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PARA QUE SERVE UMA ANÁLISE? Conversas com um psicanalista Jean-Jacques Moscovitz e Philippe Grancher

PARA QUE SERVE UMA ANÁLISE?

Conversas com um psicanalista Falar sobre psicanálise para o grande público, com toda a simplicidade embora sem perda do rigor conceitual, é um desejo partilhado por muitos psicanalistas desde Freud, que também nesse domínio foi um mestre - suas numerosas conferências de introdução à psicanálise são, nesse sentido, exemplares. Poucas vezes, contudo, o resultado de tal empreitada tem êxito, seja pela permanência de uma dose irredutível de hermetismo, correspondente à dificuldade de o analista operar a tradução da língua psicanalítica para o discurso corrente (não se deve esquecer que a psicanálise, como outros saberes, constitui uma verdadeira língua, falada pelos psicanalistas), seja pela redução do grau de complexidade inerente às descobertas psicanalíticas, as quais, à guisa de serem bem compreendidas, acabam sendo atingidas no que possuem de mais essencial. No primeiro caso, perde o público leitor a oportunidade de penetrar no universo discursivo freudiano, no segundo, os próprios analistas protestam ao verem na obra um desserviço à psicanálise. Em Para que serve uma análise? JeanJacques Moscovitz, psicanalista d e f o r m a ção lacaniana, atende a essa dupla expectativa: clareza e profundidade são os principais elementos desses diálogos travados com Philippe Grancher, ao longo dos quais emerge a riqueza da prática do psicanalista com suas certezas e inquietações no trabalho de escuta. Neles, o leitor leigo poderá elucidar problemas que hoje já fazem parte do cotidiano, assim como o psicanalista poderá depreender a solidez das concepções por detrás do coloquialismo das respostas.

PARA QUE SERVE UMA ANÁLISE? Conversas com um psicanalista

Transmissão da Psicanálise diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

1 A Exceção Feminina Gerard Pommier

1 3 Psicanálise e Medicina Pierre Benoit

2 Gradiva Wilhelm Jensen

14 A Topologia de Jacques Lacan Jeanne Granon-Lafont

3 Lacan Bertrand Ogilvie

15 A Psicose Alphonse de Waelhens

4 A Criança Magnífica da Psicanálise Juan-David Nasio

1 6 O Desenlace de uma Análise Gerard Pommier

5 Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia Jean Laplanche e J.-B. Pontalis 6 Inconsciente Freudiano e Transmissão da Psicanálise Alain Didier-Weill 7 Sexo e Discurso em Freud e Lacan Marco Antonio Coutinho Jorge

17 O Coração e a Razão Léon Chertok e Isabelle Stengers 18 O Mais Sublime dos Histéricos Slavoj Zizek 19 Para que Serve uma Análise? Jean-Jacques Moscovitz e Philippe Grancher 2 0 Introdução à Obra de Françoise Dolto Michel H. Ledoux

8 O Umbigo do Sonho Laurence Bataille

Próximos Lançamentos:

9 Psicossomática na Clínica Lacaniana Jean Guir

2 1 O Pai e sua Função em Psicanálise Joël Dor

1 0 Nobodaddy — A Histeria no Século Catherine Millot 1 1 Lições Sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise Juan-David Nasio 1 2 Da Paixão do Ser à "Loucura" de Saber Maud Marinoni

22 O Conceito de Renegação em Freud André Bourguignon 2 3 Repressão e Subversão em Psicossomática Christophe Dejours 2 4 A Neurose Infantil da Psicanálise Gérard Pommier 2 5 A Ordem Sexual Gérard Pommier

Jean-Jacques Moseovitz Philippe Grancher

PARA QUE SERVE UMA ANÁLISE? conversas

com um

psicanalista

Tradução: Angela Melim

Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

T í t u l o original:

Une psychanalyse Entretiens

pour quoi

avec un

faire?

psychanalyste

Tradução autorizada da primeira edição francesa publicada era 1988 por Jacques Grancher, Éditeur, de Paris, França, na coleção dirigida por Philippe Grancher Copyright © 1988, Jacques Grancher, Éditeur, Paris Copyright © 1991 da edição era língua portuguesa:

Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJ Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988) Ilustração de capa: Giorgio de Chirico, O Filho Pródigo, Impressão: Tavares e Tristão Ltda. ISBN: 2-13-041507-5 (ed. orig.) ISBN: 85-7110-170-1 (JZE, RJ)

1926

SUMÁRIO

Prefácio

7

PRIMEIRA C O N V E R S A

11

Consciente-Inconsciente, 11; Infância... Nascimento, 16; O inconsciente " c o l e t i v o " ? , 21; Papai, mamãe, 23 SEGUNDA CONVERSA

27

Primeira infância - Sucessos - Fracassos, 27; Infância - Édipo, 30; A adolescência, 35; Toxicomania, 38; Casamento, 39; Linguagem - Mentira Fala, 40 TERCEIRA C O N V E R S A

43

As neuroses, as psicoses, as perversões, 43; Desculpa..., 53; Fantasias, 54; Impotência - Frigidez, 55 QUARTA CONVERSA

57

Entrevistas preliminares, 57; Dinheiro, 62; Periodicidade, duração, férias, 64; Mentiras, 66; Cultura, 6 7 QUINTA CONVERSA

69

O " o f í c i o " do analista, 69; Alô, estou ouvindo..., 80 SEXTA CONVERSA

Transferência, 83; Fim da análise, 87; Política, 88; A somatização, 89; Miopia, 92; Frigidez, sexualidade, amor, 93

83

SÉTIMA CONVERSA

Esporte, política, televisão, mídia, 97; Linguagem: blocos de palavras?, 99; O braço quebrado, 102 OITAVA CONVERSA

Ato e responsabilidade, 105; O livro termina, Deus chega..., 109

PREFÁCIO

A criança está sempre presente no adulto, seja ele psicanalista ou não. É por isso que, depois de crescida, ela nos fala através do inconsciente. E como é próprio das crianças, diz que não é ela que gostaria de saber o que existe no inconsciente, é o inconsciente que se quer dar a conhecer: ' ' O inconsciente gostaria de passar para o consciente, mas este último não o pode receber: é pequeno demais." Isso nos dá uma esperança: talvez um dia seja suficientemente grande! Talvez um dia chegue a hora... Essa hora chega, de tempos em tempos. Chega, quando o psicanalista pode dizer ao paciente: " a resposta está dentro de você. Você me deu essa resposta na semana passada, em determinado momento. Eu a devolvo a você, essa resposta não é minha." Interpretar é isso. Mas por que esperar tanto tempo? Jean-Jacques Moscovitz nos diz por que: " P o d e - s e muito bem perceber algo sem sabê-lo." A semana passada ainda não era a hora certa porque o analista, como o paciente, estava ainda " p e q u e n o d e m a i s " para identificar a resposta de passagem. Como teria dito Freud, ela não passava de um retorno do recalcado sem eliminação do recalcamento. Naquele momento, o psicanalista nem sequer sabia que aquilo que o paciente estava dizendo era uma resposta, porque ainda não conhecia a pergunta. Além do mais, não se identifica verdadeiramente uma pergunta, ao longo de um tratamento psicanalítico, a não ser pelo fato de que a resposta já foi dada, sem que se saiba disso no ato. Só se sabe depois. Reconhecer isso é o trabalho elementar do psicanalista. É o que permite dizer, por exemplo, que o inconsciente é " u m saber que não se saberia", não ainda, embora já esteja presente. Ele é "estruturado como uma l i n g u a g e m " , dizia Lacan, aqui citado por Jean-Jacques Moscovitz. Aquilo que se acreditava perdido nas profundezas volta à superfície da fala, aqui e ali, difícil de reconhecer porque revestido pela linguagem de adulto. A criança que cada um de nós ainda é está travestida, disfarçada 7

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de gente grande. Tanto que poderíamos d o mesmo modo repetir a fórmula e dizer: " O inconsciente gostaria de passar para o consciente, mas este último não o pode receber: é grande d e m a i s . " Mais precisamente, ele se considera grande demais para perder tempo com coisas tão pequenas. Para se dar conta, por exemplo, de que ser tratado como um deus pela mãe significa, na maior parte das vezes, levar uma vida de cão. Como a criança está sempre presente no psicanalista, ele diz, brincando com as palavras e com as letras: " G O D é D O G . " Talvez d o mesmo modo o cão tenha sido tratado como Deus; é verdade, " o inconsciente brinca com as palavras". E, como as crianças, é assim que muitas vezes ele diz a verdade. Pois não somente "pode-se muito bem perceber algo sem sabê-lo", como também sem o saber podemos dizer um bocado de coisas. A verdade sai da boca da criança que ainda existe em nós. O inconsciente, em função de seu espaço, seu lugar, sua textura, propõe ao consciente um bocado de coisas heteróclitas. È o que nos vem à cabeça, de repente. Não prestamos atenção. Ou então não sabemos o que fazer com elas. Somos grandes demais, sérios demais, como a ciência: " S o b r e amor, ódio, sentimentos — a ciência não pode dizer n a d a . " Assim, nos fala o autor: " o psicanalista se ocupa disso." Ele parte em busca de tesouros nas latas de lixo da ciência e da consciência. E por isso que pede a quem vem consultá-lo que diga tudo o que lhe ocorrer, assim, desordenadamente, com a idéia de que isso poderá ser útil, chegado o momento. Útil como? Bem, como diz Jean-Jacques Moscovitz a seu interlocutor, logo nas primeiras respostas, a priori não se sabe nada. Será que isto quer dizer que a psicanálise só serve para se saber mais? Ele é categórico nesse ponto: b desejo de saber não é suficiente para sustentar o empreendimento muitas vezes difícil que é um tratamento psicanalítico. Este se dirige a alguém para dizer: " n ã o d á " quando " a ciência nada pode dizer." Isto significa que a psicanálise promete a felicidade? De jeito nenhum! Freud dizia que ela transforma a infelicidade " n e u r ó t i c a " em infelicidade " c o m u m " . Ele era muito pessimista. Digamos que ela não pode nos curar da vida porque a vida não é uma doença. O autor aqui nos dá um exemplo, talvez universal, ainda que as modalidades sejam diferentes para cada um de nós: " O sexual não é capaz de levar à felicidade, na medida em que o amor incomoda e interfere." Lacan dizia mais ou menos a mesma coisa de outra maneira: " O sexual não é o signo do a m o r . " A recíproca é igualmente correta: " O amor não é plenitude por causa do sexual." A psicanálise ajuda cada um a reconhecer isto, cada um por si, em seu caso pessoal: o desejo e o amor não podem jamais coincidir totalmente. Reconhecer um pouco isso é tentar evitar os impasses neuróticos do "totalitarismo". O amor e o sexual não

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formam nunca um todo perfeitamente harmonioso. Aqui, como em outros pontos, a psicanálise denuncia as tendências totalitárias dentro de cada um de nós, que são as nossas loucuras prejudiciais. Prejudiciais porque constituem impasses. A psicanálise nos ajuda a escapar da repetição cega que faz com que mergulhemos a toda hora nos mesmos impasses. Jean-Jacques Moscovitz fala com uma pessoa que não é psicanalista. Esta, por sua vez, gravou os diálogos, colocando a um profissional as questões que interessam a todo mundo. Sabiamente, o psicanalista não dá respostas categóricas exceto no que diz respeito à sua maneira de praticar o ofício. De resto, dá exemplos; porque o resto, justamente, não é passível de totalizar. Ele é parcial, local e, portanto, atual e histórico. Por diversas vezes, o entrevistador sugere que o praticante, desde as primeiras conversas com um futuro paciente, teria compreendido tudo, guardando " p a r a a hora certa" a comunicação daquilo que sabe. Ou então, que espera o paciente descobrir por conta própria. Muitos acreditam na mesma coisa e o próprio psicanalista pode se deixar pegar. Mas o psicanalista não é um professor que conhece com antecedência a resposta a ser dada à questão que ele coloca ou que colocam a ele. Com a sua habitual gentileza, Jean-Jacques Moscovitz quase que se deixa levar, o que é uma qualidade para um psicanalista. Diz ele, falando do paciente: "Aplicar-lhe um diagnóstico seria como quebrar, fraturar, até mesmo siderar o inconsciente." Na realidade, não é por tática curativa que ele se cala inicialmente, ainda que na maioria das vezes " t o d a análise está contida, resumida, na primeira ou segunda entrevista", ainda que " t u d o esteja presente nela, tudo seja d i t o " . Mas o que é uma resposta? E a que questões? O que se poderia dizer do que, desde o início, achamos que compreendemos um pouco, o paciente não seria capaz de entender, porque se estaria falando uma língua estrangeira, a nossa, não a dele, que temos de aprender. Jean-Jacques Moscovitz quase que não opôs resistência. Ele se entregou a seu interlocutor: " t u d o está presente, tudo está d i t o . " Mas para retomar logo em seguida: " O fim se escreve a cada passo.' ' Por quê? Pois bem, porque a coisa se passa da seguinte maneira: " O analisando se deixa levar por suas palavras." Na condição de que as entenda! E é por isso que, quando isso não acontece, nosso trabalho é devolver a ele o que é dele. PIERRE D E L A U N A Y

1 4 de junho de 1 9 8 8 Psicanalista

PRIMEIRA CONVERSA

Consciente-Inconsciente — PERGUNTA: Como poderíamos definir o consciente? — RESPOSTA: É sem dúvida a palavra mais difícil de situar. Freud disse muita coisa sobre o inconsciente, mas falou pouco do consciente — pelo menos, não se dispõe do que ele pudesse ter escrito sobre o assunto. A consciência é toda a questão que chamamos de tornar consciente, quer dizer, como algo que se sabe, pode mudar... E para mudar, como isso deve passar pelo inconsciente. O consciente é o sistema de percepção. M a s pode-se muito bem perceber algo sem sabê-lo! — A informação, uma vez recebida em estado bruto, parte rumo ao inconsciente ? — Sim, passando por aquilo que se chama pré-consciente. Freud fala, na v e r d a d e , do sistema pré-consciente/consciente, em oposição ao inconsciente. O inconsciente adquiriu um status " c i e n t í f i c o " para Freud n o m o m e n t o em que lançou, em torno de 1920, o que se diz que é sua segunda tópica, quando ele lança o conceito de instinto de morte: quer dizer, a compulsão de repetição da vida no sentido do inanimado, é muito c o m p l i c a d o de falar de repente, e no mais, a partir daí, h o u v e divisões no movimento freudiano, entre os que aceitam e os que recusam essa noção. — Eu sempre li que o inconsciente era ''Maior", mais ''vasto'' que o consciente. É correto isto? — Sim. A comparação metafórica seria de que o consciente é uma moeda de 5 francos no Oceano (o inconsciente). — Mas como se pode medir tal ordem de grandeza ? — O que é acessível ao saber humano em um dado momento é muito pouco. Por exemplo, você não consegue pensar em duas coisas ao m e s m o ti

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tempo ou, se você olha um quadro, não consegue perceber todos os detalhes de uma só vez. Como o inconsciente é infinito, jamais ocorrerá ao espírito humano definir seus limites ou seus contornos. — O consciente seria o sistema e o inconsciente uma matéria não-finita, assistêmica? — Não, não. Porque aí cairíamos no religioso. O inconsciente é um conjunto de processos, chamados primários e secundários, que estão prontos para passar para o consciente se a necessidade se fizer sentir. Por exemplo, uma percepção chega da realidade, atravessa o espaço do consciente e vai diretamente para o inconsciente ordenar-se. Por uma razão qualquer — a fabricação de um sintoma, uma necessidade de perceber a realidade de uma forma mais aguda —, o consciente vai buscar, num momento ou outro, no lugar, no local do inconsciente, esse fato preciso, pois tem necessidade disso. — O inconsciente não é um caos, então ? — Não, absolutamente. ' O inconsciente é estruturado como uma linguagem, dizia Lacan. — Essa administração do inconsciente, ela é igual para todo mundo ou é elaborada por cada indivíduo ? — Os mecanismos são os mesmos (processos de apagamento, de ocultação, de exagero, de acentuação...). Espontaneamente, o inconsciente gostaria de passar para o consciente, mas este último não o pode receber, é pequeno demais. — Como é que se pode definir as estruturas de algo que não se conhece e que ninguém jamais viu — estou falando do inconsciente ? — Justamente porque se ignora muito, há um elemento estrutural que se desprende dele. A tradução literal da palavra alemã Unbewusste, que designa o inconsciente, é: "Insabível." Nós utilizamos uma palavra mais abstrata: o Inconsciente. O consciente seria um saber que a gente sabe e o inconsciente um saber que a gente não sabe. Para conter a excitação psíquica e até mesmo endopsíquica, é preciso uma administração, senão viveríamos em explosão permanente, não se poderia sequer ter a sensação de si mesmo. Quando acordamos de manhã, somos a mesma pessoa do dia anterior, apenas porque existe uma administração psíquica. A atividade do consciente se desenrola em fases do estado desperto; quando dormimos, o consciente não funciona mais... enquanto o inconsciente, por sua vez, funciona 24 horas sem parar! Todo mundo tem administração, o psíquico não é uma bagunça. — Se essa administração fosse própria a cada indivíduo, poderia existir ciência psicanalítica, por exemplo ?

não

primeira

conversa

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— Certamente. Freud definiu a psicanálise como sendo um procedimento que permite o acesso ao inconsciente, que continua, no momento, inacessível a qualquer outro método. O inconsciente é uma relação com o objeto e a psicanálise é a sua disciplina. — Qual o interesse de se explorar o inconsciente ? O que é que se encontra ? — Freud partiu de uma iniciativa terapêutica. O interesse, basicamente, é " c u r a r " as pessoas. Mas na verdade, a " c u r a " , por si só, não existe. A disciplina não acontece se quisermos fazer com que funcione num sentido puramente mecânico. A " c u r a " vem por acréscimo. Entretanto, explorar o inconsciente pelo prazer intelectual de explorar se torna doentio. Trabalha-se para que os neuróticos possam, através da linguagem, através da tomada de consciência de certos mecanismos psíquicos deles, dominar as próprias aspirações de amor desregrado, de ódio desregrado... — Existe alguma pesquisa em estado puro sobre o inconsciente, uma espécie de psicanálise não-curativa, livre do fardo de procurar remédio ? — Não... A psicanálise em estado puro, não... De fato, é a própria psicanálise que é questionada por aquilo que ela pesquisa. Os desavisados pensam que a psicanálise vai interpretar uma obra de arte... O que se dá é o contrário. Existe a pesquisa sobre a psicanálise, mas esta se traduz sobretudo em fatos, em colóquios^ debates entre psicanalistas. Retomaremos essa questão mais adiante. — Vocês chegaram (agora que a psicanálise atinge uma idade respeitável) a teorias certas, do gênero: ' Tal pessoa sofre disto, é porque tem aquilo " ? — É isso que é embaraçoso; de fato, sabe-se um pouco demais sobre isso. A atitude que se deve manter e que muitas vezes se perde é a de permanecer num estado de frescor, como se não existisse nada antes. " É preciso reinventar a psicanálise a cada v e z . " Não é como a medicina onde há um diagnóstico a ser estabelecido. Infelizmente, se possui um saber, uma experiência, leituras, das quais é absolutamente necessário se abstrair — o que nunca é fácil. Nós temos muito poucas categorias clínicas, são oito ou dez palavras no máximo, tomadas da psiquiatria, e cujo sentido foi desvirtuado; mas toda a questão se resume no seguinte: há ou não há conceitos na psicanálise? — Ea resposta? — Não existe certeza, absolutamente! É claro, utilizam-se termos genéricos que se transformam em termos fixos. Mas os conceitos tendem a se t o r n a r ' "significantes", quer dizer, palavras em que o analista investiu

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libidinalmente. Quando tentamos transmitir o " r e s u l t a d o " dos nossos " t r a b a l h o s " , nos expressamos com as mesmas palavras, mas não as mesmas coisas! Há, entretanto, um ponto doutrinário de Freud que é o seguinte: existe um núcleo sexual infantil. Se se abandona esse axioma, não se é mais psicanalista. É do domínio da certeza. Há uma dinâmica do inconsciente estruturada sobre a questão do sexual — isto é, sobre o armazenamento, a inscrição de excitações que se ordenam entre si. — É uma espécie de mínimo denominador comum? — Sim, se a dinâmica sexual, no sentido freudiano, é negada ou abandonada, não se é mais psicanalista freudiano. — Em suma, pode-se dizer que o consciente procede da fala e que o inconsciente é o campo de pesquisas de vocês? Vocês trabalham no inconsciente? — Eu diria que é ele quem nos trabalha! — Ese falássemos

desse núcleo sexual infantil que é comum a todos

nós? — Os sentimentos de ódio e de amor do ser humano ficaram a cargo da religião, antes de Descartes... Em Le discours de la methode, Descartes muitas vezes exige um " g a r a n t e " para a sua palavra, isto é, faz questão de manter distância em relação à problemática da religião — das religiões, sejam quais forem. É a passagem para a Era Científica, antes da Revolução Francesa. O discurso científico torna-se dominante a partir de então, mas não é capaz de resolver a questão do amor, que era propriedade da religião anteriormente. A ciência nada pode dizer sobre o amor, o ódio, os sentimentos. Não existe uma "Erotologia"; a arte toma as rédeas, eventualmente, só isso. Quanto à religião, seus preceitos em relação aos sentimentos (como e por que fazer filhos, amai-vos uns aos outros...) já não têm o efeito dos séculos passados. Pois bem, o que a ciência não pode explicar, o que a religião (que foi superada pela ciência) não pode mais aplicar como tal, disso a psicanálise vai tratar. Nas trocas humanas, há um saber que vibra — os sentimentos, os laços sociais —, que vai produzir sintomas... Isso vai criar neuroses ou doenças. Esses neuróticos são portadores de um saber, por seus sintomas. O psicanalista virá a ser portador de uma suposição de saber. Ele vai se meter entre o neurótico e seu alvo. O psicanalista aceitará, durante o tempo que for necessário, estar nesse lugar para que o neurótico encontre a verdade de seu sintoma. Não se pode alcançar a completude no amor e no ódio porque há excitações que deixam traços e exigências. A um dado momento da vida será necessário dar um basta, será o primado do genital, com vistas à reprodução e à socialização. Assim, as pulsões parciais orais, anais, escópicas e as outras não poderão funcionar todas. Uma parte vai ficar à

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margem, vai estar inconsciente, mas reclamará sempre seu quinhão: passar para o consciente. Será necessária, portanto, uma organização para administrar isso. É o primado fálico — o que Freud chama de primado do falo (e não do pênis) — ou seja, aquilo que falta ao sexual para ser a atividade que poderia tornar o homem feliz na terra. Falta radicalmente ao homem, à mulher, ao menino, à menina, à mãe, ao pai. — O analista se coloca de maneira subjetiva e faz supor que ele detém a verdade em relação à demanda? — Exatamente. — Ainda que isso seja artificial? — N ã o é artificial. E um dispositivo que torna as coisas possíveis. Há uma divisão entre saber e verdade. A neurose moderna (depois de Descartes) está no lugar de objeto da ciência e o analista estaria no lugar, queira ele ou não, de ser aquele que vai dar a verdade ao saber do neurótico. — Mesmo se ele não for capaz de dar a verdade a ele? — Sim. A única forma de a " r e v e l a r " , é dizer-lhe no momento adequado. É aí que se encontra uma certa dimensão técnica ou artística na psicanálise. É preciso não só entregar, quase inconscientemente, a boa interpretação; além disso, é preciso aguardar o momento adequado. Por exemplo, observar: "Você me diz isto, será que isto não remete ao fato de que... A resposta está em você (você me deu essa resposta na semana passada em determinado momento tal), eu a devolvo a você, essa resposta não é m i n h a . " É essa a prática. — O fecho do sistema, se posso dizer assim, é o postulado de que aspiramos ser felizes e não somos? Não... O religioso pretendia isso e a medicina também, mas é a maior injustiça. Depende da possibilidade de desejar de cada um, que é o ponto de chegada de uma evolução até à idade adulta. Há um desejo singular em cada um. — Por que a sexualidade é o nó do comportamento ? — É a nossa falta, o nosso vazio, que nos estrutura. O sexual não pode levar à felicidade, na medida em que o amor incomoda e interfere; por outro lado, o amor não é plenitude por causa do sexual. — A sexualidade é o ato de fazer amor... ou outra coisa? — É o conjunto das zonas do corpo, os buracos, os olhos, o ânus, a boca, o nariz, o sexo, que são zonas que se ajustam num todo mais ou menos organizado segundo esta ou aquela pulsão. O sexual freudiano é a administração possível da falta radical de poder estabelecer um laço " t o t a l ' * com o outro de tal modo que, de uma vez por todas, não se tivesse mais necessidade de nada. No fundo, o ser humano tem uma impossibili-

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dade estrutural de se pacificar. É uma insatisfação permanente para a qual o melhor remédio é sublimar, afinal. A sublimação é fazer o ato que convém (criar) ou simplesmente conseguir ser artista da própria vida, em sintonia com o próprio sistema de pulsões. Isso implica, se possível, ser menos neurótico, não ter pontos de fixação demais que monopolizam a energia, que obrigam o sujeito a retornar todo o tempo às antigas zonas de sua existência. Ser menos neurótico, de certa forma, é conciliar a atividade de sublimação e a atividade arcaica que se funda nos primeiros laços que fizemos quando chegamos ao mundo (o que Freud designa "sexual infantil"). Como foram lançados os dados do amor e do ódio entre a criança e a mãe, entre a criança e seu meio, o pai, os irmãos e irmãs, os amigos — eis aí a problemática que se irá encontrar para sempre.

Infância... Nascimento... — Por que vocês todos atribuem tanta importância aos primeiros instantes da vida ? — Quando a criança é lançada no mundo dos adultos, mesmo antes de seu nascimento, ela embarca na sua própria história e vai ocupar um lugar que a ela designaram: a escolha do nome, a posição entre os irmãos, o fato de ser desejada ou não, tudo isso vai ser importante. Não se consegue sair dos primeiros laços de amor e de ódio a não ser reconhecendo-os. A psicanálise é a disciplina que permite saber algumas coisas sobre esses momentos originários do eu. — Que se desenvolvem ao longo de quanto tempo? — Entre, digamos, o estado intra-uterino e a idade de quatro, cinco anos. Depois disso, esses momentos se repetem pela vida afora, mas de maneira muito menos cruel, menos ampla, menos perigosa, e também menos gozosa. — A criança experimenta sensações totais? Por exemplo, ela acorda no escuro e chora, é terrível? — É um imenso cataclismo. O mundo desaba. — Ou ela brinca nua em cima da mãe, também nua... Ela irradia felicidade... — É provavelmente um orgasmo. " M a m a r " é quase um momento pós-coito. O " b e b ê " vira a cabeça para trás, e é isso o que Freud designa como "sexualidade infantil" — que deixa traços indeléveis e que o ser humano terá de recalcar, senão não consegue construir sua vida. O indivíduo é obrigado a calar o apelo que essa excitação, por não poder ser repetida, produziu nele.

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conversa

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— Se uma mulher e' abandonada pelo noivo, esse rompimento é capaz de remetê-la a uma cena muito anterior, por exemplo, à mãe que a deixa chorando no escuro com a idade de seis meses? — Sem dúvida. O abandono sempre remete aos primeiros abandonos. O que nós, analistas, constatamos é o quanto a estruturação de um laço amoroso muitas vezes se estabelece com o fim de reencontrar esse primeiro abandono, apenas com o fim de " r e v i v e r " a ligação com a mãe (ainda que apenas ao preço de uma evocação erótica, quando essa mãe abandonou a criança). Ao ficar só, a criança pequena foi obrigada a recriar o mundo materno, o que lhe causou angústia, excitação e gozo. A o provocar seu próprio abandono por parte do outro, na idade adulta, a jovem mulher vai reencontrar as condições desse mundo materno, que corresponde ao período mais rico da existência em matéria de excitações. — Essa jovem mulher (ou jovem homem) vai, em certa medida, provocar seu abandono pelo ente querido? — Sim, pode-se dizer isso. Quando o analista intervém, é por achar que essa mulher, ou esse homem, procura reproduzir suas cenas primitivas. — Bem, mas nem todo mundo faz isso, necessariamente? — Não. Quem não precisa de análise ou está em fim de análise, não tem, a priori, necessidade de reencontrar seus abandonos. A análise vai sublimar, quer dizer, vai transformar sçu sintoma em atividade adaptada à vida adulta. — Qual é a diferença — o que é que caracteriza — as pessoas que satisfazem seus desejos sem se aborrecerem, simplesmente reagindo às suas vontades (preciso de dinheiro — ei-lo; quero aquela garota — vou conquistá-la). E aqueles que, ao contrário, se metem numa espiral de "infelicidades'', para quem nada dá certo, nunca têm oportunidade, tudo isso a despeito da realidade objetiva, é claro? — Freud tinha uma expressão... O fator constitutivo. É verdade que existem pessoas que são atingidas pela infelicidade, mas preservam dignidade, alegria, e outras, bem aquinhoadas pela vida, mas sempre apagadas, o que é curioso. Há fatores de inibição. Alguns não são nada inibidos — o que não é obrigatoriamente um bom sinal, pois há uma taxa média de inibição... Não obtemos qualquer coisa unicamente porque queremos. Existe um processo de idealização de si mesmo também. O estado de serenidade é algo que passa por um nível de estado narcísico. Sejam quais forem as adversidades da vida, há pessoas que reagem de forma relativamente " f e l i z " , sabendo contemporizar, ou, ao contrário, acelerar. Essa disposição " n a t u r a l " com certeza provém de um amor bem-sucedido da mãe. Esta última conseguiu amá-las corretamente, nem demais nem de menos. Essas pessoas carregam dentro de si um amor materno benéfico, que lhes permite amar a si mesmas de maneira produtiva. Elas não são

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forçadas a compensar a falta de amor materno ou a se superestimar por causa de amor em abundância. Freud, então, dá a isso o nome de fator constitutivo; não é hereditário, é um elemento educativo primeiro: se a pessoa ama a si mesma, é difícil ela se tornar mau-caráter. — Vamos falar, mesmo de maneira imprópria, do inato e do adquirido. Você acha que pode haver pessoas dotadas desde o nascimento de uma "natureza "positiva, negativa, otimista ou pessimista, ou as pessoas se tornam assim em função de fatores externos? — Quando conflitos neuróticos se desfazem no curso da análise, quando eles são desnudados, se libera de certa forma uma espécie de energia (no sentido de investimento de amor e de ódio) chamada libido. Ao recuperar essa energia, o analisando recupera um sentimento mais agradável em relação a si mesmo. A análise é uma exacerbação de uma dimensão conhecida do dia-a-dia. O que ela desdobra, existia antes e depois. — Uma pessoa pode nascer tímida, por exemplo? — Ah, não! Eu não acredito que alguém nasça tímido. A pessoa se torna tímida porque passa a ter medo de si, e porque pensa atemorizar os outros... — Mas um homem não pode nascer introvertido, extrovertido, alegre ou triste ? — Acho que não. Ele talvez seja rapidamente apanhado num modelo ou antimodelo em relação aos que lhe são próximos, ou em diversos modelos. Mas se o ser humano nasce com um " c a r á t e r " , no sentido comum da palavra, sua relação consigo mesmo e com o seu meio não vai fazer dele, longe disso, o centro de sua personalidade. — Ah! Então é isso... — ... É verdade que se espera dele, os pais, que ele ocupe um determinado lugar (as lacunas dos pais, por exemplo). Vão dizer da criança: ele é pensativo, ele é tranqüilo, ele é alegre, ativo... O fato de o formular dá a ele um rótulo, que vai aceitar ou recusar. A criança é mergulhada num banho de linguagem: a palavra " p e n s a t i v o " transformase no que se chama de "significante"; se transfigura, passa para o corpo na forma de gestos — a criança vai se adaptar a ser pensativa, mesmo que não seja nem um pouco. Se é verdade que existem naturezas mais sonhadoras ou pensativas, essa " n a t u r e z a " é portadora da hereditariedade social ou simbólica. Então, será necessário descobrir, por exemplo, que a mãe do sujeito sonhava com um filho filósofo, padre... e lhe deu a entender isso, transmitiu a ele o desejo dela? — Vamos admitir que a criança nasça numa família pouco expansiva, com um pai e uma mãe moderados, de reações reservadas...

