O Tempo Da Memória [1ª ed.]

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D D e S enectute & outros, escritos* cm lovioara/iros P re f áci o ^de C elso Lafer

campus

O tempo da memória é o tempo de quem tem um compromisso com a verdade e se acha disposto a olhar para o passado. Aos 87 anos, o filósofo e jurista Norberto Bobbio brinda seus leitores com o primeiro livro em que fala de si mesmo e de sua experiência intelectual, em um ensaio inédito que consiste em reflexões sobre o significado da vida e ao qual foram acrescentados alguns fragmentos autobiográficos-, publicados entre 1979 e 1996. O livro representa um balanço definitivo de uma vida consagrada ao estudo dos grandes temas do direito e da política e constitui também um testemunho direto de mais de meio século de história da Itália e da Europa. Em meio às transformações pelas quais passou o mundo, o pensador italiano se considera um homem do passado: “ Da vida fica somente um leve traço na memória.” Em seu livro, cujo título é uma referência ao clássico homônimo de Cícero De Senectute, o intelectual Bobbio se declara ateu e afirma não ter medo da morte. Para ele, é um dever moral do homem ter consciência do limite da vida.

Norberto Bobbio nasceu em 1 9 0 9 no Piemonte. S u a form ação inicial fo i em filosofia política e jurisprudência na Universidade de Turim. Figura de notável significado moral, tornou-se um dos mais infuentes teóricos da esquerda italiana e um dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos da Europa. E m

O Tempo da Memória,

Bobbio confirma-se mestre do melhor estilo literário e traça para seus leitores um irônico e honesto auto-retrato.

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O Tem po DA M EM ÓRIA

Diretor Editorial Cláudio M. Rothmuller

Tradução Daniela Versiani

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Norberto

B o b b io

O T em po DA M E M Ó R IA d e sen ec tu te e outros escritos au to b io gráfico s

CAMPUS

Do original: De senectute “Tradução autorizada do idioma italiano da edição publicada por Giulio Einaudi Editore." Copyright© 1996 by Giulio Einaudi Editore. © 1997, Editora Campus Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Capa: Victor Burton Copidesque: Roberto Cortes de Lacerda Editoração Eletrônica: RioTexto Revisão Gráfica: Ângela Castello Branco Roberto Facce Projeto Gráfico: Editora Campus Ltda. A Qualidade da Informação. Rua Sete de Setembro, 111 -1 6 ° andar 20050-002 Rio de Janeiro RJ Brasil Telefone: (021)509-5340 FAX (021)507-1991 E-Mail: [email protected] ISBN 85-352-0166-1 (Edição original: ISBN 88-06-13608-6 - Einaudi, Torino, Itália). Ficha Catalogrófica CIP-Brasil. Catalogaçio-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Bobbio, Norberto, 1909B637t

O tempo da memória: De senectute e outros escritos autobiográficos / Norberto Bobbio: tradução Daniela Versiani. — Rio de Janeiro: Campus, 1997. Tradução de: De senectute Inclui apêndice ISBN 85-352-0166-1 1. Bobbio, Norberto, 1909-2. Cientistas políticos-Itália Biografia. I. Título.

97-0366

CDD — 923-245 CDU — 92(BOBBIO, N)

97 98 99 00

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EDITORA AFILIADA

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4

3

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Sumário

Prefácio à Edição Brasileira, por Celso Lafer A Mim Mesmo

3

De Senectute Primeira Parte 1

A Velhice Ofendida

17

2

Mas que Sabedoria?

20

3

Retórica e Anti-retórica

4

O Mundo da Memória

24 28

Segunda Parte 1

Ainda Estou Aqui

2

Depois da Morte

3

Lentidão

4

O Tempo Perdido

33 38

45 51

Escritos Autobiográficos 1

Elogio do Piemonte

2

A Última Sessão

58

3

Para uma Bibliografia

4

Discurso de Encerramento

5

Política da Cultura

6

Reflexões de um Octogenário

7

Autobiografia Intelectual

8

Resposta aos Críticos

79 84 97

110

142

122

116

v ii

9 10

Direito e Poder Um Balanço

154

162

Apêndice Organizado por Pietro Polito Notas aos Textos

177

Notas Biográficas

184

índice Onomástico

201

Prefácio à Edição Brasileira

A A u to r id a d e de N o rb e rto B o b b io

“What ultimately stills the fear o f death is not hope or desire but remembrance and gratitude. ” Hannah Arendt

I

B

obbio, como ele mesmo observou, tem o gosto e o instinto das combinações. Em sua ars combinatoria valese constantemente das dicotomias, utilizando-as como ins­ trumento m etodológico para distinguir e diferenciar, e deste modo clarificar, uma realidade percebida como comple­ xa e concebida como pluralista. O tempo da memória: De Senectute e outros escritos autobiográficos, seu último livro, insere-se nessa tendência recorrente, caracterizadora de sua trajetória intelectual. Pode assim ser dividido em duas partes, distintas mas complementares, implantadas em um contínuo: o de sua vida. A primeira parte é a grande reflexão sobre o significado da velhice no mundo contemporâneo, em especial a dos très ãgés, os da “quarta idade”, vale dizer os que estão, como Bobbio, com mais de 80 anos e se multiplicaram graças aos progressos da medicina e da saúde pública. Estes se torna­ ram novo tema — social e psicológico — pois não só aumentou o número de velhos nas sociedades quanto o número de anos que as pessoas, em sua individualidade, vivem como velhos.

VII

Essa reflexão tem como pano de fundo, como é usual na sua obra, uma prévia indagação sobre a pertinência da “lição dos clássicos”. Bobbio registra que os clássicos — regra geral — escreveram sobre a velhice aos 60 anos — como é o caso de Cícero — com o objetivo de desdramatizar a morte e fazer a apologia da sabedoria da idade. Trata-se de uma lição inequivocamente precária para os dias de hoje, em que o conhecimento se desatualiza e se desgasta rapidamente. Por isso somos duma época de “tantos mes­ tres e nenhum mestre” . Daí a necessidade de repensar o tema, o que ele faz na primeira parte do livro. A segunda parte é um conjunto de ensaios, redigidos entre 1979 e 1996, que também, como é característico de sua obra, resultam do método de aproximações sucessivas. São várias tentativas de balanço e avaliação de sua vida. Esta é basicamente a de um professor universitário, com uma vida privada serena, que por isso mesmo não manteve um diário íntimo, mas tem uma bibliografia. A bibliografia de Bobbio é expressiva e enormemente representativa de um intelectual inquieto, voltado para a análise e a refle­ xão, de grande curiosidade e múltiplos temas, que bu s­ cou com rigor conhecer as coisas e compreender o mun­ do — o mundo do século X X que viveu duas guerras mundiais, a revolução russa, o com unism o, o fascism o, o nazism o, Auschw itz, H iroshim a, o equilíbrio do terror das armas nucleares, o fim da guerra fria e a desagregação da U RSS, o terrorismo internacional, para enumerar alguns dos eventos dramáticos do tempo histórico de Bobbio. Sua atitude diante deste mundo é a de um “iluminista-pessimista” que confia no papel da razão esclarecida nos interstícios de uma realidade factual repleta de horrores. Esse papel pode e tem sido exercido por ele, kantianamente, através do uso público da própria razão, por meio do diálogo com os conceitos e os homens. Um diálogo

VIII

norteado pelas virtudes laicas da dúvida metódica, da m o­ deração, da tolerância e do respeito pelas idéias dos outros, e conduzido pelas armas da crítica, mas sem os ímpetos desqualificadores de um cruzado-missionário. E assim que se contribui, no entender de Bobbio, para a verificação de quais são os caminhos sem saída do labirinto — uma de suas metáforas prediletas — da vida e da convivência cole­ tiva. Esses são assuntos que ele analisou em profundidade, cultivando, como professor de filosofia do direito e filo­ sofia política, os estudos jurídicos e políticos, e valendo-se continuamente destes dois pontos de vista — o do direito e o do poder — que são tão relevantes para o entendimento dos complicados problemas do convívio humano. Qual é a relação entre as duas partes do livro, que acabo de indicar? N a primeira, Bobbio diz que a velhice não é uma cisão em relação à vida precedente. E uma continuação da adolescência, da juventude, da maturidade que podem ter sido vividas de diversas maneiras. Por exemplo, como uma montanha a ser escalada, como um rio em que se está imerso, como uma selva em que se está perdido. D iz ele também, na segunda parte, que sua vida, com seus eventos próprios, e sua obra se interpenetram e se iluminam. A ssim parece-me m etodologicam ente que, para entender o al­ cance e o significado de sua reflexão sobre a velhice, devese com eçar pelo exame da avaliação que faz sobre o próprio percurso de vida. N esse contexto, e consideran­ do que nele a produção intelectual é não só diário, mas também o que há de mais relevante em sua biografia, vale a pena sublinhar que-ele registra, percorrendo o índice analítico da primeira edição da Bibliografia de seus es­ critos, que o tema mais versado é o da relação entre política e cultura, com destaque para as várias atitudes do intelectual diante do poder. E nesse âmbito que quero, inicialmente, discutir De Senectute. Adianto que a pergunta instigadora que me move IX

é a aspiração de desvendar como Bobbio foi se converten­ do, no correr de sua vida, em um ponto de referência do debate público na Itália, mas também fora desse espaço geográfico-intelectual-político em que basicamente se m o­ veu. Em síntese, a pergunta é: por que é ele uma autoridade cuja palavra, impregnada de uma gravitas própria, é lida e ouvida com prioridade em relação à dos demais integrantes da frugal res publica da consciência. Palavra caracterizada por um impacto em relação aos seus destinatários, que se é menos do que um comando, é mais do que um conselho — para valer-me da qualificação do grande romanista Mommsen, citado por Hannah Arendt, no ensaio “ O que é autorida­ de?”, que integra Between past and future. E claro que ao referir-me a essa passagem de Mommsen, estou pensando no importante estudo de Bobbio sobre a diferença dicotô­ mica entre comandos e conselhos no qual, todavia, ele não trata deste tertius situado entre am bos.1 II Bobbio, que não se considera um homem de ação mas de contemplação, registra como de decisiva importância em sua vida a resistência e os meses da guerra de libertação da Itália do fascismo e da ocupação nazista, de que participou ativamente. E um tempo existencial, configurador de um “antes” c um “depois”. Valendo-me de observações de H an­ nah A rendt2 eu diria que esse breve tem po de vita activa foi para ele, como para tantos intelectuais que participaram na Europa da resistência à opressão, uma oportunidade para encontrar-se e transcender a opacidade da vida privada dos anos de chumbo do fascismo. Representou a public happi1cf. Norberto Bobbio, Studiperuna teoria generale dei Diritto, Torino, Giappichelli, 1970, pp. 49-78. ' cf. Between past and future, new and enlarged edition, New York, Viking Press, 1968, p. 4-5.

X

ness proveniente de um agir conjunto no espaço público criado por parceiros na ação e ensejador da experiência da liberdade como participação. A experiência de vita activa foi para Bobbio e seus companheiros tão relevante, que a organização política, ainda clandestina, à qual aderiu em 1942, denominava-se, significativamente, Partido da Ação. Era um partido de intelectuais, sem maior enraizamento na sociedade civil, inspirado no socialismo liberal — entre outros de Cario Rosselli — que via na guerra de libertação não uma guerra de classes mas a antecipação de uma revolução democrática. N a Resistência, os intelectuais do Partido da Ação comba­ teram lado a lado com os com unistas, neles reconhecen­ do, independentemente das divergências, uma grande força ideal. Pelo Partido da Ação, que teve curta duração na cena política, Bobbio concorreu sem sucesso às eleições para a Assembléia Constituinte italiana de 1946, não tendo p os­ teriormente nem vontade nem encorajamento para buscar outra oportunidade de ser um ator político militante. E certo que muito mais tarde passou a ter alguma atuação legislativa, quando se tornou, em 1984, já sendo um homem de idade, senatore a vita. Foi nomeado pelo então presidente Pertini, nos termos do artigo 59 da Constituição italiana, “por altíssimos méritos no campo social, científi­ co, artístico e literário”. Esta nomeação foi portanto um reconhecimento de sua autoridade intelectual pelo sistema político italiano, cabendo observar que, no Senado, Bobbio se viu e se vê mais como espectador curioso do que como protagonista. Conseqüentemente, Bobbio foi construindo na sua vida a sua autoridade pública, não como ator político, mas essencialmente como intelectual, graças ao poder ideo­ lógico que se exerce sobre as mentes através da produção e da transmissão de idéias, pela palavra. Assim, a sua autoridade pública é paradigma de um dos tipos ideais de relacionamento positivo entre o intelectual XI

e o político: o que não visa a exercer o poder, porque este corrompe a liberdade do juízo da razão, mas que faz uso público da razão, convencido de que este uso serve para bem iluminar os assuntos de governo, consoante a lição de Kant no fecho do segundo suplemento do Projeto de Paz Perpétua? N esse magistério intelectual, cuja força expressiva não é política, Bobbio teve, na Itália, dois eminentíssimos an­ tecessores, que viveram longos e laboriosos anos e foram os mestres de sua geração: o filósofo Benedeto Croce (1866-1952) e o economista Luigi Einaudi (1874-1961). C ro ­ ce e Einaudi exprimem vertentes distintas do pluralismo que caracteriza a doutrina liberal. O primeiro emblematiza o liberalismo político; o segundo, a relação entre liberalis­ mo econômico e político. Sobre este tema — liberalismo na Política, liberismo na economia — debateram durante o regime fascista, ao qual resistiram e contra o qual comba­ teram, mantendo viva e com dignidade as múltiplas dimen­ sões da cultura liberal.34 N o plano da presença política, Bobbio se diferencia de Einaudi e Croce, porque estes, sem prejuízo do fundamen­ tal que foi o magistério de influência que os caracterizou, tiveram mais ação política direta. Einaudi, no pós-guerra, foi o primeiro Presidente da República parlamentarista italiana. Croce foi chefe do partido Liberal, ministro, ainda que por breves períodos, e senador.No plano das idéias, são muito expressivos os pontos que separam Bobbio de am­ bos, não cabendo aqui apontá-los. O que os une é a filiação comum ao campo liberal. O que se pode dizer dessa filiação, do ponto de vista da construção da autoridade pública de Bobbio? Autoridade, etimologicamente, como lembra Hannah Arendt, provém 3 cf. Norberto Bobbio, II dubbio e la scelta, Roma, La Nuova Italia Scientifica, 1993, pp. 12-13, 151-152. 4 cf. II dubbio e la scelta , cit., p. 107.

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do latim, do verbo augere, aumentar, e a auctoritas, que em Roma, institucionalmente, residia no Senado, derivava de uma responsabilidade em zelar por aquilo que podia ser acrescentado à tradição histórica de Rom a.5 Bobbio, no meu entender, acrescentou à tradição liberal algo significa­ tivo que o diferencia de Croce e Einaudi. Esse algo, que é um ingrediente importante na construção de sua autorida­ de, expressa-se na postura de suas obras de cultura militan­ te, como ele as qualifica e radica na experiência breve mas decisiva de vita activa. Aliás, ele próprio reconhece que os artigos, recentemente coligidos e republicados, que escreveu para imprensa em 19451946, depois da queda do fascismo, no calor da hora de sua militância no Partido da Ação, tratam de maneira incipiente, mas de forma convergente, dos temas de cultura militante, que depois veio a examinar e desenvolver maduramente.6 Explico-me, a respeito desse algo que Bobbio acres­ centou a Croce e Einaudi, com uma consideração prelimi­ nar sobre a tradição liberal. Esta, ao contrário da socialista, na qual o poderoso legado de Marx abafou outros pontos de referência, é pluralista. E pluralista nas suas origens, nos seus clássicos e mantém-se nesses moldes nos seus desdo­ bramentos. Assim, por exemplo, Kant e Adam Smith, Humboldt e Tocqueville, Benjamin Constant e John Stuart Mill, Raymond Aron e John Rawls, Popper e Isaiah Berlin, se têm afinidades que permitem integrá-los na doutrina libe­ ral, caracterizam-se também por diferenças muito apreciá­ veis. E por esse motivo que convém falar em liberalismos, no plural, e não em liberalismo, no singular, no trato de uma doutrina que contém tanto vertentes de vocação con­ servadora quanto vertentes de índole inovadora. Bobbio é um expoente da vertente inovadora de esquerda pois, para 5 cf. Hannah Arendt, Between past andfuture, cit. pp. 120-128. b cf. Norberto Bobbio,Tra due repubbliche, Roma, Donzelli, 1996.

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ele, na sua elaboração neo-contratualista e republicana, liberalismo quer dizer mais liberdade e menos privilégios.7 Pluralismo e reconhecimento do valor e importância da diversidade, que caracterizam a doutrina liberal, não significam relativismo axiológico. N a abertura do D e Senectute, Bobbio observa, neste sentido, reiterando a defesa do Partido da Ação, acusado no correr dos tempos de ter sido excessivamente condescendente em relação aos comu­ nistas e excessivamente severo em relação aos fascistas: não existe, nem deve ou pode existir, eqüidistância ou equi­ valência entre fascismo e antifascismo. O fascismo opõe-se frontalmente ao valor liberdade que nas suas múltiplas dimensões é o cerne da doutrina liberal. Além do mais, ainda que menos feroz do que o nazismo, foi a primeira ditadura imposta no coração da Europa depois da Primeira Guerra Mundial e é responsável, ainda que subordinado ao seu poderoso comparsa do Eixo, pelo desencadear da Segunda Guerra Mundial. Era, portanto, o inimigo, ao contrário dos comunistas que eram adversários. D aí a postura de Bobbio, no âmbito de seus ensaios de cultura militante, do diálogo com e não daprédica contra zesquerda, em cujo campo sempre explicitamente se situou, em função da experiência decisiva da resistência à opressão da direita. N a escolha dos temas desse diálogo com a esquerda, conduzido pelas virtudes laicas anteriormente menciona­ das, Bobbio revelou uma aguda percepção dos problemas concretos suscitados pela experiência da política do segun­ do pós-guerra e associou, de maneira muito própria, senso histórico e inspiração analítica. E a fecundidade e a opor­ tunidade desse diálogo o algo que ele agregou à tradição liberal de Croce e Einaudi, seus antecessores italianos no magistério de influência.

