Durkheim, Apesar do Século: novas interpretações entre Sociologia e Filosofia

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Durkheim, Apesar do Século: novas interpretações entre Sociologia e Filosofia

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DURKHEIM, APESAR DO SÉCULO NOVAS INTERPRETAÇÕES ENTRE SOCIOLOGIA E FILOSOFIA

André Magnelli Jayme Gomes Neto Raquel Weiss Organizadores

DURKHEIM, APESAR DO SÉCULO NOVAS INTERPRETAÇÕES ENTRE SOCIOLOGIA E FILOSOFIA

André Magnelli Jayme Gomes Neto Raquel Weiss Organizadores

Durkheim, Apesar do Século Novas Interpretações entre Sociologia e Filosofia Projeto, Produção e Capa Coletivo Gráfico Annablume Annablume Editora Conselho Editorial Eugênio Trivinho Gabriele Cornelli Gustavo Bernardo Krause Iram Jácome Rodrigues Pedro Paulo Funari Pedro Roberto Jacobi 1ª edição: Junho de 2018 © André Magnelli | Jayme Gomes Neto | Raquel Weiss

Annablume Editora Rua dos Três Irmãos, 489 – Conj. 3 05615-190 . São Paulo . SP . Brasil Televendas: (11) 3539-0225 –Tel.: (11) 3539-0226 www.annablume.com.br

S U M Á RI O

PREFÁCIO

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APRESENTAÇÃO DOS AUTORES

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INTRODUÇÃO DOS ORGANIZADORES

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Raquel Weiss e Frédéric Vandenberghe



CAPÍTULO I Esforço, Hábito e Moralidade: Interlocuções entre a Sociologia Durkheimiana e o Espiritualismo

Rodolfo Amaro

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CAPÍTULO II Da Força ao Símbolo: Ontologia Vitalista, Antropologia dos Afetos e Simbolismo Social 117

André Magnelli

CAPÍTULO III As Categorias Socio-lógicas do Pensamento: Durkheim, Herdeiro Crítico de Kant

Jayme Gomes Neto

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CAPÍTULO IV Por Uma Sociologia Menor: Uma Leitura (Im)Possível

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Marcelo de Oliveira

PREFÁCIO Raquel Weiss e Frédéric Vandenberghe

A obra de Émile Durkheim percorreu uma trajetória ímpar pelo universo das ciências sociais. Seu começo auspicioso foi marcado pelo engajamento de jovens notáveis em torno do projeto do mestre de institucionalizar a sociologia como ciência e como disciplina acadêmica. Com disposição e rigor característicos de um ambicioso chefe de escola, Durkheim foi exitoso em fundar um periódico perfeitamente interdisciplinar e inteiramente dedicado a consolidar as bases de seu pensamento, contando com a colaboração de um grupo entusiasmado com a possibilidade de realizar uma investigação da realidade social que fosse ao mesmo tempo científica e socialmente relevante. Além da fundação de L`Année Sociologique, o professor da Sorbonne não mediu esforços para ajudar seus jovens discípulos a encontrar posições em instituições importantes dentro do sistema universitário francês, garantindo que sua sociologia logo fizesse escola e consolidasse sua reputação. Todavia, esse período de ebulição inicial não sobreviveu ao trauma infringido pela Primeira Guerra. Muitos de seus principais colaboradores jamais retornaram com vida do combate, inclusive seu filho André, em quem Durkheim depositava as mais altas expectativas. Os efeitos desse momento sombrio afetaram o grupo como um todo, inclusive Durkheim, que mergulhou em um processo de profunda tristeza, comprometendo seu trabalho intelectual e afetando sua saúde