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— Também no caso deles não é genético. — Vamos nos abstrairão modo como eles adquiriram esse traço de personalidade. Eles são assim. Falam pouco, sorriem ao invés de cair na gargalhada. Vamos supor, agora, que a criança éparecida com eles; ela se tornou pouco loquaz por... seja lá pelo processo que for, ou esse traço da personalidade poderia ser transmitido geneticamente? — Não. A criança é modelada ou contramodelada. Os pais pouco expansivos lhe darão a idéia de que o mundo não é muito excitante, e ela fará algo com isso, talvez se convença disso. Mesmo que se suponha que a transmissão genética exista — coisa em que não acredito — o menino que tiver vivido com pais pouco expansivos vai se determinar posteriormente em função desse traço. Vai pensar, por exemplo, que, para ser amado, é preciso ser pouco expansivo. Dou mais um exemplo: o pai ausente. O menino ou a menina que viveu a experiência de um pai ausente, fora de casa, fabricará ausência para sempre reencontrar o pai. O atributo do pai se torna o ser ausente. Toda pessoa ausente será pai. O inconsciente é isso: o inconsciente registra, inscreve impressões ilógicas para o domínio do consciente; um pai ausente, aparentemente, é mau. Para determinada pessoa, isso pode tornar-se exatamente aquilo que define a presença paterna como tal. Essa pessoa reproduzirá esse esquema por toda a vida e permanecerá celibatária, por exemplo. Estar com alguém vai significar negar o próprio pai, negar o atributo paterno (o fato de jamais estar presente). Vê-se na terapia todos os dias: homens e mulheres se perguntam o tempo todo porque com um, com outro e mais outro, a coisa não deu certo; a resposta é que eles (ou elas) não fazem outra coisa senão submeterem-se ao que o inconsciente decidiu por eles. É a construção de um sintoma que alimenta esse laço com o pai. Estar só é estar com o pai. É claro, isso também pode proceder de mecanismos mais sofisticados, mas freqüentemente se vê nessa forma. — "Meu pai" definido como uma pessoa determinada? E se, por exemplo, a pessoa nu.-ica o conheceu ? Não pode inventar um rosto para ele. — " M e u p a i " é demais. Trata-se do mundo paterno. A dimensão da presença do pai, o apelo a que haja pai, portador da lei. Mas todo sintoma é resultado de dois cruzamentos de conflito. A não explica B. É preciso A cruzado com alguma outra coisa; uma corrente única de conflito não basta, como se constata na clínica. Daí, neste caso específico, a possibilidade de, por exemplo, o menino desejar ser filho único, apesar dos irmãos e irmãs. Ele passa a procurar a solidão apenas para si, se é que assim posso dizer, e torna-se francamente agressivo para com os irmãos, quer " m a t a r " os irmãos, irmãs, amigos, para sempre. A estruturação de um sintoma de solidão freqüentemente se desenvolve assim. O solitário se lamenta, se pergunta por que diabos foi condenado ao isolamento, quando na realidade ele " m a t o u " todo mundo à sua volta.

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O que se toma preocupante é que a atitude dos pais não nasce espontaneamente: ela também resulta da própria história deles, de um encaminhamento determinado que fez com que o pai fosse ausente ou, retomando o exemplo anterior, pouco expansivo. Não tem fim, e se toca na metafísica... — Ea inteligência, é adquirida ou inata? — Provavelmente genética. Mas a maneira como se vai utilizá-la não é inata. A inteligência me parece hereditária, mas o que se vai fazer com ela? — O que é puramente inato além da inteligência — que eu defino como a capacidade de traduzir uma formulação numa forma mais clara. O dom artístico ? — Os analistas se interessam demais por isso que você chama de " d o m artístico", pois isso os remete ao desejo do analista. O que faz com que um analista experimente o desejo de escutar alguém? Isso parece muito enigmático. Eu acredito que se assemelha muito ao desejo de criar. — Eo físico ? É inato e também transmitido geneticamente ? — Em parte. Mas há mímicas, há coisas... Cita-se; entre outros, o seguinte exemplo: na época em que os franceses estavam na Indochina, era possível notar que certos bebês de origem européia tinham um ar asiático; o bebê se identificava com o rosto da ama-de-leite tonquinesa. — Eu fiz a pergunta porque li um estudo estatístico americano, se é que se pode estabelecer tais números aproximadamente, muito surpreendente: aparentemente, uma proporção nada desprezível de recémnascidos não tinha sido de fato concebida pelo pai legal. Quer dizer, a mulher teria "substituído" o marido sem que este soubesse. Ora, aparentemente, pouco a pouco, a criança passava a se parecer com o suposto pai — o que fazia esse papel em casa — sem que nada geneticamente os ligasse. — Isso não me surpreende nada. Pela integração do que Françoise Dolto chama de " i m a g e m inconsciente do c o r p o " , a criança se identifica com o lado masculino, com o homem da casa. Aliás, ela provavelmente se identifica também com a mulher. Mas há muitos outros exemplos. A criança se parece logo com seu professor primário. Ouso dizer que, entre os analistas, isto é evidente: eles se imitam entre si, há um mestre e eis que seus discípulos adotam até sua aparência. — Nesse caso, isso também é válido para o mundo político. — Sem dúvida. O efeito Chirac, Mitterrand, particularmente na fala, nos sotaques. Théodor Reik, um dos alunos de Freud, é o primeiro a dar nome a essas sutilezas, variações de entonações, sotaques adquiridos. Numa terapia, o analista não se dá o direito de intervir quando o analisam

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do passa a adotar um tique verbal, como pronunciar os A de modo novo ou outra variação do mesmo tipo, mas isso o previne de que alguma coisa está por vir. Este ou aquele processo vai se revelar. Se o analisando se admira: " o l h a , por que de repente estou usando o sotaque do meu tio, que vem do país Y ? " Pelo fato de dizer, o trabalho analítico poderá ser realizado.

O inconsciente "coletivo"? — Isso me leva às propriedades de uma língua. Falar alemão ou francês não é a mesma coisa. A estrutura de uma língua pode interferir como parâmetro na maneira de pensar? Existe um inconsciente "coletivo"? — Eu não acredito em inconsciente " c o l e t i v o " . Eu prefiro o termo consciente coletivo, que nitidamente parece mais apropriado... e mais. Também não existe consciente coletivo. É ademais um ponto de conflito entre Freud e Jung. O inconsciente coletivo é uma expressão de Jung. O caos original, do qual teríamos vindo, eu coloco sob grande dúvida. A questão da língua em relação à fala, ao pensamento, me sugere, em contrapartida, um exemplo bem bobo. Em inglês, " G o d " (Deus), ao contrário, se transforma e m " d o g " (cachorro). Será que isso não modifica as relações com a religião, ou com o cachorro, entre os ingleses? Está certo admitir que o inconsciente " b r i n c a " com as palavras, as letras, e isso não tem nada a ver com um "coletivo inconsciente" qualquer. Freqüentemente, no tratamento, uma palavra me interroga, eu a trituro, a observo, depois passo a outra coisa. As palavras tomam emprestado do simbólico ritmado, na sua música única. -— Sempre se ouve falar do inconsciente "coletivo ", que é usado em todos os temperos, e de repente sou informado de que ele não existe. Isso me choca. — Freud jamais o evocou — o que, é claro, não constitui uma prova de sua não-existência. Mas falar de um inconsciente coletivo impede a possibilidade de estruturação singular de um sujeito, os dois conceitos são incompatíveis. Isso acaba e eis-nos mergulhados diretamente num pensamento totalitário, na minha opinião. O inconsciente coletivo nega a singularidade e isso significa, então, querer formular a psicanálise como teoria global da humanidade, como concepção de mundo. O psicanalista não tem justamente nenhuma explicação a dar sobre a origem do Homem. Freud tem " f i c ç õ e s " sobre isso (ele pensa, por exemplo, que na era glacial, os seres humanos tiveram vontade de se agrupar), mas esses não passam de fatores "imaginários" que ele botava em cena para poder descartar certos pontos não resolvidos de seu trabalho. Por exemplo, em

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Moisés e o monoteísmo, ele propôs que Moisés talvez pudesse ter sido egípcio, e não hebreu — hipótese muitas vezes retomada na época de Freud — e por que não, afinal? Freud utiliza a antropologia ou a história das religiões não para explicar a humanidade, mas para pôr em funcionamento pontos precisos da psicanálise. Em seu Moisés, o importante é a questão do Pai — não o Papai, mas a origem, o chamado Pai "primordial", que está apropriadamente ligado à impossibilidade de trazer uma resposta. Freud é levado, assim, a uma brecha original do saber, e isto não é filosofia... Esse livro de Freud foi publicado em 1940, depois de sua morte; aí ele retoma expressões como "herança arcaica", já empregada em 1900 na interpretação de sonhos. Ele diz que existe uma herança arcaica, diferente para cada um, que constitui, de certa forma, o ponto último, além do qual não se pode avançar. " D e onde v i e m o s ? " , a questão habitual, é transformada por Freud em " D e onde vêm as crianças?". Esta é a questão central do psicanalista e do analisando. De onde vêm as crianças? — É claro que se sabe que vêm de uma relação sexual entre os pais — mas e além disso? Por outro lado, quando uma criança se faz essa pergunta (em sua própria formulação...), pode-se dizer que se saiu bem, que não está nem louca nem doente, que ela entrou no mundo dos seres humanos. Vai ser obrigada, para responder à sua interrogação, mesmo se lhe falarem da sêmen tinha, da abóbora ou não sei o quê, a inventar uma teoria sexual infantil. Vai pensar: me dizem que são as cegonhas, a couve-flor, mas eu sei que a mamãe comeu demais, engordou, e o papai estava de acordo. Para cada pulsão sucessiva de sua infância (oral, anal...), ela vai estabelecer uma teoria a que possa se agarrar até o momento de ter acesso à coisa seguinte: é a questão Amor/Sexo que cria a criança. Assim, o processo de declínio do complexo de Édipo se instala nela. A análise não responde ao Inato/Adquirido, nem à origem do homem; é justamente um limite da análise. Freud chama isso de "incorpor a ç ã o " , quer dizer: por que tenho um corpo? Freqüentemente, as crianças olham as mãos e se perguntam o que estão elas fazendo ali; ou então se examinam ao espelho, se reconhecem, como isto se faz? Por que, quando fico na frente do espelho, eu me vejo, Toto, e não o meu companheiro Bibi? — Então, a linguagem não teria a função de inconsciente coletivo ? — Ah, sim! Eu acho que sim, mas aí, se diz tudo e não se diz nada. Houve uma vertente não-junguiana que caiu no que se chamou de " c u l tura lismo". É certo que essa dimensão existe, mas a coisa não funciona a não ser que haja um aparelho psíquico a postos, munido da possibilidade de fazer circular a libido a fim de que ela possa investir determinado elemento cultural ao invés de outro. Para investir a ausência do pai, por

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exemplo, é preciso algo que constitua sintoma — que sejam os fatos, que a mãe faça comentários... É verdade que na Europa os pais muitas vezes são ausentes... Estão trabalhando. Quando presentes, aliás, transformamse em segundas mamães. A criança é mergulhada num mundo materno e o pai, por definição, é de certa forma alguém menos presente do que a mãe. •



Papai, m a m ã e — Hoje em dia, há um bom número de profissões em que o pai trabalha em casa, ou fica em casa porque está desempregado. Isso tem alguma influência ? O pai "presente'' perde a sua "função'' ? — É possível. Mas a pessoa se torna pai " s i m b ó l i c o " inicialmente e antes de mais nada pelo papel de transmissor da lei, da vida. Vamos usar um exemplo didático para precisar o ponto de vista psicanalítico. O pai diz ao filho: " o l h a , li que esse filme é bom, cora certeza vai lhe interessar, você deve se educar... é para o seu b e m . " A criança não tem vontade alguma de ir. Mas se, simplesmente, o pai diz: " E u queria ver esse filme, eu vou, é ótimo, você não quer vir comigo? Se não quiser, vou de qualquer jeito...". A criança vai tripudiar. O pai coloca o próprio desejo em primeiro lugar: é muito mais importante para ele ir ao cinema do que levar o filho à sessão (mesmo se tudo for teatro, pois o filme, afinal de contas, é de Walt Disney). O pai que faz súplicas ao filho, porque acha que é bom para a educação dele, põe em suas mãos a seguinte mensagem: tudo que pertencer a mim, pai, eu dou a você. A criança vai recusar o direito de ter acesso a tal " d á d i v a " ; ela pedirá ao próprio pai que lhe proíba aquilo que ele está propondo. Há um ideal educativo, artístico, que o pai sonha transmitir e projetar sobre o filho. Mas o filho não está pedindo isso! Ele quer que exista a lei, que lhe seja dado um espaço interno, dentro do qual poderá, por sua vez, desejar. — Qual é a diferença entre o papel do pai eoda mãe ? Estou falando do papel "educativo"; os laços particulares que existem entre uma mãe e seu filho são uma coisa; ela o carregou, o amamentou... mas, e as funções? Por que atribuir funções aos pais? — É grande... Freud coloca dois enigmas: " O que é ' o ' Pai? *e* O que quer a m u l h e r ? " . A criança bem pequena viveria o seguinte: quem é esse cara que vem me chatear todo o tempo quando estou com a minha mãe? De onde vem esse intruso? E não " o que é uma m ã e ? ' ' e " o que quer o h o m e m ? " . O pai está do lado da existência; a mulher, do desejo. Pai/Mãe não constitui uma simetria.

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A questão que a criança vai se colocar, pelo seu laço específico com a mãe, e que reencontramos na sua análise de adulto, é: o que é que domina essa mulher? Deve haver um lugar, uma instância, que quis que isto existisse. As religiões chamaram isso de Deus, e Freud — provavelmente a partir de sua cultura judaica —- postulou: é o pai " p r i m o r d i a l " sobre a terra, que significa a intenção de fazer com que a vida exista, de viver em função do próprio desejo... Voltando ao exemplo do cinema, a criança vai recusar um pai que se comporta como uma mãe, uma boa mãe, e mesmo se acabar indo ao cinema, seguindo as recomendações do pai, vai encontrar um meio de se esquivar: dormir durante a projeção, por exemplo. O que a criança pede é que o pai preserve alguma coisa enquanto tal. O pai deseja ver o filme, pronto. Simplesmente está no lugar da Lei, portador do desejo. Se se coloca a criança na primeira posição, de ser o próprio " o b j e t o ' ' mais precioso, a ponto de o pai ter necessidade dele para a sua própria felicidade, então, aí, este último está falhando no seu próprio lugar. A criança que, na prática, é uma espécie de rei da casa, pois as pessoas se preocupam demais com ela, na certa não fabricará para si uma realidade definitiva, um reinado. O menino (ou a menina) reivindica, num dado momento, desfazer-se do mundo do pai. O filho está preso na interioridade do pai: deverá se evadir dela. A " e s t u p i d e z " das crianças muitas vezes se explica porque o pai é exigente, a ponto de considerar sua prole como um objeto pessoal. Assim, a criança não consegue sair dele. O pai deve prover energia que prove sua força ("Quero que você vá dormir à tal h o r a " ) , e ao mesmo tempo dá-la ao filho para que se desprenda dele. Em geral, as filhas, uma vez rompido esse laço, retornam ao pai mais depressa do que os meninos; estes só percorrem o caminho inverso na idade adulta, quando se tornam, por sua vez, maridos e pais. Encontrando-se na mesma situação, outra vez se tornam aliados do pai. Um exemplo a propósito do pai em casa. Os analistas muitas vezes trabalham em casal Como muitos psicanalistas, eu trabalho na minha residência. Pois bem, quando estou no meu local de trabalho, estou bem mais ausente do que se estivesse no outro extremo de Paris. Meus familiares não me interromperiam por nada deste mundo. Estou como se desaparecido; eles não querem nem saber onde estou. Aliás, a " a u s ê n c i a " no sentido puramente factual do pai só conta em seu aspecto "extrafamil i a r " . O que " m a r c a " é o pai estar presente ou ausente no espírito da mãe e dos filhos. — O pai é o mundo exterior? — Sim. A função do pai é criar o fato de que existe uma interioridade psíquica singular à qual o outro não tem acesso. —- Estou pensando numa história; vi uma menina que tem cinco semanas. Quando os pais fazem carinho, no berço, ela reage assim: com

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a mãe, dorme, fica apaziguada, serena; com o pai, brinca, se faz de interessante, se mexe... é realmente surpreendente. — As meninas reconhecem logo a presença do homem. Isso confirma o que muitos dizem. — Acrescento ainda que o fato dela estar cansada ou não, não altera nada: mesmo caindo de sono, com o pai, ela se solta, tenta subir... Com cinco semanas, eu não imaginava que o comportamento fosse além de dormir e comer... — Não, absolutamente. Ela percebe uma diferença e pede ao pai que seja portador da dimensão de ser estranho. Françoise Dolto tem a seguinte f r a s e : " T o d o pai é um pai adotivo." O genitor real é como um pai adotivo. Isso não quer dizer que este último deva se ausentar o tempo todo, é evidente! E muito interessante isso que você diz, pois eu me apoio muito nesse conceito de incorporação. A criança vai escolher como objeto hostil o pai e vai querer preservar a mãe: mas anteriormente, o pai como ideal é investido inicialmente, ele é " i n c o r p o r a d o " como lugar de interioridade. O Édipo, na cultura geral de todo mundo, é Papai/Mamãe/Criança, uma coisa totalmente incompleta. O Édipo é Pai/Mãe/Criança/Falo. Eis o esquema. Falo

pai

criança

mãe

A função do pai é distribuir o falo entre a mãe, a criança e ele. O falo é o objeto totalmente cumulado/cumulador, aquilo que falta à interioridade para que esta seja cumulada: o sentimento de mim, eu tenho, mas também sei bem que há alguma outra coisa — é mais forte que eu. O " a u s e n t e " está inscrito. Falta-me alguma coisa que jamais terei. É isso que nós chamamos Falo, e que não tem nada a ver com o órgão. Tomemos o exemplo do sujeito considerado perverso. A pessoa fetichista terá desaninhado o seu objeto que falta, seu falo; o terá colocado numa liga, num grigri, nos sapatos. Assim, vai viver a ilusão certa de que encontrou enfim aquilo que preenche a interioridade como tal e vai recusar a existência da falta. Construirá um mundo de negações da diferença. Já que tem o objeto, não há mais homens, não há mais mulheres; ele não vai suportar que a mulher constitua um ser que realmente presentifique essa falta e dará a ela um pênis, que será o objeto de seu fetichismo. O sujeito perverso freqüentemente desenvolve uma atividade social

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excessiva. A perversão apenas necessita de um parceiro que consinta; as coisas são diferentes no caso da perversidade moral. — A perversão moral necessariamente se revela, mais cedo ou mais tarde ? — Sim. A montagem perversa fracassa, pois contém aquilo que deve esconder. O " p e r v e r s o ' ' sempre acaba " c a i n d o ' ' , se desgastando, quando é desmascarado; são acima de tudo passagens ao ato anti-sociais.

SEGUNDA CONVERSA

Primeira infância — Sucessos — Fracassos — O que é um lactente ? — A análise considera que ele já está dentro da linguagem de seu ambiente. Sobre ele vai se projetar toda ou parte da história inconsciente dos pais. Simbolicamente, estava presente desde antes de ter sido concebido, no desejo dos pais. Por exemplo, da mãe que perdeu um irmão, pode-se pensar que seu primeiro filho o vá substituir. Ou, se ela é filha única, seu primeiro filho será o irmão que não teve. O lactente não pede nada disso, é claro, mas vai ter que lidar com a situação. A criança, pelo fato de existir, tem em si o desejo de viver. Para os analistas, o nascimento não se deve apenas ao fato de que o sr. X e a sra. Y se encontraram, isso é sabido, mas porque houve algo da fala deles que passou para a matéria viva. É uma espécie de triunfo sobre a morte... — Se acompanhamos esse raciocínio até o fim, a criança que nasce morta o faz por vontade inconsciente dos pais? — Na verdade, eu acho que a criança não desejada pelos pais não chega ao mundo, nem chega a ser concebida. Fica ao nível da pré-concepção. Os pais fazem amor; se há desejo de ter filhos e o filho não vem, é porque os pais não querem. A criança natimorta, é muito dramático quando isso acontece. Os pais se sentem culpados, embora não sejam. E m todo caso, não se pode dizer isso, não existe "estratégia inconsciente" palpável pelo simples fato, entre outros, de que há dois sujeitos, cada um com o seu inconsciente. — E a síndrome da "morte súbita'', então ? — Aí não estamos mais num plano psicanalítico, mas pedagógico. Os biólogos constatam que a criança, na educação moderna, é tratada exageradamente à parte. Ela precisa, ao contrário, de excitações perma27

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nentes, de ser acariciada, estimulada a nível neurológico; seria preciso estimular seu sistema nervoso central e alimentar nela uma espécie de excitação permanente para que possa lutar. A criança faz pausas respiratórias comandadas pelo sistema nervoso central, e, num dado momento, ela não consegue retomar o curso de sua respiração. Então convém não deixá-la quieta demais. Se os pais a afagam, a pegam, a divertem, ela é estimulada o tempo todo. Tudo isto vai, em parte, contra a educação moderna, que preconiza que a criança de colo, muitas vezes, tem que ir dormir sozinha. Mas nas civilizações orientais ou africanas, onde os recém-nascidos participam muito mais intensamente da vida dos pais, parece que há menos morte súbita. No ocidente é quase que proibido tocar na criança. Freqüentemente — e é de admirar — observo na minha experiência clínica que pais que tinham perdido um recém-nascido demoraram para encontrar um nome, hesitaram quanto à data do batizado... Tudo se passa como se a criança não ingressasse logo no mundo da linguagem. Eu me pergunto se a criança não foi suficientemente * 'tocada'' pelos pais (participando nisso de uma tradição corrente): a criança não permaneceu no limbo, de onde não a tiraram? Talvez. A falta de uma posição simbólica na linhagem constitui um parâmetro que não deve ser desprezado. — O que pensar da esterilidade? Sabe-se que existem causas irredutíveis de esterilidade... — Esterilidade na mulher? Porque no homem, ela é mal aceita... Porém, quando o " m a r i d o " admite sua infecundidade, o casal aceita com mais facilidade passar a formas de substituição (adoção, inseminação artificial...) A esterilidade na mulher me lembra um exemplo. Posso contar uma história muito simples. Um dia, uma mulher veio falar comigo desesperada, até mortificada, por não ter filhos. Suas melhores amigas tinham filhos, e ela parecia estar em plena rivalidade com elas. Era uma mulher impecável, educada, que havia consultado ginecologistas e especialistas, em vão, durante anos. No final, um deles a aconselhou a marcar uma entrevista com um psicanalista, já que nenhuma razão objetiva explicava aquela esterilidade. Ela veio à minha casa e me contou sua história... Era a filha mais velha de uma família de três filhos. A mãe tinha desenvolvido um hábito curioso: toda vez que ia parir e dar um irmãozinho ou uma irmãzinha à mais velha, viajava. Ia para o outro extremo da França, para junto do pai dela, numa cidadezinha. O que logo me pareceu interessante foi o nome do lugar, algo que lembrava limite ou fronteira. E eis que fico sabendo do seguinte: o homem com quem vivia a " p a c i e n t e ' ' naquele momento tinha um nome semelhante ao nome daquela cidade... Digamos, " J e a n P i e r r e " , por exemplo. Acrescento que a relação entre eles não estava em questão: ele não era estéril e os dois se completavam em perfeita

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harmonia, há muito tempo. Ela me descreveu esse homem como uma pessoa calma, fria, algo que de fato lembrava a dimensão da pedra* — é claro, pouco importa que ele seja assim de fato, ou não, na realidade. Nós não tínhamos entrado na análise. Tudo isto se desenrolava nas entrevistas preliminares. Eu expliquei a ela, então, o que Freud dizia em Totem e tabu, a propósito da tribo australiana dos " A r u n t a " . É um estudo que ele fez, a partir das descrições de Frazer — um etnólogo. Nessa tribo, as pessoas ignoravam que a relação sexual produz filhos. Achavam, de maneira certa e indiscutível, que o que dava a vida era um acontecimento climático (do tipo chuva ou tempestade...) ou a passagem, no momento certo, diante de um local sagrado e marcado. Quando a mulher se via grávida, era a conseqüência lógica da chuva ou do fato de que tinha parado diante do local sagrado no momento propício. Freud acrescentava o seguinte: o mesmo acontece, provavelmente, conosco, não no nível simbólico ingênuo daquela tribo, mas porque existe um elo íntimo — interior — uma fala, de onde surge uma outra dimensão. O bom funcionamento dos órgãos não pode ser equivalente a algo ligado à mágica. A outra dimensão — uma organização de representações inconscientes suficientemente instalada e levada por um desejo de dar a vida — é indispensável. Essa mulher devia confrontar três coisas: no nível do consciente, aquela terrível rivalidade com as amigas,— vivida na angústia; num segundo nível, a utilização de seu marido, como instrumento frígido — trazido pelo " f r i o " — em função do nome dele, " P i e r r e " , e do comportamento supostamente frio que ela descrevia; num terceiro nível, o fato de sua mãe ir parir no lugar onde vivia o pai dela, deixando para trás marido e filhos mais velhos, vinha de algo incestuoso e transmitido. Um belo dia, explicando a ela que o inconsciente às vezes se manifesta através dos sonhos, pergunto sobre os dela. Sobre o quê a senhora sonha? Ela pensa e me diz: Olha, tenho um sonho freqüente, desde a infância. Estou na minha cidade, onde eu morava antes, e tem um tanque (lavoir)... e no tanque, uma pelúcia de cor viva... Isso a faz rir muito; eu logo interfiro, mal a deixo terminar, e digo: — S i m , . . . ter (l'avoir) ou não? Quinze dias depois ela estava grávida. Depois do relato do sonho e da interpretação, ei-la grávida! — Muito bem, e o processo de "desbloqueio ", como funcionou ? — Ao permitir-lhe penetrar num espaço de desejo e de recusa alternados, ter ou não. A pelúcia provavelmente era o bebê, a criança n o ventre, ou mesmo o avô. Mas o mais importante residia no seguinte: essa

Em francês, pierre. (N.R.)



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mulher tinha medo pelo fato de que nenhuma razão ginecológica explicava sua esterilidade. Havia, portanto, uma outra razão; essa outra razão só podia ser psíquica — uma coisa terrível para ela admitir. Ela tinha muito, muito medo! Afinal, o que é que eu tenho? Com esse pequeno golpe certeiro ("ter ou n ã o " ) , se passou a uma outra dimensão, o que nós chamamos metáfora paterna, uma espécie de passarela para o inconsciente que de repente se abre sobre um campo completamente fechado e bloqueado. Isso liberou aquela dimensão fantasística que existia nela, aquele acordo tácito com a mãe, que podemos formular assim: " V o c ê não vai ter filho porque apenas uma pode ter, eu, sua mãe, na medida em que os dou ao homem tal, que está no local tal, chamado ' B ' e que é a fronteira absolutamente intransponível." Para me " a g r a d e c e r " pelo fato de ter lhe permitido " a b r i r " o campo de seu inconsciente, essa mulher quis, mais tarde, iniciar uma análise comigo; ela queria saber mais coisas, o que não é motivo suficiente para se entabular uma análise... pois tudo isto se deu em algumas sessões, em que nos limitamos a falar de seu problema.



Infância — Édipo — Na psicanálise, é possível precisar a diferença entre o lactente e o recém-nascido ? — O pediatra diz que "recém-nascido" é até os seis meses e lactente, de seis meses a dois anos. O lactente pode começar a se alimentar sozinho, ainda que chamando, brincando com a colher, virando a sopa... — E acontece algo de especial nesse momento ? — Acontece tudo! O ponto crucial é este: lá pelos dois, três anos, quando entra no Édipo, a criança vai descobrir que não é o centro do mundo. Até ali, acreditava que tinha chegado antes de todos, que era como Deus. As pessoas que estão à sua volta, evidentemente, chegaram depois. Não apenas estão ali para servi-la como ela é a primeira. A grande decepção será, na verdade, descobrir que há momentos onde pura e simplesmente não querem mais saber dela, querem que ela durma. É uma crise em grande escala. À determinada hora, os pais se transformam em homem e mulher e não são mais pais. O bebê é colocado no quarto e acabou-se. Toda a questão do lactente e da criança pequena, até o período de latência (seis-sete anos), vai consistir na perda desse estatuto de centro do mundo. — A primeira infância dura até a linguagem ser constituída, torno de dois, três anos?

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— Sim, se quiser. Mas eu penso que muito cedo, em torno de um ou dois anos, a criança sabe que existe um ideal, coisas importantes a fazer e outras coisas não importantes. A primeira estruturação é perceber a diferença entre o mundo da criança e o do adulto, que se exprime especialmente nessa história de botar para dormir em horas determinadas. Isso poderia ser chamado de "primeira educação esfincteriana" (que não vem do órgão, mas da troca humana); ela advém do fato de que, num certo momento, a criança absolutamente não estará no mesmo lugar que os pais. Por exemplo, quando uma criança chora à noite, sempre se imagina que é muito mais grave que durante o dia... Por quê? Porque perturba o sono dos pais, o narcisismo de uns e de outros. O sono provê uma reparação psíquica, permite, entre outras coisas, reconstituir a imagem corporal, a salvo de novas excitações. E é uma das questões que interessa ao analista, essa transmissão narcísica. Como se constitui o narcisismo na criança, isto é, como ela vai amar a si mesma? Sem dúvida, isso lhe*será transmitido pela maneira como cada um dos genitores ama a si mesmo. Os pais aceitam deixar o bebê sem mais se emocionar pelo fato de se separarem daquele objeto fálico para eles, e todo mundo retorna a seu narcisismo: o bebê vai dormir, os pais vivem seus intercâmbios de adultos. Por outro lado, o bebê se separa também do alimento — não tem mamadeira de noite. Assim, será necessário retornar ao narcisismo mais total, aquele em que não há nenhuma troca. — Que catástrofe... — Sim, na medida em que a criança será levada ao auge da excitação antes do abandono no berço. A mamãe vai passar talco, trocar a fralda, o pai vai dizer boa noite e fazer carinho. A criança vai começar a tagarelar. Justo na exacerbação da excitação total, ela será deixada e a luz apagada. Vão largá-la, como a um "chinelo v e l h o " , porque está na hora — e em função disso alguma coisa tem que acontecer. Onde é que ela vai poder colocar toda essa excitação acumulada um minuto antes? A questão que Freud levanta num texto célebre, O pequeno Hans* é: como uma criança consegue introduzir em sua linguagem toda essa libido que é revertida? Muitas vezes, isso não se dá sem causar danos: há dor, uma espécie de erotismo agressivo. Tomemos um exemplo: uma criança que escuta música; vê-se muito bem que ela não é capaz de absorver o fluxo de emoções que trazem as notas: ela se põe a chorar, fica emocionada demais e não consegue conter a emoção que a toma. Ela vai se recusar a entender, a aceitar, o prazer que recebe assim...

*

S. Freud, E.S.B., vol. X.

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para que serve uma

análise?