7 cf. Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia , São Paulo, Brasiliense, 1988; IIfuturo delia democrazia, 2a.ed., Torino, Einaudi, 1991, pp.l 15-140.

X IV

III Quais são os temas, os problemas e o sentido de opor­ tunidade histórica desvendados por Bobbio na condução desse diálogo? N a primeira metade dos anos 50 (1951-1955), seu diá­ logo foi com os comunistas italianos, que detinham expres­ siva hegemonia cultural no campo da esquerda. Teve como cerne a defesa dos direitos humanos, em especial os direitos de liberdade, derivados do legado do liberalismo. O obje­ tivo foi realçar que esses direitos não eram uma conquista da burguesia, mas sim um valor de alcance universal, a ser reconhecido e preservado, como requisito de salvação da própria revolução russa e da persistência do legado axiológico do socialismo. O s textos básicos dessa discussão foram reunidos no livro de 1955, Política e cultura. Cabe observar que dessa polêmica participou o próprio Togliatti, indicando, diga-se de passagem, a maior abertura do Parti­ do Com unista Italiano ao debate — quando comparado com os seus congêneres europeus e extra-europeus. Este dado explica, posteriormente, as teses do eurocomunismo de Berlinguer, sucessor de Togliatti na chefia do PC I, e mais recentemente a reconversão do P C I em um partido com características social-democráticas. (Sobre esse pro­ cesso e como o partido comunista reformado se tornou na Itália o primeiro partido de esquerda, desalojando os socia­ listas do cenário político, ver o recém-publicado Norberto Bobbio, Verso la seconda repubblica, Torino, La Stampa, 1997, introdução e Parte I — Sulla crisi delia sinistra.) A incursão seguinte de Bobbio, no âmbito da cultura militante, só ocorreu muito mais tarde, na década de 70. Teve como estímulo básico a rebelião estudantil de 1968 que varreu o mundo, e ele a viveu como professor. A rebelião estudantil questionou a legitimidade do “reformismo de­ m ocrático”, ao exprimir-se em tonalidades estridentes de leninismo e maoísmo, na “utopia do homem novo” e tamXV

bém, no limite, na violência imprevisível e descontínua da crítica por meio das armas — o que na Itália inseriu-se no contexto políticò do terrorismo das brigadas vermelhas. A rebelião estudantil e seus prolongamentos políticos exigi­ ram de Bobbio uma nova reflexão sobre o marxismo, a revolução e a democracia. Essa reflexão desdobrou-se, nos anos 70, no diálogo tra­ vado com os socialistas, os comunistas, os social-democratas e a própria esquerda extra-parlamentar, radical e extre­ mista. Desse diálogo resultou, em 1976, o livro Quale so­ cialismo? no qual Bobbio realçou a inadequação do mar­ xismo para lidar com uma questão básica da convivência coletiva, que é a das instituições indispensáveis para o bom governo, tema ao qual sempre dispensou atenção recor­ rente como estudioso de filosofia do direito e de filosofia política. O ano de 1976 assinala também o início da colaboração regular de Bobbio no jornal La Stampa. A conseqüência foi a sua inserção mais constante no debate público, como “observador participante”, tendo como lastro para a ampli­ ação da sua autoridade a pertinência histórica do diálogo com a esquerda, anteriormente travado. São muitas as facetas dessa atuação no campo da cultu­ ra militante voltadas, preponderantemente, para pensar os acontecimentos, à luz da teoria política e da sua capacidade de esclarecer assuntos tão variados como o mercado po­ lítico, o governo dos honestos, a relação entre a praça e o palácio, a virtude dos fracos, o direito à fuga, o lucro e o poder, para mencionar alguns artigos recolhidos em L ’ Uto­ pia Capovolta (la. ed.,1990). N o seu pluralismo, esses tex­ tos têm, no entanto, um fio condutor que cabe explicitar: a convicção de que no labirinto da convivência coletiva, o único salto qualitativo, possível, mas não necessário, é a passagem do reino da violência para o da não violência.8 8 cf. Norberto Bobbio, L a ideologia e ilpotere in crisi, Firenze, Le Monnier, 1981, p. 94.

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Daí, no plano teórico, a defesa da democracia e de suas regras de jogo que se baseiam na idéia de que é melhor “contar cabeças do que cortar cabeças”, consoante a rigo­ rosa elaboração contida nos ensaios de II futuro delia democrazia (la. ed., 1984). Daí, igualmente, no plano interna­ cional, a preocupação com a construção da paz diante do risco onipresente e crescente da violência da guerra devido à destrutividade técnica das armas modernas. Para Bobbio, ela é a expressão, por excelência, do mal ativo, associado à prepotência do poder, e do mal passivo, emblematizados nas vítimas que sofrem uma pena sem culpa. Essa preocu­ pação se exprimiu nos ensaios teóricos de IIproblema delia guerra e la via deliapace (la. ed., 1974) e se desdobrou nos textos militantes de um pacifismo ativo recolhidos em II terzo assente (1989), assim como nas considerações polêmi­ cas sobre a guerra do golfo, recolhidas em Una guerra giusta? (1991) — parte das quais comentei na época, defendendo a posição de Bobbio, em artigos publicados na Folha de São Paulo e no Jorn al do Brasil. Democracia e paz se complementam, nesse mapa das preocupações teóricas de Bobbio — com sua repercussão nos textos de cultura militante — , por meio da defesa dos direitos humanos. Estes, tendo como base o lastro axiológico da Revolução Francesa e da americana, representam, historicamente, a passagem do dever dos súditos para o direito dos cidadãos no plano da organização política da sociedade. São, conseqüentemente, a forma de consagrar institucionalmente a perspectiva democrática ex parte populi, diante da ameaça permanente do arbítrio dos gover­ nantes.9Democracia, paz e direitos humanos, em suas interconexões, constituem assim a meta ideal de convergência, na reflexão de Bobbio, da filosofia do direito e da filosofia política. São estes, com efeito, os seus campos acadêmicos 9 cf. L'età dei diritti, la. ed., Giulio Eeinaudi Editore, 1990.

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por excelência, e a sua convergência traduz a preocupação recorrente de lidar com as duas faces de uma mesma moeda, necessárias para a boa organização da sociedade: o direito e o poder, pois onde o direito é impotente, a sociedade corre o risco de precipitar-se na anarquia, e onde o poder não é controlado pelo direito, a sociedade incorre no risco oposto de despotism o.10 A domesticação da violência a que aspira Bobbio é constitutivamente complexa, por obra do caráter proble­ mático inerente à relação entre o mundo dos fatos e o mundo dos valores, ou seja, do dualismo que separa “ser” e “dever ser” . Com o já ficou dito, Bobbio se interessa muito, analiticamente, por esse dualismo, também na con­ dição existencial de “um iluminista-pessimista”. E isto que faz dele, ao mesmo tempo, um homem de ideais e um realista, muito ciente de que a vida moral e a vida de poder oferecem mais linhas paralelas do que convergentes.11 Tomar conhecimento e analisar a realidade não o im­ pedem de tomar posição diante da realidade, com agudo sentido histórico. N o âmbito da cultura militante, a mais recente e consistente expressão disso é o seu terceiro livro de polêmica política, Destra e sinistra (la. ed. 1994), que resulta de uma reflexão sobre um evento matriz: a ca­ tástrofe do comunismo histórico, que vem a ser “L ’utopia capovolta”, artigo de 9 de junho de 1989, que serviu de título ao livro de 1990 acima mencionado, coletânea de artigos publicados em La Stampa. O livro propõe o resgate, diante dos riscos ideológicos de sua diluição, nos anos 90, das razões e significados da distinção política entre es­ querda e direita. Assim, se Politica e cultura e Quale socia­ lismo? foram o diálogo de um liberal com a esquerda de cariz comunista e revolucionária, Destra e sinistra, ao su10cf. igualmente Norberto Bobbio, Diritto e Potere — saggi su Kelsen, Napoli, Ed. Scientifica Italiana, 1992, p. 170. cf. Elogio delia mitezza e altri scritti morali, Milano, Linea d’Ombra, 1994.

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blinhar a permanência dos problemas da desigualdade que o comunismo buscou sem sucesso equacionar, é o diálogo do socialista que propõe e situa de novo a atualidade da esquerda, diante do risco de uma hegemonia cultural da direita. A matriz teórica da reflexão de Bobbio, que busquei indicar e se exprime no âmbito da cultura militante nos três livros de polêmica política e também nas suas intervenções jornalísticas, é a chave para explicar a sua identidade política e como ela contribuiu para a construção da sua auctoritas. Explico-me: a identidade é um conjunto de predicados que responde à pergunta — quem sou? N o plano político, como aponta Bovero, ela tem duas vertentes distintas, mas complementares: a identidade coletiva e a individual. A identidade coletiva se coloca pela afirmação da semelhança; a individual, pela especificidade da diferença.12 Bobbio, no plano da identidade coletiva, situa-se no campo da esquer­ da, em sentido amplo, ao afirmar no correr de sua vida a solidariedade com uma concepção do bem comum. N o plano da identidade individual, situa-se como um “socialista-liberal”, com as tensões próprias inerentes às dicotomias individualismo/coletivismo;liberdade/igualdade. As tensões da sua identidade individual o levaram, como liberal, a dialogar com a esquerda na afirmação da liberdade, da democracia, da paz e dos direitos humanos, quando isto se fazia histo­ ricamente indispensável. Inversamente, o colapso do co­ munismo e a crise do socialismo, assim como suas conseqüências no plano de organização da cultura política, levaram-no, como socialista, a afirmar a atualidade da dicotomia esquerda/direita. A dicotomia “socialista-liberal” foi assim fecunda. Con­ tribuiu, por obra de sua tensão dialética, para dar a Bobbio um olhar intelectual norteador de um juízo reflexivo pros1_cf. Michelangelo Bovero, “Identità individuali e colletive”, in Ricberche politiche due (a cura de Michelangelo Bovero), Milano, 11 Saggiatore, 1983, pp. 33-34-41.

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pectivo que o capacitou a enxergar contra a corrente e corretamente o que era historicamente relevante nas con­ junturas. A pertinência desse olhar é o algo que acrescenta à tradição liberal, fazendo dele, por excelência, um sábio intelectual de mediação. O sucesso desta mediação não se explica, no entanto, apenas pelo olhar. Resulta de um método de análise, de discussão e de argumentação, que cabe indicar, nas suas linhas gerais. E o que farei a seguir. IV Ao tratar da relação entre os intelectuais e o poder, no conjunto de ensaios reunidos no livro significativamente intitulado II dubbio e la scelta, Bobbio observa que a tarefa do intelectual é a de agitar idéias e suscitar problemas enquanto a do homem de ação é a de tomar decisões. Portanto, este escolhe (gouverner cest choisir, dizia Mendès-France) e a escolha pode obrigá-lo, no limite, a cortar os nós górdios e correr o risco de optar por um caminho de futuro, graças ao querer da vontade. Já o intelectual pode se permitir a paciência existencial da dúvida metódica, com o objetivo de tentar, graças ao pensamento, desatar os nós inerentes à convivência coletiva.13 Bobbio, como homem de contemplação e não de ação, no uso público de sua razão, está voltado para desatar nós. Ele os desata pensando e olhando para os diversos lados de um problema, que é uma das características de sua postura de filósofo analítico. Metodologicamente, isso se traduz, como apontou em mais de uma ocasião Alfonso Ruiz-Miguel, no uso das dicotomias, que são o instrumento por meio do qual distingue, diferencia e ilumina uma realidade percebida por ele como ontologicamente complexa. O jogo dessas dicotomias, na sua ars combinatoria, é a maneira pela qual opera, como intelectual mediador, a relação entre dois 13 cf. Il dubbio e la scelta, cit. p. 62, 127.

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elementos distintos, esclarecendo os conceitos com senso histórico, inspiração analítica e preocupação empírica. N esse processo, ele se vale da clareza iluminada do seu inconfun­ dível estilo, que como todo estilo, não é a forma que se adiciona à substância, mas sim, como apontou Proust, o da qualidade diferenciada de uma visão de mundo. Qual é essa visão de mundo para retomar e aprofundar o que já foi dito? Ela é, ao mesmo tempo, a de um homem do Piemonte, com um sentido profundo da unidade cultu­ ral e política da Itália e a de um europeu, que pensa e pensou a Europa, não em termos de Leste/O este ou de fronteiras nacionais, mas de sua unidade histórico-cultural e de sua vocação de universalidade. Esta é, por exemplo, em De Senectute, a dicotomia da complementaridade existente entre os capítulos “Elogio do Piemonte” e “Política da Cultura”. N essa visão de mundo se inclui, como permanente exercí­ cio de humildade, o ter presente a “lição dos clássicos” na sua análise seja dos temas recorrentes do seu percurso teórico — por exemplo estado/sociedade; formas de go­ verno; mudanças políticas; direito e poder etc. — , seja dos problemas da atualidade. Entre os autores clássicos preferidos de Bobbio estão, no pluralismo de suas reflexões, cinco dos maiores filósofos da política da Idade Moderna: Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, o que indica a sua implantação na grande tradição cultural européia. Entre os seus cinco autores mais recentes, estão três italianos — Croce, Pareto e Cattaneo e mais Kelsen e Weber. N ão há, como observa, maneira de racionalizar apropriadamente as relações de afinidades en­ tre eles. Todos tiveram a sua parte no desenvolvimento do seu percurso intelectual. Assim, por exemplo, Cattaneo o liberou de abstrações filosóficas estéreis; Pareto o ajudou a compreender os limites da razão; Kelsen lhe deu acesso a um entendimento do direito como sistema dinâmico; We­ ber tem sido uma inspiração para repensar e reformular as XXI

principais categorias da política; H obbes, além do método, é uma fonte inspiradora de três temas substantivos do seu pensam ento político: o individualismo, o contratualismo e a construção da paz através da instituição de um poder comum. A diversidade dos autores clássicos preferidos de Bobbio é reveladora do abrangente e complexo repertório de idéias a partir das quais opera o seu papel de intelectual mediador. N esse papel ele não é um filósofo de sínteses impossíveis, mas um filósofo da análise e é precisamente no rigor heurístico das análises que reside a força e a ori­ ginalidade do seu pensamento. V A força e a originalidade da reflexão de Bobbio se fizeram sentir além da Itália, com impacto no debate público de outros países. N ão é o caso de discutir, neste prefácio, a irradiação mais ampla de seu pensamento e de sua palavra, mas creio que vale a pena indicar como se deu o processo de recepção de sua obra no Brasil. Em nosso país, Bobbio começou a ser discutido nos anos 50, entre os juristas, graças ao interesse que neles despertou. Estes, com efeito, encontraram na sua visão de filosofia do direito, concebida sub speciejuris, ou seja, como resposta aos problemas concretos colocados pela experiên­ cia jurídica, um indispensável ponto de referência. De fato, o rigor na análise da norma e do ordenamento jurídico e a sua posterior abertura para a problemática, não apenas da es­ trutura, mas também das funções do Direito no mundo con­ temporâneo, explicam como o instrumental teórico da sua obra foi sendo incorporado ao debate jurídico brasileiro. A partir da década de 70 — que coincidem com a pre­ sença mais constante de Bobbio no debate público italiano — , a sua obra, tanto de cultura acadêmica quanto de cultura

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militante, passou a interessar a um público mais abran­ gente. Em um primeiro momento, isso ocorreu no contex­ to do debate sobre a redemocratização do país e da luta pelo término do regime militar. Posteriormente, em função da contínua pertinência de sua reflexão para itens da agenda política brasileira, que vem coincidindo em boa parte com os temas recorrentes de sua reflexão. Entre eles menciono, reiterando em parte o que já foi dito: o papel do estado de direito; a interação entre sociedade e estado; a dicotomia ditadura/democracia; os meios de mudança política (refor­ m a/revolução); a relação entre direito e poder; política e cultura; a autonomia da política (o assim chamado pro­ blema maquiavélico, da diferença entre ética e política); a autonomia do político (a autonomia do poder político e do ideológico em relação ao poder econômico, ou seja, por que o nexo entre estrutura social e a base econômica e a superestrutura política e cultural não corresponde ao que afir­ mava na sua linearidade o catecismo marxista); a trans­ parência do poder e os segredos do estado etc. O público no Brasil para a obra de Bobbio foi assim, a partir da década de 70, alargando-se dos juristas para setores mais amplos da sociedade. Em função de sua identi­ dade política de “socialista liberal”, e precisamente por conta de seu papel de intelectual mediador incorporou (i) a esquerda intelectual não dogmática e de vocação democrá­ tica, que considerou fecunda a discussão de Bobbio a res­ peito das limitações da teoria marxista do Estado e do Direito para a construção da democracia no Brasil; e (ii) os liberais que, atentos à escala da desigualdade existente no país e ao desafio que isso representava e representa para o futuro brasileiro, encontraram no liberalismo socialista de Bobbio uma fonte de inspiração. Uma fonte de inspiração para, ao examinar os m odos de organização da vida cole­ tiva, afirmar não apenas o estado de direito, o respeito pelo indivíduo, o papel do mercado, como também o imperativo XXIII

da concomitante tutela da liberdade e da igualdade para a democratização das sociedades nas condições do mundo contemporâneo. A conseqüência foi o sucesso editorial de Bobbio em nosso país a partir dos anos 80. Esse sucesso atesta a irradiação de sua obra que hoje está, em boa parte, traduzida e disponível em português para os seus múltiplos leitores. Além das razões já expostas sobre a constituição do seu público no Brasil, a recepção da obra de Bobbio foi favorecida, no plano mais amplo, pela presença da cultura italiana na vida brasileira. Essa presença não se explica apenas em função da imi­ gração e da proximidade da língua. Resulta de densidade própria indiscutível no âmbito da cultura ocidental, somada a uma aptidão para a abertura transcultural. Dessa abertura, tão necessária para uma sólida experiência intelectual, a variedade dos clássicos de Bobbio dá testemunho. Um a abertura desse tipo é relevante, como referencial, para um país com as características do nosso. Tem o mérito de ir além do ensimesmamento derivado da combinação entre vigor intelectual e poderio político que assinala, por com ­ paração, a cultura anglo-americana e a francesa. N o campo jurídico, por esses motivos, a presença ita­ liana sempre foi relevante na Faculdade de Direito da USP, para isso tendo contribuído o magistério de dois contem­ porâneos de Bobbio, Tullio Ascarelli e Enrico Tullio Liebman, que, forçados a sair da Itália de Mussolini pelas leis raciais, foram acolhidos na Faculdade e nela lecionaram durante e após a Segunda Guerra Mundial, até regressarem ao seu país de origem. Foi assim que nos anos 60, para dar um depoimento pessoal, como aluno de graduação, tomei conhecimento da obra de Bobbio nas aulas de filosofia do direito do professor Miguel Reale, que muito contribuiu para divulgá-la nos meios jurídicos brasileiros. N esta linha registrei e discuti a dimensão jurídica da obra de Bobbio em minha tese de livre-docência de 1977, sobre o Convênio XXIV

