada da amizade com Lou Salomé e Paul Rée, Nietzsche permanece sozinho. O Zaratustra fracassa? Ele se transforma continuamente e se transfigura já nos estudos prévios de Nietzsche. À época da amizade com Lou Salomé encontramos nos cadernos de anotação de Nietzsche um Zaratustra mais suave; sua aspereza, que até hoje pode e deve nos assustar, surge primeiramente depois do rompimento com Lou. E apenas nesse contexto é possível indagar algo sobre o pano de fundo biográfico. Esses cadernos de anotação, o legado manuscrito póstumo de Nietzsche, devem ser sempre lidos. No volume de comentários da edição crítica das obras de Nietzsche1 , !v1azzino Montinari dá referências sobre os estudos prévios do Zaratustra. Somente a partir da edição histórico-crítica das obras completas de Nietzsche2 podemos verdadeiramente seguir o seu pensamento, antes disso tudo permanecia preso no cipoal dos trabalhos do Nietzsche-Archiv de Weimar. 1. Friedrich Nietzsche. Siimtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 vols., editado

por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova York. 1988, vol. 14, p. 279-344 [Antes: Munique/Berlim/Nova York, 1980]. Na sequência, citado como KSA. 2. Friedrich Nietzsche. Werke - Kritische Gesamtausgabe, fundado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, prosseguido por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi. Berlim/Nova York, 1967ss.

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Textos e falsificações Os textos do filósofo, que nesse meio-tempo tornou-se famoso, foram de pronto transferidos do Nietzsche-Archiv de Weimar - em 1896 Elisabeth Forster-Nietzsche deixou Naumburg e se estabeleceu em Weimar, mudando-se para a "Villa Silberblick" na Humboldstrasse. Além disso, também as cartas de Nietzsche foram apresentadas ao público. E aqui começa a história das falsificações: para legitimar-se não apenas como editora, mas também como intérprete de seu irmão, Elisabeth mudou os destinatários das cartas. Por exemplo, quando Nietzsche escreveu a um amigo: "você é que_m melhor me entende", Elisabeth excluiu o destinatário, queimando, neste caso, uma parte da carta. Talvez no final do século XIX fosse necessário que uma mulher realizasse um tal tipo de falsificação para montar um arquivo significativo, conduzir trabalhos editoriais e tornar-se diretora científica - a primeira na Alemanha. Devem ser levadas mais a sério, contudo, as intervenções de conteudo realizas no legado manuscrito póstumo. O estudante de Nietzsche Heinrich Koselitz, mais conhecido pelo seu pseudônimo Peter Gast, relata já em 1910 (em uma carta) sobre o "senso de verdade" de Elisabeth: [... ] sobre o capítulo "o senso de verdade da Senhora Forster" devo contar-lhe um exemplo que me ocorre agora e me faz rir. Rir - pois por quais situações passamos como velhos homens de arquivo, situações pelas quais nunca passaríamos como homens honestos. Quando, em 1904, imprimíamos o segundo tomo da biografia, foi introduzida uma carta de N[ietzsche] na qual o nosso Kaiser, com então 29 anos, era elogiado por declarações ofensivas sobre antissemitas e o Kreuzzeitung3.

3. E.g. Neue Preussische Zeitung [N.T.].

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Ora, você sabe quão intensamente a Senhora Forster anseia por fazer o Kaiser interessar-se por Nietzsche e na medida do possível, extrair dele declarações de reco~ nhecimento sobre a tendência de Nietzsche. O que ela faz para tanto? (Por favor pegue o segundo tomo da biografia.) Ela insere uma frase que não existe na referida carta de Nietzsche de final (e não início) de outubro de 1888. Ela escreve na página 890, linha 9 de baixo para cima, a seguinte frase: "A vontade de potência como princípio seria já compreensível a ele (ao Kaiser)" . Ela se lembra de onde provém tal frase: do esboço de prefácio a Vontade de potência que se encontra impresso na página 420 do tomo XIV. A redação desse esboço (que está no envelope do caderno W IX [= W II 1]) é certamente uma das tarefas mais difíceis de serem decifradas em Nietzsche. Os Horneffer já tentaram extrair isso de mim; o texto a ser decifrado, contudo, apresenta mais lacunas do que palavras. Apenas essa frase eles conseguiram transcrever integralmente. Com frequência, esse trabalho prévio torna-se para aquele que se lhe segue mais um embaraço do que um incentivo. Para mim, o derradeiro decifrador do trecho ocorreu à época que a proposta de Horneffer, "A vontade de potência como princípio seria já compreensível a eles (os alemães)", não poderia de forma alguma estar correta no contexto do esboço de prefácio. E como tive novamente à mão em abril do a no passado o caderno W IX, foi confirmada minha suspeita de que, sem dúvida alguma, está escrito "pouco compreensível" [schwer verstdndlich] ao invés de "já compreensível" [schon verstdndlich] ! Essa história não é muito boa? A Senhora Forster, caso quisesse ser exata, deveria ter publicado: "a vontade de potência como princípio seria pouco compreensível a ele (o Kaiser)!" (KSA 14, 743).

Esse documento, publicado por Mazzino Montinari em seu volume de comentário (KSA 14 ), indica que 1nesmo a referida carta de Nietzsche é "uma grande falsificação".

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Para o Ecce homo Nietzsche formulou a seguinte frase: "ao jovem imperador alemão eu não concederia a honra de ser meu cocheiro" (KSA 6, 268). No Ecce hon10 editado pelo Nietzsche-Archiv são supnm1das, de forma consequente, não apenas essa frase, como também todo o terceiro parágrafo do primeiro capítulo. A edição de Karl Schlechta (cf. próxima página) publica o Ecce homo adulterado. Nietzsche anuncia nesse parágrafo uma clara ruptura com a mãe e a irmã, ruptura contra a qual a futura editora "autorizada" dificilmente teria podido legitimar-se: O tratamento que até agora me dispensaram minha mãe e minha irmã inspira-me um horror indizível: aí trabalha uma máquina perfeitamente infernal, que conhece com infalível segurança o instante em que posso ser mais cruelmente ferido (KSA 6, 268).

O trabalho mais significativo realizado pelo Nietzsche-Archiv foi a edição de A vontade de potência. Do rico material póstumo e através da inconsequente utilização de uma das muitas divisões que Nietzsche deixou de lado - os editores Peter Gast, Ernst e August Horneffer compilaram 483 trechos numerados. Essa primeira "Vontade de potência" foi publicada em 1901 como o tomo 15 da Grossoktavausgabe (Leipzig 1894ss.). Em 1906 Elisabeth Forster-Nietzsche e Peter Gast editaram uma "Vontade de potência" (tomos 9 e 10 da Taschen Ausgabe), que subitamente continha mais do que o dobro de aforismos da anterior; alguns da primeira edição foram suprimidos, outros, por sua vez, foram modificados. Essa compilação tornou-se a base para uma terceira "Vontade de potência" , que realizava algumas "modificações e acréscimos acessórios". Em 1911 surgia - novamente com outro editor, Otto Weiss - a versão até hoje conhecida, agora com 1.067 aforis-

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mos (incluída, em lugar da primeira "Vontade de potência", na Grossoktavausgabe). Qual dessas versões deve ser tida pela "principal obra de prosa" de Nietzsche?

Nós lemos os textos de quem?



a primeira Historisch-l(ritisch-Gesamtausgabe, editada a partir de 1934 pelo Nietzsche-Archiv de Weimar, teve de indicar no prefácio que "Vontade de potência" não poderia ser incluída na edição, pois ela não existia como obra de Nietzsche. Nos anos de 1950, por ocasião da edição de Karl Schlechta4, instaurou-se um absurdo conflito de especialistas em torno da pretensa "Vontade de potência". Karl Schlechta havia editado o "texto" sob o correto título "Do legado manuscrito póstumo dos anos de 1880". Isso era difícil de entender para aqueles que não conseguiam imaginar um filósofo alemão sem uma obra sistemática principal. O editor italiano de Nietzsche, Mazzino Montinari, foi, porém, o primeiro a conseguir editar todo o material póstumo dos anos de 18 80 em ordem cronológica, livre de toda adulteração. No entanto, mesmo assim - e já desde a grande edição de Colli e Montinari -, não é fácil ler Nietzsche: os volumes de comentário decifram em primeiro lugar o texto e revelam que nós frequentemente lemos outros autores sob o nome de Nietzsche. Por exemplo, Nietzsche traduz para si, na biblioteca de Nizza, uma passagem da obra do fisiólogo Charles Féré. Nietzsche faz uma anotação para si: "Féré, p. 98" (KSA 13, 429). Antes de Colli

4. Karl Schlechta (ed.). Friedrich Nietzsche, Werke in drei Biinden. Munique/Oarmstadt o.J. [1954ss.].

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e Montinari, esse acréscimo foi deixado de lado pelos editores de Weimar - e um capítulo de sete páginas do livro Dégénérescence et cri1ninalité torna-se um texto de Nietzsche. Ou ainda nós lemos extratos de Tristam Shandy, de Lawrence Sterne, e nos admiramos com a intelectualidade do Nietzsche de 15 anos de idade: "Elisabeth Forster-Nietzsche (fez) dos extratos de Tristam Shandy autênticas reflexões filosóficas do joveni Nietzsche" 5 • "As obras reunidas de Nietzsche", escreve Mazzino Montinari, "de Humano, demasiado humano em diante, incluindo, portanto, Aurora, recusam-se a serem sistematizadas". Elas são abertas, elas buscam "a libertação do espírito" (M M, 80). A libertação da obra? E o Zaratustra? Depois da insurreição positiva contra as tendências estetizantes e decadentes de Bayreuth, Nietzsche busca uma afirmação. Ao final de seu período de espírito livre há a experiência da morte de Deus, o desespero do "homem louco" ou "insensato" a respeito da indiferença generalizada. O "insensato" aparece em uma versão inicial do Zaratustra. No último aforismo de A gaia ciência aparece o próprio Zaratustra. Para a forma do Zaratustra não há nenhum modelo, sequer a Bíblia. E seria inútil buscar algum. Zaratustra pode ser tido como a última tentativa de conjurar a crise da Modernidade por meio de uma obra fechada. Isso torna o Zaratustra ao mesmo tempo atraente e repulsivo, tão impressionante em sua força de insurreição, tão perigoso pela radicalidade de seus superlativos. Para Nietzsche trata-se, aqui, da possibilidade da vida após a morte de todas as certezas. O eterno retorno do mesmo sem

5. Mazzino Montinari. Friedric/1 Nietzsche - Eine Einführung. Berlim/ Nova York, 1991, p. 16 [Antes: Clze cosa ha "vernmente" detto Nietzsche. Roma, 1975]. Na sequência citado como M M.

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a possibilidade de ultrapassar os limites deste mundo - suportar esse pensan1ento como a exigência suprema é a resposta de Nietzsche. A quarta parte do Zaratustra permaneceu oculta e não foi inserida na edição em um só volume de 1887. Após o Zaratustra, ao qual Nietzsche se referiu como um "pórtico" para sua filosofia, há uma filosofia de Nietzsche? A "Vontade de potência"? Porém, já em 1932 afirma Tucholsky: "Nós não queremos ler as obras da Bete Forster, mas as obras de Friedrich Nietzsche". Não há, contudo, o texto. Camada por camada, nós encontramos um outro texto. Um laboratório de experimentos arriscados. Nietzsche é um leitor obcecado, ele toma toda frase do século XIX e reflete sobre ela até as últimas consequências. Dentre elas há também frases sobre o valor ou desvalor da vida que puderam ser utilizadas à exaustão pelos nazistas. Aqui é necessário adulterar ·algo, tudo foi recepção, um livro aberto de todas as tendências, uma colagem? Um caso para que filólogos e leitores críticos descubram quem é que lemos: Elisabeth em lugar de Friedrich, Féré em lugar de Nietzsche ou Baudelaire, Tolstoi, os Irmãos Goncourt, Renan, Africano Spir, Maximiliano Drossbach ...

A oficina de Nietzsche Nietzsche escreve sobre o surgimento de seu Zaratustra: "Dez dias bastaram; em nenhum caso, fosse no primeiro, no terceiro ou no último, precisei de mais" (KSA 6,341). Essa frase funda O mito do processo de criação do Zaratustra. E Nietzsche estava certo. A redação de cada parte não levaria, de fato, muito mais tempo. É certo que quando Nietzsche, em um determinado momento decid..ia escrev~r algo para publicação, atrás de si ficava um lon~o penodo de leitura, escrita, experimentos com O pensamento. Isso vale

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para todas as obras, também para o Zaratustra - mesmo quando este livro parece tanto destoar dos demais escritos de Nietzsche. A primeira menção ao nome de Zaratustra data de agosto de 18 81. Com o título "Meio-dia e eternidade. Indicações para uma nova vida" (KSA 9,519), trata-se já do Zaratustra de trinta anos e de seus dez anos de solidão. Nietzsche já tem aqui o plano de qua~ tro livros e fala....:. para o primeiro livro - do "silêncio da primeira frase da nona sinfonia" (KSA 9, 519). Para ele já estava elaborada a configuração musical do Zaratustra tardio - "Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música" (KSA 6, 335). O método de trabalho de Nietzsche na preparação do Zaratustra não se altera de forma essencial. Isso mostram os trabalhos preparatórios de muitas passagens do livro. Esses precursores são textos que ao longo do percurso se tornaram aforismos. Eles são etapas de um processo. Partindo da anotação de pensamentos que lhe ocorriam e da coleção de materiais, Nietzsche obtém um texto em estado bruto, chegando, após trabalhá-lo, torná-lo mais.denso e preciso, até uma forma de expressão comprimida, espirituosa e brilhante, que Nietzsche aprimorou desde Humano, demasiado humano. Ao repertório de formas dos livros do Zaratustra pertencem aqueles aforismos que compreendem alguns parágrafos de textos e que raramente são maiores do que uma página de livro, ao lado de algumas rimas e sentenças livres. Uma comparação de texto mostra, por exemplo, que Nietzsche inseriu no primeiro livro do Zaratustra um conjunto completamente formulado de sentenças que ele havia composto para Lou Andreas-Salomé. Em um olhar mais detido, o texto do Zaratustra se decompõe em uma coleção de sentenças tematicamente conexas. Um exemplo:

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Há também os que se fazem demasiado velhos para as suas verdades e as suas vitórias: uma boca desdentada não tem já direito a todas as verdades. E o que queira desfrutar de glória deve despedir-se a tempo dos homens, e exercer a difícil arte de retirar-se oportunamente. É preciso deixar-se comer no momento em que vos começam a tomar gosto. Bem o sabem os que querem ser amados muito tempo [... ] (Z, Da morte livre, 94 [104]).

Se o "e" da segunda oração é cortado, nada mais resta da coerência do texto senão um conjunto de frases pertencentes a um mesmo círculo temático. As três sentenças, tomadas independentemente umas das outras, poderiam pertencer, ao invés de ao Zaratustra, a Opiniões e sentenças diversas de Humano, demasiado humano. Mesmo em seus longos passeios Nietzsche registrava sempre seus pensamentos, transcrevia e modificava suas anotações, compilava conjunto de sentenças a partir de antigos cadernos de anotação, fazia com que Zaratustra se tornasse o porta-voz dessas sentenças, abortava essa ideia e, posteriormente, retomava mais uma vez partes de uma coleção de sentenças, levemente modificadas, para a versão definitiva do Zaratustra. As reflexões de Nietzsche são sempre ocasionadas por leituras. Ainda permanece pouco explorado o tema de Nietzsche como leitor, sua biblioteca em Weimar, exemplarmente constituída e tornada acessível (como parte da Herzogin-Anna-AmaliaBibliothek). A respeito da pergunta sobre se Nietzsche de fato lia livros, Mazzino Montinari afirma que "o que senão ler deve fazer alguém que é praticamente cego?" Nietzsche deve ter visto apenas as silhuetas das montanhas de Engadina e ele não frequen-

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tava museus. Mesmo o nome Zaratustra (costumeiramente era Zoroastro) surgiu de leituras. Quando são lidos conjuntamente com o Zaratustra, o comentário de Marie-Luise Haase6 e o de Mazzino Montinari (KSA, vol. 14 ), torna-se compreensível não apenas o método de trabalho de Nietzsche, mas também o seu próprio texto. Por meio do comentário e do acompanhamento de determinada reflexão podemos explorar camada por camada do texto; por vezes topamos com um outro autor, por vezes com uma variante decisiva, um esboço, um corte que se torna primeiramente claro na sentença impressa. Essa espiada em sua oficina e em seus livros desmistifica o poeta e nos torna parceiros de diálogo de um filósofo atual, cuja filosofia consiste em um diálogo com seu tempo, o qual é ainda o nosso.

Um novo peso decisivo "Eu não quero a vida novamente", escreve Nietzsche em uma anotação de 1882/1883. "Como eu a suportei? Criando. O que me faz suportar tal vista? A visão do além-do-homem, que afirma a vida. Eu mesmo procurei afirmá-la - Ah!" (KSA 10, 137). Para Zaratustra trata-se da afirmação da vida, este é o objetivo de sua peregrinação. O eterno retorno é o centro - viver de modo a que tudo possa retornar é a consequência ética. O penúltimo aforismo de A gaia ciência, o livro anterior ao Zaratustra, resume esse difícil pensamento. 6. Friedrich Nietzsche. Werke - Kritische Gesamtausgabe, fundado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, prosseguido por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi. Berlim/Nova York, 1991, Sexta seção, quarto volume: Marie-Luise Haase e Mazzino Montinari. Relatório de acompanhamento ao primeiro volume da sexta seção: Also

sprach Zaratlrnstra.

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O peso 1nais decisivo - E se, um dia ou uma noite, um demônio se viesse introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: "Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar; sen1 nada de novo; muito pelo contrário! A menor dor. o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro,' tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande e de indizivelmente pequeno, tudo voltará a acontecer e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão ... esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!..." Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demônio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: "Tu és um Deus; nunca ouvi palavras tão divinas!" Se este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e talvez te aniquilasse; havias de te perguntar a propósito de tudo: "Queres isto? E querê-lo outra vez? Uma vez? Sempre? Até ao infinito?" E esta questão pesaria sobre ti com um peso decisivo e terrível! Ou então, ah!, como será necessário que te ames a ti próprio e que ames a vida para nunca mais desejar outra coisa além dessa suprema confirmação! - (KSA 3, 570).

O último aforismo anuncia o Zaratustra, talvez como resposta à pergunta que Nietzsche coloca em 1881: Dirão as pessoas, algum dia, que também nós, rumando para o Ocidente, esperávamos alcançar as Índias - mas que nosso destino era naufragar no infinito? Ou então, meus irmãos? Ou? (KSA 3, 331 ).

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UM LIVRO PARA TODOS EPARA NINGUÉM? A publicação do Zaratustra No inverno seguinte, sob o alciônico céu de Nice, que então pela primeira vez brilhou em minha vida, encontrei o terceiro Zaratustra - e conclui (KSA 6, 341 ).

As três primeiras partes do Zaratustra foram publicadas separadamente entre 1883 e 1885. A publicação do primeiro livro não parecia sugerir que outras partes se lhe seguiriam. O próprio Nietzsche decidiu redigir outras partes apenas depois da publicação desse livro. Não foi encontrado nenhum editor para o quarto livro do Zaratustra. Nietzsche o publicou, ele mesmo, em quarenta exemplares. A folha de rosto contém a indicação: "Quarta e última parte". O plano completo do Zaratustra foi continuamente alterado. Nesse meio-tempo Nietzsche menciona, em anotações privadas, um quinto e um sexto livros. Mesmo depois da conclusão do quarto livro surge um plano para um livro adicional, que, no entanto, não foi realizado. Ainda no âmbito da concepção da quarta parte Nietzsche pensou em redigi-la como uma coleção de poesias. Ele posteriormente completou os cantos, dispostos da forma como lá aparecem, com alguns outros, e deixou de lado, após seu colapso em Turim em 1889, o manuscrito pronto para publicação de Ditirambos de Dionísio - apesar da decisão de Nietzsche, "eu quero falar, não mais 29

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Zaratustra" (KSA 11, 83 ), é patente a dificuldade de colocar ponto-final na obra.

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"Um livro para todos e para ninguém" - já a publicação da pritneira parte leva esse curioso subtítulo. Não apenas a forma da obra se furta a uma classificação, como também os leitores aos quais se dirige o Zaratustra não se deixam definir facilmente. A quem Nietzsche se dirige, com quem Zaratustra fala? Quando pela primeira vez estive com os homens, cometi a loucura do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública. E como falava a todos, não falava a ninguém: e de noite tinha por companheiros saltimbancos e cadáveres; eu próprio era quase um cadáver!" (Z, Do homem superior, 356 [358]).

A formulação alude ao subtítulo do livro, ao mesmo tempo em que se refere a uma citação do "Prólogo de Zaratustra", a primeira seção do livro. Aqui fracassa o discurso de Zaratustra dirigido, na praça pública, a um grande público. Conforme insinuado no subtítulo, a publicação do livro poderia parecer ao próprio Nietzsche como uma "tolice de eremita".



antes do trecho citado acima encontra-se uma alusão ao subtítulo: Tu deste a voz de alarme contra o seu erro; foste o primeiro a dar a voz de alarme contra a compaixão; não a todos, nem a nenhum, mas a ti e aos que são da tua raça _(Z, O homem mais horrível, 330 [333]).

O próprio Nietzsche, por sua vez, precisa dirigir-se "a todos e a ninguém". Zaratustra e seu modo não estão à disposição de Nietzsche como seu adereçado. No livro ganha expressão uma so30

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lidão que também era a de Nietzsche. Zaratustra retorna sempre à sua solidão, que ele sempre saúda de forma agradecida e da qual ele, contudo, deseja sempre sair para retornar às suas "crianças". O próprio Nietzsche designa a solidão que determina o "livro para todos e para ninguém" como uma solidão da distância: [T]udo isso é o mínimo, e não dá noção da distância, da solidão anil em que essa obra vive. Zaratustra tem eterno direito a dizer: "eu traço círculos e fronteiras sagradas em torno de mim; sempre mais raros são os que comigo sobem montanhas sempre mais altas - eu construo um maciço de montanhas sempre mais sagradas" (KSA 6, 343 ).

Uma nova bíblia? "Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe [... ], é também o mais profundo [... ]" (KSA 6, 259). Realizado pouco mais de quatro anos após a conclusão da quarta parte, esse comentário do próprio Nietzsche sobre o Zaratustra é também eufórico. Enquanto trabalhava no manuscrito de Ecce homo que iria para impressão, Nietzsche é ainda mais claro numa carta a Paul Deussen: Aqui [em Ecce homo] é pela primeira vez lançada luz sobre meu Zaratustra, o primeiro livro de todos os milênios, a bíblia do futuro, a suprema eclosão do gênio humano, no qual inclui-se o destino da humanidade (KSA 15, 188).

O Zaratustra como bíblia do futuro, como livro sagrado - parece inacreditável que Nietzsche tenha feito essa avaliação ou mesmo intentado escrever uma nova bíblia.

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Os três livros anteriores ao Zaratustra, a saber, Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, radicalizam o iluminismo europeu: Um erro após o outro é calmamente colocado no gelo, 0 ideal não é refutado - ele congela ... Aqui, por exemplo congela "o santo"; pouco adiante congela "o gênio< sob um espesso sincelo congela "o herói"; por fim con-' gela "a fé", a chamada "convicção", também a "compaixão" esfria consideravelmente[ ... ] (KSA 6,323).

Em um prefácio a Humano, demasiado humano (1886) redigido após o Zaratustra Nietzsche deseja a si apaixonadamente "espíritos livres". Zaratustra, entendido como um novo livro sagrado, funciona nesse ínterim como uma espécie de descarrilhar. Mazzino Montinari fala de uma má avaliação que o próprio Nietzsche fez sobre o livro: O erro de Nietzsche em relação a seu Zaratustra é ele acreditar ter dado à humanidade um novo livro sagrado. Esse erro foi facilitado pela cegueira de seu primeir~ "aluno", Peter Gast. O seu segundo erro foi o de acreditar na - e até mesmo alegrar-se pela - incompreensibilidade do Zaratustra. O Zaratustra não é um livro sagrado, o Zaratustra não é um livro incompreensível, não é um livro para iniciados, ao contrário do que rapidamente acreditaram aqueles que - como Gast - puderam se considerar acríticamente como "exceções", como iniciados7 •

Indo um pouco além dessa avaliação, pergunta-se se Nietzsche de fato cometeu seu primeiro erro. Muitos indícios apontam para 7, Mazzino Montinari. Notizen aus demJahre 1967 zu "Also sprach Zarathustra"; das Handwerk des Pilogen. ln: Nietzsche-Studien, vol. 18, 1989, LXIX. Na sequência citado como M M, Notizen. 32

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o fato de que com a expressão "nova bíblia" ele não desejava considerar seu livro algo sagrado, mas, antes, indicar a singularidade da obra, o efeito ansiosamente esperado que ela causaria e até mesmo sua postura antirreligiosa. Em Ecce homo Nietzsche desmente que o Zaratustra seja uma nova fundação da religião: Aqui não fala nenhum "profeta", nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de potência chamados fundadores de religiões (KSA 6, 259). Com tudo isso, não será Zaratustra um sedutor? ... Mas o que diz ele mesmo, ao retornar pela primeira vez à sua solidão? Precisamente o oposto do que diria em tal caso qualquer "sábio", "santo", "salvador do mundo" ou outro decadente (KSA 6, 260).

Ora, quando pela boca de Zaratustra não fala nenhum profeta, nenhum santo, sábio ou salvador do mundo, por que encontramos . no livro de Nietzsche tantos exemplos e aproximações estilísticas de livros sagrados, por que tantas - com frequência apenas levemente modificadas - citações da Bíblia? Ao lado da explicação - talvez apressada - de que Nietzsche poderia ter buscado assim um tom solene e de consagração para seu novo livro sagrado, citemos um comentário do próprio autor feito em Ecce homo: Um outro ideal corre à nossa frente [... ]: o ideal de um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o querer, e por transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chan1ou santo, bom, intocável, divino [... ]; o ideal de bem-estar e bem-querer humano-sobre-humano, que com frequência parecerá inumano, por exemplo, ao colocar-se ao lado de toda a serenidade terrena até então, ao lado de toda a anterior solenidade em

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gesto, palavra, tom, olhar, moral e dever, como sua Inais viva paródia involuntária (KSA 6, 338-339).

O que Nietzsche entende aqui por "ideal de um espírito" refere-se não apenas à figura do Zaratustra, mas também ao livro com esse nome. O próprio Nietzsche fornece uma referência repleta· de alusões: aquele primeiro aforismo de A gaia ciência, que aparece quase textualmente no início do Zaratustra e no qual Nietzsche apresenta a forma do Zaratustra, é intitulado: "Incipit tragoedia" (KSA 3, 571) - a tragédia começa, um título que encontra eco ao final da passagem: "Portanto começa a queda de Zaratustra". Em 1886, portanto após o término da redação do Zaratustra, Nietzsche escreve um prefácio para a segunda edição de A gaia ciência. Aqui ele alude a esse aforismo e, ao mesmo tempo, indireta1nente ao Zaratustra publicado após A gaia ciência. "Incipit tragoedia" - diz o final deste livro perigosamente inofensivo: tenham cautela! Alguma coisa sobremaneira ruim e maldosa se anuncia: incipit parodia, não há dúvida ... (FW 346).

"Incipit parodia" - a paródia começa; "sobremaneira" ruins e maldosos são o livro e a figura de Zaratustra, exatamente no sentido em que Nietzsche, em Ecce homo, fala a respeito da paródia sobre tudo aquilo que até então era sagrado. As muitas figuras bíblicas de linguagem no Zaratustra e o caráter pseudorreligioso de muitas passagens podem ser entendidos como se Nietzsche estivesse procurando, também estilisticamente, jogar com tudo aquilo que até então era sagrado.

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O estilo Vem bem a calhar uma observação sobre o motivo de o estilo do Zaratustra dar ensejo a reflexões. Uma linguagem particularmente rica em imagens ou "dramática" foi também utilizada por outros escritores filósofos anteriores. Ninguém hoje considera que isso cause incômodo. Caso Nietzsche tivesse escrito apenas este livro, os comentários sobre o estilo do Zaratustra seriam então . observações secundárias. Ora, tomemos, ao lado do Zaratustra, outras obras, como Humano, demasiado humano, Aurora ou A gaia ciência. Os textos dessas obras são peças incisivas e brilhantes de prosa. Só a comparação dá ensejo a espanto. Isso talvez não fosse uma razão suficiente para, no estudo do pensamento de Nietzsche, levar em consideração o estilo no qual ele o expressa. Contudo, é crucial que o próprio Nietzsche tenha feito do estilo um importante objeto de suas reflexões filosóficas, é crucial que, para ele, as questões de estilo tenham se tornado, de certa forma, objeto da filosofia. A elaboração de Humano, de111asiado humano foi também uma intensa reflexão em torno de sua própria forma linguística de expressão. Essa reflexão se manifesta em muitos aforismos sobre estilo. A elaboração do estilo se apresenta como elaboração do pensamento: Melhora r o pensamento. - Melhorar o estilo - significa melhorar o pensamento, e nada senão isso! - Quem não o admite imediatamente, também jamais se convencerá disso (KSA 2, 61 O).

Em uma curiosa reviravolta dessa reflexão, a melhora do pensamento surge ao mesmo tempo como uma melhora de sua comunicabilidade, e aquela tem um peso como precondição de um entendimento - europeu - entre espíritos livres. 35

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Mas escrever melhor significa também pensar melhor, encontrar sempre coisas mais dignas de serem transmiti: das e realmente poder transmiti-las; tornar-se traduzível para os idiomas dos vizinhos [... ]. Quem prega o con, trário, não se interessar por escrever bem e ler bem _ as duas virtudes crescem juntas e decrescem juntas-, esse realmente indica aos povos o caminho de tornar-se cada vez mais nacionais: agrava a doença deste século e é inimigo dos bons europeus~ inimigo dos espíritos livres (KSA 2, 592-593). .

Humano, demasiado humano, o "livro para espíritos livres", solapa todo dogmatismo, dá prosseguimento ao iluminismo como dúvida radical. O estilo simples e claro faz parte do plano: ele indica a recusa a um certo efeito que acrescentaria algo ao poder de persuasão do p~nsamento. Contra imagens e símiles. - Com imagens e símiles convencemos, mas não provamos. Por isso há tal aversão a imagens e símiles na ciência; nela não se quer justamente o que convence, o que torna crente, provoca-se, isto sim, a mais fria desconfiança, já com o modo de expressão e as paredes nuas: pois a desconfiança é a pedra de toque do ouro da certeza (KSA 2, 614 ).

No limite, aqui se coloca de forma urgente e algo incômoda a pergunta pelo estilo do Zaratustra: Zaratustra fala quase que exclusivamente por meio de imagens e símiles. O escândalo é que Nietzsche claramente sabia o que estava fazendo: seria então o Zaratustra um livro conscientemente "convicto" estilísticamente, um livro que deveria temer a "pedra de toque do ouro da certeza"?

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(Stifting Weimarer Klassik)

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Em uma posterior passagem de Ecce homo o próprio Nietzsche . recorre a uma outra interpretação de seu estilo. O mais importante é que tal interpretação já é preparada em Humano, demasiado

hu1nano. Aqui encontramos um pequeno parágrafo que pode ser intitulado uma utopia do estilo:

O ensino do melhor estilo. - O ensinamento do estilo pode ser, por um lado, como achar a expressão mediante a qual se comunique todo estado de espírito ao leitor e ouvinte; depois, como achar a expressão para o mais desejável estado de espírito de alguém, cuja comunicabilidade e transmissão também seja, portanto, maximamente desejável: para o estado de espírito do ser profundamente comovido, de alma alegre, claro e reto, que superou as paixões. Esse será o ensinamento do melhor estilo: corresponde ao ser humano bom (KSA 2,593). O critério da comunicabilidade ainda permanece, chegando mesmo a ser desenvolvido até uma "transmissão" dos "estados mais desejáveis de espírito". Contra a objeção acerca de um suposto estilo propagandístico, Nietzsche reivindica que o Zaratustra apresenta a busca por comunicar um "estado de espírito" e, com efeito, um estado de espírito de tal modo incomum que exige essa busca por um estilo específico. Nietzsche escreve em Ecce homo: Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses signos - eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de_estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo [...]. Bom é todo estilo que realmente comunica mn estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos [... ] - sem errar. [... ]. Sempre pressupondo que haja ouvidos - que haja aqueles capazes e dignos de um tal pathos, que não faltem aqueles com os quais

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é possível comunicar-se - meu Zaratustra, por exemplo, procura ainda agora por eles - ah, ele ainda terá muito a procurar! (KSA 6,304).

O tom alciônico Segundo o comentário posterior de Nietzsche, o estilo do Zaratustra seria, pois, a busca por _comunicar um estado interno específico. Estão excluídos aqueles estados que não são "capazes e dignos de um tal pathos". Aqui se manifesta novamente o motivo do livro, ainda que não sagrado, pelo menos esotérico, dirigido "a todos e a ninguém". O acesso permanece negado aos não iniciados. Nesse contexto, o estilo contém uma nova função de seleção. Tais reflexões são irritantes. Uma postura seria a de fiar-se nas declarações de Nietzsche sobre o caráter esotérico do livro. Contudo, é mais interessante não segui-lo aqui e simplesmente negar a incompreensibilidade do Zaratustra para os não iniciados. Nietzsche não deseja de maneira alguma leitores obedientes e dóceis: Quando busco formar a imagem de um leitor perfeito, resulta sempre em um monstro de coração e curiosidade, e também em algo dúctil, astuto, cauteloso [... ] (KSA 6, 303 ).

A passagem pode ser lida como um incentivo para que curiosos não se deixem assustar, mas também pode ser lida como um convite para descobrir o que Nietzsche quer_dizer quando fala sobre estados de espíritos que são "capazes e dignos de um tal pathos". A formulação sugere, em todo caso, que seria muito limitada uma redução do Zaratustra às 1neras coleções de sentenças, aos esboços prévios, às reflexões centrais, embora todos esses elementos apresentem aspectos importantes para uma interpretação mais

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ampla. Partindo-se das reflexões sobre o estilo, é possível acresceu.. tar um aspecto adicional: o estilo incômodo deve - de acordo com 0 con1entário de Nietzsche - comunicar algo que não se esgota nos pensamentos expressos: um "estado interno", um "estado de es.. pírito", "pathos". No limite, seria até possível "achar a expressão para o mais desejável estado de espírito", até mesmo transmiti-lo. Uma forma de abordagem mais curiosa não se daria por satisfeita com essa ainda difusa declaração; perguntar-se-ia se ao menos uma menção explícita e compreensível a tal "estado de espírito" seria encontrável. De fato, Nietzsche dá uma referência mais exata: É preciso antes de tudo ouvir corretamente o tom que sai desta boca [do Zaratustra ], este tom alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria (KSA 6, 259).