— Espere, não se pode simplesmente dizer que aquilo está arrebentando seus ouvidos, que o volume está muito alto ? — Isso não lhe faz mal algum; ela sente muito prazer, ela é ninada com aquilo... mas, em um dado momento, sente uma alegria muito grande — seu eu ainda não está preparado, ela não consegue integrar mais — e a partir de um determinado ponto, o acúmulo dessa " a l e g r i a " transborda, se transforma em sofrimento. Um segundo antes, era a plenitude; depois, de repente, aquilo se transforma em algo intolerável. Há outros limites que aparecerão com a florescência plena do Édipo... Em torno dos quatro, cinco anos, ela vai descobrir que, embora acreditasse em que o pai fosse o intruso, é ela a intrusa. O pai está ali, transmissor da lei, do nome... O pai, por mais ausente, é o grande chefe. A criança tentará então, por todos os meios, tomar seu lugar. Passará a odiá-lo. No caso da menina, na sua imaginação, acontecerá a mesma coisa, de acordo com o processo aqui descrito de modo muito esquemático: a mãe não é, absolutamente, a pessoa que convém a seu pai. Para os dois sexos, menino ou menina, o objeto sexual importante é mesmo a mãe. Embora o pai seja seu vetor igualmente para os dois, o incesto é sempre com a mãe. A dimensão da homossexualidade feminina entre mãe e filha se instala muito cedo; há, inicialmente, a dimensão da imagem narcísica: têm o mesmo corpo sem pênis — algo que as assemelha — e aguardam, as duas, o ideal masculino fálico (o homem para a mulher, o pai para a filha). É o que a mãe tem que a filha quer e, em certa medida, é a própria mãe o que o filho quer; portanto, a problemática é a mesma no nível do Édipo. O pai (enquanto função) não é senão aquele que possibilita as coisas n o cenário do Édipo. — Tudo isso se desenvolve, então, em torno da idade de três, quatro anos? — Ou mesmo antes. Certos analistas dizem isso e eu creio que é verdadeiro. A filha percebe cedo a presença do homem no quarto, na medida em que está mais freqüentemente com a mãe, e procura passar dos braços dela aos dele. Enquanto que o menino sente o pai como aquele que torna as coisas calmas e possíveis, o que torna a excitação "administrável" — Essa descoberta — "Eu não sou o centro do mundo'' — deve ser "atômica"... Como é que acontece isso? — A criança não pode obter alguma coisa sem experimentar em si sua necessidade. Ela se torna autônoma. Para comer, por exemplo, ela vai se transformar na própria mãe ao pegar o pão, a colher, ao botar a comida na boca etc. Vai ser o próprio portador do desejo de alimento. Isso só funciona, é claro (a experiência analítica mostra todos os dias), se os pais desejam que a criança coma, que tenha um bom aspecto. Chamamos isso, nós, de teoria do apoio: não basta que a criança absorva calorias para que se alimente. Uma criança que apenas ingerisse calorias morreria... porque

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assim não é trazido pelo desejo do outro que ela goze de boa saúde. É preciso, para isso, que a mãe possa se identificar com essa fase oral, em que o alimento é o objeto mais precioso (o falo é, nesse momento, oral; não existe nenhuma outra coisa). Por exemplo, é preciso que seja uma alegria para ela dar o seio ou a mamadeira ao recém-nascido. Mesmo que seja penoso, chato, tome tempo etc. Todos os pediatras, como os praticantes de análise com crianças, aconselham às jovens mães que dêem o alimento com serenidade. Evidentemente, o mesmo vale para qualquer idade da primeira infância, inclusive quando a criança já come sozinha, mas com o encorajamento da mãe. — O período do Édipo, em que se estabelece a posição em relação ao pai e à mãe, se completa em que idade mais ou menos? — Entre os cinco e sete anos, a criança ingressa naquilo que chamamos de período de latência, quer dizer, ela não pensa mais em nada disso. Ela não mais provoca a discórdia dos pais quando estes se entendem bem ou a harmonia quando brigam — ainda que isto permaneça sendo o ponto fundamental para ela, mas sem a dimensão urgente de vida ou morte que experimentou. Descobre seu lugar de filho amado e renuncia a rivalizar com o pai ou a mãe em determinados domínios. É levada a se acalmar com isso. Ela se fortalece, cria músculos, cresce. É, teoricamente, um período sem história e de resto, se aparecem problemas durante esse período, é caso de se preocupar, é bastante grave: a criança vai entrar na puberdade com preocupações que já devia ter deixado no inconsciente de uma vez por todas. Vai integrar mal a adolescência (quando o corpo reclama seu espaço), pelo fato de ter recalques falhos — isto é, que não foram bem arrumados no seu inconsciente. Aí se organiza a neurose, de uma maneira, em geral, totalmente distante dos problemas que surgiram. O mundo da neurose, independente no plano psíquico, adquire múltiplos disfarces. Nós, analistas, vemos muito bem, o peso dos estragos de coisas que não foram feitas e que, pouco a pcuco, evoluem para uma carga grande demais de excitações e de auto-agressões, às quais é preciso dar espaço. — Desligar-se do pai? Pelo lado dos meninos e das meninas?— Aí está uma questão capital: alienada, inscrita nos desejos, nas falas, nas preocupações dos pais, como a criança se separa, utilizando a memória, os traços conscientes e inconscientes que são depositados nela e que a estruturaram? Isso se reencontra no decorrer de quase toda análise nos momentos de desligamento do mundo paterno, que podem chegar a uma ruptura d o tratamento, o analisando se apegando fortemente ao analista, que não pôde ou não soube entender que iria ser, não apenas a testemunha, mas também o lugar, o alvo para um personagem do passado em vias de se simbolizar e do qual ele deve fazer o luto.

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para que serve uma análise?

O plano descritivo aqui empregado serve para dizer o que ocorre numa análise, e que na vida é a passagem para a adolescência. Com efeito, é comum se falar nas pedrinhas que o menino ou a menina vão semeando para retornar ao berço, no caso de ... na verdade, isso vai além. Como a criança se dá conta de que há nela uma alteridade à qual obedece daí em diante. Existe, portanto, uma família. Um dia ela vê que o pai não pode mais ocupar essa alteridade, essa interioridade. De certa maneira, o pai abandona a criança aos próprios desejos libidinais, de onde, aliás, adveio. O menino, ou a menina, então, se julga muito mais esperto do que achava que era. Estava colado ao modelo ideal paterno e tem em mente reencontrar o caminho através das pedrinhas, só que, de repente: um dia, quando se volta para essa imagem de pai, aí encontra os genitores unidos, algo impossível, gozando por todos os meios: comendo vorazmente, se divertindo, e tudo isso sem ele. Eu me explico; o pai e a mãe se vão pelo ar, magistralmente, às vezes a própria criança quer participar do festim... o tempo passa. O desligamento se toma necessário, é um processo interno de interiorização de seu próprio desligamento. Será preciso que o pai, no espírito da criança, seja a causa de tal operação. Tudo isso, mais uma vez, está magnificamente escrito na história do Pequeno Polegar e no texto de Freud sobre o Pequeno Hans; o pai provê a energia necessária à criança para que ela aceite a hostilidade que existe entre pai e filho. A criança pensa que " o pai* ^quer detê-la, que lhe será preciso jogar duro com ele e ser, então, o mais malvado. É esse, exatamente, o lugar fálico: ela é capaz de adivinhar tudo, ela sabe tudo. Além disso, estará vivendo diante de pais que poderá abandonar com maior facilidade e poderá fragmentar seus intercâmbios reais com eles. Isso é o marco de seu caminho para a liberdade e a aventura: de fato, ela procura se perder, levando consigo os irmãos, para medir de que modo faz parte da descendência. Através dessa " s o l i d ã o " ativamente buscada, na qual se perde, ela quer encontrar: ainda que sob pena de graves angústias, de abandono, até de terrores. Quem é ela, na verdade? Aí, isso pode ser classificado como o umbigo do inconsciente, que se desvela. Ela vai na direção desse ponto que chama por ela e cai em quê? Imagens arcaicas do pai, como a do Ogro no conto de Perrault, figura epicurista dos pais, o contrário dos pais verdadeiros. Estes não têm mais do que gozar, o que comer, pelo fato em curso de realização simbólica — de que a prole partiu. Daí, muitas vezes, a fantasia do filho sendo comido pelo pai, dominado por ele. Eis o roteiro de entrada no mundo fálico sexual: do objeto oral próprio do exterior, dentro do corpo, de comer ou ser comido, d o passivo/ativo, se passa à diferença sexual menino-menina. Assim, as irmãs, pequenas ogras do pequeno polegar, fogem para a barriga do pai

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no lugar dos meninos. Nesse caso, a imagem paterna oral, fálica, é recalcada, adormecida no inconsciente. Assim Polegar se aproveita do sono de uns e outros para inverter as coroas que distinguem as meninas dos meninos. As coroas ao mesmo tempo simbolizam a vagina dentada, a vagina perigosa — isto é, a feminilidade perigosa no menino. Tudo isso é estruturação psíquica de um único sujeito: nesse caso, menino. Ele muda o " s i n a l " e o Ogro, quando acorda, à noite, em vez de comer os meninos, devora as meninas. Daí, a criança passa à falta fálica internalizada. O menino, durante esse tempo, pegou as botas de sete léguas, e enfiou, no sentido fálico do termo, isto é, ele possui o objeto fálico. Está no lugar do falo bem-sucedido. Ele se vê fora da aldeia, enquanto o Ogro desaparece na floresta não se sabe por que razão: ele se vê, na realidade, no inconsciente, ele está recalcado... O menino ou a menina deixou de ser o objeto "pedaço do p a i " , desligou-se dele completamente, para tornar-se seu igual: ele se toma uma espécie de fator, de mensageiro, transmissor daquilo que lhe transmitiram; assim situando-se propriamente como futuro pai... Trata-se, sem dúvida, de uma sublimação das pulsões no desenvolvimento da criança com relação ao desejo e ao outro; ela então entrou na adolescência, para logo atingir o estado adulto.

A adolescência — A propósito, vamos falar da adolescência. — Durante a puberdade, o corpo desperta no plano sexual e esse é um momento crucial para os adolescentes, porque se têm o saber, não têm a experiência. Os pais podem eventualmente explicar o que ocorre com o adolescente, mas é insuficiente para suportar as excitações sexuais e libidinais que o inundam. Vê-se adolescentes muito, muito angustiados com isso. A melhor coisa, creio eu, consiste no fato de os pais tentarem atenuar isso, explicando que é uma experiência que todos conheceram, sem porém entrar em confidências íntimas demais: a experiência analítica dos adultos ensina que essa fase delicada pode até levar à desestruturação narcísica. Ter ereções, ejaculações, provoca fantasias de vergonha e autopunição consideráveis no menino. No caso da menina, abordar numa conversa o fenômeno da menstruação é natural. Em contrapartida, nunca se fala de ejaculação no mundo social. Não há referências no discurso da família de que " i s s o " se produza. O menino se vê completamente só. A rigor, fará piadas, d e modo mais ou menos distanciado, com os colegas. Enquanto que a masturbação começou bem antes, na primeira infância, de repente ela produz algo que antes não existia. O adolescente não tem

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como dizer, falar sobre isso com a família — ele imagina que seja totalmente proibido evocar o assunto: não tem nenhum lugar para isso. Nos nossos dias, parece que os adolescentes fazem amor mais cedo, o que deveria encurtar um pouco esse período difícil de atravessar. — O menino descobre, então, que tem um aparelho sexual em estado de funcionamento e que não pode fazer grande coisa com ele de imediato; mas, no fundo, ainda que não haja uma manifestação tão espetacular assim no caso da menina, o processo é idêntico ? — Sim, ela também se vê num desassossego igual, mas no caso dela, a coisa se prende ainda mais ao fato de que é preciosa. Ela pode ter filhos, a previnem. Muitas vezes, explicam a ela a contracepção, ela vai ao ginecologista. Ela então passa a ter medo do mais importante: o amor real, ao qual seu corpo responde e que ela não sabe dominar. Eventualmente, vai se meter num excesso sexual, no qual vai se dissociar: haverá uma distância entre o que ela pensa do assunto e o que ela faz. Freqüentemente, na análise, ouve-se mulheres que, em função da neurose, quando se recordam da adolesaência, falam dela na terceira pessoa, como se estivessem sob hipnose, como se não tivesse sido elas que a viveram. Fazer amor com homens que não se vai amar, a fim de preservar, ao contrário, o ser amado para mais tarde. — O fracasso na escola é sinal de uma pré-adolescência ou puberdifícil? — ... Todo sintoma tem sua história e a única maneira de dissolvê-lo é descobrir porque está presente. No caso do fracasso na escola, o discurso dos analisandos, uma vez adultos, justamente revela que é completamente absurdo combatê-lo com reeducação escolar. O sintoma se desloca, vai para outra parte e se disfarça ainda mais: angústia, inibição, turbulência, insónia, recusa de participação na vida social, até toxicomania... a análise ensina também que hoje, aos 14, 15 anos, fumar maconha é uma espécie de prova de iniciação no grupo ao qual a criança pertence e, afinal, pode não ser uma coisa grave. Pelo menos, ela fica sabendo o que é... Isso se torna preocupante, ou talvez termine mal, quando se fuma maconha aos 17, 18 anos. O " j o v e m " busca alguma coisa por essa via e as conseqüências são conhecidas.

dade

— Já que estamos falando de sinais... e o xixi na cama? — Até os três anos os pediatras admitem. A partir dessa idade, há algo que aponta para um sintoma. Na análise, essas " f u g a s " freqüentemente demonstram que aquela criança teve acesso a responsabilidades familiares, a segredos de que não deveria ser portadora. Isso se constata com freqüência. Na menina, às vezes, é uma reivindicação fálica. De todo modo, o adulto, em análise, quando evoca sua enurese, descobre que em criança ocupou um lugar que não deveria ter e deu informação disso. Eu

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não me preocupo com o fato; me preocupo com o que a pessoa me diz dele: assim, o analisando percebe que os pais estavam encantados. Isso lhes permitia continuar a cuidar do filho como na primeira infância, numa atitude, da parte deles, de egoísmo excessivo. — Uma espécie de acordo tácito entre os pais e a criança? — Sim, é isso mesmo! — Voltemos à adolescência. Então, éo irromper do estado adulto? — No plano corporal, a imagem mudou, é preciso dar resposta a isso. Também é o ingresso na socialização e o momento em que vai ser preciso se separar dos pais. O adolescente tem que construir um mundo imaginário tão perfeito como o de seus primeiros anos — porque isso vem à tona — e vai, portanto, buscar ídolos. A criança pequena pensava que seus pais eram o ideal sobre a Terra. O pré-adolescente descobriu que não é assim, o que o deixou espantado e inquieto: viu os pais como insuficientes — gentis demais, maus demais, medrosos, frouxos etc. — e por isso mesmo tornou-se indispensável recriar um ideal idêntico ao que perdeu. Daí, na adolescência, as formas de adoração total por cantores, personalidades, em geral, pessoas " q u e sabem gozar" e o demonstram. — Madonna etc. ? — Sim, claro. E nesse momento os pais devem fazer papel de idiotas. Se insistirem em querer se meter no lugar do ideal, a criança vai ficar grudada nos pais e será prejudicada. Assim, aqueles que têm a "infelicidade" de ter pais dotados, com posições sociais importantes (filhos de cantores, de músicos conhecidos ou de escritores...), às vezes ficam totalmente esmagados por essa imagem inatingível. Quando uma criança tem sucesso, em geral, é porque conseguiu afinal encontrar um ideal fora da família. O mundo da escola, e o das férias, é muito importante. Poder mandar as crianças para fora do círculo familiar durante as férias é um conselho pedagógico proposto com freqüência. — Estou pensando numa coisa. Tomemos um fã de Élvis Presley, de 40 anos, que continua, a despeito de todos os obstáculos, a viver com seu ídolo. Isso é uma espécie de reação de pós-adolescência, ou uma forma de perpetuar a adolescência? — Quem sabe? Pode ser que ele de fato ame Élvis Presley! Seja como for, a problemática do ideal não está resolvida de modo algum. Para abandonar os ideais, é preciso ser muito forte, daí o grande problema entre os jovens de hoje, dos quais se diz que não têm mais " i d e a l " . Não existe mais um grande conflito militar (como antes, a Algéria ou o Vietnã... ainda bem), mas isso diminui as discussões... por outro lado, os grandes debates sobre política — dar um sentido à cidade — desapareceram e deram lugar a um temor geral em relação a problemas concretos, como o desemprego, que deixam pouco espaço à dissertação. O discurso dos adolescentes

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estaria atualmente desprovido de qualquer ambição em particular? Enquanto analista, temo que isso provoque grandes danos. Eles não podem transcender suas aspirações mergulhando num mundo inacessível; ao contrário, o ideal deles se torna acessível: ter um carro, roupas bonitas, uma " m u l h e r " . . . Onde está o ideal? Entretanto, com a ajuda da experiência, irremediavelmente, como a geração anterior, eles encontrarão alguma coisa, talvez da ordem, do discurso, da comunicação... uma melhoria dos intercâmbios em detrimento do culto do objeto.

Toxicomania — Continuemos nos apoiando na escuta dos adultos em análise... A toxicomania é uma atividade coletiva, que exibe um gozo desconhecido dos pais, enquanto geração precedente. Esses " j o v e n s " acham que estão surpreendendo os pais sem muito trabalho, deixando-os em outro plano, até subverter a ética que lhes foi transmitida. Há, às vezes, toxicômanos que vêm à análise; tenho vontade de dizer a eles — mas muitas vezes é difícil fazer isso passar dessa forma: voltem a viver com os seus pais., isto para restabelecer o sentido das gerações, da mais velha à mais nova, e não o contrário. A coletivização da toxicomania inverte a transmissão Pais/Filhos. Aí, de repente, são os filhos que possuem o instrumento do gozo, do qual os pais tudo ignoram. É a tomada da Bastilha... Existem consultas para os pais de toxicômanos, onde estes vêm falar dos filhos. Por que se chegou a isso? O que o toxicômano quer é reproduzir a primeira vez. Mas de onde surgiu essa primeira vez? Se a droga realmente deteriora o organismo, e evoca a autodestruição, há muitas vezes uma dimensão de ajuste de contas com um gozo que o toxicômano quer mostrar a outrem, pais e inclusive analista. É por isso que ele é — no mais — muito pouco desligado de seu meio familiar — mesmo se o deixou para viver em outra parte. Por outro lado, o pico, o ato de se picar, descreve um imaginário próximo da dimensão da placenta, intra-uterino — onde a criança no ventre dava prazer à mãe... Será uma simples hipótese? — A partir de que momento você considera que um adolescente se torna adulto, no caso em que tudo aconteça normalmente, sem maiores contratempos como a droga ? — No dia em que chega a hora de tomar uma decisão. Realizar um ato, algo por aí. Em particular, saber renunciar... O que não quer dizer que não haja recaídas ulteriores. O adolescente chega a ser adulto, medianamente neurótico, no dia em que, diante de responsabilidades íntimas, ele

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não explode — o que quer dizer, grosso modo, que no trabalho ele adquire autoridade para fazer o que deve e nas relações amorosas, capacidade de decidir sim ou não! — Sim, mas admitamos que um jovem de 12 anos tome uma decisão ajuizada e a mantenha, então ele é adulto ? — Não. Tomar uma decisão não basta. É preciso que ela se desenvolva nos fatos. — Eu dou um exemplo. Entram ladrões no apartamento e ameaçam seriamente osfamiliares. O menino de 13 anos consegue fugir pela janela, prevenir a polícia e salva todo mundo... — Isso quer dizer que ele é astuto, que tem consciência do perigo. Não é uma decisão interna em relação a ele enquanto realidade habitada por seu desejo de criar, de fazer qualquer coisa nova. Os animais também sabem reagir ao perigo, se identificar com essa situação de sobrevivência. — Eu estava pensando principalmente na guerra. Você sabe, os alemães desembarcam, o menino foge e conduz os pais à montanha... — A criança de 12, 13 anos é muito hábil. Mas um minuto depois, nem pensa mais no assunto. Ela apenas se virou. Usou bem a inteligência, mas o ideal que ela propõe a si mesma, o fato de não desistir quando este tiver êxito, isso é outra coisa. Quero dizer, aliás, que para a maioria das pessoas, o medo de ter sucesso é maior que o de fracassar. Principalmente entre as mulheres; encontrar o homem da sua escolha, por exemplo, é colocado no lugar de algo proibido. Isso se vê a toda hora. A maior parte das mulheres que se lamenta (Por que não encontro? Não tenho sorte...) se proíbe de encontrar o que procura. Isto não advém de um quebra-cabeça psicológico: se tem muito mais medo de gozar do que de ser logrado.

Casamento — Muitas vezes penso numa etapa importante da vida, que sela bastante bem essa passagem ao estado adulto do qual falamos: o casamento. — O casamento... — Casamento, ou não, aliás; o fato de, de repente, viver com alguém. — Você está indo depressa... O casamento não é o acordo mútuo de viver junto. É uma instituição em que o Estado intervém. O laço pelo casamento, eu diria, faz com que se atinja zonas de ódio no interior do casal, às quais não se chegaria pela via do simples concubinato. As pessoas ficam ligadas por um contrato social, instituído, jurídico, do qual é difícil se desfazer. Freud tem essa frase: " s e esposa o inverso da própria

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n e u r o s e " , o que significa que se esposa o inverso daquilo que se conhece de si; até se poderia acrescentar: se esposa o próprio inconsciente. Sendo a neurose aquilo que queria passar do inconsciente para o consciente, o que resta, vai se encontrar no parceiro — e se não se encontra, nele se coloca! Tudo aquilo que talvez não tenha sido resolvido na primeira infância ou na infância será projetado num alvo que não se largará: o cônjuge. Contudo, aqueles que se decidem a fazer uma análise, muitas vezes, é porque romperam uma relação amorosa ou perderam o ser amado. São essas as duas razões, vizinhas no plano da dinâmica do inconsciente: a perda do alvo. (O ódio, a libido) volta ao eu e não se sabe onde colocá-los. O que fazer com eles? A pessoa tem que lutar contra, não se sente mais seu próprio ser, há um outro ser — aquele mesmo do qual não se queria " s a b e r " e que se viu no outro — que retorna brutalmente. No nível da prática analítica, é parecido: quando um analista morre, toda a transferência que o analisando fez para o analista retorna ao remetente. Eis as duas coisas que o analisando suporta mal: ser posto para fora ou o falecimento do analista. Voltando ao casal, freqüentemente se constata o seguinte: as pessoas hesitam ao se divorciar, é claro, por causa dos filhos, do apartamento e t c , mas também porque elas não querem abandonar o * "alvo". O cônjuge representa inconscientemente o próprio ódio que elas têm em relação a si mesmas. Chamamos isso de "constituição do objeto primário". Todo ser se constitui em torno de um vazio, uma espécie de buraco que ele veste com a sua vida, sua sociabilidade, seus intercâmbios. Esse vazio, os doentes mentais graves não o constituíram. Por isso se põe em volta deles uma casca artificial, do gênero muros, asilo, medicamentos, camisa-deforça. Os indivíduos neuróticos constituíram esse vazio a partir daquilo que faltava a eles e o colocarão na relação com o outro no casal. Tal perspectiva, uma vez reconhecida no tratamento psicanalítico, permitiria simbolizar esse ódio, dissociá-lo da pessoa do cônjuge.

Linguagem — Mentira — Fala — Esse "vazio" se formou em relação aos pais, à imagem do pai ou da mãe, como uma espécie de seqüela fabricada em torno do que eles eram ? — Não existem somente a identificação e a contra-identificação. As crianças colocam ideais positivos e negativos nos pais e descobrem a diferença muito cedo, acredito eu; podem, assim, construir a possibilidade de mentir e de pensar por conta própria. Quando a criança mente, passa a existir, se constitui como sujeito. No início, ela pensa que tudo o que ela

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diz os outros sabem; no dia em que se dá conta de que, ao dizer alguma coisa, os outros não estão absolutamente a par de seus pensamentos, leva " um choque. É o fim da onipotência do pensamento. Até aí, ela estava convencida de que seu pensamento se transmitia espontaneamente, por simples continuidade dos intercâmbios. — É verdade o que você diz. Eu estava de férias neste verão com uns amigos que têm uma menina de três anos. Ela passava o tempo a dizer bobagens, num tom completamente sério, coisas do tipo: "Eu vi um peixe de 20 metros de comprimento, que voava e lançava chamas..." Todo mundo ria, ela também, e ela aí começava uma brincadeira nova: dizer o que lhe passava pela cabeça, e que nós ignorávamos. — Talvez ela também visse os pais sob essas formas que descrevia... A constituição da linguagem é complicada: antes de tudo, é preciso uma gramática, uma construção, uma lógica, tempo para aprender e, acima de tudo, o sujeito sabe que tem uma alteridade nele, repositório de uma verdade que lhe diz respeito. Produzem-se acontecimentos traumatizantes e estruturadores; é preciso integrá-los (o trauma é estruturador). Por exemplo, a mãe está ali, em seguida não está. A " a u s ê n c i a " se inscreve como um traço particular que deixará lembrança. Depois, a mãe volta, e o traço persistirá. O " t r a ç o " , no final das contas, será: a — mãe — vai embora, e ela — volta, isto é, o Traço + seu Apagamento. Então, bastará pensar que, se ela não está ali, ela volta. É a onipotência do pensamento. A criança construirá uma teoria sobre o fundo de ausência, nesse caso em particular. (

— Essa menina — perfeitamente saudável e feliz — que tagarelava na praia, será que se pode dizer que ela está identificando e experimentando a organização de seu pensamento, como você descreveu? — Talvez ela estivesse ocupando o lugar fálico. Para lá do bom senso, ela sem dúvida deve ter guardado nela as palavras dos pais. N o fundo, por que é que se fala sem parar dos pais e dos filhos? Toda pessoa que decide fazer análise, depois de um acordo com o analista (é preciso que haja sintomas de apelo...), por que fala de seus pais? É porque, penso eu, a fala lhe foi transmitida por eles. A sessão de análise é o único lugar onde se pode dizer o que se quer sem conseqüências sociais; e os pais foram os que primeiro fizeram barulho com a boca em torno da criança, mesmo antes do nascimento. A criança fala se perguntando como se familiarizou com a linguagem. É a constituição do objeto interno. Freud jamais se desviou do núcleo sexual infantil: como conter a excitação sexual? Através de um psiquismo que está em elaboração. E Lacan não parou de perguntar: o que é falar? Por que, quando se fala, só nos entendemos de viés? O mal-entendido no discurso: o que ouço não é

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necessariamente o que me dizes... O que é apaixonante é que Lacan uniu a Freud com relação ao núcleo sexual infantil, pela problemática que vem estruturar esse vazio interior d e cada um (a relação estrutural inconsciente com a linguagem é o fundamento que trouxe o ensino Lacan à psicanálise desde a década de 50).

se do do de

TERCEIRA CONVERSA

A s n e u r o s e s , a s p s i c o s e s , as p e r v e r s õ e s — O que significa aCj>alavra neurose ?J — É uma palavra que apareceu no século XIX, com o sentido de substituir a palavra " n e r v o s o " . Pouco a pouco, a " n e u r o s e " qualificou as doenças menos importantes que as catalogadas com o nome de " p s i c o s e s " que são, estas últimas, segundo os psiquiatras, as doenças mentais mais graves. Existem três grandes " c a p í t u l o s " na psiquiatria: são as psicoses, as neuroses e as perversões. Freud faz uma distinção nosç>gráfica dessas três grandes síndromes não orgânicas, isto é, que não têm origem em lesões, nem origem tóxica ou biológica. Ele destaca as neuroses, pois são as mais encontradas e mais acessíveis à psicanálise. — Vocês não tratam das psicoses, pelo que estou entendendo, deixam essa parte à psiquiatria? — Não, a coisa não é simples porque existem formas de passagem da neurose à psicose muito sutis e muito difíceis de classificar; além do mais, o objetivo do psicanalista não é tanto o diagnóstico mais exato possível, mas, antes disso, sua ação na relação terapêutica que se desenvolve entre ele e o paciente. — O que são as psicoses? — As neuroses narcfsicas, principalmente; foi assim que Freud as designou. Também são chamadas de psicoses. São " d o e n ç a s " em que a libido faz uma retração sobre o eu, de modo que não consegue mais nem mesmo fazer intercâmbio com o exterior. Instaura-se uma grande perturbação na percepção da realidade. A neurose é uma espécie de aparelho de conhecimento para perceber a realidade interna e externa. Voltando às psicoses, existe aquilo que se chama de "psicose paranóica", a "psicose 43

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para que serve uma

análise?

p a r a n ó i d e " e a "psicose hebefrenocatatônica" (o conjunto tem o nome de esquizofrenia) e a "psicose maníaco-depressiva", que seria algo semelhante à neurose narcísica, expressão mais ou menos caída em desuso hoje. — O autismo se inclui entre as psicoses ? — Bem, o " a u t i s m o " no adulto é apenas um sintoma. Na criança de mais de 12 anos, em contrapartida, é uma forma de pré-psicose, porém cada vez mais acessível à psicanálise. — Eis uma questão que me parece importante: as psicoses são curáveis? — Algumas psicoses agudas sim, outras psicoses crônicas podem se estabilizar. Mas " c u r á v e l " não é a palavra adequada. Em função de um acontecimento, sucesso ou fracasso, pode-se observar recaídas. O sujeito não tem capacidade de responder àquilo que lhe sucede e explode a recidiva. Freud postula que uma vez que apareça um delírio, c uma forma de cura, de cicatriz. Depois de circunscrito, é possível entabular um trabalho e descobrir os grandes eixos de organização do psiquismo. Assim, para responder a essa questão, o mais acessível à psicanálise, no fundo, são as psicoses maníaco-depressivas (as melancolias). Pelo fato de se possuir agora uma teoria do Eu confiável, pode-se conseguir manter um laço com os pacientes na psicoterapia psicanalítica, onde se vai tentar reconstituir com eles a relação com a realidade. Freud, em As Cinco Psicanálises, em 1905 e em 1923, estudou, no que diz respeito às psicoses, as memórias do presidente Schreber. Esse homem foi presidente de tribunal e durante sua internação escreveu um livro intitulado as Memórias de um neuropata. Ele próprio se descrevia como esquizofrênico sem saber disso, evidentemente. Segundo Freud, que estudou o livro das Memórias sem ter jamais conhecido pessoalmente seu autor, Schreber era paranóico. Suas Memórias constituiriam uma espécie de sabedoria médica que ele atribuía a si mesmo, presidente do tribunal. Ele expõe pontos muito impressionantes, dos quais Freud viria a se servir para fundamentar a teoria do narcisismo — o que é o amor-próprio? — que, no caso de Schreber, "fracassou". O paradoxo é que Freud demonstra que a ação psicanalítica cessa nas psicoses. Segundo ele, é preciso detectar onde há psicose, para saber que aí não se pode fazer penetrar a psicanálise... Você vê o quanto se tem que relativizar as coisas, pois isso depende do encontro entre determinado paciente e determinado analista. Porém, aí está uma das razões da discordância entre Jung e Freud: Jung, que era psiquiatra, queria, a partir da teoria freudiana, confrontar também as psicoses, coisa que Freud considerava impossível, pelo menos naquele momento de sua obra, em 1914.