de forma irreversível. Após sua morte, em 15 de Novembro de 1917, o grupo passou por um lento processo de desintegração, e os autores que faziam parte da assim chamada “escola durkheimiana” aos poucos seguiram na direção de trajetórias mais individuais, ora mais, ora menos fieis aos pressupostos estabelecidos pelo velho mestre. Algumas décadas depois, finda a Segunda Guerra, Durkheim havia se convertido em apenas um nome - já meio desbotado - a figurar na memória coletiva dos intelectuais franceses. Podemos pensar que se não fosse pelos esforços de Talcott Parsons, Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu o seu legado teria se evaporado como cinzas no cemitério das ideias mortas. A redescoberta nos anos 60 da linguística estrutural de Saussure, cuja obra mostra uma clara influência de Durkheim, e a sua mescla com o Marxismo, deu uma segunda vida ao Durkheimismo. Às vezes o seu cientificismo foi frisado, outras vezes o seu republicanismo. Alguns autores achavam que tudo já fora dito na Divisão do trabalho social; outros consideravam as Formas elementares como sua obra principal. Com certeza, Durkheim é um clássico, não só no sentido canônico, mas também e ainda mais no sentido estilístico, como alguém que soube integrar tendências opostas numa síntese bem equilibrada. Na sua obra, ele integrou o cientificismo de Auguste Comte com o socialismo utópico de Saint-Simon. Combinou também o pragmatismo de William James com o vitalismo de Georg Simmel. O romantismo de Tönnies com o darwinismo social de Herbert Spencer, etc. O resultado é uma obra complexa, um pensamento em movimento, que podemos talvez comparar ao carburador de Rolls Royce que Erwin Panofsky analisou com tanto (t)alento.1 Como este, a obra de Durkheim integra linhas mais duras e correntes mais livres numa figura geométrica bem equilibrada com um toque de art nouveau. O mais curioso dessa história que já completou um século, é que a figura de Durkheim nunca desapareceu dos livros de sociologia e sua obra fundadora seguiu caminhos singulares pela pena de seus 1.  Panofsky, Erwin: “The Ideological Antecedents of the Rolls-Royce Radiator”, pp. 127-164 in Three Essays on Style. Cambridge, Ma.: MIT Press.

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muitos intérpretes. Um olhar mais ou menos cuidadoso sobre as imagens construídas nos diferentes países ao longo do tempo revela a completa ausência de cânones interpretativos, ainda que seja possível encontrar algumas tendências mais recorrentes e cristalizadas. Na introdução ao presente livro, somos confrontados com um panorama sucinto desse percurso, permitindo ao leitor uma ideia da pluralidade constitutiva da história da recepção desse autor no campo das ciências sociais. A questão é se apesar de um século de recepção realmente avançamos no entendimento de Durkheim. Será que realmente há ordem e progresso na interpretação dos textos? Que as leituras mais recentes superam as mais velhas? Que a nova Durkheimologia nos permite “entender o autor melhor do que ele mesmo”, como dizem os hermeneutas? Duvidamos. Em todo caso, o que é possível afirmar é que desde a década de 1980 tem havido um movimento de profunda renovação no campo dos estudos durkheimianos. Em resumo, destaca-se a descoberta de documentos, como cartas e manuscritos, a reinterpretação teórica que confere novos sentidos a seus escritos e a incorporação de novos aspectos de seu pensamento para a construção de perspectivas teóricas originais. Com certeza, não dá mais para interpretar Durkheim como conservador (na verdade, ele era socialista, universalista, republicano e cosmopolita), como positivista (apesar daquilo que ele mesmo pensava, era bem mais estruturalista e realista do que empirista e nominalista), ou ainda como moralista (ele era humanista, personalista e individualista). Em termos de uma história das ideias bem presentista, poderíamos até nos arriscar em dizer que ele era uma pré-encarnação perfeita de Parsons e Giddens, Bourdieu e Habermas numa figura só! Essa marca de inteligência e de irreverência é particularmente clara no trabalho da nova geração de pesquisadores, da qual fazem parte os autores deste livro. Conforme o leitor terá ocasião de descobrir, na medida em que avançar as páginas, os textos aqui reunidos, conquanto diversos em suas temáticas e formas de construir suas narrativas interpretativas, compartilham dois elementos centrais, que em si mesmos já bastam para justificar a leitura. Ao construir aproximações entre so-

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ciologia e filosofia a partir de ângulos distintos, o trabalho dos quatro autores revela rigor no trato com as teorias mobilizadas e criatividade no processo de escavar informações e estabelecer conexões que levam à construção de paisagens bastante originais. No texto dessa nova geração de pesquisadores brasileiros a obra durkheimiana é apropriada de forma original, dando testemunho da força da área de teoria sociológica no Brasil. Aliás, não podemos deixar de mencionar que a realização deste livro é fruto de uma parceria entre o Sociofilo (IESP) e o Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos (UFRGS), dois grupos que vêm trabalhando para tornar a atividade teórica menos solipsista e mais dialógica, promovendo trocas de ideias e de afetos. Esperamos dar nosso quinhão para que a sociologia brasileira se torne a cada dia mais in(ter)dependente na produção de seus saberes. Este livro é expressão do espírito que nos anima, e os autores que ora apresentamos não mediram esforços para construir um trabalho capaz de oferecer argumentos instigantes e incitar a imaginação, trazendo novos elementos para a teoria sociológica no Brasil e para o campo dos estudos durkheimianos.