Internacional do Café de 1976, centrada, teoricamente, no papel da reciprocidade na criação e aplicação de normas do Direito Internacional Econômico. N os anos 70, que coincidem, como observei, com a publicação de Quale socialismo?, dei-me conta da impor­ tância e pertinência da obra de Bobbio no campo da teoria política e noto, para continuar em um depoimento pessoal, que foi o professor Antonio Cândido que me deu de pre­ sente, assim que foi publicada, a edição de 1979 da Einaudi, admiravelmente prefaciada por Bobbio, do Socialismo liberale, de Cario Rosselli. Esse novo contato com a vertente política da obra de Bobbio acentuou minha admiração pelo seu pensamento que oferecia resposta às minhas próprias inquietações inte­ lectuais, voltadas para a mediação e a convergência entre a filosofia do direito e a filosofia política. Essa mediação e convergência foi o que explorei no meu primeiro texto sobre Bobbio: o prefácio de 1980 ao seu primeiro livro publicado no Brasil, A teoria das formas de governo na história do pensamento político,14 também recolhido no meu livro En­ saios sobre a liberdade.1415 N o plano mais geral da opinião pública informada, o interesse pela obra de Bobbio entre nós teve um estímulo adicional por ocasião da viagem que fez ao Brasil em setem­ bro de 1982. Foi quando tive a satisfação de conhecê-lo pessoalmente. N essa oportunidade, Bobbio pronunciou duas conferências na Faculdade de Direito da USP, que tiveram ampla repercussão na imprensa, e participou de um encontro/seminário sohre a sua obra patrocinado pela U ni­ versidade de Brasília e organizado por Carlos Henrique Cardim. Para esse encontro/seminário, preparei um texto que era um estudo sobre a sua contribuição a outro campo 14Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1980. 15São Paulo, Perspectiva, 1980.

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de minha permanente preocupação intelectual: o das rela­ ções internacionais. O texto, intitulado “O problema da guerra e os caminhos da paz na reflexão de N orberto Bobbio”, revisto e ampliado, é um dos ensaios do meu livro O Brasil e a crise mundial16 e foi igualmente publicado, em espa­ nhol, no liber amicorum, organizado por Agustin Squella.1 617 O estímulo intelectual da obra de Bobbio, no meu caso reforçado pelas afinidades dos campos acadêmicos e dos posicionamentos políticos, teve como atração adicional os instigantes diálogos que mantivemos nas múltiplas visitas que lhe fiz em Turim, depois do nosso encontro em 1982 no Brasil. Daí o empenho em discutir e trabalhar pela di­ vulgação do seu pensamento em nosso país. Foi assim que, dando seqüência a cssc empenho, aceitei com a maior satisfação o convite para elaborar este prefácio à edição brasileira de O tempo da memória. Conseqüentemente, ele é também, para usar a classi­ ficação de Bobbio, um texto que se insere no gênero de tes­ temunho. N a sua obra, são três os livros desse tipo: Italia civile — ritratti e testimonianze (la. ed., 1964); Maestri e compagni (1984) e U Italia fedele — il mondo di Gobetti (1986). E são estes os que gostaria que lhe sobrevivessem. N eles vemos estudos sobre intelectuais que, na mediação sempre dilemática entre política e cultura, não incorreram na traição dos clérigos, para citar o livro de Julien Benda que tanto aprecia. De fato, eles afirmaram, corajosamente, em situações difíceis, a liberdade contra a tirania, a tolerân­ cia contra a violência e a opressão e a unidade dos homens acima das raças, das classes e das pátrias nas divisões que provocam a diferença entre eleitos e condenados. São repre­ sentativos, portanto, como diz no prefácio a Maestri e 16 São Paulo, Perspectiva, 1984. 17Norberto Bobbio, Estúdios en su homenaje, Valparaiso, Universidad de Valparaiso, 1987.

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compagni, 18 do potencial de “uma outra H istória” que só se fez presente em raros momentos, felizes porém breves, mas à qual ele é fiel, na condição existencial de “iluminista-pessimista”. A importância que Bobbio atribui na sua bibliografia à memória dessa “outra história” é que me permite ir con­ cluindo este prefácio, retomando as suas reflexões sobre a velhice, posto que nelas, coerentemente com a sua vida, realça, em outras circunstâncias, a importância do tempo da memória. VI “Quem louva a velhice não a viu de perto”, diz Bobbio parafraseando o dito popular baseado no adágio de Erasmo sobre a guerra. Com um saber de experiência, ele explica como em relação aos très âgés é ainda mais pertinente a máxima de La Rochefoucauld: “N ous arrivons tout nouveaux aux divers âges de la vie et nous y manquons souvent d’expérience malgré le nombre des années.” C om efeito, a velhice, última fase da vida, exprime um ciclo que se avizinha do fim. Por isso, ela é também empre­ gada metaforicamente para assinalar a decadência de uma civilização, de um povo, de uma raça, de uma cidade. Daí ser o termo “jovem”, usualmente, o pólo positi-vo da dicotomia velho/jovem. Bobbio articula com a clareza habitual a decadência im­ posta pelos limites fisiológicos da velhice, contrastando a lentidão deliberada das solenidades — a do sacerdote na procissão, a dos grandes do Estado nas cerimônias públicas — com a lentidão não desejada do velho, no andar, no manejo dos instrumentos, no pensar. Esta lentidão é peno­ sa para o velho e para os outros. Bobbio registra o drama 18 Firenze, Passigli Edit., 1984, p.8.

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da finitude com a limpidez da metáfora da escada: o velho percebe que vai descendo a escada da vida de degrau em degrau e, por pequeno que este seja, sabe não só que não há volta como também que o número de degraus que tem pela frente é sempre menor. Registra, igualmente, que a sabedoria convencional diria que, para um velho, o apro­ priado é conhecer e aceitar os limites resultantes do avizi­ nhar-se do fim do ciclo da vida. Estes limites ele os conhece, mas tem dificuldades em aceitá-los. Admite-os, como um realista, porque não tem alternativas. Por outro lado, sua postura diante da hipótese de uma outra vida depois da morte e de suas eventuais recompensas permanece, coeren­ temente, a de um laico: assim como os crentes acreditam crer, ele crê não crer em um outro mundo, entre os muitos mundos possíveis e imaginados de formas distintas por Platão, por Epicuro, pelos judeus, pelos cristãos. Diante disso, na vida como na velhice, é à memória que ele recorre, como meio de sobreviver. Hannah Arendt (1906-1975), a quem tenho evocado neste prefácio para refletir sobre o percurso de Bobbio, m or­ reu com quase 70 anos, sem alcançar a etapa dos très agés. Com o relata a sua biógrafa Elizabeth Young-Bruehl, ela pretendia escrever um “De Senectute” e dizia, em The life o f the Mind que, na perspectiva do querer, a velhice é carência de futuro pois, como aponta Bobbio, o mundo do velho é o do passado.19 A falta de futuro, imaginava Hannah Arendt, não precisa ser, necessariamente, uma causa de angústia. Pode abrir novas possibilidades para o pensar, na medida em que o “ eu que pensa” extrai significado do passado, conferindolhe a forma de uma “estória” por meio da memória. Esta se converte assim na solidez da sede da alma, como dizia Santo 19 cf. H annah A rend t —, F o r Love o f the World, New Haven, Yale Univesity Press, 1982, p. 457.

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Agostinho, um dos “clássicos” de Hannah Arendt — “sedis animi est in memória”. O sopro do pensamento, como o do Espírito, não desaparece inapelavelmente quando se retém, como é o caso de Bobbio, a capacidade de um juízo reflexivo, apto a extrair um significado geral a partir do caso específico de uma situação. Este tipo de juízo é fundamental em uma época como a nossa, na qual a lição do labirinto evidencia como os “universais” são fugidios. E este juízo reflexivo que Bobbio também nos oferece, ao pensar sobre os très agés, operando como sempre faz uma nova mediação: o tempo da memória na busca do significado para lidar com a velhice e a vida. N o De Senectute de Bobbio, como dizia Catão, no De Senectute de Cícero, os resultados do pensamento, do carácter e do juízo não diminuíram mas aumentaram com a idade. Por isso ele é não só um grande intelectual e um grande homem, mas igualmente — e isto é sem dúvida existencialmente mais difícil — um “grande vecchio”, um mestre dotado de autoridade, cujo ensinamento suscita sempre a melhor admiração. — Celso Lafer Genebra, março de 1997.

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O Tempo da Memória

A Mim Mesmo

italiano 1840-41 de John Ruskin, na data L deeio28nodeDiário dezembro de 1840: “É muito aborrecido man­ ter um diário, mas tê-lo mantido constitui uma grande alegria.” 1Ao longo de minha vida sempre evitei esse abor­ recimento. Mas agora que estou velho, não posso desfrutar a “ grande alegria” de poder usá-lo. Tenho de me contentar com uma miríade de folhas escritas nas mais diversas oca­ siões, muitas vezes sem data, reunidas em pastas sem ne­ nhuma ordem preestabelecida, onde copiei um trecho que pretendia citar mais tarde, ou o título de um livro, ou então anotei uma idéia que me ocorreu enquanto lia, passeava, devaneava. Muitas vezes são colóquios imaginários com interlocutores reais, escritores, jornalistas, visitantes oca­ sionais, nos quais exprimo não só sentimentos e ressenti­ mentos, simpatias e antipatias, intolerâncias, pequenas in­ dignações e enormes desprezos, mas também comentários sobre os acontecimentos do dia, breves raciocínios para desfazer uma dúvida, argumentos a favor ou contra uma tese controvertida, rascunhos de artigos futuros. Essas folhas contêm não raro anotações autobiográficas, lançadas no papel nem tanto para transmitir à posteridade aconteci­ mentos memoráveis, quanto para dar vazão a uma ansieda­ de de espírito, refletir sobre um erro cometido com o1 1J. Ruskin, D iário italiano 1840-41, trad. it. Mursia, Milão, 1992, p. 55.

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propósito de não o repetir, anotar um defeito para dele me libertar, tornando-me consciente dele e confessando-o, se não aos outros, pelo menos a mim mesmo. Escrevi, e continuo a escrever, não obstante o advento do telefone, muitíssimas cartas, conservadas apenas em parte, nas quais com freqüência sou obrigado a falar de minha pessoa para responder a perguntas de leitores. Sou grato a Guido Ceronetti pelas palavras que escreveu recentemente e que logo anotei: "Sempre que posso (...), faço apaixonada apologia do escrever cartas entre seres pensantes, ainda não embrutecidos, que se comunicam apenas pelo telefone, ou então por fax e telefone celular. N ão basta dizer: homo cogitat. O homem que pensa de verdade escreve cartas aos am igos.”2 E com efeito os amigos sabem que detesto ser chamado ao telefone. O pedido, infelizmente freqüente, de uma entre­ vista telefônica, irrita-me. Antes de me chamarem, alguns habitués dos telefonemas perguntam a minha mulher: — C om o está o humor de N orberto? O utros já se adiantam: — Desculpe-me incomodá-lo, mas você deve ter notado que faz um mês que não telefono. O meu retrato poderia começar justamente com a fragilidade e a vulnerabilidade dos meus nervos. Poderia fazer minha — ainda que sob a forma de paródia — a autodefinição de um poeta japonês que li recentemente: "N ão possuo uma filosofia, mas apenas nervos.”3 Quando eu era rapaz e me preparava para a confissão, os adultos, para ajudarem na observância, sugeriam-me que desse des­ taque especial ao pecado com que, segundo o juízo deles, eu me manchava com maior freqüência: a ira. Aprendi então a pronunciar uma palavra que usava apenas naquela ocasião, não me lembro mais se “irascível” ou o ainda mais erudito "iracundo”, em lugar, quem sabe por que, do banal “colé2 G. Ceronetti, “La nostra liberta di sgrammaticare”, in L a Stampa, 2 de outubro de 1995. 3 Citado por I. Brodskij, “La mia vita è un’astronave”, in Micromega, 3, 1996, p. 162.

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rico”. N a escola, já grandinho, eu era vítima de amigáveis zombarias devido aos notórios acessos de raiva — chama­ dos de “sagradas indignações” — de que era acometido sempre que escutava um gracejo vulgar, via que os mais fracos eram vítimas de alguma brincadeira de mau gosto, sofria eu mesmo uma repreensão que julgava injusta ou sentia-me ofendido por um gesto grosseiro. Já adulto, o interesse pela política, ainda que esta nunca se tenha torna­ do uma paixão exclusiva, e muito menos mórbida, tornouse fonte contínua e inesgotável de ira. Ainda o é, mas nestes últimos anos me tornei, se não mais indulgente — existem por aí três ou quatro personagens que não consigo suportar — , menos intolerante, sobretudo menos inflamado. C o n ­ sigo ver também o lado cômico de alguns deles, desabafo escrevendo algumas linhas e volto a me tranqüilizar. A escola também teve o seu papel: sobretudo com as provas que duravam horas e horas, com colegas muitas vezes medíocres que tentavam se safar graças a artimanhas para lá de conhecidas. Lembro-me de um deles que, ao fim de cada uma de minhas explicações — era sempre eu quem falava enquanto ele ouvia, em invariável silêncio — dizia com reverência, para me adular: “Exato.” C om isso não pretendo fazê-los acreditar que eu aprecie o jogo daqueles professores que se divertem contando as asneiras dos alu­ nos, e que é exatamente igual àquele dos alunos que se divertem contando as asneiras dos professores. Acredito ter sido incluído no rol dos professores condescendentes, mas sempre chegava o momento em que, por cansaço ou pela firme convicção da inutilidade daquele cara-a-cara com um examinando, eu perdia as estribeiras e lhe passava uma descompostura. Quem sabe algum deles chegue a ler estas páginas e finalmente possa desabafar escrevendo-me para confessar que me detestava. Algumas vezes encontro anti­ gos alunos que evocam minhas aulas com elogios exagera­ dos devido a um embelezamento involuntário das recorda­ 5

ções do passado ou a uma inocente, inconsciente, reveren­ ciai adulaçao ao velho mestre. E sem razão, porque nunca me convenci de que era um bom orador, a ponto de encon­ trar conforto nesta confissão de Croce, que nunca mais esqueci desde que a li pela primeira vez: “Afinal, para mim é mais fácil escrever que falar, sou pouco adestrado nas habilidades da oratória.”4 Até hoje, nunca me aconteceu que uma pessoa escrevesse ou dissesse palavras desagradá­ veis sobre os meus, talvez discutíveis — e para ela insufi­ cientes — , dotes de professor. Se isso ocorresse, não me surpreendería, nem me sentiria ofendido. Seria, quem sabe, um castigo que eu tinha de sofrer para me libertar. Sempre me arrependi dos meus acessos de raiva, mas não consegui dominá-los, a não ser raras vezes. E justamen­ te por nem sempre os dominar que, mal volto a mim — o que ocorre quase sempre de supetão, da mesma forma que de supetão foi que perdi o juízo — , sinto-me constrangido e sofro. Lamento ter permitido que o corcel da alma irra­ cional, aquele irascível (e aqui a palavra erudita está em seu lugar adequado), tenha prevalecido sobre o nobre corcel da alma racional. Tenho uma tendência — em relação à qual nunca tentei ir além do que aflora à consciência nos momentos de recolhimento e de mau humor (freqüentíssimo) nos dias em que tudo parece dar errado — para a autoflagelação e a autodestruição, por sorte corrigidas nas horas de bonança pela contratendência salutar para a autocomiseração. O duvidar de mim mesmo e o descontentamento com as metas alcançadas, muitas das quais inesperadas, imprevis­ tas, sempre se originam, se não exatamente da convicção, da suspeita de que a facilidade com que consegui percorrer o meu caminho, inacessível a muitos dos meus contempo­ râneos, fosse devida mais à boa sorte e à indulgência alheia 4 B. Croce, Pagine sparse, primeiro volume, Letteratura e cultura, Ricciardi, Nápoles, 1943, p. 262.