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— Quando se fala de "tendências maníaco-depressivas", isto tem alguma coisa a ver com as famosas "depressões'' que se encontra tanto hoje em dia ? — Um neurótico deprimido não passa por fases de excitações aparentemente "incongruentes" como passa o maníaco-depressivo, que, como o nome indica, é uma alternância de um estado maníaco e um estado depressivo. O sofrimento, imenso, que se apresenta nesses estados, não deve, porém, impedir que se descubra qual evento subjetivo está referido nas palavras do paciente, nós não temos que prendê-lo num determinado rótulo psiquiátrico. Quanto às famosas depressões, elas não apresentam essa alternância de estados, coisa que as diferencia desses períodos de aflição maníaco-depressivos. Entretanto, a análise aí é necessária, como evento repetitivo na história do sujeito. — Um estado neurótico pode coexistir com um estado paranóico ? — A paranóia é algo milito preciso. Significa um pensamento à margem, um julgamento à margem. Há um ponto de partida falso, uma " g r a m á t i c a " da afetividade que entra em cena de tal modo que as coisas se reproduzem sem cessar. — Tomemos um exemplo. Uma pessoa está num restaurante e de repente faz um gesto qualquer, digamos, arruma a gravata, e exatamente nessa hora, as pessoas ao lado começam a rir. Ela diz: "Fiz um gesto ridículo. Por que estão rindo?" Isso não é'uma "atitude paranóica"? — Não, é atribuir as coisas a si, ser um tanto egocêntrico. Só isso. O paranóico vai pensar que o riso se deve a que, ao arrumar a gravata, ele queria na verdade tocar no próprio sexo e que todo mundo percebeu isso. Os outros, então, conhecem o se» pensamento. Em geral, apesar de tudo, ele tem dúvida, mas às vezes explode e se põe a gritar com todo mundo como se fosse ser expulso do mundo humano sexuado. Identificando-nos com ele, com seu julgamento à margem, entenderíamos o seguinte: " P o r que vocês acham graça de alguém tocar no próprio s e x o ? " De fato, a paranóia significa, por definição, a impossibilidade de proferir tal fórmula. Ao contrário, por menos que o ambiente seja propício, a cena do restaurante acabará em briga. — Não existiria o caráter paranóico ? Penso, entre outros, nos ditadores, nos chefes de Estado ? — É possível que haja quem não tolere que o seu desejo não se transforme na lei de todos; isso sim, equivale a ocupar o lugar do senhor (tirano). Tal senhor não tomaria essas risadas do restaurante para si próprio: ele diria simplesmente que aquele riso não lhe agrada. Voltemos à questão da psicose; pelo próprio fato de ter feito uma análise, a pessoa é capaz de suportar certas angústias, pode conviver com um raciocínio mental " e s t r a n h o " , ou à margem, com mais facilidade que antes. Essa é

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para que serve uma análise?

toda a questão histórica da psicanálise na França. Nos anos 60, a maior parte dos jovens psiquiatras estava fazendo análise, o que não ocorria com seus próprios chefes no serviço. Com isso, os patrões foram colocados em dificuldades. Em 7 1 , 72, os " m a n d a r i n s " retomaram o controle dos serviços com bastante rigor; muitos internos dos hospitais psiquiátricos interromperam a carreira de concursos, abandonaram a hierarquia e se tornaram psicanalistas. Na psiquiatria, existiram fases que se deve conhecer. Durante a guerra de 40, e depois, a tendência era "exilar"os doentes mentais para o mais longe possível de seus lares, enquanto que, ao contrário, o ideal é conseguir fazer com que se reintegrem a seu meio em boas condições. Depois, houve o período dos neiiroléptic.os — os medicamentos — que permitiu que se melhorasse sensivelmente os problemas de comportamento ou de discurso. Agora, existe a possibilidade de se conjugar os dois: medicamentos e psicanálise, sobretudo depois do ensino de Lacan sobre as psicoses, De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose* — Por que as psicoses são curadas com neurolépticos? — Elas são curadas com medicamentos, com medidas sociais, leis que protegem o doente da privação de seus bens ou de seu trabalho e também com uma psicoterapia ou uma psicanálise. Hoje em dia, graças a essas ações conjugadas, " d o e n t e m e n t a l " não significa mais "internação automática", na fase aguda ele entra no hospital como qualquer outro doente. — Existem neuroses que acarretam problemas de comportamento comparáveis às psicoses? — Absolutamente, é o contrário. Na França, depois da contribuição de Françoise Dolto, as psicoses foram abordadas principalmente entre crianças. As psicoses nas crianças, graças à psicanálise, passaram a ser vividas de uma maneira menos dramática. Antigamente, as crianças eram rejeitadas e Colocadas ftll h o s p i t a i s p g i q i i i á t r i ™ c Hp f a t n , a jisirvinálise^rlas podem ser mantida* n n ^ i n da f a m í l i a ir à c ^ o l a A psicanálise propõe uma nova oportunidade de estruturação da criança, que falhou, com todas as dificuldades de não estar no lugar de educador ou genitor ideal. Assim, no caso das crianças, a psicanálise tem um papel muito grande a cumprir no que diz respeito às psicoses. A passagem da neurose à psicose, na criança ou no adulto, é difícil de perceber... Por exemplo, aquele que se chama de neurótico obsessivo tem freqüentemente fases de passagem a pontos de psicose; e afinal, por que não? Uma vez em mente

J. Lacan, Écrits (Seuil, 1966, pp. 531-583).

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esse fato, trata-se, acima de tudo, de não julgar nem de condenar. Além disso, nem sempre se percebe a psicose. Às vezes, esta se revela no curso da análise, em geral, por ocasião das primeiras sessões. Freud tinha como lema pessoal dizer a si mesmo que era preciso se manter reservado em relação ao procedimento da análise dos pacientes reticentes na hora de começar a análise, que faltam à primeira sessão, que não dizem quase nada. Talvez seja o sinal de um risco psicopatológico a se levar em conta.. Mas por que se haveria de querer adiar a análise? Porque há ali certo perigo: a análise vai fazer com que o paciente regrida e atinja zonas de fixação libidinais: se os pontos de apoio do Eu são precários, ele vai, literalmente, partir-se em dois. A análise logo se descobrirá como o agente desencadeador de um delírio que provavelmente viria a aparecer de todo modo, mas que não é uma conquista terapêutica. Nesse estádio, o analista não pode vacilar: tem que saber hospitalizar e estar pronto para propor a retomada ulterior da análise. Eis porque, aliás, um analista fica sempre chateado quando um médico ou um psiquiatra o indica a alguém, dizendo: " E l e é assim e a s s a d o . " Os pré-diagnósticos interferem no julgamento ou não julgamento que ele tem, enquanto que o adequado é situar esse C d i a g n ó s t i c o ^ ) d e n t r o das entrevistas paciente-analista. Muitas vezes, usar^ñbsograíiaj^b saber médico-psiquiátrico) significa se refugiar, não apreender o ponto nevrálgico do processo. Assim, um dia, uma paciente é rotulada de " e r o t ô m a n a " por um médico, e não era nada disso. Durante todo um período isso impediu totalmente a abordagem das coisas... — Espere, o que é isso, erotômana ? — É uma pessoa que tem a idéia fixa de que todo mundo a ama; se não se diz isso a ela é porque se diz a outro, à espera de ousar lhe formular. Todo o amor do mundo lhe é devido, e, portanto, todo amor que acontece é roubado dela. Nos erotômanos delirantes, isso provoca reações extremamente violentas. A coisa pode chegar a uma facada num rival que ignore toda a história! Há casos célebres... Acontece, na análise, de um, ou uma, paciente declarar: " V o c ê é o homem da minha vida, não tem o que se discutir sobre i s s o . " Se você responde que aquele amor está ligado à hipótese da existência do amor, quer dizer, às fixações e frustrações da infância, a paciente retruca que recusa esse amor em sentido único, porque você não o quer admitir, e fica enraivecida. A análise pára, aliás, nesses momentos de acesso erotomaníacos, pois a pessoa, tendo a certeza da existência desse amor e não a hipótese dele, poderia orientar as sessões num sentido em que se arrisca a ancorar a " c e r t e z a " . O analista deve esperar até ousar outra vez interpretar, dar explicação sobre o que está acontecendo. Eis porque, com a paciente anteriormente mencionada — qualificada de erotômana sem o ser — o acesso ao tratamento foi difícil, pelo menos inicialmente. •

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— O que é esquizofrenia ? — Não é uma loucura racional; é o que se chama de uma síndrome dissociativa do Eu, onde sua constituição é gravemente atingida, a tal ponto que o sujeito se divide: não tem certeza de que o corpo, o próprio corpo, seja ocupado por seu espírito (usando os termos culturais). É uma pessoa que esconde os espelhos, que não tem certeza de saber, ao acordar, se é a mesma da véspera. A " i d é i a " de si é uma ficção necessária para viver. É necessária uma estruturação da própria imagem corporal definida permanente, para que a realidade de si e do mundo exterior seja percebida de maneira tranquilizadora. Aí, ao contrário, ela parece assustadora, atemorizante. A noção de esquizofrenia implica a idéia de fragmentação da sensação de si mesmo. No momento atual, quando a criança é levada cedo ao tratamento, se consegue (certos analistas, pelo menos) ajudá-la. Senão, a coisa às vezes provoca debilidades psicogênicas, isto é, as crianças apresentam amputações no plano afetivo e intelectual. Se não recebem tratamento, passada a idade dos 10-12 anos, é tarde demais. Serão pessoas com problemas muito graves, que passarão de um instituto médico a outro. Mesmo se não são necessariamente " d o e n t e s " graves, permanecerão freqüentemente inaptos para uma atividade social ou profissional. Sedais psicoses)são organizadas precocemente, as neuroses, por sua_Ygz, se situam precisamente num estádio ulterior, em que a estrutur&ção-do Eu já foi efetuada, em particular a esfmniração Ha imagem mais no modo anal(jfóbica,iriomodo fálico. Vou explicar: numaãnállse, a pessoa do analista sera investida como o objeto que convém à constituição do sujeito em sua neurose. Um histérico, por exemplo, investirá seu analista como objeto oral. Colocará todas as questões da oralidade (o alimento, o desaparecimento de objetos e t c ) . — Existem, então, duas grandes categorias, as neuroses e as neuroses de transferência? — ... que, na realidade, se opõem.

narcísicas

— E no interior dessas categorias existem subgrupos? — Todos os subgrupos imagináveis. Na realidade, espontaneamente, por mais que a gente se esforce para não fazer isso, quando alguém vem para a análise, o escutamos conforme uma ou outra tendência. Um fulano tem, por exemplo, uma neurose obsessiva, com ritos de conjuração, distúrbios do pensamento, dúvidas e escrúpulos incessantes, inibição da ação e t c (muito centrado na questão da morte e do pai, principalmente entre os homens). — Eu gostaria de conhecer alguns exemplos de distúrbios do comportamento e saber onde você "classificaria" isso. Por exemplo, o fóbico. Alguém que fica transtornado com a aproximação de insetos ou outra coisa qualquer——;— — — A(nèurose fóbicaj)Freud denomina d^histeria de angústia/} Imaginemos um sujeito que fica aterrorizado pelo ato de atravessar unia rua. O aspecto simbólico da " c o i s a " — mas de nada serve dizer isso a ele, ele tem que descobrir por conta própria —, a questão, é que andar sobre a terra é o mesmo que fecundar a mãe. É incesto. Na fobia, há um aspecto psicótico; é bastante forte e dá uma noção quase palpável do que é o inconsciente. Lacan dizia que a estrutura fóbica era um "desejo anunciado", como o do analista, aliás. O fóbico antecipa o próprio medo; ele sabe que se atravessar a rua, vai conhecer seu medo. — Isso me faz pensar na bulimia; você sabe, as pessoas que comem sem parar e provocam o vômito... — Isso não é fóbico, antes histérico, como a anorexia. A vergonha diante da bulimia não é da ordem da fobia, mas significa uma erotização maciça e embaraçosa do ato de comer, engolir, fazer desaparecer... Existem fobias puramente oníricas: o menino ou o adulto que se recusa a ir dormir porque vai sonhar com um lobo que vai devorá-lo e que evoca a figura paterna arcaica.

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— Muitas crianças têm medo do escuro... — Os pavores noturnos se devem ao fato de que a criança não tem um Eu totalmente constituído. No escuro do quarto, ela não tem mais pontos de referência luminosos ou sonoros se projeta para fora de si seu próprio inconsciente, seu próprio medo de si mesma, seu próprio gozo em devorar, em ser devorada. Eis, então, que o escuro vai engoli-la. Tudo isso é testemunho extraído de terapias de adultos, tomado na troca transferencial. — Por que faço essa pergunta: porque todo mundo não é neurótico a ponto de fazer análise; ou será que existem, afinal, perturbações do comportamento comuns a todos, por exemplo, esse medo do escuro na infância? — Esse medo faz com que se descubra aquilo que está prestes a fugir para o inconsciente. Todos nós sabemos que temos um encontro com " I s s o " . A castração é semelhante: todas as crianças têm medo de perder o sexo. É verdade que existem medos não organizados em sintomas — mesmoquando^ontêm uma expressão simbólica. Isso me faz pensar " n a s ^ n e u r o s e s atuais^Vque são disturbios que surgiram recentemente na vida de um adulto. São neuroses que têm ligação com insatisfações realmente assinaláveis na vida diária e que reativam conflitos antigos. Elas não advêm de mau funcionamento da constituição do Eu, como é o caso das outras. — Você pode especificar? — Por exemplo, uma mulher que chega à menopausa e que, por conseguinte, não faz mais amor com o marido, vai utilizar toda a sua energia para negar essa falta, vai criar um estado de angústia permanente em torno dela, vai detestar a própria vida cotidiana, sem que ela mesma o reconheça. De fato, o passado infantil veio se meter no atual por causa de um íatoF-eatalizador real, não "subjetivo". Aí, se entra naáÇ^neuroses (^á^maticasJ>(neuroses de abandono-, neurose familiar, neurose de destí~ no) q u e s t ã o relacionadas, na evolução do freudismo, com a tomada de consciência, da parte dos psicanalistas, da noção de instinto de morte, da compulsão a repetição. Tomemos a neurose de destino: a mulher fica viúva três vezes seguidas; todas as vezes ela cuida do marido doente, todas as vezes, o perde. Ela levanta a questão: é minha culpa? A resposta é: não. Mas a coincidência abala seu psiquismo. O amor a si própria, o laço com a sua interioridade mais radical, fazem com que ela diga que é a causa dessas mortes, pois que se trata de se ver, como na infância, totalmente atormentada por seus pensamentos de ódio e destruição contra os quais luta, daí a neurose.

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— O neurótico sabe o que está acontecendo com ele? — Sim. Ele sabe bem identificar que alguma coisa está acontecendo. Por exemplo, logo nas primeiras entrevistas ele vai dizer: olha, eu me casei há cinco anos, me divorciei, agora não consigo mais conquistar ou manter uma mulher; tenho medo, tremo, tenho erupções cutâneas, essa coisa se repete, não entendo nada, estou só, não agüento mais. Quero saber o que está acontecendo comigo. A pessoa sabe que existe alguma coisa mais forte do que ela, dentro dela, que será a chave, aquela pequena coisa, que uma vez conhecida tudo mudará. — Continuo com meus exemplos concretos. Vamos falar, por favor, do ciúme exagerado. Fulano tem ciúme desiemno de umaforma mortal... — Isso é sintoma paranóico(A paranóia>*em quatro formas essenciais.: o delírio de persepuição a erotomania, o delírio de ciúme e — no estádio terminal — a megalomania.. Freud classificou de uma maneira muito gramatical essa fórmula: " E u , um homem, amo outro h o m e m " ; dependendo de cada caso, ou o sujeito, ou o verbo ou o complemento, será negado, e então invertido pela pessoa. Por exemplo, o paranóico afirmará: " E u , um homem, sou odiado pelo outro, ele me persegue." É uma formulação muito bonita de Freud.* T

— Isso não tem nada a ver com as perversões? — Não, é psicótico. A questão d ^ ê r v e r s o J é negar a existência da castração. Ele recusa — a isso se chama de renegação — a realidade, onde a mulher não tem pênis — A perversão e'sexual? — Sim, no sentido estrito, no sentido de Freud, é essencialmente sexual — é o desvio de tudo aquilo que é o coito normal, a chegada ao orgasmo. Entre homem e mulher, as vias habituais de penetração (vagina, pênis) são abandonadas. — Por exemploios fetichistas? — ... Os travestis, os exibicionistas, o sado-masoquismo, o voyeurismo etc. Tudo aquilo que usa o outro de uma maneira muitas vezes excessiva. Mas a perversão exige que haja um parceiro. Não existe perversão sem outrem. Assim, a masturbação não é uma perversão, ela faz parte da sexualidade " n o r m a l ' ' , pode revelar neurose e não perversão. — A partir de que momento poderia o perverso prescindir desvio ?

de seu

O delírio erotômano afirmará: " E u , um homem, sou amado por todas as m u l h e r e s . "

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— Será que poderia? Sem dúvida, a angústia existe e ele bem desejaria ficar livre de seu peso, pois há uma relação com a lei que o coloca em dificuldades ("Existem homens e mulheres, é verdade, mas mesmo assim, acredito que não é verdade''). Certos homossexuais masculinos se prendem, assim, à perversão, porque não podem aceitar o fato de que a mulher não tenha pênis. isso lhes parece insuportável, no que tnca n sen gozo. Na melhor das hipóteses, tornam-se amigos delas, mas não mais que isso, e não procuram a análise, freqüentemente, posto que a análise é o próprio lugar do questionamento da falta fálica, devido a seu dispositivo. Quando um sujeito perverso acaba por entrar em análise, é porque teve problemas com a polícia, ou algo do gênero... Mas existem também organizações "para-perversas", principalmente entre os fóbicos. Este vai organizar a sua vida conforme seu medo e o objeto fóbico pode, no final, vir a ser fetichista. O que nós chamamos de objeto'contrafóbico vai virar objeto fetiche. O sujeito que não ousa atravessar a rua vai buscar o inverso — digamos, o interior da casa — e cada vez mais querer buscar o "interior". Como se fosse um objeto antiangústia. Quanto à perversão, ela depende de uma dimensão moral, de uma relação com a lei que fracassou gravemente e de modo permanente. Freqüentemente, se. descreve a perversão como uma forma intermeriiá• ^ r i a entre a psicose e a neurose. Seria uma maneira de lutar contra a psicose, de modo que não se deve remexer demais a montagem perversa em todos os sentidos! Pois ela deve ser mantida num permanente j o g o duplo. Se é verdade que a estrutura perversa faz muitas vezes sucesso no plano social, porque permite isolar o problema humano essencial (o que é o outro, como amar, como ser amado) num setor unificado onde se constrói a forma de intercâmbio particular dessa estrutura perversa; existe, portanto, uma espécie de " l i b e r d a d e " social, uma latitude aberta, à qual, porém, mais cedo ou mais tarde retorna o ato antilei. No momento em que o sujeito perverso vai ter êxito, freqüentemente ele fracassa! Ele tem êxito, e, num dado momento, nada pode contra isso, algo o faz vacilar seriamente e ele se revela — principalmente a si mesmo, pois é preciso alimentar " o outro l a d o " . É isso que se chama de perversões morais, raras, e que são a obsessão dos analistas. A pessoa policiou seu sistema, chegou até mesmo a conseguir uma existência normal, e, de repente, faz uma besteira, injustificada, que não lhe traz nada, senão descerrar as cortinas. Isso também acontece na sessão. Eles se aproveitam. Afinal, dizem-se, já que posso falar com meu analista e que ele não vai "contar n a d a " , vou ver até onde posso ir. Freud, nesses casos, sempre adotou a mesma atitude: ele interrompia o tratamento. — Ele recusava ser cúmplice do sistema do outro ? — Sim.

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Desculpa... — Vou falar agora de uma coisa que já observei. As pessoas que fazem análise, pelo menos algumas delas, não se aproveitam de seu estado de analisando para justificar, em seu meio e também para si próprias, as atitudes e condutas que, em momentos normais, não seriam toleradas? — É preciso ver em que proporções a análise é utilizada de maneira fetichista. E verdade que, às vezes, se encontra isto: " J á que estou fazendo análise, estou tranqüilo, e se você tocar nisto, estará tocando em M i m , " Efetivamente, existe uma tendência espontânea a segmentar a vida quando se está fazendo análise. — A propósito, você me disse, na segunda conversa que tivemos, acho eu, que os neuróticos eram as pessoas mais interessantes porque sabiam mais que as outras sobre o inconsciente. — É verdade que a neurose é um aparelho de conhecimento do inconsciente. — Você não tem medo de ver legitimadas as perturbações cfo comportamento das pessoas em processo de análise? — Cabe aos outros, ao meio, defenderem-se. A análise é uma questão absolutamente privada que, pode acontecer, pode se transformar numa espécie de guarda-chuva: a pessoa está fazendo análise, portanto, não é mais culpada. É inútil dizer que isso é completamente falso, é claro. Dè certa forma, é também uma maneira de reconhecer o próprio ponto fraco... É verdade que a análise muitas vezes é colocada no peso tia balança social, e não devia ser. — A análise é veiculada como uma espécie de reconhecimento cie uma fragilidade; em conseqüência disso, se está no estado superior absoluto. Digo isso, aliás, tanto do analista, quanto do analisando. Ao falar com você, dado que não conheço nada dos mecanismos que você está descrevendo, me sinto em estado de "inferioridade". O analista, o« o analisando, por razões diversas, se sente ou épercebido como "possuidor da consciência''. * — Conheço uns que têm vergonha de fazer análise. Mas outros falam dela como de uma medalha, o que é uma forma de utilizar a análise como falo, e que faz parte de sua neurose. De todo modo, mais cedo ou mais tarde, esses últimos quebrarão a cara, seja no interior da análise, com a descoberta do sentido de sua atitude, seja, o que é mais comum, fora, pela rejeição espontânea do comportamento deles por parte de seu meio. O ponto de que estamos falando aqui se chama "tearralizar" o sintoma ao invés de colocá-lo em significação simbólica. No início, Freud hipnotizava. De repente, descobriu que era inútil: bastava colocar uma poltrona e escutar. Foi uma paciente, Emmy von M...., quem disse a ele: "Assim

™&C&^\

ÒO L para que serve uma análise?

está bom, me escute e não me interrompa." Nesse momento, pode-se dizer, foi fundada a análise. Que audácia fantástica a de Freud de confiar, assim, de considerar que a superfície do discurso permite ir mais longe, não teatralizando como Charcot permitiu que se fizesse na Saipêtrière em 1 8 8 5 - 1 8 9 0 , mas ouvindo a fala de superfície em superfície do discurso subjetivo.

Fantasias — A propósito de superfície, onde você situa aè fantasias?. — É uma atividade psíquica como qualquer outnb-Existem os sonhos, as fantasias, os lapsos etc. A fantasia tem, no entanto, de particular, o fato de que introduz a dimensão do outro à revelia do sujeito. A fantasia é inconsciente, quer dizer, a pessoa funciona numa fantasia particular que lhe permite ter uma relação com a realidade real e com a realidade psíquica de seus deseios. A fantasia é o ponto constante. Eu funciono aqui dentro de uma fantasia particular da qual percebo determinadas certezas e da qual ignoro a maior parte. A fantasia é algo preciso: o que digo só se sustenta em função da história em que estou preso. Essa história se cristaliza em mim pelo viés de um funcionamento mental que me é próprio, mas que pode ser percebido por outro — isso se chama fantasia. Pode-se dizer que é a relação que tenho, que todos temos, entre o mundo externo e o mundo interno, entre a realidade concreta e a realidade psíquica. O inconsciente se manifesta ao sujeito através dos sonhos^jdQS-sintomas ou dos lapsos — mas a fantasia é uma coisa à parter^O lapso^pome-você sabe, é quando você diz uma palavra no hjgar-de ò^nrã^sintoma,jpòde ser um tique nervoso, por exemplo; e o sonho^é o que aÇonteciTquando se dorme. O, sonho e o lapso podem viraTévelar a fantasia. O famoso lapso que Freud cita (familionário em vez de família e milionário) é interessante. A pessoa, na sua fantasia, está definitivamente presa numa total certeza de que jamais será rica, de que jamais viverá sem ser pobre, isto é, na dimensão da falta. — A fantasia não é obrigatoriamente sexual? — Não, essas scrjam-devaneios, uma espécie de sonho acordado, devaneios eróticos... (Na fantasia) o sujeito vem a se colocar diretamente em contato com aquilo^TOTTconstitui, como ele se situa no mundo. Em geral, é totalmente desconhecida para a maior parte das pessoas._A_anális£__ faz com que se a conheça seriamente. principahr"*"*e g u a n d o é- l e v a d a a t é o j i m , Certos artistas, talvez, têm também a sensação de saber o que são, pois a fantasia é significação de verdade para o sujeito e implica buscar qual é apelação estnuurafque se tem com o outro.

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— O fato de se dirigir a uma pessoa ao invés de outra advém do inconsciente ? — Sim, isso viria do inconsciente. — Então, não são tanto os termos da escolha que contam, mas as razões pelas quais é essa a escolha e não alguma outra. — Sim, mas eu chamaria isso de devaneio, mais que de fantasia. Existe uma lógica da fantasia: como o sujeito se vê a si mesmo possuidor de um aparelho psíquico. Na verdade, é quase um resumo de sua personalidade, seu caráter, de certa forma. Através do ato da fala entre duas pessoas, diga eu o que disser, meu interlocutor compreenderá aquilo que ele bem entender, porque ele é estrunirado de uma maneira que lhe é própria. Cada um funciona num registro particular, que é administrado num circuito pulsional, quer dizer, muitas vezes, prevalece um modo de funcionamento do corpo. Tomemos o caso de um homem estruturado no estádio anal. Ele vai funcionar tentando acumular, por exemplo, o máximo de objetos, sendo colecionador, vai sempre pensar as coisas em termos de quantidade. Estará preso numa organização do mundo relativa à acumulação de bens e, acima de tudo, à sua classificação. Tornar-se-á, por exemplo, arquiteto — na medida em que a dimensão do prazer do olho está muitas vezes ligada à analidade. Construirá imóveis; aí seu olho vai se satisfazer, já que sua atividade tem alto valor social, é claro, esta terá lastro numa parte do corpo, que se chama pulsão; a pulsão torna a fantasia permanente e, geralmente, ignorada pelo sujeito.

Impotência — Frigidez — Estamos falando de fantasia; tomemos umtsintoma como a impotência ou a frigidez. •• O que é orgânico e o que depenãTaa psicanálise nisso aí? Só existe uma fronteira ? — Isso não é orgânico. É verdade que o sexual freudiano está muito próximo do sexual orgânico. Os impotentes e as frígidas mostram o quanto a prática do corpo se aproxima da prática do discurso. Há um registro da lei na fala, do mesmo modo como não se pode fazer o que se quiser com o próprio corpo. — Você tinha me falado da perda de uma pessoa querida, de um divórcio etc, que muitas vezes acarretavam a necessidade de uma análise, mas eu imagino que a impotência ou a frigidez constituam também uma motivação para se ir a um analista. — Não, não necessariamente. Os sujeitos que têm impotência vão consultar o médico em primeiro lugar. E isso faz com que, de certa maneira, não tenham relações sexuais... Vir para a análise os faria pensar

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para que serve uma análise?

— simplesmente pensar — que serão obrigados a tê-las. Eles levam um certo tempo para admitir isso. Muitas vezes, ocorre o seguinte: eles dizem que são impotentes, dizem isso para que acreditem neles, até eles mesmos, depois revelam, de repente, que tiveram três ou quatro aventuras na mesma semana. Isso sempre me espanta! A impotência é um sintoma de apelo, não é, absolutamente, uma estrutura. A frigidez na mulher é mais complicada. — Por quê? — A impotência pode terminar mais depressa. Por outro lado, nada prova que uma mulher seja frígida. Nas sessões, ouvimos que, freqüentemente, as mulheres não conseguem traduzir em palavras o seu prazer, ainda que este ocorra... Algumas dizem que não conseguem gozar pela penetração. " D i z e r " que há um gozo vaginal é destruí-lo. Não se pode surpreender o gozo — se ele passa para a linguagem, desaparece. Qualquer coisa do gênero: " I s s o pelo leños o masculino (no homem ou na mulher) não terá." O que se diz ai permite diferenciar ciências do amor e psicanálise.

QUARTA CONVERSA

Entrevistas preliminares — Hoje vamos abordar a sessão de psicanálise propriamente dita. A pessoa que vem pela primeira vez está advertida ou, ao contrário, a maior parte ignora onde estão chegando ? — Na maioria das vezes prevalece a ignorância. Na entrevista ou nas entrevistas preliminares eu pergunto o que evoca a psicanálise e as respostas são variáveis. Às vezes, as pessoas estão muito familiarizadas, às vezes já fizeram o que se chama de uma " f a t i a " de análise. Se alguém me procura sem saber por que, nem eu, eu evito falar de psicanálise, será que da parte dela ela quer dizer que não sabe, porque se trata de coisa inconsciente? O analista está ali colocado no lugar do saber, do sábio; ele saberia aquilo que o recém-chegado diz que não sabe. O surpreendente está no seguinte fato: eu sempre verifiquei que o discurso mantido pelo sujeito fora da análise, como o que temos aqui você e eu, é menos forte, menos interessante, menos compreensível, menos verdadeiro. O dispositivo; freudiano divã-poltrona, se não é uma garantia da existência do inconsciente, permanece sendo uma dimensão específica para a sua emergência, dimensão que permanece desconhecida na maioria dàs vezes no cotidiano, fora da situação divã-poltrona. — O divã é indispensável? — Sim, é indispensável, mas não é preciso apressar as pessoas que chegam ao psicanalista no sentido de que aceitem deitar-se no divã. — Há pessoas que o recusam ? — Sim, porque vão perder o contato visual com o analista (que, aliás também não tem que " v ê - l a s " , mas que ouvi-las). A dimensão da fala aí é privilegiada — é isso que dá medo. Freud costumava dizer que era preciso atentar para as pessoas que recusavam deitar-se, mas jamais 57

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para que serve uma análise?

forçá-las; era um sinal de adiamento da posição deitada, ora, uma análise precisa disso. Ficar cara a cara impede que apareça uma coisa qualquer: é provável que o tônus muscular não fique relaxado, que se mantenha assim um relacionamento mundano de socialidade, de educação, de dualidade, p o r t a n t o . ^ — Não se pode pensar que o fato de se deitar, com você cria uma espécie de reconhecimento do analista? — Você quer. dizer que a pessoa estaria obedecendo?

sentado,

— Ela está doente, e você a está curando... — Mas na poltrona, o próprio analista está mais ou menos estendido. Está, como dizia Freud, com a atenção flutuante. No entanto, é preciso reconhecer um ponto importante: o analista, e apenas ele, dirige o tratamento. Muitas vezes, as pessoas, homens ou mulheres, têm reticências. Dizem que deitar os infantiliza, os deixa em estado de inferioridade. Então chega a hora de eu explicar longamente a eles por que é indispensável que se deitem. Deitado, o analisando vai projetar suas imagens internas e seremos dois a conhecê-las. É claro, essas imagens internas têm como ator principal, ele, ou ela, e não êü, mas seremos dois analistas, de certo modo, a inclinarem-se sobre suas imagens e palavras. Nunca sou senão a prótese do analista que o analisando será para si mesmo (não em uma espécie de auto-análise, porém). O importante, no que o dispositivo freudiano estabelece, existe apenas de modo muito fugidio numa conversa normal. — Se alguém se recusa obstinadamente a deitar? — Para o analista não está em questão a recusa, ao contrário. Essa pessoa se encontraria, se fosse para o divã, numa perda muito grave do sentimento de si. — Então você aceita? — Sim. Que eu considere que aquilo seja uma análise ou não, não tem importância para ela nem para mim — entretanto, os pontos em questão são diferentes... Em todo caso, não se deve dar início a uma análise propriamente dita num tal caso de recusa, pois a posição deitada provoca uma regressão. O sentimento de si se dissolve, um tanto, algo vai ocorrer na fala, que eu entenderei conforme minha própria história, meu corpo, minha memória. Freud chamou de "regressão temporal" o fato de voltar atrás assim, até mesmo ao ponto de perder um pouco a sensação de unidade do eu. Algumas pessoas sentem e se recusam a " d e s c e r " por aí. Eu digo, por exemplo: " n a semana que vem, veremos por que Ficou decidido que você pode se deitar no d i v ã . " Se na vez seguinte a pessoa não se deita, convém procurar o motivo. Mas freqüentemente, aqueles que não conseguem se deitar, não voltam mais.

quarta conversa

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Na entrada em análise, há três momentos que especifico em relação a isso. O " C l i e n t e " é aquele que bate à porta; o " P a c i e n t e " formulou sua " d e m a n d a " e quer resolver seus problemas; diversas entrevistas aconteceram. O "Analisando." é o paciente que, enfim, tomou nas mãos sua análise e entabulou o trabalho com o analista. Existem momentos particulares na análise onde cada uma dessas etapas é clara. O " p a c i e n t e " vem p a r a " s a r a r ' * e logo se dá conta de que o analista não dá nenhum conselho, não intervém na orientação da vida do paciente; acaba se convencendo de que o analista jamais entrará em sua realidade cotidiana. O analisando, de certa forma, está no divã como num " s o n h o " e os pacientes reticentes quanto à relação analítica desejam ser apoiados e não ouvidos^Nesse caso, é melhor fazer uma síntese que uma análise! — Vamos voltar. A pessoa que chega pela primeira vez e vai mal. De quê você fala, para começar? — Freqüentemente, essa pessoa tem vontade de falar de si mesma. A transmissão de saber como é que ela está ali é importarte. Por quê? De minha parte, eu tento sempre refazer o fio... Como é que você chegou até_ mimXComo você ouviu falar da psicanálise? As pessoas respondem, por exemplo: " B e m , há uns quinze anos eu comecei uma análise, mas não deu c e r t o . " Então, eu pergunto por que, há quinze anos, a pessoa quis, na época, fazer análise. Vem uma resposta, e é muito importante. Em geral, tudo isso passa por uma fase de silêncio da ordem puramente... da observação. — Imagino que as pessoas não fiquem muito à vontade. — Eu acredito que isso depende também da atitude do analista... Rapidamente — é surpreendente — a pessoa mergulha em sua intimidade. Um sujeito na rua não aceitaria ouvir ou dizer a um desconhecido J2_que é proferido assim, após cinco, dez minutos, nessa primeira entrevista! O que é que faz com que alguém que eu não conheço, que não me conhece, se ponha a falar assim de si, dos pais, das suas dificuldades sexuais, da sua vida? Só me cabe ouvir... Eu faço, porém, com que fique claro o tfàTSTho, a situação da família e a razão de fato da vinda (em geral, perda ou decepção sentimental e, nos últimos tempos, perda do emprego). Essa reorganização da vida, seja qual for, transforma os dados do sentimento que se tem em relação a si mesmo, e a pessoa se dá conta de que não consegue sozinha uma saída. Por exemplo, se sonha sem parar e sozinho não se consegue entender o significado, tem-se vontade de dormir mesmo de dia» não se tira prazer dos encontros ou acontecimentos do cotidiano. Daí, se fazem necessárias as explicações. Então, eu digo: " Q u a l será a pequena coisa que poderá fazer com que tudo m u d e ? " Isso para mostrar o quanto tudo passa pela dimensão do desejo. Muitas vezes, as pessoas ignoram a resposta: aliás, se a conhecessem, acabaria a análise. Há algo a perguntar, mas o quê? A desordem é total. As pessoas então lançam

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para que serve uma

análise?

frases aparentemente banais, mas muito preciosas, em seguida, do estilo: " B e m , eu gostaria que as coisas dessem certo entre minha mulher e e u " ou " E u gostaria que Fulano me a m a s s e . " Ora, o que elas estão buscando, que no momento não é evidente, dá muito medo; é necessário uma espécie de lugar de depósito, quase que insubmisso ao conhecimento delas, a esse saber do desejo delas, e isso se chama "analista". Por suas afirmativas, elas vêm depositar sua intimidade de "desejantes" de tal maneira que, na verdade, nada querem saber por enquanto. Não se deve confundir o que ç_ dito — " E u vou m a l " — com o desejo subjacente, o apelo que lateja por baixo. Não misturemos o desejo formulado pelo " c l i e n t e " — transmitido por seu discurso à revelia dele mesmo — e o factual. É como uma frase cujo aspecto mais interessante se constitui em torno das reticências: ("Eu desejo ter uma mulher) (..A/Eu não consigo ter uma m u l h e r " ) . A neurose está inscrita nos três pontinhos, f S&*\) — Se estou acompanhando bem, a formulação do desejo concreto ("eu queria ser rico e ter 12 mulheres") não tem objeto nem interesse; em contrapartida, saber por que o desejo foi formulado assim constitui a questão. — Sim. Há uma outra coisa qualquer que o sujeito pressente, mas que não quer saber, e que no momento não se pode dizer a ele. — Justamente! Vem um cliente e em duas semanas você já localizou o cerne do problema dele. Você quase que poderia declarar a ele: "olha, você tem isto porque aquilo... " — Eu queria abordar isso daqui a pouco... Pode^se^dizer gue toda análise é contraída, resumida, na primeira ou na segunda conversa. Tudo está presente, tudo é dito nela. É como numa partida de xadrez, o início e o fim da partida contam muito. Entre os dois, é importante, mas para que uma análise termine corretamente é preciso que seja bem iniciada. É preciso que se tenha localizado a estratégia do neurótico. Em que sistema neurótico ele vai me introduzir? Não existe técnica analítica, mas aí, é preciso que se seja exato — e quando se diz muito depressa, se antecipa e se provoca um " r e s u m o " que esgarçará todas as fibras. — Sim, é isso; em última instância, você pode eventualmente apreender o sistema do "cliente", mas não servirá de nada lhe revelar. — Eu não " a p r e e n d i " , na realidade, eu situei o s i s t e m a de falas momentâneo no qual ele quer nos colocar, a ele e a mim. — Você conseguiu chegar a perceber o que vai acontecer, de que "sofre'' o neurótico, e isso, graças à sua própria experiência ou a casos semelhantes, ou a outra coisa, mas não produzirá nenhum efeito positivo ou durável dizer isso a ele.