A expressão alciônico provém da mitologia grega: o deus dos ventos envia um tempo calmo aos amantes Ceix e Alcíone, transformados em alcedos, para que eles pudessem construir um ninho no inverno. Esses dias sem vento no inverno eram nomeados alciônicos pelos marinheiros, de acordo com o mito. A imagem de dias de inverno sem vento representa a calma e uma certa serenidade, assim a pausa temporária depois de conflitos superados e outros ainda por vir, tempestades. Ainda permanece, decerto, a hostilidade e frieza do inverno. Analogamente, no Zaratustra falta, por exemplo, a polêmica com a qual Nietzsche ataca posições filosóficas ou religiosas nas obras anteriores ou posteriores: Ai não fala um fanático, aí não se "prega", aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra - uma delicada lentidão é a cadência dessas falas (KSA 6, 260).

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O estado alciônico de espírito é - caso ele de fato exista um estado de espírito filosófico. A metáfora do inverno surge já na passagem de Humano, demasiado humano citada mais acima: "Um erro após o outro é calmamente colocado no gelo, o ideal não é refutado - ele congela". Nietzsche concebe aqui a radicalidade de seu iluminismo com o frio. O conhecimento radicalmente esclarecido é frio - sem ideal, sem-Deus e sem que um pensamento "autêntico" possa encontrar alguma alternativa. Aqui, após tempos tempestuosos, ter encontrado um ponto de serenidade, até mesmo de felicidade, é algo que pertence ao estado de espírito filosófico - que o Zaratustra transporta. Há um conceito paralelo ao do "tom alciônico" atribuído a esse mesmo estado de espírito filosófico: trata-se da "linguagem do ditirambo": O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste no seguinte [... ]: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o "mais abismal pensamento" , não encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno - antes uma razão a mais para ser ele mesmo o · eterno sim a todas as coisas [... ]. Que linguagem falará um tal espírito, ao falar só consigo mesmo? A linguagem do ditirambo. Eu sou o inventor do ditirambo. Ouça-se como Zaratustra fala consigo mesmo antes do nascer do sol (Ili 18) [... ] (KSA 6, 344-345).

Com a frase "eu sou o inventor do ditirambo" Nietzsche indica que aqui ele dá um novo significado ao conceito de "ditirambo" na Antiguidade designando uma canção de culto a Dionísio. Esse conceito se refere à forma linguística que deve transmitir o estado de espírito - filosófico - do Zaratustra. O que evoca esse estado de espírito não são vivências no sentido comum do ter-

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l_ mo, mas antes vivências de pensamentos. Com menções ao "mais abismal pensamento", ao "eterno retorno", a passagem alude a núcleos conceituais do Zaratustra. A confluência de estado de espírito e teor filosófico é assim fortalecida uma vez mais: trata-se aqui da vivência que o próprio Nietzsche teve desse pensamento. Aqui se incluem a solidão que surge em tais pensamentos, além do período de questionamentos radicais que os precede, a espera. Sils Maria Era aqui que eu esperava, que eu esperava, não esperando nada Para além do bem e do mal, gozando ora com a luz, Ora c?m a sombra, abstraindo de mim, todo o jogo, puro Jogo, Todo lago, todo meio-dia, tempo sem fim. Quando, de repente, amiga, um foi dois ... E Zaratustra passou perto de mim ... (KSA 3, 649).

Refutada a suposição de que o Zaratustra é um livro esotérico - portanto, acessível apenas a iniciados-, então os comentários do próprio Nietzsche ·colocam o leitor curioso diante da tarefa de, com auxílio de tais indicações, reconstruir, até a medida do possível, o acontecimento apresentado a Nietzsche pelos pensamentos que ganham expressão - e se torna.m compreensíveis - no Zaratustra. Contudo, para ele [Nietzsche] os pensamentos eram acontecimentos; como nós dissemos anteriormente, eles eram toda a sua vida (MM, Notizen, LXXIV).

O tipo No escrito tardio Ecce homo, com o qual se apresenta à posteridade, Nietzsche descreve o surgimento do primeiro livro do Zaratustra: 42 Digitalizado com CamScanner

Nesses dois caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio Zaratustra como tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim ... Para compreender esse tipo, é preciso primeiramente ganhar clareza sobre o seu pressuposto fisiológico, que eu denomino a grande saúde (KSA 6, 337).

Esse relato apresenta uma chave para a compreensão da figura de Zaratustra e seu papel no projeto de livro de Nietzsche: Zaratustra representa um tipo. O conceito de tipo surge em várias oportunidades nas reflexões filosóficas de Nietzsche: ele fala sobre o tipo do além-do-homem (cf. KSA 6,300), do "tipo de um salvador" (KSA 6, 191), mas também, de forma mais geral, do "tipo 'homem"' (KSA 3, 629) apenas para mencionar alguns exemplos. A expressão "tipo" faz com que Nietzsche não precise responder com uma definição geral a pergunta filosófica "o que é o homem?" Nietzsche se defende contra tentativas de se perguntar sobre o homem em geral: [... ] todos esses homens desconhecidos de si próprios acreditam na exangue abstração "homem", ou seja, numa ficção (KSA 3, 93).

Em lugar disso, Nietzsche descreve "tipos". Dessa forma, ele evita também falar apenas sobre indivíduos particulares. Ao falar de homens como "tipos", Nietzsche se furta à convenção - também de teor histórico-filosófico - que considera o homem como indivíduo e ser da espécie. Em um sentido mais amplo, um determinado "tipo 'homem"' apresenta a síntese de uma possibilidade concreta de ser homem. A formulação nietzscheana sobre a "pressuposição fisiológica" de 43

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um tal "tipo" indica que tal possibilidade se realize por meio da concorrência de diversas precondições, dentre elas precondições materiais; em lugar disso, hoje em dia nós falaríamos, talvez, de pressupostos biológicos e sociais. O conceito de "tipo" é apresentado já em um aforismo de Aurora como particularmente adequado: Um n1odelo - O que amo eu em Tucídides, o que faz que o tenha em mais elevado apreço do que Platão? Ele tem o mais amplo e despreconcebido deleite em tudo o que é típico do ser humano e dos eventos, e acha que a cada tipo corresponde um quantum de bom-senso: é este que ele procura descobrir [... ]. Ele entrevê ou acrescenta algo de grande em todas as coisas e pessoas, ao enxergar apenas tipos [... ]. De modo que nele, o pensador dos homens, atingiu a última, magnífica florescência aquela cultura do mais desassombrado conhecimento do mundo [dos sofistas] [... ] (KSA 3, 150-151).

Quando Nietzsche fala de Zaratustra como tipo, o que está em jogo é uma possível variação do ser-humano que "se deixa entrever" na humanidade. A figura individual do Zaratustra o demonstra. O específico em Zaratustra é que aqui, através do tipo, não é de forma alguma apresentada uma possibilidade humana já realizada, mas, antes, uma que ainda não foi. Nietzsche afirma ter "caído", da inspiração, sobre um novo "tipo 'homem"'.

O nome É curioso que Nietzsche dê a esse novo "tipo 'homem"' o nome de uma figura histórica. Nietzsche coloca esse Zaratustra histórico, fundador de uma religião na Pérsia antiga, em uma

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interessante série que ele reivindica para si como uma forma de linhagem ancestral: Pelo contrário, meu orgulho é que "eu tenho uma procedência" - por isso não preciso de fama. Naquilo que move Zaratustra, Moisés, Maomé, Jesus, Platão, Marco Bruto, Espinosa, Mirabeau, eu vivo muito bem e em algumas coisas me surge com muita clareza aquilo para o que, de forma embrionária, seriam necessários alguns milênios (KSA 9, 642).

Curiosamente, antes que ele fosse indecifrável, apenas o nome de Zaratustra surge em um primeiro fragmento que formula o mesmo pensamento (KSA 9, 590). Temporalmente situadas entre esses dois esboços estão glosas _e observações que Nietzsche fez para si num exemplar do livro Ensaios, do filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Aqui se encontra - como mencionado no comentário da edição de Montinari - uma passagem, inúmeras vezes sublinhada por Nietzsche, na qual Zaratustra é mencionado e em cuja margem Nietzsche escreve: "É isto!" A passagem sublinhada por Nietzsche diz o seguinte: Exigimos que um homem deva ser tão grande e colunar no panorama geral, para que mereça ser talhado, que ele reuniu todas as suas forças e partiu para tal lugar. As cenas mais fidedignas são as de homens nobres, que venceram ao entrar e convenceram os sentidos, como aconteceu ao mágico oriental, que foi mandado experimentar os méritos de Zaratustra ou Zoroastro. Quando o sábio Yunani chegou aos Bálcãs, contam-nos os Persas, Gushtasp designou um dia para a realização de uma grande assembleia do povo de todo o país e mandou colocar uma cadeira de ouro para o sábio Yunani. Então o idolatrado de Yezdam, o Profeta Zaratustra, apresentou-se no meio da assembleia. O sábio Yunani, '

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ao ver aquele chefe, exclamou: "Esta figura e este porte não mentem em nada, nada senão a verdade pode deles emanar" (KSA 14,279).

O que chama a atenção no conteúdo dessa passagem é que os ensinamentos de Zaratustra não são descritos e tampouco são aquilo que impressionou a assembleia, mas sim sua aparição, a primeira vez que ele "apareceu". Com esse relato persa Emerson dá um exemplo para um "tipo 'homem"' - por ele "exigido". As pistas das leituras de Nietzsche não permitem provar conclusivamente ter sido a passagem citada aquilo que o levou a utilizar o nome de Zaratustra para seu projeto. O próprio Nietzsche fornece, em retrospecto, explicações que - pouco modestamente - indicam de forma bem direta um âmbito da história da humanidade no qual ele coloca a si e a seu pensamento. Segundo um fragmento de 1884, Nietzsche dedica sua obra, pela utilização do nome de Zaratustra, àqueles que iniciam uma concepção da história que, de forma consequen_te, é grandiosa. Eu precisava glorificar Zaratustra, um persa: os persas foram os primeiros a pensar a história em toda sua grandeza. Uma sequência de desenvolvimentos, cada um deles presidido por um profeta. Todo profeta tem seu hazar, sua riqueza de milênios (KSA 11, 53).

A manifestação mais longa que Nietzsche faz sobre a pergunta a respeito da atribuição do nome Zaratustra se encontra, por sua vez, na sua curiosa apresentação de si, em Ecce homo. Aqui se nota uma mudança de tom em relação às passagens anteriores. Para Nietzsche trata-se, decerto, novamente de uma perspectiva história mais ampla, mas aqui - de forma condizente com um dos centros de suas reflexões filosóficas dos anos de 18 80 - da história

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da posição de valores e transvalorações. O Zaratustra é por ele interpretado como un1a "autossuperação da moral", e o Zaratustra histórico como aquele que institui valores na moral e·que, em razão disso, se põe, como um pioneiro, um pouco acima dela: Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntado, o que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas - a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em consequência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo [...]. A autossuperação da moral pela veracidade, a autossuperação do moralista em seu contrário - em mim -, isto significa em minha boca o nome Zaratustra (KSA 6, 367). Essa declaração tardia de Nietzsche sobre a problemática aqui discutida levanta a pergunta pelas interpretações filosóficas de tal nomenclatura. O conhecimento do método de trabalho de Nietzsche faz com que a busca por fontes literárias adicionais continue sendo interessante. Cada descoberta fornece também uma elucidação adicional sobre os impulsos de conteúdo que precederam a redação do Zaratustra.

Facetas E vós também vos interrogastes muitas vezes: "Para nós, quem é Zaratustra? Como o poderemos chamar?" E à minha semelhança, destes as vossas perguntas como respostas.

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É o que promete ou o que cumpre? Um conquistador ou um herdeiro? O outono ou a orelha do arado? Urn médico ou um convalescente? É poeta ou diz a verdade? É libertador ou dominador? Bom ou mau? (Z, Da redenção, 179 [190-191]).

"Perguntas como respostas" - Nietzsche faz Zaratustra referir-se à sua própria complexidade. Zaratustra é uma figura que pode levantar todas essas perguntas e que tem muitas faces, dependendo de quem e a partir de onde é considerado. Isso corresponde ao objetivo de Nietzsche. Contudo, em toda inspiração que Nietzsche reivindica a si com formulações como a já citada: "ele [o tipo Zaratustra] caiu sobre mim", essa complexidade não se coloca por si mesma. Nietzsche planeja sua figura, ele presta contas sobre seus componentes. Por exemplo, encontramos em uma anotação de 1883 a seguinte lista: Profeta Aniquilador Criador Conjurador Descobridor (mar) O que dança - o que ri O que voa - o que vence (KSA 1 O, 596).

Um ano mais tarde, durante a preparação da quarta parte do Zaratustra, Nietzsche escreve: Em Zaratustra 6 a grande síntese do criador, amante, aniquilador (KSA 11, 360).

Uma tal composição contraditória ou pelo menos incomum é não raro refletida na sequência e na contraposição de enunciados contraditórios: 48

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Tu contradizes hoje aquilo que ensinastes ontem. - Mas para isso ontem não é hoje, dizia Zaratustra (KSA 9,598).

A fusão, a integração de tensões é a pessoa de Zaratustra. Zaratustra vive - segundo Nietzsche, de forma despreocupada - as contradições. Algumas das questões, por exemplo, "ele é um poeta ou diz a verdade" permanecem assim não decididas. Mais à frente volta' ' ' remos a esse ponto. No entanto, Nietzsche coloca na boca de Zaratustra a advertência de não compreender equivocadamente essa figura como completamente arbitrária e sujeita a qualquer usurpação: Meus amigos, não quero ser misturado nem confundido com outros. Há os que pregam a minha doutrina da vida, e que são ao mesmo tempo pregadores da igualdade, e tarântulas. Aranhas venenosas que dizem louvores da vida, embora permaneçam ocultas nos esconderijos, afastadas da vida; é a sua maneira de fazer o mal (Z, Das tarântulas, 129-130 [139]).

As facetas de Zaratustra não são sempre produzidas por meio de uma mera justaposição superficial. Já no prólogo encontra-se um exemplo de como Nietzsche dá à figura de Zaratustra complexidade e riqueza de facetas por meio da sobreposição e reutilização de imagens pré-formadas. Primeiro um acontecimento é descrito: Quando [o saltimbanco] estava justamente à metade do caminho, a portinhola abriu-se novamente, e um acrobata, todo colorido, com ar de palhaço, saltou de um pulo, e dirigiu-se a grandes passos em direção ao primeiro. Anda, coxo - gritava ele com sua voz horrível; anda, molenga, manhoso, cara deslavada! [... ]. E a cada palavra

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ele mais se aproximava. Mas como não estivesse m • . . ais que a um passo do pnme1ro, sucedeu essa coisa tremen. da que fez calar todas as bocas e mudos e fixos todos os olhares. O que se aproximava soltou um grito diabólico e saltou por cima do que lhe barrava o caminho. E este' ao ver a vitória do rival, perdeu a cabeça, e soltou a cor~ da; [... ] (Z, Prólogo de Zaratustra, 21 [29-30]).

Um pouco mais tarde tal acontecimento se torna metáfora: o "acrobata colorido" exorta Zaratustra a deixar a cidade: "- mas amanhã sai desta cidade, senão amanhã poderei saltar por cima de ti, um vivo por cima de um morto" (Z, Prólogo de Zaratustra, 23 [32]). Finalmente, ao final do prólogo, essa metáfora torna-se uma imagem por meio de uma frase que Zaratustra diz a si mesmo: Sigo para o meu fim, sigo o meu caminho; saltarei por cima dos hesitantes e dos retardatários. Assim será a minha marcha o seu declínio! (Z, Prólogo de Zaratustra, 27 [35]).

No momento em que Zaratustra aplica a si a imagem do "acrobata colorido" a sua figura adquire complexidade e se torna contraditória: Zaratustra, que era antes o único a dar conforto ao saltimbanco derrocado, enterrando-o "com suas próprias mãos", torna-se agora, ademais, aquele que com seus saltos levará outros à queda. Na terceira parte do livro surge uma outra alusão - novamente a partir de uma perspectiva modificada: O homem é algo que deve ser superado. Há múltiplos caminhos e rneios para a superação: isto compete a ti! Mas só um jogral pensa: "Também se pode saltar por cima do homem" (Z, Das antigas e novas tábuas,

249 [263]).

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Un1a leitura atenta aponta a completa transparência dos meios que Nietzsche utilizou para produzir tal complexidade. Trata-se de insinuações: repetições de formulações, nomes, imagens. O livro de Nietzsche é uma rede de referências interdependentes entre si e em relação a outras obras. O liv~o e o tipo Zaratustra impõem a tarefa de perseguir tais referências.

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0 OUTRO SÁBIO O sem-Deus "Deus está morto!" - Essa exclamação é uma das mais conhecidas frases de Nietzsche. O embate com a religião, em especial com o cristianismo, torna-se repetidas vezes um motivo determinante para o pensamento de Nietzsche. Um ano antes de seu colapso em Turim ele redige um escrito intitulado O Anticristo Maldição ao cristianisnzo. Também o Zaratustra retorna inúmeras vezes a esse tema. Zaratustra deseja ser chamado de "o sem-Deus" ou "ímpio": E quando exclamo: "Maldizei todos os demônios covardes que há em vós, esses demônios sempre predispostos a gemer, a cruzar as mãos e a adorar", então eles gritam: "Zaratustra é o sem-Deus!" São sempre os pregadores da resignação que vociferam tais coisas, e justamente é com esses que me agrada mais gritar-lhes ao ouvido: "Sim! Eu sou Zaratustra, o semDeus" [... ] Pois bem! Eis o sermão que lhes dedico às suas orelhas: eu, Zaratustra, o sem-Deus, digo: "Quem é mais sem-Deus do que eu, para me regozijar com o seu ensinamento?" (Z, Da virtude amesquinhadora, 215 [227]).

O "sermão" tem endereçados específicos: ela é dirigida particularmente para os ouvidos dos "pregadores da resignação", para pregadores religiosos, fundadores de religiões, profetas, eclesiás-

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ticos. Zaratustra os confronta com a confissão de sua impiedade. Ele lhes retorque com sua autenticidade, por aqueles odiada: [... ] os poetas e burladores de Deus [o]deiam furiosamente o que busca o conhecimento e a esta mais jovem das virtudes, que se chama autenticidade (Z, Dos crentes em Além-mundos, 37 [49]).

A impiedade ou falta de Deus de Zaratustra é, no entanto, bem mais do que uma mera crítica à religião. A citação "Deus está morto!" provém de um parágrafo de A gaia ciência intitulado "O homem louco" ou "o insensato". Conta-se que o antigo provocador Diógenes, em plena luz do dia e munido de uma lanterna, teria saído ao mercado de Atenas lotado de pessoas à procura de seres humanos. Seguindo seu exemplo, "o insensato" procura Deus. Há um inequívoco esboço prévio dessa passagem. Aqui Nietzsche dá um nome a tal homem insensato: Zaratustra (cf. KSA 14, 256). Dessa forma, o aforismo de A gaia ciência pode ajudar a reunir alguns aspectos da "impiedade" específica de Zaratustra. O insensato - Nunca ouviram falar do louco que acendia em pleno dia e desatava a correr pela praça pública, gritando sem cessar: " Procuro Deus! Procuro Deus!" Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, o seu grito provocou grande riso. "Ter-se-á perdido, como uma criança?", dizia um. "Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?" Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou nó meio deles e trespassou-os com o olhar. "Para onde foi Deus?", exclamou, "é o que lhes vou dizer. Matamo-lo ... você e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos

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quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sois? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada vez mais noites? Não será preciso acender os candeeiros logo de manhã? Não ouviremos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da decomposição divina? ... Os deuses também se decompõem! Deus está morto! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar nós assassinos entre os assassinos! O ' 'de mais sagrado e de mais poderoque o mundo possui so até hoje sangrou sob o nosso punhal; quem nos há de limpar deste sangue? Que água nos poderá lavar? Que expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela? Nunca houve ação mais grandiosa e quaisquer que sejam aqueles que poderão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história!" O insensato calou-se depois de pronunciadas estas palavras e voltou a olhar para os seus auditores: também eles se calavam, como ele, e o fitavam com espanto. Finalmente atirou a lanterna ao chão, de tal modo que se partiu e se apagou. "Chego cedo demais", disse ele então, "o meu tempo ainda não chegou. Esse acontecimento gigantesco está ainda a caminho, caminha e ainda não chegou ao ouvido dos homens. O relâmpago e o raio precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam de tempo, mesmo quando foram efetuadas, para ser vistas e entendidas. Esta ação ainda lhes está mais dis-

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tante do que as mais distantes constelações; e foram eles contudo que a fizeram!" Conta-se ainda que este louco entrou nesse mesmo dia em diversas igrejas e entoou o seu Requiem aeternam Deo. Expulso e interrogado teria respondido inalteravelmente a mesma coisa: "O que são estas igrejas mais do que túmulos e monumentos fúnebres de Deus?" (KSA 3, 480-482).

A provocação do "homem louco" não se dirige prioritariamente a abalar a fé em Deus, não se trata de uma crítica à religião. A "busca por Deus" se depara com espectadores que se divertem, que já há muito tempo não creem mais em Deus. "Deus está morto!" não é, ela mesma, uma afirmação provocativa, trata-se, antes, de um fato já há muito tempo aceito. O que é provocante é o "insensato" levantar acusações de assassinato contra si e contra os demais homens. O silencioso perecimento de uma convicção senil se torna um caso de homicídio. O acusador - e igualmente coautor - pergunta: "Mas como fizemos isso? [O] que fizemos? [...]". A pergunta é, por um lado, sobre como foi feita a ação, e, por outro, sobre a sua gravidade. "Nunca houve ação n1ais grandiosa" - torna-se claro pelo contexto que essa avaliação é dúbia: o assassinato de Deus foi o cdme mais grave, mas esse crime teve uma grandeza, exige autores que sejam "dignos" dele. As consequências da ação recaem sobre os autores dela: com o homicídio de Deus todas as produções de sentido e todos os padrões valorativos até então existentes perdem seu fundamento. Essa provocação do "insensato" busca tornar visível a amplitude - completamente ignorada - desse "acontecimento gigantesco". Contudo, o "insensato" pergunta também como foi possível assassinar Deus, recusar ou descreditar convicções religiosas.

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"[O]s deuses també1n se decompõem!" - Pelo menos desde Hun1ano, de1nasiado hiunano Nietzsche se esforçou em compreend~r deuses e religiões como eventos históricos e humanos, e em descrever seu funcionamento e seu significado.

Já se mostra aqui um aspecto duplo de seu modo de proceder: no sentido da "grandeza desse ato [do assassinato de Deus]", Nietzsche busca fazer justiça ao significado do poder das religiões, sem, contudo, deixar dúvidas de que nenhuma religião contém a verdade: A verdade na religião - Durante o Iluminismo não se fez justiça à importância da religião, não há como duvidar disso: mas igualmente é certo que, na reação subsequente ao Iluminismo, se foi além da justiça ao tratar as religiões com amor e até com paixão, e ao lhes atribuir uma profunda, mesmo a mais profunda, compreensão do mundo; compreensão que a ciência teria apenas que despir do hábito dogmático, para de forma mística possuir a "verdade" [... ]. Ele [Schopenhauer] prestaria antes homenagens à verdade, como costumava fazer, com estas palavras: até hoje nenhuma religião, seja direta ou

indiretamente, como dogma ou conto alegoria, conteve uma só verdade (KSA 2, 109-110).

O mencionado duplo aspecto se exprime, com um peso distinto, em um fragmento que pertence à época do surgimento do

Zaratustra: Vocês tornaram-no fácil para vocês mesmo, seus ímpios! Bom, pode ser como vocês dizem: os homens criaram Deus - seria essa uma razão para não mais cuidar dele? [... ] (KSA 9, 611).

A mortalidade de Deus é o primeiro aspecto abordado pela pergunta, "mas como fizemos isso?" O segundo diz respeito aos autores da ação. No aforismo de A gaia ciência nada é dito sobre o motivo

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que os motivou; antes, menciona-se que eles não sabiam o que fazian1. "Esta ação ainda lhes está mais distante do que as mais distantes constelações; e foran1 eles contudo que a fizeram". No final das contas, eles menosprezam a amplitude do acontecimento também para si n1es1nos. Se tivesse sido possível aos homens eliminar, junto corn Deus, o ponto universal de referência até então, o fundamento de todo padrão valorativo, isso então afetaria a compreensão de si mesn1os: "Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela? Nunca houve ação mais grandiosa e, quaisquer que sejam aqueles que poderão nascer depois de nós, pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história!" Os aspectos esboçados do texto de A gaia ciência são reencontrados no Zaratustra. Mas talvez sejam as nuanças, o que foi dito além ou acessoriamente, que fazem valer a pena a leitura das passagens correspondentes do Zaratustra. Entre as nuanças mais sutis do Zaratustra está a conversa que Zaratustra, pouco após sua partida, trava com um eremita. O aspecto já mencionado de uma morte ainda não completamente notada de Deus se faz também aqui presente. O eremita esclarece ter amado "demasiadamente" os homens e, decepcionado com seu Deus, afirma ter se refugiado na floresta: "Agora, amo a Deus; não amo os homens. O homem é para mim uma coisa excessivamente incompleta. O amor ao homem matar-me-ia" (Z, Prólogo de Zaratustra, 13 [17]). Ele tenta impedir a "queda" de Zaratustra, seu contato com os homens: N ão vai para junto dos homens! Fica na floresta! Prefere então os animais! Por que não queres ser como eu - urso entre os ursos, ave entre as aves?

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- E que faz o santo na floresta? - perguntou Zaratustra. O santo respondeu: - Componho cânticos e os canto, e quando os faço, rio, choro e murmuro. Assim louvo a Deus. Cantando, chorando, rindo e murmurando, louvo a Deus, que é o meu Deus. Mas, vamos, qual é o presente que nos trazes? Ao ouvir Zaratustra estas palavras, saudou o santo e lhe disse: - Que teria para vos dar? Deixai-me ir embora bem depressa, para que não vos tire nada! E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem duas crianças. Mas Zaratustra, quando só, falou assim ao seu coração: - Será possível? Esse santo ancião não ouviu em sua floresta que Deus morreu! (Z, O Prólogo de Zaratustra 13-14 [17-18]).

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O espanto de Zaratustra enfatiza mais uma vez a constatação "Deus está morto! Deus continua morto!", proclamada pelo homem louco. Por esta passagem se situar compreensivelmente logo no começo do livro, indica-se com isso um ponto de partida essencial do Zaratustra: o livro se põe na sequência da "morte de Deus". A provocação da acusação feita pelo "insensato" é, no entanto, afastada. Zaratustra surge sereno logo no início, ele não é um missionário ateísta. Ele mesmo se põe na sequência da perda e tenta encontrar algum apoio possível após a ruína dos fundamentos religiosos e metafísicos. Zaratustra deixa o eremita "cantando, chorando, rindo e murmurando", ambos se separam serenamente, sem que Zaratustra queira "retirar" do santo o seu Deus. Apesar de não ser feita menção à acusação, a morte de Deus continua sendo no Zaratustra um assassinato. No entanto, uma diferença importante deve ser notada: o "nós" que indica os autores abarca 58

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os acusadores e, co~tudo, tende curiosamente já no texto de A gaia ciência para a terceira pessoa - e foram eles contudo que fizeram [a ação] - torna-se, no Zaratustra, a figura do assassino de Deus: 0 homem mais horrível. Nietzsche riscou uma passagem na qual O próprio Zaratustra é indicado como o assassino de Deus (cf. KSA 14, 309). [... ] Mas quando deu volta a outro penhasco do caminho, mudou de súbito a paisagem, e Zaratustra entrou no reino da Morte. Negros e vermelhos penhascos surgiram ali, e não havia erva, árvores, nem cantos de pássaros. Era um vale que todos os animais desprezavam, e até as feras; só uma horrível espécie de grandes cobras verdes dirigiam~se para lá, quando envelheciam. Por isso os pastores chamavam aquele vale "Morte das serpentes". Zaratustra abismou-se em negras recordações, porque lhe parecia ter já estado naquele vale. E lhe preocuparam o espírito coisas pesadas. E foi diminuindo, diminuindo o passo, até que terminou por parar, e fechar os olhos. Quando os abriu, viu qualquer coisa sentada à beira do caminho, qualquer coisa semelhante à forma de um homem, qualquer coisa inexprimível. E Zaratustra sentiu imensa vergonha de terem seus olhos visto semelhante coisa. Ruborizou-se até à raiz dos cabelos brancos, desviou os olhos e deu um passo para afastarse daquele sítio nefasto. Subitamente o morno deserto povoou-se de ruídos; do solo se ergue um gorgolejo e um estertor como o da água à noite em canos tapados! E esse ruído acabou por se tornar voz humana e humana palavra. A voz dizia: - Zaratustra! Zaratustra! Adivinha o meu enigma! Fala! Qual é a vingança contra o testemunho? Eu atraio-te para trás; aqui há gelo resvaladiço. Cuidado, cuidado, que o teu orgulho não quebre as pernas! Julgas-te sábio, orgulhoso Zaratustra?

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Pois decifra o enigma, decifra o enigma que eu sou. Fala . pois: quem sou eu? Mas quando Zaratustra ouviu estas palavras, que pen~ sas que lhe passou na alma? Viu-se dominado pela co1npaixão, e caiu subitamente como uma massa, como um carvalho que, depois de resistir muito tempo aos lenhadores, cai, de repente e pesadamente, com espanto dos que o queriam abater. Mas, imediatamente, se ergueu do solo e o semblante tornou-se-lhe duro. - Conheço-te bem - disse com voz de bronze: - tu és o Assassino de Deus. Deixa-me ir embora. Não suportaste que ele te visse sempre, e até no mais íntimo teu, ó dos homens o mais horrível! Vingaste-te dessa testemunha! Assim falava Zaratustra, e quis ir-se embora: mas o inexprimível segurou-o pelo manto e começou a gorgolejar de novo e a procurar as suas palavras: - Detém-te - disse por fim. - Detém-te! Não vás embora! Compreendi qual foi o machado que te derribou! Glórias a ti, Zaratustra, que estás outra vez de pé! Adivinhaste, sei-o perfeitamente, quais são os sentimentos do que matou Deus, do Assassino de Deus. Fica. Senta-te aqui ao meu lado; não será em vão [... ]. Bem vi, porém, que passavas por diante de mim em silêncio, e que te envergonhavas: foi por isso que compreendi que eras Zaratustra. Outro qualquer atirar-me-ia uma esmola, ou com o olhar e a palavra, a sua compaixão. Não sou porém bastante mendigo para aceitá-Ia, tu o percebeste. Eu sou demasiado rico, rico em coisas grandes e terríveis, as mais feias e inexprimíveis. A tua vergonha honra-me, Zaratustra! Difícil me foi sair da multidão dos compassivos para encontrar o ,,único que ensina hoje que "a compaixão . e importuna - para te encontrar a ti, Zaratustra [... ].

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Mas, tu mesmo ... livra-te também da tua própria compaixão! Que há muitos que se encaminham para ti, muitos dos que sofrem, dos que duvidam, dos que desesperam, dos que estão em perigo de morrer afogados ou gelados. Ponha-te também em guarda contra mim. Tu decifraste o melhor e o pior dos meus enigmas, decifraste a mim mesmo, e o que tenho feito. Conheço o machado que te pode derrubar. Quanto a ele, foi preciso, contudo, que ele morresse: via com olhos que tudo viam, via as profundidades e os abismos do homem, toda a sua oculta ignomínia e fealdade. A sua compaixão não conhecia a vergonha; introduzia-se nos mais sórdidos recantos. Foi mister morrer o mais curioso, o mais importuno, o mais compassivo. Olhava-me sempre; quis vingar-me de tal testemunha, ou deixar de viver. O Deus que via tudo, e até o homem, esse Deus devia morrer! O homem não suporta a vida de semelhante testemunha (Z, O homem mais horrível, 327-331 [330-334 ]) .

O assassino de Deus é também aqui conhecido; diferentemente do que ocorre com o "homem louco", falta o acusador, falta tanto mais o momento da autoacusação. Zaratustra e o assassino de Deus são pessoas diferentes. Apenas uma espécie de déjà-vu dá alguma pista de que Zaratustra possa ter algo a ver com o assassino ou mesmo com a morte de Deus: "Parecia-lhe ter já estado naquele vale. E lhe preocuparam o espírito coisas pesadas". A problemática aparece, portanto, de uma perspectiva inteiramente nova. Entretanto, reencontram-se alguns aspectos: a gravidade da ação, que recai terrivelmente sobre o autor: "Adivinhaste, sei-o perfeitamente, quais são os sentimentos do que matou Deus". O momento de uma grandeza da ação: "Eu sou demasiado rico,

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rico en1 coisas grandes e terríveis, as mais feias e inexprimíveis''. E a ausência de verdade das religiões - aqui, do cristianismo: E, hoje, chama-se "verdade" ao que diz o pregador que sai das filcirns dessa gente, aquele santo raro, aquele advogado dos humildes, que afirmava a si mesmo: "Eu sou a verdade".[ ... ] Deu-se resposta mais cortês a um presunçoso? Contudo, tu, Zaratustra, tu ultrapassaste ao dizer: "Não! Não! Três vezes não!" (Z, O homem mais horrível, 330 [333] ).

Contudo, segundo essa nova perspectiva, algo_diverso pern1anece em primeiro plano. O texto menciona um motivo para o assassinato: Não suportaste que ele te visse sempre, e até no mais íntimo teu, ó dos homens o mais horrível! Vingaste-te dessa testemunha (Z, O homem mais horrível, 328 (331]). [O] Deus que via tudo, e até o ho1nem, esse Deus devia morrer! O homem não suporta a vida de sen1elhante testemunha (Z, O homem mais horrível, 331 [334]).

O motivo que salta aos olhos é, pois, a vergonha do homem mais horrível diante das testemunhas de sua fealdade. Por que, contudo, o assassinato de Deus é horrível? Certamente não é o assassinato que assim o torna, uma vez que a fealdade precede o n1otivo. Seria algo gratuito presumir que Nietzsche tenha escolhido essa caracterização sem qualquer intenção. A expressão fealdade refere-se a algo que desperta novas interpretações. Unta decisão perigosa - A decisão cristã d e achar o mundo horrível e mau tornou o mundo horrível e mal (KSA 3, 485).

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Nietzsche continuamente censura sobretudo o cnsttanismo, mas também de forma geral as religiões e a especulação metafísica, por jogar um Além contra o Aqui, representações ideais sobre o além-mundo contra a realidade mundana imediata: [O] conceito de "Deus" foi, até agora, a maior objeção à existência ... Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo

(KSA 6, 97).