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do que às minhas virtudes, se não apenas a alguns dos meus defeitos vitalmente úteis, como aquele de saber retirar-me a tempo, antes de ter dado o último passo, o mais arriscado (um argumento sobre o qual poderia escrever um pequeno tratado, que intitularia Do meu moderantismo) . Sem nunca ter me sentido em paz comigo mesmo, tentei desesperadamente ficar em paz com os outros. N ão sei se existe igual correspondência entre a paz interna e a paz externa nas relações entre Estados. Mas tenho a tenta­ ção de dizer que sim. Ainda uma vez, sem querer buscar explicações elaboradas que de boa vontade deixo para os competentes, acredito que no fundo da minha insegurança, que gera ansiedade e favorece uma irresistível vocação para o catastrofismo, exista a dificuldade que precisei superar desde a adolescência para aprender a arte de viver, agravada pela convicção de nunca tê-la compreendido bem, apesar do aprendizado de excepcional duração. Quando menino eu era conhecido, e algumas vezes também destratado, pela minha timidez, da qual muitos se compadeciam. O s paren­ tes que me conheceram naquela época sempre aludem à rapidez e à freqüência com que eu corava se um estranho me dirigisse a palavra, para logo depois corar simplesmente por ter corado. Chego até a admirar os arrogantes, os insolentes, os muito seguros de si, embora me enervem. Deles não tenho inveja porque esta, além de não entrar na classe de pecados dos quais deva me confessar, consiste em sofrer com o sucesso dos outros. Diante do sucesso dos insolentes, dos arrogames, dos muito seguros de si, consigo ser completamente indiferente. Sinto-me em paz com os outros. Durante tantos anos de participação ativa na vida pública e, tendo-me exposto tanto em público, é natural que eu tenha tido muitos adversários. N o entanto, creio que nunca os procurei ou cultivei. N em sempre respondi às críticas, mesmo porque,

D e S e n e c t u t e e O utros Escritos A u to bio g rá fico s

com freqüência, as objeções são justas, e é mais sábio delas tirar proveito do que esforçar-se com frieza, por puro capricho, para encontrar argumentos para rebatê-las. Uma das minhas máximas preferidas é a que diz que “nunca é tarde para aprender”. Ao contrário, as críticas demolidoras me abatem e me paralisam, privando-me da lucidez neces­ sária para responder. Se a razão está do lado do demolidor, e por que não haveria de estar?, o melhor seria eu mudar de profissão. Ainda hoje me sinto abalado e perturbado com a primeira crítica que recebi: foi logo depois da guerra, na mais respeitada revista filosófica inglesa.5 Com o poderia replicar? Senti-me desfalecer, como se tivesse sido atingido por um raio. Quando me deixo levar pela tentação de me envaidecer com o sucesso de um livro que vendeu muitos exemplares e que também foi traduzido — a melhor des­ forra — para o inglês, ou com os aplausos prolongados que recebo ao final de uma conferência, penso comigo mesmo: — Lembre-se do que escreveram sobre você fulano, sicrano e também beltrano. Algum as vezes respondi com rispidez, admito. Há alguns temas sobre os quais não me disponho a fazer acordos tão facilmente. Gostam os de falar do que nos aflige. Ainda que nunca me tenha comportado como so­ brevivente do Partido de Ação, no qual, aliás, tive um pequeno papel de comparsa, nunca suportei as duas censu­ ras opostas lançadas contínua e obstinadamente aos seus membros: termos sido, como anticomunistas, muito bran­ dos e, como antifascistas, muito severos. Em uma única palavra, não sermos eqüidistantes. N ão posso negar que existe alguma verdade nessa observação. Acredito, porém, que a não-eqüidistância tenha suas razões. Já me referi a isso várias vezes. N ão insistirei. N estes últimos anos de 5 Refiro-me à resenha de Mario M. Rossi publicada na revista filosófica Mind, 58, 1949, pp. 114-15, para meu livro The philosophy o f decadenúsm. A study in existentialism, translated by D. Moore, Basil Blackwel, Oxford, 1948.

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revisionismo histórico pude observar ao meu redor, com certa amargura, que a condenação do antifascismo em nome do anticomunismo acabou muitas vezes por levar a uma outra forma de eqüidistância que considero abominá­ vel: a que existe entre fascismo e antifascismo. Essa eqüi­ distância, que remonta àqueles que, logo no início da re­ construção democrática, pregaram a necessidade de ir para além do fascismo e do antifascismo, impede que as novas gerações percebam a diferença entre um Estado de exceção e um Estado de direito, entre uma ditadura ainda que menos feroz do que a nazista e uma democracia capenga como aquela da Primeira República (que, não obstante, continua a capengar), e se dêem conta de que o fascismo, a primeira ditadura imposta no coração da Europa depois da Primeira Guerra Mundial, responsável, ainda que submetida ao seu poderoso aliado, por desencadear a Segunda Guerra M un­ dial, que acabou em trágica derrota, foi uma vergonha na história de um país que figurava há muito tempo entre as nações civilizadas. Só nos libertaremos dessa vergonha se conseguirmos perceber, em sua totalidade, o preço que o país teve de pagar pela prepotência impune de poucos e pela obediência, ainda que coagida e nem sempre bem suporta­ da, de muitos. Com o sempre, não pretendo ter a última palavra. Isso não me agrada e não me dá nenhuma satisfação. Detesto as discussões que não acabam nunca, motivadas apenas pelo prestígio, e não por uma necessidade de dialogar. Depois da troca de opiniões, procuro esforçar-me para evitar a ruptura e percorrer a via da conciliação. N o fim, prefiro estender a mão a virar as costas. O objetivo do diálogo não é demonstrar quem é o melhor, mas chegar a um acordo ou, pelo menos, clarear as idéias de ambas as partes. Já afirmei que não gosto de cultivar inimigos. Já tenho muito trabalho para solucionar os meus conflitos internos, tomar as medidas necessárias para não perder tempo, pouco prá­

tico que sou (seria um desastre se não fosse minha mulher), mesmo nas pequenas tarefas cotidianas, e afastar o risco de me afogar em um copo de água, para me dar ao luxo de cultivar inimigos vivos e ativos diante de mim, ou, pior, nas minhas costas. N em sempre consegui. N ão conseguir con­ verter a inimizade em amizade — ou, pelo menos, em um leal e duradouro acordo de cavalheiros — é uma derrota. Sempre fui, ou creio ter sido, um homem do diálogo mais que da polêmica. A capacidade de dialogar e de trocar argumentos, em vez de acusações recíprocas acompanha­ das de insultos, está na base de qualquer pacífica convivên­ cia democrática. Perdi a conta de quantas vezes fiz a apo­ logia do diálogo, ainda que sem tê-lo transformado em fetiche. N ão basta conversar para empreender um diálogo. N em sempre aqueles que falam uns com os outros falam de fato entre si: cada um fala consigo mesmo ou para a platéia que o escuta. Dois monólogos não fazem um diálo­ go. Podemos nos servir da palavra para esconder nossas próprias intenções em lugar de manifestá-las, para enganar o adversário em vez de convencê-lo. N ão fiz apenas o elogio do diálogo. H á muito o pratico. Também tenho experiência com o diálogo de surdos; com o diálogo de má-fé; com o falso diálogo no qual um dos interlocutores, quando não os dois, já sabe de antemão aonde quer chegar, firmemente convencido, desde o início, de que não deverá retroceder um único passo na sua posição inicial; com o diálogo ineficaz, que é o mais comum, em que no final cada um continua com seu próprio pensamento e consola-se dizen­ do que o diálogo foi particularmente útil porque serviu para tornar mais claras as idéias (o que nem sempre é verdade e é quase sempre falso). Também cheguei a praticar o diálogo porque ceder à tentação da polêmica — e algumas vezes cedi, apesar das boas intenções — é um ato de fraqueza. N em todos os diálogos chegaram ao fim. Muitas vezes se 10

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perderam ao longo do caminho, ora por culpa de um, ora por culpa de outro. N estes últimos tempos, reconheço, também por culpa minha. O s pensamentos de um ancião tendem ao enrijecimento. Depois de certa idade, desistimos de mudar de opinião. Tornamo-nos cada vez mais obstina­ dos em nossas convicções e mais indiferentes às dos outros. O s inovadores são vistos com desconfiança. Ficamos cada vez mais apegados às velhas idéias e, ao mesmo tempo, cada vez mais desconfiados das novas. O excessivo apego às próprias idéias nos torna mais facciosos. Eu mesmo perce­ bo que preciso ficar alerta. A curiosidade de saber não diminuiu. Mas é cada vez mais difícil satisfazê-la, não apenas pelo enfraquecimento da energia intelectual, mas também pelo espaço ilimitado que a mente humana conquistou e continua a conquistar com vertiginosa rapidez nestes últimos cinqiienta anos na esfera do conhecimento e mais ainda nas aplicações práticas que dela derivaram. Um a pessoa da minha idade, por mais que procure com todas as forças ficar na ponta dos pés, consegue ver apenas as primeiras sombras destes novos tempos. N ão é de resto necessário, e muito menos merecido, estar sempre na crista da onda. E, ao contrário, um ato de sabedoria — aquela sabedoria atribuída como especial vir­ tude a quem chegou ao fim na corrida da vida — olhar sem muita indulgência para o próprio passado, não confiar demais no próprio, e incertíssimo, futuro e, quanto ao presente, ano após ano, subir mais alto pela arquibancada, aonde chegam cada vezmienos nítidas as imagens dos atores e mais fracas as vozes da estrada. Senti imensa satisfação ao ver que Giuliano Pontara, em um livro que recebi faz pouco tempo, enumerou entre as dez características da personalidade não-violenta em oposição à personalidade autoritária, uma em seguida à

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outra, a “ capacidade de diálogo” e a “benevolência”.6 Para ser franco, quando escrevi o ensaio sobre a benevolência, eu a definira como uma virtude não-política — definição contestada por Pontara — , ou melhor, eu afirmara que “na luta política, também naquela democrática, e aqui entendo por luta democrática a luta pelo poder que não recorre à violência, os homens benévolos não possuem papel al­ gum” .7 N o entanto, que a benevolência possa ser conside­ rada uma boa qualidade para o diálogo parece correto. Até agora eu não havia pensado: o elogio do diálogo e o elogio da benevolência podem muito bem andar juntos, e sustentar-se e integrar-se um no outro. Sempre me considerei, e sempre me consideraram, um pessimista. O pessimismo não é uma filosofia, mas um estado de ânimo. Eu sou um pessimista de humor e não de conceito. O pessimismo como filosofia é uma resposta alternativa àque­ la pergunta do otimista: “Para onde vai o mundo?” E quem sabe a resposta? Talvez ambos tenham razão, o pessimista e o otimista. Talvez nenhum dos dois, porque não faz muito sentido levantar questões para as quais não é possível encon­ trar resposta. O pessim ismo como estado de ânimo pode, ao con­ trário, ter infinitas razões. Indicarei algumas, mas poderia indicar outras mais ou menos com o mesmo poder de persuasão. Um a máxima advinda da experiência, sem pre­ tensões teóricas. Dizia Salvemini: “A arte do profeta é perigosa e é melhor ficar longe dela. De qualquer modo, quando se quer profetizar, é mais prudente ser pessimista do que otimista, porque as coisas deste mundo vão sempre de mal a pior.”8 Uma reflexão moral. Ao receber o prêmio N obel, Montale disse, entre outras coisas: “ (...) conside­ 6 G. Pontara, L a personalità nonviolenta, Ed. Gruppo Abele, Turim, 1996, p. 40. Discute especificamente a benevolência nas pp. 61-63. 7 N. Bobbio, Elogio delia mitezza ealtri scritti morali, Linea d’Ombra, Milão, 1994, p. 24. 8 G. Salvemini, Memorie d i un fuoriuscito, Feltrinelli, Milão, 1960, p. 57.

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ram-me um pessimista, mas que abismo de ignorância e de baixo egoísmo se esconde em quem pensa que o homem é o deus de si mesmo e que o seu futuro não pode deixar de ser triunfal.”9 Mas pode ser também um argumento apenas negativo: a recusa do otimismo. Concluo com este pensa­ mento de N icola Chiaromonte: “ (...) acredito que, hoje mais do que nunca, o pior inimigo da humanidade é o otimismo, qualquer que seja sua forma. Ele, de fato, equi­ vale pura e simplesmente à recusa de pensar, por medo das conclusões a que poderiamos chegar.” 10 São razões que valem aquilo que valem. Valem enquan­ to valem. N a realidade são, paretianamente, “derivações”. Raciocínios não fundadores, mas tão-somente justificadores. Raciocínios que não fundam nossas convicções, mas se limitam a justificá-las em face de nós mesmos e dos que pensam exatamente como nós. N o entanto, um raciocínio que não nos permite satisfazer a curiosidade em torno do conhecimento de “como vai o mundo” é uma prova a mais da impotência de nossa razão. Para seres que se definiram orgulhosamente como “animais racionais”, um argumento posterior, por via das dúvidas, para sermos pessimistas. A idéia de reunir alguns de meus textos autobiográfi­ cos nasceu depois que Giulio Einaudi me propôs editar, revisto e ampliado, o discurso De senectute que eu proferira ao receber o diploma ad honorcm, da Universidade de Sassari, em 5 de maio de 1994. Aquele discurso, que aparece com uma segunda parte elaborada para esta edição e por­ tanto inédita, constitui a primeira parte deste livro, ainda que deva ser considerado como a conclusão das minhas esporádicas reflexões autobiográficas. Esporádicas e oca­ sionais. Mas quantos dos meus livros são coletâneas de 9 Citado por D. Porzio, “Con Montale a Stoccolma”, in N uova Antologia , n. 2.111, novembro de 1976, pp. 372-80. 10 N. Chiaromonte, Silenzio eparole, Rizzoli, Milão, 1978, p. 232.

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textos ocâsionais! Aos que desejem conhecer os pretextos pelos quais os ensaios aqui reunidos foram elaborados eu os remeto às precisas e detalhadas informações que cons­ tam da Nota aos textos de Pietro Polito (pp. 177-82), a quem também devo a Nota biográfica (pp. 184-96). Sem seus conselhos e sua constante assistência, este livro não teria sequer existido. Falar de si é um vício da idade avançada. Apenas em parte podemos atribuí-lo à vaidade. Também pode depen­ der das amáveis solicitações às quais, de bom grado, acaba­ mos por ceder. O primeiro dos textos aqui reunidos em ordem cro­ nológica data de 1979, quando eu contava setenta anos, e era o ano em que eu dava por concluído meu magistério universitário. Considero que a partir daí teve início a ter­ ceira e última fase de minha vida, da reflexão, conseqüência dos anos de experiência— 1940-1948 — e dos longos trinta anos de monótona rotina acadêmica— 1948-1979. Voltam a ser publicados com alguns retoques formais, com a elimi­ nação de palavras circunstanciais, com a supressão, no que foi possível, de repetições decorrentes do seu caráter de discursos pronunciados em ocasiões análogas, e com o acréscimo de notas ilustrativas sobre pessoas, livros e acon­ tecimentos mencionados no texto. Passaram-se quarenta anos desde a publicação de meu primeiro livro pela Einaudi. Desde então, saíram outros nove. Este, portanto, é o décimo primeiro. Aproveito o ensejo para anunciar que ainda haverá um último — já em andamento — , mas cuja elaboração requer tempo. Espero não venha à luz póstumo.

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Primeira Parte

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A V elhice O fe n d id a

é um tema não-acadêmico. Sou um velho pro­ A velhice fessor. Permitam-me falar, desta feita, não como pro­ fessor mas como velho. Falei tantas vezes como professor que corro o risco de me repetir, risco ainda mais grave porque, como todos sabem, os velhos professores são tão apaixonados por suas próprias idéias que estão tentados a retornar a elas com insistência. Venho notando que muitas coisas que escrevi nestes últimos anos são com freqüência variações sobre o mesmo tema. N unca falei em público sobre minhas experiências de velho a não ser por alusões1, e no entanto venho me obser­ vando há tempos. Desde quando? N estes últimos anos o limiar da velhice deslocou-se em cerca de duas décadas. Aqueles que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de sessenta anos. H oje um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, por­ que chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. O octogenário, salvo exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática mas fisiológica, começa quando nos aproximamos dos oitenta, que é afinal1 1 Ver: Prefazione a F. Santarena e M. G. Breda, Vecchi da morire, Resenberg & Sellier, Turim, 1987, pp. 3-6; I valori ed i diritti um ani degli anziani cronici non sufficienti, in Vários autores, Eutanasia da abbandono, Rosenberg & Sellier, Turim, 1988, pp. 47-59; L ’età dei tempo libero, in Vários autores, V anziano attivo. Proposte e riflessioniper la terza e la quarta età, Fondazione Agnelli, Turim, 1991, pp. 11-13.