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— Não, porque nessa dimensão em que o " c l i e n t e " evocou o máximo daquilo que ele jamais tinha dito em voz alta, lhe atribuir um " d i a g n ó s t i c o " significaria quebrar, fraturar, e até mesmo siderar o inconsciente. Embora o analista possa ter muitas coisas para responder, ele se cala, porém. — Se me permite uma imagem, você teria que escrever junto com ele um livro de trezentas páginas, cuja palavra fim o analista conheceria, mas não poderia revelar, posto que ainda há trezentas páginas anteriores a serem redigidas. — Sim, mas além disso, na análise, o fim se escreve a cada passo. Está inscrito e é rejeitado cada vez que termina uma sessão. No entanto, o conceito de fim é insustentável, posto que o inconsciente continua funcionando mesmo depois de terminada uma análise. Eu aceito começar uma análise com uma pessoa a partir do momento em que eu soubesse dizer alguma coisa, em que isso me pusesse a trabalhar, em que eu tivesse encontrado um esboço de interpretação — e nesse momento eu pediria então a essa pessoa que se estendesse. Tudo isso não vem espontaneamente, embora desde ás primeiras entrevistas se perceba alguns elementos. — Nas primeiras entrevistas, então, vocês ficam um de frente para o outro, falando ? — Certo, isto pode até durar algumas semanas, ou meses! O divã só é proposto pelo analista a partir de determinado momento. O que se chama de "entrevistas preliminares" constitui um trabalho que corresponde a um certo processo, o qual permite que a análise deslanche tanto para o analista quanto para o analisando. Pode acontecer de um analista recusar uma solicitação de análise, hesitar ou adiar. O divã está reservado ao analisando. A relação "cliente"/Analista, quero deixar bem claro, que é um primeiro contato, enquanto que o estádio do " d i v ã " , em que o analisando se deixa levar pelas próprias palavras, não se pode propor assim de qualquer jeito à pessoa que chega! Eu até mesmo diria que são necessárias diversas sessões por semana, às vezes durante um certo período de tempo, antes de começar. — E sobre dinheiro, você fala logo disso ? — Espere. Então, a pessoa chega. Eu peço a ela que sente. Depois, bastante rapidamente, o homem ou a mulher fala e me pergunta o que eu acho. Eu não acho nada, é claro. Então eu devolvo as coisas em forma de perguntas, para que ele ou ela possa tomar em suas mãos as próprias interrogações. É evidente que eu formo uma idéia da pessoa, o que ela me diz me toca; mas não é o caso de abordar as coisas em termos de cumplicidade. Aqui é o lugar das questões, não dos conselhos. Mas o cliente me pede a minha opinião sem parar, coisa que não dou. Enquanto isso, eu tento descobrir o ponto em que seu discurso é mais opaco, para

para que serve uma análise?

aí perceber os sintomas e a resistência aos sintomas, ou seja, sobre o quê se apoia o cliente para vir formular sua demanda. — Que duração tem a entrevista preliminar? — Isso depende, meia hora ou uma hora, porque há pessoas cujos propósitos se complicam de minuto em minuto, até chegar a um magma inextricável. Freqüentemente basta fazer A questão, indicar, por exemplo, que aquilo que ocorre com o cônjuge se repete, de maneira semelhante, no trabalho, por exemplo. Num dado momento, o cliente se dá conta dessa repetição, por tê-la proferido em voz alta; aí, a coisa se torna interessante para ele. Logo se conclui a primeira entrevista. Nós nos levantamos e a pessoa diz: " Q u a n t o lhe d e v o ? " , eu digo o meu preço.

Dinheiro — Quanto é? — A análise é "classificável" como uma profissão liberal. Dito isso, é. importante falar de dinheiro na análise. Sou pago para estar num determinado lugar, e os analisandos desejam que seu analista permaneça ali, o que quer dizer que ele não entra num relacionamento íntimo com eles. O ato do pagamento é parte do trabalho produzido pelo paciente, que passa para o bolso do analista, que então faz com ele o que quiser. O que o analisando diz é traduzido em dinheiro, e é sempre o mesmo preço em cada sessão. Eu não trabalho por interesse pelo psiquismo dele — o que .significaria levá-lo à loucura, e a mim também — eu recebo dinheiro por uma determinada tarefa, que é escutar .Efetivamente, eu compreendo que, visto de fora, parece caro pagar uma quantia substancial apenas para que alguém lhe dê ouvidos. O que significa, coisa que deve ser aceita tanto pelo analista quanto pelo analisando, que isso não tem medida possível: só os contratantes podem decidir. — Na medida em que o tempo das sessões é mais ou menos longo, mais ou menos fixo, mais ou menos pontuado, ao que parece. — A questão não é tanto quantidade de tempo/quantidade de dinheiro, senão se chegaria a uma forma de reeducação do psiquismo. O curso de ginástica corretiva dura uma hora. A análise não é medida em termos de duração, embora seja verdade que a sessão tem seu tempo. — Uma espécie de encontro contínuo com uma parte de si que não conhece? — Se quiser. Mas, por exemplo, acontece de o analista não cobrar a primeira entrevista, ou mesmo a segunda. O analista não funciona como um guiché automático de pagamento. Isto faz pensar no seguinte: às vezes,

se

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uma pessoa consulta dez analistas para se decidir. Êu sou totalmente contra. Não é coisa que se faça dar uma lista interminável de analistas a uma pessoa que o desejeuim dia veio me procurar uma pessoa com a lista na mão. Com a permissão dela, peguei o papel e rasguei. Aquilo foi de A encontro exatamente a seu sintoma... É claro, se ela quisesse, suponho que poderia refazer a sua lista, mas procurei mostrar a ela, a ela e a mim mesmo, minha abordagem das coisas diante da solicitação dela. O que se seguiu deu razão a nós dois. Voltando ao dinheiro, eu diria que a análise é diferente das outras atividades liberais (medicina, arte, direito) porque pouco a pouco se desprende uma integração do dinheiro e de seu sentido. Fora do ato comercial, o paciente se torna "psicanalisando" no instante em que se autoriza a fazer esse pagamento; tal ato é da ordem da perda, isto é, por sua repetição, se torna perda simbólica, que implicará, no curso da análise, abordar a questão essencial da incorporação da morte, do " O que é ter um c o r p o ? " , um corpo pulsional limitado pela morte no seu aspecto mais subjetivo. Isso implica então que: o analisando, venha ou não à sessão, pagará se o analista estiver lá; se falar ou se ficar calado, pagará. Pratique o analista a fórmula "sessão fixa — pagamento m e n s a l " ou "sessão p o n t u a d a " , todos estão de acordo com que é impossível evitar o pagamento. Acrescentemos que não há obrigação jurídica de " c o b r a r " . Eis aí um ponto inerente à dimensão analítica. Se um paciente vem duas vezes e " e s q u e c e " de remunerá-lo, o analista não vai persegui-lo. Mais cedo ou mais tarde, o pagamento é efetuado. — É verdade que os analistas cobram de acordo com a renda ? — Devo dizer que não conheço quem aja dessa maneira. E os pobres ? — As pessoas por demais destituídas não fazem análise. Seu problema primordial é, lamentavelmente, comer e morar... Mas tomemos o caso típico do estudante. Ele, por definição, não é rico... Em dado momento, a necessidade da análise faz com que ele consiga o dinheiro e não possa mais se contentar em vir uma vez por semana. Isso não tem de ser vivido como urgência ou como drama; é necessário, apenas isto. Ao contrário, a pessoa que, desde o início, pode pagar todas as sessões, mas que não o faz porque acha muito caro, descobrirá talvez um dia que terá de fazê-lo. Às vezes, é possível perceber a origem dessa recusa, que se imagina que na maioria das vezes esteja ligada à forma de educação na infância, em que foi inculcada a relação com o dinheiro. Mais difícil é admitir que a análise não garante nada; não assegura nem promete resultado algum. E então? Convém ter fé na própria fala... Tenho em mente alguns exemplos notáveis de pessoas, sem um tostão, que encontraram um meio de "oferecer a si m e s m a s " a própria análise. Elas financiam suas afirmações, porque querem, e dizem isso.

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para que serve uma análise?

Periodicidade, duração, férias — Por que uma determinada freqüência, uma determinada periodicidade são necessárias? — Freud recebia seus pacientes uma vez por dia, meia hora ou uma hora!... Parece que isso é indispensável para manter esse contato com o inconsciente, senão ele se apaga muito depressa. Reinventa-se a cada vez o encontro com o inconsciente; isso ocorre na sessão, de forma privilegiada. A freqüência conta bem mais que a duração. Às vezes, ouve-se coisas do gênero: "Afinal, já que venho três vezes por semana, por que não condensar numa única sessão — pelo mesmo preço — assim eu poderia ir passear...". A resposta é: nem pensar. É necessário o espalha^ mento das sessões para que o discurso analítico que se revela disponha d_e um espaço, onde se produza a repetição no tempo do encontro com o inconsciente... senão ele desaparecerá. . — Se estou entendendo bem, conviria nunca tirar\férias, item o analisando nem o analista. ^ ' — É verdade que isso levanta uma questão, na medida em que na França continua-se num sistema exorbitante de sacralização das férias. " M i n h a s férias", é algo em que ninguém pode tocar... Mas há pessoas que tiram férias e permanecem em Paris, continuando suas sessões. Onde se pode criticar o analista é que ele próprio tira férias, contrariamente ao que exige — a continuidade das sessões. A maior parte dos psicanalistas adota o ritmo escolar, pois isso convém quase à maioria das pessoas. — Então, vamos examinar os dois aspectos; quando o analisando tira férias em momento diferente das suas... — Sim... Sei onde quer chegar... Ele paga as suas sessões; enquanto que quando eu saio, ninguém paga. Entenda-me bem: se estou ali, há sessão. Se não estou, não há sessão."Se o encontro é na segunda, na quarta e na sexta, de certa forma, eu não existo na terça, na quinta e no sábado. Existe aí uma assimetria, às vezes vivida como uma injustiça, mas que é necessária para que o processo analítico se realize, pelo próprio fato de existir essa assimetria, que é a seguinte: aquele que demanda é o analisando que fala de si, aquele que exige é o analista que jamais fala de si, com vistas a que a dimensão inconsciente dos sintomas do analisando venha à luz. — Como será recebida a pessoa que aparece na terça-feira, quando suas sessões estão marcadas para segunda e quarta? — Todas as conversas que estamos tendo aqui, você e eu, tentam mostrar porque ou como se instaura esse processo analítico, mas agora entramos num aspecto descritivo daquilo que se chama de protocolo

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(horários e honorários), que também faz parte integrante do intercâmbio entre os dois parceiros, ainda que constitua seu contexto. Esse contexto, é claro, não escapa dos dizeres (associação livre das idéias do paciente) e isso em função da " R e g r a Fundamental". Essa regra consiste em dizer o que vem à cabeça sem escolha nem reticência possível, pelo fato da existência desse contexto protocolar, que é seu limite. Ele significa que a prática psicanalítica existe e essa existência implica uma ética que esteja com ela integrada. E as questões que nos colocamos aqui estão totalmente dentro dessa perspectiva. Assim, para responder a você a questão sobre a terça-feira, eu perguntarei o que está acontecendo pelo fato de que não é habitual. A análise deve ficar ao abrigo dos acontecimentos agradáveis ou desagradáveis da vida social ou profissional, pois senão ela cessa, pelo fato de que vai ser substituída pela vida cotidiana, sempre pronta a reclamar seus direitos. Horários são estabelecidos e nos prendemos a eles. É fácil mudá-los, mas não, não se deve.. O inconsciente tem seus encontros^ Se, ao vir à sessão, fulano encontra alguém e vai para o bar, muito bem, perfeito, mas a sessão será paga. Eu escuto os que me pedem para mudar de horário, mas não aceito com facilidade esse tipo de demanda. Uma vez que um encontro é " e s q u e c i d o " , é preciso saber o motivo na Vez seguinte. A resposta é importante simplesmente porque a ausência se inscreve na análise. Sobretudo se a natureza da ausência é da ordem dos sintomas, da angústia, da inibição com o analista. Lembremos, se a regra fundamental é dizer o que vem à cabeça, é preciso que o analisando esteja presente para tanto. — No momento das férias, como é que isso se dá? — Previno as pessoas de que vou sair. O que acontece, por exemplo, é que certas pessoas não podem às vezes tirar as suas férias durante a interrupção das sessões ligadas à saída do analista. Nesse caso, acontece de se propor então a substituição de algumas sessões. Porém, o princípio permanece: o pagamento de uma sessão, venha a pessoa ou não, deve ser feito — as pessoas, uma vez na análise, recebem isso muito bem; no interior desse postulado, é claro, acontecem ajustes, pois o analista não é uma espécie de computador, nem o analisando. Mas a presença do analista está " c o m p r a d a " , fechada... Note bem que esse problema das férias muitas vezes se torna uma fonte de desacordo entre o analista e o paciente — principalmente no início. De fato, essa não-simetria analista-analisando, necessária ao desenrolar da análise, participa das condições de uma prática de escuta dos analisandos assim como dos pacientes. Uma vez que isso é descoberto e aceito pelo analisando, pode-se dizer que está aberto o caminho para a " s u a " análise. Acontece, por exemplo, de um analisando demandar a reposição de uma sessão que

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para que serve uma análise?

não pôde se realizar, porque caía num feriado legal em que o analista não trabalhou. Essa dimensão da lei e dos costumes, aos quais estamos todos submetidos, evidencia que se o protocolo analítico protege o processo do tratamento, deve também integrar a dimensão coletiva enquanto limite. — Visto do exterior, isso parece dependência. — Sim. Precisamente, trata-se de uma dependência em relação à lçi de um processo interno, originado na infância, que se repete nas condições do tratamento, que nós chamamos de protocolo. Entretanto, é preciso estar atento para que essa dependência se ligue unicamente a esse protocolo, que não é um " t r u q u e " dialético. O lugar da análise é do analisando. — Você quer dizer que ele compra uma superfície (tal hora, tal dia) da qual se torna proprietário ? — Não... O espaço está nele. Quando ele vem à sessão, se apoia no fato de que depositou no analista, nas vezes anteriores, alguma coisa que para ele é fundamentalmente verdadeira, porque é ele próprio. Essa verdade se inscreve num lugar. Assim, na volta das férias, muitas vezes eu ouço: " m e aconteceu esta ou aquela coisa", e quando eu pergunto quando, foi justamente no dia e na hora da sessão que não aconteceu. Isto não depende do condicionamento, apenas sinaliza uma obrigação muito interior, íntima, ligada ao que produz conflito.

Mentiras — Ese o analisando conta mentiras, inventa? — Eu me dou conta muito depressa se a coisa não tem fundamento! Mas a mentira tem direito de cidadã na relação analítica. Na medida em que a pessoa diz o que lhe vem à cabeça, ela jamais dirá senão o que pode dizer, inclusive na forma de mentira. Lacan diz: " A verdade tem cara de f i c ç ã o " . No fundo, não há maior verdade que a ficção. Fulano vem contar u m sonho de sua mulher ou de um amigo dizendo que é dele, o analista considera que é mesmo dele, ponto final, e isso passa a fazer parte integrante de sua fala. — Éo propósito dele ? — Tudo o que ele diz é verdade. Nós não estamos ligados na informação. Se um analista cai na tentação de considerar determinada afirmação como uma informação, vai se dar mal, pois estará confundindo o comportamento, o ato de mentir, com o desejo de mentir, e isso o analisando não perdoa.

quarta

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— Já lhe aconteceu de ter um paciente que mentisse durante semanas inteiras, inventando a partir de qualquer coisa uma história que não era a sua ? — Seria, então, uma pessoa que quisesse imprensar o analista? Do tipo: " E u lhe disse isso, muito bem, você nem sequer conseguiu ver que era mentira." Sim, e aí? De que serve imprensar o analista? Por outro lado, nada diz que um toxicômano, por exemplo, seja toxicômano. Ele finge para o analista, e isso em si, pouco me importa. Se eu fosse psiquiatra ou médico, me preocuparia com o fato.jComo analista, escuto "outra c o i s a " . Dizem-me: " A i , tenho que escolher entre esta e aquela m u l h e r " ou "fui posto para fora do meu apartamento" — tudo isso talvez não passe de fatos totalmente inexatos. Mas qual é o desejo subjacente? É essa a questão. Cada um pode estar preso a uma trama particular, mas tudo o que o paciente diz é antes de tudo porque ele tem o desejo de dizer e o diz. Em 48 horas muitas coisas acontecem. Por que " r e l a t a r " isto ao invés daquilo? Duas pessoas são testemunhas de uma briga na rua. Uma poderá falar no assunto durante semanas, a outra, se esquecer na hora seguinte. O e v e n t o é uma coisa, pensar nele, uma segunda coisa, falar dele, uma terceira. Mentir faz parte da fala"e situa o objeto em seu discurso.

Cultura — Há uma sede enorme, me parece, de se saber sempre mais sobre si. Isso em si justifica uma análise? O que você acha? — É uma boa pergunta. Entre os recém-chegados que recebo revela-se um pequeno número que não tem necessidade de análise. Eles querem falar porque estão sozinhos na vida. Eu mostro a eles que o empreendimento que é a análise não existe para preencher essa solidão. As pessoas consultam videntes, médicos, astrólogos, engenheiros-consultores... sei lá o quê, e estão até mesmo dispostas a pagar muito, apenas para se encontrar com alguém. Não há dúvida de que a atividade analítica obteve um lugar importante em nossas sociedades um pouco por causa disso. Afirma-se, por exemplo, que na Argentina é o discurso dominante dos artistas, dos políticos. Na França, a psicanálise torna-se uma espécie de referência cultural, e certas pessoas procuram o analista para se educar, se " c u l t i v a r " , adequar-se ao mundo que lhes propõem, ter um pequeno fôlego " a n t i t é c n i c a " , " a n t i c o n s u m o " , e sem dúvida é também uma outra coisa, mais verdadeira, o que elas vêm buscar. — Você quer dizer que hoje uma das motivações análise seria se cultivar?

para se fazer

para que serve uma análise?

— Sim... seria pena, porque a psicanálise fica na posição de subverter a cultura, não de fazer dela um gadget. A psicanálise questiona " p o r que"' se pode inserir no mundo em que se vive, a partir do próprio desejo^ a partir de um desligamento bastante radical da própria história infantil — o que coloca a questão do pai. De certa maneira, as psicoterapias que se dizem "humanistas^' (bioenergética, gestalt-terapia e outras terapias transacionais) acreditam vir amputar ou completar a análise naquilo que ela não daria no plano do vivido, da gentileza, do cuidado, da violência, mas são, de fato, técnicas antipai. Através do quê elas obedecem a uma corrente cultural moderna — provavelmente contemporânea do período nazista — que é um certo rompimento da crença do ser humano na civilização, que eliminaria o " m a l - e s t a r " de que fala Freud. O da relação do sexual com o amor onde a função paterna intervém, muito precisamente; aí se trata não do Pater Familias, mas daquele Pai Originário, antecedência na lógica, do fato de falar; aquele de que fala Freud em seu Moisés e o monoteísmo e em Totem e Tabu: o pai enquanto alteridade radical. A origem da humanidade está mais ou menos colocada na questão do pai, conforme a teologia; a análise, então, pegou do ponto em que parou a teologia, sem o saber, e é combatida por aqueles que não querem ouvir falar da função prevalente do pai no psiquismo. Daí, às vezes, pessoas que " c o n s u l t a m " um analista para depois se voltarem para as técnicas que melhor correspondem a essa aspiração contemporânea " a n t i p a i " . Os analistas não dão atenção a isso, porque aqueles que são neuróticos têm um encontro marcado com a questão do pai, ela se colocará para eles irremediavelmente, e, por isso, eles irão solicitar o lugar da psicanálise. — Freqüentemente se lê na imprensa: "o analista é uma espécie de confessor moderno.'' — O analista deve se retirar dessa posição. A confissão é uma informação sobre o que parece ser bom ou mau. Essa informação nós não fazemos, nós não fazemos nada parecido com isso. Se uma certa sra. Fulana diz: * 'na semana que vem, vou parir", é um fato. Ela chega ao fim de sua gravidez. Mas em toda informação há, no entanto, uma intenção de fazer saber alguma coisa que o analista justamente está em posição de escutar. Não é uma pesquis^ arqueológica, policiai, lógica. A estratégia está do lado do analista, a tática, do lado do analisando: a tática consiste em fazer as coisas de modo que o analista possa ou nao possa levar a cabo sua prática; a interpretação ou a estratégia é colocar as coisas em termos de 'estrutura, ide segurar as rédeas da navegação freudiana, aquelas próprias"~da-^oíocação dos conflitos nas palavras (os significantes) que articulam juntos memórias, corpo e palavras. A análise faz uma aposta, dá um crédito insensato, monumental, à fala. O que é dito se inscreve e ajustará as suas contas mais cedo ou mais tarde através dos sintomas, sonhos, lapsos, do ódio, do amor e das interpretações dentro da análise.

QUINTA CONVERSA

O " o f í c i o " do analista — Como a pessoa se torna analista ? Imagino, não sei, que há um percurso padrão... você começou pela medicina... — Sim... e eu sempre me perguntei por que as pessoas pediam coisas. Sinto dor aqui, sinto dor ali... mas até onde pode ir isso no discurso? Comecei com crianças. Como muitos estudantes de medicina, me vi no serviço de pediatria — é o que mais tem, aceitam de bom grado os médicos jovens dos hospitais, sempre há tarefas a executar, exames etc. E as crianças, eu me perguntava como interrogá-las. É fácil dialogar com adultos, mas com uma criancinha não, é preciso ter contato com os pais, e isso me incomodava muito no início, participar do fato de não considerar aquelas crianças como pessoas à parte, completas. Quero precisar, porém, que os patronos da pediatria eram pessoas muito calorosas, humanas, cheias de humor e contentes por exercer a medicina. É difícil suportar uma criança doente, as pessoas que lidam com isso têm muito amor dentro de si, e o dão. Eu admirava essa dedicação e o ambiente nessas equipes, particularmente de cirurgia infantil. Mas na maioria das vezes não eram colocadas questões relativas ao aspecto subjetivo do doente e da doença. Tudo isso girava dentro de mim. Mas, como você sabe, a psicanálise não é reconhecida na França como uma especialidade médica. Ela faz parte das profissões liberais porque existem honorários que são pagos. Não há cursos universitários nem diplomas concedidos pelo Estado. — Parece que qualquer um que queira se estabelecer como psicanalista pode fazê-lo. — Sim. Mas o que quer dizer isso? Provavelmente é muito melhor que não haja reconhecimento oficial da psicanálise. Na França, temos essa oportunidade... Existem muitas profissões que podem levar a pessoa a se 69

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para que serve uma

analisei

tomar analista (médico, psiquiatra, filósofo, artista, psicólogo, arquiteto, assistente social...)- Essas experiências profissionais já adquiridas não orientam, por assim dizer, uma elaboração eventual de um "diploma de psicanálise". Seria, aliás, uma desonestidade intelectual, pois a base da formação psicanalítica é se deixar psicanalisar por um analista da sua escolha e experimentar sua efetivação através da escuta de um outro analista, que o "jovem praticante" encontra, uma vez que tenha passado para a poltrona. Ele passa para a poltrona pelo fato do seu próprio processo analítico. Para inventar o estatuto jurídico do psicanalista, seria preciso saber o que é um psicanalista. — E ele ignora isso... — É uma coisa que está sempre para ser descoberta e redescoberta, porque está ligada ao inconsciente, ou seja, a algo singular e diferente para cada pessoa. As cisões analíticas sempre surgiram, aliás, por causa desse completo desacordo em relação à formação. — Existem países onde há diploma ? — Sim, nos Estados Unidos; certos estados até exigem o curso de psiquiatria (coisa que impediria que as mulheres fossem psicanalistas, pois a formação psiquiátrica não é permitida a elas)! Também se vê coisas como um praticante "aluno-analista" em Nova Y o r k e "patrono-analista" em um outro estado! — E na França, não haveria um sistema de cooptação ? I — Atualmente, a praxe é não pedir prestação de contas às pessoas que aderem a um grupo psicanalítico, porque ficou claro que pedi-la seria remeter a si mesmo ao mesmo enigma, daí o fato, reconhecido pelo uso, de confiar, e a coisa assim funciona muito bem. É por isso que uma pessoa que amanhã se estabelecesse como psicanalista, sem ser " f o r m a d a " , não ficaria muito tempo. É claro que os clientes podem ir procurá-la através de amigos ou por carisma pessoal, mas sem pertencer a um grupo, no seio d o qual ela possa experimentar a continuação de sua escuta analítica, sua prática logo deixará de ser psicanalítica. Isso quer dizer que, no fundo, toda essa questão do analista não é tanto a de ser reconhecido como tal, m a s assumi-lo perante si mesmo. Aí está um ponto da ética muito estudad o , tanto por Freud como por Lacan. Esse trabalho provém especialmente de intercâmbios com os outros analistas no curso de colóquios, encontros, trabalhos regulares em pequenos grupos. Esteja certo, os analistas não falam de seus pacientes. Vamos definir, no entanto, o que se chama de " c o n t r o l e " . Um analisando que se torna analista vai trocar pontos da prática com um analista que ele considera um veterano. A prática analista consiste, então, em escutar os pacientes, porém, do mesmo modo, ouvir cara a cara outros analistas que evocam sua experiência.