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APRESENTAÇÃO DOS AUTORES

André Magnelli É fundador, diretor e pesquisador do espaço de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades e professor adjunto da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. É pós-doutor em sociologia pelo IESP-UERJ e pesquisador do núcleo de pesquisa em teoria social e sociológica SOCIOFILO. Pesquisa na interface de teoria social, sociologia política, sociologia histórica do político, teoria antropológica, filosofia política e retórica. Jayme Gomes Neto É mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente realiza sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É também membro do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos. Pesquisa nas áreas de teoria social e filosofia, com especial ênfase na chamada tradição durkheimiana. Marcelo de Oliveira É mestre e doutorando em sociologia pelo IESP-UERJ. Defendeu a dissertação Por uma Sociologia Menor onde realizou uma leitura (im)possível da sociologia durkheimiana. Investiga atualmente em torno da pluralidade de modelos ontológicos desenvolvidos no seio das teorias sociológicas.

Raquel Weiss É mestre em sociologia, com a dissertação Émile Durkheim e a Ciência da Moral, e doutora em filosofia, com a tese Émile Durkheim e a Fundamentação Social do Dever Ser, ambos pela Universidade de São Paulo. É membro do British Center for Durkheimian Studies da Oxford University. Organiza seminários e livros sobre Émile Durkheim, é fundadora e coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos e dirige a Coleção Durkheimiana da Editora da Universidade de São Paulo. Rodolfo Amaro É doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESPUERJ), mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), membro do laboratório de filosofia e teoria social SOCIOFILO do IESP-UERJ e membro do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos.

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INTRODUÇÃO DOS ORGANIZADORES

Apesar de um século desde o desaparecimento de Émile Durkheim, a sua obra continua a ser um manancial ainda pouco explorado de onde esperamos que afluam novas interpretações e releituras. Dentre os clássicos da “santíssima trindade sociológica”, ele parece ser ainda o mais desconhecido, sendo alvo de inúmeros mitos, mal-entendidos e incompreensões. Objeto de leituras por vezes demasiado rígidas, seletivas e, até mesmo, mal informadas, o fundador da sociologia francesa se viu, ao longo do século, identificado a uma série de rótulos pouco esclarecedores e, não raro, demasiado empobrecedores. Acusações como as de “positivista”, “evolucionista”, “conservador”, “contrarrevolucionário”, “funcionalista”, “idealista”, “hipostasiador da sociedade”, etc., têm contribuído para a construção de uma série de incompreensões e de lugares comuns que são reproduzidos em manuais, cursos de introdução e, infelizmente, nas próprias pósgraduações em ciências sociais. Talvez por esse motivo Durkheim seja visto, no mais das vezes, com certa desconfiança − ressabiamento a partir do qual, como que por contágio, os seus intérpretes também são maculados. Tal tradição de incompreensões se torna ainda mais aguda quando voltamos os olhos para as ciências sociais brasileiras. Será que, por certas ironias da história, justamente o sociólogo que revelou a potência religiosa do social cairá vítima de uma maldição histórica

acusado de heresia? Sua associação com o funcionalismo certamente não o favoreceu em ambiente acadêmico, tal como o brasileiro, fortemente influenciado por certas vertentes do marxismo. Mais grave ainda, no entanto, parece ter sido a identificação, apressada e um tanto errônea, do sociólogo francês à tradição positivista. Afinal, quando se tem sob a bandeira nacional um lema como “ordem e progresso”, associado a uma tradição política autoritária, é compreensível que ele tenha sido visto como um clássico a ser criticado ou, estrategicamente, relegado ao segundo plano. Se temos no Brasil um certo agravamento do desinteresse e das distorções já existentes na tradição sociológica, isso se encontra, atualmente, em franco descompasso com a crescente importância da obra durkheimiana para a teoria social neoclássica e contemporânea. Não podemos esquecer que alguns dos principais representantes do chamado “novo movimento teórico” dos anos 1980 tiveram na interlocução com Durkheim uma importante componente de suas construções teóricas, no que poderíamos destacar: na vertente anglo-saxônica, o neofuncionalismo e, depois, a sociologia cultural de J. Alexander, bem como a teoria das cadeias rituais de R. Collins; na vertente alemã, a teoria dos sistemas de N. Luhmann, o neovoluntarismo de R. Munch e, no interior da Escola de Frankfurt, as teorias da comunicação de J. Habermas e do reconhecimento de A. Honneth; e, por fim, na França, a economia das trocas simbólicas de P. Bourdieu e a teoria do dom desenvolvida pelos colaboradores do Mouvement anti-utilitariste en sciences sociales (M.A.U.S.S.), liderado por Alain Caillé. Tal descompasso da situação brasileira também é claro quando comparado à prolífica expansão dos estudos durkheimianos na Europa e no mundo anglo-saxônico ao longo das últimas décadas. Desde meados dos anos 70, diversas pesquisas em torno da obra de Durkheim e da “escola durkheimiana”, composta pelos colaboradores de L’Année Sociologique, vêm desconstruindo certos mitos e renovando o seu potencial cognitivo e normativo para a teoria social. A excelente biografia intelectual de Steven Lukes, publicada em 1973, pode ser considerada um trabalho pioneiro neste sentido.1 Com ela, Lukes

