O Brasil e a cerâmica antiga

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Agradeçamos a colaboração especial de Oiga Fleury Lom bard ao que diz respeito a revisão do l .° capítulo desta obra.

N O TA D O ÂUTOR A o apresentar este trabalho, "O B R A SIL E A C ER Â M IC A A N T IG A ", temos dois escopos em vista, consubstanciados em dofs capítulos. O primeiro, de ordem didática, foi de téntar 'ordenar as categorias das cerâmicas que nos cercam, quer rio lar, quer exibidas em vitrinas de lojas e museus, de colecionadores, em antiquários au expostas em leilões. Esse ensaio de ordenação nos obrigou a 'uma caminhada retrospectiva pelo passado e mesmo até às cavernas, para daí partindo tentarmos acompa­ nhar ■ — "pari passu’’ — as metamorfoses que se foram operando com a argila, provocadas pela mão hábil e impaciente do homem, pára torná-la útil e atraente. ' Nesse trajeto fascinante, do nevoeiro para a claridade, ou melhor, da prê-História para a História, iremos acompanhar o oleiro e testemunhar sua pertinácia nos quatro cantos do universo. Revela-se ele na tentativa, sempre em evolução, de dominar a matéria, seja ela a própria argila, o fogo, os metais, ou o vidro, a fim de exaurir-lhes as virtudes, controlar-lhes as forças, extrair coloridos e sobretudo imprimir as formas que-sua sensibilidade impõe. Estaremos, pois, palmilhando velhas trilhas e roteiros q u e' nos levam a civilizações que outrora semearam em encruzilhados diversas a Arte, esse atestado do talento humano que atravessa os tempos. Junto com ela estará presente a Cerâmica, acompanhando, como arte menor, os esplendores e os progressos atingidos pelas artes maiores, e recolhendo o legado precioso de novas contribui­ ções, formatos, técnicas, estilos, ornatos, etc. Assim, o primeiro capítulo reúne e ordena o material cerâmico produzido pelo homem até alcançar a porcelana, O segundo capitulo é o que diz respeito mais diretamente ao Brasil. Recebe quatro subcaphulos: O Quinhentismo, O Seisceníismo, o Setecentismo, o Oitoceniismo com algumas incursões pelo século X X . E a seguir um glossário em quatro idiomas. Nesses subcapítulos são»_estudadas as referências e ocorrências, século por século, relativas ã Cerâmica. Assim, são analisadas crônicas de viajantes, inventários, documentos oficiais, pautas de alfândegas, jornais, revistas, bibliografia nacional e estrangeira, a fim de se tentar levantar um quadro tanto quanto possível fiel, do que estava em uso nesse Brasil colonial, imperial e republicano. Neste ensaio, dada a ligação da Cerâmica com a Antropologia e. a Sociologia, temos também que tecer comen­ tários sócio-histórico-económicos, para situá-la em seu devido plano. O produto dessa pesquisa acabou se revelando um ensaio de levantamento de pequena parte do acervo cerâmico existente nesse grande Brasil, seja em museus, seja em coleções particulares, em leilões ou antiquários. Acreditamos que, tanto peias referências dos textos como pelas peças exibidas, essa amostra­ gem, embora modesta e restrita, ê suficiente para revelar uma riqueza ignorada do grande público e que por certo representa um testemunho de cultura de tradição e arte.Não seria possível realizar esse trabalho, se não. viéssemos a contar com uma eficiente e bondosa colaboraçâo'’âe parentes e amigos, de antiquários, de instituições privadas e oficiais, m e io m is e estrangeiras, que não sâ forneceram informações^ como, muitas, vezes, fotografias de objetos raros. Com profundo agradecimento, no final do trabalho, tentamos citar nominal­ mente nossos colaboradores, mas desde já nós desculpamos pela omissão de algum. Caso o leitor venha .a encontrar erros ou omissões,. pedimos que sejam relevados, dada a complexidade da matéria, os bons propósitos que animaram a obra e a falha humana,-essa constante ao lado do escritor. o Autor. São Paulo — 1981

Eldino da Fonseca Brancante

“0 BRASIL E A CERÂMICA ANTIGA

Usboa c a froia das índias.