Reflexões correlatas já constituem, em Humano, demasiado humano, um eixo temático (KSA 2, 107-140). Elas pertencem a uma discussão - bem polêmica - em torno do fenômeno da religião. Contudo, o interessante é que já aqui Nietzsche vai além de uma simples crítica da religião fundada racionalmente. Suas razões se apoiam naquilo que ele denomina "gosto": Contra o cristianismo - É o nosso gosto que, agora, decide contra o cristianismo, já não são os nossos argumentos (KSA 3, 485).

O gosto é um conceito sobre o qual Nietzsche refletiu inúmeras vezes. Nietzsche o compreende como a expressão completa da personalidade, a qual exprime sua origem e constituição "fisiológica" no juízo de gosto: O gosto é por sua vez o peso, a balança e o pesador; e infeliz de todo o vivente que quisesse viver sem disputar sobre o tema, os pesos, a balança e a pesagem (Z, Dos sublimes, 150-151 [160]).

Todo "tipo 'homem"' encarna determinadas valorações de gosto; e apenas estas podem "fundamentar" suficientemente a crítica das religiões existentes. A mera argumentação racional não alcança profundo o suficiente: também a elas precede uma valoração. 63

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Mas ter-se-á desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé n1etafísica que assenta ainda a nossa fé na ciência; pesquisadores do conhecimento, ímpios inirnj. gos da metafísica, nós próprios, ainda acendemos fogo na fogueira acesa por milenária crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verda. deiro se identifica com Deus e toda a verdade é divina ... (KSA 3, 577).

De uma maneira que se interrompe reiteradas vezes, Nietzsche exprime esse pensamento também no Zaratustra. Ele coloca as seguintes palavras na boca do último papa, que após a morte de Deus ficou, por assim dizer, sem emprego: "Ah, Zaratustra, com essa incredulidade és mais devoto do que julgas. Deve ter havido algum Deus que te inspira a tua falta de Deus" (Z, Em disponibilidade, 325 [328] ). Com essas palavras, o papa, um perito em tais assuntos, chama a atenção de Zaratustra para o fato de que seus juízos de gosto e novas valorações servem, em seus pressupostos, como fundamentos tão profundos como as religiões. Trata-se de um pensamento importante de Nietzsche o de que as religiões são poderosas mediadoras de perspectivas e posições de valores que, nas pessoas dos fundadores de religiões e legisladores, estão elas mesmas sujeitas a pressuposições fisiológicas. Assim falava Zaratustra, penetrando com o olhar nos pensamentos mais íntimos do velho papa. Finalmente, este principiou a dizer: · -A_quele que mais o amou e o possuiu foi também o que mais o perdeu. Olha: creio agora que o mais sem-Deus de nós sou eu. Mas quem se poderia regozijar com isso? (Z, Em disponibilidade, 323 [326] ). [... ] Também há um bom gosto na devoção religiosa; esse bom gosto acabou por dizer: "Basta de tal Deus!

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Vale mais não haver nenhum, vale mais cada um criar seu destino, vale mais ser doido, vale mais ser nós mesmos deuses". · - Que ouço? - disse o velho papa neste momento, apurando o ouvido. - Zaratustra, com essa incredulidade és mais devoto do que julgas. Deve ter havido algum deus que te inspira a tua ausência de Deus. Não é a .tua devoção religiosa que te impede de crer em um Deus? É a tua excessiva autenticidade que te conduz além do bem e do mal. Vês tudo quanto te está reservado! Teus olhos, mão e boca que estão predestinados a abençoar de toda a eternidade. Não é só com as mãos que se abençoa (Z, Em disponibilidade, 324-325 [328]).

O dramatismo do discurso acusatório do "homem louco", que procura chamar a atenção de seus semelhantes para as consequências funestas da morte de Deus, ressurge aqui na tristeza do velho papa: "Quem poderá, contudo, arrancar-te dos ombros a tua melancolia? Eu [Zaratustra] sou demasiado débil para tanto" (Z, Em disponibilidade, 325 [329]). Não apenas a evidente ausência de Deus de Zaratustra, mas também a melancólica ausência de Deus do papa são experiências do próprio Nietzsche. E1n um esboço autobiográfico, o filho do pastor observa sobre sua infância: "Deus visto em todo o seu esplendor" (KSA 8, 505). Ao lado do aforismo do "homem louco", muitas outras passagens refletem o sentimento temporário de desamparo, chegando até ao desespero, pela perda desse Deus, é até a sua tardia "maldição ao cristianismo", o Anticristo, contém passagens francamente simpáticas sobre Jesus de Nazaré: Esse "portador da boa-nova" morreu como viveu, como ensinou - não para "redimir os homens", mas para mostrar como se deve viver. A prática foi o que Ele dei-

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xou para a humanidade: seu comportamento ante 08 1 juízes, ante os esbirros, ante os acusadores e todo tipo de calúnia e escárnio - seu comportamento na cruz. Ele não resiste, não defende seu direito, não dá um passo para evitar o pior, mas ainda, Ele provoca o pior... E Ele pede, Ele sofre, Ele ama con1 aqueles naqueles que lhe fazem mal... As palavras que Ele diz ao ladrão na cruz contêm todo o evangelho. "Este foi verdadeiramente urn homem divino, um 'filho de Deus"' - diz o ladrão. "Se sentes isso" - responde o Salvador -, "então estás no 1 paraíso, és também um filho de Deus ..." Não se defender, não se encolerizar não atribuir responsabilidade ... Mas 1 tampouco resistir ao mau - amá-lo ... (KSA 3, 207). '

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Asco Eu, Zaratustra, o advogado da vida, o advogado da dor, o advogado do ciclo, sou eu que te chamo, meu pensamento de abismo! Ó felicidade! Tu te aproximas, ouço tua voz. Meu abismo falou, minha última profundidade surge à luz. Ó felicidade! Vem! Dá-me a tua mão!. .. Deixa-a! Ah! Ah! Haha ... Asco! Asco! Asco! Pobre de mim! (Z, O Convalescente, 271 [282]).

O asco de Zaratustra não é algo secundário. Ele tem a ver com seu pensamento central - o "pensamento de abismo". Zaratustra evoca esse pensamento da mesma maneira como um espírito é jurado pelo seu mestre: ele legitima seu juramento ao credenciar-se com seu nome e seus títulos. Esses ·títulos produzem a conexão com os complexos de pensamentos centrais do Zaratustra: a imanência radical, portanto a negação de todo além-do- , -mundo ("o advogado da vida", "o advogado da dor") e o eterno retorno do mesmo ("o advogado do ciclo). Tambén1 isso dá 66

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indícios de que o asco não é algo secundário. Zaratustra ordena aproximar-se do abismo e, na medida em que esse pensamento é enunciado, o asco se desenvolve entre as exclamações "ó felicidade" e "pobre de mim!" · Esse asco é tão intenso que Zaratustra "cai no chão como morto" e nos sete dias seguintes precisa curar-se. Apenas após tudo isso o asco é inteiramente superado: No fim de sete dias, Zaratustra reanimou-se, pegou numa pinha, cheirou-a e agradou-lhe o perfume (Z, O Convalescente, 271 [282]).

Dessa forma, uma faceta central de Zaratustra consiste em ele sentir esse asco desmedido, mas ao mesmo tempo superá-lo: [O pregador da montanha falando:] Este é o homem sem asco, este é Zaratustra, o que superou o grande asco; são os seus olhos, a sua boca, e o próprio coração de Zaratustra. [...] "Não fales de mim, homem singular e atraente!" - respondeu Zaratustra, esquivando-se ao afagoso. "Antes de tudo, fala-me de ti. [... ]" (Z, O mendigo voluntário, 334-335 [337]).

Zaratustra, "o que triunfou do grande asco" - em que consiste esse asco, a que ele se refere? Já antes dele o grande asco aumentava, relata Zaratustra: Mas um dia coloquei a mim mesmo esta pergunta que deveria me sufocar: como? Tem a vida necessidade da canalha? [... ] Não é meu ódio, é o meu asco que devora minha vida. Ah! Quantas vezes me desgostei do espírito ao ver a canalha ter espírito! ·(Z, Da canalha, 125 [134-135]).

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A postura de Zaratustra em relação à "canalha" impregna a consideração da próp!ia existência: "é o meu asco que devora mi~ nha vida". Essa postura é um substituto daquilo que, em Ecce homo, Nietzsche denomina o "asco pelo homem": Zaratustra não sente isso permanentemente, ele conhece também o amor pelo homem e até mesmo a compaixão pelo homem. O asco de Zaratustra pelo homem é o reverso de seu amor bem pessoal pelo homem. Já no prólogo torna-se evidente a razão e o ponto de partida desse amor especifico pelo homem. A grandeza do homem consiste em ser uma ponte e não uma meta; o que se pode amar no homem é ele ser uma ascensão e um declínio (Z, Prólogo de Zaratustra, 1617 [22]).

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As fealdades e ignomínias cotidianas, mas também o sofrimento e a dissolução da vida, constituem a imperfeição e, da perspectiva de Nietzsche, a incompletude da essência da vida humana. Mesmo essa incompletude, porém, é fundamento tanto do amor particular pelo hon1em como o asco por ele descritos no Zaratustra. Como Zaratustra supera seu asco, assim também supera seu amor e, por fim, até mesmo sua compaixão. Este último ocorre apenas nas últimas páginas do Zaratustra. O próprio Nietzsche comenta esse desenvolvimento. O que Zaratustra consegue é expor uma perspectiva na qual o homem concebe a si mesmo como desafio artístico, como material para completude: Em uma outra passagem, ele define com o rigor possível o que para ele pode ser somente "o homem" - não um objeto de amor ou mesmo de compaixão - Zaratustra também dominou o grande asco pelo homem: o homem

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é para e]e a]go informe, um material, uma pedra feia que necessita de escultor (KSA 6, 348).

No entanto, o pensamento do eterno retorno do mesmo intensifica o asco pelo homem. A aspiração pela redenção de si no sentido de um progresso a uma perfeição sempre maior colapsa em si mesma. O nó das causas em que me encontro enlaçado tornará e me criará de novo! Eu próprio faço parte das causas do eterno retorno das coisas (Z, O Convalescente, 276 [288]).

A incompletude ressurge como incompletude tal qual a completude como completude. Primeiramente o asco pelo horrível, que não pode mais ser superado, torna-se o grande asco pela existência. Demasiado pequeno, até o maior! - Eis o que me desgostou dos homens e o eterno retorno do maior entre eles. Eis o que me desgostou de toda existência! Que asco! Que asco! Que asco! - Assim falava Zaratustra, suspirando e estremecendo, porque se lembrava da sua doença (Z, O Convalescente, 274 [286]).

Afirmação Amor fati: seja esse de agora em diante o meu amor! Não quero fazer a guerra ao horrível. Não quero acusar, nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de ora em diante, a minha única negação! E, numa palavra em grosso, não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão um afirmador! (KSA 3,521).

Aqui, no quinto livro incluído em A gaia ciência em 1887 - portanto após a redação do Zaratustra -, Nietzsche fala de si n1esmo.

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Nietzsche antecipa na figura de Zaratustra aquilo que é objetivo e propósito para ele mesmo: [... ] -Assim falava Zaratustra: eu não acuso, eu mesmo não desejo acusar o acusador (KSA 9, 616). Eu, porém, sou daqueles que bendizem e afirmam sempre, quando tu me envolves, céu puro, luminoso de claridade! Ao fundo de todos, levo a minha afirmação que bendiz (Z, Antes do nascer do sol, 208-209 [221]).

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O conteúdo daquilo que se deixa observar no estilo do Zaratustra, a completa ausência de ataques polêmicos, é aqui desenvolvido. Zaratustra não ataca, ele não disputa em suas valorações suas razões de ser, ele não faz uma crítica aniquiladora. Em alguns momentos essa postura coloca Zaratustra em sérias dificuldades. Ele precisa primeiramente superar a forma mais imediata - e, por assim dizer, a mais corporal - de repugnância, a saber, o seu asco. Há um curioso capítulo no terceiro livro do Zaratustra que mostra como Zaratustra não se detém em seu asco. Zaratustra surge em uma figura que é uma caricatura de si mesmo, na medida em que macaqueia a ele e seus ensinamentos: Era o mesmo tolo a quem o povo chamava o "macaco de Zaratustra ", porque imitava um tanto o tom e o ritmo de sua frase, e lhe agradava ta1nbé1n explorar o tesouro da sua sabedoria (Z, Do seguir adiante, 222 [234]).

No apelo que esse tolo dirige a Zaratustra encontram-se, em parte, correspondências literais com seu próprio discurso como, por exemplo, "Do novo ídolo". No entanto, Zaratustra toma aqui distância:

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Que foi que te fez grunhir? É porque não te adularam suficientemente; por isso te sentaste ao lado dessas imundícies, a fim de teres numeros~s razões de vingança. A vingança, louco raivoso, é a tua espuma. Vai-te, descobre o que és. As tuas palavras de louca prejudicam-me até quando tens razão. E ainda que Zaratustra tivesse cem mil vezes razão em palavras, tu, usando as minhas próprias palavras, não terias razão! (Z, Do seguir adiante, 224-225 [235]).

Essa última observação aponta bem claramente para o fato de que os discursos de Zaratustra não podem ser compreendidos individualmente como se fossem teoremas, mas sim, por um lado, no contexto de todas as suas sentenças - por vezes até contraditórias entre si - e, por outro, também no vínculo com a descrição multifacetada do tipo Zaratustra. É relevante levar em conta quem fala e com qual motivação. Zaratustra deixa para trás sua repugnância. Quanto a ti, louco, te dou este ensinamento a modo de despedida: onde já se não pode amar, deve-se ... seguir adiante. Assim falou Zaratustra, e afastou-se deixando atrás de si o tolo da Grande Cidade (Z, Do seguir adiante [237]).

Zaratustra não é um adversário; de modo geral, Zaratustra é, antes, um contraponto. Como contraponto, como a grande alternativa, ele coloca aquilo que até então permanecia completamente em questão, ele "faz Não", ao mesmo tempo ele continua "dizendo Sim", sendo um "afirmador". Nietzsche comenta em Ecce homo: O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste em como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser o

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oposto de um espírito de negação; como o espírito Pon _ dor do mais pesado destino, de uma fatalidade de tare/ pode no entanto ser o mais além e mais leve - Zaratustra, é um dançarino-: como aquele que tem a mais dura e rível percepção da realidade, que pensou o "mais abissal pensamento", não encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno - antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno sim a todas as coisas, "o imenso ilimitado sim e amém"[ ... ] "A todos os abismo levo a bênção do meu sim"[ ...]. Mas esta é a ideia do Dionísio mais uma vez (KSA 6, 344-345).

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Tudo o que existe se vê colocado radicalmente em questão através do contraponto de Zaratustra, aquele que "faz Não a tudo a que até então se disse Sim". Entretanto, Zaratustra não faz uma crítica aniquiladora. Sua postura é a de uma "nova justiça". Esta se torna primeiramente possível pela superação, o reverso do grande asco: "o imenso ilimitado sim e amém" de Zaratustra, que significa a supressão de toda "objeção fundamental à vida" - mesmo relativamente a um possível eterno retorno do mesmo. Com isso, ele faz com que tudo conflua, de forma bem primária, para justiça. Essa "nova justiça" é reencontrada quase programaticamente em A gaia ciência: Todos a bordo! - Quando se considera o efeito que exerce sobre qualquer indivíduo uma justificação filosófica geral da sua maneira de viver e de pensar, quando se pensa que ela o aquece e o abençoa e o fecunda como um sol que brilhasse apenas para ele, quando se mede a independência que lhe confere em relação à opinião pública, quando se vê quanto ela o torna contente consigo, rico, pródigo de felicidade e de benevolência, que ela não cessa de transformar o mal em bem, de fazer florir e amadurecer todas as suas forças e matar nele as ervas más, pequenas ou grandes, do humor negro e do

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desgosto, como uma sup ; 1·1ca.• Ah'. ; acaba-se .por exclamar . 1 Oxa ; . a se possam amda cnar mil sóis como est e., o propno mau, o desgraçado, o homem de exceção d . fº , eve ter a sua f11oso 1a, a sua razão, o seu raio de sol! Não é a pieda~e ~ue lhe é necessária!... desaprovemos esta orgulhosa 1de1a, se bem que tenha sido ela que durante tanto tempo a humanidade pediu as suas lições e os temas dos seus exercícios ... não temos necessidade para ninguém de confessores, de exorcizadores nem de absolvidores. O que é necessário é uma nova justiça! E uma nova palavra de ordem! E novos filósofos! A Terra moral é redonda comó a outra! Também a Terra moral tem seus antípodas! Também os antípodas têm seu direito de existência! Há ainda um outro mundo a ser descoberto - e mais do que um! Todos a bordo, filósofos! (KSA 3, 529-530).

A imagem do "sol que ilumina a si mesmo" torna-se "seu próprio céu", que está acima de todas as coisas. A imagem torna-se uma autodescrição de Zaratustra, que pela superação do ·grande asco tornou-se um afirmador, um bendizente. Eu, porém, sou daqueles que bendizem e afirmam sempre, quando te me envolves, céu puro, luminoso de claridade! Ao fundo de todos, levo a minha afirmação que bendiz. Tornei-me o que bendiz e afirma: mas eu sou um lutador e tive de lutar para ter um dia as mãos livres para bendizer. Mas a minha maneira de bendizer consiste em estar acima de todas as coisas como o céu que lhe é próprio, a redonda cúpula, o campanário cerúleo, e a sua eterna serenidade: e bem-aventura aquele que bendiz assim! Pois todas as coisas foram batizadas na fonte da eternidade, além do bem e do mal; mas o bem e o mal não são mais do que sombras transeuntes, úmidas aflições, nuvens errantes.

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Na verdade, 0 que ensino é ben_dição e não blasfêrnia quando digo: "Sobre todas as coisas estende-se o céu d, contingência, o céu da inocência, o céu do acaso O da altivez". "Por Acaso", é esta a mais antiga nobreza do mundo· e . .d ' u a restituí a todas as coisas; eu as l1vre1 a servidão dos fins (Z, Antes do nascer do sol, 208-209 (22]).

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Aqui se encontram várias linhas de pensamento na imagern do Zaratustra afirmador: uma alusão traz à mente a superação do grande "asco": "[M]as eu sou um lutador e tive de lutar"; da mesma forma, aparecem inúmeras referências ao pensamento do eterno retorno: "Pois todas as coisas foram batizadas na fonte da eternidade". Essa especulação central de Nietzsche serve aqui de fundamento para a nova justiça. Nessa especulação de Nietzsche, segundo a qual as coisas retornam na eternidade conforme elas são, é impossível um término completo de desenvolvimentos, os fins e objetivos são, portanto, sempre temporários e passageiros. As valorações que surgem deles, como útil e inútil, bom e mau, aplicam-se apenas passageiramente às coisas, podem reivindicar uma validade meramente relativa. Nietzsche faz a seguinte anotação em 1883: O ponto de vista mais importante: conquistar a inocência do vir a ser ao descartar os fins (KSA 10,245).

Contudo, com os fins é também descartada toda justificativa da existência através de fins derradeiros: não mais se trata de algo para que ... ou de modo a que ... E não estão as coisas entrelaçadas tão solidamente, que este instante atrai após si todas as coisas futuras? E tu também, por consequência? (Z, Da visão e do enigma, 200 (212]).

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Liberto da "servidão dos fins", tudo está aí, por assim dizer, como que "Por Acaso" - como Zaratustra exprime em sua própria linguagem. Deve ser notado que Zaratustra põe especial relevo no fato de que essa consequência, colocada em sua boca, não é "vício" algum, nenhum decréscimo em valor e dignidade, mas, pelo contrário, uma "bênção". Como Nietzsche discute em A gaia ciência, é comum que nós, quando algo dá certo, sejamos seduzidos a presumir por trás disso alguma finalidade ou providência. Sobre isso Nietzsche faz o seguinte comentário crítico: Pois muito bem, apesar de tudo isso, deixemos os deuses em repouso; deixemos em repouso os gênios servis; contentemo-nos em admitir simplesmente que a nossa habilidade, prática e teórica, em interpretar os acontecimentos, em arranjar as circunstâncias, acaba por atingir o seu apogeu. Não pensemos também demasiado bem da destreza da nossa sabedoria se nos acontece, por momentos, ser surpreendidos pela maravilhosa harmonia que nasce do toque do nosso instrumento [... ]. Alguém vem, com efeito, às vezes, tocar conosco [... ] o querido Acaso (KSA 3, 522).

A afirmação de Zaratustra - penosamente arrancada do gran-

de asco - é o esboço nietzscheano de uma determinada postura que pode ser depreendida da "psicologia" de um "bem-estar infinito", a saber, uma postura que assume que tudo é "simplesmente assim" e que concorda fundamentalmente com isso.

Criar, amar, aniquilar, sofrer No Zaratustra 6 [há] a grande síntese do que cria, do que ama, do que aniquila (KSA 11, 360).

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Contudo, para que exista aquele que cria, necess" de muitas dores e transformações (Z, Nas ilhas bern_•ta-se aven turadas, 11 O [119]). ·

o plano de Nietzsche e os enunciados postos na boca de Zaratu tra dão testen1unho de que as facetas aqui mencionadas permaneces-

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em uma íntima relação entre si. À primeira vista tal configuração ficilmente poderia ser mais contraditória e curiosa - uma observação que nos faz perguntar por que Nietzsche procura aqui uma síntese.

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Uma primeira abordagem consiste em inicialmente examinar o que Zaratustra cria, sob qual ponto de vista e de que maneira

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ele é um criador.

É possível encontrar uma referência a isso em uma passagem na qual Zaratustra, por meio da imagem de um arboricultor que planta seus brotos, descreve como suas "crianças" - sua prole, mas não em um sentido estritamente biológi~o - serão escolhidas e selecionadas para criarem junto consigo: Os meus filhos verdejam em sua primeira primavera, plantados uns ao lado dos outros, ondulando aos ventos, árvores do meu jardim, e o melhor de minha terra. E, na verdade, onde existem juntas tais árvores, estão as ilhas bem-aventuras! Mas, um dia, eu os transporta rei e os podarei separadamente, para que aprendam a solidão, a altivez e a prudência! Nodosos e retorcidos, duros, n1as flexíveis, assim eu quero vê-los erguerem-se à margem do mar, vivos faróis de vida invencível. Lá, onde as tempestades se precipitam no mar, onde a raiz da n1ontanha se banha nas ondas, é lá onde cada um deverá passar as vigílias da noite, para que seja rarnbém experimentado e sondado a fundo.

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É mister que seja experimentado e conhecido f d ,d . a un o, para sa ber se e a m1~ha r_aça e da minha estirpe, senhor de um longo querer, silencioso até quando fale , e cond escendente a ponto de aceitar quando dá, para que chegue a ser um dia companheiro e colaborador de Zaratustra, um dos que escrevam sobre minhas próprias tábuas meu pr_ó~rio querer: d~ndo ~ todas as coisas a sua plena perfeiçao (Z, Da beatitude involuntária, 204 [216]).

A descrição do local é cuidadosamente feita: Nietzsche combina diferentes características climáticas e topológicas que, em outros lugares de sua obra, as reflexões de Nietzsche as preenchem com outros conteúdos. A descrição do local é mais a de uma paisagem composta por pensamentos do que um cenário natural: costas montanhosas junto ao mar, correntes tempestuosas de vento. A montanha é a paisagem da distância filosófica, por assim dizer, uma perspectiva filosófica de um pássaro a respeito da existência. Nietzsche formula essa conexão em Ecce homo: Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa - mas quão tranquilas banham-se as coisas na luz! Com que liberdade se respira! Quantas coisas sente-se abaixo de si! - filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes - a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu (KSA 6,258).

Os mecanismos da existência são brindados a u1n observador praticamente desinteressado. A tais mecanismos pertence também, e sobretudo, fins e posições de valores; a montanha é tambén1 a paisagem para um "além do bem e do mal"•

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.. O n1ar é o cenário de novas descobertas, de novas perspect' vas, 1nas ta1nbém de u1na infinitude "terrível": ,_ Há ainda mn outro mundo a ser descoberto - e mais d 0 que um! Todos a bordo, filósofos! (KSA 3, 530).

No horizonte do infinito - Deixamos a terra, subimos ,.,

bordo! Destruímos a ponte atrás de nós, melhor, destrut mos a terra atrás de nós. E agora, barquinho, toma cuj. dado! Dos teus lados está o oceano; é verdade que nern sempre brame; a sua toalha estende-se às vezes corno seda e ouro, um sonho de bondade. Mas virão as horas em que reconhecerás que ele é infinito e que não existe nada mais terrível do que o infinito [... ] (KSA 3, 480).

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O local em que são plantados aqueles que devem ser selecionados para a criação conjunta com Zaratustra fica lá onde combinam-se essas duas imagens de paisagem para o pensamento. Essa configuração não é uma mera justaposição neutra, mas, antes, uma interação impetuosa: "Lá, onde as tempestades se precipitam no mar, onde a raiz da montanha se banha nas ondas".

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O local é inóspito e isolado. A árvore que é ali plantada precisa afirmar-se em meio a tal hostilidade entre distância filosófica e expedição de descoberta até o infinito, e encontrar aqui uma possibilidade própria de vida. Co1no aquele que cria junto com Zaratustra, ele apresenta um esboço próprio de vida, um tipo próprio, que ta.m bém é capaz de viver sob tais condições climáticas dispostas para o ponto de vista filosófico: "vivos faróis de vida invencível". Em um parágrafo de Além do bem e do mal Nietzsche descreve de forma menos metafórica uma formação atrás do ponto de vista filosófico:

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Talvez seja indispensável, na educação de um verdadeiro filósofo, ter passado alguma vez pelos estágios em que permanecem, em que têm de pe~manecer os seus servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio tenha que ter sido crítico, cético, dogmático e historiador, e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de enigmas, moralistas, vidente, "livre-pensador" e praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito de valores e sentimentos de valor humanos e poder observá-lo com muitos olhos e consciências, desde a altura até a distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à amplidão (KSA 5, 144).

Na sequência Nietzsche estabelece uma ligação entre esses "verdadeiros filósofos" e os criadores, no sentido de "aqueles que criam com Zara tustra": Mas tudo isso são apenas precondições de sua tarefa: ela mesma requer algo mais - ela exige que ele crie valo-

res (...]. Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem "assim deve ser!", eles determinam o para onde? e para quê? do ser humano [... ]. - [E] les estendem a mão criadora para o futuro, e tudo o que é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu "conhecer" é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é - vontade de potência. - Existem hoje tais filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos? ... (KSA 5, 144-145).

Os criadores, sobre os quais fala Zaratustra, são principalmente aqueles que criam valores, que estabelecem valores. Nietzsche nota o seguinte durante a redação do Zaratustra: Aquele que cria é quem cria novos valores. Mas não o artista! (KSA 10, 184).

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... Esse vínculo também é estabelecido no Zaratustra. O próprio Zaratustra se senta e espera em meio ~ "antigas tábuas quebradas, e também de tábuas semigravadas". E evidente a associação com as tábuas das leis de Moisés, que, tomado de fúria, também as quebra. A visão de Zaratustra cercado de antigas e novas leis, ou ainda, de antigas e novas tábuas de valores, é a visão de alguém que cria durante uma pausa de trabalho, na qual ele relata sobre si ,,

...

e sobre seu trabalho: Quando vim para o lado dos homens, achei-os fortificados numa antiga presunção: todos julgavam saber há muito tempo o que é bem e mal para o homem. [...] Eu sacudi essa sonolência quando ensinei: Ninguém sabe ainda o que é bem e mal... a não ser aquele que ena. Mas este é aquele que cria um fim para os homens e que fixa à terra seu sentido e seu futuro. Dele somente depende que uma coisa seja boa ou má (Z, Das antigas e novas tábuas, 246-247 [259-260]).

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Saber o que é bom e mau ao homem - Zaratustra joga aqui com um duplo significado que ele dá à frase. No sentido mais comum da expressão, quem sabe o que é bom e mau é aquele que, com auxílio desse padrão de medida, julga sobre sua própria vida ou sobre a de outrem, ou ainda, é aquele que, por assim dizer, aprendeu a ler tal padrão de medida. Em contrapartida, Zaratustra oferece a seguinte interpretação: saber o que é bom e mau também pode significar saber como e por que tais padrões de medidas são produzidos. Em primeiro lugar, não há criadores particulares que, ademais, podem prestar contas sobre métodos e razões de seu trabalho. Um parágrafo mais longo do primeiro livro conta sobre as viagens de Zaratustra quase no sentido de uma pesquisa comparativa de comportamentos:

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Dos mil e um objetivos Muitos países e muitos povos viu Zaratustra· assim descobriu o bem e o mal de muitos povos. Zar~tustra não encontrou poder maior na terra que o bem e o mal. Nenhum povo poderia viver sem primeiro fixar seus valores; mas, se quer conservar-se, não deve adotar valorações, como as valorações de seu vizinho. Muitas coisas que um povo chama boas eram para outro vergonhosas e desprezíveis; eis aqui que eu achei. [... ] Na verdade, os homens deram a si mesmos o seu bem e mal. A verdade, não a tomaram emprestado nem a encontraram; ela não lhes veio como uma voz do céu. O homem pôs valores nas coisas a fim de conservar-se; ele foi o que pôs valores nas coisas e um sentido, um sentido humano. Por isso chama-se "homem", o que avalia. Avaliar é criar. Ouvi, criadores! [... ]. A transmutação dos valores é transmutação do que cria. Quem tem de ser criador sempre aniquila. Aqueles que criam foram a princípio os povos, e só mais tarde os indivíduos. Na verdade, o indivíduo é a mais recente criação [... ]. Até o presente houve mil objetivos diferentes, porque houve mil povos. Não falta mais que a cadeira das cervizes: falta um objetivo único. A humanidade não tem ainda um objetivo. Mas dizei, meus irmãos: se falta um objetivo à humanidade, não é porque não há ainda uma humanidade? (Z, Dos mil e um objetivos, 74-76 [86-88]).

Nessa passagem há muitos aspectos interessantes: em primeiro lugar, a determinação do valor como uma capacidade essencial e fundamental do homem - com uma etimologia de" homem" a partir do latim não muito convincente. Logo no início é notado que os homens, para poderem sobreviver em clãs ou povos funcionais, precisam utilizar constantemente essa capacidade. O efeito entre diferentes valorações e costumes, efeito este que produz identida-

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des, se a presenta como algo necessário para demarcar grupos e povos diferentes entre si. Por fim, é relatado que a produção de valorações e costumes é em primeiro lugar uma obra - irrefletida - dos povos e apenas bem mais tarde dos indivíduos; ademais . relata-se que a individualidade, a percepção (de s1) dos indivíduos particulares por meio do homem como membro da espécie é tornada primeiramente possível devido a uma valoração especial _ a )

criação. Nietzsche trata desse tema desde seus primeiros escritos; u1n livro dedicado à história de surgimento da moral é publicado em 1887: a Genealogia da moral. Quando a presença de um valor transformado em lei é tão fundamental para a existência humana, pode sempre ocorrer uma nova posição de valor sob o pano de fundo de alguma posição de valor já existente. A lei desta é assim rompida. Novas posições de valores, especialmente aquelas bem particulares, são acompanhadas da aniquilação de antigas. Com a formulação: "quem tem de ser criador sempre aniquila" torna-se finalmente claro o motivo de Nietzsche vincular de forma tão íntima as facetas daquele que cria e daquele que aniquila. Chama a atenção que alguém "tenha de ser criador". Uma dinâmica interna à posição de valores humana é o que leva forçosamente a tanto, isso não ocorre a partir de uma presunção de momento: Na verdade, eu vos digo, bem e mal, noções imutáveis, não o são da existência. Tudo trabalha para se superar sem cessar. Vossos juízos de valor e vossas teorias do bem e do mal são meios de exercer o poder. Valoradores, eis o amor secreto que brilha em vossos corações, que fremem e se desbordam. Mas há mna força n1aior que nasce de nossos valores, e uma nova superação que rompe o ovo e a casca.

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E quem tem de ser um criador em matéria de bem e mal começará necessariamente por aniquilar e quebrar valores (Z, Da superação de si, 149 [159]).

Essa dinâmica interna, que compele sempre a uma ruptura com posições antigas e atuais de novos valores, ocupará Nietzsche ainda de forma intensa no período após o Zaratustra. Ele busca - sob uma perspectiva parcialmente sistemática - destacar essa dinâmica de modo geral como algo fundamental para o ente. O conceito para essa dinâmica surge numa passagem imediatamente anterior à citada acima: Não há vontade senão na vida; mas essa vontade não é querer viver; na verdade ela é vontade de potência. Há para o vivo muitas coisas que ele estima mais alto do que a própria vida, mas, nessa mesma estima, o que fala é a verdade de potência (Z, Da superação de si, 149 [158-159]).

Mais à frente nos dedicaremos mais atentamente a esse tema; por ora, apenas esbocemos o pano de fundo diante do qual é enunciado o pensamento sobre a criação e a aniquilação de valores. As palavras "criador" e "aniquilador" contêm algo de titânico em si, evocando associações com grandes acontecimentos, sublevação de massas, revolução ou mesmo catástrofes globais. No Zaratustra Nietzsche faz frente a tais representações grandiosas, sem que seja abandonada a pretensão - revolucionária, no sentido mais legítimo do termo - de transvaloração. No capítulo "Dos grandes acontecimentos", Nietzsche escreve: "Liberdade!" É o vosso grito predileto, mas eu perdi a fé nos "grandes acontecimentos" , desde que em torno deles há uivos e muita fumarada.

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Crede-me Os maiores acon te. · a mim ' ruído do inferno! _ cimentos nos surpreenderam, nao nas horas mais ruid sas, mas nas horas de maior silêncio. oO mundo gira não à volta dos inventores de estrond ' , • Os novos, mas à roda dos 1_nventores de n?vos valores que gravita O mundo, e gravita sem ser ouvido (Z, Dos gran. des acontecimentos, 169 [178-179]).

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O pathos das palavras grandiosas "criador" e "aniquilador'' é aqui completamente esvaziado. Os "inventores" de valorações surgem nesse momento. Uma transvaloração pode ocorrer nas solitárias "horas de maior silêncio", quando o antigo ponto de vista repentinamente dá lugar a uma perspectiva inteiramente nova. Em Além do bem e do mal Nietzsche traça explicitamente o paralelo entre os "maiores pensamentos" e os "maiores acontecimentos": Os maiores acontecimentos e pensamentos - mas os maiores pensamentos são os maiores acontecimentos são os últimos a seren1 compreendidos: as gerações que vivem no seü tempo não vivenciam tais acontecimentos - passam ao largo deles. Ocorre algo semelhante no reino das estrelas. A luz das estrelas ma is distantes é a última a chegar aos homens; e enquanto ela não chega, os homens negam que ali haja estrelas (KSA 5, 232).