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— Essa prática do controle analítico permitiria evitar uma atividade abusiva, usurpada ? — Um abuso desses fica logo conhecido. O inconsciente é suficientemente bem feito, a descoberta freudiana é sólida e, na maior parte das vezes, o analisando julgará por sua própria conta. — Seria possível, com o tempo, traçar critérios confiáveis para estabelecer um esboço de diploma, ou isso é impossível? — Pode haver um diploma; mas creio que logo haveria também contraposições para neutralizá-lo; o aspecto singular e radicalmente insubordinado do inconsciente ressurgirá, pois um analista deve se renovar sem parar, escrever, ler, comentar textos, aprender com a situação analítica. O analisando no divã refaz a análise do analista: portanto, a busca não acaba nunca (a respeito do que é o inconsciente, a análise, a transferência, a pulsão, os conceitos analíticos, o ódio, o amor?). Na França existem duas correntes, nos últimos anos, no que diz respeito à formação. Há a corrente da I.P.A. (International Psychoanalitic Association), que deu prova de sua capacidade, oriunda da psicanálise britânica e apadrinhada pelos institutos e sociedades psicanalíticos ingleses... — Por Freud, então... — Sobretudo por sua filha, Anna Freud. Essa Associação, de fato, nasceu da Internacional fundada por Freud, cujo primeiro presidente foi Jung — mas foi com o impulso dado por Anna Freud que o movimento perdurou. A sede fica em Londres e os dirigentes atuais estão nos Estados Unidos. De fato, eles estabeleceram um curso de formação, a partir de 1925, desde o instituto de Berlim. O curso é o mesmo para todas as " f i l i a i s " do mundo que aderem. A formação dos analistas segue esses critérios: análise pessoal de certa duração e de certa forma, dois controles de certa duração e de certa forma. O primeiro controle é individual, com um analista chamado " d i d a t a " , isto é, um analista que funciona de acordo com critérios idênticos a seus iguais (uma pessoa qualquer não pode se considerar analista "controlador"). O segundo controle se desenvolve com muitas pessoas; cinco ou seis analistas " j o v e n s " trabalham com um analista, o qual não intervém falando de sua experiência pessoal, ao contrário dos noviços. Eles são assim, mais ou menos levados a "teoriz a r " sua prática. Tudo isso é aparentemente bom. Na verdade, é também uma distribuição de poder. O didata "supervisiona" os " a l u n o s " . É aí que intervém Lacan e que aparece a segunda corrente. Lacan propõe o seguinte: * 'Um analisando que se torna analista deve receber todas as oportunidades pelo fato de que está renovando a análise." É preciso, então, criar uma estrutura particular que não apenas acolha o iniciante, como também receba a inovação, muitas vezes desconhecida, da própria pessoa que a está produzindo. O analisando se apoia, para tornar-se analista, sobre algo de seu próprio destino, de sua própria

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para que serve uma análise ?

neurose, que funda seu desejo de tornar-se analista. Lacan chama isso de " o p a s s e " . É o momento em que se passa da posição de analisando à de analista. Lacan propõe que se fale sobre ele dentro de um procedimento especial, que ele estabeleceu nos anos 64-67 — é por isso que funda sua Escola Freudiana de Paris após ter sido excluído da I.P. A. O procedimento proposto por Lacan é invertido: em vez de a instituição, que acolhe o recém-chegado, aceitar ou recusar cooptá-lo segundo determinados critérios, ao contrario, decide-se que é o iniciante, em função de sua total abertura em relação ao inconsciente, que realimenta e requestiona os veteranos. É, no fundo, o processo mais justo, o qual eu endosso, pois ninguém pode se vangloriar de saber o que é um analista, e muito menos julgar o seu valor, mesmo quando sua "competência" de praticante é reconhecida por seus analisandos. — O analista não pode fazer bobagens, causar desgastes, por imperícia ou inexperiência, no paciente, e, nessa medida, não lhe é necessário um "saber"? — Toda a questão analítica está em que através daquilo que a pessoa diz, isso evoca " c o i s a s " que despertam em si. A gente escuta aquilo que ecoa em relação a nós pelo fato de ouvir. Você mesmo, enquanto falo para você, não poderá jamais ouvir a não ser aquilo que isso evoca em você neste instante. Você não está ouvindo o que eu digo. E é provável que quando eu falo para você eu ouça em mim " c o i s a s " que descarto porque não tenho tempo de dizê-las, e isso de tal modo que sou remetido a outras " c o i s a s " ainda. Existe uma impossibilidade radical de comunicação; existe, em todo caso, um limite. A mensagem que envio já retornou a mim antes mesmo de você a ter recebido. É a questão da própria linguagem. Eu lhe digo isto e isto me sugere: " M a s o que é que você está dizendo a e l e ? " O tempo todo. O enunciado é transmissível (sujeito, verbo, comI plemento), mas a enunciação que está subjacente, você não sabe nada i sobre ela. Supõe-se que você (já que estou lhe falando) constitua o lugar \ de acolhida dessa enunciação, mas, de fato, esse lugar se situa em mim, \ n o nível inconsciente. Então, a bobagem, lá dentro, é inerente ao fato de > falar. Isso posto, é preciso um destinatário para que a mensagem faça retorno em si, senão é uma espécie de monólogo. É preciso um logro — que eu realmente acredite dizer a você o que estou lhe dizendo — para me dar conta de que existe, ao mesmo tempo, outra coisa. A bobagem, na análise, seria, penso eu, o analista se colocar no lugar em que o paciente ó coloca, sentindo-se uma espécie de " e d u c a d o r " , de " c o n s e l h e i r o " e adquirir uma ascendência sobre o paciente. Isso, aí, acontece, e é uma das razões pelas quais um analista deve participar ou aderir a uma associação, mesmo que só a freqüente de vez em quando, para se assegurar de não perder a "inventividade freudiana" e de poder redescobri-la. Isso constitui um perigo que espreita o analista, se ele não mantém contatos

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relativamente freqüentes com os colegas. É o motivo de nossos numerosos colóquios, grupos de trabalho ou manifestos. Essa necessidade de coletivizar nossas experiências que procede do desejo de transmitir a análise. — A propósito da "experiência ", você toma notas durante a sessão ? — Não é sistemático, como não é sistemático relê-las. Não se trata de ressaltar os dizeres exatos dos analisandos, antes observar o que aquilo evoca... E reler essas notas faz parte do "outro ofício". O "outro ofício" se revela no que as crianças perguntam ao pai analista: — " P o r que você fica no seu consultório depois que acabou de trabalhar? O que é que você faz l á ? " Eu responderia que o " o f í c i o " não consiste apenas de escutar. Minha atividade " *outra" é trabalhar lendo, escrevendo, observando o que produz o fato de ter que escutar. Depois que terminam as horas de trabalho com os analisandos, notei que havia talvez uma outra coisa: uma atividade suplementar que não seria ócio nem entrega aos sonhos, mas fazer aquilo que se chama: nada. Há um lugar estranho, uma espécie de sono desperto, de tempo a perder. Convém se reservar algo dessa ordem de se desligar das coisas. É muito típico — quando acabam as horas de trabalho, um minuto depois, se deixa de ser analista. Sabe-se disso, acabou-se... E a retomada, quando ocorrer, também é imediata, tão cheia de espantos quando se volta a ser " o u v i n t e " . Às vezes, depois de um corte prolongado, se persiste naquele famoso " n a d a " , a pessoa se surpreende a si mesma dizendo: " m a s o que estamos fazendo aqui os dois — o analisando e o analista — como aconteceu de estarmos aqui j u n t o s ? " Esse " n a d a " tem um elo de causa e efeito no desejo de escutar. Fora do trabalho, a gente se torna não-analista. Dormir repara e permite analisar os próprios sonhos, comentá-los faz parte do outro ofício. O ofício do analista seria o ofício de escutar, o de trabalhar a análise e, por fim, o nada! ... Não é não fazer nada, mas fazer " n a d a " . Existe uma espécie de oscilação entre escuta e cessar da escuta. — Os analistas têm uma vida estável, e até convencional? — Isto me lembra uma anedota conhecida. Um dia, André Breton vai visitar Freud em Viena e lhe pergunta, a propósito: mas afinal, como é que você consegue tomar sua sopa tranqüilamente com a família depois de passar o dia todo ouvindo histórias pavorosas de assassinatos, incesto, sexo e t c ? Freud respondeu o seguinte: é exatamente porque posso tomar minha sopa em família que suporto receber essas histórias... Freud escrevia quatro horas por dia, das 10 da noite às 2 da madrugada. — Ea vida familiar? — Você sabe, nesta profissão, nunca se fala de si, mesmo quando se passa dias com os interlocutores. Isso precisa permanecer continuamente em silêncio. Mas à noite também se fica contente de ter a família, os

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amigos, um grupo de trabalho etc. Essa divisão entre vida fora do coletivo e retorno ao coletivo se assemelha talvez ao meio artístico!... — Imagino que, no decorrer das sessões, o analista veja muita gente que sofre. Será que isso não afeta, mesmo contra a vontade, a própria existência dele ? — Às vezes, sim. — Eu sei que você não ouve estritamente aquilo que e'factual, mas me parece que, se eu escutasse tudo isso, não poderia evitar ter "emoções" — Se as pessoas vêm ao analista, desde o início, só pode ser para falar de seus dramas reais e imaginários. Evidentemente, acontece de um analisando perder uma pessoa próxima, dizer isso, e eu interromper a sessão porque seu estado é de sofrimento, ponto final, e isso não é da alçada da análise — não é utilizável logo de imediato, pelo menos. Mas quando, por exemplo, uma pessoa relembra uma situação em que sua mãe a abandonou no escuro na primeira infância, e a revive de maneira muito dramática na sessão, é muito grande a intensidade nesse instante, ainda que não seja real, e é contudo terrível. É o passado que se torna contemporâneo da situação atual. Não é um momento emocionante para mim, mas sou tocado pela exatidão dos fenômenos que constituem o retorno do recalcado, retorno que justamente ocorre na terapia e tem relação com a ligação analista-analisando. — Suponho que aconteça de os analisandos chorarem. — Não é uma prova absoluta de sofrimento. Pode representar também um afeto que indica um processo de conflito oculto no momento. M u i t a s vezes as pessoas choram porque alguma coisa é tal que não pod e m dizer. — Aí, você está propondo uma explicação. Mas eu estou falando do seguinte: o analista é capaz de suportar todo esse stress, existe um limite? — É verdade que existem pessoas que transmitem e de fato fazem pesar toda a carga de seu sofrimento, sem no entanto necessariamente exprimi-lo em palavras. Essa dimensão d e ' *peso'' às vezes faz adormecer o analista. A pessoa abre zonas duras de sua relação consigo mesma, é c o m o se dez toneladas de peso lhe caíssem em cima... Muitas vezes, as pessoas pensam que o analista tem que estar muito repousado, disposto, dormir bastante, como um técnico que tem de garantir um gesto preciso. O analista vai se proteger, de algum modo, mas quero observar, de passagem, que é quando um analisando declara que não dormiu à noite, que está caindo de sono, que a sua resistência, justamente, fica mais frágil e que ele vai fazer discursos inovadores. O cansaço adormece a vigilância do sujeito... Muito bem, do lado do analista, isso funciona mais ou menos

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da mesma maneira. Algumas pessoas fazem sua angústia passar ao analista, é evidente, e isso pode se transformar em adormecimento, por exemplo. No fim do dia, o analista está cansado, mas é um cansaço de outra natureza. — Mesmo se ele não levou em conta a realidade estrita — esta pode ao menos se insinuar, queira você ou não, quando uma pessoa explode em soluços. — Isso responde exatamente à questão precisa de saber como distinguir, não confundir os termos, as afirmações, os discursos e as falas de uns e de outros entre todos os analisandos. A análise exacerba o fato de que nós somos seres " f a l a n t e s " . A pessoa que vem se deitar no divã, mesmo se faltou a três sessões anteriores, me situa dentro de seu discurso, que produz um discernimento instantâneo. Um analista está com a " a t e n ção flutuante''; ele se deixa levar por aquilo que lhe é dito. Eu não acredito ter confundido dois pacientes uma única vez em vinte anos (em contrapartida, as afirmações de um podem me fazer pensar nas afirmações de outro). Acontece de eu me lembrar de uma fala muito anterior de um analisando que este último nega veementemente. Ele acaba até me dizendo que estou confundindo. Eu duvido um instante: Será que me enganei? Aí o analisando concorda, ele disse isso, há muito tempo atrás! Isso parece incrível, mas é assim. Eu vou lhe contar uma história. Um dia, chego à inauguração da nova biblioteca do hospital Sainte-Anne, nos anos 67-68. Lá, um orador fala com uma voz inaudível, ninguém o ouve e esperam que aquilo acabe. Ora, por acaso, eu estava sentado ao lado de Lacan, e digo a e l e : ' *E dizer que não estamos ouvindo o que esse homem diz e que o vamos aplaudir, imagine!", colocando em questão o estatuto da fala no seu dizer social, convencional. Rimos e achamos graça. Alguns anos depois, decido retomar um trabalho com Lacan. A primeira coisa que ele me declara depois dos primeiros encontros (parece que eu falava alto): " m a s é muito enérgico o"que estou o u v i n d o " ! Nós nos encontramos através de uma pessoa que falava muito baixo. Desde a hora em que cheguei, eu havia falado alto e Lacan me fez notar, de certo modo — o que acho surpreendente — que o elo entre nós era uma pessoa que não se fazia ouvir por falta de energia. Minha fala e a dela tinham feito um " n ó " , e sua situação de destinatário repercutia essa situação no presente. Isto nada tem a ver com a memória: trata-se, antes disso, de uma ausência de esforço consciente. — Não se pode imaginar que seja uma simples coincidência? — Todo analista tem inúmeras vezes a oportunidade de se dar conta de que o inconsciente funciona como "contável"... Em fevereiro de 1968, eu terminava um estágio em psiquiatria como residente de hospitais. N o sábado há a consulta das famílias, isto é, estas vêm visitar seus parentes

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hospitalizados e, eventualmente, se recebem autorização, os levam para casa por alguns dias. Como psiquiatra residente do hospital, cabia a mim autorizar as saídas e, uma vez, recusei a autorização de saída a um doente que m e parecia inapto para ficar em casa dois dias; isso de acordo com a equipe do hospital. Quando voltei, na segunda-feira pela manhã, soube que o médico-chefe tinha dado a autorização de saída, apesar da opinião d e todos em sentido contrário. Ora, é de fato dramático — esse doente, n o fim de semana, tentou suicídio com uma arma. De fato, diante de tamanho erro, o médico-chefe e eu chegamos a um acordo quanto a modificações referentes a essas saídas; visitas a domicílio pela equipe médica e informação minuciosa das famílias. O desenrolar dos acontecimentos, no discurso, da instituição que dispensa cuidados, que é o hospital todo, mostrará que existiu conflito de autoridade, posto que o residente viu-se grotescamente coberto de autoridade à custa do chefe. Chega maio de 68. Uma greve geral acontece no hospital, como em toda parte. Eu poderia descrever isso durante horas. No decorrer da segunda ou terceira semana de greve, me chegam aos ouvidos histórias relativas à tentativa de suicídio, mas ainda não posso saber, pois estão disfarçadas da seguinte maneira: eu teria ameaçado o diretor com uma a r m a ! Embora nós não tenhamos nunca nos encontrado. Imagine a minha estupefação. É claro, eu jamais tinha proferido algo semelhante. Vários meses depois, quase um ano, compreendi o que tinha acontecido. Reconsiderem o s os elementos: em primeiro lugar, um doente tenta suicídio com uma arma; em segundo lugar, eu tinha "passado por c i m a " do médico-chefe, do seu lugar de autoridade simbólica. Eu tinha simbolicamente "matado*' o patrão, eis a montagem inconsciente de discurso que nos chegou no serviço... Os enfermeiros, os doentes, os médicos se viram apanhados numa dimensão de linguagem inconsciente que circula. As mediações da fala, a mediação dos significantes que passam de um sujeito a outro, depois a um terceiro, tudo isso tinha resultado no seguinte: o psiquiatra residente do hospital quer demitir o diretor. E agora o ponto conclusivo: eu trabalhava também num outro lugar terapêutico. Ora, diversas pessoas d o primeiro hospital, aquele em que se deu o " a c i d e n t e " , trabalhavam também nesse segundo local, onde escutei, seis meses mais tarde: — O residente é um anarquista. A famosa história do diretor deposto tinha circulado, alterada! Os elementos — tentativa de suicídio, arma de fogo, médico-chefe, diretor, residente — tinham organizado um mito, isto é, compuseram um discurso organizado em torno do assassinato dos porta-vozes da Autoridade. Todo m u n d o tinha contribuído na construção dessa ficção, com toda as peças. Isso mostra duas coisas: o inconsciente circula; o inconsciente constrói. Se o único autor e agente de sua própria pessoa é o doente que tentou

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suicídio, eu me vi no lugar de causa e de autor de outros discursos, e esses discursos foram organizados em discurso portador das intenções que me foram atribuídas, das quais eu não fazia parte. Tornei-me o agente e o transmissor da violência que o doente tinha cometido contra si mesmo: será isso uma dimensão da transferência, nos grupos humanos, pela via indireta da dimensão da fala que se chama de boato, já que se trata do coletivo? É por isso que, para tornar uma fala autêntica, trazida pelo desejo de um sujeito, lhe é necessário um dispositivo, que é o que Freud inventou, o do divã-poltrona, que põe apenas duas pessoas na presença uma da outra, o analisando e o analista. — É surpreendente, porque tudo isso me faz pensar numa coisa completamente diferente. Você sabe que eu sou músico. Muito bem, me dei conta de que sempre que fazia um progresso visível no meu instrumento era após um erro ou um qüiprocó qualquer... Por exemplo, tocava uma nota em vez de outra, sem ser de propósito, e descobria então um monte de possibilidades harmônicas ou rítmicas nas quais jamais tinha pensado antes. Falei sobre isso com um professor de piano que me respondeu que, com ele também, as descobertas mais marcantes tinham surgido ao observar os erros dos alunos! — É porque existe uma transmissão aluno-professor... não é a mesma da análise. O analista " e m p r e s t a " o seu inconsciente — pelo fato de não falar de si com o analisando. — Existe uma correspondência ? — ... Uma correspondência na pedagogia? Os pedagogos acreditam possuir uma teoria pedagógica, enquanto que a pedagogia nunca é senão uma prática do erro... Não existem normas. .Q^erro é uma fonte de descobertas.f A psicanálise é a prática do mal-entendido. Eu * 'não escuto b e m " o que o paciente diz. Cria-se um afastamento no interior do qual o paciente reconhece aquilo que disse, de tal modo que ele nem tem mais necessidade de reformular. O analista deixa-se levar, Fica como se estivesse, de certo modo, hipnotizado. Para o analista se deixar tomar pelo mundo psíquico do analisando, há um pé dentro, um pé fora. A psicanálise mostra que há aí formação — voltando à palavra " p e d a g o g i a " — porque se aceita o erro como tal e se faz dele algo positivo. — Você conhece Art Tatum ? Éum dos maiores pianistas de jazz do mundo. Era admirado por Stravinsky, por exemplo, e muito poucos, mesmo hoje, são capazes de reproduzir aquilo que ele fazia. Imagine que aprendeu a tocar em cima de um equívoco. Onde ele morava tinha um piano mecânico de rolos perfurados. Ora, os rolos tinham sido "furados originalmente por dois pianistas, portanto, a quatro mãos. Art Tatum ignorava isso, evidentemente, e passou a infância reproduzindo no seu

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para que serve uma

análise?

piano normal aquilo que tinha ouvido no piano mecânico. Em função disso, a técnica moderna de piano deu um salto incrível... — Existe um lugar de inscrição de um discurso e, quando há um branco que não se integra na cadeia falada, ele vai reclamar a sua parte de representação de uma maneira ou de outra. Esse exemplo de Art Tatum merecia ser aprofundado, evidentemente. Quando um paciente se torna analisando, sempre tenho esta fórmula na cabeça: " O que é que ele ama (pessoas, objetos, lugares etc.) e o que é que ele o d e i a ? " No fundo, o que ele espera da vida? A gente percebe, fazendo esse tipo de percurso, que existe uma dimensão imprevista: o analisando fez "ligações falsas", transferências, sobre determinado número de pessoas que ele não ama, ou de quem gosta pouco, e ele traz o todo em sessões. Com o analista, ele vai reproduzir mais ou menos essas "ligações falsas", esses equívocos, e o analista vai se recusar a endossar esses disfarces, nos momentos adequados, permitindo ao analisando desfazer-se deles, ao ser obrigado a reconhecê-los. — Você então diz coisas? — Eu digo " c o i s a s " , peço para especificar, repetir, e aí ó analisando escuta a si mesmo. — Já lhe aconteceu de enfrentar uma situação violenta? Um paagressivo... — Uma vez, uma pessoa veio fazer uma algazarra depois de uma entrevista preliminar. Ele se encontrava no meu consultório na hora em que eu tinha sessão com uma outra pessoa, uma mulher. Na verdade, a coisa acabou muito bem, e a única coisa que a analisanda disse depois foi: " P u x a , tem muita gente h o j e ! " Isso constituía um comentário bastante humorístico em si, mas no caso se inscrevia num sintoma mais geral.

ciente

— Você nunca teve que lidar com violações da vida privada ? — A palavra violação parece um bocado forte. Tratar-se-ia, antes, dos limites recíprocos entre vida privada e vida profissional. Acontece de um paciente procurar saber como eu vivo, quando o empreendimento analítico é de saber o que eu sou para ele. As interferências reais não se produzem porque o inconsciente é bem feito: o paciente vai preferir " i m a g i n a r " minha vida particular, para melhor situar a dele. Assim, em geral, a sala de espera do psicanalista não é um lugar onde se discute; a fala está reservada para a sessão, a sessão, à fala que vem. Por essas mesmas razões, coisa espantosa, todo mundo sabe que vir ao meu consultório durante as sessões é implicitamente impossível. Cada um sabe, e até mesmo pressente, principalmente as crianças, que há uma dimensão outra na fala, que ?sta pode vir a um nível diferente, não servir estritamente para formular " m e passa o s a l " ou " o dia está bonito". É absolutamente extraordinário: até mesmo as crianças pequenas não vêm brincar aqui.

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Elas" não abrem esta porta, não porque eu seria severo, mas porque elas imaginam que algo importante está acontecendo, transportado pelo fato de falar com alguém que está lá para isso. — Será que o analista, uma vez fora de seu consultório, não ficará tentado a interpretar também a própria vida, cônjuge, filhos, amigos, de maneira analítica? A refletir sobre eles? — Não... A interpretação não é uma especificidade do analista, todo mundo pode fazer igualmente sem o saber de verdade, muito embora, evidentemente, se suponha que o analista esteja em condições de fazê-lo melhor. Mas para ficar estabelecida, a interpretação necessita da situação, do dispositivo analítico. É preciso a palavra que se desdobra, onde alguém permanece silencioso a respeito de si mesmo. Para falar a verdade, o que conta são os efeitos da própria interpretação e não a interpretação. Na minha existência cotidiana, usufruo do fato de ter sido analisado, não de ser analista. Na sessão, eu não existo como pessoa^ mas como personagem. Em casa, com os meus, falo de tudo e principalmente de mim! Se eu adotasse uma atitude analítica com .meus filhos, eles me jogariam isso na cara! — Vamos imaginar que um de seus filhos faça uma afirmação aberrante... — Eles não deixam de fazer, por provocação! A significação subjacente ao discurso consciente é permanente, no entanto, é necessário um dispositivo para lhe dar a oportunidade de ter efeitos marcantes. Esses efeitos existem o tempo todo, mas não precisamos de quebrar a cabeça, de ficar dizendo às pessoas: "Você me diz isso porque sua avó lhe obrigava a beber chá ou por isso ou por aquilo." Isso faria supor que as interpretações não sejam mais que significação; ora, é outra coisa. No fundo, muitas pessoas ficam satisfeitas de não saber o que é bom ou mal para elas. De todo modo, o sentem, interpretam os acontecimentos psicológicos da maneira que lhes convém, isso lhes basta. Para outras, mais exigentes, é necessário um analista, a quem atribuem a capacidade de escutar em silêncio o desenrolar subjetivo de suas falas, em sua lentidão, para daí extrair seus sintomas e sua natureza. — O que me leva a perguntar se acontece, em jantares sociais, de as pessoas virem pedir conselhos ao analista. — Acontece, mas é ridículo, porque eu não sei mais do que qualquer outra pessoa... Infelizmente, como sabem que exerço essa profissão, acham que o dispositivo analítico é uma bola de cristal, e que eu desempenho o papel do leitor das psicologias profundas... como se os indivíduos não representassem nada em sua necessidade de verdade, que eu preencheria! Freqüentemente, basta mostrar que não é este o caso.

para que serve uma análise?

— E já lhe aconteceu de encontrar por acaso um paciente

numa

festa? — Já, às vezes. Aconteceu de eu ir embora logo, senti que não devia estar lá. Mas, francamente, de modo geral isso não tem conseqüências sérias. A questão é a seguinte: por que às vezes fui obrigado a sumir? Porque na realidade dançar, beber ou rir na presença do " a n a l i s t a " desnudaria aquilo que a análise deve ocultar para bem se fundamentar — a saber, que o analista não estorve com seu modo de ser e de se apresentar o percurso do analisando que vai encontrar no dia seguinte na sessão. Se o psicanalista está numa poltrona, atrás do divã, fora da vista do analisando, não é à-toa. Não há nada mais íntimo e verdadeiro que uma análise. O fato de " e m p r e s t a r " seu inconsciente, como uma prótese, ao analisando, põe a nu seus próprios desejos inconscientes. Quando encontro um analisando (que terminou a análise), mais tarde, fico — ficamos — na maioria das vezes perfeitamente à vontade. Não há possibilidade de blefe, cálculo, constrangimento mundano maiores. No final de uma análise, o analista também aprendeu muito sobre si mesmo, no que diz respeito à contabilidade inconsciente de sua libido. U m psicanalista presente numa festa traz, penso eu, " r e a l i d a d e " demais da sua pessoa para aquele que o escolheu como analista.

Alô, estou ouvindo... — É concebível conduzir uma análise pelo telefone? — Claro que não. Justamente, é necessário que o corpo esteja presente. Não seria uma análise, absolutamente. A exacerbação da fala advém do fato de que há dois seres falantes presentes, portanto, com seus corpos. N o telefone, nos comunicamos sem ter a sensação da presença do outro. O telefone reduz a fala a uma dimensão instrumental, a análise mostra exatamente o contrário: no fato de falar, há corpo/memória, corpo/história, corpo/questão, que se alteram em relação ao outro corpo presente: o analista. Você vai notar, além do mais, que um bom número de pessoas fica incomodada no telefone, porque a fala é parcializada a ponto de tornar-se a totalidade do outro. Por que não escrever uma carta simplesmente, se for assim, e nada mais? — Sim, por que não ? — Porque falta a dimensão do corpo. A presença " c o r p o r a l " , habitada pela linguagem, faz surgir nessa simultaneidade das duas pessoas, aqui, lá, no mesmo lugar, no mesmo momento, palavras e frases que não aparecem no telefone e por escrito. No telefone, eu não digo que não

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se possa cometer um lapso ou ter um discurso induzido por causas inconscientes, mas é antes de tudo a lógica consciente que emerge. O dispositivo freudiano, se não é garantia da análise, é necessário, pois subtrai os dois presentes do olhar recíproco e dá, assim, prioridade ao falar específico, de dois corpos presentes unicamente através da fala. Numa tal presença, outra coisa se desenrola — que não é da ordem das explicações ou dos confrontos de pontos de vista. Por exemplo, nas sessões, pode-se muito bem não falar, mas o simples fato de um ruído, de um movimento, vai constituir uma pontuação, uma baliza da fala. — Que ligação estabelecer do escrito com o inconsciente ? — O inconsciente é contável, porque existe uma dimensão da inscrição que aparece melhor e de maneira marcante, processual, se o analisando fica na posição deitada. Fazer colocações no divã é inscrever e reconhecer a partir do corpo acontecimentos no discurso inacessíveis de outra forma, e que o analista apreende para, se possível, dizer ao analisando. A análise não é nem diálogo nem monólogo. Um dos dois (o analista) é a caixa vazia do discurso do outro. Essa caixa não se pode " e n c h e r " : ela é apenas ampliada e, quando o analista não está mais nesse lugar, a interpretação deve remetê-lo para lá. Aliás, os estudos dos textos psicanalíticos, a leitura, não são senão comentários a propósito desse dispositivo de falas. — Mas o analisando não o vê... — Não, é uma percepção psíquica da presença. — Seria possível imaginar que, ao contrário, pela ausência da materialidade, o telefone veicula a dimensão última da fala, livre de qualquer outro traço tangível, como odor, aparência. E o aparelho de videotexto mais ainda, já que deixa apenas as palavras, suprime até mesmo o som. — Você está sempre me surpreendendo! Sim, existe uma materialidade, o próprio objeto. E além disso, no telefone, a pessoa não pode se calar, se não se diz uma palavra é absurdo. Numa " a n á l i s e " feita por um desses meios, rapidamente o analista Ficaria disperso — mesmo jogando o jogo. Isso seria colocar a palavra na posição de falo, no lugar do objeto ideal, da troca real, coisa que, como se sabe, é utópica. Você não está com jeito de quem se convenceu... Então pense no seguinte: numa análise, é preciso se abstrair de tudo o que depende da ação — embora seja preciso que esta seja eventualmente possível. " D i z e r " vem a ser " a t o " . Freud, a partir de 1925, em seu livro A análise leiga (quer dizer, pelos não-médicos), havia demonstrado isso com seu interlocutor — um grande jurista de Viena; o obstáculo para a compreensão dos fenômenos do inconsciente se choca com a resistência à análise. Falar de análise é comunicar, sem

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dúvida, mas * 'inconsciente contável'' significa cifrar/decifrar as deformações, falsificações, deslocamentos e condensações do sentido dos sintomas. Isso não tem nada a ver com o fato de se comunicar pelo telefone, videotexto ou por cartas, é até mesmo radicalmente antinómico.

SEXTA CONVERSA

Transferência — Vamos falar da relação amor/ódio que se estabelece no curso de uma análise. Isso se chama transferência; começa cedo ou demora ? — Para começar, quando a pessoa vem fazer uma análise e diz que não sabe como a coisa funciona de uma maneira consciente ou cultural, bem, é mentira. Sabe-se exatamente onde se vai. Eu fico eternamente espantado ao constatar que os " c l i e n t e s " , desde os primeiros cinco minutos, se põem a lembrar dos pais, da infância. Isto aceito, a gente percebe que eles não falam tanto dos pais, mas do parentesco com a linguagem e de como esta foi construída. Mais uma vez, o cliente e eu não vamos escrever um livro, como estamos fazendo aqui, nem construir uma casa: simplesmente, vamos nos abster de qualquer ação. Muitas vezes, logo no início, eu me lembro, exatamente como me formulou o meu próprio analista, desta frase de Freud: "Trata-se de dizer aquilo que vem à mente sem escolha nem reticência." Esse dispositivo ressalta o fato de que falar é " s e aparentar" à linguagem, e logo leva à lembrança dos pais porque, provavelmente, isso converge para o ponto umbilical — a origem — do fato de falar. O analisando " c o n t a " " a q u e l e s " que mostraram que a fala existia e a deposita n o ouvido do analista. — O analisando deposita uma carga afetiva ? — Pode-se, de fato, chamá-la assim. Quando um paciente fica calado, às vezes eu peço a ele que formule aquilo que está em sua mente e o paciente responde: " B e m , não sei o que d i z e r . " Então, eu observo: " "Diga que ficará sabendo..." — fica claro que o que lhe passa pela cabeça naquele momento é algo chato de dizer. Freud observa, em Técnica Psicanalítica, que em caso de silêncio prolongado, ele tende a fazer com

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que fique claro se aquele pensamento não formulado se dirige à pessoa dele em particular. Quando o analisando sente tal dificuldade de falar com o analista — que pode se traduzir também num fluxo de frases que mascara o essencial —, na maior parte da? vezes se trata de efeitos de transferência e não de uma reticência psicopatológica grave. Ao contrário, são emoções, amor ou ódio, ligadas a lembranças inconscientes que surgem na superfície do " c o n s c i e n t e " e colocam o sujeito em relação consigo próprio de uma maneira que ele ignora. No ato, o sentimento experimentado com relação ao analista se torna a reedição consciente ou pré-consciente de um sentimento inconsciente em relação a " u m dos pais na infância", e isso é difícil de dizer, isto é, de admitir. O sentimento em nível pré-consciente que surge vai se transformar, por exemplo, depois de claramente formulado, em: "Senhor analista, o senhor é o marido ideal, é verdade, estou certa disto. A propósito, ontem o vi na fila de espera do teatro, acenei, mas o senhor não respondeu." Evidentemente, o analista não esteve em momento algum no teatro. Nesse momento, convém fazer a pergunta sobre o que é que evoca no analisando essa "declaração de a m o r " . Em geral, o que ocorre é que isso justamente lembra determinado instante vivido com o pai ou a mãe, ou seu substituto. " B e m , eu estava no colo do meu p a i . " Toda a arte da análise nesse momento preciso está em aceitar permanecer em silêncio. Para permitir o desnudamento dessa "transferência", pois todo tipo de resposta, tão buscada pelo analisando, tornar-se-ia, no nível da realidade do intercâmbio analítico, equivalente a uma certeza de " a m o r v i v i d o " , uma vez que se trata de levantar a questão da hipótese do amor e de sua existência primeira. Esse estado amoroso é chamado por Freud de transferência. É uma transferência de representação ou de efeito psíquico, que pode também traduzir-se em outros sentimentos: amor, orgulho, ódio, amargura, indiferença, ciúme — mas que significaram e marcaram alguma coisa na pessoa em um dado momento, no nível de uma espécie de energia chamada de libido. Aquilo que é denominado de maneira simplista de "transferência positiva" é quando, em geral no início, essa " r e e d i ç ã o " do sentimento se traduz em amor; a "transferência negativa" seria, ao contrário, quando o analisando mantém seu analista sob reprovação ou pelo menos sob um julgamento implacável: " V o c ê não sabe t u d o " , e desenvolve um sentimento de desafio. O elo que falta na história do analisando, seriamente recalcado por ele (por n razões), é um lugar chamado analista. — Na medida em que a análise constitui uma espécie de zona neutra, para onde se transporta o próprio fardo, a transferência não se dá, também, no momento em que se descobre o amor que se tem por si mesmo ?