CATEGORIAS CERAMICAS

SUM ÁRIO

I

-

BARRO CRU

II

-

BA RRO COZIDO (TERRACOTA) - B IBLIO G R A FIA - E STA M PA S

I I I - TIJO LO S IV

-

-

BIBLIO G R A FIA

T E LH A S - LA D R ILH O S - BIBLIO G R A FIA - E ST A M P A S

LOUÇA VIDRADA

-

BIBLIO G R A FIA - E ST A M P A S

-

V - A Z U L E JO S - BIBLIO G R A FIA - ESTA M PA S VI

-

V II

FAIANÇA - M AIÓLICA - "M EZZA M AIÓLICA B IB L IO G R A F IA S - E ST A M P A S -

FAIANÇA FINA

-



BIBLIO G R A FIA - E ST A M P A S

V III - G R É S - BIBLIO G R A FIA - ESTA M PA S I X - B IS C U IT - BIBLIO G R A FIA X

-

PORCELANA M O LE

-

BIBLIO G R A FIA

-

E ST A M P A S

X I - PORCELANA DURA - PORCELANA CHINESA (ANTIGA E MODERNA) - ESTA M PA S X IIX III

PO RCELANA A LE M Ã ' -

-

BIBLIO G RA FIA

PORCELANA B R A S IL E IR A

-

A natureza das cousas é mais fácil de sc conccbcr quando as vemos aparecer pouco a pouco do que quando as vemos já prontas,

.Muitos milagres há. mas o mais porten­ toso é o homem. SÓFÜCLES — " A n t í g O r u i ' *

D lscartes

uDiscurso sobre o Método”

I.° Capítulo I - BARRO CRU primeiro itemm abordar dentro do quadro de categorias m variedades cerâmicas ó o barro cru, seco ao sol, com ou sem decoração a frio. Como se sabe, este ê o primeiro estágio, o marco zero de uma civilização, ou o primeiro degrau que irá levá-la através do desenvolvimento cultural de cada clã, tribo, comu­ nidade ou povo, a outros estágios, para alcançar, afinal, no topo dessa longa escada, a porcelana dura. Ou seria ainda, como na execução de uma escala, dedilhar aos poucos toda a gama musical para atingir a.ttoía mais alta —- esta comparação tem sua razão de ser, pois z sonoridade é uma das peculiaridades que distingue os produtos cerâmicos e nessa orquestra de arte, o barro cru, seco ao sol, apresenta o som mais surdo c a porcelana o mais puro e cristalino. .Mas, como veremos, para que o homem subisse todos aqueles degraus ou viesse a dedilhar todas aquelas notas, foi preciso milênios. A própria gênese da espécie que se perde nas névoas e miasmas dos pântanos, nos mostra quão lento foi o processo para que o homem, viesse a atingir seu pleno desenvolvi­ mento biológico e, com ele, as primeiras manifestações de cultura. Dos primatas, do Homo Ercctus, do Homo Sapicns, do Homo Habilis, ao homem histórico, houve milhões de anos de permeio. Graças a processos

modernos, como o emprego do Carbono Radioativo C i-t : o da Potassa JC 40, pode a Arqueologia preci­ sar no tempo, não só a evolução da espécie como a de saas reaiizaçrics artesanais. Jam Jelinek (l> informa-nos: “que c no período neolítico, quando o homem passa de uma fase nômade para a sedentária, da caça c da busca do alimento para a agricultura e a criação, e iá se agrupa em conglomerados quase urbanos, 6 que o fabrico da cerâmica junto com a tecelagem faz sia aparição'’. Francis Ccloria w, corrobora esse con­ ceito. admjlindo que o fabrico regular da cerâmica surge no Neolítico no momento em que o homem revela-se ao mesmo tempo agricultor, pastor c ceramista, isto é, quando adota um modo de vida predomjnsatementc sedentário e gregário, o que não invalida a existência da cerâmica em caráter ocasional c esparso em períodos e povos anteriores, como no Paleolítico superior. Assim, o homem começou a tratar o "barro antes da Idade da Pedra Polida (7000 a.C.), atravessou a do Cobre, a do Bronze c alcançou a Idade do Ferro, de 2000 a 1000 a.C., para fazer chegar até nós, uma farta messe utilitária e uma pródiga floração de encan­ tos nesse jardim das artes menores. Vejamos em que consiste tal matéria-prima c as primeiras etapas de seu manuseio. A argila, no dizer de Georges Fontaine, da escola de Belas Artes, na França a), é uma terra gorda e compacta, que, diluída na água, torna-se plástica, permanecendo resistente. Ela