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não apenas aprofundou o nosso conhecimento sobre a vida e obra de Durkheim, como também lançou a um novo patamar as pesquisas documentais sobre os manuscritos e as epístolas do autor, criando além disso um estilo de referenciamento bibliográfico que se tornou desde então padrão. Publicações inéditas do próprio Durkheim vieram a público na mesma época, tais como a importante coletânea A Ciência Social e a Acção, organizada por Jean-Claude Filloux e publicada em 1970, e os três volumes dos Textes editados por Victor Karady em 19762. Foi dado a partir daí um novo impulso nas interpretações sistemáticas dos textos e manuscritos originais do fundador da sociologia francesa. No mesmo período, vários trabalhos sobre Durkheim e sua “escola” são publicados.3 Em 1975, inicia-se na França o grupo de estudos durkheimianos, dirigido por Philippe Besnard, na Maison des Sciences de l’Homme. Além disso, com as publicações dos trabalhos de Jean-Claude Filloux sobre Durkheim e o socialismo em 19774 e de Bernard Lacroix sobre Durkheim e o político em 19815, o mito do Durkheim conservador passa a ser sistematicamente posto em questão. Nas décadas seguintes, entre 1980 e 2000, sucedem-se importantes publicações francesas, dentre elas: várias organizações comemorativas6, o trabalho de Besnard sobre anomia7, o de Christian Baudelot e Roger Establet sobre o suicídio8, as investigações socioeconômicas e a introdução de Philippe Steiner9 e − articulando a renovação dos estudos durkheimianos com a redescoberta da obra de Marcel Mauss − as eruditas interpretações de Camille Tarot10 e de Bruno Karsenti11. Como resultados mais recentes deste fluxo de renovação, foram publicadas, em 1998, uma compilação das cartas de Durkheim a Mauss12 e, em 2007, uma nova, robusta e densamente documentada biografia escrita por Marcel Fournier13. Ao longo deste período, o mundo de língua inglesa também participou de forma ativa do mesmo movimento de redescoberta. Anthony Giddens, como se sabe, já havia feito nos anos 1970 importante interpretação não parsoniana do pensamento de Durkheim.14 Na década seguinte, Jeffrey Alexander organiza uma coletânea com textos inéditos de sociólogos renomados na tentativa de elaborar não

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apenas releituras, mas também atualizações e aplicações inventivas da sociologia durkheimiana aos campo da cultura, da política e da sociedade civil.15 Em 1991, Bill Pickering inaugura em Oxford um centro de estudos durkheimianos, o British Centre for Durkheimian Studies, que passa a agrupar, a partir de então, alguns dos maiores intérpretes do mundo. Ainda hoje, quase três décadas depois, o centro se mantém ativo e sua revista, a Durkheimian Studies, hoje na sua 21ª edição, continua a impulsionar algumas das reflexões mais qualificadas em torno da tradição durkheimiana. Não é por acaso, portanto, que o campo dos estudos durkheimianos testemunhou, desde a década de 1990, uma proliferação de excelentes trabalhos de releitura e reinvenção de seu legado. Interpretações de autores como Robert Alun Jones16, Susan Stedman Jones17, Donald Nielsen18, Anne Rawls19, Massimo Rosati20, Giovanni Paoletti21, Warren Schmaus22, William Watts Miller23, dentre outros, assim como uma série de importantes coletâneas, organizadas por veteranos como W. S. F. Pickering24, Stephen Turner25 e o próprio Jeffrey Alexander26, acabariam por renovar não só o interesse no pensamento de Durkheim, mas o próprio conhecimento de sua obra. Não apenas as suas antigas afirmações puderam, desta forma, ser reconsideradas à luz de novas interpretações, como também uma série de dimensões até então pouco exploradas de seu pensamento acabaram por vir à tona, de modo a fornecer uma nova fisionomia ao velho mestre francês. Enquanto isso, a redescoberta do pensamento durkheimiano no Brasil − para além dos manuais mais simplistas e das leituras burocráticas em disciplinas introdutórias − parece ensaiar ainda seus primeiros passos.27 Durkheim teve, certamente, uma presença na formação da sociologia brasileira e, principalmente, da sociologia educacional.28 Contudo, ela não foi longa e, tampouco, formou uma escola de pensamento ou um campo de investigações sistemáticas. Após um breve ciclo de recepção pelo viés da interpretação funcionalista de Florestan Fernandes, a sociologia durkheimiana entra em ocaso a partir do final da década de 1960, vendo seu destino selado pela rotulação de conservadora e funcionalista.29 O renascimento do