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a idade média de vida, também em nosso país, um pouco menos para os homens, um pouco mais para as mulheres. O deslocamento foi tamanho que o curso da vida humana, tradicionalmente dividido em três idades, inclusive em trabalhos sobre o tema do envelhecimento e em documen­ tos oficiais, foi prolongado para aquela que se convencio­ nou chamar de “quarta idade”. N o entanto, não há nada que melhor comprove a novidade do fenômeno do que consta­ tar a inexistência de uma palavra para designá-lo: mesmo nos documentos oficiais, aos âgés seguem-se os très âgés. Quem lhes fala é um très âgé perfeitamente definido. Vocês sabem muito bem que, ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe tam­ bém a velhice psicológica ou subjetiva. Biologicamente, considero que minha velhice começou no limiar dos oitenta anos. N o entanto, psicologicamente, sempre me considerei um pouco velho, mesmo quando jovem. Fui velho quando era jovem e quando velho ainda me considerava jovem até há poucos anos. Agora penso ser mesmo um velho-velho. Exercem importância determinante sobre esses estados de ânimo também as circunstâncias históricas, aquilo que acon­ tece à nossa volta, tanto na vida privada (por exemplo, a morte de uma pessoa querida), quanto na vida pública. N ão escondo que nos anos de contestação, quando surgiu uma geração rebelde aos pais, senti-me de súbito envelhecido (eu já completara sessenta anos). Das crises de velhice psicológica podemos nos recuperar. Mais difícil é nos re­ cuperarmos do envelhecimento biológico, mesmo que hoje a medicina e a cirurgia façam milagres. A segunda crise histórica, muito mais grave, é aquela ocorrida no mundo, com graves efeitos também na Itália nestes últimos anos, o que parece dar razão àqueles que interpretam o curso da história segundo a passagem de uma geração para outra. Com o muitos de meus coetâneos, saí muito mais arrasado

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A V elhice O fendida

dessa segunda crise do que da primeira, ao ponto de algu­ mas vezes ter a sensação de sobreviver a mim mesmo. Quando escolhi o tema, que há tempos vinha remo­ endo no espírito, não imaginei que ele também chegaria a ser atual, ainda que de atualidade efêmera. E destes dias, depois das eleições de março de 1994 e da renovação — em grande parte generativa — da nossa classe dirigente, o inesperado reacender da antiga e sempre nova querelle dos jovens contra os velhos. Vivi em pessoa esses acontecimen­ tos, que apresentaram também alguns aspectos grotescos, quando tudo levava a crer que os poucos senadores vitalí­ cios, que em sua maior parte são, como eu, ultra-octogenários, mesmo sendo apenas uma minoria negligenciável e em geral negligenciada, levariam à vitória, com seus votos, o candidato da oposição. Aqueles que outrora seriam chama­ dos com certa solenidade — admito que hoje pareceria um tanto ridícula — de anciãos, foram chamados sem muita cerimônia de “aqueles velhões”. Também houve quem, como um grande maestro que sente prazer na maledicência, fizesse o comentário: “Era lindo ver o triste desfile dos senadores vitalícios, cada um mais cadavérico que o outro; uma velha Itália que ninguém quer mais e que sozinha sepultou a si mesma.” Com o afinal acontece cada vez mais em tempos de inflação de papel impresso, o tema teve alguns dias de glória, tanto que um jornal, resumindo o debate, intitulou-o “Juventude, juventude”2. ' Pietro Buscaroli, conhecido e erudito musicólogo, escreveu na mesma ocasião para II G iornale de Io de maio de 1994 um artigo contra Paolo Emilio Taviani, também ele senador vitalício: "“São velhos baluaítes, dará de ombros o otimista. Velhos, mas podres de tanto veneno e rancor, e o mal que podem causar demonstrou a votação para o presidente do Senado. Justamente aquelas figuras venenosas, sobras ilícitas e condenáveis do regime das bombas e das tangentes, por pouco voltavam a jogar aos nossos pés o roliço patriarca da política da conciliação, para o próprio uso e consumo. Agora o 25 de abril passou, e com ele os fantasmas e os íncubos sobre os quais Taviani depositava suas esperanças e as de seus amigos. Mas a herança maligna desse tempo ainda não se esgotou.” (P. Buscaroli, ‘Taviani nega tutto o quasi ma arranca nella confusione”, in // Giornale, Io de maio de 1994, pp. 1 e 6).

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M as que S a b e d o r i a ?

ntendamo-nos, a marginalização dos velhos em uma época em que a marcha da história está cada vez mais acelerada é um dado de fato que é impossível ignorar. N as sociedades tradicionais e estáticas, que evoluem lentamen­ te, o velho reúne em si o patrimônio cultural da comunida­ de, destacando-se em relação a todos os outros membros do grupo. O velho sabe por experiência aquilo que os outros ainda não sabem e precisam aprender com ele, seja na esfera da ética, seja na dos costumes, seja na das técnicas de sobrevivência. N ão apenas não se alteram as regras fundamentais que regem a vida do grupo e dizem respeito à família, ao trabalho, aos momentos lúdicos, à cura das doenças, à atitude em relação ao mundo do além, ao rela­ cionamento com os outros grupos, como também não se alteram, e passam de pai para filho, as habilidades. N as sociedades evoluídas, as transformações cada vez mais rá­ pidas, quer dos costumes, quer das artes, viraram de cabeça para baixo o relacionamento entre quem sabe e quem não sabe. Cada vez mais, o velho passa a ser aquele que não sabe em relação aos jovens que sabem, e estes sabem, entre outras razões, também porque têm mais facilidade para aprender. Já Campanella, ao fim de A Cidade do Sol, fez com que o viajante dissesse: “ Oh, se soubesses o que dizem sobre a astrologia e sobre nossos próprios profetas e hebreus e outras gentes deste nosso século; há mais história em cem

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anos do que o mundo jamais teve em quatro mil, e mais livros foram escritos nestes cem do que em cinco mil.” H oje não deveriamos dizer cem, mas dez. Quando falava sobre os livros, Campanella aludia à invenção da imprensa, mais precisamente a uma invenção técnica, assim como é uma invenção técnica o computador; e também este au­ mentou de tal maneira o número de livros que hoje prova­ velmente são impressos em um ano tantos quantos foram impressos durante todo o século ao qual Campanella se refere. Todavia, não devemos considerar apenas o fato obje­ tivo, ou seja, a rapidez do progresso técnico, em especial a produção de instrumentos que multiplicam o poder do homem sobre a natureza e sobre os outros homens, e o multiplicam tão rapidamente que deixam para trás quem pára no meio do caminho, ou porque já não consegue ir adiante ou porque prefere deter-se para refletir sobre si mesmo, para voltar-se para dentro de si mesmo, onde, dizia Santo Agostinho, habita a verdade. Para aumentar a marginalização do velho contribui também um fenômeno que existe em todas as épocas: o envelhecimento cultural, que acompanha tanto o envelhecimento biológico quanto o social. O velho, como observou Jean Améry no livro Rivolta e rassegnazione. SuWinvecchiare (Revolta e resignação. Sobre o envelhecimento)71, tende a manter-se fiel ao sistema de princípios ou valores aprendidos e interiorizados no período que vai da juventude à maturidade, ou até mesmo apenas aos seus hábitos, que, uma vez formados, é penoso modificar. Com o o mundo ao seu redor muda, tende a fazer um juízo negativo sobre o novo, apenas porque já não o entende, e já não tem vontade de se esforçar para compre­ endê-lo. Proverbial é a figura do velho laudator temporis acti: “Fiorenza dentro da la cerchia antica/ ond’ella toglie 3 J. Améry, Rivolta e rassegnazione. Sultinvecchiare, apresentação de C. Magris, Bollati Boringhieri, Turim, 1988.

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ancora e terza e nona/ si stava in pace, sóbria e pudica. ” Quando fala do passado, o velho suspira: — N o meu tempo... Quando avalia o presente, pragueja: — Que tempo! Quanto mais firme se mantém nos pontos de referên­ cia do seu universo cultural, mais o velho estranha seu próprio tempo. Reencontrei-me nesta frase de Améry: “ Quando o velho percebe que o marxista, por ele certamen­ te e não sem motivo considerado o campeão do exército racionalista, hoje se reconhece em certas frases de Heidegger, deve ter a impressão de que o espírito da época está desencaminhado, ou melhor, autenticamente dissociado: a matemática filosófica da sua época se transforma em um quadrado mágico.”4 Os sistemas filosóficos sucedem-se em um processo que é interpretado por quem o vive como uma sucessão não de superações, mas de retrocessos. O sistema com o qual acreditamos poder superar o precedente acaba afinal superado por aquele que lhe sucede. E nós, à medida que avançamos nos anos, não percebemos que nos torna­ mos afinal superadores superados. Ficamos imóveis entre dois estranhamentos, o primeiro em relação ao sistema precedente, o segundo em relação ao seguinte. Tanto mais grave é esta sensação de estranhamento quanto mais rápida é, também neste campo, a sucessão de sistemas culturais. N ão temos nem tempo para aprender — limito-me a dizer “apreender”, não digo nem ao menos “assimilar” — uma corrente de pensamento e já surge outra. N ão é de todo errado falar de “m odas”. Sou tomado de vertigem ao pensar a quantas ascensões e quedas, a quantas aparições fulguran­ tes seguidas de repentinos trambolhões, a quantas súbitas passagens da memória ao esquecimento uma pessoa com a minha idade já assistiu. N ão é possível correr atrás de todas D ivin a C om édia, canto XV: “Sóbria, casta, Florença em paz vivia,/De antigos muros cinta, e aí se ergue/Templo, que ainda hoje as horas marca.” (Trad. do Barão da Vila da Barra) 4 Ibid., p. 103.

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elas. N um certo ponto você é obrigado a parar ofegante e a consolar-se dizendo: — N ão vale a pena. Existe um momento, observa Améry, que marca “o fim da possibili­ dade de ir para além de si mesmo no sentido cultural”5. Sugere também que seja aos cinqüenta anos o momento da guinada. N ão convém generalizar. N o entanto, eu mesmo es­ tou pronto a reconhecer que há uma série de obras filosó­ ficas, literárias e artísticas que já não entendo e que rejeito por não conseguir entender. O nosso pensamento corre em direção ao “espírito do tem po” hegeliano. Tomemos a oposição entre classicismo e romanticismo que divide um longo período histórico em meio ao qual há um aconteci­ mento devastador como a Revolução Francesa. H oje talvez não nos seja possível estabelecer uma divisão assim tão nítida. N ão houve nada de similar nestes últimos cinqüenta anos, em que assistimos a uma sucessão de tendências e personalidades, que emergem e submergem, rapidamente tragadas por ondas sucessivas. Tomemos um personagem como Sartre e, depois dele, para continuar na França, Lévi-Strauss, Foucault, Althusser. Quando se tem muitos mestres, não se tem nenhum. A única divisão que propusemos é aquela entre o moderno e o pós-moderno, mas é bastante singular que para esta novidade do nosso tempo não tenhamos até agora encontrado um nome, a não ser acrescentando um fragilíssimo “pós” à época precedente. “Pós” quer dizer sim­ plesmente “que vem depois”.

5 Ibid., p. 112.

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Retórica e Anti-retórica

j ã o ignoro que existe em nossa história literária uma 1 N longa tradição retórica de pequenos tratados que pre­ tendem exaltar a virtude e a felicidade da velhice, desde o De senectute de Cícero, escrito em 44 a.C., quando o autor contava 62 anos, até o Elogio delia vecchiaia (Elogio da velhice), de Paolo Mantegazza, surgido no fim do século passado e escrito com a idade de 64 anos. Essas obras constituem um gênero literário particular e verdadeiro, no qual, a par da apologia da velhice, se faz a desdramatização da morte. O tema é tratado por Cícero segundo o módulo clássico do desprezo pela morte6. Também os jovens mor­ rem. E para que nos preocuparmos se a alma sobrevive ao corpo? “A natureza deu-nos um albergue para nele nos hospedarmos, e não para morar permanentemente. Belo será o dia em que partirei rumo àquele divino reencontro e concilio das almas, e me afastarei desta multidão confusa.” De maneira mais prosaica o positivista darwiniano Mante­ gazza liberta-se do pensamento da morte com um peremptó­ rio: “Basta não pensar nela7.” Por que nos atormentarmos com o pensamento da morte? Afinal a morte nada mais é que o retorno à natureza, para onde confluem todas as coisas. 6Ver também P. Laslett, U na nuova mappa delia vita. Uemergere delia terza età, 11Mulino, Bolonha, 1992, no qual, contra a retórica da velhice, considera prolixa a obra de Cícero. Para um elenco de lugares-comuns sobre a velhice, ver a rubrica “Nudi al 2000”, de Ugone di Certoit [G. Ceronetti] no jornal L a Stampa, de 3 de março de 1996. 7 P. Mantegazza, Elogio delia vecchiaia, Treves, Milão, 1895, p. 189.

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Retórica e A nti-retórica

N ão preciso dizer que considero estas obras apologéticas, maçantes. Tanto mais enfadonhas quanto mais a velhice se transformou, como eu vinha dizendo, em um grande e pendente problema social, difícil de solucionar não apenas porque o número de velhos cresceu, mas também porque aumentou o número de anos que vivemos como velhos. Mais velhos e mais anos de velhice: multipliquemos os dois números e obteremos a cifra que revela a excep­ cional gravidade do problema. Um médico contava-me que se viu um dia entre doentes que falavam sobre a velhice e que, como é natural, se lamentavam. Mas um deles inter­ veio: — N ão é que a velhice seja ruim. O problema é que dura pouco. Será mesmo que dura pouco? Para muitos velhos doentes, e que não são capazes de se sustentar, dura, ao contrário, muito! Quem vive rodeado de velhos sabe que para muitos deles a idade avançada tornou-se — graças também aos progressos da medicina, a qual, muitas vezes, nem tanto nos faz viver quanto nos impede de morrer — uma longa, e não raro impaciente, espera pela morte. N em tanto um continuar a viver, mas um não poder morrer. Dario Bellezza escreveu: Fugace è la giovinezza/un soffio la maturità/avanza tremendaivecchiaia e dura/una eternitâ. (“Fugaz é a juventude/um suspiro a maturidade/avança terrível/velhice e dura/uma eternidade” .) E, contudo, também hoje existe uma retórica da velhi­ ce que não assume a forma, aliás nobre, da defesa da última idade contra o escárnio, quando não do mais completo desprezo, frutos da primeira, mas se apresenta, sobretudo através das mensagens televisivas, com uma forma disfar­ çada e aliás eficientíssima de captatio benevolentiae dirigida aos eventuais novos consumidores. N essas mensagens não o velho, mas o ancião, termo neutro, aparece bem apessoado, sorridente, feliz de estar no mundo, porque pode enfim desfrutar de um tônico particularmente fortificante, ou de férias particularmente atraentes. E assim também ele 25

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se transforma em um celebradíssimo membro da sociedade de consumo, trazendo consigo novas demandas de merca­ dorias, bem-vindo colaborador da ampliação do mercado. Em uma sociedade onde tudo pode ser comprado e vendi­ do, onde tudo tem um preço, também a velhice pode transformar-se em uma mercadoria como todas as outras. Basta olhar ao redor, dar uma espiada nas casas de repouso e nos hospitais, ou nos pequenos apartamentos dos pobres que têm um velho em casa para cuidar e tratar continua­ mente porque não pode ser deixado sozinho nem por um instante, para perceber quanto é falsa a representação não desinteressada, mas interessada aduladora, do “velho é lin­ do” . Fórmula banal, adaptada à sociedade de consumo, que substituiu o elogio do velho virtuoso e sábio8. Sobre as condições dos velhos pobres, remeto às nu­ merosas pesquisas em que cabe a eles mesmos traduzir seu doloroso testemunho e aquele, não menos doloroso e em certos casos ainda mais comovente, dos familiares. Refirome em especial, porque delas participei, a algumas coletâ­ neas de textos e testemunhos como Vecchi da morire (Ve­ lhos de morrer) ( 1987), e Eutanasia da ahhandono (Eutaná­ sia de abandono) (1988), publicadas nos Quaderni di promozione sociale (Cadernos de promoção social) sob a direção de Mario Tortello. Recomendo sobretudo o pequeno livro de Sandra Petrignani, Vecchi9, cuja leitura ao mesmo tempo me fasci­ nou e me perturbou, tão intensa e eficiente é a repre­ sentação do mundo dos velhos dos asilos. Fez-me refletir sobre o tema da vida e da morte mais que qualquer ensaio filosófico. Quase todos os velhos que fazem confidências à autora já não têm esperança. Quase nunca vem à tona nem 8 Sobre a ocultação da velhice, a aparência de juventude dos velhos imposta pelo consumismo, e outras observações sobre o assunto, ver A. Spagnoli, “ (—) e divento sempre p iú vecchio” . Ju n g , Freud, la psicologia dei profondo e 1'invecchiamento, Bollati Boringhieri, Turim, 1995, pp. 145 ss. 9 Sandra Petrignani, Vecchi, Theoria, Roma-Nápolis, 1994.

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mesmo a esperança religiosa. São pessoas literalmente de­ sesperadas. Um a viúva de 85 anos cujo filho morreu em um acidente escreve: “A vida é sempre um erro. Por nada no mundo eu a reviveria (...). N ão existe uma vida bonita, para ninguém, em nenhum lugar.” Um arquiteto de 81 anos cuja mulher faleceu diz: “As pessoas acreditam estar apegadas aos objetos, às recordações, às suas coisas. Levam uma vida inteira para construir sua casa, seu cantinho, suas poltronas. E então, um dia, nada mais importa. N ada m esmo.” Uma velha de 85 anos, que depois da morte do marido “deixou de viver”, afirma: “N ão devo me pôr a chorar, tudo é tão terrível (...). E impossível imaginar o que é esta espera pelo nada. E impossível. Eu não sei explicar. Só tenho vontade de chorar”; “E como se nossa vida nunca tivesse existido, e eu, pouco a pouco, estou me esquecendo de tudo, então vou morrer e não se falará mais nisso.” A velha bordadeira, solteirona, cuja única amiga se suicidou, conta: “Durmo. Quando não durmo, choro. Tenho vontade de dar com a cabeça na parede. Tenho 83 anos. São muitos. Eu já devia ter morrido. Afinal, não sou importante para ninguém, ninguém no mundo sabe que eu existo.” Uma velha mãe recorda a filhinha morta, há muito tempo, com apenas seis anos, e não encontra paz: “Depois da morte dela foi terrível. Nunca mais tive um só dia de alegria (...). O mundo sempre me deu medo, a velhice é apenas um aborrecimento a mais. Com o se pode ser feliz em um mundo tão feio? As coisas são indiferentes à nossa sorte, a natureza é indiferente, Deus é indiferente.”