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— Sim, é claro. Mas não apenas um amor próprio no estado bruto d o narcisismo. A energia afetiva — que não é uma força mensurável como a essência ou o sol — faz, no entanto, os indivíduos " c r e s c e r e m " . — Eu diria até mesmo que ela os carrega... No fato de falar, há um certo prazer em se ouvir, eu diria, de modo que deve ser um verdadeiro júbilo observar a si mesmo narrando coisas surpreendentes durante a transferência, imagino. — A fala e a escuta andam juntas. Os olhos, por exemplo, só remetem a si mesmos: eu olho, você olha, nós olhamos com o mesmo instrumento, os olhos. Mas a fala, ela utiliza ao mesmo tempo o ouvido e a voz. Na transferência, há uma descoberta: algo, até o presente inativo, se torna ativo. É uma alegria comparável à do achado verbal. Esse achado funciona porque existe uma economia de energia. Freud explica bem isso numa obra (O chiste e suas relações com o inconsciente). Quando se consegue gastar menos energia, desviar a energia colocada nos sintomas, liberá-la, não só se tem o ganho da representação oculta que vem à luz, mas, ao mesmo tempo, se obtém energia para dispensar em outra coisa. Opera-se um curto-circuito no investimento libidinal, eu diria, em termos técnicos. É por isso que a análise se verifica justa de sessão a sessão: falando. Ao dizer o que vem à cabeça sem passagem à ação, obteremos um lucro que justificará que, em dado momento, paremos; haverá um fim do tratamento. E se nós falamos pelo simples interesse de nos ouvir, não haveria motivo para parar. — Então a transferência se estabelece sistematicamente ? Ou não ? — Ela quase sempre acontece. Justamente, os analistas se perguntam se existiria uma análise sem transferência. (E aí está um novo motivo de rompimento entre Lacan e a Internacional Psicanalítica.) Para Lacan, a resposta é negativa, posto que ele diz que a transferência é a atualização da realidade do inconsciente. Eu penso, além disso, que a transferência existe também fora da análise, mas não se sabe... — Na vida cotidiana? — Sim, o que Freud chama de "falsas ligações"; é quando, por exemplo, entre um patrão e sua secretária estabelecem-se laços fictícios, que não têm ligação com a realidade. Pode-se pensar que, nesse momento, se o patrão simplesmente se pusesse calado, começaria uma análise entre os dois. Mas isso não chega a acontecer pois as relações são codificadas. Entre marido e mulher, professor e aluno, patrão e empregado e t c , toma-se precauções de consenso para viver o cotidiano. Essa dimensão da transferência possível é, então, maciçamente recalcada na existência diária. O que não quer dizer que ela não possa reaparecer na ocasião da crise: o marido irá maldizer a mulher ("eu confiei nela porque é bonita, estúpida, inteligente, grande, pequena e t c " ) sem absolutamente levar em

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conta a realidade objetiva. A transferência simplesmente terá, nesse momento, mostrado a ponta do seu próprio nariz. Na análise, não se quer " c ó d i g o s " . Um dos dois protagonistas se retira portanto da cena imaginária da pura relação a dois, abrindo lugar a um terceiro, ou seja, à caixa vazia de que falamos há pouco. — De tanto mergulhar no mundo do outro, não há perigo para o analista de se apaixonar por seu (sua) paciente? — O analista, a sua pessoa, não é insensível. Ao contrário, está aberto aos sentimentos — mesmo se sua formação exige que fique calado. Mas ele escolheu a dimensão da fala, ir até os confins da palavra, o que descarta toda relação real de amor ou de ódio. Se sentimentos fortes o abalam, bem, então, a análise termina e é provável que uma aventura humana, amorosa, comece, de fato, na realidade; existem casos assim, é inegável. — Quanto tempo dura essa "fase " de transferência? — Isso dura o tempo todo, mas não está sempre no primeiro plano. A transferência vem, poder-se-ia dizer esquematicamente, quando uma descoberta vem à tona e se apoia nessa dimensão privilegiada do relacionamento. A partir daí, serão produzidas "ligações falsas", as quais deverão ser analisadas para se encontrar a fantasia subjacente, a ponto de se articular, nesse momento, no tratamento. Há um fio condutor que constitui a neurose; esse "fio condutor" é desenrolado com o próprio analista e se junta no " n o v e l o " . Toda a arte do analista consiste em saber que ele está no fio condutor, mas que ele não é o fio condutor — pela boa razão de que ele não existia na infância do sujeito. Em determinados momentos do tratamento, o analista é posto na berlinda e entra em cena o ódio, coisa que eu sublinho. O ódio aparece quando o analisando começa a lançar um olhar " p s í q u i c o " perscrutador sobre o analista e a análise. — Diversas vezes, quando fui à casa de analistas como convidado ou como amigo, observei que eles recebiam telefonemas, sem "ninguém'' do outro lado da linha. — Sim. Os analistas recebem todo tipo de telefonemas assim, aparentemente sem interlocutor, e no início da prática isso os deixa inquietos, em geral. De fato, os analisandos, aos poucos, admitem ter telefonado e se abstido de exprimir qualquer palavra. Além disso, o próprio número de telefone é visto como um significante. Muitas vezes, no tratamento, o número é interpretado como um meio de acesso, como um representante do analista durante sua ausência e, a esse título, é investido pelos analisandos. No fundo, o analista está no lugar do morto, como no bridge.

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F i m d a análise — Em que momento você decreta que a análise terminou? — A análise é colocada como " b u r a c o " da fala do analisando; portanto, ele está no lugar da falta, portanto, ele próprio é a falta. O que nós chamamos de dimensão simbólica da transferência, eminentemente na ordem da fala e não dos afetos, sela o fim do tratamento. Quando o analisando foi capaz de qualitativa e suficientemente fazer passar as representações do corpo, das lembranças, dos afetos, para as palavras, e tudo isso exigirá o mínimo possível de gasto de energia, a análise estará se aproximando do fim. Todo o problema vai consistir em suportar, aceitar, essa libido " l i b e r a d a " , porque será preciso fazer com ela alguma coisa, daí as recaídas eventuais. Convém, além disso, que a "amnésia infantil", a estruturação sobre a qual a criança se construiu como ser humano em sua relação com o mundo, venha à superfície. Enfim, o analisando deve se dar conta de que a função original do analista não passava de ilusão. Uma vez que esses três pontos tenham sido preenchidos, a análise estará terminada. — Quem declara isso ? O analista ou o analisando ? — Chega-se a um acordo a dois, a propósito de um estado de fato. Em geral, os dois suportam-no mal... Foi um grande percurso juntos — muito verdadeiro, autêntico, e eis que o capitel ruiu e as luzes se apagam. É um momento particularmente emocionante; o analisando fica livre de sua prótese. — Fico admirado com o termo ''emocionante "que você acaba de empregar. Ele parece sugerir que a relação analista/analisando é em essência totalmente humana, ao contrário do que faria suporá instalação do dispositivo freudiano. — Também é " e m o c i o n a n t e " quando a separação se torna violenta. Acontece de, na volta das férias, por exemplo, um analisando ter mudado o penteado, o emprego, o estilo, a vida, e declarar: "Agora acabou." Convém, no caso, suspeitar, mas é acima de tudo o momento de examinar se estamos num caso de rompimento ou de final de tratamento. Um final de tratamento — passível de ser retomado ulteriormente — pode se exprimir assim. Eis o que acontece com freqüência: o analisando, então, "foi e m b o r a " um pouco prematuramente. Algumas semanas, ou menos, se passam, e o analisando telefona dizendo: " E u preciso lhe ver no dia tal, à tal hora, por tal r a z ã o . " Aceitar esse encontro significaria ceder depressa demais ao seu próprio desejo de analista de rever aquela pessoa (porque, é verdade, ele gostaria de saber o que aconteceu com o analisando). Por isso é importante manter essa questão em mente antes de aceitar o encontro. O final do tratamento remete àquilo que faz falta em si e não

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deve mais ser transferido para a pessoa do analista. Quando usei esse termo " e m o c i o n a n t e " , não quis evocar uma finalidade estética ou emocional do tipo: " O h , como é b o n i t o " ; um final de tratamento pode ser violento, não violento etc. Simplesmente, alguma coisa acontece.

Política — Eu tinha entendido a nuance... Mas ressalto o aspecto humano, só isso. A palavra carrega emoções e é difícil se abster disso; parece-me altamente improvável que a posição neutra do analista seja tão neutra assim. — O analista não é uma máquina de escutar, é claro. O que lhe é dito o remete à sua própria relação com o inconsciente. E quando a análise termina, uma das fontes que lhe permitia chegar a esse inconsciente se esgota, embora ele saiba que o paciente seguinte ocupará esse lugar. Na análise não existe outra coisa senão uma relação humana, mas não no sentido banal de querer conscientemente o bem de outra pessoa, nem o mal. Há uma função " p o é t i c a " que remete à realidade social, como uma informação jamais escrita em parte alguma, mas que torna perceptível o mal-estar humano. Em 1981, quando Mitterrand foi eleito, eu ouvi, para minha surpresa, da parte de muitos analisandos, uma espécie de revigoração de sua atividade de desejo — não sensual, desejo simplesmente! Uma nova negociação entre desejo individual e dimensão do coletivo. Depois, quando a Esquerda foi gratificada, em 1986, não ouvi nada. Nenhuma reação em particular, nem boa nem ruim. Num nível pré-consciente, os analisandos tinham utilizado os eventos coletivos para dar um impulso ao próprio desejo. Não quero dizer, sem dúvida, que Mitterrand seja o salvador dos homens; estou falando do que um fato coletivo eventualmente gera em cada um. Eu acho — talvez um pouco ingenuamente — que a análise estimula, entre outras coisas, a que se questione a cidade, o modo como somos governados... O analisado, aquele que terminou a análise, procura, me parece, mais que os outros, saber, e escolher de forma deliberada entre opiniões cujos limites e não-limites ele conhece — não na ordem da ideologia, mas na da "cultur a " contemporânea. O analisado não é de modo algum melhor que os outros; e a tendência americana, onde os analistas têm um " e u " forte, onde estão quase que em competição uns em relação aos outros, é enfraquecida pela prática analítica, justamente. O " n ú c l e o sexual infantil" vem sempre perturbar a vida do adulto, mas a análise tenta encontrar um lugar para ele — pelo menos é assim que interpreto o que diz Freud em Mal-estar na civilização. O final de um

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tratamento, no fundo, seria aceder à responsabilidade. Responsabilidade pelos próprios sonhos, isto é, pelas próprias mensagens de desejos, mas também no nível dos conflitos no próprio meio, o que permite medir sua capacidade de amor, mas também sua própria destrutividade. Eu penso — talvez seja até mesmo um voto desejoso — que um analisado torna-se esquerda mais facilmente que direita. Está menos preso a seus interesses de usufruir de bens de consumo e se situa mais na ordem de uma subversão do Cultural, para refiná-lo. — Você acha concebível que uma pessoa que tenha tido "êxito" na análise, logo, no fim do percurso, possa ser de extrema direita ? — Eu acho que uma pessoa de extrema direita não viria fazer análise. Parece-me que uma pessoa com essas convicções não aceitará a dimensão do vazio — em torno de quê? — na fala. Eis a pergunta que você deveria ter me colocado! — Ser de extrema direita ou de extrema esquerda seria sintoma de alguma coisa ? — A perversão enquanto fetichização da ideologia, talvez. Nada disso se pode provar, mas apenas questionar, a todo instante; não existe saber coletivizável sobre tais questões. — Isso retoma o problema do final da análise; o lugar do indivíduo na cidade... — A opção política participa do processo de ser artista da própria vida. Ou seja, como ser singularmente criador das próprias escolhas.

A somatização — Num tal movimento de criação de si mesmo não existem também fracassos ? Estou querendo falar dos problemas de somatização. Suponho que no curso da análise se encontrem casos de perturbações cutâneas e até manifestações mais graves. — Os médicos consideram que um doente " s o m a t i z a " quando o corpo " f a l a " no lugar do sujeito. Numa análise, postulamos que tudo que se passa com o analisando e que é dito faz parte do tratamento. O inconsciente não é a causa disso, mas constitui um dos lugares de acolhida. Admitamos que o analisando faça um lumbago jogando tênis e formule isso na sessão, existe aí algo que se quer fazer conhecido — não apenas da ordem do "estou com d o r " . Ao contrário, se ele não diz uma palavra sobre o assunto, e isso se repete com freqüência, é do mesmo modo preocupante e pode colocar em questão a própria análise. Nesse contexto, as somatizações intervêm freqüentemente na análise nos casos de " t e -

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gressão/refúgio". O que o analisando descobre na análise, ele não suporta bem, e vai, então, refugiar-se numa somatização. Os dermatologistas, os imunologistas, chamam isso de fator " p s i " . Segundo eles, por exemplo, não existem causas propriamente objetivas para o aparecimento ou o desaparecimento das verrugas plantares. — Vejamos o meu caso; estou com uma ciática neste momento, porém ocorre que jogo tênis regularmente. — Há duas opções. A opção estritamente médica dirá que os espaços entre os discos e as cartilagens correspondentes passaram por um fenômeno de usura; a outra hipótese seria um fator de " s t r e s s " — é assim que os médicos o denominam. Para o analista, vai se tratar de localizar a repetição do fenômeno: uma pessoa que nunca sara da gripe, que tem torcicolos o tempo todo etc. Assim, poder-se-ia pensar numa espécie de passagem ao ato para "oficializar" o que não vai bem. Lembremos o exemplo daquela mulher que se dizia estéril; com o sonho do Lavoir* ou não, tal exemplo deixa completamente céticos os médicos — eles jamais aceitarão o princípio de " c u r a " aí embutido — e no entanto se dá assim. Uma criança compensa com otite as horas seguintes à ordem mais que vigorosa dos pais de que ela se cale. Assim, a criança vai mostrar que " n ã o vou ouvir mais durante alguns d i a s " . Ao mesmo tempo em que preserva uma área de troca com os pais, o ouvido, do qual os pais serão levados a cuidar, aplicando uma terapêutica. A somatização é um problema dos mais delicados. Os psicanalistas formados ou não em medicina estão aptos a responder a ela, o que não impede, porém, que em certos casos se consulte um médico para aconselhamento. Não se tem absolutamente certeza de que o inconsciente esteja implicado em todas essas manifestações. Isso seria colocar o inconsciente numa posição onipotente que na verdade não ocupa. Em contrapartida, a doença seria levada em conta pelo inconsciente, o qual se serviria dos sintomas patológicos; a somatização é uma forma de resposta inconsciente para escapar a constrangimentos simbólicos, isto é, da fala. Por essa razão, um analisando repentinamente impedido de comparecer à sessão por uma somatização — por mais espetacular e aparentemente sólida que seja enquanto desculpa — deverá pagar a sessão perdida. Concordar no sentido da somatização, se posso dizer assim, é deixar que ela se espalhe. — Os poucos dermatologistas com os quais tive a oportunidade de conversar, todos me garantiram que sabiam muito pouco sobre os "mecanismos '' da pele, da derme — eles se concentram mais no "como" do que no "por quê''.

*

V. página 29.(N.R.)

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— Os dermatologistas pensam que a pele é o que há de mais profundo; é como um lugar de inscrição: a mímica, a cor, o odor, a presença, a textura. E de fato muitas vezes a somatização se polariza na pele. A pele faz o contato entre o interior e o exterior do corpo... Freud, muito cedo, em tomo de 1885, num artigo sobre as afasias, observa, em particular, o quanto a organização da linguagem se desenvolve, entre outras coisas, em torno daquilo que ele chama de " i m a g e m acústica" — que será retomada depois com o termo "significante". Uma espécie de sensação memorizada permanece no ato de falar; não é só o sentido... Daí o seguinte: a somatização é um modo de não dizer, de esperar; a análise parece, portanto, um lugar particularmente adequado para " t r a t á - l a " e colocá-la em palavras. Agora, é preciso evocar também a psicossomática, que é ainda mais complexa. Parece-me que o livro de Marie Cardinal (Les mots pour le dire) descreve perfeitamente o que é isso. Uma pessoa, a autora, é sujeita a crises intempestivas, colites, sangramentos. Ela fala sobre isso ao analista sem parar, e este acaba lhe respondendo: " O seu sangue não me interessa." O que conta, é claro, é a questão do corpo... Doentes ou bem de saúde, as pessoas voltam sempre à problemática da incorporação; o que é ter um corpo. Nós falamos da outra vez da importância da presença física do analisando no consultório do analista; pois bem, a psicossomática é mais uma das múltiplas provas de que o corpo e a fala estão irremediavelmente ligados. A somatização é o conjunto dos pequenos problemas do corpo, passos em falso [faux pas] dos quais se poderia dizer que " n ã o são necessários" [/'/ nefaut pas]. Isto pode também querer dizer: " N ã o me ouça; leve em conta também o meu corpo." Em contrapartida, a psicossomática é mais o corpo doente de uma lesão — pelo menos simplificou-se assim para não entrar em noções complicadas como: gozar de boa saúde é também psicossomático, como o seria também o fato de dormir bem. — Uma doença lesionai pode estar ligada ao psíquico? Os analistas se debruçaram sobre casos realmente graves como as leucemias, o câncer. Dada a sua raridade, pode-se pensar que uma fratura do simbólico, uma fratura da transmissão da lei nas famílias, de uma geração a outra, provocou na criança uma ligação defeituosa das heranças psicológicas. Esses " b r a n c o s " da história vão talvez traduzir-se em algo que pesará sobre o corpo; num determinado conflito, de repente vão surgir. Todo ano na mesma época vêm hemorragias, por exemplo. Nada explica isso. Nem uma substância tóxica, nem um fator climático etc. Existe uma articulação lógica: ou isso goza, ou isso diz. Gozar = corpo que age, que, portanto, enuncia o que tem a expri-

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mir. Os médicos muitas vezes são reticentes em relação a isso, pois esse gozo está implicado com uma parte mortificada do vivo falante, pelo fato de que uma precipitação libidinal fica quase que definitivamente imobilizada. Isso está relacionado com a imagem arcaica do corpo materno, parte ainda não transmissível pelo viés da linguagem. Admitamos que um senhor tenha hemorragias gástricas todo mês de setembro e eis que ele começa a falar do cachorro. Mas o que tem o cachorro a ver com isso? Por que o doente evoca o animal? Muito bem, ao ouvi-lo, a gente percebe que o tal cachorro morreu num mês de setembro e que ele o lançou no Sena, não recebeu sepultura digna (segundo o doente). E o dito doente, através de um processo complexo, nos faz saber todo mês de setembro o quanto se aborrece com esse enterro indigno. De fato, como esse evento permaneceu no silêncio, não pôde fazer parte da história simbólica da pessoa e se repete contra ela: exige ser levado em conta e ter seu universo no inconsciente. — Estou pensando nos estigmas dos religiosos; estou falando dos famosos exemplos no decorrer da história cristã em que determinada mulher reviveu as feridas de Cristo... — Isso talvez devesse ser colocado na perspectiva de seu ponto de ruptura da transmissão simbólica da fala e de sua reparação num misticismo ardoroso.

Miopia — Um outro exemplo de somatização, ou próximo da psicossomática, são as miopias. Acontece de certas miopias regredirem no decorrer da análise. No fim da análise, não tem mais óculos. A criança não quer ver o que se passa em sua família e de repente fica míope. Não ver as brigas dos pais (quando são ouvidas) traduz-se nos órgãos da visão; houve uma crispação dos músculos ciliares. Adquiridas antes dos 25 anos, essa miopias, em geral bilaterais, e idênticas nos dois olhos, podem, é claro, desaparecer com orientação oftalmológica. É claro, o analista não deve, de maneira nenhuma, privilegiar o sintoma, pois o paciente o " a u m e n t a r á " . Se ele diz: " F a l e - m e da sua miopia", o paciente está açriscado a ver a miopia aumentar. Ao evocar as cenas originárias de sua infância (brigas, mistérios e t c ) , o paciente voltará a encontrar o fio de sua construção afetiva e psíquica. Ao se permitir djzer isso, levantará a proibição, portanto, em particular, a dimensão de substituto de proibição que se traduz nesse tipo de miopia.

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Frigidez, sexualidade, amor — A frigidez feminina, retomando, é muito mais complicada. Segundo a sexologia clássica, as mulheres possuem duas zonas de prazer: clitoriana e vaginal. A passagem do gozo de uma zona à outra muitas vezes é difícil para muitas delas. Para a maioria, o gozo sexual seria clitóris-vaginal, e, de fato, elas reivindicam — ou é reivindicado em nome delas — como gozo absoluto o gozo dito vaginal. Essa equação feminino-vagina é simplista, posto que no gozo há desejo e fala. O equivalente à mulher frígida seria, um pouco, aquele que tem ejaculação precoce, que se recusa a sentir por um tempo longo o prazer... A frigidez enuncia todo o paradoxo da sexualidade feminina. A verdadeira frigidez afeta, na maioria das vezes, os doentes chamados de psicóticos. As mulheres " f r í g i d a s " , ou que se declaram como tais, na análise ou na vida, desejam, na minha opinião, emitir uma mensagem do tipo: o que é um corpo hoje? As proibições culturais, morais, pesam. Vamos nos vingar. As vezes escuto de mulheres que pararam de tomar a pílula, engravidaram e vão abortar. Elas dizem na sessão: " E u queria ficar um pouquinho grávida." Isso equivale ao problema da frigidez, parar antes. Existe uma guerra entre os sexos, cujo móbile " a inveja d o p ê n i s " ; a questão gira permanentemente, pois mesmo que o homem tenha um pênis e a mulher não, o pênis para o homem é inútil sem a mulher; o ser humano inveja permanentemente o pênis em ereção que transforme em verdade o gozo entre os dois sexos. O falo é verdade. A mulher, no entanto, admite com muito maior facilidade a sua necessidade do homem, por estar situada Simbolicamente, como ser falante, como mulher. O homem, ao contrário, situará a mulher, freqüentemente por medo, como um objeto que seria uma espécie de órgão suplementar em relação ao seu pênis; o intercâmbio com a mulher será de ordem masturbatória, de tipo homossexual masculino. A análise permite, entre outras coisas, melhorar o gozo, pelo fato de que o homem passa a aceitar melhor o corpo da mulher e aceitar a própria feminilidade. O amor feminiliza tanto a mulher como o homem. Existe um outro gozo além do coito sexual e que se chama amor. — Não existiria gozo puramente físico? Parece-me que na vida de um homem ou de uma mulher não é, absolutamente, raro fazer amor com uma pessoa que não se ama especialmente, mas com quem se goza muito. — Exato, mas isso é bastante cultural. Isto é, adquirido num enunciado coletivo com foros de lei: convém que o homem seja forte, viril, que trepe com as donzelas do castelo, mas não com a castelã. O Amante de Lady Chatterley mostra de que modo a transgressão tem sempre seus direitos para o acesso ao gozo, pelo viés da localização da proibição; a frigidez como enunciado feminino entra precisamente nesse quadro... a proibição, aí, é dita por não ter sido localizada, mas será verdade? A

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frigidez parece estar totalmente ligada às modalidades dos enunciados coletivos que procuram a transgressão ainda não encontrada. Se no plano coletivo, a lei a ser transgredida descarrilha, não aceitando rupturas, a frigidez então será um enunciado que se estende ao homem e à mulher. Para ter uma relação estabelecida e construída, não é preciso que haja um ruído pouco legível no plano cultural da transmissão da fala, isto é, nas memórias. Os processos libidinais se inscreverão mal, no nível dos pontos de desumanidade do nosso tempo, e o sujeito se culpará unicamente, em vez de aceitar que foi a História coletiva que recuou. Você vê o quanto a questão é difícil, ligando o sexual, a fala e o inconsciente, bem como a natureza de nossos intercâmbios contemporâneos. A ópera de Alban Berg, Lulu, mostra a problemática da regressão do gozo a um plano instintivo, vitória do masculino sobre o feminino, onde o próprio gozo é suprimido, por demais preso num registro da sublimação das pulsões. A frigidez coloca a difícil questão da relação do gozo com a morte subjetiva. — Partindo daí, o gozo existe através da vagina ? — O gozo da mulher é tanto mais complexo na medida em que, de fato, não há nenhuma razão por que ela goze pela vagina. Não existe o menor traço, nessa parte do corpo da mulher, de uma zona erógena, de um "aparelho de gozar". O que eu quero dizer é que, em suma, os órgãos sexuais da mulher só funcionam se são * *dessexualizados" por ela mesma, para serem "ressexualizados" por seu parceiro, precisamente no ato sexual. Se ela tenta obter um gozo próximo do gozo do homem, ou pelo menos tal qual imagina que seja, ela se aproxima de um " m o d e l o " que jamais lhe convirá, é radicalmente impossível. A frigidez está no coração dessas questões. Biologicamente, o útero também é desprovido de zona erógena. No entanto, a mulher sente coisas verdadeiras, goza com todo o seu corpo. Entra-se aí na dimensão da fantasia. Por exemplo, cita o relatório Hite, uma mulher que gozava pensando numa estrada suíça. Ela sobe ou desce uma trilha, na Suíça, é nisso que ela pensa enquanto faz amor! Existe outra dimensão, além do " c o r p o excitável", organizado em células nervosas; existe um gozo de ordem psíquica, próprio da fala e do silêncio, que se articula com o outro. — De que ordem é ele ? — É da ordem da linguagem, que se tenha acesso ao laço com o outro sabendo ao mesmo tempo que não existem palavras para descrever a volúpia sexual. À parte a palavra volúpia, não existem qualificativos capazes de a descrever... Todas as palavras passam pelos qualificativos de outros órgãos sensoriais (é quente, bonito, bom e t c ) ; até mesmo no dicionário não se acha... a volúpia, então, não passou para o mundo simbólico, ainda que seja a atividade que mais tem a simbolizar. Nesse gozo " p s í q u i c o " , o corpo consegue tornar-se completamente fala, ele se

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toma o inconsciente. É uma sublimação perfeita. O ato sexual é um ato sério, real, que não advém de brincadeira — não é uma performance esportiva, é mais uma criação. Os homens que entre si fazem piadas sobre suas "aventuras sexuais" sentem muito bem que essa dimensão não é suficiente. A frigidez seria uma espécie de queixa que decreta: " E u não passo de um órgão"... Estou convencido de que a maior parte das mulheres " f r í g i d a s " não o são. Todo o paradoxo do amor, do sexo, da linguagem, se concretiza em torno dessa questão: o corpo e a alma não existem: são uma coisa só — pelo menos é o que eu penso. Não existe objeto total, isso também não existe. Portanto, no seio do casal, a dimensão sexual vai se tornar um móbil desse tipo, porque existe outra coisa, o casal sente isso confusamente, no ato sexual — o que o coloca em perigo, aliás. Isso se verifica nas evocações nas sessões. A frigidez, às vezes, é uma outra coisa completamente diferente: ela está presa a uma recusa global e inteira do corpo nos seus intercâmbios com o mundo externo, e isso, infelizmente, continua mais ou menos difícil em termos de acesso à cura, e evoca a psicose. Os analistas observam que nas famílias em que há mortos que pesam, é possível desenvolver-se entre uns e outros uma recusa de gozar ou de ter acesso a zonas do inconsciente por demais mergulhadas na mortificação de um luto impossível de terminar. — Uma espécie de traição póstuma através do prazer? — Isso aí. As pessoas vão emagrecer ou engordar, por exemplo. Uma determinada mulher vai explicar sua frigidez dizendo que na primeira vez teve um caso com um homem rude — que fez o que pôde, ratificando aquilo que ela já levava consigo. Essa rejeição da dimensão do corpo teria ocorrido, de todo modo, com Pierre, Paul ou Jacques. O grave insulto à vida estava inscrito na família, de uma maneira ou de outra, e o homem ou a mulher o leva em conta. O homem vê na mulher um objeto sexual, enquanto que a mulher vê no homem a verdade do desejo — coisa que o homem suporta mal, ele tem medo disso. É claro, tudo isso não é real — mas é, sintomaticamente, vivido assim. E um é atraído pelo outro. — Haveria, no fato de fazer amor com o (ou a) primeiro (a) que aparece, uma dimensão perversa? — Quer dizer que isso é necessário para se proteger contra a angúsüa inerente a uma relação conseqüente e construída, que levasse a uma recusa de intercâmbio de fala — ora, este último enriquece e transmite algo além do sentido. Não é inexato dizer que existe a dimensão perversa no ato de fazer amor sem amor, pois isso é obedecer ao ideal cultural absurdo de que o homem age e a mulher é passiva — um postulado imbecil, que a análise derrubou. A mulher não é um " r e c e p t á c u l o " , mesmo quando consente sê-lo. O homem não é uma " s e m e n t e " , mesmo se tem a fraqueza de acreditar nisso. Privilegiar o órgão em detrimento do

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intercâmbio, dar a verdade da vida aos órgãos, é afirmar que o desejo, a atração louca de um ser pelo outro, está localizado no pênis ou na vagina. Existe, precisamente, outra coisa infinitamente mais rica, mais arriscada e importante, que fará com que esses meios (os órgãos) funcionem juntos. A dimensão especificamente humana — que os animais, por exemplo, não têm, na hora da cruza — é que nós somos seres falantes, nada mais, nada menos. — A dimensão estritamente "mecânica" do coito negaria o ser humano? — É claro. Existe, sem dúvida, uma dimensão de " p o s s e s s ã o " do outro, sádica, mas ela não é tudo: a realização magnífica do amor que " c o n f o r t a " , que " a l i v i a " nossas vidas, não pode se resumir apenas ao ato. Não há dúvida de que as pessoas que envelhecem mal, amaram mal. Daí a falsa idéia de que fazer o máximo de amor, não importa a que preço, traz " f e l i c i d a d e " . Quase que se poderia evocar a ética do amor. A dimensão sádica existe na violação, e a vítima pode, eventualmente, gozar sem que seja absolutamente culpável ou contabilizável em seu gozo — o que prova o quanto os famosos modelos que eu descrevia há pouco funcionam — nos dois sentidos, pois, é claro, um homem também pode se deixar violentar, "vampirizar". No fundo, uma análise terá sido levada a cabo "vitoriosamente" quando o analisando tiver aceito o amor que o outro, os outros, lhe dirigem.

*

Mulher/Objeto sexual; Homem/Verdade.

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E s p o r t e , política, t e l e v i s ã o , mídia — Desta vez, eu gostaria de evocar alguns eventos coletivos sobre os quais se pode lançar um olhar. Eu acho — não sei se tenho razão — que os comportamentos sociais procedem, em parte, de desejos íntimos. Tomemos o futebol. Um de meus amigos me contou que na ocasião do jogo França X Alemanha na Copa do Mundo, na hora dos pênaltis, teve que se esconder no banheiro, de tão insuportável que era o espetáculo para ele. — O psicanalista não tem nada a responder a respeito dos eventos coletivos. Recebe as informações como as outras pessoas, e toda a questão do social se coloca para ele como para qualquer um, sem que ele saiba mais. No entanto, por ter feito uma análise, eu sou capaz de perceber o seguinte: a criança entra no coletivo pelo viés do discurso social; uma criança que vê os pais se entusiasmarem diante do aparelho de televisão, quando é transmitido um j o g o de futebol, fará disso alguma coisa. Ela vai se simar em relação ao lugar de gozo dos pais. A televisão (que substitui a lareira...) crepita durante as refeições familiares e a fascinação que os pais sentem constitui uma cena primitiva. Por exemplo, a criança comete uma bobagem para se fazer castigar, para não assistir a essa cena originária da família, que a marca. Os pais ficam sozinhos diante do aparelho. Hoje, todo mundo vê a mesma coisa na mesma hora e todo mundo " g o z a ' ' parecido. Por que é que isso é interessante? No esporte, existe a encenação do assassinato simbólico daquilo que faz a ligação. É a queda do falo. Se o goleiro engole um frango, o time morre. O homem que corre para o banheiro para não assistir a " i s s o " , não quer se tomar cúmplice desse assassinato, pois há ali, para ele, enquanto sujeito, um excesso de gozo que o deixa fora do seu corpo. Ele esvazia seu corpo, vomita, defeca. Esse gozo que não passa nas palavras é algo exaustivo. Nessa hipótese, o ideal 97

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atribuído a quem faz o gol seria, então, chutar tão forte que a bola viesse a transpassar a rede, arrastar as traves e despedaçar tudo. No tênis é ainda mais claro, pois são apenas dois jogadores. Um vai perecer. Os protagonistas não se dirigem nenhum olhar, pois, se o fizessem, haveria uma queda de tensão e baixa imediata do interesse pelo jogo. As regras do j o g o no esporte são, portanto, limites precisos, e às vezes irreais, para encenar convenientemente o assassinato simbólico. O seu questionamento verifica que a prática é atravessada pelo contemporâneo, em particular em relação à questão do coletivo — ali onde, precisamente, acaba a psicanálise. Para uma determinada pessoa, o futebol representará tal coisa, para outra, tal outra, em função da própria história de cada um. Quanto à mídia, ela questiona a psicanálise e também a usa com vistas a fazê-la entrar numa prática da comunicação, enquanto que ela é outra coisa completamente distinta: o inconsciente como contável significa a inscrição no outro para o sujeito. Assim, não é raro de se encontrar nos jornais trocadilhos, associações fonéticas ou lapsos construídos que provêm, em parte, da psicanálise, através da utilização que ela faz da linguagem e do uso banalizado, do que Freud chamava associação livre das idéias que formam o universo da mídia ou o cultural. — Oque e' preocupante, acho eu, é constatar, por exemplo, que 80% dos automobilistas se comportam de maneira semelhante — isto é, de forma agressiva, possessiva. — Com um revólver também. Uma pessoa que tem uma arma na mão muda. Multiplica sua potência por dez. O carro é uma arma, de uma maneira ou de outra; uma arma de sedução ou de morte. Poder-se-ia desenvolver uma psicopatologia a partir daí. Mas o que eu constato é o quanto a dimensão do corpo se impõe para que o carro ou a bola encontrem sua justificativa. Quando um automobilista tem um acidente, ele diz: "Bateram em m i m " , " E l e amassou minha frente", " E l e entrou em m i m " . O carro se transforma num prolongamento de si, até da própria imagem inconsciente, quer dizer, de sua mãe da infância. Como é que o inconsciente se manifesta? Eu penso que quando se * ' d i z ' ' alguma coisa, se diz antes de tudo a si — inclusive com as próprias perturbações do pensamento. Não é inconcebível pensar que algumas pessoas mergulhem de cabeça numa atividade esportiva para evitar pensar, estar diante de si mesmas. — Um acontecimento pode influenciar a formulação? — É isso. Uma bomba explode na rue de Rennes e nós vamos encontrá-la no discurso sob outras formas: "Será que o Paraíso e x i s t e ? " " O que aconteceu com esse ou aquele amigo de quem não falamos há muito t e m p o ? "

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— Estou imaginando algo inscrito no coletivo e que se encontra de forma lancinante todo dia: os usos e costumes sociais. Apertar a mão, se fazer de jovial mesmo quando não se tem vontade, dizer obrigado, pôr a mão diante da boca antes de bocejar... — A convenção social é necessária para que as trocas coletivas e o discurso se realizem. É um signo de paz cuja presença indica que não vamos nos esbofetear, mesmo quando não falta a vontade. O analista deve ou não apertar a mão do paciente, por mais irrisório que o gesto possa parecer? Depois de tudo o que o analisando diz na sessão, deve concluí-la com um signo tão convencional? Apertar ou não a mão de uma pessoa, francamente, depois da sessão, não é uma coisa insignificante. Voltando à influência do contemporâneo sobre a nossa obra presente, como sobre a psicanálise em geral, eu diria, por exemplo, que o estilo muito singular de La can não ocupa mais o mesmo lugar, após a sua morte, mesmo se o sentido profundo de sua obra perdura. Estabelecem-se modos na forma de se exprimir que são usados, recalcando-se uns após os outros. Do mesmo modo, palavras e conjuntos de palavras têm apelo e se vêem na posição de nomes próprios, e os analistas muitas vezes não ousam fazer nada. Assim, " j u d e u " , " c o l a b o r a ç ã o " , "câmara de g á s " , depois do que aconteceu, se devem ser empregadas com precaução, devem ser levadas em conta, ainda que não se saiba direito como evitar constrangimentos com elas. Freqüentemente são encontradas em cena isoladas do resto... O analista observa essas seqüências, que se encontram nos discursos da mídia, a qual as emprega sem grande discernimento. Haveria muito a dizer sobre esse assunto. Pessoalmente, eu me abstenho, na maior parte das vezes, porque não cabe ao analista " d a r lições" a ninguém. A publicidade utiliza "imagens visuais e acústicas", formas de ligação violentas entre as palavras e as imagens, com o objetivo de criar um impacto, e coletiviza a identificação com um ideal do belo e do bom. Lembro de um anúncio onde se via um homem que lembrava um nazista usando um aparelho estereofónico ultra-sofisticado. Esse aparelho estereofónico encarnava a pureza, a ordem, e seu usuário era o melomaníaco perfeito, exigindo a perfeição, a " l i m p e z a " do som. Será preciso que eu d ê uma explicação? É impressionante. As palavras se transformam em coveiros da memória para produzir um estímulo à compra que, em termos éticos, custa muito caro.