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pode então tomar todas as formas que se queira dar; ela é a matéria-prima dos escultores que se expressam primeiro modelando, antes de traduzir sua obra em pedra, em hronze, ctc. Mas quando a evaporação tira a água da argila, esta perde suas qualidades, fragmen­ ta-se e pulveriza-se a obra que a mão do artista ou do artesão criou diretamente seria de breve duração, se não se encontrasse o tncio de conservar a invenção perecível. A argila é maleável quando fria e úmida, mas adquire uma dureza notável sob a ação do fogo; tornamo-la uma obra quase inalterável, graças ao cozi­ mento; a forma efémera torna-se apta a atravessar os séculos. Na realidade, toda a história da cerâmica enquadra as variações sobre estes quatro pontos: a matéria-prima, seu endurecimento, sua impermeabili­ dade e sua decoração. K. Drake(i) nos elucida ainda: “Raramente a argila se mantém ém condição estática. Sua natureza muda com o conteúdo de umidade. Suas propriedades físicas e suas possibilidades variam pro­ gressivamente à medida que d a seca. Por esta razão, a argila recebe nomes distintos de acordo com seu estado e estes nomes indicam etapas definidas, cada uma com características e possibilidades diferentes". Vejamos, a seguir, diversos aspectos concernentes à manipulação da argila ou do barro seco ao sol, que veio a originar 6 fabrico da louça utilitária e a de adorno chamada entre nós de “louça de barro” e os primeiros materiais de construção. ■ Segundo Louis Figuier®: “Quando o homem chegou a improvisar armas para combater animais ferozes ou defender-se de seus ataques, quando pro­ curou abrigo para proteger-se das intempéries, deve ter pensado em um meio de armazenar os líquidos ou mesmo substâncias sólidas para garantir a refeição do dia seguinte. Ao mesmo tempo que a água para os usos comuns da vida, o peixe para sua comida, os rios e os lagos, forneciam o barro e o limo. Bastava pois, uma primeira observação, arguta c feliz da impres­ são de uma pegada ou das mãos sobre a argila úmida, para conduzir esse nosso remoto parente ao fabrico dos primeiros recipientes. Segundo o arqueólogo e ceramógrafo Martin Almagro Basch, o homem vateu-se de outros materiais como vasilhames antes de fabricar os de barro. Diz-nos cie: “Toda a indústria cerâmica nasceu e segue obedecendo a necessidade sentida pelo homem'de criar artificialmente recipientes que conser­ vem os líquidos e as matérias orgânicas dc que necessita para assegurar sua subsistência. A esta necessidade essencial, serviram primeiramente recipientes naturais como crânios de animais, cascas de árvores, de ovos c de frutas. Das simples formas côncavas de tão rudimen­ tares recipientes e das criadas por outra indústria paraIe!a à cerâmica, porém de menos possibilidades artísti­ cas, a da Cestearia ou a arte do trançado, nasceram as primeiras formas cerâmicas. Das cascas e dos cestos nasceram os primeiros pobres e humildes potes (“cacharros” ) dc barro saídos da mão industriosa do homem. À pré-HLstória, analisando .os achados arqueo­ lógicos dos povos primitivos atrasados em sua mentali­ dade c em suas formas de vida, permite-nos hoje conhecer as origens desta prodigiosa, humilde e encan­ tadora arte” . . . “Nenhuma outra criação industrial e artística reflete a capacidade criadora da mão dos homens e a variedade dc sua alma manifestada em mil formas utilitárias c expressivas, nascida da mesma 2