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estranho que nesses testemunhos não figurem as habil l t tuais atitudes frente à morte: o medo e a esperança. O medo é contrastado pelo taedium vitae, que faz da morte um destino que não se deve temer, mas desejar. A esperança — que pode acudir o sofredor até em situações que parecem desesperadoras, e é a esperança de cura, ou de um caminho para uma nova vida — opõe-se o cupio dissolví, ou o desejo de dissolução, de deixar de existir. Taedium vitae e cupio dissolví, por sua vez, nada têm a ver com o contemptus mundi dos místicos, para quem a vida é igualmente mise­ rável, mas a miséria é o fruto não de um Deus indiferente ou mau, mas de uma culpa, e o desprezo pelo mundo é “a natural passagem para a ascensão a D eus”. Ora, para aquele que julga que a vida é tédio e desejo de se anular, a morte é o ansiado repouso depois do desmedido e inútil esforço de viver. Já sc escreveu: “A minha força vital está tão desfeita que já não consegue ver para além do sepulcro, já não consegue temer e desejar nada mais além da morte. N ão posso pensar em um Deus tão impiedoso a ponto de acordar alguém que dorme morto de cansaço aos seus pés.”10 O velho satisfeito consigo mesmo da tradição retórica e o velho desesperado são duas situações extremas. A eles me referi com especial destaque para induzir-nos a refletir 10 Ver R. Schneider, Winter in Wien, citado por R. Egenter, Sulla vecchiaia, Queriniana, Brescia, 1976, p. 314.

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mais uma vez sobre a variedade de nossos sentimentos em relação à vida no pluriverso de valores contraditórios em que nos movemos e, portanto, sobre a dificuldade de com ­ preender o mundo e, dentro do mundo, a nós mesmos. Entre esses dois extremos existe uma infinidade de outros modos de viver a velhice: a aceitação passiva, a resignação, a indiferença, a camuflagem de quem está obstinado em não ver as próprias rugas e o próprio enfraquecimento e se impõe a máscara da eterna juventude, a rebelião consciente através do esforço contínuo, muitas vezes destinado ao fracasso, de continuar de modo inflexível o trabalho de sempre, ou, ao contrário, o distanciamento da agitação quotidiana e o recolhimento na reflexão ou na prece, o viver esta vida como se já fosse a outra, dissolvidos todos os vínculos mundanos. A velhice não está separada do resto da vida que a precede: é a continuação de nossa adolescên­ cia, juventude, maturidade. Escreve o poeta: “La giovinezza chiama la vecchiaia attraverso gli anni spossati:/cche hai t r o v a t o l e grida, *che hai cercato?’/ ‘Quello che tu hai trovato\ risponde la vecchiaia, lacrim ando:/‘Quello che tu hai c e r c a t o (“A juventude chama a velhice através dos cansa­ dos an os:/cO que encontraste?’, grita a ela, £o que procu­ raste?’/ cAquilo que tu encontraste’, responde a velhice, chorando:/‘Aquilo que tu procuraste’.”) 11 Reflete nossa visão da vida e modifica nossa atitude em relação a ela, segundo a maneira pela qual concebemos a vida, como uma inacessível montanha que temos de escalar, ou como um rio onde estamos imersos e que corre lento para a foz, ou como uma selva na quaf vagamos sempre incertos sobre o caminho a seguir para chegar a uma clareira. Existe o velho sereno e o melancólico, o que chegou tranqüilo ao fim de seus dias e está satisfeito, o inquieto que recorda sobretudo as próprias quedas e espera trêmulo a última, da qual já não1 11 Dylan Thomas, Poesie inedite, Einaudi, Turim, 1980, p. 73.

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conseguirá se levantar; quem saboreia a própria vitória e quem não consegue apagar da memória as próprias derro­ tas. O velho, já meio demente, pesado não para si mesmo, mas para os outros, vítima de uma cruel penitência cuja causa ele e nós ignoramos. Cosima, a protagonista do livro de Petrignani, diz com doçura: “ O s amalucados são fantás­ ticos, são como crianças doidas. Seguem qualquer fantasia que possam os ter, até já não sabermos o que é fantasia e o que é a realidade deles, a vida que tiveram e esqueceram, ou quiseram esquecer.” O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Dizem os: afinal, som os aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: som os aquilo que lembramos. Além dos afetos que alimentamos, a nossa riqueza são os pensamen­ tos que pensamos, as ações que cumprimos, as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais som os o único guardião. Que nos seja permitido viver enquanto as lembranças não nos abandonarem e enquanto, de nossa parte, pudermos nos entregar a elas. A dimensão na qual o velho vive é o passado. O tempo do futuro é para ele breve demais para dedicar seus pensamentos àquilo que está por vir. A velhice, dizia aquele doente, dura pouco. Mas justa­ mente porque ela dura pouco é que devemos empregar o tempo menos para fazer projetos para um futuro distante ao qual já não pertencemos, e mais para tentar entender, se pudermos, o sentido ou a falta de sentido de nossa vida. Concentremo-nos. N ão desperdicemos o pouco tempo que nos resta. Percorramos de novo nosso caminho. As recordações virão em nosso auxílio. N o entanto, as recor­ dações não aflorarão se não as formos procurar nos recan­ tos mais distantes da memória. O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com freqüência porque é des­ gastante ou embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. N a rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa iden­ 30

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tidade, não obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos. Encontramos os anos que se perderam no tempo, as brincadeiras de rapaz, os vultos, as vozes, os gestos dos companheiros de escola, os lugares, sobretudo aqueles da infância, os mais distantes no tempo e, no entanto, os mais nítidos na memória. Eu poderia descrever passo a passo, pedra a pedra aquela estrada dos campos que percorríamos quando rapazes para chegar a uma herdade um pouco fora de mão. Quando percorremos uma vez mais os lugares da memória, os mortos perfilam-se em torno de nós em nú­ mero cada vez maior. A maior parte dos que nos acompa­ nharam já nos abandonou. Mas não podemos apagá-los como se nunca tivessem existido. N o momento em que os trazemos à mente, os fazemos reviver e ao menos por um instante não estão de todo mortos, não desapareceram no nada: o amigo que morreu ainda rapaz em um acidente na montanha, o companheiro de escola e de brincadeiras que caiu com seu avião durante a guerra, cujo corpo a família esperou durante anos, e que nunca foi encontrado. N ão sabemos por quê. A morte de Leone Ginzburg em uma prisão de Rom a durante a ocupação alemã. O suicídio de Pavese. E ainda não sabemos por quê. Mencionei muitas maneiras de viver a velhice. Alguém poderia me perguntar: — E você, como a vive? N esta última parte do meu discurso penso ter dado a resposta. Direi em resumo que tenho uma velhice melancólica, a melancolia subentendida como a consciência do não-realizado e do não mais realizável. A imagem da vida corresponde a uma estrada cujo fim sempre-se desloca para a frente, e quando acreditamos tê-lo atingido, não era aquele que imaginára­ mos como definitivo. A velhice passa a ser então o momen­ to em que temos plena consciência de que o caminho não apenas não está cumprido, mas também não há mais tempo para cumpri-lo, e devemos renunciar à realização da última etapa. 31

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A melancolia é suavizada, todavia, pela constância dos afetos que o tempo não consumiu.

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Segunda Parte

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dois anos desde que escrevi as páginas pre­ Passaram-se cedentes. Agora me aproximo dos 87 anos. O s dois mestres de minha geração, Benedetto Croce (1866-1952) e Luigi Einaudi (1874-1961), admirados também por sua velhice laboriosa, morreram; o primeiro aos 86 anos, o segundo aos 87. N unca imaginei viver tanto. N ão me lembro de pes­ soas que morreram com mais de oitenta anos em minha família paterna, nem na materna. A única que ficou presen­ te na minha memória é uma bisavó paterna. M eu pai, com quem me pareço, cuja idade nunca acreditei ultrapassar, morreu aos 65 anos. Entrei na casa dos sessenta quando começaram, também na Itália, os anos da “ contestação”, quando os filhos se rebelaram contra os pais. Senti-me de súbito envelhecido. Escrevi: “ Seria insensato, além de inú­ til, maquiar-se para fazer desaparecer as rugas e fingir uma juventude que já ficou para trás.”1Passaram-se outros vinte anos. Fui um garoto frágil, um adolescente excluído, para minha vergonha, das aulas de ginástica devido a um a doença infantil que continua, ao menos para mim, misteriosa. Restou-m e então a sensação do esforço de viver, de um permanente e invencível cansaço que se agravou com a 1 N. Bobbio, U na filosofia militante. Studi su C ario Cattaneo, Einaudi, Turim, 1971,

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A melancolia é suavizada, todavia, pela constância dos afetos que o tempo não consumiu.

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dois anos desde que escrevi as páginas pre­ Passaram-se cedentes. Agora me aproximo dos 87 anos. Os dois mestres de minha geração, Benedetto Croce (1866-1952) e Luigi Einaudi (1874-1961), admirados também por sua velhice laboriosa, morreram; o primeiro aos 86 anos, o segundo aos 87. N unca imaginei viver tanto. N ão me lembro de pes­ soas que morreram com mais de oitenta anos em minha família paterna, nem na materna. A única que ficou presen­ te na minha memória é uma bisavó paterna. Meu pai, com quem me pareço, cuja idade nunca acreditei ultrapassar, morreu aos 65 anos. Entrei na casa dos sessenta quando começaram, também na Itália, os anos da “contestação”, quando os filhos se rebelaram contra os pais. Senti-me de súbito envelhecido. Escrevi: “Seria insensato, além de inú­ til, maquiar-se para fazer desaparecer as rugas e fingir uma juventude que já ficou para trás.”1Passaram-se outros vinte anos. Fui um garoto frágil, um adolescente excluído, para minha vergonha, das aulas de ginástica devido a uma doença infantil que continua, ao menos para mim, misteriosa. Restou-me então a sensação do esforço de viver, de um permanente e invencível cansaço que se agravou com a 1N. Bobbio, U na filosofia militante. Studi su C ario Cattaneo, Einaudi, Turim, 1971,

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idade. O cansaço como estado natural é há muitos anos o tema habitual de minhas lamentações nas conversas e nas cartas. Meus amigos as consideram um hábito, quase um vício e não me levam muito a sério. Recentemente eu disse a um velho amigo: — Estou piorando, piorando dia a dia. — E ele respondeu com ar levemente irônico: — Faz vinte anos que você diz a mesma coisa. A verdade é que — é difícil explicar aos mais jovens — a descida em direção a nenhum lugar é longa, mais longa do que eu jamais imaginara, e lenta, a ponto de parecer quase imperceptível (mas não para mim). A descida é contínua e, o que é pior, irreversível: você desce um pequeno degrau de cada vez, mas ao colocar o pé no degrau mais baixo sabe que nunca mais vai retornar ao degrau mais alto. Quantos ainda existem eu não sei. Mas de uma coisa não tenho dúvida: restam cada vez menos. Apesar de tudo isso, apesar de minhas apreensões e presságios, apesar de minhas obsessões e previsões pouco alegres, continuo aqui, depois de mais de dois anos desde meu discurso sobre a velhice, sentado diante da escrivani­ nha de meu grande escritório, com suas quatro paredes forradas de livros, cada vez mais inúteis, iluminado por duas grandes janelas. Um a que dá para a colina, a outra de onde se pode ver, através de uma avenida muito comprida, as montanhas distantes. Aparentemente nada mudou. N a ver­ dade, muitas coisas mudaram em pouquíssimos anos, seja no mundo, a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria e do império soviético, seja na Itália, com as eleições de 5 de abril de 1992, o início da fase de transição da primeira para a segunda república, seja em mim, a começar pelo ano de 1988, no limiar dos oitenta anos, com os primeiros incômodos da verdadeira velhice, não daquela apenas ima­ ginada ou temida. A sensação que experimento em estar ainda vivo é sobretudo de assombro, quase de incredulida­ de. N ão sei explicar por que ventura, protegido, sustentado, amparado pelas mãos de quem, consegui superar todos os 34

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obstáculos e perigos até mortais, doenças, acidentes, desas­ tres naturais, as infinitas desgraças pelas quais a vida huma­ na é assolada desde a hora em que nasce. Com freqüência volta à minha mente este trecho de Achille Campanile — o humorista mais amado de minha geração — , que li há muitos anos: “Esses velhos sempre me espantaram. Com o é que conseguiram superar sãos e salvos tantos perigos e chegar à idade avançada? Com o fizeram para não morrer atropelados, como lograram superar as doenças mortais, como conseguiram evitar uma telha, uma agressão, um acidente de trem, um naufrágio, um raio, um tombo, um tiro?... Realmente, esses velhos devem ter parte com o demônio! E alguns deles ainda ousam atravessar a rua lentamentc... estarão loucos?” 2 Estou louco. Cada vez mais trôpego, as pernas cada vez mais fracas, apoiando-me à bengala e amparado por minha mulher, ainda atravesso a rua. A maior parte dos amigos com quem dividi durante anos meus interesses de estudos, minhas paixões, meus ideais, já não a atravessam mais, e, no entanto, pareciam bem mais robustos do que eu. Penso em Luigi Firpo, em Massimo Mila, em Giorgi Agosti, em Franco Venturi. A fortuna tem os olhos venda­ dos, mas o infortúnio, costuma dizer um de meus filhos que é médico, enxerga muito bem: quando agarra um doente, não lhe dá trégua enquanto não o deixa completa­ mente extenuado. Até agora estive sob a proteção daquela que não vê, cujos protegidos, justamente porque foram escolhidos às cegas, dela não podem se vangloriar. Mas não estou em condições de responder à pergunta: — Até quan­ do? N ão sei nem mesmo se meu fim será devido ao acaso, imprevisível e imponderável, ou ao destino, e portanto a um acontecimento previsto e ponderado, desde o início de meus dias, por um poder que desconheço. N ão sei, nem " A. Campanile, Opere , organização de O. Del Buono, Bompiani, Milão, 1989, vol. II, pp. 1470-71.

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quero saber. O acaso explica muito pouco, a fatalidade explica demais. Só a crença na vontade livre, se é que a liberdade de querer não é também ela uma ilusão, nos ajuda a acreditar que somos donos de nossa própria vida. N o entanto, ainda que em geral ninguém deseje morrer (exis­ tem exceções, mas não muitas, e em geral suscitam escân­ dalo), a morte chega igualmente para todos. Se ela é pro­ duto do acaso ou da necessidade não tem muita importância para quem morre. Que um acontecimento ocorra por “obra do acaso”, como dizem os juristas, o que implica que também podia não ocorrer, ou por “força maior”, o que implica que não podia deixar de ocorrer, a conseqüência é uma só: a de nos eximir da responsabilidade por aquilo que aconteceu. N o caso de um acontecimento nefasto como a morte, atribuí-lo a um fato que não era previsível, ou a um fato que estava previsto desde a eternidade, tem talvez apenas uma função consoladora: — N ão havia como evitar. D o próprio destino, que é em essência ignorado, e está portanto envolto em mistério — um dos muitos temas sobre os quais os filósofos travaram discussões interminá­ veis — só podemos falar com absoluta certeza quando está cumprido. Mas quando está cumprido, no exato momento em que está cumprido, o mistério deixa de existir. O cumprimento do destino misterioso não tem, ao contrário, nada de misterioso. E um acontecimento que em nada difere de tantos outros que ocorrem a cada dia diante dos olhos de todos. Entre o destino ignorado enquanto não está cumprido e o acontecimento que o realiza não há necessa­ riamente nenhuma relação. Isso não impede que um obser­ vador externo, devido à nossa necessidade vital de encon­ trar uma explicação racional para o ocorrido, e a explicação causai é aquela que mais nos satisfaz e consola, possa sustentar que o que aconteceu tinha de acontecer. D e minha morte só os outros podem falar. Posso contar minha vida através das recordações minhas e daque36

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. les que me foram próximos, mediante documentos, cartas e diários. Posso contá-la até os últimos minutos. N ão posso contar minha morte. Só os outros podem fazê-lo. Acudi­ mos a fazer uma visita de condolências aos parentes de um amigo. Estes se esforçam para dar-nos uma descrição mi­ nuciosa do instante do falecimento, repetem-nos as últimas palavras que talvez o próprio moribundo não tenha escu­ tado, descrevem-nos o último gesto do qual talvez não tenha tido consciência. Só eu não posso contar minha morte. Minha morte é imprevisível para todos, mas para mim é também indizível.