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interesse retoma aos poucos no final da década de 198030, muito embora tenhamos que esperar até meados dos anos 2000 para ver surgir uma geração de pesquisadores dispostos à tarefa de voltar-se, sem os dogmatismos de outrora, à sua obra e àquela dos colaboradores de L’Année Sociologique. De especial importância, nesse sentido, foram os seminários internacionais organizados em 2008 e 2012, no contexto, respectivamente, do aniversário de 150 anos do sociólogo e do centenário de publicação d’ As Formas Elementares de Vida Religiosa.31 Nessas duas oportunidades, alguns dos maiores especialistas do mundo, tais como os supramencionados R. Establet, S. S. Jones, S. Lukes, M. Rosati, W. Schmaus, Ph. Steiner, W. W.-Miller, bem como Edward Tiryakain, Steven Lukes, José Pradés, entre outros, puderam travar um diálogo qualificado com alguns dos pesquisadores brasileiros de uma primeira geração de estudos durkheimianos. Além de eventualmente contribuírem com o ensino em graduação e pós-graduação e a organização de seminários, dossiês e coletâneas32, essa primeira geração de pesquisadores − composta por nomes como Alexandre Massella, José Benevides Queiroz, Márcio de Oliveira, Marcia Consolim, Rafael Benthien, Raquel Weiss, dentre outros − tem contribuído com interpretações pioneiras da obra durkheimiana no Brasil. Temos, sobretudo, (a) as investigações de Alexandre Massella sobre a metodologia científica e a escola durkheimiana33, (b) as investigações de Raquel Weiss sobre a fundação sociológica da moralidade e também a respeito de vários aspectos do pensamento durkheimiano34, (c) e os artigos de Márcio de Oliveira sobre o Estado em Durkheim e a recepção brasileira da obra durkheimiana.35 A partir de 2012, os estudos durkheimianos brasileiros ganharam enfim uma institucionalidade e, consequentemente, um inédito impulso com a fundação do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos e a criação da Coleção Biblioteca Durkheimiana na editora da Universidade de São Paulo36, ambos sob a iniciativa e direção de Raquel Weiss e Rafael Benthien, em parceria com colaboradores como M. de Oliveira, M. Consolim, J. Benevides, M. Palmeira e R. Turin. Paralelamente, formou-se em 2007 no antigo IUPERJ-UCAM

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(e agora IESP-UERJ) o núcleo de filosofia e teoria social Sociofilo, liderado pelo sociólogo belga Frédéric Vandenberghe. Ao conectar a formação sociológica brasileira com os principais núcleos mundiais de investigação teórica, ele possibilitou a formação de uma nova geração de sociólogos com formação de alta qualificação – o que tornou possível a realização de interpretações sistemáticas da sociologia clássica desvencilhadas das leituras rotinizadas na academia brasileira. É da cooperação do Sociofilo e do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos que nasce o presente livro, tendo três de seus textos – de André Magnelli, Rodolfo Amaro e Marcelo de Oliveira – oriundos das atividades do Sociofilo, sendo o quarto texto proveniente das atividades de Jayme Gomes Neto − atualmente sob orientação de Raquel Weiss, da UFRGS − na época em que esteve na pós-graduação de sociologia da USP. Proposta e Plano do Livro Na sequência de tais investigações empreendidas em torno de Durkheim, encontramos, no livro em mãos, uma reunião de textos de uma nova geração de pesquisadores brasileiros que vêm a se juntar às pioneiras tentativas de reinterpretação, reconstrução ou atualização do pensamento durkheimiano. Este livro traz uma especial contribuição às novas interpretações na medida em que trabalha interlocuções do pensamento durkheimiano com distintas perspectivas filosóficas. São trazidos à baila, ao longo dos capítulos, referências aos mais distintos autores e correntes de pensamento, onde são estabelecidos diálogos privilegiados com pelo menos quatro vertentes filosóficas distintas – o positivismo, o vitalismo, o espiritualismo e o kantismo. Linhagens de pensamento que não apenas tiverem importante presença no contexto europeu do século XIX, mas que são portadoras de ideias muito vivas, passíveis de atualização para nosso próprio tempo. Por meio desse jogo entre filosofia e sociologia, vemos como presente e passado se elucidam reciprocamente e contribuem para fecundar a sociologia ainda hoje. Neste sentido, este livro é um franco des-