matéria-prima inorgânica, a mais pobre cm todos os povos e tempos: o barro”. Em abono da primazia da cerâmica como expres­ são cultural do homem primitivo sobre outras mani­ festações artesanais, diz-nos ainda Louis Figuier: "Requeria mais cuidados, reflexões e observações que conduziam a uma série dc operações, às vezes longas e delicadas, para modejar e decorar um vaso do que para lascar um sílex, chanfrar uma madeira, afilar ossos, dobar a lã, trançar fibras e fabricar vestimentas e armas". E a argila por ser entre todos aqueles materiais de que o homem dispunha e manipulava, o mais dúctil, o mais maleável, o mais plástico c cm decorrência o mais dócil, além do mais acessível na natureza, passou logo a ser o principal veículo de seus impulsos c intér­ prete de seus pensamentos. Marcou cia desde logo os primeiros lampejos da mente e da civilização. Diz-nos übirajara Dolácio MendesM): ‘Tio desejo dc transmitir suas idéias, o homem utilizou-se a princípio dc materiais que pôde encontrar mais a mão. Já vimos mesmo que o barro deve ter sido o primeiro material de que se valeu. .. No barro são deixadas as primeiras manifes­ tações do Homo Sapiens, voluntárias, feitas para seus semelhantes.” Não é sem razão nem fundamentos que Platão sentenciou: “A Cerâmica deve ter constituído a primeira das artes conhecidas”. Aos poucos o homem foi pois, inspirado de uma maneira ou de outra, encontrando meios dc manipular e dar forma ao barro, o que obteve através dc alguns processos clássicos que continuam a ser usados por tribos ou comunidades ainda em estágio primitivo, como aproveitados na atualidade pelo artesanato popular e folclórico. Os mais conhecidos são os chamados de “aspirai” ou de “colombin" ou dc rolo, pelo qual com cilindros ou roiinhos de barro mole justapostos ou colocados em caracol, vão sendo levantadas as paredes da peça. Outro, chamado de “levantamento” ou de modelagem, consiste em cavar num bloco dc barro a cavidade desejada, batendo do lado de fora c mode­ lando a peça. Há ainda outro sistema, o moldado, feito com fornias negativas para vasos, figuras ou adornos complicados(7). No Brasil, essas designações técnicas são também usadas, porém variam conforme a região. Existem outras pitorescas como a de “corda" ou de "capitão”, encontradas por Haydeé Nascimento, na região de Apiaí no Estado de São Paulo. E outras mais, segundo Herta Locl Scheurer , como "tripa”, corno “rodia”, e ainda a de "nhambú” para o rolo de um metro dc comprimento (Iguapc — S. Paulo). Depois dc se haver dado forma ao barro, o espírito do homem em busca do belo, melhor diríamos da mulher já que nesta fase primária e na divisão primitiva do trabalho familiar era ela a ceramista do grupo, pro­ curou logo dar-lhe um complemento estético. Nasce, pois, nesses primórdios da evolução da espeoie, a deco­ ração, que iria deixar testemunhos em superfícies rupestres, em tecidos, em ídolos, cm atavios e na cerâmica, marcando aos poucos, estilos definidos. Nesta, ela procurou adornar as peças com desenhos gravados no barro mole, com instrumentos rudimentares, eont as próprias mãos ou com as unhas, dando nascimento â primeira série de ornatos incisos ou cm relevo, este calcado ou com a superposição de partículas de barro

no corpo da peça. E como os desenhos lineares eram simples e mais fáceis de executar, e a pessoa humana, a fauna e a flora montavam o cenário do palco silvestre, nos riscos há predominância dos traços geométricos, passando depois para os antropozoomorfos e fitoformes. Essas classificações são definidas em duas cate­ gorias. Diz-nos Alexandre Speltz. O outro casamento de importância foi o da famosa infanta D.a Izabel, filha de D. João I, o mestre de Aviz, com Felipe o Bom, o poderoso e culto duque dc Borgonha e Conde de Flanòres. Este consórcio levou numerosos nobres da comitiva de D.a Izabel a se radicarem em terras flamen­ gas onde logo seriam instaladas várias feitorias de comércio no porto de Bruges, Antuérpia e Amsterdã. Lisboa já era escalada dos barcos genoveses e venezianos que se destinavam a Bruges, considerada a “Veneza do Norte". A Liga Hanscática desde 1250, íizera de Lisboa um de seus portos de arribada no rosário de seus entrepostos marítimos. No século XIII o jovem reino já dispunha de uma frota composta de barças e dc caravelas para as suas trocas diretas. No século XIV, D. João I (1389) assi­ nava um tratado de comércio com a Flandres. Para lá de princípio, eram enviados vinhos, azeite, mel e vinagre e recebidos tecidos como a estamenha, a burgia, os escarlates, a “olandilha”, tapetes, estanhos, chumbo trabalhado(5).