A "negação" ou "aniquilação" se apresenta aqui de forma igualmente curiosa. Os valores são elinlinados da maneira mais profunda quando não são levados a sério: Não é com a cólera, mas com o riso que se mata. Assim falavas tu, ó, Zaratustra! Tu que permaneces oculto, destruidor impassível, santo perigoso, és um maroto! (Z, A festa do asno, 392 [385]).

Em A gaia ciência Nietzsche formula, sob a forma de um co~ mentário, a unidade de criar e aniquilar neste sentido específico:

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Bem t~lo sena quem acreditasse que basta recordar essa ongem e mostrar esse véu nebuloso da ilusão para aniquilar o mundo que passa por essencial, a que se chama "realidade"! Só criando o podemos aniquilar!. .. Mas não esqueçamos também isto: é que basta forjar nomes novos, novas avaliações e novas possibilidades para criar com o tempo também "coisas" novas (KSA 3, 422).

Mas isso não para aqui. Na medida em que um aniquilar sempre coincide com o criar e a preparação de algo novo, torna-se pensável para Nietzsche um acordo com a aniquilação: Minha primeira solução: a sabedoria dionisíaca. Dionisíacamente: identificação temporária com o princípio da vida (incluída a volúpia do mártir). Prazer na aniquilação _do que é mais nobre e na consideração de como ele progressivamente cai em ruína. como prazer no futuro que está chegando, que triunfa sobre o ainda está aí como bom (KSA 10, 334-335).

A sabedoria dionisíaca é o acordo com a dinâmica do criar e aniquilar com vistas ao novo, o que faz surgir essa dinâmica. No espírito do prin1eiro escrito publicado de Nietzsche, o dionisíaco torna-se quase que um prazer ébrio por essa dinâmica vital. Um momento determinante dessa dinâmica é o amor daquele que cria. Trata-se de um amor curioso, que ao mesmo tempo ama e despreza o existente com vistas ao possível, que despreza para, a partir desse desprezo, fazer emergir o novo: O amante quer criar porque despreza! Que saberia do amor aquele que não fosse constrangido a menosprezar precisamente o que amava! (Z, Do caminho do criador, 82 [94]).

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. d • ilar indissociavelmente ligado ao criar 1·á o ngor o an1qu se

. d daquele que ama. Em outra passagem t 1 anuncia no esprez O . _ , a . mo superação da compa1xao: rigor se expnme co Mas lembrai-vos também desta frase: todo grande arnor suplanta a própria compaixão; pois quer criar O que ama (Z, Dos compassivos, 116 [126]). Com O prazer na dinâmica vital e o amor daquele que cria torna-se visível mais uma faceta de Zaratustra: aquela daquele que sofre: "Coisa igual não foi jamais criada, jamais sentida, jamais sofrida" (KSA 6, 348), Nietzsche comenta no Ecce homo sobre 0 "canto da noite" de Zaratustra. Criar é a grande emancipação da dor e o alívio da vida. Mas, para que exista o criador, necessita-se de muitas dores e transformações (Z, Nas ilhas bem-aventuradas, 110 [119]).

A razão pela qual o Zaratustra "precisa ser" aquele que cria não é meramente o prazer pelo criar, mas também o sofrimento pelo homem. A pergunta: "Mas dizei, meus irmãos: se falta um objetivo à humanidade, não é porque não há ainda humanidade?", torna-se aflitiva no contexto do grande asco de Zaratustra pela existência, levando à posição de um objetivo: Para mim ainda não sofreis [homens superiores] bastante. Pois sofreis de vós mesmos; e ainda não sofrestes pelo homem. Mentireis se disserdes o contrário! Vós não sofreis pelo que eu sofri (Z, Do homem superior, 359 [361]). Há ainda um segundo sofrimento: o sofrimento pelo criar, exatamente por ser um aniquilar. Uma citação do Zaratustra, da qual se faz fundamentalmente um mau uso, sucede a pergunta quase melancólica pela própria crueldade:

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Ó, meus irmão~, acaso serei cruel? Mas eu vos digo: ao que cai é ainda mister empurrá-lo! (Z, Das antigas e novas tábuas, 261 [273]).

Zaratustra não é exclusivamente duro e cruel, ele é aquela complexa "síntese do criador, amante, aniquilador" e do que sofre. Certamente o próprio Nietzsche não estava à altura da sua própria exigência de dureza e inclemência. Pelo contrário, ele dá testemunho de seu sofrimento por aquilo que acreditava ter posto em marcha por meio do Zaratustra. Ah, Zaratustra, defensor da vida! Você precisa ser também o defensor do sofrimento! Os homens precisam ser mais maus. Zaratustra 4: isto é meu maior sofrimento eu tenho de torná-los mais maus! (KSA 10, 539).

Somente tolo! Somente poeta! que eu fale em parábolas e balbucie como o fazem os poetas, e, na verdade, envergonho-me de ser ainda poeta (Z, Das novas e velhas tábuas, 247 [260-261]).

É digno de nota que Zaratustra com frequência tome posição em relação aos "poetas". O tema perpassa todo o livro. A forma como as posições de Zaratustra se desenvolvem é desconcertante: a sua postura parece dúbia. Na boca de Zaratustra, "poeta" tem uma designação ambivalente.

Em razão da inquietante forma literária do livro, o exame mais aprofundado dessa observação é algo de interesse. Teria Nietzsche se considerado um poeta quando escreveu o Zaratustra. A evidente diferença que a forma do texto tem em relação às suas outras obras levanta também a pergunta sobre se ou em qual sentido ainda se filosofa no Zaratustra.

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Coino já ocorreu anteriormente, a seguinte frase que Nietzsch faz Zaratustra proferir pode ser lida como uma espécie de cornen~ tário sobre essa problen1ática: "e, na verdade, envergonho-me de ser ainda poeta". Essa problemática ambivalência ligada à autodenominação "poeta" é transposta para enunciados de Zaratustra cujo caráter antagônico e mesmo · contraditório chama a atenção até de seus companheiros casuais. Zaratustra diz em uma oportunidade: Todo o imutável não é mais que uma parábola! E os poetas mentem demais (Z, Nas ilhas bem-aventuradas

110 [119]).

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Em um capítulo· localizado um pouco adiante - "Dos poetas" ' ele explicitamente evita fixar-se nesses enunciados anteriores: [... ] "Todo o imutável não é mais que uma parábola!" Já te ouvi falar assim - respondeu o discípulo - e então acrescentavas: "Mas os poetas mentem demais". Por que dizias que os poetas mentem demais? - Por quê? - disse Zaratustra. - Perguntas por quê? Eu não pertenço àqueles aos quais se pode interrogar qual o seu "porquê". Será de ontem por acaso a minha experiência? Há muito tempo que experimento os fundamentos das minhas opiniões. Precisaria ser um tonel de memória para poder guardar todas as minhas razões. Bastante me custa guardar as minhas opiniões e mais de um pássaro me foge. E às vezes me acontece encontrar em meu pombal um p~ssaro estranho para mim, que treme quando pousa na mmha mão (Z, Dos poetas, 163 [173]).

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Por fim, Zaratustra decide tomar uma nova posição: Que então te dizia Zaratustra? Que os poetas mentem demais? Contudo, Zaratustra também é poeta. Julgas então que ele falava a verdade? Por que o julgas? . O discípulo respondeu: - Eu creio em Zaratustra. Zaratustra, porém, meneou a cabeça a sorrir. - Não me salva a fé - respondeu - e sobretudo a fé em mim mesmo (Z, Dos poetas, 163-164 [173-174]).

À primeira vista Zaratustra parece aqui querer caprichosa e jocosamente confundir s~u discípulo com um paradoxo. "O poeta fala, os poetas mentem" como variação da frase forjada na Antiguidade: "O cretense diz, todos os cretenses mentem" - a formulação parece ter como primeiro objetivo criar dúvidas no jovem a respeito de sua fé na sinceridade de Zaratustra. Isso seria o caso para Zaratustra. Ele rejeita o jovem que o segue cegamente, ele não quer ver fundada nenhuma comunidade de fiéis.

Por essa razão Zaratustra retorna à sua solidão no final do primeiro livro e até adverte seus companheiros sobre si mesmo: De todo o coração vos dou este conselho: afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado. [... ] Vós me venerais; mas que ocorreria se um dia tombasse por terra a vossa veneração? Cuida-vos de que não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Vós sóis meus fiéis; mas que importam todos os fiéis! Vós não vos havíeis buscado ainda; então me encontrastes. Assim fazem todos os fiéis; por isso é a fé tão pouca coisa. Agora vos mando que me percais e que encontreis a vós mesmos; e só quando todos me tenham rene-

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\ voltarei para vós (Z, Da virtude dadivos

ga d o, ' [111-112]).

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. deixa a seus seguidores nenhuma verdade Zaratustra na 0 . que ita devotamente. Em lugar disso, ele os exort pudesse ser ace . . . aa ar perspectivas individuais. Em favor de planos pr' sen1pre buse . . oprios, Zaratustra até mesmo exige que mes~re~ e doutrinas sejam "desmentidos", mais ainda, que o mestre seJa envergonhado''. A pretensão a um único meio de salvação ou ainda a uma única ver-

dade universal é, pois, recusada: Experimentar e interrogar: é a minha maneira de avançar, e, na verdade, é preciso aprender a responder a semelhantes perguntas. Eis o meu gosto [... ]. "Este é agora 0 meu caminho: onde está o vosso". Era o que eu respondia aos que me perguntavam "o caminho". Que 0 "caminho", na verdade ... o caminho não existe (Z, Do espírito de pesadume, 245 [258]) .

A paradoxal autodenominação de Zaratustra como poeta que mente muito não é, contudo, apenas um meio pedagógico de ajuda para trazer incerteza ao jovem em suas crenças. A ferroada é mais profunda. O jovem se "enerva" com Zaratustra; entretanto, quem envergonha Zaratustra não é o jovem, mas antes o próprio Zara-

tustra: "na verdade, envergonho-me de ser ainda poeta" (Z, Das novas e velhas tábuas, 247 [260-261]). O que há de lúdico na observação à primeira vista paradoxal perde-se no decorrer do diálogo: Mas supondo que alguém dissesse seriamente que os poetas mentem demais, ele teria razão: nós mentimos demasiadamente (Z, Dos poetas, 164 [174]).

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Ainda resta a constatação de que, de fato, os poetas mentem deinasiadamente. Essa constatação não soa muito animadora. De forma bem dramática o "canto da melancolia": Enamorado da verdade? Tu? -Assim zombavam de ti_ Não. Apenas um poeta! Um animal, um astuto rastreador de caças, Que precisa mentir, Que sabidamente, voluntariamente precisa mentir: Cobiçador de presas,

Mascarado de cores vivas Larva de si mesmo, Presa de si mesmo Este é o enamorado da verdade? ... Não, apenas um tolo! Apenas um poeta! (Z, Canto da melancolia, 371-372 [371]). Assim caí eu mesmo, outrora, Da minha loucura de verdade, Dos meus anelos do dia, Fatigado do dia, enfermo de luz. Assim caí para o acaso, para as sombras ... Abrasado pela sede, Nada mais aspirando que a uma verdade. Recordas-te, coração ardente, recordas-te, Como então estavas sedento? Que eu fique desterrado De toda a verdade! Apenas um tolo! Apenas um poeta! (Z, Canto da melancolia, 374 [372]).

É algo constitutivo da dinâmica do poema que as vozes que no início ressaltam sardonicamente a insinceridade do poeta não sejam aquelas que têm a última palavra. A última palavra é de quem conduz o "canto da melancolia", expressando - mesmo "enfermo de luz" -, relativamente à penetrante e desilusiva verdade "una", sua exigência de ilusão, de inveracidade. Ele formula sua "sede" por ficar "d ,,, esterrado de toda a verdade! Apenas u1n tolo! Apenas uin poeta.

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Contudo, aquele que conduz o canto não é Zaratustra, mas 0 "velho feiticeiro" - portanto, um ilusionista ou artista da ilusão Antes de iniciar seu canto, ele confirma a diferença que existe entr~ ele e Zaratustra: U]á se apodera de mim o espírito maligno e falaz, 0 rneu espírito feiticeiro, o den1ônio da melancolia, que é o adver, sário irredutível de Zaratustra. É preciso desculpá-lo! [...] A todos os que, como eu, sofrem do grande asco, vós, para quem morreu o antigo Deus e para quem não existe ainda no berço, envolto em faixas, nenhum deus novo; a todos vós é propício o meu espírito maligno, 0 meu demônio encantador (Z, O canto da melancolia )

370 [370]).

A ausência de consolo religioso e metafisico e, finalmente, 0 asco pela existência levam a uma fadiga e a uma melancolia que tornam desejável a ilusão como meio de consolo e salvação, além de recusarem a verdade como algo prejudicial à vida. Ao passo que no início de sua exposição o "velho feiticeiro" apresenta Zaratustra como adversário, pouco depois disso ele faz uma curiosa insinuação: também Zaratustra pode ser apenas um espírito enganador com outra roupagem, uma ilusão a mais que é evocada contra o "grande asco": [... ] conheço também este.duende que estimo apesar de tudo, este Zaratustra. As mais das vezes parece-me uma lavra de santo. Parece-n1e reconhecer nele o novo e estranho artifício, no qual se compraz o meu espírito maligno, meu demônio da melancolia [... ] (Z, O canto da melancolia).

A insinuação do velho feiticeiro corresponde, por um lado, à autodesignação de Zaratustra como devendo ser poeta, e, por

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Outro , encontra uma equivalência ainda mais dese nvo lv1·da no ca-

pítulo "Dos poetas": A verdade é que . sempre nos senti.mos atra1,d·os para o alto, para . o reino das nuvens·, e la' colocamo s os nossos maneqmns de cores abigarradas, que chamamos de deuses e de além-dos-homens. Como são bastante leves todos esses deuses e além-dos-homens para poderem ocupar esses lugares. Ah! Como estou cansado de toda essa deficiência, que se empenha em ser importante a qualquer preço! Ah! Como estou cansado dos poetas! (Z, Dos poetas, 164-165

[174-175]).

O termo "além-do-homem", até aqui mencionado sempre em oposição a "Deus" e "deuses, é de um só golpe evocado ao lado desses. Será que também o além-do-homem, no início ainda "professado" por Zaratustra, é um produto poético no pior sentido do termo, uma ilusão pura e simplesmente? Também aqui surge novamente a marcante dificuldade que, no Zaratustra, se liga ao termo "poeta". Mazzino Montinari aponta a ligação entre os problemas pessoais e também filosóficos que, para Nietzsche, foi exposta pela ruptura com Richard Wagner: Como veremos, o verdadeiro problema da forma de Assim falava Zaratustra está intimamente ligado com a dificuldade de Nietzsche, ou ainda, sua impossibilidade de exprimir-se "como poeta", com sua condenação da poesia como algo que se opõe à verdade. "Poesia e verdade", aquilo que, para Goethe, ainda era possível, não o é mais para Nietzsche. Na quarta parte de Assim falava Zaratustra o feiticeiro (no qual_reconheceram-se com muita razão, certos traços de Richard Wagner) la~enta, em seu "canto da melancolia"' estar

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"desterrado de toda a verdade! Apenas um tolo! Ap enas um poeta!" Antes de colocar essas palavras na boca d 0 Feiticeiro-ator-Wagner, Nietzsche havia concebido . esse poema para si mesmo, em con1unto com toda uma sé . , 1o "O poeta - tortura drie de esboços poéticos, so b o tltu criador" (KSA 11, 31 O). Nessa tortura Nietzsche reco~ nhece novamente sua própria proximidade e rivalidade com Wagner, que era, com plena convicção, poeta, artista e "ator" (MM, 85).

A proximidade entre Nietzsche e Wagner encontra-se documentada nos escritos do período nietzscheano na Basileia. Aqui ele ainda atribui à ilusão estética um papel necessário na produção e manutenção da cultura: "[E] u creio: aferrar-se conscientemente na ilusão e incorporar-se forçosamente a ela como base da cultura [... ]. W[agner] está sujeito ao primeiro perigo" (KSA 10, 507). Pelo menos desde Humano, demasiado humano Nietzsche rompe com essa justificação da ilusão estética. O nome de Wagner, assim, não aparece uma única vez sequer e1n Humano, demasiado humano. Ora, em sentido negativo o poeta pode surgir como o criador de além-mundos estéticos e como instrumento de fuga. Contudo, o que se pode "aprender" com os poetas é a forma como eles lidam com margens de ação: uma imagem do possível, da posição de perspectivas: Afastar-se dos objetos até fazer desaparecer um bom número dos seus pormenores e obrigar o olhar a acrescentar-lhes outros para que possa ainda vê-los; escondê-los com um ângulo de maneira a descobrir apenas uma parte; dispô-los de tal modo que se entremascarem em parte e só permitam que o olhar mergulhe na sua perspectiva; olhá-los com vidros de cor ou à luz do poente;

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dar-lhes uma superfície, uma pele, que não seja completamente transparente; tudo isso nos é necessário aprender com os artistas, e, quanto ao resto, ser mais sábios do que eles. Porque a sua força subtil se detém geralmente no ponto onde acaba a arte e começa a vida; mas só queremos ser os poetas da nossa vida, e em primeiro lugar nas mais pequenas coisas, nas íntimas banalidades do cotidiano! (KSA 3, 538).

Em sentido positivo, o termo "poeta" se refere aqui a uma existência formativa. A capacidade do poeta de formar perspectivas não deve limitar-se, contudo, ao estreito âmbito da arte, não deve produzir uma mera ilusão estética. Ademais, essa capacidade de formação de perspectivas de fato possíveis pode ser constituída sem que seja preciso envergonhar-se da própria autenticidade. Trata-se, aqui, do avesso positivo da autodesignação de Zaratustra como poeta. Nietzsche se refere a esse avesso já na Aurora: Das virtudes futuras [... ]. Ah, se os poetas voltassem a ser o que devem ter sido outrora: - videntes que nos dizem algo do que é possível! [... ]. Se nos fizessem perceber antecipadamente algo das virtudes futuras! Ou de virtudes que jamais existirão na Terra, embora já pudesse haver em algum lugar do mundo - de constelações purpúreas e grandes vias lácteas do belo! Onde estão vocês, astrônomos do ideal? (KSA 3, 321-322).

É possível citar o seguinte trecho do Zaratustra como substituto para muitas passagens nas quais o lado positivo da faceta "poeta" é mostrado na obra: Ensinei-lhes todos os n1eus pensamentos e aspirações: a concentrar e a unir num todo o que no homem não é mais que fragmento e enigma, e pavoroso acaso. Como poeta, como decifrador de enigmas, como redentor do acaso, ensinei-os a serem criadores do futu-

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ro e a salvar com a sua atividade criadora tudo q uan, to foi. Salvar O passado no homem e transformar tudo "o · que f que foi", ate,. que a vonta de d.1ga: "Mas eu qms . Assim . o l1ei. d e querer.' ,, ( , Das antigas . assim! eosse da novas tábuas, 248 [262]). s

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Tainbém essa passagem pode ser lida como um autocomentá, rio. Uina passagem semelhante contém uma formulação até mais aguda: "eu ando entre os homens como entre fragmentos rompidos do futuro; desse futuro que os meus olhares aprofundam. E todos os meus pensamentos e esforços tendem a condenar e a unir, numa coisa só, o que é fragmento e enigma, e espantoso acaso" (Z, Da redenção, 179, [191]). Os próprios homens se tornam fragmentos rompidos do futuro que, antecipando-os, a poesia de Zaratustra reúne. Também o próprio Zaratustra não é uma só coisa. Um pouco antes da publicação, Nietzsche risca uma frase em que é dito: "Pois que [eu não seja u1na peça inteira, mas uma multiplicidade, um excesso, ao mesmo tempo uma escassez - ) [... ] isso eu adivinho com frequência das suas palavras e perguntas sobre mim" (KSA

14, 307). A formulação dá indícios sobre o sentido em que o livro e o tipo Zaratustra podem ser "poesia": como tentativa de uma perspectiva futura ainda assim possível. Sobre isso, Nietzsche faz u~a anotação no inverno de 1882/1883 sobre o rumo pelo qual a arte seria ainda pensável para ele: Meu rumo da arte: não continuar fazendo poesia onde estão os limites! Mas o futuro do hon1en1! É preciso haver muitas imagens pelas quais seja possível viver! (KSA

10,183).

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pensamentos como experimentos - A sinceridade de zaratustra Sincero - assim. chamo aquele que segue seu D eus pe os 1 desertos,_ depois de ter despedaçado O coraçao h . c e10 d e veneraçoes. Na areia bravia, queimado do sol, morrente; olha obliquamente algumas vezes para as ilhas de numerosas fontes, onde os vivos repousam sob a alfombra das árvores [... ].

É no deserto que sempre viveram os sinceros, os espíritos livres, senhores do deserto [... ] (Z, Dos sábios célebres, 133 [142] ).

Zaratustra, o ímpio ou sem-Deus, é, segundo sua própria definição, um sincero e espírito livre. O fato de que ele, ademais e problematicamente, seja também um poeta, indica quão difícil é caracterizar a específica sinceridade de Zaratustra. Há outras figuras que contrastam com a sinceridade de Zaratustra: aquele que conhece, sábio, cientista, erudito ou, ainda, enganador e mentiroso. Mesmo o poeta, na medida em que é um artista da ilusão, está incluído nesse grupo. Cada uma dessas figuras contrastantes dá contornos mais precisos à sinceridade particular de Zaratustra. O próprio fato de que Nietzsche tenha introduzido tantas figuras contrastantes indica que a sinceridade de Zaratustra é uma faceta problemática dessa figura. A paisagem em que caminha o sincero é o deserto, um ambiente extremamente hostil à vida. Daqui ele "olha obliquamente algumas vezes para as ilhas de numerosas fontes, onde os vivos repousam sob a alfombra das árvores". Essa hostilidade à vida retorna na imagem de uma vivissecção particular: 97 Digitalizado com CamScanner

o espírito é a vida que corta em sua, própria carne• . d' 'seu

tormento aumenta-lhe o sa ber - sa b1e1s isso? [... ] Vós conheceis as cintilações. que lança o . espírito, rn as . vós não vedes que é uma b1gorna; 1gnora1s a crueldade do seu martelo. n-. N a verdade ' não conheceis o orgulho do espírito' e .,,e. nos ainda suportaríeis a modéstia do espírito, se ela quisesse falar! (Z, Dos sábios célebres, 134 [143]).

O orgulho do espírito pode ser caracterizado - para mantermo-nos nessa imagem - como a realização de cortes mais profundos ou golpes mais pungentes, o questionamento sempre mais radical; a modéstia do espírito, como a espera sempre mais paciente pelos cortes e golpes que representam tal questionamento - ser a bigorna para o martelo. A vivissecção do espírito, que é a vida "que corta em sua própria carne", contém um momento de risco. O espírito põe em risco a vida e, com isso, ao mesmo tempo põe a si mesmo em risco. Nietzsche expõe esse risco também em A gaia ciência: O pensador: eis agora o ser no qual a necessidade da verdade e os erros antigos que mantêm a vida se dão o seu primeiro combate desde que a necessidade da verdade se afirmou também como uma força que conserva a vida. Dada a importância desta luta, tudo o mais é indiferente; ela enuncia a última pergunta sobre a condição da vida, e faz a primeira tentativa para lhes responder com a experiência. Até que ponto a verdade suporta a assimilação~ Tal é esta pergunta, tal é esta experiência (KSA 3,471).

Aqui é feito um experimento com a vida e a verdade. A pergunta que precisa ser esclarecida pode ser muito bem lida em seu reverso: no experimento é também testado O quanto de verdade a vida tolera.

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"espírito" nesse sentido, o "espírito livre", coloca em dúvida todas as certezas, todas as perspectivas tomadas geralmente por verdadeiras e vinculantes. Consequentemente, ele é combatido con1o u1n perigoso causador de agitação: Mas aquele que o povo odeia, como o ódio do cão ao lobo, é o espírito livre, o inimigo das algemas, o descrente que apavora as florestas. Escorraçá-lo do seu esconderijo é o que o povo sempre chamou de "senso de justiça"; e lança além disso sobre o solitário suas dentuças mais ferozes (Z, Dos sábios célebres, 132 [141]).

Os sábios célebres Os "sábios célebres" podem ser considerados um primeiro contraste em relação ao sincero e aos espíritos livres. Eles são em geral reconhecidos e célebres, pois, ao invés de questionar certezas, confirmam obrigações e teorias da verdade universais, dando-lhes um acabamento sistemático: Vós todos, sábios célebres, não tendes sido mais do que servidores do povo e da superstição popular, e não os servidores da verdade. E eis por que tendes recebido honrarias (Z, Dos sábios célebres, 132 [141]).

Decerto, os "sábios célebres" servem como um instrumento de contraste; contudo, seria muito simples concebê-los como meros vilões. Eles também têm sua função e podem, bem ou mal, cumpri-la: Não que eu o queira; mas eles permanecem ante meus olhos como animais domésticos e bestas de trato, mesmo sob anéis cobertos de galões.

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vezes são bons servidores, dignos de lo

E muitas . " d . uvor. . assim fala a virtude: Se eves servir, procur . . , . ,, l ] aa P01s ,

teus serviços se1am 1na1s ute1s .... que1n , . , 'd d Na verdade, sab10s c~lebres~ servi ores o povo, vós vos tendes engrandecido a medida que aumentam O espírito a virtude do povo, e o povo cresceu graças a vós. Eu 0 edigo em vossa honra! (Z, Dos sa'b.10s ce'le bres, 133 [14 )). 2

Essa apreciação não é irônica. É apreciado o papel que as certezas dos sábios desempenham na conservação e desenvolvimento das sociedades humanos. Isso deve ser comparado com a apreciação e O simultâneo questionamento da "doutrina da finalidade da

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existência" em A gaia ciência:

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O instinto de conservação, esse instinto que tanto reina nos homens superiores como nos mais grosseiros, transparece de tempos em tempos sob a aparência da razão ou da paixão intelectual; arrasta então a seu lado uma escolta completa de razões cintilantes e procura fazer esquecer a todo o custo que no fundo não é mais do que instinto, inclinação, loucura e ausência de razões! É preciso amar a vida, porque!. .. O homem deve trabalhar na sua vida e na dos seus semelhantes, porque!... E outros "deve-se", e outros "é necessário", e outros "porque" de ontem, de hoje ou de amanhã! É por isso que aquilo que acontece sempre necessariamente, aquilo que acontece por si mesmo e sem nenhuma espécie de finalidade aparece de ora em diante como tendendo para uma finalidade e parece ao homem razão e mandamento supremo, é por isso que o mestre de moral sobe para a sua cátedra de professor de " finalidade da vida" [... ). Não se pode negar que a longo fJra zo o riso, a natureza e o bom-senso vencerão estes grandes doutrinadores de finalidades [... ]. Mas, apesar deste sorriso corretor, a natureza humana, no fim das contas, foi modificada pelo incessante regresso destes doutrinadores da finalidade

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da existência [....]., O tornou-se pouco a pouco . . homem . mn_ anima1 qu1i:n:nco CUJa existência está submetida a ina1s uma .cond1çao do que a dos outros an·im ais. · . o hornem P:ecisa de temp,o~ em tempos acreditar saber por que existe; a sua especie não pode prosperar sem um confiança periódica na vida! (KSA 3, 371-372). ª

o espírito livre incomoda por questionar as finalidades existentes e obrigações universais, nas quais se fundam as confianças para viver. Para uma vi.da e uma ação seguras de si, que não necessitam da confiança estimulada por objetivos e certezas, tais perturbações trazidas pelo espírito livre não representam ameaça alguma, podendo ser, ao invés disso, desafios e mudanças: Vós [sábios célebres] sois tepidez para mim; porém, todo conhecimento profundo flui gelidamente. Gélidas são as fontes mais íntimas do espírito; um deleite de mãos e ações cálidas (HZ, 134 ). Dessa forma, Zaratustra opõe à sabedoria dos "sábios célebres" sua própria "sabedoria selvagem". Ela não é a confirmação de certezas e obrigações, mas um encorajamento para a incerteza e descoberta de novas perspectivas, para a qual a viagem pelo mar torna-se um símbolo: Tal qual um veleiro, tremulando diante da impetuosidade do espírito, minha sabedoria vai ao mar - minha sabedoria selvagem! (HZ, 135).

O escrupuloso do espírito Também o "escrupuloso do espírito", que, ao lado de Zaratustra, pode ser tomado comparativamente como o "sincero", trata

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de verdades certas. Diferentemente dos sábios célebres, que conf . , . . lt, xnanl e dão n1 ais segurança aos 1u1zos un1versa1s como certezas 0 "escrupuloso do espírito" conhece o espírito examinador e qUes, ' t ionador, que corta a vida na própria carne. Para ele, contudo , as provações têm um objetivo: ele "vai a fundo nas coisas", busca encontrar, por meio de tentativas cada vez mais tenazes, ao menos u1n ponto de partida seguro: Eu sou o escrupuloso do espírito - respondeu o interrogado; - e nas coisas do espírito é difícil alguém conduzir-se de forma mais rigorosa do que eu, exceto aquele de quem a aprendi, o próprio Zaratustra. Antes não saber nada do que saber muitas coisas pela metade! Antes ser tolo por meu próprio critério do que sábio segundo a opinião dos outros! Eu, por mim, vou a fundo nas coisas. Que importa que esse fundo seja pequeno ou grande, que se chame ou pântano ou céu? Um pedaço de terra do tamanho da mão me basta, contanto que seja uma verdadeira base (Z, A sanguessuga, 311 [317]).

Mais tarde, como hóspede na caverna de Zaratustra, o "escrupuloso" enuncia ainda mais nitidamente qual é a motivação para sua busca: o medo do incerto e a busca pela certeza: Nós buscamos coisas diferentes também aqui no alto, vós e eu. Pois eu procuro mais certeza, por isso me aproximei de Zaratustra, que é a torre e a vontade mais firme[ ...]. O sentimento inato e primordial do homem é o medo; pelo medo se explica tudo; o pecado original e a virtude original. A minha própria virtude nasceu do medo: chama-se ciência (Z, Da ciência, 376-377 [374]).

O escrupuloso do espírito tem u1na "consciência moral intelectual". Algo que, como Nietzsche nota quase dolorosamente no início de A gaia ciência, falta à maioria das pessoas:

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A consciência moral intelectual - N unca mais . aca bo . de refazer [.. .. ]· ,,ía[ta consctencta .,. • . a segumte , experiência . n1oral. intelectual a maior parte das pessoa s [... ]. Q uero dizer isto: que a maior parte das pessoas não acha desprezível acreditar nisto ou naquilo e agir de acordo com isso sem ter pesado o pró e o contra, sem ter tomado consciência profunda das suas supremas razões de agir, sem mesmo se ter incomodado a inquirir essas razões; os homens mais dotados e as mulheres mais nobres também fazem ainda parte desse "grande número"[ ... ]. Mas encontrar-se plantado no meio desta rerum concordia discors, desta maravilhosa incerteza, desta multiplicidade da vida, e não interrogar, não tremer com o desejo e a voluptuosidade de se interrogar, de nem sequer odiar aquele que o faz, talvez troçar disso até ficar doente, eis o que eu acho desprezível[ ... ] (KSA 3,373).

O ethos da autenticidade do próprio Nietzsche fala a partir do "escrupuloso do espírito", também aquele despreza, por essa atitude, a falta de escrúpulos nos outros: A minha consciência moral do espírito exige-me que eu saiba uma coisa e ignore o restante. Tenho horror de todos os semissábios, de todos os nebulosos, flutuantes e v1S1onários. Onde cessa a minha autenticidade, sou cego, e quero ser cego. Mas onde quero saber, também quero ser autêntico, isto é, duro, servo, estreito, cruel, implacável. O que tu disseste um dia, Zaratustra, "que a inteligência é a vida que esclarece a própria vida", foi o que me conduziu e me atraiu à tua doutrina. E, na verdade, com o preço do meu próprio sangue, aumentei o meu próprio saber (Z, A sanguessuga, 312 [318]).

Com meios metafóricos extremos Nietzsche se refere à especificidade dessa figura. O espírito, que corta a vida até a carne,

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a aqui em uma sanguessuga que o "escrup se trans fo rm . u1os 0 d , ·to" coloca em s1 mesmo: o esp1n Então és talvez aquele que procura conhec er a s g uessuga? - perguntou Zaratustra. - Tu , O escrupuJan. so estudas a sanguessuga em busca dos seus , . 0, Uh~ 1 0 fundamentos? s _ ó Zaratustra ! - respondeu o pisado. - Isso ser· ' . . ia u~a monstruosidade! Como me atrevena a ter tais inte , . h ,, , b d nçoes1 o que eu domino e con eço e o cere ro a sangues · . suga: é esse o meu universo! (Z, A sanguessuga, 311 [31 l ]). . .... . 1

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A busca por fundamentos seguros, que se revela a verdadeira motivação de seus questionamentos, levou o escrupuloso ao cérebro do sanguessuga. Ele se refere, aqui, à busca por um fundamento seguro. Contudo, isso soa bizarro e, à luz da grande tarefa de encontrar um fundamento seguro, fútil. Nesse contexto, são elucidativos dois esboços da figura do "escrupuloso do espírito" provenientes do inverno de 1884/1885. A primeira referência se encontra em uma lista de figuras que Nietzsche previa para o quarto livro do Zaratustra: O adorador dos facta. "O cérebro do sanguessuga", tomado por um arrependimento, por descomedimento, pretende se liberar! A mais refinada consciência moral intelectual [... ] (KSA 11, 362).

O ethos da autenticidade torna-se "arrependimento", "remorso" ou "má consciência moral", torna-se a insatisfação consigo mesmo. O fato de o "escrupuloso do espírito" colocar um sanguessuga em si mesmo reflete o esforço de, por meio do recurso a fatos puros, poder finalmente suspender, em si mesmo, os próprios - "mais refinados" - escrúpulos:

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ele tem frios olhos ressequidos, diante dele todas as coisas se encontra1n depenadas e sem cor ele sofre de sua ,, . . ' propna impotência para mentir, denominando-a "vontade de verdade!" (KSA 11,405).

O aspecto de tornar-se, a partir dos escrúpulos, o "adorador dos facta", encontra uma correspondência também na coleção de materiais: eles residem no ventre de pequenos fatos redondos, eles beijam os pés da poeira e do excremento, eles se regozijam: "Eis aqui, finalmente, a realidade!" (KSA 11,406).