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mentido ou uma profunda desilusão a todos os que acreditam que os clássicos – dentre eles, e, sobretudo, Durkheim – teriam cortado o cordão umbilical da sociologia com a “mãe de todas as ciências” ao estabelecerem-na como ciência do social. Contrariamente a isso, o livro desperta a curiosidade intelectual pela fértil relação recíproca, clássica e contemporânea, entre sociologia e filosofia. É o que percebemos ao começar pelo primeiro capítulo, escrito por Rodolfo Amaro. Trata-se de uma importante contribuição que suprime uma grave lacuna nas interpretações ao reconstruir as heranças e interlocuções – invisíveis para um leigo em história da filosofia francesa – de Durkheim para com os representantes do espiritualismo filosófico e suas questões originariamente metafísicas. Se muito já foi dito e estudado a respeito da influência do positivismo de Auguste Comte, quase nada foi investigado até hoje sobre a relação de Durkheim com aquele pensamento hegemônico na França do século XIX.37 Ao nos introduzir à filosofia espiritualista e aos seus desdobramentos nas escolas eclética e, posteriormente, neoespiritualista, Amaro mostra que tal tradição estava às voltas com o problema filosófico clássico da relação entre determinismo e liberdade, com o qual Durkheim teve de lidar, tanto por razões práticas – diante dos conflitos institucionais no estabelecimento da sociologia como ciência –, quanto por razões teóricas – ao elaborar e propor uma nova síntese científica ao velho dilema metafísico. O texto realiza uma interpretação de quatro níveis. No nível de uma história das ideias, a obra de Durkheim é situada em relação às ideias filosóficas elaboradas ao longo do século XIX francês. Em um segundo nível, biográfico, Amaro reconstrói o percurso do pensamento durkheimiano desde o jovem professor do Liceu de Sens até o velho sociólogo das Formas Elementares, fazendonos descobrir – contrariamente aos que veem em Durkheim uma repetição estática das mesmas teses diante de novos temas – um pensamento muito dinâmico capaz de se reformular diante de novos desafios. Em um terceiro nível, mais sociológico, o autor faz uma bem-sucedida combinação de texto e contexto ao situar as suas transformações conceituais em meio a lutas no campo intelectual:

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primeiramente, a luta entre um projeto sociológico nascente e uma escola eclética e espiritualista institucionalmente estabelecida como doutrina pedagógica oficial do final do século; e, em seguida, aquela entre uma sociologia durkheimiana já bem consolidada e a filosofia em voga de Bergson e seus seguidores. Em um quarto e último nível, por fim, o das problematizações nucleares, Amaro apresenta como nó górdio da reflexão durkheimiana a problemática da relação entre determinismo e liberdade, da qual deriva o desafio de elaborar conceitualmente as noções de moralidade, hábito e esforço. Tais desenvolvimentos teóricos serão amadurecidos por formulações e reformulações do problema da moralidade, feitas diante do desafio, legado pela tradição e posto também por seus contemporâneos, de sintetizar liberdade e determinismo; fato que somente se torna evidente quando nos desvencilhamos das amarras de uma interpretação meramente disciplinar própria dos manuais de sociologia. Tais novidades interpretativas ganham novas feições quando passamos ao segundo capítulo, de André Magnelli. A partir de uma apropriação criativa do conceitual da teoria da argumentação de Chaïm Perelman & Olbrechts-Tyteca, ele analisa a forma pela qual Durkheim justificou a necessidade de institucionalização da sociologia, tal como ele a compreendia, nas universidades francesas. A interpretação é baseada numa compreensão genética da argumentação sociológica, feita em quatros momentos que, articulados entre si, dão um novo sentido ao pensamento durkheimiano. Em um primeiro momento, Magnelli nos apresenta a política de sua sociologia. Se no primeiro capítulo Durkheim foi situado em face de uma tradição filosófica, neste o encontramos diante de seu contexto histórico marcado pela formação da IIIa República. Reconstruindo-o pela abordagem de uma história do político, Magnelli apresenta o grande desafio oriundo do advento do sufrágio universal: com a emergência de uma sociedade dos iguais fundada em um individualismo radical e em uma representação atomista do social, torna-se imperativa a busca de inéditas formas de representação do político e do social, capazes então de criar modos