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Não é pois de admirar que no século XV, Portugal já estivesse maduro para executar a tarefa gigante que sc propôs e que iria converter-se no correr daquele século e no XVI nas surpreendentes realizações das Descobertas e do novo caminho para as índias. Mas esse adiantamento no comércio e na ciência não era um fator isolado que não tivesse o complemento correspondente de um amadurecimento cultural c artís­ tico generalizado. Nas artes maiores, na pintura, ainda nos alvores da Renascença era um Nuno Gonçalves — pintor régio — que iria abrir a galeria dos mestres lusitanos e sobre o qual Reinaldo dos Santos se pro­ nuncia: ‘‘Esta é a gjória da pintura portuguesa do século XV: o ter criado uma obra que se pode por a par dos grandes mestres da época” ÍS). A seguir surgem ainda o mestre Jorge Alonso e sua escola de- “corrente nacional” a se desvencilhar da flamenga então predo­ minante, e o grande Vasco Fernandes, o Grão Vasco, entre outros vultos. Na arquitetura D. Manuel com seus arquitetos lusos, dava-se ao luxo de fugir em parte às normas da Renascença e dar a sua própria versão aos monumen­ tos, buscando nas raízes góticas e mouriscas e nos sím­ bolos da navegação e da epopéia marítima a inspiração para criar um novo estilo, antecipando-se ao barroco, o Manuelino de que a Torre de Belém é um encan­ tador e sugestivo exemplo. Nas artes decorativas, na ourivesaria, surgia Gil Vicente, o ourives real que iria executar, entre outras obras, a Custódia de Belém, obra-prima feita com o ouro que Vasco da Gama em 1503, em sua segunda viagem, trouxera da índia. Na tapeçaria, onde havia uma tradição moura, a assimilação dos motivos persas e indopersas se manifesta na confecção dos tapetes de Amtiolos a exibir ornatos com palmetas, romãs, arabescos, etc. Na imaginária, depois das magníficas execuções góticas c das clássicas renascentistas, os santeiros lusi­ tanos inovam com as imagens de marfim e madeira executadas na índia, notadamente em Goa, Na ebanística, Portugal enriquece o repertório europeu com a divulgação dos móveis chineses de pernas arqueadas e retas com os biombos e peças charouadas que no século XVIII iriam conhecer grande voga, sobretudo a França com a imitação da laca oriental pelo “verniz Martin". Porém, Portugal introduz na Europa um novo estilo híbrido conhecido por hindu-europeu, com farta marqueteria ao sabor árabe-hindu, também numa demonstração dc naciona­ lismo artístico, no período filipino (1580-1640), um gênero de móvel conhecido por nós no Brasil como “manuelino”, por exibir postumamente alguns dos ornatos ligados à navegação e à epopéia dos Descobri­ mentos (tt) de que os bufetes são um eloquente exemplo, com suas pernas dc bolachas c traves torneadas. E a cerâm ica, d en tro deste co n tex to , n ã o poderio

deixar de acompanhar aquele transbordamento de seiva artística que extrapola tanto entre as artes maiores como nas menores. No século XVI, Portugal já dispunha de uma infra-estrutura implantada pelos romanos c mais tarde complementada pelos mouros durante a ocupação do território peninsular. Aqueles, na sua bagagem de cultura e de estética, transmitiram nas tradições da Acrópole e do Palatino, a elegância das formas e a técnica apurada da terracota. As bilhas de Caldas da 108

Rainha e os púcaros de Extremóz, por sua elegância c apuro chegaram a fazer parte do vasilhame palacia­ no c realengo, e vieram a merecer referência do poeta castelhano Lope da Vega. Os árabes trouxeram ele­ mentos complementares com o uso do vidrado, parci­ monioso no período romano, e o emprego dc esmaltes coloridos. Alént desses fatores, o contato marítimo com as Repúblicas Italianas e a Flandres, com outros portos peninsulares e, sobretudo, a contiguidade territorial com a Espanha, familiarizou os oleiros portugueses corn novas técnicas, formas, desenhos e coloridos, No século XVI a faiança portuguesa faz sua aparição. Desde cedo Portugal lançara mão dos produ­ tos hispano-mouriscos para decorar palácios, entre eles o dc Sintra, com azulejos, como identificou-se com o processo faentino, a princípio com o uso dos “fomos de Veneza", próprios para o cozimento da faiança, fomos estes instalados em Lisboa por oleiros flamen­ gos que ministravam também o aprendizado artcsanal da faiança. Mas logo os oleiros portugueses dominam aquela técnica e ainda no século XVI os seus ceramistas pro­ duzem notáveis painéis, no gênero historiado, como vimos a propósito dos azulejos, acompanhando as inovações decorativas renascentistas. Ainda nesse século já iniciam a interpretação dos temas chineses em sua cerâmica, segundo se depreende dos versos laudatórios a Felipe II, quando de sua chegada à Lisboa em 1580, em quo há menção de louça chinesa “contra-feita”. Assim, já nos fins do século XVI e princípios do XVII, os artistas lusos evidenciam sua personalidade e a decoração da faiança toma rumo definido, divul­ gando na Europa as primeiras interpretações do Oriente. Portugal foi o primeiro país ocidental a rece­ ber o impacto direto dos novos, abundantes, exóticos e atraentes padrões persas, hindus, chineses e japone­ ses e a imbuir-se de seu espírito e de seu valor decora­ tivo. Ê o que diz em outras palavras Reynaldo dos Santos: “Fomos os precursores dessa sugestão oriental na arte européia, interpretando-a primeiro por cópia direta dos modelos importados, renovando-a depois, associando aos símbolos chineses temas nacionais”. Apresentam então os portugueses reproduções inéditas, é o começo das “chinoiseries” — inspiradas sobretudo no período de Wan-Li e das porcelanas conhecidas por “Kraak Porcelain” (corruptela de carraca, embarcação de carga lusa de 1.000 tonéis) e as reproduz na sua faiança. São os desenhos conhe­ cidos por “aranhões” e “miúdos” e outros que iriam mais tarde ser copiados pelos holandeses, os quais, a seu turno, iriam influenciar a decoração na Inglaterra e na Alemanha. No seiscentismo, não só Portugal produz para o mercado metropolitano, sei viços de mesa simples como fartamente decorados, sobretudo armoriados, como já exporta para o seu mercado ultramarino, mormente para o Brasil. Pode-se afirmar que a produção em Portugal foi de monta, embora não se disponha de dados precisos a respeito, é o que se depreende da presença farta da faiança nos inventários seiscentistas brasileiros, da abundância de cacos disseminados em núcleos habita­ cionais antigos e do material recuperado cm naus afundadas em nosso litoral. Aliás, o Centro dc Pestxeçue na pâg. 116>