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mais indizível é aquilo que vem depois. Mas o que A inda vem depois? Estam os realmente certos de que vai acon­ tecer algo que mereça ser contado e que um dia alguém contará? O s homens são muito diferentes. Costum am os distingui-los com base em mil critérios, raça, nação, língua, costumes, inteligência, beleza, saúde, riqueza: é impossível e inútil enumerá-los todos. Sempre me surpreendi de que se dê tão pouca importância a um critério que deveria definir mais profundamente sua irredutível diferença: a crença ou não em um para além da morte. Que os homens sejam mortais é um fato. Que a morte real, que constatamos todos os dias ao nosso redor e sobre a qual não cessamos de refletir intimamente, não seja o fim da vida, mas a passagem para uma outra forma de vida imaginada de modo distinto e definida segundo os diferentes indivíduos, as diferentes religiões, as diferentes filosofias, não é um fato, é uma crença. Existem os que crêem e os que não crêem. Também existem os que não pensam no assunto e os que dizem (talvez a maioria): — Quem sabe! Desde rapaz, quando comecei a refletir sobre esses problemas, sempre me senti mais próximo dos que não crêem. Baseado em que argumentos? Poderiamos discutir ao infinito, mas aquilo que não consegui aceitar, e por um defeito meu, reconheço, é interromper a discussão bruscamente, recorrendo ao argumento pascaliano da aposta. Para o descrente, o argu38

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mento principal é a consciência da própria insignificância diante da imensidão do cosmo, um ato de humildade diante do mistério dos universos cuja desmesurada ou talvez incomensurável grandeza só agora — poderiamos dizer só desde ontem — começamos a perceber. A resposta do descrente exclui qualquer outra pergun­ ta. Para o crente, ao contrário, as perguntas mais angusti­ antes começam no momento em que ele admite a existência de uma outra vida depois da morte. Uma outra vida. Qual? Um a vez que nossa experiência não nos permite saber absolutamente nada, cada religião, cada vidente ou visioná­ rio, cada sábio que crê ou finge saber, cada homem, mesmo o mais simples que se assusta diante da perspectiva de sua própria morte ou não se conforma com a morte da pessoa amada, dá a sua própria resposta. Todas as respostas são igualmente críveis. O mundo, do qual conheço apenas alguns pequenos fragmentos através da minha experiência e da experiência acumulada e transmitida ao longo dos séculos por milhares e milhares de homens que viveram antes de mim, é um só. O s mundos superiores, tão-somen­ te imaginados, são infinitos. O mundo superior de Platão não é o de Epicuro. O mundo superior dos hebreus não é o dos cristãos. Quando digo que não creio em uma segunda vida ou em quantas outras possam ser imaginadas depois desta (segundo a crença na reencarnação), não pretendo afirmar nada de peremptório. Quero dizer apenas que sempre me pareceram mais convincentes as razões da dúvida que aque­ las da certeza. Ninguém pode ter a certeza de um aconte­ cimento sobre o qual não existem provas. Também aqueles que acreditam, acreditam acreditar, para retomarmos o título de um livro recente de Gianni Vattimo. Eu acredito não acreditar. A meu ver, quem chegou à minha idade deveria ter um só desejo e uma só esperança: descansar em paz. Com

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freqüência retorna à minha mente uma breve prece que aprendi quando menino, que repeti não sei quantas vezes, recitando o terço: “Requiem aeternam dona eis, Domine”. São palavras que aparecem nos frontões dos cemitérios cristãos. N ão ignoro que a prece continua: “Et luxperpetua luceat eis” . Mas o descanso perfeito, tanto mais se eterno, requer não apenas o silêncio mas também a escuridão. A imagem do descanso e da luz são contrastantes entre si. Habitualmente associadas, ao contrário, são as do sono e da noite. A vida não pode ser pensada sem a morte. N ão é por acaso que os homens são chamados de “mortais”: até os indivíduos mais cínicos, mais estouvados e levianos, mais desdenhosos e indiferentes levam a sério, ao menos em algum momento da vida, a morte, se não dos outros, pelo menos a própria. O único modo de levá-la a sério é consi­ derá-la tal qual lhe aparece, quando se vê a imobilidade de um corpo humano que se transformou em cadáver: o oposto da vida, que é movimento. A morte levada a sério é o fim da vida, o fim último, um fim para além do qual não há um novo princípio. Respeita a vida quem respeita a morte. Leva a sério a morte quem leva a sério a vida, aquela vida, a minha vida, a única vida que me foi concedida, ainda que eu não saiba por quem, e ignore por quê. Levar a vida a sério significa aceitar firmemente, rigorosamente, da ma­ neira mais serena possível, a própria finitude. Significa saber com certeza, com absoluta certeza, que se vai morrer, que esta vida está inteiramente dentro do tempo, dentro do qual todas as coisas que existem estão fadadas a morrer, em nenhuma de suas partes fora do tempo. Canetti escreveu: “Quantas pessoas não descobriríam que vale a pena viver quando não mais tivessem de morrer?”3 O argumento mais forte para afirmar que a morte é o fim último, que a morte 3 E. Canetti, L a coscienza delleparole, Adelphi, Milão, 1989, p. 98.

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é mesmo a morte, é que se morre uma única vez. O fim da vida é ao mesmo tempo o fim primeiro e o fim último. Também aqueles que admitem uma segunda vida depois da morte não admitem uma segunda morte, porque a segunda vida, se existe, é eterna, é uma vida sem morte. A minha morte é o fim do meu eu singular, e somente ela é um fim absoluto. Muitas coisas no mundo da natureza e da história acabam por recomeçar. Depois do dia vem a noite, e então mais uma vez o dia. O s antigos possuíam uma visão cíclica da história e a fase que encerrava um ciclo estava destinada a reaparecer no ciclo seguinte. A alternância dos ciclos era infinita, assim como o eterno retorno de Nietzsche. Com a morte como fim último, a vida extingue-se. Chamamos “extinção” ao fim sem recomeço. A espécie dos dinossauros está extinta. A civilização suméria está extinta. A dinastia selêucida está extinta. Para Marx, o Estado estava destinado a extinguir-se. Aquilo que está extinto está para sempre acaba­ do. “Comme toutes les choses humaines ont une fin”, escreve Montesquieu, “PÉtat dont nous parlons, perdra sa liberté, il périra. Rome, Lacédémone et Chartage ont bien péri.” Sabem os tão pouco acerca desse mundo superior que o representamos segundo nossas esperanças e temores, segundo os sonhos que nos iludiram e os pesadelos que nos atormentaram, segundo os ensinamentos ou doutrinamentos que recebemos. Pode ser o remédio para nossos pró­ prios sofrimentos ou a recompensa para nossa própria infelicidade. O mundo do além deveria ser um mundo completamente diferente do mundo daqui. A única coisa sobre a qual não podemos ter dúvidas é que, se ele existe, é diferente. Mas diferente como? O s livros de ficção cien­ tífica esmeram-se em descrever outros mundos, mas são mundos construídos à imagem e à semelhança deste, ainda que seja com bizarras, extravagantes, elaboradas, mas não de todo inverossímeis, características. Continuam sendo mundos, não mundos superiores. 41

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A respeito do mundo superior no qual uma parte de nós, aquela destinada a não morrer, passaria a viver depois da morte, depois de termos deixado o nosso corpo apodre­ cer debaixo da terra ou depois de tê-lo inteiramente des­ truído mandando-o cremar, qualquer representação é p o s­ sível. N ão há limites para a nossa imaginação. Tenho curio­ sidade em saber como aqueles que acreditam na vida após a morte a representam. Curiosidade legítima: como pode­ riamos de outra maneira acreditar em alguma coisa sobre a qual não temos uma idéia nem uma imagem? São muitas as respostas possíveis. Uma das mais comuns, além daquela que vem de encontro à nossa tradição religiosa, segundo a qual o outro mundo seria o lugar onde se cumpre a justiça divina que premia os bons e castiga os maus, é aquela que provém da tradição popular, segundo a qual o mundo do além é o lugar onde os mortos encontram outros mortos, aqueles que em vida lhes foram mais caros: a mãe inconso­ lável reencontra a filha que morreu jovenzinha, a filha reencontra o pai morto na guerra quando ainda menina, do qual teve em vida apenas vaga lembrança, o velho marido que morreu sozinho em um asilo volta a abraçar a mulher e revive os anos mais felizes de sua vida4. Mas são justamen­ te essas simplórias e humaníssimas respostas que deixam transparecer a natureza ilusória da crença. São todas res­ postas que mostram um espasmódico apego à vida, o desejo de sobrevivência, em relação ao qual a sobrevivência na lembrança daqueles que nos conheceram, estimaram, ama­ ram, é um consolo demasiado tênue e efêmero. Mas quanto dura a lembrança? Em relação ao desejo ou esperança de imortalidade, quão breve é a lembrança no 4 Em um diálogo entre dois velhos que se correspondem dando notícias de suas vidas e de seus pensamentos, ela diz a ele: “Se pudéssemos pensar como Madame Chevreuse, que acreditava que quando morresse falaria com todos os seus amigos no outro mundo, seria um belo pensamento” (Ninon de Lenclos, Lettere sulla veccbiaia. Corrispondenza con Saint-Evrem ond, organização de D. Galateria, Sellerio, Palermo, 1994, p. 90).

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tempo! Apenas poucos homens, grandes no bem como no mal, deixam lembranças indeléveis e chegam de fato a ser chamados enfaticamente de “imortais”. Mas e os outros, a infinidade de outros que se perdem para sempre no tempo? Antes de meu irmão, o primogênito, meus pais tive­ ram uma menina que viveu três dias. Meu pai e minha mãe falavam muito sobre ela quando éramos pequenos. Mas depois, pouco a pouco, eles mesmos passaram a falar cada vez menos. Daquela breve vida restou apenas um leve traço em minha memória e em uma lápide minúscula no cemité­ rio da família. Quando também eu estiver morto, ninguém mais se lembrará dela. N o dia em que um de meus filhos, um de meus netos, visitar aquela tumba e ler o nome dela sobre a pequena lápide, perguntará: — Quem era? E não haverá ninguém para lhe dar uma resposta. Vinda do nada voltou ao nada depois de poucas horas de vida. Pode-se encontrar um sentido — que sentido? — para aquele sopro de vida do qual, no universo inteiro, apenas eu ainda trago uma lembrança que a cada dia se torna mais evanescente? C om a morte entramos no mundo do não ser, no mesmo mundo em que eu estava antes de nascer. Aquele nada que eu era não sabia nada de meu nascimento, de minha vinda ao mundo e do que eu viria a ser; o nada que serei não saberá nada do que fui, da vida e da morte dos que me eram próximos, de cuja presença se alimentavam meus dias, dos acontecimentos pelos quais me interessei dia após dia, lendo jornais, ouvindo rádio ou conversando com amigos. Se eu morrer antes de minha mulher, com quem dividi a vida por mais jie meio século, nada saberei sobre sua morte. Morrerá não apenas sem mim, mas sem que eu saiba. D a mesma forma, não saberei nada do que acontecerá a meus filhos, aos filhos de meus filhos, cuja vida se desen­ rolará para além do ano dois mil, nada do que ocorrerá sobre esta terra e das suas vicissitudes, em torno das quais fanta­ siei mil vezes, delas deduzindo presságios mais ou menos 43

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incertos, nada das guerras e das pazes, das transformações da sociedade na qual vivi, a cujas vicissitudes assisti e das quais participei intensamente. Tudo o que teve um princípio tem um fim. Por que minha vida não haveria de ter um fim também? Por que o fim de minha vida deveria ter, ao contrário de todos os acontecimentos, tanto naturais quanto históricos, um novo princípio? Só o que não teve um princípio não tem um fim. Mas o que não tem princípio nem fim é o eterno.

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m àosA dagia de Erasmo sobre a guerra, Bellurn dulce U inexpertis, traduz-se no dito popular: “Quem louva a guerra não a teve diante dos olhos.” Quando leio os elogios da velhice dos quais está abarrotada a literatura de todos os tempos, sinto-me tentado a tirar do provérbio erasmiano esta variante: “Quem louva a velhice nunca a teve diante dos olhos.” Para a ocultação dos incômodos da idade senil muito contribui, ainda que involuntariamente e com as melhores intenções, a “gaia ciência” da geriatria, da qual não coloco em discussão — além da eficácia dos meios que oferece para melhorar as condições do ancião, da qual eu mesmo obtive imensos benefícios — a nobreza do fim, que não é apenas aliviar os sofrimentos físicos, mas também paralelamente exortar quem está para entrar na última fase da vida a não se deixar dominar pelo temor, ou então pela obsessão, pela decadência, e a sentir-se um vencedor em relação aos que morreram jovens e que são, ao contrário dele, os vencidos. A velhice é a última fase da vida, representada na maioria das vezes como aquela da decadência, da degeneração, da parábola descendente de um indivíduo, mas tam­ bém, metaforicamente, de uma civilização, de um povo, de uma raça, de uma cidade. Dentro de uma visão cíclica é o momento no qual o ciclo termina. De fato, o inverno é representado como um velho decadente que caminha com dificuldade sob a neve. Um povo velho é um povo cujo 45

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destino é ser sujeitado por um povo jovem, bárbaro, sem história. N a díade jovem-velho, “jovem” denota o lado positivo do inteiro, “velho” o negativo. O jovem Adão contrapõe-se ao velho homem que deverá ser regenerado. A nova ordem a ser instaurada contrapõe-se à velha ordem que deverá ser sepultada sob seus escombros. O Velho e o N ovo Testamento. O “novo mundo” diante da velha Eu­ ropa. A Jovem Europa dos povos contra a Velha Europa dos príncipes. A nova classe burguesa substituirá a velha classe aristocrática, assim como a nova classe do proleta­ riado derrubará, por sua vez, a velha classe burguesa. A passagem do velho para o novo é sinal de progresso; do novo para o velho, de retrocesso. Uma nova constituição — argumento atual — corrigirá os defeitos da velha? N ão estou afirmando que na linguagem corrente não existam modos de dizer em que o significado dos dois termos, em relação ao valor, esteja invertido, e “velho” passe a ser um termo respeitado, mas são raros: “os nossos velhos nos ensinaram”, o “Grande Velho”, a “Velha G uar­ da”, os “Veteranos das pátrias batalhas”5. Hegel assim explicava a diferença entre o significado positivo e o nega­ tivo da velhice: “A velhice natural é fraqueza; a velhice do espírito, ao contrário, é a sua maturidade perfeita, na qual este retorna à unidade como espírito.” N a minha experiência, que não tenciono generalizar, o que distingue a velhice da juventude, e também da matu­ ridade, é a lentidão dos. movimentos do corpo e da mente. A vida do velho desenvolve-se em marcha lenta. São cada vez mais lentos os movimentos das mãos e dos dedos, o que torna difícil manejar instrumentos como o computa­ dor, no qual a agilidade dos dedos é indispensável para o 3 Cfr. M. Cesa Bianchi, Psicologia delVinvecchiamento. Caratteristiche e problemi, La Nuova Italia Scientifica, Roma, 1987. Bem no início, depois de sublinhar que o termo ‘envelhecimento’ sempre traz um significado negativo, observa que não faltam exceções. Dá exemplos de certos vinhos e da maturação de um queijo.

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aproveitamento de todo o seu potencial. É cada vez mais lento o passo: em meus breves passeios percebo (mas até pouco tempo atrás não percebia), quantos são os velhos que, como eu, se arrastam pela rua, acompanhados muitas vezes de uma pessoa mais jovem, dando pequenos passos circunspectos, como se estivessem em uma estrada perigo­ sa, cheia de obstáculos, e não em uma rua plana e bem pavimentada da cidade. H á formas de lentidão impostas pelas circunstâncias: a hierática, do sacerdote na procissão; a majestática, do grande estadista em uma cerimônia pública; a fúnebre, dos que carregam o féretro e dos que o seguem. Toda soleni­ dade requer tempos prolongados: o gesto comedido, o passo cadenciado, um avançar grave, um discorrer nem impetuoso, nem emocionado, interrompido por pausas calculadas, palavras ponderadas, em que uma não atropele a outra. A lentidão do velho, ao contrário, é penosa para ele e para os outros. Suscita mais pena que compaixão. O velho está naturalmente destinado a ficar para trás, enquanto os outros avançam. Ele pára. Senta-se em um banco. De vez em quando precisa descansar um pouco. O s que estavam atrás o alcançam, o ultrapassam. Ele gostaria de apressar o passo, mas não pode. Quando fala, procurando as palavras, talvez o escutem com respeito, mas também com certo sinal de impaciência. Também as idéias demoram a surgir em sua cabeça. E, quando surgem, são sempre as mesmas. Que tédio! N ão que o velho seja particularmente apegado às suas idéias. E que ele não tem outras.. E, afinal, já não está tudo dito? Ainda há algo de novo para ser dito? O velho é repetitivo sem perceber, porque também o mecanismo da memória está emperrado. N ão se lembra de ter dito ou escrito a mesma coisa, quase com as mesmas palavras, um ano atrás, um mês atrás, e quando o processo de decadência se acelera, até um dia atrás. Volta-se para si e acredita continuar como 47

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outrora a vagar com inesgotável curiosidade pelo vasto mundo ao seu redor. As idéias surgem com dificuldade e as palavras puras. Com freqüência, quando escreve, ou pior, quando fala, tem a impressão de que sua linguagem empo­ breceu, de que o reservatório de onde outrora extraía as palavras em parte esvaziou ou tornou-se, por uma razão ignorada, inacessível. O poço da memória, em uma idade como a minha, está enfim tão escavado que já não consigo chegar ao seu fundo, até porque a luz que o ilumina está cada vez mais fraca. Para reconstruir ainda que apenas um fragmento da vida passada, de um acontecimento que ado­ raria contar, de uma conversa que um dia me entusiasmou, de uma leitura que me esclareceu é preciso um paciente trabalho de reconstrução de pequenos traços de memória que aparecem e desaparecem, como sobressaltos na escu­ ridão. E uma operação lentíssima, da qual, no fim, não saímos satisfeitos porque algumas peças do mosaico já não podem mais ser encontradas. Já não conseguimos lembrar aquele nome que nos era tão familiar. Já não conseguimos repetir nem mesmo aproximadamente aquela conversa. Quem estava presente naquele dia? Que dia era? O espaço de minhas explorações nos diversos campos do saber vem se restringindo sem que eu esteja de todo consciente, como se o repositório onde estive acumulando as consciências adquiridas nas mais disparatadas leituras, nos estudos que duraram anos sobre um assunto e em função dos quais visitei bibliotecas de diversos países, exa­ minei centenas de livros e documentos, estivesse enfim abarrotado e não entrasse mais nada. Quando leio um livro novo, detenho-me muito mais sobre o que já sei do que sobre o que ainda não sei. Fascina-me mais a notícia repe­ tida, a idéia reaprendida, feliz confirmação do que apren­ dera anos atrás. A idéia nova parece quase uma intrusa que tenta entrar em uma sala superlotada, onde já não há lugar.