É interessante a réplica de Zaratustra contra a certeza que o "escrupuloso" crê ter encontrado em seus fatos: - Você não percebe que está sonhando: ah, você está bem distante de estar desperto! [... ] - Como ocorre que a verdade obtenha aqui a vitória? Será que um grande erro a ajudou? - Aqui você é cego, pois aqui cessa sua autenticidade (KSA 11, 406).

A combinação dessas formulações esclarece a passagem que se encontra na versão final do capítulo "A sanguessuga" no Zaratustra: Onde cessa a minha autenticidade, sou cego, e quero ser cego. Mas onde quero saber, também quero ser autêntico, isto é, duro, servo, estreito, cruel, implacável (Z, A sanguessuga, 312 [318] ).

A cegueira é proposital, sabiamente a durabilidade dos fatos não é questionada, pois o "escrupuloso do espírito" busca fundamentos duradouros e um local de descanso para seus escrúpulos intelectuais. Mesmo seu elogio a Zaratustra trai sua busca por tal

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.,.. ·a ,oral: "Bendito seja Zaratustra, a grand descanso da consc1enc1 11 ' e sciência 1110 ral !" (Z, A sanguessuga, 31 O[31 6]) sanguessuga d a con . Os eruditos Pois esta é a verdade: afastei-n1e da moradia dos eruditos e batendo atrás de mim a porta (Z, Dos sábios

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160 [170]).

As palavras que aqui Nietzsche coloca na boca de Zaratustra poderiain ser ditas por ele mesmo. A renún~ia à sua cadeira de professor na Basileia foi como un1 afastamento da "moradia dos eruditos" - neste caso, dos filólogos. A publicação de O nascimento da tragédia a partir do espírito da 1núsica enfrentou muita incompreensão e algumas críticas ferozes - de acordo com um panfleto da época, "ele [Nietzsche] desceu da cátedra da qual ele deveria ensinar ciência" (Ulrich von Wilamowitz-Mollerdorff, KSA 15, 40). A incompreensão dos colegas de profissão tambéin encontra aqut um eco: Eles querem ignorar que há alguém que caminha acima de suas cabeças; por isso puseram entre 1nim e suas cabeças madeira, terra e imundícies. Assim abafaram o ruído dos meus passos; e até agora ninguém tem menos ouvido que os mais eruditos (Z, Dos eruditos, 162 [171-172]).

Além de todas as referências biográficas ao próprio Nietzsche, n~o se deve esquecer, porém, que també1n os "eruditos" pode111 ser vistos con10 un1 contraste à sinceridade de Zaratustra. Dessa forma, é di~no de nota que, ainda assim, também Zaratustra tenha permanecido algum ten1po na "n1oradia dos eruditos" e que lhe possa ser acusado - mesn10 que por· uma ove ]l1a - nao ~ · un1 erudito: · ser 1na1s

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Enquanto eu dormia, uma ovelha veio pastar a coroa de hera sobre a tninha cabeça; e, ao pastá-la, dizia: "Zaratustra não é mais um erudito". E tendo falado assim, saiu com orgulho e orgulhosa. Uma criança foi quem me contou. Gosto muito de vir estirar-me aqui, onde as crianças brincam ao longo do muro em ruínas, entre cardos e papoulas vermelhas. Para as crianças, como também para os cardos e para as papoulas vermelhas, ainda sou um erudito. São todos eles inocentes até em suas maldades. Mas para as ovelhas não sou mais um sábio; assim o quer a minha sorte e eu as bendigo. Pois, na verdade, afastei-me da moradia dos eruditos, e batendo atrás de mim a porta. Minha alma jejuou bastante em suas mesas; não estou ajustado como eles para o conhecimento, como para um quebra-nozes (Z, Dos eruditos, 160 [170]).

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A observação de Zaratustra de que para "crianças", "cardos" e "papoulas vermelhas" ele ainda é erudito pode ser lida como uma indicação de que ao menos alguns aspectos da erudição são ainda reconhecidos. Em uma das sentenças que Nietzsche incluiu parcialmente no Zaratustt;a é feita uma distinção entre dois tipos de eruditos: Eruditos: assim são denominados hoje tanto os soldados do espírito como - infelizmente - também os trabalhadores braçais do espírito (KSA 10, 390).

No capítulo "Dos eruditos" o segundo aspecto surge quase textualmente. Ao invés de "soldados do espírito", os eruditos são "ajustados para o conhecimento, corno para um quebra-nozes". Por mais que tal afirmação tenha grande dose de escárnio, há nela também uma espécie de homenagem: por extração, por assin1 di-

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. . . nin etn seu ,nétier um trabalho independ r os eruditos rea 1tz, , ente

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d conhecirnento, algo que, e1n Alent do ben1 e do 1na/

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Nietzsche nega aos filósofos ate aqui: É certo: entre os eruditos, entr_e os homens verdadej. rame1lte Cl·entíficos' pode ser diferente - "melhor'' , se quiserem; nesse caso pode haver realmente algo corno um impulso a conhecer, al~um peq~eno mecanismo autônomo que, uma vez acionado, poe-se a trabalhar animadamente, sem que qualquer outro impulso tenha participação essencial. Por isso os verdadeiros "interesses" do erudito se acham normalmente em outra pane talvez na família, na obtenção de dinheiro ou na políti~ ca; quase não faz diferença se a sua pequenina máquina é empregada nesta ou naquela área da ciência [... ]. Ele não é caracterizado pelo fato de se tornar isso ou aquilo. No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal [... ] (KSA 5, 20).

A multiplicidade e variedade de conhecimentos específicos conscientemente elaborados pelo erudito - assim Nietzsche começa o trecho - contrapõe-se à "confissão pessoal" dos grandes filósofos: Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de n1emórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou •imorais) de toda a filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira (KSA 5, 19-20). O momento do que é pessoal e próprio, encontrado por Nietzsche nos filósofos - diferentemente do que ocorre com os eruditos-, assirn como o "desabrochar", que a isso se liga, de um gérmen vital característico, é tan1bén1 o que distingue Zaratustra dos eruditos: 108 Digitalizado com CamScanner

Sou demasia?a1:1ente ardente, demasiado queimado pelos meus propnos pensamentos; muitas vezes perdi 0 alento. Necessito então o pleno ar, longe de todos os comportamentos poeirentos. [... ] Eles são hábeis, dedos destros; que pode a minha simplicidade contra a sua complexidade? Seus dedos entendem habilmente todas as maneiras de fiar, ajuntar e tecer os fios; assim eles fazem o trabalho braçal do espírito (Z, Dos eruditos, 160-161 [170-171]).

Portanto, a vantagem dos eruditos em relação aos filósofos não reside, em um segundo olhar, no fato de eles oferecerem um conhecimento impessoal e independente. Zaratustra se coloca soberanamente acima deles: Mas, apesar de tudo, meus pensamentos se movem acima de suas cabeças, e até se me faço levar por meus próprios defeitos, eu me encontraria ainda acima de suas cabeças. Pois os homens não são iguais. E o que eu quero, eles não têm o direito de o querer! (Z, Dos eruditos, 162 [172]).

Essa atitude espiritualmente aristocrática, na qual mesmo os erros de Zaratustra são colocados acima da autenticidade e o mérito dos eruditos, é fundamentalmente antidemocrática: A declaração de independência do homem científico, süa emancipação da filosofia, é um dos mais sutis efeitos da ordem e desordem democrática: a autoglorificação e exaltação do erudito se encontra hoje em pleno florescin1ento e na mais viva primavera - com o que não se quer dizer que, nesse caso, o elogio de si mesmo tenha cheiro agradável (KSA 5, 129).

Nietzsche afirma aqui a necessidade de proteger, de todo desenvolvimento histórico o direito e até mesmo a necessidade de pers-

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. N •são de Nietzsche, a autoconfiança dos ''h · pessoais. a vi opecuvas , . ,, a-se desmesurada quando pretende, no ârnb· cient1f1cos torn . . 1n1ens . _ . 'f" a colocar-se acima de perspectivas pessoa· to da exaudao c1ent1 ic ' is. . . de A gaia ciência Nietzsche propõe uma refl No quinto 1ivro . , e.f. Idades e pretensões do filosofo em relação a xão sobre as d i icu os eruditos e cientistas: Talvez, nós, filósofos, estejamos to~os _hoje em má posição perante O saber humano, a c1enc1a a~menta, e os mais eruditos de nós estão perto de descobrir que sabem muito pouco. Mas será pior se suceder de outro modo, será pior que saibamos demais; o nosso dever é, em primeiro lugar, não nos tomarmos por outros. Nós somos mais alguma coisa do que eruditos, ainda que, fatalmente, sejamos também isso (KSA 3, 635).

Os adeptos do conhecimento puro Uma característica que distingue os eruditos de Zaratustra os une com os "adeptos do conhecimento puro": a sua tentativa de considerar os objetos de investigação com o olhar de um não participante ou espectador: Mas eles estão sentados à fresca, sob a sombra fresca; eles querem ser apenas espectadores, e cuidam-se de sentar sobre os degraus queimados pelo sol (Z, Dos eruditos, 161 [170]).

Esta é também uma marca dos "adeptos do conhecimento puro": a pretensão de ser espectadores e observadores perfeitamente imparciais e sem interesse próprio: O passo do homem autêntico fala; mas o gato deita-se em ruído sobre o solo. Ora, a lua se aproxima com passos aveludados, como um gato, e sem autenticidade. -

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Eu vos dedico esta parábola hipócritas sent· . " d d . ' 1menta1s, ~ ept~s o conhecimento puro". Eu vos chamo: libidinosos. [... ]. E eis como v~sso espírito abusa de si mesmo: "o ideal, a meu ver, sena olhar a vida sem nenhum desejo e não estendendo a língua como um cão" [... ]. ' Ousai, pois, acreditar um pouco em vós mesmos e no que tendes nas entranhas! Quando não cremos em nós mesmos, mentimos [... ]. Na verdade, sois capazes de enganar, ó "contemplativos"! Outrora até o próprio Zaratustra foi enganado pelas vossas carapaças divinas; ele nem presumia de que corrente de víboras elas eram habitadas. Acreditei outrora ver uma alma divina brilhar e~ vossos brinquedos, adeptos do conhecimento puro. Outrora eu não conhecia arte superior que as vossas artes! (Z, Do imaculado conhecimento, 156-158 [166-168]).

Segundo Zaratustra, a atitude dos "adeptos do conhecimento puro" é suspeita. Ele lhes atribui autoengano: "Ousai, pois, acreditar um pouco em vós mesmos e no que tendes nas entranhas!" O capítulo "Do imaculado conhecimento" é também uma zombaria con1 os estetas e o "belo" por eles intuídos, o qual Immanuel Kant designa, em uma conhecida definição, como "o objeto do agrado sem qualquer interesse" (Immanuel Kant, Crítica da faculdade de julgar, I, cap. 1, § 6). Zaratustra fala aqui de uma outra beleza: Onde há beleza? Lá onde todo o meu querer me obriga a querer; onde quero amar e perecer para que uma certa imagem não permaneça unicamente imagem[ ... ]. E para cúmulo, eis que vossos ternos olhares de castrados pretendem ser a "contemplação"! E o que se entrega ao comovedor dos olhos tíbios, é o que deveria ser batizado de belo? Ó profanadores das palavras nobre! (Z, Do imaculado conhecimento, 157 [167]).

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Por meio da conexao com esta ma compreensão est' . et1ca d0 eJ· a belo _ conforme apresentada aqui - é possível t b' qu e S O arn ern vincular O enunciado de Zaratustra, "eu não conhecia arte su ,, l Perior que as vossas artes , com o a to apreço que por um 1 ong0 tempo o próprio Nietzsche teve pela arte. A censura que Zaratustra lança aos contemplativos adepto do conhecimento puro é sobre seu insignificante amor: s Na verdade, não é como criadores, como procriadores como amigos do vir a ser que amais a terra (Z, Do ima~ culado conhecimento, 157 (167]). A contemplação estética do "adepto do conhecimento puro" busca pôr-se à parte, apenas assistir amistosamente a existência. Zaratustra contrapõe seu amor maior, que não é desinteressado, mas, antes, vincula conhecer e intervir: Ela quer ser beijada e aspirada pela sede do sol; ela quer tornar-se brisa, altura e sendeiro de luz, e a própria luz. Na verdade, é com sol que amo a vida e todos os mares profundos. E eis em que consiste para mim o conhecimento: fazer subir toda a profundidade - até à minha própria altura (Z, Do imaculado conhecimento, 159 (169]). O conhecer de Zaratustra não é nem desinteressado e tampouco Zaratustra renuncia a uma interpretação e uma perspectiva própria. Ele propositalmente interpreta a "vida" de tal maneira que ela surge em sua melhor luz. Essa perspectiva é a de um laborar por um possível autoaperfeiçoamento da vida. No início do quarto livro a curiosa caracterização do conhecimento peculiar de Zaratustra é transposta em uma imagem detalhada. Tal qual um pescador, Zaratustra joga sua isca - seu conhecimento e sua

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Perspectiva de vida -, para, com isso , atrai·r., ed ucar e ate, mesmo "disciplinar" o máximo que puder. Abre-te e_ traze-me peixes e reluzentes caranguejos! Com a mmha melhor isca, isco hoje para mim os mais prodigiosos peixes humanos! Lanço ao longe a minha felicidade, arrojo-a a todas as paragens, entre o Oriente, o Meio-dia e o Ocidente a ' ver se não haverá muitos peixes humanos que aprendam a morder e a puxar pela ponta da minha felicidade. Depois, quando tenham mordido os meus agudos e ocultos anzóis, subirei até a minha altura, esses coloridos ga biões, pescados pelo mais maligno de todos os pescadores de homens. Porque eu sou, originária e fundamentalmente, força que puxa, que atrai, que levanta, que eleva: guia, disciplinador e educador, e não foi em vão que um dia disse a mim próprio: "Toma-te o que és!" (Z, A oferenda de mel, 297 [304-305] ).

O conhecimento de Zaratustra é, nesse sentido, educador e disciplinador. A espécie animal que deve ser cultivada, criada ou disciplinada por esse conhecimento é o homem. Nietzsche pode aplicar a expressão "disciplina" ou "criação" - também de forma provocante para sua época - ao homem, sem que, com isso, pudesse ter sido feita uma associação com os experimentos nazistas de criação de raças. No entanto, esse aspecto permanece problemático. Quando no Zaratustrà é feita menção a "disciplina", trata-se, porém, no sentido acima aludido, de uma disciplina por meio de conhecimentos, perspectivas e posições de valores. Ao qualificar o homem como animal, Nietzsche ressalta que ele não é nenhum ser de entendimento e espírito, que mecanismos fisiológicos e psicológicos são parte de pressupostos ocultos a ele mesmo. "Aquele que conhece" penetra nesses pressupostos com

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o Ih ar um Po uco mais profundo. Já em Hun1ano, . demasiado hu1na110 N 1·erzsche concebe o homem, nesse sentido, como urn ~ do-annna . l"·. "a1en1o além-do-animal - A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária, para não Ulll

sermos por ela dilacerados. Sem os erros que se acham nas suposições da moral, o homem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo mais elevado, impondo-se leis mais severas (KSA 2, 64 ).

Há uma réplica análoga desse parágrafo no Zaratustra. Aqui o "escrupuloso do espírito" relata: E o medo que mais foi inoculado no homem é o medo aos animais selvagens, inclusive ao animal que o homem oculta e receia em si, aquele a que Zaratustra chama "a besta interior" (Z, Da ciência, 377 [374]).

No sentido daquele que conhece, que conhece os pressupostos dos homens, Nietzsche formula no Zaratustra: Meus amigos, palavras satíricas chegam até o vosso amigo: - Olhem para Zaratustra! Não anda ele por entre nós como por entre animais? Mas seria preferível que dissessem: -Aquele que busca o conhecimento anda realmente entre os homens como entre animais (Z, Dos compassivos,

113 [123]).

Aquele que conhece não compara os homens com animais, para ele todos são ainda animais. Quando Zaratustra tenta puxar e disciplinar os homens na isca de sua felicidade seria um empreendimento totalmente infrutífero caso uma certa' maleabilidade e inconclusibilidade não pertencesse às características "biológicas"

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do homem enquanto ser vivo. Em um parágrafo de Genealogia da 111,oral Nietzsche caracteriza o homem neste sentido de um "animal

ainda não fixado" (KSA 11, 125). As chances e perigos do homem se coadunam com o fato de que esse ser vivo pode ser um experimentador de si mesmo na busca por aquilo que ele é: Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida - ele é o animal doente: De onde vem isso? É certo que ele também ousou, inovou, resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a natureza e os deuses [... ] (KSA 5, 367). A exortação que Zaratustra lança a si mesmo: "Torna-te quem tu és!", contém esse componente experimental: tornar-se aquilo que o homem é como ser vivo ainda não fixado, na medida em que na própria busca se examina aquilo que ele ainda pode ser. Pressupondo um grande interesse em tal busca de si, Zaratustra distingue claramente "conhecimento" e o agrado desinteressado do "adepto do conhecimento puro".

O penitente do espírito O espírito do poeta quer espectadores: fossem até

búfalos! Eu, porém, enfastiei-me desse espírito, e prevejo um tempo em que eles se hão de enfastiar de si próprios. Já vi poetas transformarem-se, e lançar contra si mesmos o próprio olhar. Vi aproximarem-se os penitentes do espírito; deles saíram os poetas (Z, Dos poetas, 166 [176]).

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o fato de que os poetas"mentern e que suas ilusões estéf . / tcas so-

bre a existência não são autenticas e o que co1npoe o lado ne gat1v . 0 do an1bivalente conceito de "poeta" enunciado por Zaratust ra.

Ora, chama a atenção não ser contraposto aos poetas nenhum iluminista ou cientista que descubra suas n1entiras. Em lugar disso Zaratustra anuncia que os poetas lançarão "contra si mesmos ~ próprio olhar" e que eles, por assim dizer, não podem mais aturar a si mesmos. O artista da ilusão e mentiroso não é, portanto, medido segundo um padrão externo, mas, antes, não mais suportam a si mesmos-ele se torna o "penitente do espírito". O velho feiticeiro, que é apresentado corno poeta, surge no quarto livro do Zaratustra como o "penitente do espírito" e entoa um canto de lamentação - ~ é, por isso, ofendido por Zaratustra: Neste ponto, porém, Zaratustra não pôde conter mais tempo, agarrou do bordão, e deu com todas as forças no que se lastimava. - Para! - gritou-l he num rir colérico - para, histrião! Moedeiro falso, inveterado embusteiro! Bem te conheço! (Z, O feiticeiro, 317 [321]).

Zaratustra não acredita que o velho feiticeiro é o "penitente do espírito" e que ele deseja sujeitar-se à frieza do pensa1nento: "acossado por ti, pensamento!" - como o feiticeiro dissin1t1la em seu canto. Essa narrativa-moldura, na qual o artista da ilusão pretende simular ser o "penitente do espírito", é desconcertante. Fica claro co1no a 1nentira se tornou insustentável. [... ] E, na verdade, penetraste bem nos n1eus pensamentos! Mas tu também ... tu me deste un1a prova apreciável do que sabes fazer. És rigoroso, sábio Zaratustra! Feres du-

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ramente com as tuas "verdades"; o teu nodoso bastão obriga-me a confessar... esta verdade! - Não me adules, histrião! - respondeu Zaratustra sempre irritado e com semblante sombrio. - És falso; por que falas da verdade? (Z, O feiticeiro, 317 [321]).

No momento seguinte do diálogo o velho feiticeiro esclarece quem ele pretende simular. Ele se refere explicitamente ao anúncio prévio do "penitente do espírito" feito por Zaratustra: Eu representava o papel do penitente do espírito - disse o velho -, foste tu que inventaste noutro tempo esta expressão: o poeta, o mágico que acaba por tornar o espírito contra si mesmo, o homem que tendo-se transformado interiormente se congela ao contato de sua má ciência, e de sua má consciência moral [... ] (Z, O feiticeiro, 318 [322]).

Segundo a explicação dada pelo velho feiticeiro, o "penitente do espírito" é um convertido, por si mesmo, à autenticidade intelectual, um convertido que "congela" ao contato com o conhecimento de si. Uma anotação de Nietzsche caracteriza no seguinte sentido o tipo designado pelo canto do feiticeiro: "aquele que ainda me ama - um espírito gélido [...]" (KSA 11, 342). O poema foi primeiramente concebido no próprio nome de Nietzsche, sem a múltipla refração da narrativa-moldura. Nietzsche traça - de forn1a consequente, no primeiro livro de seu esclarecimento radical, em Humano, demasiado humano uma linha de desenvolvimento histórico que, após a derrocada de ilusões religiosas e metafísicas, leva do artista ao sujeito imparcial do conhecimento: M as esses pressupostos [religiosos e metafísicos] são errados: Que lugar ainda tem a arte, após esse conhecimento?

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Antes de tudo, durante milênios ela nos ensinou a Ih . o ara vida em todas as formas, com mteresse e prazer: e ' . ' a 1evar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos· "S . - da arte de ter .p eJa como for, e, boa a v1ºd a " . Esta l.1çao . . ' razer na existência e de considerar a vida humana um ped . . aço da natureza, sem excessivo envo1v1mento, como ob· _ . . . Jeto de uma evoluçao regida por leis -: esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamente a luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento~... ]. O homem científico é a continuação do homem artístico (KSA 2, 185-186).

Aqui falta por completo o momento de um conhecimento que questione a vida, "corte a vida na carne". Chama a atenção, contudo, a distância do homem científico, que faz suas considerações "sem excessivo envolvimento" . O conhecimento desinteressado do "adepto do conhecimento puro" - sobre o qual Zaratustra fala que é como se ele também outrora acreditasse que "não há arte melhor [... ] do que vossas artes" - é abordado nesse livro anterior como o único sucessor legítimo da arte. A lista já mencionada de figuras para o quarto livro do Zaratustra fornece uma transição do artista, aqui o poeta, àquele que conhece. A mesma lista contém ainda duas outras figuras cujos traços encontram-se igualmente no velho feiticeiro: '

O poeta, no fundo desejoso de uma liberdade selvagem, escolhe a solidão e o rigor do conhecimento. [... ] O descobridor de novos meios de vertigem [Rausch-Mittel], o músico, o encantador, que finalmente se prostra diante de um coração amoroso e diz: "Eu não devo conduzi-los para mi1n, mas para aquele!"[ ... ] O gênio (como um delírio de loucura), congelando de falta de amor: "Eu não sou pensamento e tampouco Deus" - grande ternura. "É preciso amá-lo mais!" (KSA 11, 362-363).

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Nietzsche liga as características do gênio e do poeta no "espírito gélido", no "penitente do espírito". Na sequência do diálogo com o velho feiticeiro, Zaratustra interrompe suas manobras inócuas de ilusão: A outros mais finos do que eu deves ter enganado. Eu não estou em guarda contra os enganadores; não tenho que tomar precauções: assim o quer a minha sorte. Tu, porém ... tens que enganar: conheço-te bem! As tuas palavras hão de ter sempre duplo, triplo, quádruplo, quíntuplo sentido. O que me confessaste não era bastante verdadeiro nem bastante falso para mim. Vil moedeiro falso, como havias de fazer outra coisa? Até a tua enfermidade encobririas, se te apresentasses nu ante o médico. E acabavas de dourar a tua maneira diante de mim quando disseste: "Só o fiz por brincadeira!" Também nisso havia seriedade; tu és, em certo ponto, algo parecido com um penitente do espírito. Sei perfeitamente calar-te; fizeste-te de encantador de toda a gente; mas, quanto a ti, já te não resta mentira nem astúcia; no que te diz respeito estás desencantado. Colheste o asco como única verdade. Nenhuma palavra é já verdadeira em ti, mas tua boca é verdadeira, quero dizer o enfado pegado à tua boca (Z, O feiticeiro, 318 [322]).

O que Zaratustra censura no feiticeiro não é uma verdade independente, 1nas antes, por assim dizer, o espelho. Ele mostra ao artista da ilusão sua própria atividade, sua produção voluntária de novas ilusões e sua motivação para tanto: o asco por tudo que não corresponde às suas pretensões de beleza e grandeza. Esse asco pela existência é aquilo que, enfim, como conhecimento de si, se volta contra o feiticeiro:

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farto de tudo isso tenh Al1 ' Zaratustra, estou d ' o asco d inha arte; eu nao sou gran e. Para que fingi > 1'..,r e m d r . .l.v1as bem O sabes, procurei a gran eza ! tu Eu quis agir como um grande homem, e a 01 . , . . d . uitos seduzi· mas e mentira acima as mmhas força E ' s. stou esgotado. [... ] e mais honroso pa . Sinistro feiticeiro, o melhor . ra t1 é te teres enfastiad~' de t1 me~1:Uº: e haveres exclamado· "Não sou grande! (Z, O fe1t1ce1ro, 318 [323]). ·

Os traços da terceira figura que surgem na pessoa do feiticeiro "descobridor de novos meios de vertigem" que "se prostra diant: de um coração amoroso", encontram seu lugar na sequência da 0

passagem acima: Zaratustra, eu procuro alguém que seja sincero, reto, simples, alheio ao fingimento, um homem de toda autenticidade, um vaso de sabedoria, um santo do conhecimento, um grande homem! Porventura o ignoras, Zaratustra? Procuro Zaratustra. Então fez-se um longo silêncio entre os dois. E Zaratustra, concentrando-se profundamente, fechou os olhos; depois, virando-se para o feiticeiro, pegou-lhe na mão e disse-lhe delicada e astuciosamente: -Está bem! Ali em cima se encontra o caminho que conduz à caverna de Zaratustra . Na minha caverna podes procurar quem que desejas encontrar [... ] Procuras os grandes homens, estranho louco! Quem te ensinou esta busca! Já soou a hora? Ó, malicioso investigador, por que me tentas? (Z, O feiticeiro, 319-320 [323-324]).

É evidente que a palavra "tentar" pode ser interpretada de diferentes formas. A tentação de Zara tustra consiste em colocar à prova como o feiticeiro age. Ademais, a pergunta retórica de ZaratuSrra: "Já soou a hora?", sugere que não é a hora de buscar os

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''grandes homens", que ele não sucumbiu à tentaça""o d 'd e cons1 erar si mesmo o grande homem ou até mesmo de dar-se .f . ,a . . ,., . por sat1s eito . .. Com isso. Por fim, o silencio de Zaratustra sua astu'ci·a e . ' perm1ssao de procurar "quem dese1as encontrar", aponta para O fato de ue ·· · " t " 'd d q 0 feit1ce1ro o ten ou no senti o e um desacerto: ele se equivocou com sua representação do Zaratustra. Como mostram suas contradições e suas muitas facetas, Zaratustra não é, decerto, um único simples e unívoco. Também Zaratustra é um "poeta" e, em um sentido bem específico, até mesmo um poema de Nietzsche - uma daquelas imagens "segundo as quais é possível viver" (KSA 1 O, 183 ). A dife.r ença em relação ao feiticeiro reside na motivação: o móbil de Zaratustra não deve mais ser o asco pela existência; este é substituído pela superação do grande asco. A sombra Sincero: assim chamo aquele que segue seu Deus pelos desertos, depois de ter despedaçado o coração cheio de venerações (Z, Dos sábios célebres, 133 [142]).

Nietzsche faz com que Zaratustra por fim se encontre com uma figura que, segundo essa caracterização, tem de ser um "sincero": Contigo, aniquilei quanto o meu coração adorou, derribei todas as fronteiras e todas as imagens, correndo após os mais perigosos desejos; realmente, passei, uma vez ao menos, por todos os crimes (Z, A sombra, 340 [343]).

.

Aquele que fala aqui apresenta-se como a "sombra" de Zaratustra. A relação de um outro andarilho com sua sombra p~de ser encontrada em um diálogo-moldura que introduz e conclui ª h_o. de Hum ano' demastamônima "segunda parte" do segun do l1vro · 121 Digitalizado com CamScanner

do humano. Aqui é especialmente apreciado

O

efeito d

, contornos, . lem ' d e contribuir . a solllb ra, d ual contrasta e a a pa 0 q ra a lllelh

ora

da capacidade de percepçao.

No entanto, essa sombra não é uma mera figura e ontrasta do andarilho, mas, antes, quase que uma consequência for nte

· - tam bem ' e' ehama da atençao ~ sua existência para essa es Çosa .. de

.

,

1

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dade relativamente a re açao e

zaratustra com sua sombra: pec1f1ci-

O andarilho: Somente agora vejo como sou ind . . . da nao - expressei e1icado contigo, quen'd a som bra: ain 0 quan. _ to me a1egro por te ouvir e nao apenas ver Perc b , . · e eras que eu amo a sombra assim como a luz. Para que h . beleza no rosto, nitidez na fala, bondade e firmeza ~a caráter, a sombra é tão necessária quanto a luz. Elas nã: são rivais: dão-se amavelmente as mãos, na verdade e ' ' quando a luz desaparece, a sombra lhe vai atrás. A sombra: E eu odeio a mesma coisa que tu, a noite; amo os homens, por serem discípulos da luz, e alegro-me do brilho que há em seus olhos quando conhecem e descobrem, infatigáveis conhecedores e descobridores que são. Aquela sombra que as coisas todas mostram, quando os raios de sol do conhecimento caem sobre elas - aquela sombra sou eu também (KSA 2, 538).

O andarilho, que ocupa aqui o lugar do "espírito livre" radicalmente iluminista, é quem lança essa sombra: à luz do conhecimento racional e esclarecimento tornam-se visíveis lados escuros

e irracionais do mundo e mesmo da própria "razão" humana. No segundo aforismo desse capítulo lê-se: A razão do mundo - Que o mundo não é a quintes-

ra:o °

sência de uma racionalidade eterna é algo dem 00st definitivamente pelo fato de que esta porção de mun , - humana que con hecemos - refiro-me a nossa razao não é muito racional (KSA 2, 540).

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No caso do andarilho, aquilo que lança as b , 1 d . . som ras e a uz e seu esclarecimento radical, que também é um a t l • u oesc arecimento. Pergunta-se apenas em qual sentido a sombra de Zaratustra é sua consequência ou seu lado escuro. Chama primeiramente a atenção que Zaratustra não cumprimenta tão calorosamente sua sombra como O faz O andarilho. A relação é mais tensa: Quem és? - perguntou Zaratustra com veemência Que fazes aqui? E por que te chamas minha sombra? Não me agradas (Z, A sombra, 339 [342]).

A pergunta sobre o que seja a sombra pode ser respondida mais uma vez com o esboço de lista de figuras, já muitas vezes citada, que Nietzsche fez para o quarto livro do Zaratustra: O errante, apátrida, andarilho - que desaprendeu a amar seu povo, pois ele ama muitos povos, o bom europeu (KSA 11, 362).

A expressão "bom europeu" aparece com frequência nas obras de Nietzsche, até mesmo como título de um plano de livro. Uma característica do "bom europeu", que o próprio Zaratustra também atribui a si mesmo, consiste em ele "ver muitos povos". A dúvida a respeito da pretensão que absolutiza os padrões valorativos de cada povo surge a partir dessa comparação. Essa dúvida desemboca na "necessidade do espírito", o qual se vê diante da tarefa de encontrar um padrão e um objetivo. No prefácio a Além do bem e do mal Nietzsche formula esse pensamento: Mas nós, que não somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e esp íritos livres muito livres, nós ainda as temos, toda a ' espírito e toda a tensao - do seu arco.' E necessidade do

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talvez também a seta, a tarefa e, quem sab ~ e., o ob · vo ... (KSA 5, 13) . Jet;.

" [ ] E quem sabe?" ... Em todo caso, a sombra de z ... . aratust ar de uma "necessidade do espírito" sem . ra O toma o lug . nentação erspectiva. Do questionamento de Zaratustra a . e sem P . _ . . . respeito de todos os valores e obngaçoes existentes, CUJO aniquilamento é fundamentalmente po_ssív~l a ele enquanto "aquele que cria'', a sua sombra segue a arbitrariedade. Ao perder todo objetivo, ela é a consequência possível e o reverso obscuro de Zaratustra, bem como também o risco que corre a sinceridade de Zaratustra: "Nada é verdade: tudo é permitido"; assim eu me dizia para me consolar. E nas águas mais frias mergulhei de coração e de cabeça. E quantas vezes não saí nu e vermelho como um caranguejo [... ]. Com demasiada frequência espezinhei a verdade, e ela enfrentou-me face a face. Às vezes julgava mentir, e eis que ela me surgia, a verdade. Muitíssimas coisas se me tornaram claras; agora já me não importam. Já nada vive do que eu amo. Como poderia amar-me ainda a mim mesmo? [... ] Esse afã de correr em busca da minha pátria, sabes, Zaratustra, essa busca foi a minha obsessão: devora-me. Onde está ... a minha pátria? Eis o que pergunto, o que procuro, o que procurei e não encontrei. Ó, eterno "em toda a parte!", ó, eterno em "parte nenhuma". Ó, eterno ... "em vão!" Assim falava a sombra e o semblante de Zaratustra dilatava-se ao ouvi-la. - Sim, és a minha sombra! - disse afinal, com tristeza. Não é pequeno o teu perigo, espírito livre e vagabu nd0 ' Tiveste mau dia: cuidado que a noite não seja pior. [... ] Perdeste o teu objetivo! Como te poderia consolar dessa perda! Por isso perdeste ta mbém o caminho! (Z, A sombra, 340-341 [343-344 ]).

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E a atitude e a motivação por detrás da "si·ncen"da d e " que constituiu o contraste entre a sinceridade da sombra e a sinceridade de Zaratu_stra. Também Zaratustra se mostra um espírito livre; contudo, Nietzsche busca moldar um contraponto a um espírito livre sem orientação: em oposição à sua sombra, Zaratustra não sucumbe aos perigos de sua autonomia, portanto da necessidade de dar leis a si mesmo. Livre de quê? Pouco importa a Zaratustra! Mas teu olhar deve anunciar-me claramente: livre, para quê? Podes dar a ti mesmo teu bem e teu mal, e suspender tua vontade por cima de ti, erigida em lei? Poderás ser teu próprio vingador de tua lei? Terrível é estar sozinho com o juiz e o vingador da própria lei, como estrela lançada no espaço vazio em meio do sopro gelado de "estar só" (Z, Do caminho do criador, 81 [92]).

A sinceridade de Zaratustra

Os "sábios célebres", o "escrupuloso do espírito", os "eruditos", o "adepto do conhecimento puro", o "penitente do espírito" e até mesmo a sombra de Zaratustra contrastam com a sinceridade de Zaratustra. Ele se distancia de cada uma dessas figuras. No entanto, é possível empreender· a tentativa - promissora - de reencontrar ao menos alguns traços de cada figura no próprio Zaratustra ou em seu desenvolvimento fictício: algo como quando ele diz ter vivido na "moradia dos eruditos" ou "outrora" não ter apreciado mais nenhuma arte que não as "artes" ou "artifícios" dos "adeptos do conhecimento puro". O ressurgimento das características das figuras contrastantes em Zaratustra é mais evidente na "sombra" de Zaratustra. Ela coloca diante de seus olhos o risco da própria sinceridade.