Séc. X V I I

FAIANÇA PORTUGUESA

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Peça elaborada corn aranhôes e outros símbolos característicos da primeira metade do século XVII. upresentando ao centro um caçador. Reynaldo dos Santos classifica esse gênero como de decoração híbrida sino-lusitana e aponta vários exemplos parecidos (íigs. 34, 35 c 36, pág. 60 de " F a ia n ç a s Portuguesas”). Cortesia de Enrique Dom íngua Gonzálcz (Museu Nacional Gonzáiez.Marti — Valência).

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Séc. X V U

FAIANÇA PORTUGUESA

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X classificação desta peça {assim como a fotografia), obtida por cortesia do Victoiia and Alberl M useuai é: " Prato em faiança pintado cm azul, alemão (Hamburgo) ou porrugues. Datado 1648, diâmetro 31,5 cm’’. Traz na aba a decoração conhecida por aranhões (boninas, etc.) c no centro um escudo, dentro do qual se vi um frade, como timbre tris flores estilizadas, e como suportes dois animais alados. Embaixo do escudo a data de 164H, Acreditamos que a peça c portuguesa c não alemã, porque parte daqueles símbolos tem significado próprio, O frade porta o hábito clássico franciscano (vide Juan Ferrando Roio F .B .R .O . — iconografia de los Santos, pág. 22 — Barcelona 1950), com a túnica enlaçada na cintura por uma corda oa cordão que dela pende com borlas e uni rosário na mão. Os suportes do escudo nada mais são do que uma versão singela do grifo que desde 1640, com a Restauração, tornou-se uni dos símbolos reais da Casa dc Bragança, reinante em Portugal. Várias Casas de Misericórdia (a de Lisboa, por exemplo), como vários conventos c irmandades, usavam a Coroa Real, já que portavam os símbolos da Casa Real ou o próprio escudo i-eaf ou outros símbolos reais, como emblema, iá que vários deles estavam sob o patrocínio dos sobe­ ranos. Assim, acreditamos que o prato datado de IM S pertenceu a um dos vários conventos franciscanos que naquela data eslava sob a proteção real bragantina. 11 0

Sees. X V l i / X V U I

FAIANÇA PORTUGUESA

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Segundo^ a classificação dn Museu Nacional de Arte Antiga, trata-se de "trabalho porlue.urs", séculos X V H /X V íll. De notar nesta peça o arrojo do desenhista tia esiUizaçSo do rosto de uma jovem e no realce que imprime ao seu toucado, que absorve quase metade da decoração do fundo. Este género de reproduzir rostos ou retratos pode ter sido inspirado na faiattça jaentina ou veneziana. género esse conhecido por "cnidlor:i’\ às vezes com nome f legenda. A aba larga com o desenho da "faixa barroca" dá um remate harmonioso a iodo o conjunto e já demonstra a libertação dos pintores lusos das influências orientais! O prato (aliás medalhão) é em branco e azul. Cortesia cio Museu Nacional de Arte Antiga Foto-Cãmera.

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Séc. X V I I

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S1';.;!