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de solidariedade e de autoridade compatíveis com a igualitarização e individualização em curso. Encontramos, com isso, o sociólogo clássico, com sua reflexão e seu projeto, formando-se na carne desta sociedade, às voltas com argumentos, interlocutores e conflitos bem concretos, e em busca da definição de uma situação e da resposta a uma problemática. Ao tomar o caso Dreyfus como condensador das grandes questões do tempo, Magnelli estabelece como problemática central aquela que denomina de “processo do individualismo”. A análise dos posicionamentos durkheimianos diante de tal causa mostra-nos que sua sociologia não apenas se contrapôs à tradição conservadora, como, sobretudo, deve ser vista como um projeto republicano de fusão entre os ideais liberais e revolucionários. Magnelli mostra, a este respeito, que o problema político envolvia questões sistemáticas sobre a relação entre indivíduo e sociedade que, por sua vez, recaíam na questão da relação entre Razão e Vida. Neste ponto, a sociologia, com seus conceitos e regras de método, adquire um novo sentido, pois passamos a concebê-la como uma tentativa de conciliar o projeto de uma razão ampliada pela ciência com uma ontologia vitalista do social, o que tem inevitáveis consequências éticas, políticas e metodológicas. É assim que, no segundo momento, Magnelli passa a revelar – em uma análise atenta a argumentações filosóficas normalmente desprezadas pelas leituras mais padrões – uma ontologia vitalista que atravessa toda a obra. A argumentação durkheimiana é analisada no próprio movimento de invenção da sociologia como ciência; invenção que é realizada por meio de raciocínios dialéticos, que buscavam resolver insuficiências das teorias precursoras sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade – o direito natural moderno, a economia política, o positivismo e a filosofia kantiana –, bem como por raciocínios analógicos, mediante os quais ele buscou nas ciências estabelecidas, sobretudo a biologia e a psicologia, recursos para construção do conceito que permitia a síntese teórica: o de vida social. Eis assim que descobrimos um vitalismo subjacente à teoria durkheimiana da sociedade: uma espécie de vitalismo racionalista. Magnelli realiza, desta forma, uma inesperada conexão entre quatro

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níveis do pensamento durkheimiano: (a) o das noções fundadoras do conceito de vida social, tais como os de causa, de função, de meio interno e, sobretudo, os de força moral, de associação e a ideia de emergência (sui generis); (b) o dos posicionamentos práticos a respeito do que é liberdade, de qual o valor da civilização e como é possível a justiça, a moral e a solidariedade; (c) o das regras de método, com o conceito de fato social, e com as regras hermenêuticas de acessar indiretamente o “espírito” (o social) sob a “letra” (os símbolos); (d) e, por fim, o de uma concepção de vida psíquica, que, para Magnelli, é a única capaz de esclarecer como é possível e como ocorre, para Durkheim, a síntese entre as consciências individuais dando origem às representações sociais e as leis da ideação coletiva. Trata-se de mostrar, ao longo do percurso, que a sociologia durkheimiana começa com uma dinamogenia das forças morais e se consuma em uma teoria da formação simbólica do social. Na contramão da concepção muito comum de que Durkheim renega a psicologia, descobrimos, em um terceiro momento, o quanto ele conhecia e se apropriava com competência da psicologia e da psicofisiologia de seu tempo, a partir do que desenvolveu uma “antropologia do humano sentimental”. Ao mesmo tempo em que Durkheim defende uma concepção dual de natureza humana, descobrimos nele, com Magnelli, uma ênfase sobre a dinâmica afetiva das representações e sobre a importância das paixões para o humano. Somente ela permite explicar como a associação de forças morais, que compõe a sociedade, pode emergir e se formar com e através das consciências dos indivíduos. Questão que é trabalhada no quarto e último momento, quando é analisada a formação simbólica do social e a teoria do simbolismo que a fundamenta. Debruçando-se sobre as Formas Elementares – que, por explicar a origem simbólica da sociedade a partir da religião, deve ser vista como a forma mais acabada da teoria durkheimiana da sociedade –, Magnelli contribui para esclarecer a pouco entendida teoria dinamogênica da religião, encerrando sua análise tratando das concepções e dos limites do conceito de símbolo e da tarefa da hermenêutica de Durkheim. Ao nos oferecer, em sua conclusão, uma breve defesa da atualidade e das possibilidades de