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Lentidão

As leituras estão se tornando cada vez mais seletivas, mais do que ler, releio. O mecanismo da seleção opera, segundo minha experiência, desta maneira: à medida que envelhecemos, o sistema de conceitos, construído pouco a pouco, que nos permitiu ordenar o material de fatos e idéias que as leituras nos ofereceram em anos de estudos, tende a fechar-se como se houvesse atingido a perfeição. Torna-se cada vez mais difícil, portanto, fazer entrar fatos e idéias novas que não encontrem compartimentos já formados, prontos a acolhê-las. O excesso é simplificado para fazê-lo caber. O supérfluo é repelido porque já não cabe mais. Outras vezes, para fazer caber um e outro, nós os forçamos c deformamos. As pessoas dizem que não entendemos nada c que estamos superados. A situação agrava-se pela rapidez das transformações devido ao progresso científico e tecnológico: o novo logo fica velho. Para nos mantermos atualizados em qualquer campo precisaríamos de uma agilidade mental superior à que possuíamos no passado e, ao contrário, a nossa está diminuindo cada vez mais. Enquanto o ritmo da vida do velho fica cada vez mais lento, o tempo que tem pela frente fica dia a dia mais curto. Quem chegou a uma idade avançada vive o contraste, ora mais ora menos ansiosamente, entre a lentidão com a qual é obrigado o proceder no cumprimento do próprio traba­ lho, que requer prazos mais longos para sua execução, e a inevitável aproximação do fim. O jovem segue adiante com maior desenvoltura e tem mais tempo pela frente. O velho não apenas caminha mais lento, mas o tempo que lhe resta para terminar o trabalho em que está empenhado é cada vez menor. O tempo urge. Eu deveria acelerar os movimentos para chegar a tempo e, em vez disso, vejo-me obrigado, dia após dia, a mover-me cada vez mais devagar. Emprego mais tempo e disponho de menos tempo. Pergunto a mim mes­ 49

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mo, preocupado: — Será que vou conseguir? Sinto-me compelido pela necessidade de terminar pois sei que o pouco tempo que me resta para viver não me permite parar de vez em quando para descansar. E contudo, sou obrigado a marcar o passo, embaraçado nos movimentos, desmemoriado e portanto obrigado a deter-me para anotar tudo de que preciso em folhas que, no momento oportuno, não encontrarei. Inventaram instrumentos maravilhosos para ajudar a memória, reduzir o tempo necessário à escrita, mas não sei utilizá-los, ou utilizo-os muito mal para deles extrair todos os possíveis benefícios. Meu pai andava de bicicleta quando já haviam inventado o automóvel. Eu voltei a escrever com caneta-tinteiro (com uma letra tão ilegível que deixo meus leitores desesperados). E, no entanto, so ­ bre a escrivaninha ao meu lado, vê-se um belíssimo com ­ putador. Diante dele fico intimidado. Ainda não consegui ter com ele a necessária intimidade para usá-lo com a desen­ voltura com que outrora eu usava a máquina de escrever. Com o o rapazinho que aprende a tocar piano, também eu precisaria de uma professora severa que ordenasse: — E agora faremos meia hora de exercícios. Dizem que para um velho a sabedoria consiste em aceitar resignadamente os próprios limites. Mas para acei­ tá-los é preciso conhecê-los. Para conhecê-los, é preciso tratar de encontrar um motivo. N ão me tornei sábio. C o ­ nheço bem os meus limites, mas não os aceito. Adm ito-os, unicamente porque não posso fazer de conta que não exis­ tem.

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O Tem po P e r d i d o

filho do século. Tendo nascido poucos anos antes da SouPrimeira Guerra Mundial, dela ainda guardo algumas lembranças muito nítidas: a manhã em que minha mãe, meu irmão e eu acompanhamos meu pai à estação, convocado para servir como capitão-médico, orgulhosos da farda de oficial que vestia pela primeira vez na vida; a festa pela conquista de Gorizia em 10 de agosto de 1915; o afluir dos refugiados vênetos ao interior do Piemonte depois da der­ rota de Caporetto; o anúncio da vitória conquistada, espe­ rada mas repentina, nos primeiros dias de novembro de 1918, por um telefonema de um tio que era militar. N o momento em que escrevo, não se passa um dia sem que os jornais deixem de noticiar a iminente celebração do Jubileu que se dará no fim do século, no início do terceiro milênio. Chega ao fim o século “breve”, como foi chamado, mas marcado por acontecimentos terríveis: duas guerras mundiais, a revolução russa, comunismo, fascismo, nazis­ mo, o surgimento pela primeira vez na história dos regimes totalitários, Auschwitz e Hiroxima, décadas de predomínio do terror, e então, depois da queda do império soviético e do fim da guerra fria, uma ininterrupta explosão, em diver­ sos lugares do mundo, de guerras nacionais, étnicas, tribais, territorialmente limitadas mas não menos atrozes. Para terminar, o fenômeno, novo em parte, do terrorismo inter­ nacional, incompreensível, indecifrável e, pelo menos por ora, invencível. 51

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Cheguei ao fim não apenas horrorizado, mas incapaz de dar uma resposta sensata a todas as perguntas que os acontecimentos de que fui testemunha continuamente me propõem. A única coisa que acredito ter compreendido, e isso nem exigia muito esforço, é que a história, por inúme­ ras razões que os historiadores conhecem muito bem, mas nem sempre levam em consideração, é imprevisível. N ão há nada de mais instrutivo que confrontar as previsões grandes e pequenas que podemos ler nas obras de historia­ dores fam osos, quando se distanciam do simples relato nu e cru dos fatos, com aquilo que realmente aconteceu. Uma das poucas profecias adotadas incontáveis vezes, por exem­ plo, é aquela de Tocqueville sobre a sorte do mundo con­ fiada no futuro aos Estados Unidos e à Rússia. Mas ainda vale? Quem iria prever o fim em poucas décadas do império comunista que também em poucas décadas se estendera do centro da Europa aos confins da Ásia? Para restringir-me à história de nosso país, cujos acontecimentos comentei durante anos, quem iria prever, e com certeza eu não previ, o fim tão iminente, tão rápido, tão definitivo, da Primeira República? Falo, é claro, por mim, mas acredito não estar sozinho. De um lado, nunca consegui convencer-me de que a guerra fria pudesse acabar sem derramamento de sangue, e sempre estive tomado pelo pesadelo do terror atômico. Era uma previsão errada. Nem por um momento imaginei que a Primeira República, que a meu ver estava finalmente se assentando sobre um bipartidarismo que já parecia quase perfeito com o crescimento progressivo do Partido C om u­ nista e uma maior autonomia em relação à União Soviética, iria miserável e vergonhosamente ruir. Era outra previsão errada. Todos os que são historiadores de profissão, e com razão ainda maior os políticos, que são também os atores da história de um país, deveriam de vez em quando con­ frontar suas previsões — das quais aliás tiram inspiração 52

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para sua conduta — com os fatos realmente ocorridos e medir com que freqüência existe uma correspondência entre as primeiras e os segundos. Para meu aprimoramento e, considerando os resultados do confronto, para minha mortificação, faço com freqüência este controle sobre mim. E desnecessário dizer que o resultado é quase sempre desastroso. N ão excluo que isso dependa também da minha natural inclinação para esperar pelo pior. E mesmo que algumas vezes ocorra uma exceção e as coisas terminem bem — bem para mim, é claro — , ainda que eu insista até o fim em minha incredulidade, não me rendo facilmente e digo: — Mas quanto esforço custou! Já é tarde demais para entender tudo que gostaria de ter entendido, e que me esforcei para entender. Dediquei grande parte de minha longa vida à leitura e ao estudo de uma infinidade de livros e papéis, utilizando até os menores espaços de um dia, desde jovem, para “não perder tempo” (uma verdadeira mania, pela qual fui muitas vezes jocosamente repreendido por amigos que me conhecem bem). H oje alcancei a tranqüila consciência, tranqüila porém in­ feliz, de ter chegado apenas aos pés da árvore do conheci­ mento. N ão foi do meu trabalho que obtive as alegrias mais duradouras de minha vida, não obstante as honras, os prêmios, os reconhecimentos públicos recebidos, que acei­ tei de bom grado mas não ambicionei e tampouco exigi. Obtive-as dos meus relacionamentos, dos mestres que me educaram, das pessoas que amei e que me amaram, de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado e agora me acompanham no último trecho da estrada. O tempo do velho, repito ainda uma vez, é o passado. E o passado revive na memória. O grande patrimônio do velho está no mundo maravilhoso da memória, fonte ines­ gotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção. Maravilhoso, 53

Dn S enectute

este mundo, pela quantidade e variedade inimaginável e incalculável de .coisas que traz dentro de si: imagens de vultos há muito desaparecidos, lugares visitados em anos distantes e jamais revistos, personagens de romances lidos quando éramos adolescentes, fragmentos de poesias que aprendemos de cor na escola e nunca mais esquecemos; e quantas cenas de filmes e de peças de teatro, e quantos vultos de atores e atrizes esquecidos sabe-se lá há quanto tempo, mas sempre prontos a reaparecer no momento em que vem o desejo de revê-los, e quando os revemos expe­ rimentamos a mesma emoção da primeira vez; e quantas melodias de canções, árias de ópera, trechos de sonatas e de concertos voltamos a cantarolar sozinhos, acompanhan­ do as notas murmuradas e o ritmo marcado com movimentos imperceptíveis do corpo, com a imagem daquele tenor ou soprano, daquele violinista ou pianista, daquele maestro, cujos gestos ora solenes, ora emocionados, ora imperiosos, poucos dias atrás rememoramos ao conversar com um amigo sobre o primeiro concerto que ouvimos, anos atrás, em um grande teatro da cidade (era Victor De Sabata na sinfonia do “Novo Mundo”). Este imenso tesouro submerso jaz à espera de ser trazido de volta à superfície durante uma conversa ou leitura; ou quando nós mesmos vamos à sua procura nas horas de insônia; outras vezes surge de repente por uma associação involuntária, por um movimento espontâneo e secreto da mente. Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade; um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos atos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos 54

O T empo Perdido

fazer um balanço final. É preciso apressar o passo. O velho vive de lembranças e em função das lembranças, mas sua memória torna-se cada vez mais fraca. O tempo da memó­ ria segue um caminho inverso ao do tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recor­ dações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram. Cumpre-nos saber, porém, que o resíduo, ou o que logra­ mos desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de nossa vida. N ada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver.

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Escritos Autobiográficos

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E l o g i o do P i e m o n t e

pelo nome: nomen omen [o nome é um presságio], C omeço como antigamente se dizia. Ou, parodiando um célebre título, “D a importância de chamar-se Norberto”. Herdei este estranho nome de um bispo alemão que viveu entre os séculos X I c XII, dc um meu avô materno, que nasceu em 1847 em um vilarejo localizado na margem direita do vale Bormida, entre Acqui e Alessandria. As crônicas familiares narram que os pais de meu avô, último rebento de uma família numerosa, já não tendo à sua disposição os costumeiros sete ou oito nomes de família, decidiram dar-lhe o nome de um poeta piemontês à época muito em voga: Norberto Rosa. Com o pôde este não excelso poeta do vale de Susa ser tão célebre no vale Bormida sempre foi para mim um mistério, sobretudo depois que, em homenagem ao nome, várias vezes tentei ler suas poesias reunidas em dois volumes publicados em Turim no ano de 1849 pela tipografia de Alessandro Fontana, sem nunca con­ seguir passar das primeiras cinqüenta páginas. As mesmas crônicas familiares nos legaram a informação (falsa) de que a fama de Norberto Rosa nos arredores de Alessandria se devia ao fato (verdadeiro) de que ele promovera a subscrição para a aquisição dos Cem Canhões que deveriam munir os assim chamados “fortes externos” da cidade. Mas o fato ocorreu em 1857, ao passo que meu avô nascera dez anos antes. Não, pelo visto Norberto Rosa era mesmo célebre por suas poesias. Com o e por que motivo se tornou célebre, a ponto de obrigar um menino ignorante nascido em 1847 e o seu ainda mais 58

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ignorante netinho que nasceria depois de mais de setenta anos a carregarem um nome tão estranho à onomástica do Monferrato, eu não sei. Deixo a pergunta aos cultuadores da história literária piemontesa. Mas o horóscopo não termina por aqui: o vilarejo acima citado chama-se Rivalta Bormida, e é nada menos (informação verdadeira) que a terra de origem da família de Giuseppe Baretti. Um primo meu, arquivista do Arquivo do Estado, que durante um período pesquisou sobre a família “Barett” em Rivalta,1 descobriu e indicou o lugar exato da “Ca d’ Barett”, do “Cõrt d’ Barett” (ainda hoje, na estrada entre Rivalta e Montaldo, existe uma grande herdade chamada a “Baretta”). Que a infor­ mação seja verdadeira é confirmado pelo próprio Baretti em algumas de suas conhecidas cartas, por exemplo aquela de abril de 1766, na qual se lê: “De Acqui fui a Rivalta visitar outros parentes, alguns ricos, outros pobres, alguns nobres, outros plebeus. Quantos encontrei de tantas gerações naqueles vilare­ jos!” Para os apreciadores da história local, na mesma carta lemos também este trecho: “Mas todos os bens e todas as alegrias da vida devem contudo ter um fim: e assim foi com todas aquelas que tive naquele alto Monferrato, de onde parti faz dez dias, levando comigo nove mulas carregadas de vinhos preciosíssimos, principal produto daquela província com que os numerosos parentes e amigos que tenho naquela região se esmeraram em me presentear, para que eu os beba na Inglater­ ra...” Desconheço, porém, quantos saibam que na velha casa dos Baretti de Rivalta há uma lápide cuja inscrição foi ditada, se bem me lembro, pelo “barettólogo” Luigi Piccioni, então diretor do 1iceu Alfieri, na qual se lê: “De família patrícia deste município/nasceu Giuseppe Baretti/escritor de raro talento/crítico batalhador e inovador/corajoso defensor da italianidade/na França c na Inglaterra do século XVIII/pelo que o Duce da nova Itália quis fosse solenemente celebrado no dia 21 de setembro de 1935.” 1 L. Caviglia, R ivalta Borm ida. Brevi cenni storici e Giuseppe Baretti. Saggio storico critico c biográfico sulle origine dello scrittore, edição esgotada, tip. Ferraris, Alessandria, 1978.

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Escritos A u to bio g rá fico s

Tudo se resume a isto: Giuseppe Baretti foi um dos gênios tutelares de Piero Gobetti, a quem este dedicou sua última revista, e que foi a primeira revista que assinei em minha vida, no primeiro ano de universidade (1927-1928), por injunção de Augusto Monti, que se tornara seu diretor secreto. Gobetti desenvolvera durante dois anos a atividade de crítico teatral de Nuova Ordine, brandindo o chicote e assinando “Baretti Giuseppe” ainda que em alguns dos últi­ mos artigos assinasse “M astigóforo”, ou seja, justamente aquele que carrega o chicote. N a última página de meu livro Trendanni di storia delia cultura a Torino (1920-1950) ,2que foi dedicado a Gobetti, eu me autodefinia um piemontês que em dado momento da vida sentiu a necessidade de “ despiemontizar-se”. Eu pensava em Alfieri." Logo depois de ter lido aquelas minhas páginas, o amigo Dionisotti enviou-me um artigo seu escrito alguns anos antes, intitu­ lado “Piemontesi e spiemontizzati” (“Piemonteses e despiem ontizados”), onde mostrava que o primeiro daqueles que, tendo nascido no Piemonte, “quis mudar de ares, e tendo mudado não se arrependeu”, foi Baretti, expatriado de cá para lá nos anos em torno do nascimento de Alfieri.3 Portanto Gobetti, piemontesista mais que qualquer outro (sobre Gobetti piemontês escreveu recentemente algumas páginas, como sempre bem documentadas, Giancarlo Bergami),4 elevara a modelos ideais dois despiemontizados. 2 N. Bobbio, Trent'anni di storia delia cultura a Torino (1920-1950), Cassa di Risparmio

di Torino, 1977. Vittorio Alfieri (1749-1803), poeta nascido emAsti, no Piemonte, cuja obra, de temática nacionalista, serviu de inspiração ao ressurgimento político e cultural italiano, o Risorgimento, que deu início ao processo de unificação da Itália. (N.T.) C. Dionisotti, Piemontesi e spiemontizzati, in Letteratura e critica, Estudos em home­ nagem a N. Sapegno, Bulzoni, Roma, 1975, pp. 329-48. 4 G. Bergami, Piero Gobettipiemontese, in “Studi piemontesi”, VIII, 1979, pp. 26-36. Há pouco tempo se discutiu sobre um Gobetti meridionalista: vários autores, Piero Gobetti egli intellettuali dei Sud, organizado por P. Polito, Bibliopolis, Nápoles, 1995 (que reúne as atas do seminário desenvolvido em Roma nos dias 28 e 29 de abril de 1993, por iniciativa da Associação Nacional pelos Interesses do Sul da Itália, Roma e do Centro de Estudos Piero Gobetti, Turim).

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Mas, afinal, existe contradição entre o piemontesismo e a despiemontizaçao? Encerrado o preâmbulo, partindo exatamente desta pergunta poderiamos dar início a um discurso menos oca­ sional e menos pessoal sobre a cultura no Piemonte. Parece-me que se pode dizer, embora com aquela esquematizaçao própria das teses muito generalizadoras, que toda reflexão sobre a cultura piemontesa está destinada a deparar continuamente com dois comportamentos opostos, de quem se rebela contra a pátria madrasta e de quem tem orgulho de ser seu filho, dois comportamentos que parecem opos­ tos, mas que por fim se encaixam um no outro, confun­ dem-se um com o outro, como se fossem duas faces da mesma moeda. Tom em os um caso típico, Massimo d’Azeglio.* Tam ­ bém ele se mudou para Milão com o propósito de respirar ares um pouco mais livres, porque “em Turim acabaria morrendo tísico”, e porque nela “as artes eram toleradas como os judeus no gueto”, e cada vez que voltava não via a hora de fugir, expulso por “aquele excesso de regulari­ dade, de formalidade, de distinções sociais, de jesuitismo, aquela falta absoluta de qualquer sintoma de energia e de vida que o oprimia”.5 E no entanto, depois de Alfieri, é o mais alto símbolo — e o mais celebrado e duradouro — do piemontesismo, de Calandra a Thovez, de Faldella a Goz/ano, de Gobetti a Monti, como demonstrou recentemente um outro bravo jovem, estudioso das coisas piemontesas, ( iiovanni Tesio.6 E poderia acrescentar Burzio, que entre

Massimo D ’Azeglio (1798-1866). Político, pintor e escritor piemontês. Teve impor­ tante atuação diplomática na política exterior durante as disputas territoriais entre a Áustria c o Piemonte, visando à unificação italiana. (N.T.) M. ITAzeglio, I miei ricordi, organizado por A. M. Ghisalberti, Einaudi, Turim, 1949, p. '175.