L i n g u a g e m : blocos de palavras? — As palavras aparecem e desaparecem com regularidade na conversa. Por exemplo, a gíria dos adolescentes ou expressões do tipo "um barato", "melou''. Essas fórmulas têm uma duração de vida bastante curta e são suplantadas pelas que vêm depois.

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— Isso serve de elo social no seio de determinados grupos: adolescentes, músicos, gente que trabalha com computador, religiosos e t c , e em certa medida evita falhas. Ao se ater à palavra tal, a pessoa está segura de que não dirá uma besteira. A análise permite à pessoa dar-se o direito de cometer falhas, com a condição de observá-las para interpretá-las, pois ninguém pode ser impecável ou perfeito. Os erros que os pais cometeram, involuntariamente, são traduzidos nos sintomas dos fdhos como uma espécie de retorno ao emissor, e é preciso admitir isso. Os pais não têm culpa — fizeram o melhor que puderam; mas cada minuto que se passou depois dos primeiros choros da criança acarretou equívocos sobre os quais se fundou a sua linguagem e no decorrer dos quais a transmissão se desarticulou por uma ou outra razão. Isso construiu uma história, na qual há buracos e fragilidades, em que a fala vai mergulhar. A análise vem a ser, como a arte também, o lugar privilegiado onde esses retornos da linguagem se revelam, sobretudo depois dessa época terrível, que foi a do nazismo na Europa.

— Quando eu digo "gênio " ou "incrível'', é como se não arriscasse nada e não formulasse nada. Eu me protejo por detrás de um signo de conivência. — É um tráfico de signos, certamente. — Também é uma recusa de se comunicar, uma vez que a significação de uma expressão pronta parece muito limitada. Pode-se dizer: "é demais'' tanto de uma obra-prima quanto do fato da padaria da esquina abrir de novo. — Os estereótipos também aparecem na análise. Isso tem a ver com o trabalho de Théodore Reik sobre os sotaques, as associações incomuns, as entonações, que não têm nada a ver com o conteúdo. Por exemplo, às vezes acontece de uma pessoa voltar a falar com o sotaque da região em que foi criada, num momento de emoção, embora ela tenha deixado a região, o sotaque e a infância há muitos anos. Na análise, se percebe que os blocos de palavras que retornam a toda hora obstruem uma zona determinada da história do analisando. Aquele que usa a expressão "fazer m . . . " como tique verbal, pode-se apostar que vamos nos concentrar na fase anal da sua existência. É provável, mas não é certo. — Consideremos o discurso "corporativista"; a linguagem própria dos garçons de bar, dos jornalistas... Parece que cada profissão cria seu próprio vocabulário! Uma das críticas que se podefazer à psicanálise é justamente a utilização desenfreada que faz de um dialeto inacessível aos outros. Quando você me deu uns textos de trabalhos de vocês para ler, não entendi quase nada.

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— É verdade, não temos outras palavras com que designar aquilo de que falamos. A maioria dos psicanalistas adoraria poder falar com simplicidade, infelizmente, nem sempre consegue. — O profano, em geral, é descartado por obrigação, por isso fiquei espantado, no decorrer das nossas conversas, ao descobrir que a psicanálise era uma "disciplina" bastante humana, nada "científica", como, acho eu, o público imagina que ela seja. Compreendo que a prática se fundamenta numa relação entre dois indivíduos, que não tem qualquer relação com ' consulta médica " — mesmo se existe uma técnica. E o discurso autárquico que vocês utilizam para se exprimir não dá essa dimensão; estou falando da estrutura do discurso mais que do vocabulário "científico ". — Há um salto assombroso entre o consciente e o inconsciente. Como " d a r c o n t a " disso, quando suas articulações são múltiplas? As balizas que nós colocamos são " s u p o s t a s " e "representadas". A psicanálise descreve um espaço que nunca é mais do que " p r o v á v e l " em relação à verdade do inconsciente. O que mais se aproximaria do inconsciente seria a pontuação nas sentenças faladas. Todos os " t a l v e z " , " e u a c h o " , " . . . " , que não existem na escrita porque são suprimidos. A organização da massa da fala é gerada por hesitações, um ritmo. A pontuação é o quadro simbólico do desenrolar da fala e do pensamento que faz lógica e dá sentido. — Existem pessoas mais ou menos dotadas de "imaginação "; é concebível que cada um tenha uma relação de superfície diferente com o inconsciente, se é que se pode conceber isso em termos de proporção? — O inconsciente é o que se passa entre as pessoas; e você, como eu, nós não possuímos uma superfície de tantos metros quadrados de inconsciente. O inconsciente está entre couro e came, dizia Freud; o que se situa também entre si e si. É um não-lugar, embora limitado. — Ese só existisse uma pessoa na terra... ? — Eu acredito que não existiria inconsciente — que está radicalmente ligado à dimensão do outro, isto é, encamado no " p r ó x i m o " e, portanto, em si mesmo. No curso dos séculos, existiram diversos casos de crianças-lobos, ou seja, crianças perdidas na selva, recolhidas por lobos ou outros animais e criadas por eles. Muito bem, elas morrem misteriosamente depois que voltam para o mundo dos homens; eu acho que o motivo era que seu inconsciente, pelo fato de que elas não conheceram no início de sua vida nenhum " s e r falante", não pôde se revelar. Os processos de identificação pela fala, a incorporação, tudo isto não ocorreu. O questionamento sobre a origem da espécie não existe fora do ser humano: aquilo que no animal é instinto, no homem se torna precisamente pulsão. A

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palavra "Trieb", " i n s t i n t o " , sempre foi mal traduzida em francês. Todo comportamento humano é complexo, está preso no discurso do outro, no desejo mais que na necessidade. Os anoréxicos não comem, mesmo quando têm fome, para " d i z e r " que o que desejam é outra coisa. Não existe anorexia na espécie animal! Assinalo de passagem que alimentar um anoréxico à força é a pior das violências, além de tudo, inútil: este não come para manter intacto o desejo sexual que deslocou para a pulsão oral na forma de uma fantasia que deve ser reconhecida. As pulsões vêm da linguagem e se transformam em desejos; daí o apoio: arte culinária, enologia, por exemplo, no caso da oralidade pulsional. — O que acontece com um exilado voluntário da sociedade, um eremita ? — A pessoa não se torna eremita da noite para o dia. O eremita de quatro anos de idade é um esquizofrênico. Se existem, de fato, monges, tibetanos, que deixam de falar, eles, no entanto, se agrupam; existe, portanto, um "intercâmbio" de uma ou de outra maneira.

O braço quebrado — O que acontece se alguma coisa diferente sucede ao analista. Por exemplo, um braço engessado? — É por acaso que você escolheu esse exemplo no momento em que a imprensa, n o instante em que estamos fazendo este trabalho (primeiro trimestre de 1988), não pára de evocar "braços quebrados" a propósito do conflito judaico-palestino, conflito de tanta carga simbólica e real na nossa civilização, demonstrando com isso que nosso discurso está atravessado pelo contemporâneo? — Talvez; o que significa isso no nível da prática analítica ? — O braço quebrado será notado, sem dúvida; o analisando utiliza aquilo que percebe. Neste caso, em particular, ele dirá, por exemplo: " O l h a só, isso não me espanta, finalmente bateram em você, quem f o i ? " ou então ' "Não é só comigo que isso acontece". A relação analítica utiliza a presença do analista. Este se encontra numa posição de neutralidade benévola; de modo que não vai retorquir " m a s o que é isso, seja mais d e l i c a d o " nem dará uma resposta que se assemelhe — a não ser que isto seja especificamente necessário no tratamento. Tomemos o exemplo dos óculos: ocorre que eu uso óculos. Vamos supor que um analisando fale sem parar sobre óculos. É possível que os óculos se tornem, na boca do analisando, uma metáfora para a pessoa do analista. Quando eu digo ao analisando: "Diga-me sobre o que está pensando", na verdade conviria

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perguntar "Diga-me como você me pensa", o que quer dizer que o analisando vem responder à questão sobre o que (que lugar) é o analista para ele, analisando. " P a r a e l e " significa: através da maneira como ele se elaborou enquanto adulto e enquanto outro. Se eu sou grande ou pequeno, se as cortinas do meu consultório são verdes ou vermelhas, ninguém está preocupado com isso, a começar pelo analisando. No entanto, utilizando esses elementos — à medida que eu deixar o discurso fluir — o analisando se aproxima de suas referências íntimas. Diversos níveis podem ser esquematicamente situados; em particular, o desassombro identificador (meu analista, com esse braço quebrado, é uma pessoa como todo mundo); e também a regressão temporal (lembrança de um estrondo, de uma tigela de comida na infância, motivo por que sua mãe ficou com muita raiva).

Isso também lembra outra coisa. Chegou-se a colocar que o analista deveria adotar uma presença neutra na sessão, com cores não muito vivas, sendo ideal o terno e gravata discretos. T u d o isso para, entre outras coisas, não erotizar a relação, nem se fazer de vedete. Na verdade, o analista tem que se contentar em respeitar as pessoas que recebe vestindo-se como deseja. Aliás, certos institutos de formação psicanalítica chegaram ao ponto de exigir que o candidato, futuro analista, não fosse dismórfico (feio demais!...), como se uma mulher que fosse eumórfica até a perfeição (bonita demais!...) não conseguisse fazer um intercâmbio com um outro, após a primeira infância, da sua imagem inconsciente do corpo e os olhares de retorno que lhe são dirigidos. Em contrapartida, se o analisando não percebe que o analista está com o braço engessado, não percebe nem isso, um problema se coloca. Ele não fala, não é por discrição, mas por ausência completa de relação com o outro. Essa " c e g u e i r a " pode revelar, entre outras coisas, a que ponto os pais lhe eram inacessíveis. Seu pai e sua mãe viviam em outro planeta. O psicanalista, aí, é uma prótese de inconsciente e é nesse outro cenário mesmo, o inconsciente, que será necessário observar quais inscrições do corpo se encontram nele. Se estas últimas faltam, não é inconcebível dizer então ao analisando: "Você não reparou que estou com o braço quebrado e não posso apertar a sua m ã o ? " O braço quebrado pode se transformar, na melhor das hipóteses, no que se chama de "significante n o v o " . O analisando passará a sonhar com fraturas, casas que desmoronam, falésias e imagens afins, que lembram momentos de intenso abandono, como, por exemplo, os pais "perdendo o r o s t o " (a " f a c h a d a " de uma casa). A relação com o outro despertou um conflito anterior.

OITAVA CONVERSA

Ato e responsabilidade — Os tribunais todos os dias estão a julgar criminosos e, às vezes, estes são declarados "irresponsáveis por seus atos'' pelos psiquiatras. É o caso do mito literário de Doctor Jekyll e Mister Hyde. A pessoa se "desdobraria" em duas faces, uma boa, e outra má... e a boa ignora o que a má faz. É concebível isto ? — Jamais vi um caso desses na prática. A noite e o dia radicalmente separados no mesmo indivíduo é uma idéia que nenhum analista que tenha como hipótese o trabalho do inconsciente pode admitir. Entretanto, o conceito é interessante, pois lembra um pouco o que ocorre com o maníaco-depressivo. A psicose maníaco-depressiva cada vez mais é tratada pelos psicanalistas, já que alguma coisa dos pontos estruturais da organização psíquica que compõem essa doença é hoje conhecida. É uma enfermidade em que perturbações graves do humor conduzem o sujeito ao delírio. Percebeu-se, na psiquiatria, a partir da década de 50, que caso se registrasse o ritmo das palavras nas pessoas em estado maníaco-depressivo, obtinha-se o seguinte: o discurso do paciente em estado maníaco gravado em 45 rotações e passado para 33 rotações se transforma em discurso próprio do sujeito em estado depressivo e vice-versa. A parte o timbre e a altura da voz, ouvem-se as mesmas escansões, o mesmo apelo nas palavras, a mesma confusão! Portanto, é aceitável dizer que o sujeito, triste ou exaltado, obedece a um apelo nele próprio que assinala uma perturbação séria, a da dissolução do eu, de tal modo que não existe mais lugar para elaborar o conflito psíquico. No fundo, psicose "maníaco-depressiva" significa uma grave perturbação do amor próprio, uma impossibilidade de aceitar seu risco. — Que ele faz os outros endossarem ? 105

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— Não necessariamente. É uma intensa desvalorização do sentimento e da imagem inconsciente de si e do corpo. O sujeito não consegue mais amar a sua própria excitação psíquica; ele lutará contra ela, desenvolvendo uma mania — ela exigirá apenas que se caia no abismo. O paciente se deixa tomar pelo abandono. O mito de Doctor Jekyll e Mister Hyde confirmaria a idéia de que existe em nós o "absolutamente b o m " e o "absolutamente m a u " . Pois bem, isto é falso. Em contrapartida, existe o desejo do incesto e o desejo de assassinato no inconsciente. O sujeito maníaco-depressivo, quando está num período ativo, pode fazer o que quer que seja, que se traduz numa fase de agitação permanente, em que ele perde o sono, chegando à morte se não é submetido a uma terapia de urgência. Hoje existem produtos que permitem acalmar a doença com medicamentos apropriados, a fim de aguardar que se encerre a fase de excitação e que apareça uma possibilidade de psicanálise. — O que diz o analista a respeito da responsabilidade pelo ato? — N o plano jurídico, o analista não tem o que responder, sua área é outra, totalmente distinta. Um psiquiatra poderá decretar ou não a "irresponsabilidade" após uma perícia médica, isso faz parte do seu ofício. O psicanalista nada tem a dizer. Mas suponhamos que um paciente venha a descrever um crime; a psicanálise tenderá a tornar o crime irreal, " i r r e a l i z a r " o crime, e a humanizar o criminoso, dando uma explicação subjetiva (aliás, Lacan diz isso em seus textos). Isso não impede a Lei de cumprir seu dever. A análise talvez ouvisse o percurso histórico, mas abster-se-ia de qualquer comentário em qualquer instância oficial. Para o analista, as pessoas são responsáveis por seus sonhos, e, portanto, por seus atos. A responsabilidade é total no plano de si para si. Há um fundamento social em todo ato. Só existe lei porque existe transgressão, " p e c a d o " . Em relação à sua própria disciplina, o analista só tem que reconhecer os efeitos dessa lei e reconhece apenas a lei da linguagem, que se funda no desconhecimento de sua origem, o que Freud chama de "assassinato do pai primordial". É um assassinato simbólico, um assassinato de texto; o fundamento do elo social se fabrica através de uma mentira comum, a qual não se pode saber com certeza se é mentira ou não. Todas as coisas ligadas à origem só podem ser opacas; não existe um túmulo de Moisés, e idem em relação a Cristo, cujo corpo não foi encontrado. Persiste uma dúvida estrutural a respeito da origem. O fundamento da análise em relação à questão do assassinato reside em que, a cada vez que se mata alguém, se mata a fala. A do outro e, portanto, a própria, que o ecoa. Para a polícia, a questão consistirá em: quem é culpado? Verdadeiro/Falso? Para o analista, a questão remete à verdade em relação ao verdadeiro. Tudo o q u e se diz é verdadeiro e, em última instância, tudo o que não se diz é falso. A " c u l p a " é uma noção mais consciente, e o analista está

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interessado no sentimento inconsciente de culpa e não no ato culpável. Até que ponto o analista é capaz de suportar o saber que recebe a respeito do ato culpável? — O crime gratuito: onde está aí a alteridade? Não há razões psicológicas? — Será a guerra das consciências? Para o analista, o inconsciente mostra dois tipos de desejo: o desejo incestuoso do lado da mãe e o desejo de assassinato do lado do pai, como eu disse. A "vontade de m a t a r " é onipresente. O problema todo está na fantasia, sua aceitação e sua superação. Durante alguns anos eu trabalhei num centro de reintegração de delinqüentes. No início, sem eu saber, me mandavam os "liberados da p r i s ã o " , para mantê-los em estado de dependência em relação à instituição que os acolhia. ( " E l e subiu para ver o psiquiatra: foi vencido"...) Quando me dei conta disso, me recusei a manter esse papel por mais um segundo que fosse e, no mesmo ato, passei a receber somente aqueles que vinham por livre e espontânea vontade. U m dia, recebo um deles, que tinha a particularidade de usar o cabelo muito comprido na frente. A franja cobria seus olhos. Saía da prisão onde esteve por roubo. Tinha passado a infância no Egito (tudo isto tem conotações místicas, você vai ver), filho de mãe egípcia e de pai francês. Os pais eram divorciados; um belo dia, enquanto fazia a sesta, perto da mãe, no pátio, esta começa a acariciá-lo (isso acontece quando ele tem uns 15 anos). Ele passa a sentir medo e foge de casa. Não volta mais. Atravessa o Cairo não se sabe bem como, encontra por acaso a avó por parte de pai (essa parte do relato é bastante confusa) e pergunta a ela onde está o pai dele. O apelo ao pai... (Bem entendido, o padrasto e ele não se entendiam de forma alguma, como me explicou em seguida). Aí, um detalhe extraordinário: enquanto ainda estava em casa, esse padrasto batia nos pés dele para castigá-lo. A criança ficava, então, com os pés inchados. Ora, " É d i p o " significa, em grego, pés inchados!!! — Édipo tinha sido amarrado, como filho do incesto, tinha sido maltratado, daí esse nome. A avó fica com o adolescente por algum tempo, depois este acaba embarcando para a França e se encontra -com o pai, que tinha casado de novo. Tudo vai muito bem até o dia em que o jovem começa a girar em tomo da madrasta. De maneira confusa, ele a deseja, e eis-nos aqui numa nova figura possível de incesto realizável. Vai recomeçar o " p e s a d e l o " ? Não. Pois logo o sujeito se lança na delinqüência, no roubo e no meio masculino absoluto, sem mulher, da prisão. Se nós examinarmos a situação dele nesse instante, eis o que encontramos: um ladrão de 18 anos, sem pais (o pai o expulsou), à deriva no ambiente do cárcere e sem se suportar a si mesmo. Recebo-o mais duas ou três vezes no centro e, depois, mais nenhuma notícia. Um ano mais tarde ele volta. Está de cabelo curto, tem boa

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aparência, está transformado (o cabelo comprido em cima dos olhos era, nesse caso preciso, um sintoma — eu não quero ver). O m o d o como ele saiu da situação me deixou sem voz: tinha embarcado, seis meses antes, num navio de pesca, como marinheiro, único francês no meio dos outros. Durante seis meses, portanto, não pronunciou uma palavra. Depois, tomou LSD, coisa que, ao que parece, era comum para aquela estranha tripulação. Aí, através da droga, reviveu todas as cenas chocantes de seu percurso e se deu conta do seguinte: é muito mais grave ter a idéia (digamos, a fantasia) de dormir com a própria mãe d o que fazê-lo " d e v e r d a d e " . Ao voltar, de modo sem dúvida original, m a s perigoso, se deu o direito de ter uma vida de fantasia. Cometendo delitos, fez um " a p e l o à l e i " . Esse inconsciente de culpa surge da vergonha d e existir, de possuir uma libido, uma vida psíquica. A análise permite a atualização de tal procura, que aqui foi incitada pela ingestão de LSD... — Eu soube que os psiquiatras decretam a responsabilidade ou irresponsabilidade do criminoso após uma ou duas conversas de uma hora. Francamente, isso épossível? — Acho que sim. A esse respeito, especifico que os " g r a n d e s criminosos", n o que toca à lei, nunca vêm à análise, é raríssimo — principalmente por causa da montagem antilei que consiste em negar a origem dos sintomas e que muitos usam, mas enquanto analistas, não cabe a nós julgá-los. Tenho três coisas a acrescentar: 1) Sem dúvida, existem pessoas que, após um delito, são capazes d e dar início a uma psicanálise ou psicoterapia. Todo mundo compreende que essas pessoas tenham vontade de voltar a se integrar na sociedade e por que não graças a uma análise. 2) A escroqueria moral continua e continuará sendo incompatível com a atividade psicanalítica. Freud já dizia isso, Lacan escreveu a essência da coisa: " O s canalhas não podem fazer uma psicanálise, ela os deixa d é b e i s . " O que enfraquece uma certa forma de subversão da sociedade. Então, se coloca, para o psicanalista, a questão: a psicanálise é feita para suprir as falhas de ordem moral da sociedade e da religião? Isto é concebível para o neurótico, assim como para o moralmente pervertido (ainda que este último só utilize essa elaboração para fixar ainda mais sua posição, sem querer descobrir seu valor de sintoma). A questão analítica é: como discernir o sintoma submetido a uma lei do sentido e da interpretação e aquilo que, ao contrário, contribuirá para consolidar a ignorância desejada? 3) O elo social implica a civilização, apesar do mal-estar inerente à existência dos dois sexos, masculino e feminino. Única saída: a sublimação, de que fala Freud, isto é, a renúncia a certas pulsões, à transgressão, para o progresso na vida do espírito.

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A sessão de análise é um lugar de verdade da fala, nós j á dissemos isso diversas vezes, que convém perfeitamente ao perverso, pois pode gozá-la, desfrutá-la o tempo todo. A psicanálise não é uma panaceia: não é pelo fato de explicar o gesto de um assassino, graças às sessões, que esse gesto virá a ser desculpável. Pode-se encontrar milhares de razões válidas, um crime é sempre um crime que a sociedade punirá. Todo mundo negocia com suas puisões assassinas de maneira a contê-las. — Mas nessa passagem ao ato, que consistiria, por exemplo, em querer matar, não é o inconsciente que se revela de maneira estrondosa ? — Absolutamente! É uma fórmula excelente. O inconsciente se revela de maneira estrondosa e mostra o nível pulsional em que o indivíduo está preso. É exatamente isso. Só que o inconsciente não está completamente sozinho, há não somente os inconscientes de cada um de nós, vizinhos entre si, como também o consciente, que permite e obriga o inconsciente a permanecer "unbewusste", isto é, não-sabido, fenômeno de linguagem radical, o que impede ao cotidiano as passagens ao ato de que você fala. A civilização é isso, quer se queira, quer não.

O livro t e r m i n a , D e u s c h e g a . . . — O que a análise propõe, afinal de contas? — Conhecer os próprios desejos inconscientes, dos quais acabamos de falar. Por que fico obnubilado pelas louras se tenho uma mulher que amo? Por que gosto da Irlanda e não da Turquia? Por que gaguejo quando pronuncio determinada palavra? Por que acho que meu patrão é um imbecil travestido de presunçoso? Para todas essas perguntas pode-se dar uma boa razão consciente. Mas há uma organização pulsional bem mais poderosa por detrás — toda a nossa existência pesará com todo seu peso e reclamará o que lhe é devido. O ser humano se supera o tempo todo porque tende a satisfazer esse desejo próprio do homem c da mulher, ou então, ao contrário, o ser humano se refrea o tempo todo por não ser capaz de ultrapassar um determinado ponto de fixação desse desejo — o que constitui o quadro mais corrente. — Já lhe aconteceu de ter uma dúvida séria sobre a legitimidade da psicanálise ? — É claro. O tempo todo. A dúvida vem quando os ouvidos se fecham. O analista oscila entre a posição em que " e s c u t a " e a posição em que " n ã o escuta", além de que, no tratamento, em certos momentos

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difíceis, às vezes fazemos papel de aparador, de depósito, o que constitui uma das funções da análise. No que diz respeito à dúvida fundamental (não seria isto tudo apenas um blá-blá-blá?), atravessamos, sim, momentos duros. Mas o paradoxo está em que um número ínfimo de analistas, mesmo sem muitos clientes, deixa de praticar. A verdadeira dúvida se situa no nível do desejo do analista. Desde o início, Freud pensa q u e a análise um dia irá desaparecer — o que é uma forma de a fazer continuar, apesar de, e graças a, seu lado errático, sem instâncias oficiais nem ensino estruturado. Essa ausência de saber analítico definitivo e constituído é uma das garantias da hipótese da existência do in-consciente, do não-sabido, ou seja, da abertura possível do sujeito face a surpresas que lhe vêm da vida, em conseqüência de seus próprios desejos. — Não deve ser fácil ser surpreendente ou se surpreender todos os dias. Mais que a dúvida, seria a rotina o inimigo ? O inconsciente tem, antes, tendência a se fechar ou a se abrir, sem que se saiba por quê. Eu não digo: "Inconsciente, abra-te!" e a porta da caverna gira. Aí está toda a dificuldade... — Ao ponto em que chegamos, eu tenho, evidentemente, vontade de colocar a questão de Deus. Os cientistas chamam isso de big-bang original, os psicanalistas de pai/origem. Acontece que nada explica realmente por que nós estamos aqui e não alhures, por que nós falamos e refletimos, a razão pela qual morremos, as causas e as metas, se existem, de nossa capacidade de construir ou destruir... — Freud era ateu e confirmava isso a cada dia em sua prática, de tanto que é, de fato, uma questão que se coloca sempre e para sempre. A psicanálise não é compatível com o fato de que Deus exista, ela apenas se interessa pela idéia de Deus, como também é o caso a propósito da origem da linguagem. Freud se correspondia com um americano católico que, um dia, perdeu a fé: ele era médico; durante uma dissecação ele se deu conta de que se a velha senhora que ele e s t a v a " c o r t a n d o " estava morta, era porque Deus não existia. Parecia-lhe injusto demais que aquela bela senhora desaparecesse, deixando apenas um cadáver. Freud respondeu, em suma: é a sua dúvida em relação à função paterna, o seu ódio em relação ao seu pai, que faz com que você deixe de crer. Então o médico voltou a crer — o que não passava de resultado periférico da interpretação. Freud não tentou fazer com que seu interlocutor epistolar fosse ou não crente, mas mostrou em quê a função paterna falhou. O psicanalista, se não acredita em Deus, não procura convencer quem quer que seja num sentido nem no outro. Não é o seu propósito nem faz parte da sua natureza. Crer é uma problemática entre dezenas que se submete ao quadro edipiano.

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— Eu acho que a questão da existência ou não de Deus se traduz sob diversas formas, mesmo anódinas, mas que ela existe permanentemente a partir do momento em que a pessoa se põe a refletir sobre si ou sobre os outros. — Sim... Nós não somos imortais porque há em nós um assassinato simbólico da origem, origem à qual não se pode retomar sem riscos. Nós tivemos início num determinado momento, portanto, teremos fim num determinado momento. Eu digo que o psiquismo como lugar da linguagem incorpora a questão da morte. Por aí se demonstra que nós não somos imortais, que não existe um mais além, não há comunicação com um paraíso ou um inferno. Para o anajista, há a vida e a morte, profundamente separados. Na terra, nosso "programa" será administrar o desejo — o que faz brotar a vida — e a idolatria consistiria, então, em amar a morte. Tomemos a dimensão do monoteísmo, no sentido judaico e cristão; para a psicanálise, a coisa seria mais uma oscilação entre mono e "zeroteísm o " — quer dizer, nenhum Deus —, hipótese de uma dúvida ativa que solicita ser experimentada o tempo todo no seguinte sentido: não pode existir um Deus, pois se houvesse um segundo, este poderia ser mais vivo, ou menos, que o primeiro, e assim permitir ao homem que não mais aceitasse a separação entre a vida e a morte. E por aí mesmo o próprio homem tornar-se-ia Deus ou Destino. O essencial da descoberta de Freud é o ponto originário que se funda sobre o primeiro assassínio simbólico, o do " p a i primordial", o que quer dizer que a morte existe, que é inevitável a renúncia à imortalidade. È preciso, então, aceitar a vida pelo fato da existência reconhecida na linguagem e na fala de nossos desejos inconscientes.

Apresentados em partes, os temas debatidos vão dos mais corriqueiros - como a infância, a adolescência, o casamento e a sexualidade - até os mais especializados - como o inconsciente, a transferência, a fantasia e as estruturas clínicas. Em ambos os casos, advém sempre uma palavra esclarecedora que coloca a experiência da análise a serviço das indagações humanas mais pungentes.

JEAN-JACQUES

MOSCOVITZ

nasceu

em

1939. Médico, neuropsiquiatra, psicanalista formado no Instituto de Psicanálise de Paris, membro da ex-Escola Freudiana de Paris fundada por Jacques Lacan, exerce sua atividade de psicanalista desde 1968, tendo sempre participado de vários colóquios. Fundou, com outros analistas, em outubro de 1986, a associação Psychanalyse Actuelle, cujo objetivo é a formação de psicanalistas e a transmissão da psicanálise. Tem vários artigos publicados em revistas especializadas e em obras coletivas. Além do presente livro, é também autor de D'où viennent les parents (ArmandColin, 1991). Ilustração da capa:

Giorgio de Chineo, O Filho Pródigo, 1926

Transmissão da Psicanálise diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

1 A Exceção Feminina Gerard Pommier

1 3 Psicanálise e Medicina Pierre Benoit

2 Gradiva Wilhelm Jensen

14 A Topologia de Jacques Lacan Jeanne Granon-Lafont

3 Lacan Bertrand Ogilvie

15 A Psicose Alphonse de Waelhens

4 A Criança Magnífica da Psicanálise Juan-David Nasio

1 6 O Desenlace de uma Análise Gerard Pommier

5 Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia Jean Laplanche e J.-B. Pontalis 6 Inconsciente Freudiano e Transmissão da Psicanálise Alain Didier-Weill 7 Sexo e Discurso em Freud e Lacan Marco Antonio Coutinho Jorge 8 O Umbigo do Sonho Laurence bataille 9 Psicossomática na Clínica Lacaniana Jean Guir 1 0 Nobodaddy — A Histeria no Século Catherine Millot 11 Lições Sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise Juan-David Nasio

17 O Coração e a Razão Léon Chertok e Isabelle Stengers 18 O mais Sublime dos Histéricos Slavoj Zizek 19 Para que Serve uma Análise? Jean-Jacques Moscovitz e Philippe Grancher 2 0 Introdução à Obra de Françoise Dolto Michel H. Ledoux 2 1 O Pai e sua Função em Psicanálise Joël Dor 2 2 O Conceito de Renegação em Freud André Bourguignon 2 3 A Neurose Infantil da Psicanálise Gérard Pommier 2 4 A Ordem Sexual Gérard Pommier 2 5 Repressão e Subversão em Psicossomática Christophe Dejours

1 2 Da Paixão do Ser à "Loucura" de Saber Maud Maimoni

J.Z.E Jorge Zahar Editor