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... Ta1nbém deve valer para Zaratustra o que Nietzsche diz em Alé1n do be1n e do 1nal sobre os "verdadeiros filósofos": Ta!~ez ele ~róp~io tenha q~e te~ sido crítico, cético, dogmat1co e h1stonador, e alem disso poeta, colecionador viajante, decifrador de enigmas, moralista, vidente, "li~ vre-pensador" e praticamente tudo (KSA 5, 144).

O próprio texto de Nietzsche formula as sutis diferenças e semelhanças entre Zaratustra e os outros de si mesmo. Ademais, com frequência as figuras contrastantes podem ser elucidadas através de passagens de outras obras ou -como no caso do texto poético "Somente tolo! Somente poeta!" -de textos que Nietzsche comprovadamente escreveu para si próprio. Assim considerado, o Zaratustra rearranja, em partes mais extensas, pensamentos antigos de Nietzsche. Mais ainda: na medida em que Nietzsche contrasta e comenta a figura de Zaratustra ao lado das outras, seu livro é também um autocomentário. Para ler o Zaratustra dessa forma é importante notar a qual figura e a qual tipo Nietzsche atribui cada frase ou pensamento; já nisso consiste um importante comentário de conteúdo. Mostra-se, de fato, que a atitude e a motivação das outras figuras são a razão principal pela qual Zaratustra se distancia delas. A grande ênfase dada por Zaratustra à desigualdade dos homens e ao significado das perspectivas pessoais liga-se, de forma crítica, ao discurso sobre as, por assim dizer, prerrogativas aristocráticas. Em um contexto análogo Nietzsche avança o conceito de "sinceridade" em Além do bem e do mal: O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho:

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ele os despreza [...]. Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - é a crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós, os sinceros" - assim se denominavam os nobres na Grécia antiga (KSA 5,209).

A verdade como prerrogativa dos n,obres? A sinceridade de Zaratustra levanta perguntas. ,

Zaratustra, o outro sábio Na primeira parte Zaratustra é um sábio que abandona sua condição de eremita e torna-se um mestre distinto. A figura permanece, comparativamente, pálida. "Eu vos dou sinceramente este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado (Z, Da virtude dadivosa 101 [111]) - a exortação à autonomia que encerra a primeira parte coloca um necessário ponto de interrogação relativamente aos ensinamentos e ao mestre. Zaratustra considera os outros mestres de sabedoria [Weisheitslehrer] e fundadores de religião como cópias perfeitas uns dos outros. Apenas na segunda parte os contornos começam a ser mais bem discernidos. A especificidade de seu asco, de sua afirmação, de seu produzir e de sua poesia ou sua sinceridade torna-se manifesta com suas atitudes ou por meio das figuras contrastantes. Algumas referências cruzadas no próprio livro e em outras obras de Nietzsche proporcionam maior plasticidade às facetas mencionadas.

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Ademais, há passagens que dão expressão a estados d " . . 1·dd e an1 Zaratustra conhece me1anco 11a, so 1 ao, sau ade, assim cofh lllo: · .,,o se renidade e eu f ona. , Um capítulo, que chama a atenção já pela sua próp . f fia orrn 'm uma seleção e um resumo desses traços caracteri' r· a, con te s icos EI encerra a terceira parte do Z aratustra. "Os seres selos" os . . e . d , " O p su1 o subtítulo "A canção do sim e o amem . capítulo tern set . 'd e se, ões cada uma delas é const1tu1 a como uma estrofe e te . Ç ' , . " rrnina com um refrão. As facetas que sao propnas ao novo tipo" zara, tustra são vinculadas, no refrão, ao pensamento do "eterno retorno do mesmo". Ah, como não me queimaria o desejo da eternidade o desejo do nupcial anel dos anéis, o anel do retorno; (Z, Os sete selos, 287 [297]).

O início do refrão estabelece explicitamente esse vínculo. Por meio do refrão toda estrofe torna-se um argumento sobre o motivo de Zaratustra poder pensar e desejar pensar o "retorno". O padrão argumentativo é: se eu sou assim, como eu não poderia desejar o retorno? Em outras partes do livro, o tipo Zaratustra surge em lugar de uma fundamentação argumentativa dos pensamentos. O ponto de partida não é nenhum princípio, axioma. No Zaratustra encontram-se poucas inferências. Pelo contrário, percebe-se a busca por estabelecer tanto tomadas de posição como também 0 tipo daquilo a que se refere tal posição. Com isso Nietzsche constitui experimentalmente o quadro completo de uma perspectiva: vem à tona aquele que considera, aquele que valora. "Os sete selos" apresentam Zaratustra como aquele tipo-home m que po d e e quer ver a vida sob a perspectiva • d O " eterno retorno do mesmo". Algumas facetas já descritas desse tipo apa-

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recen1 novamente aqui: "se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, nos túmulos onde jazem deuses antigos, abençoando e a1nando este mundo ao lado dos monumentos de antigos caluniadores deste mundo [... ]" (Z, Os sete selos, 288 [298]) - a segunda seção se refere a Zaratustra como o "sem-Deus". Insinua-se aqui sua recusa a todo ideal, a toda instância que transcende o possível no mundo. As duas seções seguintes (3 e 4) aludem às facetas daquele que cria, que realiza as novas valorações e transvalorações: Se eu mesmo sou grão desse sal redentor que permite que todas as coisas se misturem no interior da cratera. - Pois há um solvente que integra o bem e o mal, e até o pior é digno de servir de condimento e de fazer transbordar a espuma do cântaro (Z, Os sete selos, 289 [299]).

Por fim, um trecho da seção 7 faz alusão à problematização da verdade, à falta de uma orientação absoluta, a perspectiva que permite a Zaratustra ser tanto "espírito livre" como também "poeta": [... ] Assim falou a alada sabedoria da minha liberdade: "Vê! Não há nem alto nem baixo! Lança-te em todos os sentidos, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fale mais!" Todas as palavras não foram feitas para os que são pesados? Não mentem todas as palavras aos que são leves? Canta! Não fales mais! (Z, Os sete selos, 291 [300]).

Algumas das facetas de Zaratustra insinuadas na seção eran1 até então deixadas de lado: o profeta, o descobridor, o que tenta e experimenta, o que dança e ri, o aleijado.

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O profeta Se eu sou um profeta, e cheio desse espíriºt0 Profé · caininha por uma alta crista entre dois m tico, que . ares_ que caminha como u1na densa nuvem ent O e o futuro, inimiga de todos os lugares ba· re Passado ,, ixos suf tes, de tudo o que e extenuado e não pode ' 0 can. . morrer n viver: em nuvem sempre disposta a soltar de seu ob ,.. . . scuro se· o relampago libertador, o raio que diz sim q .. 10, ,, . ' ue n sun pronto para exaltaçoes poeticas. , - Feliz de quem traz em seu seio tais raios pois , , na verdade, permanece sempre suspenso como uma p d esa a tormenta no flanco da montanha, aquele que é destinado a acender a tocha do porvir! [... ] (Z, Os sete selos 287 [297]). ' Essa faceta era até então apenas esboçada: "videntes que nos

dizem algo que é possível!" (KSA 3, 321). Com essa passagem de Aurora compreende-se um pouco melhor o sentido em que Zaratustra se designa como poeta. Vidente, profeta, visionário - estas são autodesignações que constituem uma referência ao futuro. Zaratustra deseja comunicar um prognóstico, ele se antecipa até mesmo ao presente. A imagem não é a de um profeta murmurante e oracular; Zaratustra fala a partir de sua própria introspecção na dinâmica do existente, denomina tendências, "fala também o que ele sabe, um visionário" (Z, Dos três males, 240 [253]). Nietzsche observa uma transição do "espírito livre" para uma conexão dinâmica do Agora com o Futuro que permite predições conforme o estágio de conhecimento.

bTd de Dissolução da "vontade livre" e da responsa 1 1 ª ·1·dade conforme em uma profecia e um grau de proba b11 nosso conhecimento de nós mesmos (KSA 10, 4BO).

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A despeito disso, a profecia de Zaratustra não e' n enhum ca, _ 1

culo. Há un1 jogo com possibilidades, um jogo deliberado · b'lºd d d · que se dirige contra a 111:0 1 1 a e o existente, que é "inimigo" do que "é extenuado e nao pode morrer nem viver" · Trata -se de um pensamento que, aos saltos, esboça e antecipa alternativas:

Eu, Zaratustra, o. profeta, Zaratustra , O risonh o, nem . . impaciente ne~ intolerante, afeiçoado aos saltos, eu mesmo coloquei esta coroa sobre a minha cabeça! (Z, Do homem superior, 366 [367]).

O que descobre, o que tenta, o que experimenta Se amo o mar e tudo quanto ao mar se assemelha, e se o amo sobretudo quando me contradiz com mais furor, se trago em mim essa paixão investigadora que impele a vela para terras desconhecidas; se há na minha paixão um tanto da paixão do navegante, se alguma vez a minha alegria exclamou: "Desapareceu a terra; caiu agora a minha última cadeia". Em meu redor agita-se a intensidade sem limites; longe de mim cintilam o tempo e o espaço; vamos! Coragem, velho coração! (Z, Os sete selos, 290 [299]).

As facetas daquele que descobre e daquele que busca ligam-se quase que indissoluvelmente àquela do profeta. A referência ao futuro é fortalecida. A derrocada das certezas - de "margens costeiras" não tem um efeito amedrontador, mas, antes, representa a abertura ao novo. Experimento e expedição são palavras que designam tanto o esforço de superação do presente como também a superação de si. Desde bem cedo Nietzsche se sentia como um "extemporâneo": a partir de 1873 ele escreveu as Considerações extemporâneas. A distância em relação ao mundo contemporâneo é sempre evocada: uma atitude e um estado de ânimo de estranhamento

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•r ao presente, que é sentido, por assim diz com respe1 o . er, corno . desprezível. O estranhamento com respeito ao perigoso e . Presente . agem para arriscar-se ao novo. exige a cor Eles me são estranhos, irrisórios, esses homens d 0 · sente, para os quais, outrora, meu coraçao era atr 'dPre. . d d ., . d a1 o e hoje sou bamdo e to as as patnas, os pais e das _' . ., d +:/h 'Ih maes. Só amarei o pais os meus.,, t os, a i a desconhecida no coração dos mares longinquos; e perto dela 1anç '. . arei a minha âncora, sem desfalecimento. Eu reparei, na pessoa dos meus filhos, o fato de ter sido filho de meus pais; e em todo o futuro, este presente! (Z, Do país da cultura, 155 [165]).

O que dança e ri Se a minha virtude é virtude de bailarino, se muitas vezes dancei com o coração em êxtases de ouro e de esmeralda, se a minha maldade é uma maldade risonha que atemorizá vales cheios de rosas e sebes de açucenas, porque o riso encerra em si tudo o que é mau, mas é santificado e absolvido pela sua própria beatitude, e se o meu alfa e ômega é tornar leve tudo quanto é pesador, tornar dançarino todo o corpo, e pássaro todo o espírito: na verdade, é assim o meu alfa e ômega! (Z, Os sete selos, 290 [299-300]).

Dançar e rir caracterizam a leveza. Nietzsche procura liberar 0 tipo Zaratustra do titânico. Seus pensamentos não devem ser arrancados de uma mente torturada suas tarefas não devem surgir ' como resolvidas com suas últimas forças. O esforço é uma objeção, o deus se diferencia ti~ic: mente do herói (na minha linguagem: pés ligeiros sao primeiro atributo da divindade) (KSA 6, 90).

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A leveza e leviandade de Zaratustra servem como prova de sua "aeronavegabilidade": em seu tipo deve existir a possibilidade de altos voos. A distância e 1nesmo a visão panorâmica de seus pensan1 entos, os altos voos de pensamento do "profeta" devem ser críveis, eles não deve1n surgir como produtos monstruosos de uma fantasia nervosa: Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, o que agita as suas asas, pronto para voar, cúmplice de todos os pássaros, ligeiro, ágil, em sua bem-aventurada leveza (Z, Do homem superior, 90 [367]).

Nietzsche identifica em Ecce homo o "problema psicológico do tipo Zaratustra", a saber, "como o espírito portador do mais pesado destino, de uma fatalidade de tarefa, pode no entanto ser o mais além e mais leve" (KSA 6, 345). O problema é esboçado também em A gaia ciência. Aqui o que é formulado na imagem da dança é o contraste entre filósofos e eruditos, a possível posição do pensamento filosófico ao lado do científico: Não conheço nada de que um filósofo goste mais do que ser um bom dançarino. Porque a dança é o seu ideal, a sua arte também, a sua única piedade, enfim, o seu "culto" (KSA 3, 635).

Nietzsche viveu apenas raramente essa leveza que Zaratustra reivindica a si. Mesmo a dança e o riso de Zaratustra se desenrolam frequentemente de forma pesarosa, sua forma de se exprimir soa quase patética. Trata-se da tentativa, que parece notável, de reabilitar filosoficamente tal leveza.

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O aleijado

o presente e o passado desta terra ... ah, meus amig

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Eis nada conheço demais insuportável: e eu não po~s~ ria 'viver, se não fosse um visionário do que deve vir. e Um vidente, um desejante, um criador, um futuro e um ; ; a ponte para o futuro - e tam bem, ate certo ponto, u aleijado no meio dessa ponte: - tudo isso é Zaratustra~ E vós também vos interrogastes muitas vezes: "Para nós, quem é Zaratustra? Como o poderemos chamar?" E à minha semelhança, destes as vossas perguntas como respostas (Z, Da redenção, 179 [190]).

As facetas de Zaratustra não se acomodam sem problemas. Zaratustra não é um ideal perfeito e unitário. Os seus anelos se antecipam ao futuro, seu tipo é uma possibilidade já "discernida" na humanidade, é uma antecipação, mas ele mesmo, Zaratustra, permanece - como aleijado - na ponte para o futuro por ele indicado. As facetas de Zaratustra dão perguntas como resposta.

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PONTOS DE FUGA

o além-do-homem O contraponto ao além-do-homem é o último homem: eu crio este ao mesmo tempo que aquele (KSA 10, 162).

Essa anotação de Nietzsche feita no inverno de 1882/1883 leva diretamente ao núcleo do primeiro livro. De fato, o além-do-homem é uma das divisas que vêm à mente quando escutamos o título Zaratustra ou o nome de Friedrich Nietzsche. E uma frase sobre o além-do-homem é também a primeira dita por Zaratustra quando ele, vindo das montanhas, chega à cidade. A primeira frase que ele diz à multidão presente no mercado já é o anúncio de um ensinamento, a saber, o do além-do-homem: "Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?" (Z, O prólogo de Zaratustra, 14 [18]). Um discurso sui generis, pregando ser necessário superar aqueles aos quais se dirige. O discurso termina, forçosamente, com o riso dos ouvintes: "E todo o povo riu de Zaratustra" (Z, O prólogo de Zaratustra, 16 [21]). Pronunciadas estas palavras, Zaratustra, em silêncio, olhou outra vez o povo. " Ei-los aí, disse ao seu coração, ei-los que riem; não me compreendem; não sou boca para tais ouvidos.

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Será mister, em primeiro lugar, romper-lhes os tímpanos para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso atroar os ares com os címbalos ou como os predicadores da Quaresma? Ou só acreditam eles nos tartamudos? Há alguma coisa de que se orgulham. Como chamam pois, a tal coisa de que estão orgulhosos? Chamam-na cu/~ tura, e é o que os distingue dos guardadores de cabras. Não gostam de ser tratados com a palavra "desprezo" ' por isso falar-lhes-ei ao seu orgulho. Falar-lhes-ei do que há de mais desprezível: quero dizer do último homem (Z, O prólogo de Zaratustra, 18 [26]).

Segundo essa reflexão estratégica e ainda provisória, aqueles a quem Zaratustra se dirige com seu primeiro discurso se situam entre o além-do-homem e o "último homem". Apresentando-lhes o "último homem", Zaratustra crê poder apelar a seu orgulho, ele crê que eles sejam "o que há de mais desprezível". Mais ainda: o além-do-homem e o "último homem" são colocados como alternativas diante dos olhos dos ouvintes. De acordo com o diagnóstico de Zaratustra, há ainda a possibilidade de decisão: o "último homem" é denominado como o último, pois ele não terá mais nenhuma outra alternativa. A "felicidade" que os últimos homens acreditam ter encontrado não será mais colocada em risco por eles em prol de algo novo: E Zaratustra falou assim ao povo: "É tempo de que o homem visualize um objetivo para si. É tempo de que o homem plante a semente de sua mais alta esperança. Ainda é seu solo bastante rico. Mas um dia, pobre e avaro será ele, e, nele, já não poderá crescer nenhuma árvore elevada.

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Ah! Aproxima-se o tempo em que o homem não lançará mais a flecha de seu desejo acima dos homens, e em que as cordas de seu arco já não saberão mais vibrar. Eu vos digo: é necessário ter um caos em si para poder dar à luz uma estrela bailarina. Eu vos digo: tendes ainda um caos dentro de vós. Ah! Aproxima-se o tempo em que o homem será incapaz de dar à luz uma estrela bailarina. O que vem é a época do homem mais desprezível entre todos, que nem poderá mais desprezar a si mesmo. Vede! Eu vos mostro o último homem. Que é o amor? Que é o criar? Que é o anelar? Que é a estrela? Assim perguntará o último homem, piscando os olhos. A terra tornar-se-á exígua e, sobre ela, veremos saltitar o último homem que tudo amesquinhará. Sua espécie é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que viverá por mais tempo. - Descobrimos a felicidade - dizem os últimos homens, piscando os olhos. Eles abandonarão as comarcas onde a vida for dura; porque terão necessidade do calor. Amarão ainda o seu próximo, e se esfregarão uns aos outros; porque necessitarão do calor. Adoecer, ter desconfiança, parecer-lhes-ão pecados; andarão com cautela. Um estúpido que ainda tropeça em pedras ou homens. Um pouco de veneno, uma ou outra vez; ele oferecerá sonhos agradáveis. E muitos venenos, afinal, para ter uma morte agradável. Trabalhar-se-á ainda, porque o trabalho é uma distração. Mas procurar-se-á que a distração não fatigue. Ninguém será rico nem pobre; são ambas coisas demasiado penosas. Quem quererá ainda governar? Quem quererá ainda obedecer? São ambas as coisas demasiado penosas.

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Nenhum pastor, e um só rebanho! Todos querer~ - 1gua1s; . . e quem pensar difer o mesmo, to dos serao ,, . . ,. entemente entrara vo1untanamente num manicomio. - Outrora todos eram loucos - dirão os malignos . piscando os olhos. Ser-se-á prudente, e saber-se-á tudo quanto já acontec . assim ter-se-á do que ridicularizar interminavelmenet~· Disputar-se-á ainda; mais rápidas serão as reconcilia~ ções, temerosas de alterar a digestão. Ter-se-á seu prazerzinho do dia, e o seu prazerzinho da noite; mas se reverenciará a saúde. - Descobrimos a felicidade - dirão os últimos homens piscando os olhos" (Z, O prólogo de Zaratustra, 19-20

ªº

[26-29]).

Segundo a descrição de Zaratustra, o conteúdo da vida dos "últimos homens" se reduz à conservação de si: "adoecer, terdesconfiança, parecer-lhes-ão pecados; andarão com cautela. Um estúpido que ainda tropeça em pedras ou homens", "o último homem é o que viverá por mais tempo". Ele vive pela distração e pela fruição mais inofensiva possível. A estratégia de Zaratustra não funciona: ao invés de rejeitar essa possibilidade como desprezível, os ouvintes de Zaratustra ficam repentinamente entusiasmados: Aqui acabou o primeiro discurso de Zaratustra - o qual também se chama o "prólogo" - porque neste momento foi interrompido pelos gritos e pela hilariedade da multidão. - Dá-nos este último homem, Zaratustra - exclamavam -, faz-nos semelhantes a este último homem! E damos de presente para ti o além-do-homem. E todo o povo exultava e estalava a língua. Zaratustra ficou triste e disse ao seu coração: - Não me compreenden1; não é a minha boca de que necessitan1 esses ouvidos.

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Vivi demasiadamente nas montanhas; escutei demasiadamente os arroios e as árvores, e agora lhes falo como se fala aos guardadores de cabras. Plácida é a minha alma, e luminosa como a montanha na manhã. Mas eles creem que sou frio, e me tomam por um sinistro farsante. E, no entanto, eles me olham e riem; e, ainda, além de rir, odeiam-me e, enquanto riem, seguem odiando-me. Há gelo em seus risos (Z, O prólogo de Zaratustra, 20-21 (29]).

O fracasso do discurso de Zaratustra à multidão é significativo sob diversas perspectivas: em primeiro lugar, reflete-se aqui a declaração de Nietzsche em Ecce homo de que Zaratustra não deseja fundar uma nova fé: "aí não se 'prega', aí não se exige fé" (KSA 6, 260). Já no prólogo torna-se claro que nenhuma "doutrina" do além-do-homem pode substituir a exortação - sempre presente no Zaratustra - à autonomia, às perspectivas e finalidades próprias. Na sequência a seu comentário, Nietzsche cita a última passagem do primeiro livro do Zaratustra, na qual Zaratustra adverte seus jovens sobre si mesmo e os manda embora: Agora vos mando que me percais e que encontreis a vós mesmos; e só quando todos me tenham renegado, voltarei para vós (Z, Da virtude dadivosa, 101 [112]).

A "pregação" à multidão é - assim Zaratustra o percebe após seu malogro - o falso caminho para o apelo à independência e autonomia individual. Um raio de luz veio até mim; de companheiros preciso eu, e vivos, não companheiros mortos, e cadáveres, que os leve comigo para onde quero. É de companheiros, e vivos, que preciso; companheiros que me sigam - porque desejam seguir a si próprios por onde eu vá.

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Um raio de luz veio até mim: não é à multidão que d . eve falar Zaratustra, mas a compan he1ros! Zaratustra ~ nao deve ser o pastor de um re ban ho, nem o cão do pa . Vim para separar mmtas ove Ih as d o rebanho (Z Ostor; ' Prologo de Zaratustra, 25 [34]).

O objetivo dos esforços de Zaratustra é voltar-se contra urna massa homogênea de homens, um "rebanho" no qual desaparecem as diferenças entre os homens, os quais seguem um líder ou urna ideia unívoca de forma extremamente heterogênea, ou seja, dependente de uma legislação externa. Em lugar disso, em uma passagem de Além do bem e do ma/ Nietzsche ressalta o valor educativo das diferenças e distâncias sociais. Essas são não, contudo, fins em si, mas, antes, contribuem para o desenvolvimento do "pathos da distância" com respeito a si próprio: a distância de si mesmo que fornece o fundamento para exigências superiores em relação a si mesmo: Sem o pathos da distância tal como nasce da entranhada diferença entre as classes, do constante olhar altivo da casta dominante sobre os súditos e instrumentos, e do seu igualmente constante exercício em obedecer e comandar, manter abaixo e ao longe, não poderia nascer aquele outro pathos ainda mais misterioso, o desejo de sempre aumentar a distância no interior da própria alma, a elaboração de esta dos sempre mais elevados, mais raros, remotos, amplos, abrangentes, em suma, a elevação do tipo "homem", a contínua "superação de si do homem", para usar uma fórmula moral num sentido supramoral (KSA 5, 205).

O segundo aspecto que evidencia o fracasso da "pregação" se concretiza no entus_iasmo da multidão em relação ao "último homem"• Segundo uma tendência histórica o "último homem" se

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desenvolve por si só ou "incondicionalmente"; Nietzsche afirma, portanto, ser necessário confrontar a humanidade com sua exigência dirigida contra tal tendência - sobretudo por meio da publicação do Zaratustra. Em um esboço que Nietzsche produziu em 1883 encontram-se ambos os aspectos: Minha pretensão: engendrar seres que estão sublimemente acima de toda a espécie "homem·": e para tal objetivo sacrificar a si e aos seus "semelhantes". A moral até aqui tinha seus limites no interior da espécie: todas as morais até aqui eram úteis para, primeiro, dar à espécie uma durabilidade incondicional: se esta é obtida, pode-se então elevar o objetivo. O primeiro movimento é incondicional: o nivelamento da humanidade, grandes construções de formiga etc. [... ] O outro movimento - meu movimento - é, pelo contrário, a agudização de todas as contraposições e abismos, remoção da igualdade, a produção de superpoderosos superiores. Aquele movimento produz o último homem. O meu movimento, o além-do-homem. Não é em absoluto o objetivo conceber os últimos como os senhores dos primeiros; antes, devem existir duas espécimes uma ao lado da outra - separadas o máximo possível; uma como os deuses epicuristas, não cuidando da outra (KSA 10,244).

O além-do-homem de Nietzsche não é um homem-senhor. Os deuses do filósofo grego Epicuro são imagens para comparação. Talvez seja proveitoso deixar o próprio Nietzsche apresentar Epicuro, que permanece diante de seus olhos e, en1 sua tranquilidade, reflete algo do caráter "inabalável" de seus deuses:

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Epicuro [... ]. Vejo o seu o!h_ar errar sobre vastos mares esbranquiçados, sobre falesias onde repousa O sol, enquanto animais de todos os tamanhos vêm brincar à sua luz, tranquilos e calmos como esta luz e este mesmo olhar. Semelhante felicidade só pode ter sido inventada por alguém que sofria sem descanso; é a felicidade de um olhar que viu apaziguar sob o seu olhar o mar da existência, e que de ora em diante já não pode satisfazer-se de ver esta superfície ondulante, esta epiderme delicada e fremente; nunca ali tinha havido até então semelhante modéstia da voluptuosidade (KSA 3, 411).

Epicuro pensa os deuses como seres de um caráter perfeitamente inabalável, ataraxia. Este é o objetivo de sua autorredenção filosófica. Entre outras coisas, esse caráter inabalável consiste em satisfazer-se por si mesmo "à parte" de todo o resto. O que é humano não diz nenhum respeito a esses deuses. A imagem para o além-do-homem é a de uma potência absoluta que se exprime na autodeterminação e independência, na autonomia e autarquia. Da mesma forma como via, no curto perfil de Epicuro, sua felicidade como surgindo de alguém que "sofria sem descanso", Nietzsche aponta como o pano de fundo do além-do-homem sua ocupação sem descanso com o pessimismo. Quem, como eu, impelido por um afã misterioso, se esforçou em pensar o pessimismo até o fundo, e libertá-lo da estreiteza e singeleza meio-cristã meio-alemã como ' ' que ele afinal se apresentou neste século, na forma da filosofia schopenhaueriana; quem verdadeiramente, com uma visão asiática e mais-que-asiática, penetrou o interior e a profundeza daquele que mais nega o mundo, entre todos os possíveis modos de pensar - além do bem e do mal, e não mais, como Buda e Schopenhauer, no

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fascí?io e delírio da moral-, talvez esse alguém, sem que o quisesse realmente, tenha aberto os olhos para O ideal contrário: o ideal do homem mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não só aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existiu e é, mas deseja tê-lo novamente tal como existiu e é, por toda a eternidade, gritando incessantemente da capo [do início], não a penas para si mesmo, mas para a peça e o espetáculo inteiro, e não apenas para um espetáculo, mas no fundo para aquele que necessita justamente desse espetáculo - e o faz necessário: porque sempre necessita outra vez de si mesmo - e se faz necessário - Como? E isto não seria circulus vitiosus deus? [deus como círculo vicioso] (KSA 5, 74-75).

O asco de Zaratustra pela existência é também uma experiência do próprio Nietzsche. O "pessimismo" do qual ele fala se transforma na "grande tristeza" de que se queixa o profeta no Zaratustra: [... ] e vi uma grande tristeza invadir os homens. Os melhores cansaram-se das suas obras. Expandiu-se uma doutrina, que trazia consigo uma crença: "Tudo é vão, tudo é igual, tudo passou!" E os montes respondiam: "Tudo é vão, tudo é igual, tudo passou!"[ ... ] O nosso trabalho foi inútil: o nosso vinho tornou-se veneno: o mau-olhado queimou e amarelou nossos campos e nossos coraçoes. Todos secamos; e se caísse fogo em cima de nós, as nossas cinzas voariam em pó. Sim, cansamos o próprio fogo. Todas as fontes secaram para nós, e o mar recuou. Todos os solos se querem abrir, mas os abismos não nos querem tragar! Oh! Onde haverá ainda um mar onde possamos nos afogar? Assim ressoa a nossa lamentação através dos pântanos.

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Na verdade, estamos demasiado fatigados para morre . despertos, continuamos a viver, em abóbodas sepulcra~~ (Z, O profeta, 172 [183]).

Nesse sentido, o jogo de pensamento sobre um eterno retorno do mesmo funciona como uma agudização da pergunta. Uma redenção por meio do progresso é levada po~co em consideração, assim como caminho que permanece aberto ao nada: no caso de um eterno retorno do mesmo tudo voltaria da mesma forma como é. O "ideal do homem mais soberbo, mais vivo e mais afirmador do mundo" permanece aqui como pano de fundo. Ele faz de si mesmo o sentido necessário de sua existência; sua autoperfeição torna-se ao mesmo tempo o sentido de todo o resto. Ela encontra seu desfecho no "jogue mais um pouco", no "da capo", que a perfeição invoca a si mesma. O além-do-homem torna-se o antídoto contra o pessimismo no pequeno asco e mesmo contra o "grande asco". A descrição concreta do além-do-homem surpreende por ser escassa. O que é descrito no Zaratustra é sua função. Por um lado, ele é uma perspectiva sob a qual o homem existente aprende a ver-se de uma outra forma: como uma transição que justifica não tomar a si mesmo de forma muito pesada - Nietzsche observa em 1873: "Crave objetivos a si mesmo, objetivos grandes e nobres e os persiga até o fim!" (KSA 7,651). Por outro lado, o além-do-homem coloca a si mesmo a tarefa de não deslocar o sentido da existência para fora ou para o além; trata-se de uma exigência de imanência. Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? Até agora todos os seres criaram alguma coisa que os ultrapassou; quereis ser o refluxo dessa grande maré e retornar ao animal, em vez de superar o homem?

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Que é o símio para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois tal deve ser o homem para o alé1n-do-homem: uma irrisão ou uma vergonha. Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, tendes ainda em vós muito do verme. Outrora fostes símios e até hoje o homem é ainda mais símio que todos os símios. Até o mais sábio entre vós é um ser indeciso e híbrido entre planta e fantasma. Acaso vos aconselhei que vos tornásseis planta ou fantasma? Vede, eu vos ensino o além-do-homem! O além-do-homem é o sentido da terra. Assim fale a vossa vontade: possa o além-do-homem tornar-se o sentido da terra! Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra, e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres. São eles envenenadores, conscientemente ou não (Z, Prólogo de Zaratustra, 14-15 [18-19]).

O além-do-homem é sobretudo aquele ser vivo cuja existência torna primeiramente suportável a possibilidade do eterno retorno do mesmo diante de um pessimismo intensificado. Nas anotações de Nietzsche para o plano do livro lê-se: Primeiro a legislação. Após a expectativa do além-do-homem, de forma horrível a doutrina do retorno: agora suportável! (KSA 10, 482).

Nietzsche não se vê como um tal além-do-homem, e tampouco Zaratustra o é. Este se apresenta como o seu anúncio e preparação: Vede, eu sou o anunciador do raio, sou uma pesada gota caída da nuvem; mas esse raio chama-se além-do-homem (Z, Prólogo de Zaratustra, 18 [23]).

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Vontade de potencia l) Vontade de vida? Em seu lugar eu sempre en . ,. . (KSA 1 O contre1 apenas vontade de potencia , 187).

A vontade de potência tornou-se o título de um projeto de livro longamente nutrido por Nietzsche. Em agosto de 188S ele estabeleceu um derradeiro plano para o conteúdo desse livro. Posteriormente tanto o título como a concepção do livro foram alterados. Em lugar dele, o Crepúsculo dos ídolos foi realizado como 0 primeiro livro de uma "transvaloração de todos os valores". Elisabeth Fõrster-Nietzsche, a irmã, compôs o livro A vontade de potência a partir de legado manuscrito e o editou como a principal obra de Nietzsche. Às primeiras críticas seguiu-se um desmantelamento: primeiro por meio de Karl Schlechta e depois no âmbito do trabalho editorial de Mazzino Montinari. A "vontade de potência" é um dos conceitos de Nietzsche: um conceito importante dentre seus experimentos de pensamento. Contudo, não há nenhuma obra principal sistemática e menos ainda uma com esse título.

Onde encontrei a vida, encontrei a vontade de potência, e até na vontade do servidor, encontrei a vontade de ser mestre. Se o fraco serve ao forte, o faz inclinado por sua vontade, que quer, por sua vez, tornar-se senhora dos mais fracos que ela; é o único prazer ao qual não pode renunciar. E da mesma forma que o inferior se submete ao superior, a fim de ter por sua vez o prazer de mandar no mais ínfimo, também o maior de todos, por sua vez, se desvela, e arrisca no jogo a sua própria vida (Z, Da superação de si, 147-148 [157-158]).

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Este capítulo desenvolve a anotação de Nietzsche citada acima. Com a vontade de potência Zaratustra fornece uma interpretação do "vivente" . As observações que ele pretende ter feito contradizem a suposição de que o vivente é motivado meramente por uma espécie de instinto de conservação de si. Vista dessa forma, já a medida de renúncia de si ou submissão por parte dos "servidores" ultrapassa o necessário à sobrevivência. Do outro lado, nos "superiores", que têm muito a perder, encontra-se a tendência que, considerada da perspectiva da conservação, é supérflua - de arriscar tudo em nome do acúmulo. A "vontade de potência" não é, contudo, uma mera ganância. Ela não se exprime ap·enas no campo político ou econômico. Também ambições de pensamento ou conhecimento refletem-se na "vontade de potência". É algo constitutivo de uma interpretação "psicológica" do julgar, conhecer e pensar humanos, uma dinâmica correspondente também vista em ação nesse caso. Em Além do bem e do mal Nietzsche levanta a pretensão de aprofundar a psicologia com um enfoque próprio: Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la com morfologia e teoria da evolução da vontade de potência, tal como faço - isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado (KSA 5, 38).

No Zaratustra, "os sapientíssimos" são aqueles cuja "vontade de verdade" é desmascarada nesse sentido "psicológico" - desmascarada como "vontade de potência": "A vontade de verdade", tal é o nome que dais, ó sapientíssimos, à força que vos move e vos iti1pele . .

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A vontade de tornar concebível tudo o que é·. e, o no que dais a essa vo_nta de. , llle Q uereis de antemao tornar conceb1vel tudo O que-. . · ' 1 · e, Pois duvidais, e com 1usto t1tu o, que se1a concebível a Prio . Mas é preciso que tudo se submete e se curve à rz. , . Vossa vontade. E o que exige o vosso querer; que tudo , . se subordine e se submeta ao esp1nto, que tudo se red uza a ser dele O espelho e o reflexo. Eis tudo O que quereis, sapientíssimos, e é urna vontade d potência, mesmo quando tenhais à boca palavras com: bem e mal, e juízos de valor. [... ] Vossa vontade e vossos valores, vós os fundastes sobre as vagas do devir. Essas crenças da multidão ao tema do bem e do mal traem uma antiga vontade de potência.[...] Agora o rio leva vossa barca, ele deve levá-la. Que importa se ela faz espumar as ondas que ela fende, e que se rebelam contra a quilha? Não é a corrente que vos ameaça, nem a morte de vossa noção do bem e do mal, sapientíssimos; é vossa própria vontade, vossa vontade de potência - a vontade inesgotável e criadora de viver (Z, Da superação de si, 146-

147 [156-157]).

Os "sapientíssimos" surgem em um duplo papel: como pensadores e valoradores. Já tratados no âmbito das facetas de Zaratustra, em especial a do criador e a do sincero, esses aspectos são facilmente associáveis entre si. Caso a posição de perspectivas seja inevitavelmente parte da existência, a busca do pensamento em reunir tudo sistematicamente sob um conceito torna-se o ato de uma poderosa posição de perspectivas. Sob a perspectiva de uma capacidade universal de pensamento, o homem se apodera do "ente". O que não pode ou pode apenas imperfeitamente ser reunido num conceito é, assim, suprimido.

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Ao designar aquele que põe novos valores como propriamente "aquele que cria", Nietzsche ressalta que o estabelecimento de novos valores pode ser ligado a uma maciça intervenção no existente e é, assim, o exercício de potência ou poder. As posições de valores daquele" que cria" não são válidas eternamente: "bem e mal que fossem noções imutáveis - isso não existe! Tudo trabalha para se superar sem cessar" (Z, Da superação de si, 149 [159] ). Já foi indicado acima que, segundo esta formulação, uma dinâmica interna impele continuamente para a ruptura devalores antigos e, ao mesmo tempo, para a posição de novos valores. Não se trata de um "fluxo externo do vir a ser", que dissolve as fundações dos sapientíssimos. A mesma motivação, a mesma força motriz que impulsiona aqueles é a que nega novamente o existente por meio de renovadas transvalorações. O nome de Nietzsche para essa dinâmica é "vontade de potência". O que chama a atenção aqui é que aqueles que exercem essa potência ou poder estão, eles mesmos, submetidos a esta dinâmica. Esta não é algo meramente externo. Trata-se de uma dinâmica que pertence à própria constituição interna da vida. Os viventes, eu segui os seus passos, sobre os grandes e pequenos caminhos, a fim de conhecer-lhes a natureza.[...] Em toda a parte onde encontrei a vida, ouvi falar de obediência. Tudo o que vive obedece. E eis o segundo ponto: manda-se naquele que não sabe obedecer a si mesmo. Tal é frequente entre os vivos. O que eu aprendi em terceiro lugar: foi que mandar é mais difícil que obedecer. Não somente porque aquele que manda assume a carga de todos os ,que lhe obedecem, e que essa carga arrisca esmagá-lo, mas porq~e reconheci que mandar comporta uma aventura e um nsco, e cada vez que manda, arrisca a vida.

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E até quando é ele mesmo a quem manda, não ·ação Torna-se fatalmente juiz, vingador e ~s~apa à eXpl , · . _ . Vttu:na d sua própria lei (Z, Da superaçao de s1, 147 [1S 7]). e

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"T d O que vive obedece" - isso faz parte da dinâmica da,, u o . . _ . vontade de potência" que é sua const•~~•ç~o int~rna. A passagem descreve as duas possibilidades de tal obed1enc1a: o vivente pode submeter-se a ,

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essa dinâmica através de outros, quando ele não está em condição de exercer, ele mesmo, a potência. Se, pelo contrário, ele mesmo exerce a potência, então ele permanece internamente submetido à "vontade de potência". Esta torna-se motivação para utilizar a abundância de potência existente - portanto, a mera possibilidade de conformar e mandar - e, pois, arriscar em nome de uma potência nova. Poder mandar, exercer potência, implica enfim a possibilidade de mandar não a outrem, mas a si mesmo. O "pathos da distância", que pode desenvolver-se até um distanciamento de si, retorna aqui com uma nova formulação. Naqueles que mandam em si mesmos e, assim, arriscam continuamente, a vontade de potência admite pela primeira vez autodeterminação e independência: sua dinâmica se desdobra em um ser individual que manda em si mesmo e obedece a si mesmo, sendo, pois, autônomo e autárquico. Assim considerada, a dinâmica da "vontade de potência" se apresenta como "superação de si". Nietzsche deixa a própria vida falar: ela revela seu segredo a Zaratustra. Esse segredo consiste no seguinte: ela é - em consonância com sua constituição, com a "vontade de potência" - superação de si: E eis o segredo que a vida me confi ou: - "Vê - disse-me ela - eu sou aquela que deve sempre superar-seª si mesma".

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Que chameis a essa necessidade vontade de produzir ou instinto de finalidade, ao superior, mais longínquo, mais con1plexo, tudo é o mesmo, é um só e mesmo segredo. Prefiro perecer a renunciar a essa única aspiração; e, na verdade, quando se vê morrer os seres, e cair as folhas, é que a vida se sacrifica ... pela potência! [... ] Certamente, não atingiu a verdade aquele que pôs em circulação essa fórmula: a "vontade de existir"; essa vontade não há! Pois o que não existe não pode querer existir; e como o que existe poderia ainda querer existir? Não há vontade senão na vida; mas essa vontade não é vontade de viver; na verdade, ela é vontade de potência! Há para o vivo muitas coisas que ele estima mais alto que a própria vida, mas, nessa mesma estima, o que fala é a vontade de potência. Eis o que a vida me ensinou outrora; o que me permitiu, sapientíssimos, de resolver também o enigma de vossos corações (Z, Da superação de si, 148-149 [158-159]).

A impressão é que aqui os últimos segredos são revelados. Decerto, por algum tempo Nietzsche estava inclinado a acreditar ter em suas mãos uma nova chave para uma explicação filosófica criadora da existência. Contudo, ele rejeitou desenvolver sistematicamente esse achado. Não há nenhum acabamento em suas reflexões sobre uma "metafísica da vontade". A tentativa de uma interpretação unitária de seus textos significaria passar por cima do caráter experimenta l dessas declarações. De fato, há esboços que abordam a dinâmica da "vontade de potência" também como princípio operante não apenas da vida, n1as também do ente em geral. No entanto, a formulação que Nietzsche escolhe en1 Alérn do bem e do mal minin1iza a reflexão, tornando-a uma n1era hipótese.

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"'es são enquadradas como uma pergunta não As d ecIaraçO . . rneramente re t o"ri·ca e que não poderia .ser mais,, cautelosa: "Sup on d0 _ não é lícito fazer a tentativa [... ]? : que [... ] Supondo que nada seja "dado" como real, exceto nos mundo de desejos e paixões, e que não possamos d so escer ou subir a nenhuma outra "realidade", exceto , realidade de nossos impulsos - .pois pensar é apena: a relação desses impulsos entre s1 -: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual também o chamado mundo mecânico? (ou "material")~ [... ] A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo - e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma-, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a única. [... ] - Supondo, enfim, que se pusesse todas as funções orgânicas a essa vontade de potência, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição - é um só problema-, então se obteria o direito de definir toda potência atuante, inequivocamente, como vontade de potência. O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu "caráter inteligível" - seria justamente " vontade de potência", e nada mais (KSA 5, 54-55).

A vontade de potência permaneceu sendo uma das muitas experiências de pensamento de Nietzsche. Não se deve negar que o conceito de "vontade de potência" está intimamente relacionado com a imagem de Zaratustra sobre 0 além-do-homem e mesmo com o próprio tipo Zaratustra. O vínculo entre superação de si e distanciamento do si torna isso claro.

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Ademais, Zaratustra fornece uma história de surgimento da "grande tristeza", do pessimismo, na aplicação do conceito de "vontade de potência" e determina naquela o papel do além-do-homem. A vontade liberta: Mas como se chama o que aprisiona o libertador? "Assim foi": eis como se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade. Impotente contra o fato, a vontade é para todo o passado um malévolo espectador. [... ] Assim a vontade, a libertadora, tornou-se maléfica; e vinga-se em tudo que é capaz de sofrer, de não poder voltar para trás. Isto, e só isto é a vingança em si mesmo, a repulsão da vontade contra o tempo e o seu "foi". Realmente vive uma grande loucura ·a vossa vontade: e a maldição de todo o humano é essa loucura haver aprendido a ter espírito. O espírito de vingança - meus amigos, tal foi até hoje a melhor reflexão dos homens; e onde houver dor, deve sempre ter havido castigo. [...] E assim se acumulou no espírito uma nuvem após outra, até que a loucura proclamou: "Tudo passa; por conseguinte tudo merece passar". [...] Nenhum fato pode ser destruído: Como poderia serdesfeito pelo castigo? Eis o que há de eterno no castigo da "existência": a existência deve ser, uma vez e outra, eternamente ação e dívida. "A não ser que a vontade acabe por se liberar a si mesmo, e que o querer se transforme em não querer". Mas, irmãos, vós conheceis estas canções da loucura! (Z, Da redenção, 179-181 [191-192]).

Essa fundamentação do pessimismo dificilmente poderia ser mais abstrata. Nietzsche combina o conceito de "vontade de po-

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,. 1

,. ·a" com un1 conceito de suas reflexões "psicológicas ,, sob tenc1.: . d e " ressentimento . " . O "resse . re a al a saber, 0 conceito r mo ' " . ., ntunento'' e como produto dos seres aos quais e negada a v d . su rg . er ade1ra reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança ima . , ria obtém reparação" (KSA 5, 270). Nietzsche o descreve gina., . como a reação a uma magoa que ans~ta apenas a novamente magoar com seus próprios - e parcos - meios. A partir dessa perspectiva bem geral, que Nietzsche faz Zaratustra assumir, o pessimismo se a presenta como um ressentimento universal. A própria "vontade de potência" o desenvolve com respeito ao passado, em relação ao qual ela é impotente. "Assim a vontade, a libertadora, tornou-se maléfica; e vinga-se em tudo que é capaz de sofrer, de não poder voltar para trás". A partir da dinâmica do vivente, na qual a "vontade de potência" se desdobra, primeiro transforma-se o sofrimento por um passado inalterado - e ruim - e então a "grande tristeza" pela própria vida. Ela é aquele ferimento com o qual o ressentimento da "vontade de potência" se vinga da vida. Uma possível autorredenção da vontade - a solução da "lou-

cura" - leva ao nada: "A não ser que a vontade acabe por se liberar a sj mesma, e que o querer se transforme em não querer. Mas, irmãos, vós conheceis estas canções da loucura!" O sentido de uma tal interpretação em larga escala da "grande tristeza", contudo, não é a explicação filosófica do que ocorre, mas, antes, trata-se de indicar uma possibilidade alternativa de terapia. Essa abordagem torna claro e1n que medida o além-do-homem está em condição de desatar o nó. Eu vos afastei dessas canções [da loucura) quando vos disse: "A vontade é criadora".

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Tudo o que "foi" é fragmento e enigma e espantoso acaso, até que a vontade criadora declare: "Mas eu o quis assin1". Até que a vontade criadora declare: "Mas é assim que eu quero, e hei de querer assim". Acaso, já falou deste modo a vontade? E quando sucederá isso? Acaso a vontade já se livrou da sua própria loucura? Porventura se tornou a vontade redentora de si mesma e mensageira de sua alegria? Acaso esqueceu o espírito de vingança e todo o ranger de dentes? Então quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e a fazer o que é mais alto que qualquer reconciliação? O que deve querer a vontade, que é vontade de potência, é algo superior a qualquer reconciliação; mas, como ele quererá de novo? (Z, Da redenção, 181 [192-193]).

A "redenção" da vontade não é uma "reconciliação"; pelo contrário, poderia ser considerada a "superação de si" daqueles que, por meio do distanciamento de si mesmos, podem mandar e, através disso, tornar-se continuamente necessários a si mesmos. Eles se apropriam do passado - "Mas eu o quis assim". Tornando-se necessários a si mesmos, seu passado torna-se imprescindível. A possibilidade de uma "reconciliação com o tempo" não se mostra completa por meio da abordagem esboçada por Zaratustra. Apenas o papel do além-do-homem nesse contexto é aqui insinuado. Ao final surge a questão de como solucionar o problema que levantado pela estrutura do tempo passado: Neste ponto do seu discurso, Zaratustra calou-se bruscamente como se fosse assaltado pelo terror. Olhou os discípulos com os seus olhos espantados: o seu olhar penetrou como setas nos seus pensamentos, e em seus segundos pensamentos (Z, Da redenção, 181182 (193-194]).

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No terror de Zaratustra reflete-se o pavor de ter revelad . . d .. h o rnu1·ovens poderiam a 1v1n ar que as perguntas levam to. os J ,, Pen. "eterno retorno do mesmo . samen to do

ªº

suprimir. até O t . Faz parte da "dramaturgia" de Zaratustra ,, . . ' erce1• ro livro, esse pensamento, que para o propno Nietzsche foi O mais petrificante de seus experimentos de pensamento. Isso torna-se claro pelo fato de Nietzsche considerar esse pensamento um perigo.

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Eterno retorno do mesmo Que os teus animais bem sabem quem és, Zaratustra e ' o que deves chegar a ser: tu es o mestre do eterno retorno. E este é agora o teu destino! (Z, O convalescente

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275 [287]).

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A doutrina do "eterno retorno" é mais do que uma das muitas declarações de Zaratustra. Ela é central para o livro e para o tipo Zaratustra; central, mas não no sentido de um sistema filosófico - Nietzsche observa em uma anotação de 18 84: "Todos os sistemas filosóficos estão ultrapassados" (KSA 11, 159). Uma grande parte das imagens de pensamento que são esboçadas no Zaratustra refere-se, quanto a seu conteúdo e para além de insinuações, a esse centro. Talvez um enfoque inverso seja até mesmo mais adequado: o "pensamento do eterno retorno" é o núcleo do livro. Nietzsche introduz seu comentário sobre o Zaratustra em Ecce homo com uma posição análoga: Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno,ª mais elevada forma de afirmação que se pode em absol~to alcançar, é de agosto de 18 81: foi lançado em uma pa-

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gina com o subscrito: "Seis mil pés acima do homem e do te1npo". Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um impotente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse pensamento (KSA 6, 335).

A anotação na qual tal pensamento é esboçado se encontra no legado manuscrito. Trata-se já de uma tentativa de produzir alguma clareza sobre como lidar com o novo pensamento: O retorno do mesmo 1) A incorporação dos erros fundamentais.

2) A incorporação das paixões. 3) A incorporação do saber e do saber que renuncia (paixão do conhecimento). 4) O sem culpa. O indivíduo como experimento. A facilitação da vida, humilhação, amortecimento - transição. 5) O novo peso decisivo: o eterno retorno do mesmo. Infinita importância de nosso saber, nosso erro, nossos costumes, modos de vida para tudo o que virá. O que fazemos com o resto de nossa vida - nós, os que passamos a maior parte dela na mais essencial ignorância? Nós ensinamos a doutrina - trata-se do meio mais forte para incorporá-la em nós mesmos. Nossa forma de felicidade, como os que ensinam a grande doutrina. Início de agosto de 1881 em Sils-Maria, 6.000 pés acima do mar e bem mais acima das coisas humanas! (KSA 9,494).

Deve-se observar no esboço acima que Nietzsche se vê dominado por esse "novo peso decisivo". "Passamos a maior parte dela na mais essencial ignorância": assim ele qualifica a vida antes desse pensamento. Depois se impõe a tentativa de testar essa "doutrina" na vida. O esboço dá apenas alguns poucos pontos de referência para uma interpretação. No entanto, Nietzsche faz uma longa obser-

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-- "ao [ponto] 4". Primeiro ele estabelece como conseq " . vaçao ~ uenc 1a uma serena indiferença em relaçao ao que passou:

o

que anteriormente incitava da forma mais i . ntensa agora age de forma completamente diversa, é visto , . [ ] , apenas como jogo e e_aceito ... , nos .nos colocamos eomo crianças em relaçao ao que anteriormente constituía

ª

seriedade da existência (KSA 9, 4 94).

Ocorre aqui uma mudança de perspectiva. Para Nietzsche, 0 conhecimento, a postura do sujeito do conhecimento em relação à existência continua sendo algo sério. Nossa aspiração pela seriedade deve ser compreendida, contudo, como toda ela sendo vir a ser, como nos negando enquanto indivíduo, vendo todo o mais possivelmente pelos muitos olhos no mundo; viver nos impulsos e ocupações de modo a, com isso, criar olhos para si; abandonar-se temporariamente à vida, para em seguida repousar nela com os olhos: os impulsos sustentam o conhecimento como seu fundamento, mas sabem onde eles se tornam adversários do conhecer: em suma, aguardam em que medida o saber e a verdade podem incorporar-se - e em que medida ocorre uma metamorfose do homem, quando ele por fim apenas ainda vive

para conhecer - (KSA 9, 494-495).

A paixão de Nietzsche pelo conhecimento, que também foi um sofrimento, ressoa nessas linhas: um interesse por muitas perspectivas possíveis. A pergunta pela salubridade da verdade é aqui levantada.

É questionável em que medida as novas perspectivas funcionam. A "inescrutabilidade" desse novo conhecimento transparece aqui: Ora, agora surge o conhecimento mais pesado e torna vida assustadoramente rica em ponderações: um exce-

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dente em prazer tem de ser comprovado, do contrário ?eve ser ~scolhida a negação de nós mesmos em relação a humanidade como meio de negação da humanidade. Já isto: nós temos de colocar o passado, nosso e de toda a humanidade, na balança e também sobrepesar - não! esse pedaço da história da humanidade irá e precisa repetir-se eternamente, isso não podemos levar em conta, nisso não temos influência alguma: embora nossa compaixão reclame e se coloque contra a vida. Nossa compaixão não pode ser grande o suficiente para derribar-se com isso. A indiferença precisa ter agido profundamente em nós, assim como a fruição na contemplação. Também a miséria da humanidade futura não deve nos dizer respeito em nada. Contudo, esta é a pergunta: se nós queremos ainda viver: e como! (KSA 9, 495).

O argumento salta até uma pergunta fatal e então retorna a uma pergunta bem pessoal. A tentativa de levar a sério o pensamento de um retorno eterno "se coloca contra a vida". O sofrimento pelo existir se aprofunda. A pergunta é se e como é ainda possível viver diante dessa perspectiva. A indiferença e a fruição estética não são aqui suficientemente evidenciadas. A primeira declaração de Nietzsche sobre esse pensamento em A gaia ciência retoma a formulação do "maior peso decisivo". Apesar de tudo, o pensamento se mostra aqui de forma leve: o eterno retorno não é anunciado dogmaticamente como uma nova sabedoria, mas, antes, como questão e hipótese: O peso decisivo - E se, um dia ou uma noite, um demônio se viesse introduzir na tua suprema solidão e te dissesse: "Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar; sem nada de novo; muito pelo contrário! A menor dor, 0 menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro,

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tudo O que pertence à vida voltará ainda a re . , d . d' . 1 Pet1r-se tudo O que nela ha e 1n 1z1ve mente grande e de . d' ., , tn IZJvelmente pequeno, tu do vo1tara a acontecer e volt , . ara a verificar-se na mesma ord em, seguindo a mesma i . , mp1edosa sucessão ... esta aran h a tam bem voltará a apa , . rece½ este lugar entre as arvores, e este instante, e eu també 1 A eterna ampulheta da vida será invertida sem desca:~ so, e tu com ela, ínfima poeira das poeiras!. .." Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando esse demônio? A menos que já tenhas vivido um instante prodigioso em que lhe responderias: "Tu és um Deus· nunca ouvi palavras tão divinas!" Se este pensamento' te dominasse, talvez te transformasse e talvez te aniquilasse; havias de te perguntar a propósito de tudo: "Queres isto? E querê-lo outra vez? Uma vez? Sempre? Até ao infinito?" E esta questão pesaria sobre ti com um peso decisivo e terrível! Ou então, ah!, como será necessário que te ames a ti próprio e que ames a vida para nunca mais desejar outra coisa além dessa suprema confirmação! - (KSA 3, 570).

"Essa vida-tua vida eterna!" (KSA 9, 513)-não é aqui proposta nenhuma doutrina de transmigração de almas, não é evocada nenhuma lembrança de vidas passadas; o acento não repousa em nenhuma especulação histórico-filosófica. Trata-se, antes, de uma vida radicalmente terrena, até mesmo "desse instante". O seu lançar de olhos, na suposição de que ele é assim, sempre será e sempre o foi, torna-se o peso mais decisivo.

O "insensato" traça a imagem da leveza para a ausência de toda orientação de ação e orientação existencial após a "morte de Deus": Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não es-

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taremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? (KSA 3,481).

O "peso mais decisivo" substituiu um ausente centro de gravidade não por um novo que reside para além da existência. Assim como antes, não existe a possibilidade de uma perspectiva transcendente. Existência e instante não são ultrapassados, mas pelo contrário aprofundados, eternizados. No entanto, a nova perspectiva pode desenvolver uma orientação e força de gravidade, pode repousar na ação como um peso decisivo. A orientação não ocorre a partir de uma indicação exterior, portanto não de forma heterônoma. Pelo contrário, a perspectiva é efetiva ao agudizar um problema: Como suportar o próprio instante? Relativamente a um asco e fastio pela própria vida e pela existência em geral o pensamento "essa vida - tua vida eterna!" seria insuportável. O experimento da "incorporação" de tal pensamento é a busca por uma forma de vida que suporte essa perspectiva. O próprio Nietzsche não se sentiu à altura desse pensamento "Eu não quero a vida novamente[ ... ]" (KSA 10, 137). Ele nota o risco que emana dessa perspectiva. Torna-se evidente que apenas a possibilidade de uma perspectiva análoga pode desdobrar sua efetividade: Examinemos como o pensamento de que algo se repete agiu até agora (p. ex., o ano ou doenças crônicas, despertar, dormir etc.). Se a repetição do ciclo é também apenas uma probabilidade ou possibilidade, então ta1nbém o pensamento de uma possibilidade pode nos a balar e nos remodelar, não apenas sentimentos ou determi-

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nadas expectativas! Como funcionou a possibilidade d danação eterna! (KSA 9, 523-524). a

Zarat~stra se cala por um longo tempo sobre tal pensamento Nietzsche dá forma à sua hesitação em relação a seu cautelas~ anúncio. Ele deposita suas expectativas no além-do-homem, no capítulo sobre a possível "redenção" da "grande tristeza", antes da declaração sobre o "eterno retorno do mesmo". Primeiro a legislação. Após a expectativa do além-do-homem, de forma horrível a doutrina do retorno: agora suportável! (KSA 10,482).

Zaratustra fala apenas sob a forma de um enigma e, ademais, para um círculo selecionado de pessoas que ele crê estarem, em razão de sua ocupação, à altura de tal incumbência: A vós, intrépidos buscadores, exploradores, e a todos os que sempre embarcaram com velas sutis para singrar mares temíveis [... ]. Somente a vós contarei o enigma que vi, a visão do mais solitário. [... ] Mudos, no meio do irônico ranger do pedregulho, pisando a pedra que os fazia resvalar, os meus pés pugna. . vam em segmr para Cima. Para cima: apesar do espírito que os atrai para baixo, para o abismo: apesar do espírito do pesadume, meu demônio e mortal inimigo. Para cima: embora gravitasse sobre mim esse espírito entre anão e míope, paralisado e paralisador, vertendo chumbo nos seus ouvidos e destilando pensamentos de chumbo no meu cérebro. [... ] Ó, Zaratustra, tocha da sabedoria, pedra lançada por uma funda, destruidor de estrelas! Foste tu que te projetaste tão alto, mas toda pedra lançada tem que tornar a cair.[ ... ] Eu, porém, tenho qualquer coisa a que chamo min~a coragem, qualquer coisa que até agora venceu em mim

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todas as minhas franquezas. Essa coragem me levou afinal a ordenar-lhe alto e a dizê-lo: - Anão! Tu! Ou Eu! (... ]. Mas a coragem é o melhor dos matadores ... quando ataca. Ela matará a própria morte porque diz: "Quê! É isto a vida? Então, vamos! Mais uma vez!" Mas uma máxima tal é uma fanfarra. Quem tem ouvidos, que ouça! (Z, Da visão e do enigma, 197-199 (209-211]).

A ascensão de Zaratustra torna-se uma vitória contra o "espírito do pesadume". Este se opõe à dinâmicà de superação de si e subida - "mas toda pedra lançada tem que tornar a cair". A superação do "grande asco" constitui a superioridade de Zaratustra em relação ao "espírito de pesadume". Ele tem a melhor condição, a saber, sua atitude afirmadora, a partir da qual se lhe torna possível desejar mesmo a repetição dessa vida. A efetividade do pensamento é esboçada. Zaratustra mostra seu reverso abismal: - Alto, anão! - disse - ou eu ou tu! Eu, porém, sou o mais forte dos dois: tu não conheces o meu mais abismal pensamento. Esse ... não o poderias suportar. Então se me aliviou a carga, porque o anão, curioso como é, saltou dos meus ombros para o chão. Acocorou-se sobre uma pedra diante de mim. Onde estávamos, encontrava-se casualmente um pórtico. - Anão! - prossegui - Olha para este pórtico, Anão! disse a seguir - Tem duas faces. Aqui se reúnem dois caminhos: ainda ninguém os seguiu até o fim. Esta rua larga que desce, dura uma eternidade; e essa outra longa rua que sobe: é outra eternidade ... Estes caminhos se entrecruzam, opõem-se um ao outro, e aqui, neste pórtico, se encontram. O nome do pórtico está escrito no frontão: chama-se "Instante"•

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Se alguém todavia, seguisse sempre, sem deter-se e d ' d . ' ca a vez mais longe, por mn estes cammhos, acaso - 1 1u gas anão, que eles eterna111ente se opoem? ' _ Tudo quanto é reto mente - murmurou com desd, , . ern d d anão. Toda a ver a e e sinuosa: o próprio tempo é 0 um círculo. _ Espírito do pesadume! Disse ~u irado. - Não aprecies tão precipitadamente as coisas ou te deixo onde estás acocorado, capenga, pois fui eu quem te colocou aí em cima! - Olha para este instante! - continuei - Deste pórtico Instante segue-se uma longa estrada, estrada eterna, estendendo-se para trás de nós; há aí uma eternidade. Tudo quanto é capaz de correr, não deve já ter percorrido alguma vez esta estrada? Tudo quanto pode suceder não deve ter sucedido, ocorrido, já alguma vez? E se tudo quanto é já foi, que pensas tu, anão, deste instante? Este pórtico não deve também ... ter existido por aqui? E não estão as coisas entrelaçadas tão solidamente, que este instante atrai após si todas as coisas futuras? E tu também, por consequência? Não será que tudo o que pode correr deverá percorrer também mais uma vez esta longa estrada que sobe? E aquela aranha preguiçosa, que se arrasta à luz da lua, e esta luz da lua, e tu e eu, que nos encontramos aqui junto ao pórtico, segregando sobre coisas eternas, não é de toda necessidade que uns e outros tenham já existido? Não nos será necessário voltar e percorrer este outro caminho que se afasta diante de nós, esse longo e terrível caminho - não é necessário que todos voltemos? Assim falava eu, em voz cada vez mais baixa, porque me assustavam os meus próprios pensamentos, e as suas segundas intenções quando, subitamente, ouvi uivar, perto de mim, um cão [... ] (Z, Da visão e do enigma,

199-201 [211-212]).

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Assim como em A gaia ciência, aqui também as qu tes oes sao decisivas. Ainda chama a atenção a pergunta sobre se e como o círculo se fecha: "acaso julgas [...] que os caminhos eternamente ;>" se opoem. A visão de fora lançada sobre o círculo da história, uma "roda da existência", é função do anão, sua visão desprezível das coisas. Ele não conhece a perspectiva do instante, mas apenas a visão da eterna monotonia do círculo. Zaratustra defende uma outra visão: em sua perspectiva, pelo contrário, "estes caminhos se entrecruzam" no instante. O ponto de vista se estende no tempo, o ponto de partida do instante. Nele se encontra uma inflexão da direção de ambos os caminhos. O instante é também um ponto de inflexão: o que passou está na direção da eternidade que regride, o que virá, na direção que progride. O anão não conhece nenhuma das direções, ele não conhece a diferença entre expectativa e lembrança. Ele encara de fora o progresso, não é nunca parte do que ocorre. "O próprio tempo é um círculo" - esse ponto de vista alcança muito pouco, ele se subtrai à perspectiva do instante. Apesar disso, Zaratustra enuncia a questão do retorno do mesmo: "Não será que tudo o que pode correr deverá percorrer também mais uma vez esta longa estrada que sobe?" A questão acena para uma interpretação: se o estoque de possibilidades for finito e o instante "atrai após si" as coisas futuras e novas constelações, então as situações irão ocorrer novamente. Nietzsche buscaria mais tarde reunir argumentos para a possibilidade de um eterno retorno do mesmo. Um esboço do ano de 1885 mescla· aspectos dessa possibilidade de pensamento com o ethos nietzscheano de um pensamento autêntico que se proíbe especulações sobre a infinitude:

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[... ] Mas qual é então a fr~s_e e crença com a qual virada decisiva, o peso dectstvo agora atingido d ª ,. 1· . o espírito científico so bre o espinto re igioso elucubrad . . d or de deuses formu 1a de maneira mais eterminada) Nse trata do seguinte: o mundo como força não deve se pensado como ilimitado, pois ele não pode ser pensad~ assim - nós nos proibimos o conceito de uma força infinita como aquele inconzpatível como o conceito "força". Portanto, falta ao mundo também a capacidade de novidades infinitas (KSA 11, 557).

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. ªº

Durante os anos após o Zaratustra Nietzsche recolheu mais reflexões em seus livros de anotação. Nestes há com frequência pensamentos e formulações que ele encontrou em suas leituras sobre filosofia natural ou ciência natural, dentre os quais interessantes especulações cosmológicas e discussões em torno do conceito de força. É patente seu esforço de comprovar a possibilidade do retorno. No Zaratustra o acento repousa nas consequências do pensamento, não em sua fundamentação. Ainda falta a questão enigmática posta aos "buscadores" e "experimentadores". O uivo de um cão torna Zaratustra atento para o cenário que se alterou: Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar, e a gemer, com o pelo eriçado, viu-me caminhar, e uivou outra vez, e pôs-se a gritar. Ouvira eu alguma vez um cão pedir socorro assim? E vi, na verdade, o que até então não houvera visto. Vi um jovem pastor a contorcer-se, anelante e convulso, rosto desfigurado, pois uma grande serpente negra caía-lhe da boca. Vira eu jamais igual repugnância e terror pálido num mesmo rosto? Adormecera, decerto, e a serpente introduzira-se-lhe pela garganta, aferrando-se ali? A minha mão começou a puxar a serpente, a puxar... mas em vão! Não consegui arrancá-la da garganta. Então

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saiu de mim um grito: "Morde! Morde! Arranca-lhe a . gritava · · em mim: ca beça.'Morde.1" Ass1m qualquer coisa o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal puseram a gritar em mim, num só grito. Valentes que me rodeais, exploradores, aventureiros! Vós todos que embarcais em velas sutis, em mares inexplorados, apreciadores de enigmas, adivinhai o enigma que eu vi então, e interpretai um pouco a visão do mais solitário! Pois foi ao mesmo tempo visão e previsão: Que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é aquele que um dia deve vir? Quem é esse pastor, e essa serpente que se introduziu em sua garganta? Quem é o homem, em cuja garganta se atravessará assim o mais negro e mais pesado que existe no mundo? O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe aconselhara: deu fortes dentadas! E cuspiu para longe de si a cabeça da serpente, e ergueu-se de um salto. Já não era homem nem pastor: transformado, transfigurado, ria! Nunca homem algum na terra riu como ele! Ó, meus irmãos! Ouvi um rir que não era rir humano, e agora me devora uma sede, uma ânsia que nunca se aplacará. Devora-me o anelo por aquele riso. Ó, como posso tolerar viver ainda? E como posso ainda tolerar morrer? (Z, Da visão e do enigma, 201-202 [213-214]).

s:

O que acontece busca algo parecido a si mesmo - "o que até então não houvera visto". Zaratustra fala como "vidente", ele pre. - e prev1sao . - ". ve" consequências: "Foi ao mesmo tempo v1sao A serpente, o "animal mais inteligente", rastejou para as entranhas de um homem. Por meio de imagens e palavras, Nietzsche faz mais uma vez uma referência clara ao "grande asco"• Mais adiante Zaratustra fala sobre si mesmo:

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afogava e se me atravessava na garganta era ., O que me 0 de tédio do homem; e tambem estas palavras co gran f "T d ., . rn as quais profetizava o pro eta: u o e igual; nada merece a pena; 0 saber asfixia" (Z, O convalescente, 274 [2g 6]).

Na sequência há uma outra referência à autonomia do indivíduo. A tentativa de salvação vinda de fora é malograda, Zaratustra não consegue retirar a serpente da garganta do pastor. Este tem de morder a si mesmo, ele precisa arrancar com os dentes a cabeça do "saber" que o estrangula. É sua tarefa superar o "grande asco" e, com este, a si mesmo. O seu riso após isso já não é mais o "riso de um homem". Se o enigma que Zaratustra propõe aos "buscadores" e "experimentadores" fosse solucionável com uma só palavra, esta deveria ser, decerto, "além-do-homem". O enigma faz alusão à conexão entre pensamento do retorno e além-do-homem. O além-do-homem é aquele que supera, como aquele que ri, o "grande asco", aquele que, portanto, suporta e faz suportar o pensamento do retorno. Abstraindo-se de seu papel, o além-do-homem permanece desconhecido. Zaratustra coloca sua questão aos "buscadores, experimentadores". Talvez isso seja uma referência de Nietzsche ao fato de que apenas a busca pode decidir quem é aquele que busca e se este pode em absoluto existir. A segunda referência à doutrina do retorno é dada pelos animais de Zaratustra, não mais por ele mesmo. Da perspectiva deles, o pensamento tem um efeito superficial. O simples aspecto de que nenhuma consciência acompanha o retorno indica não haver uma transmigração de almas; antes, é claran1ente mostrado que se trata da reprodução de uma e mesma situação.

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~lha, nós [os animais Zaratustra] sabemos O que ensinas: que todas, as. ,coisas , . . retornam eternamente, e nos com e1as; que. nos Ja existimos uma infinidade de vezes, e to d as as coisas conosco [...]. E se tu agora quisesses morrer, Zaratustra, também sabemos o que dirias a ti mesmo; mas os teus animais te suplicam: não morras ainda. Falarás sem tremer, peito aberto de beatitude, porque um grande peso e um pesado acabrunhamento te serão retirados, ó modelo de toda paciência. "Agora, morro e desapareço" - dirias - e num instante já nada serei. As almas são tão mortais como os corpos. O nó das causas em que me encontro enlaçado tornará e me criará de novo! Eu próprio faço parte das causas do eterno retorno. Regressarei com este sol, com esta terra, com esta águia, com esta serpente, não numa vida nova, numa vida melhor, nem numa vida análoga, tornarei eternamente para esta mesma vida, igual em suas grandezas e suas misérias, para ensinar outra vez o eterno retorno de todas as coisas [... ]. Disse a minha palavra, e por ela sucumbo. Assim quer o meu eterno destino; desapareço ao anunciá-lo. Chegou a hora; a hora em que o que vai morrer abençoa a s1 mesmo. Assim ... terminará a "queda de Zaratustra" (Z, O convalescente, 287-288).

Os animais antecipam a morte de Zaratustra - o final de sua queda. Nietzsche faz com que Zaratustra não morra nos quatro livros, embora sua morte tenha sido sempre planejada e concebida.

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No âmbito dos primeiros esboços do acontecimento (KS~ 377-378) há um nexo entre a morte de Zaratustra e O anuncio da doutrina do retorno. A descrição pelos animais eSt ªbelece esse

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to· "Disse a minha palavra, e por ela sucumb pensamen · º· Ass· eu eterno destino; desapareço ao anunciá-lo" un quer o m · anitnais chamam Zaratustra de "mestre do eter Os ,, . . no retor" ele não é O alem-do-homem que, nndo, poderia estar l"d 1 ando no , . ~ com essa doutrina. No texto publicado, contudo, Zaratustra nao perde O controle em nenh~ma _das palavr:s q_ue profere. Ele se cala quanto ao discurso dos an1ma1s. Na sequencia aparece O hino "D grande anelo". O anelo pelo risco daquele que superou O "grand: asco" não abandona Zaratustra mesmo depois do anúncio de seu enigma sobre o retorno: Devora-me o anelo por aquele riso. Ó, como posso tolerar viver ainda? E como posso ainda tolerar morrer? (Z Da visão e do enigma, 202 (214]). '

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Os QUATRO LIVROS DE lARATIISTRA Sobre a compos1çao Chama a atenção no Zaratustra o caráter aberto de sua composição, o que permitiu a Nietzsche inserir continuamente novas imagens, pensamentos e textos. Nietzsche reagrupou repetidas vezes seus esboços antigos antes de dar uma redação final ao livro. Não há nenhuma ordenação sistemática forçosa, pelo contrário, há as predileções de Nietzsche, seu gosto por uma determinada combinação ou sequência do texto. Tampouco há propriamente uma história das perambulações de Zaratustra, não há nenhum itinerário determinado. Ele divaga, ele está - como o próprio Nietzsche - uma hora em um lugar, outra hora em outro, retorna ou se retira. Os cenários se alteram com as imagens de pensamento, mais ainda: eles são sempre o pano de fundo destas últimas. Eles surgem como marcas distintivas e produzem relações entre os discursos e as imagens particulares de Zaratustra. As marcantes figuras com quem Zaratustra se encontra desempenham uma função análoga. Em cada um dos diversos contextos de tais encontros, Nietzsche produz referências com seus nomes ou títulos que fazem alusão a algum outro contexto. Nietzsche trabalha com siglas. Montinari vê aí uma indicação de obras futuras. Especialmente na fase tardia de sua existência criadora Nietzsche utilizou conceitos que pareciam vazios ' e quase anêmicos, que praticamente não tinham nada

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a dizer (p. ex., o conceito "homens superiores")· , cessário portanto, lembrar de todas as significa : e ne' . 1 Çoes anteriores com as quais e e os preencheu. Esses co . . .l l d nceitos dizer, stg as: e es evem sempre n " São ' por assim . • os Por a pensar aquilo que se deu anteriormente [...] (M M Notizen, LXXII). '

., 1

Para além da utilização de siglas, no Zaratustra surgem até mesmo autocitações comentadas. Dentre muitos outros, um exemplo é a seguinte observação: "Os poetas mentem demais". Daqui forma-se uma rede de comentários e associações. As imagens de pensamento e discursos de Zaratustra não são, entretanto, homogeneamente dispostas quanto ao conteúdo. Elas têm certos centros de gravidade, giram em torno de determinados núcleos conceituais. Assim, da mesma forma como as perambulações de Zaratustra não podem ser descritas por meio da indicação de algum itinerário determinado, as imagens de pensamento utilizadas por ele não se prestam a uma concatenação unificada de ideias. O que pode ser descrito são os diferentes centros de gravidade e seus deslocamentos. No esboço de prefácio para um segundo volume não realizado de Além do bem e do mal, Nietzsche apresenta este livro como um auxílio na compreensão do Zaratustra - não como comentário, mas, antes, como glossário para certos núcleos de conteúdo: [... ] Como, decerto, esse "prelúdio a uma filosofia do futuro" não fornece e não deve fornecer nenhum comentário aos discursos de Zaratustra, talvez ele seja uma forma de glossário provisório, no qual as mais importantes inovações de conceitos e de valores daquele livro - um acontecimento sem par, exemplo, comparação em toda a literatura - estão presentes e nomeadas (KSA 12, 234 ).

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A elucidação do conteúdo de importantes centros de gravidade, conforme tentou-se fazer nos capítulos anteriores, é uma maneira de oferecer instrumentos de compreensão. Como um complemento a isso, deve ser aqui fornecido um panorama sobre 0 arranjo das imagens de pensamento e discursos, descrevendo a transposição dos pontos de gravidade.

Idas e vindas -As quatro partes A primeira parte começa com Zaratustra descendo da montanha; ela termina com a partida de seus jovens e seu retorno à solidão. A segunda parte se inicia da mesma forma. Zaratustra novamente rompe sua solidão. Com efeito, ele não retorna de forma igual, no entanto, ao final da segunda parte, ele deixa atrás de si todos aqueles que o acompanham - dessa vez eles são "seus amigos" - para voltar à sua solidão. A partir desse "momento" ele conversa apenas consigo mesmo, com seus animais, com "a vida". Somente no início da quarta parte ele ressurge, dessa vez ele encontra apenas com determinadas figuras marcantes, por ele convidadas para uma festa noturna em sua caverna. Na manhã seguinte ele abandona a caverna e os convidados. Assim termina a quarta parte. Distanciamentos constituem a subdivisão do Zaratustra. "Eu traço à minha volta círculos e santos limites: cada vez são mais raros os que sobem comigo por montanhas cada vez mais elevadas" (Z, Das antigas e novas tábuas, 260 [272]) - assim Zaratustra também formula e descreve uma tendência do livro. Em sua radicalidade, os pensamentos de Nietzsche são experimentos solitários, eles são pensamentos de um solitário - ele faz a seguinte anotação em 1889: "Eu sou a solidão como homem" (KSA 13, 641).

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o prólogo de Zaratustra completa: são traçados Pon 0 capítulo é uma introdução .. . .. l tos de partida, é realizado um pos1c1onamento 1n1c1a . Zaratustra é

busca por uma atitude i~dividua~ ap~s-a "morte de Deus" e apó: 0 fracasso de todos os sistemas filosof1cos. A resolução de descer (1) e a conversa com o eremita (2) tornam isso explícito. Na sequência é feita uma introdução temática na forma de três discursos à multidão. O centro de gravidade é a contraposição entre o além-do-homem e o "último homem". O fracasso da "pregação" diante da multidão e a decisão de buscar "companheiros" põem em evidência que o livro não deve ser lido como o catecismo de uma nova fé, mas como a exortação a uma atitude autônoma. Os capítulos são lidos como comentários ao subtítulo "Um livro para todos e para ninguém", eles dão indicações sobre como o livro se dirige aos leitores.

Os discursos de Zaratustra A primeira parte "Das três metamorfoses": o primeiro discurso pode ser compreendido como uma indicação introdutória. É feita aqui alusão ao espírito dos discursos seguintes, à maneira p articular do pensar e do filosofar no Zaratustra. Uma metamorfose é esboçada: um espírito reverente torna-se um espírito liberto, um espírito livre, este se torna um espírito que joga, que afirma o "jogo daquele que cria". O segundo passo leva da crítica ao experimento. Na sequência surge a caricatura das obrigações e convicções difundidas, às quais parcialmente se liga1n detalhadas novas va174

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!orações: observações sobre a virtuosidade, sobre as paixões sobre puritanismo e hostilidade em relação ao corpo, sobre c:ime, sobre a guerra, sobre o Estado, sobre castidade, sobre amizade sobre amor ao próximo, sobre a relação entre homem e mulhe:, sobre matrimônio e educação, sobre suicídio. Diferentes âmbitos da vida são considerados sob nova perspectiva, incluindo O cotidiano. Valorações morais da época e compromissos sociais são questionados. O que mais chama a atenção é a invectiva contra 0 Estado. Zaratustra o descreve e o coloca em descrédito como um substituto da religião após a morte de Deus. Em seu lugar é encorajada a confiança nas próprias carências e paixões - também aquelas do corpo-, a coragem em arriscar, até mesmo a coragem na própria morte. Ademais, chama também atenção a incorporação de um conjunto de provérbios: "Sobre ler e escrever". A seguinte sentença de Zaratustra é peculiar da perspectiva de todas essas observações: O homem é algo que deve ser superado. Deves, por isso, amar tuas virtudes, porque por elas perecerás (Z, Das alegrias e das paixões, 44 [54]).

Há com frequência centros de gravidade conceituais em passagens que rompem parcialmente e também de forma exterior a forma algo rígida das declarações e discursos. "Dos crentes em além-mundos" repete, sob outra forma, a exortação do prólogo: "Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrenas" (Z, Prólogo de Zaratustra, 15 [19]). Trata-se de uma recusa da transcendência, de todas as tentativas de colocar algo mais verdadeiro, eterno ou simplesmente algo diverso por de-

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, ra além desta existência, ao mesmo tempo também tras ou pa . . . ..,. a . " · d na~ 0 duvidar do sentido imanente da vida. ex1genc1a e "Dos predicadores da morte" dá prosseguimento a esse pensamento. Sobre aqueles que, pelo desespero ou dúvida crucial na vida ou por outras razões, negam por completo à existência O seu sentido imanente e, em lugar disso, pregam a renúncia à vida, são feitos votos para que eles "passem depressa!" (Z, Dos predicadores da morte, 57 [68]). "Da picada da víbora" opõe ao ressentimento a imagem de um grande perdão e uma justiça serena. Zaratustra refere a si como 0 aniquilador da moral, à qual ele contrapõe essas novas reações em lugar de uma retaliação. "Dos mil e um objetivos", "Das moscas na praça pública", "Uma árvore na montanha" e "Do caminho do criador" formulam um /eitmotiv: o produzir como posição de novos valores, como o romper com velhas obrigações. A busca de uma perspectiva individual longe do gosto de um público amplo é identificada com a preparação de um tal produzir, assim como a solidão e mesmo o isolamento são identificados como sua consequência. "Da virtude dadivosa" é o acorde final e ponto alto da primeira parte: uma virtude que tudo assume, forma e marca, mas não para si mesmo e, sim, para brindar uma preciosidade superficial- a primeira seção assinala esse conjunto do produzir. A segunda repete o apelo à imanência: "permaneça fiel à terra [...] ". O homem como busca, como o ser vivo que incorporou muitos erros - primeiro, sem erros não é possível viver: essa temática é apontada como insinuação. Um esboço assinala um caminho para além do conhecer e saber até as perspectivas e possibilidades ainda não reveladas para muitos homens e cuja descoberta pode possibilitar o além-do-homem. A terceira seção é ª

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despedida dos jovens. Zaratustra repele todos que desejam seguir seus discursos como doutrinas sagradas - repele-os de volta a si mesmos e à sua autonomia. Os jovens devem "tornar-se amigos e filhos de uma só esperança" (Z, Da virtude dadivosa, 102 [112]). Zaratustra se distancia dos jovens e de sua própria doutrina, voltando à sua solidão. A segunda parte A quantidade de discursos diminui. Surgem canções, esboços de acontecimentos e encontros, seções semelhantes a diálogos. "Mas que me passou, meus animais? [...] Não estou transformado?" (Z, A criança com o espelho, 106 [116]). O tipo de Zaratustra torna-se multifacetado e mais complexo. O mestre de entendimento superior recua. Surgem nele novos traços: em Ecce homo Nietzsche denomina o "Canto noturno" uma expressão "da mais profunda melancolia". O "Canto sepulcral" exprime tristeza e desalento, o "Canto de dança", distância em relação à vida. "A hora mais silenciosa" é marcada por incerteza, protesto. O ponto de partida é um sonho de Zaratustra e sua interpretação: Por que, quando sonhava, me assustei tanto que despertei? Não se aproximou de mim uma criança que levava um espelho? - Ah, Zaratustra! - disse-me a criança -, olha-te no espelho! Mas quando olhei no espelho, lancei um grito, e deu-me um baque o coração: porque não era a mim a quem vi, mas a carantonha sarcástica de um demônio. Na verdade, compreendo de sobra o significado e a advertência do sonho: minha doutrina está em perigo; o joio quer intitular-se trigo (Z,A criança e o espelho, 105 [115]).

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Zaratustra encara esse perigo. ~o~ efeito, em outros discursos .ção diante da compa1xao, dos sacerdotes, da mo ele toma Posl ra.d d do problema da desigualdade dos homens. Ademais , e' es11 a e, boçado O pano de fundo diante do qual suas valorações devem ser consideradas, e também a problemática por trás disso.

o sofrimento pelo existir ganha forma, o "profeta" anuncia 0 pessimismo. No capítulo "Das tarântulas", Zaratustra se distancia decididamente do desprezo pela existência, da raiva da vida. A explicação de sua relação com a vida e de sua visão da vida constitui um dos núcleos conceituais dessa parte. Dele fazem parte os capítulos "Da superação de si" e "Da redenção", que introduzem a "vontade de potência" como princípio interpretativo e elucidam o pessimismo como a reversão da dinâmica dessa vontade e o além-do-homem como antídoto. O motivo do criador, que realiza transvalorações, esses silenciosos "grandes acontecimentos", é continuamente abordado. A posição de novas perspectivas, que se liga a tal motivo, se vê confrontada com concepções contrastantes de verdade.

da

"Dos sábios célebres", "Do país cultura", "Do imaculado conhecimento", "Dos eruditos", "Dos poetas " são capítulos que se referem uns aos outros e ao grande número de reflexões de Nietzsche sobre "verdade", "ilusão", "conhecimento", "mentira" e "espírito". Logo no início se encontra um panorama mais amplo sobre os temas do livro Nas ilhas bem-aventuradas, que aborda, frase por frase, conceitos e pensamentos-chave, em geral de forma bem sucinta e alusiva. Uma imagem utilizada logo no começo representa 0 tom modificado do anúncio, a serenidade madura e outonal dos "mestres", que na segunda parte se dirigem aos irmãos de espírito, aos amigos:

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Os figos caem das árvores: são bons e doces; e conforme caem, abre-se-lhes a pele vermelha. Eu sou um vento do norte para os figos maduros (Z, Nas ilhas bem-aventuradas, 109 [118]).

No final da segunda parte Zaratustra chora a despedida dos amigos. A "hora mais silenciosa" precede a partida de Zaratustra. "Tu o sabes, Zaratustra, mas tu não o dizes!" (Z, A hora mais silenciosa, 188 [200]). Zaratustra oculta seus pensamentos "mais pesados", poupa seus amigos e por isso precisa partir. A terceira parte

"Na mais baixa dor que nunca desci, até em sua água mais negra!" (Z, O andarilho, 195 [207]): a terceira parte avança até os extremos. Imagens e formas linguísticas são marcadas por esses extremos: monólogos dramáticos aparecem ao lado de hinos, diatribes, solilóquios e estruturas de texto que se repetem sob a forma rondó. O livro é rico em ação e movimento como os anteriores. Nietzsche faz a seguinte anotação sobre o caráter do livro: "[ ... ] contra a comodidade do sábio - contra a gaia ciência" (KSA 10,483). O texto de entrada, "O andarilho", resume exemplarmente o, segundo a avaliação de Nietzsche, decisivo significado do que se segue. "Da visão e do enigma" contém, em forma alegórica e com perguntas bem demonstrativas, a primeira passagem mais longa sobre o "pensamento do retorno" - o único colocado na boca do próprio Zaratustra. Mais adiante, em "O convalescente", os animais de Zaratustra fornecem sua exposição de tal pensamento. O "grande asco" de Zaratustra, cujo conteúdo se liga intimamente a esse pensamento, encontra no mesmo capítulo sua expressão mais significativa.

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"Antes do nascer do sol"' "O retorno à pátria"' ''Do grande ,, "Outra canção de dança" e "Os sete selos" se aproxim anelo , . ,., . arn da linguagem poética; a existencia surge ~~b outra luz. Os estados ,., • que esses textos tentam transmitir correspondem a pe rsd e animo pectivas do pensamento do retor~o: as coisas, ap~recem libertas de um sentido que não aquele contido nele propno, sem finalidade e, apesar disso, relevantes a partir de seu próprio possível eterno retorno; a solidão como o único lugar no qual Zaratustra pode colocar a si essa perspectiva de forma livre e mesmo impiedosa; aprofunda-se o anelo pela dotação imanente, e ainda ausente, de sentido por meio do além-do-homem; a vida é ao mesmo tempo afirmada e colocada em dúvida; a eternidade é amada como aquilo que possibilita o retorno. Uma parte dos mesmos textos que dão formulação às valorações começa a abordar problemas que, em Além do bem e do mal, podem ser descritos como problemas de hierarquia e nobreza e distinção. Há claros desenvolvimentos disso em "Da virtude amesquinhadora" e "Do seguir adiante". Deve ser ressaltada a longa passagem de um explícito autocomentário em "Das antigas e novas tábuas": "Ninguém me narra coisas novas; por conseguinte, vou narrar-me a mim mesmo" (Z, Das antigas e novas tábuas, 246 [259] ). São também indicadas possíveis posturas de outrem. "Dos trânsfugas" descreve aqueles que, diante de novas perspectivas, se refugiam em certezas religiosas ou metafísicas. Em "Da beatitude involuntária" Zaratustra tem diante dos olhos suas crianças. Trata-se de crianças em sentido figurativo, que relativamente àquelas perspectivas desenvolvem uma individualidade forte e autônoma - cada uma dessas crianças é um "vivo farol de vida invencível" (Z, Da beatitude involuntária, 204 [216] ).

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A conclusão - da . / ,da terceira parte/ é constituída pela exp1·1caçao vida const1tu1da a moda do rondo, na eternidade e no retorno.

A quarta parte A quarta parte do Zaratustra - uma"[ ... ] doutrina da alegria partilhada" (KSA 10, 482): ao contrário das três primeiras partes percebe-se. aqui um grande desvio. Surge aqui pela primeira ve; a forma linguística dos Ditirambos de Dionísio, textos de cunho poético em ritmos livres. "A oferenda de mel" é uma imagem para uma situação de partida: Zaratustra emprega sua felicidade prodigamente como isca. Ele surge como "guia, disciplinador e educador" para maior sinceridade, maior leveza e superação de si, uma "altura" maior. "O grito de angústia" - um revés: o desenvolvimento do homem até alturas maiores, no sentido de Zaratustra, está em perigo. O profeta do pessimismo mostra um perigo externo: "Mas tudo é igual, nada merece a pena, são inúteis todas as pesquisas; também já não há ilhas bem-aventuradas!" (Z, O grito de angústia, 302 [309]). Ademais, a reação de Zaratustra dá indício de um distúrbio interno de desenvolvimento: o "homem superior" dá errado. Em linhas gerais, o restante do percurso pode ser esboçado da seguinte forma: Zaratustra - seduzido para seu "último pecado", a compaixão - busca os homens superiores, achando diversas figuras marcantes que ele convida para uma festa noturna em sua caverna, e encontra após seu regresso os "homens superiores" buscados - trata-se dos próprios convidados. Na festa, estes reaprendem a rir e ter esperança, aprenden1 a alegria compartilhada.

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As figuras que Zaratustra encontra são extraordinárias. El

se sobressaem em relação à tendênc'.a histór~ca à uniformida~: diagnosticada por Nietzsche. Ademais, elas sao, decerto, figuras multifacetadas que contrastam com Zaratustra: assim como este os reis falam de coragem para arriscar-se e também de prerroga~ tivas para os melhores, mas eles mesmos são "reis muito pacatos [...] com seus velhos e finos semblantes" (Z, Diálogo com os reis: 308 [314]); o "escrupuloso do espírito" pratica uma autenticidade intelectual, porém numa busca por certezas; o "feiticeiro" é poeta, mas enquanto artista da ilusão; também o papa fora de serviço perdeu seu Deus, mas ele permanece um lamentador; o "homem mais horrível" torna-se também um sem-Deus, torna-se até mesmo o assassino de Deus - por autodesprezo; o "mendigo voluntário" ama a terra, mas como uma pobre imanência sem horizonte utópico; a "sombra", por fim, é um espírito livre, mas que se perde numa arbitrariedade agnóstica. A sesta de Zaratustra se contrapõe a seus encontros: o surgimento de jovial perfeição e completude. Mas ela dura pouco, Zaratustra logo parte novamente. Contra a arte das obras de arte, eu quero ensinar uma arte superior: a da invenção de festas (KSA 9, 506).

O dia da quarta parte, o qual Zaratustra passa realizando "buscas inúteis" pelos homens superiores, desemboca na festa noturna. "A saudação" contém já um momento de distanciamento: Vós apenas sois sinais precursores, anúncios de que se encaminham para mim outros mais elevados; e não os homens do grande anelo, do grande asco, do grande tédio, nem do que chamastes vestígios de Deus entre os homens (Z, A saudação, 351 (353]).

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"A ceia" e "Do homem superior", discurso de Zarat t d' . . . ~ us ra lVldido em vinte partes, sao expos1çoes sobre isso , ence rran do-se com . 0 conselho de Zaratustra: ."Aprendei ' pois , a ri·r, ho mens superiores!" (Z, Do homem superior, 351 [368]). Mais uma vez aparecem o "feiticeiro", o "escrupuloso" e a "sombra"~ Dessa ~ez as posições deles se revezam uma após a outra, sao sucessivamente superadas e terminam com a canção, maliciosa e frívola, da "sombra". Na sequência a caverna de Zaratustra é tomada por "barulho e riso". "A festa do asno" é uma recaída na devoção e na veneração religiosa, uma recaída intensamente oscilante e atávica, situada entre a seriedade e a paródia. Comparável com a dança do Antigo Testamento para o bezerro de ouro, uma veneração religiosa é aqui concedida a um asno. Zaratustra, que havia deixado brevemente a caverna, retorna; o evento acaba de forma pouco séria. "Vale a pena viver na Terra: um único dia e uma só festa em companhia de Zaratustra me ensinaram a amar a Terra. 'Era isto a vida? - direi à morte. Pois bem: uma vez mais!" (Z, O canto do sonâmbulo, 396 [387]) - os convidados aprenderam a alegria compartilhada. Esta os permite afirmar a existência - até mesmo sob a perspectiva de seu retorno. No "Canto do sonâmbulo" a "ciranda" de Zaratustra entoa essa superação da "grande tristeza". "O sinal" representa o distanciamento decisivo de Zaratustra também em relação aos "homens superiores". O futuro - 0 seu dia - pertencerá apenas a si próprio e a suas crianças. Compaixão! A compaixão pelo Homem Sup~rior! nte tornou-se-lhe de marmore. exc lamou, e o sem bla . · h Sej a ! Isto ... teve o seu tempo! Minha pa1xao e mm a

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compaixão ... que importa? É à felicidade que . · l1a o bra. D e pe. . . , O 1eao - e, vindo aspiro,· Aspiro a' m1n · Z aratustra esta., maduro é'meus lhos se aproximam, h fi ~ ' e egad a a minha hora. Eis a minha alvorada, meu dia que surge. Sobe s b 0 céu, Grande Meio-dia! (Z, O sinal, 408 [397]).' eªº

A quarta parte termina com a partida de Zaratustra.

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LER ZARATUSTRA No prefácio acrescentado posteriormente a Aurora Nietzsche exorta que seu livro seja "bem" lido com cuidado, "ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados ... Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendam a ler-me bem!" (KSA 3, 17). É oportuno aplicar o desejo de Nietzsche também à leitura do Zaratustra. É instrutivo aqui considerar outros textos de Nietzsche, seus autocomentários publicados, variações de textos não publicadas, trabalhos preparatórios. Ademais, complementarmente podem ser feitas referências ao Nietzsche como leitor, suas fontes literárias, sua biblioteca. Os volumes de comentário da Kritische Gesamtausgabe e da Kritische Studienausgabe são instrumentos estratégicos de ajuda.

O pensamento de Nietzsche é radicalmente aberto, sua obra é expressão dessa radicalidade. Estudá-lo atentamente vale a pena por essa razão. Mais cedo ou mais tarde toda interpretação se mostra incompleta ou muito restrita. · A leitura dos livros de Nietzsche dá origem a um atraente material de pensamento. Na melhor das hipóteses, tentativas próprias de reflexão. O Zaratustra não é um livro sagrado, o Zaratustra pode ser um alimento para o pensamento: Como diz Zaratustra: o cérebro é o estômago do coração - é preciso ter um bom estômago. É preciso digerir Zaratustra - com o cérebro (M M, Notizen, LXX).

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APÊNDICE Literatura8 Os auxílios mais importantes para a leitura do Zaratustra são os "comentários", ou, ainda, "relatórios de acompanhamento" de Mazzino Montinari e Marie-Luise Haase: MONTINARI, M. & HAASE: M.L. Kommentar zu 'Also sprach Zarathustra 1-IV'. ln: NIETZSCHE, F. Samtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA). Vol. 14. Munique/Berlim, 1980, p. 279-344. Em complemento a isso, deve ser lida a "Chronik zu Nietzsches Leben", de Mazzino Montinari. Kritische Studienausgabe (KSA), vol. 15, p. 7-212. 8. Na sequência são listadas as edições em português que foram utilizadas ou con-

sultadas para a tradução das passagens de Nietzsche citadas pelos autores. Foi igualmente levado em conta o original alemão, procurando-se manter uma padronização na tradução de conceitos centrais de Nietzsche, além de terem sido realizadas algumas alterações em relação às traduções abaixo apresentadas. A tradução das passagens do legado manuscrito de Nietzsche são de responsabilidade do tradutor. O anticristo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. • Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. • O 11nscímento da tragédia. Trad. Jacob Guinsburg. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. • Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. • Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. • A gaia ciência. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 2000. • H11111a110, demasiado lwmm10. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. • Humano, demasiado l11t111a110 II. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. • Obras i11co111pletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 1983. • Crcp1ísc11/o dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2005 [N.T.].

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,. . b' da "Kritische Gesamtausgabe" das obras d No am 1to . e . h M ·e-Luise Haase deu prosseguimento ao trabalh N1etzsc e, an . " , . o . Montinari e elucidou, em seu relatono de acom de Mazz1no . pa" Zaratustra a história de surgimento da obra v nhamento a0 ' , . . . , ariações de texto e insinuações explicitas ou indiretas à literatura utilizada por Nietzsche: NIETZSCHE, F. Werke - Kritische Gesamtausgabe, fundada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, prosseguida por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi. Berlim/Nova York, 1991. Sexta seção, quarto volume: Marie-Luise Haase e Mazzino Montinari: relatório de acompanhamento ao primeiro volume da sexta seção: Also sprach Zarathustra.

Um index completo do Zaratustra é realizado por: RZEPKA, R. & ANUSCHEWSKI,

J. W.

Index zu Friedrich

Nietzsche "Also sprach Zarathustra ". Esen: W. Anuschewski Verlag, 1983.

Literatura sobre o Zaratustra pode ser encontrada, entre outras, nas seguintes bibliografias:

International Nietzsche Bibliography, compilada e editada por Herbert W. Reichert e Karl Schlechta. Chapei Hill 1960; revisada e expandida, 1968. University of North Caroline Studies in Comparative Literature, 45. • REICHERT, H.W. International Nietzsche Bibliography, de 1968 a 1971 e 1972-1973. ln: Nietzsche-Studien. Vol. 2. Berlim/Nova York, 1973, p. 320ss. • Nietzsche-Studien. Vol. 4. Berlim/Nova York 1973, p. 351ss.

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Um panorama da literatura sobre Nietzsche de 1974 a 1987 é encontrado em: SCHMIDT, R. "Ein Text ohne Ende für den Denkenden". Studien zu Nietzsche. 2. ed. Frankfurt am Main, 1989, p. 275-319 [Athenaums Monographien Philosophie, vol. 260].

Uma bibliografia introdutória é fornecida por: SALAQUARDA, J. Bibliographie. ln: SALAQUARDA, J. (ed.). Nietzsche. Darmstadt, 1980, p. 351-361 [Wissenschaftliche Buchgesellschaft; Wege der Forschung, vol. 52] [São comentadas as obras e volumes de cartas de Nietzsche, assim como bibliografias e biografias].

Um auxílio importante para a pesquisa sobre Nietzsche é o catálogo de sua biblioteca: OEHLER, R. Nietzsche Bibliothek. Weimar, 1942 [14. Jahresgabe der Freunde des Nietzsche-Archivs].

Esse catálogo foi desde então verificado e consideravelmente ampliado pelo "Italienische Forschungsgruppe Nietzsche" , tendo sido editado em CD-ROM por, entre outros, Giulano Campioni e Paolo D'Orio.

Uma introdução à filosofia de Nietzsche: MONTINARI, M. Friedrich Nietzsche, Eine Einführung. Berlim/Nova York, 1991.

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A biografia mais extensa de Nietzsche é: KANZ, C.P. Friedrich Nietzsche - Biographie in drei Banden. Munique, 1978-1980. Sobre

O

estado atual da pesquisa em torno de Nietzsche

obtêm-se informações constantes em: Nietzsche-Studien- Internationales Jahrbuch für die Nietzsche-Forschung. Fundado por Mazzino Montinari, Wolfgang Müller-Lauter, Heinz Wenzel. Editado por Ernst Behler, Eckhard Heftrich, Wolfgang Müller-Lauter. Berlim/Nova York. Nietzsche-Forschung - Eine Jahresschrift. Hrsg. im Auftrag der Fõrder- und Forschungsgemeinschaft Friedrich Nietzsche e.V. von Ralf Eichberg, Hans-Martin Gerlach und Hermann Josef Schmidt. Berlim.

Sobre a forma de citação Friedrich Nietzsche é citado fundamentalmente segundo a Kritische Studienausgabe (Friedrich Nietzsche, Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 vols. editado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova York 1988. Vol. 14 [Antes: Munique/Berlim/Nova York, 1980, 2. ed., 1988, dtv 2234]). No corpo do texto é utilizada a abreviatura KSA, seguindo-se o volume e a paginação. Todas as citações do Zaratustra são assinaladas com a abreviatura Z, seguindo-se o capítulo e a paginação. O texto do Zaratustra encontra-se no vol. 4 da KSA (dtv 2224) (para informações bibliográficas mais exatas, consultar a indicação de literatura)9• 9. _Nas citações do Zaratustra foi utilizada a tradução publicada pela Editora Vozes: Ni~t~sche, F. Assim falava Zaratustra. Petrópolis, 2008, incluindo a paginação deS ta ediçao entre colchetes. No cotejo com o original foram realizadas modificações na

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Aden1 ais, no corpo do texto também é citado: MONTINARI Nf. Friedrich Nietzsche - Eine Einführung. Berlim/Nova York 199 { [Antes: Che cosa há "vera~ente" detto Nietzsche. Roma 1975]. A obra é citada com a abreviatura M M, seguindo-se a paginação. Também é citado: MONTINARI, M. Notizen aus dem Jahre 1967 zu "Also sprach Zarathustra ". Apêndice de Giuliano Campioni: "Die Kunst, gut zu lesen" - Mazzino Montinari und das Handwerk des Philologen. ln: Nietzsche-Studien, vol. 18, 1989, LXIX. A obra é citada com a abreviatura MM, Notizen, seguindo-se a paginação.

S80/FFLCH/USP 1

consultada · ados conce1.tos. Foi também ' . tradução de algumas passagens e d etermm, . fi 11 Znrntustrn. Trad. Gabne1 n1 a seguinte tradução mais recente d a o b r,a·· A ss1111 · Yalladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2015 [N.T.].

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ÍNDICE Sumário, 7 Nota preliminar, 9 Um caso para o leitor, 11 Nietzsche, um homem vigiado, 11 Etapas, 12 Textos e falsificações, 19 Nós lemos os textos de quem?, 22 A oficina de Nietzsche, 24 Um novo peso decisivo, 27 Um livro para todos e para ninguém?, 29 A publicação do Zaratustra, 29 Uma nova bíblia?, 31 O estilo, 35 O tom alciônico, 3 9 O tipo, 42 O nome, 44 Facetas, 47

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o outro sábio, 52 o sem-Deus, 52 Asco, 66 Afirmação, 69 Criar, amar, aniquilar, sofrer, 7 5 Somente tolo! Somente poeta!, 87 Pensamentos como experimentos - A sinceridade de Zaratustra, 97 Os sábios célebres, 99 O escrupuloso do espírito, 101 Os eruditos, 106 Os adeptos do conhecimento puro, 110 O penitente do espírito, 115 A sombra, 121 A sinceridade de Zaratustra, 125 Zaratustra, o outro sábio, 12 7 O profeta, 130 O que descobre, o que tenta, o que experimenta, 131 O que dança e ri, 132 O aleijado, 134

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pontos de fuga, 135 O além-do-homem, 135 Vontade de potência, 146 Eterno retorno do mesmo, 15 6 Os quatro livros de Zaratustra, 171 Sobre a composição, 171 Idas e vindas -As quatro partes, 173 O prólogo de Zaratustra, 174 Os discursos de Zaratustra, 174 A primeira parte, 173 A segunda parte, 1 77 A terceira parte, 1 79 A quarta parte, 181 Ler Zaratustra, 185

Apêndice, 187 Literatura, 187 Sobre a forma de citação, 190

r--_ _ _S_ B_ D___:./-=-F--=F =LC -=--=H __:_:.__ / U=--=S=-=-P_ Bib. Florestan Fernandes

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Tombo: 408370

Aquisição: Doação

Verba:

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N.F. 000.133.064

R$

6,39 14/09/2017

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ISBN 978-85-326-54

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111

9 788532 6544

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