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atualização do seu pensamento, ficamos certos de que as novas interpretações possuem ainda um longo caminho no horizonte. No terceiro capítulo, escrito por Jayme Gomes Neto, a relação entre filosofia e sociologia, até então tratada principalmente por meio dos temas da reflexão moral (Amaro), política, ontológica e antropológica (Magnelli), passa a ser explorada a partir do eixo da chamada teoria do conhecimento e, mais especificamente, da problemática das categorias elementares do pensamento humano. O ponto de partida privilegiado de análise, nesse caso, é a figura de Kant, interlocutor nominal de Durkheim. Por meio de uma reconstrução do pensamento do filósofo alemão, Gomes Neto busca deixar claras as linhas de força que estiveram presentes na passagem entre as abordagens filosófica e sociológica. Tal esclarecimento é executado aqui em meio a uma detalhada releitura de As Formas Elementares de Vida Religiosa, na qual o problema das classificações sociais fornece a chave de compreensão a duas grandes questões que se conectam na economia do texto: a imbricação aparentemente obscura entre os temas da religião e do conhecimento; e a tese durkheimiana sobre o caráter social das categorias do pensamento. Por meio desse tipo de operação, o autor busca executar um duplo movimento de releitura. Numa primeira camada, o texto explora a questão das categorias mostrando como uma série de tensões internas ao pensamento kantiano pôde ser retrabalhada, de maneira bastante original, no interior do contexto da sociologia durkheimiana. Nesse caso, em diálogo com intérpretes contemporâneos, tais como Anne Rawls, Warren Schmaus e Susan Stedman Jones, Gomes Neto busca estabelecer os liames a partir dos quais surge e se desenvolve, no seio do pensamento durkheimiano, a questão do conhecimento, com seus respectivos problemas a respeito do universalismo, do relativismo, dos critérios de verdade, etc. Numa segunda camada, talvez mais transversal, a reconstrução busca aquilatar o alcance da influência kantiana no interior do próprio modo como Durkheim pensa sua sociologia, tendo como referencial maior, nesse caso, sua última grande obra, compreendida como expressão mais completa de seu projeto intelectual. Gomes Neto defende aqui, para espanto de alguns, a

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existência de uma espécie de transcendentalismo − sociologicamente arejado − ainda a guiar o pensamento durkheimiano, no qual as figuras da unidade e da universalidade kantianas, até então tratadas sob a forma do sujeito transcendental, reapareceriam sob uma nova roupagem, mais adequada à economia do texto, no interior dos conceitos de totalidade, ou ainda, no de sociedade. Eis, então que, no quarto e último capítulo, aparece, de modo um pouco inesperado, a interpretação de Marcelo de Oliveira, que, pelo estabelecimento de conexões (im)possíveis com os pensamentos de Foucault e Deleuze, propõe-se a radicalizar a dimensão vitalista do pensamento durkheimiano exposta por Magnelli. O movimento interpretativo defende uma possível compreensão do social a partir das noções de associação e segmentação de fluxos de forças morais, delineados como que subterraneamente na economia do texto durkheimiano. Esse tipo de apropriação radical tem entre suas peculiaridades uma recusa que se direciona não apenas às posições políticas de Durkheim, vinculadas ao projeto republicano francês, como também à sua sociologia das representações, do simbolismo expressivo e das formas simbólicas de classificação. Ao formular a sua problemática por meio de uma distinção entre as formas e os fluxos, Oliveira lança mão do método arqueológico de Foucault como porta de entrada ao discurso durkheimiano a fim de interpretar Durkheim naquilo que ele interdita dizer e se recusa a ser. Nesse sentido, a leitura se delineia em franco conflito com algumas posições presentes nos textos anteriores. O que a anima é uma tentativa de resgate de tudo aquilo que aparece, na sombra da sociologia durkheimiana, como restos esquecidos de “sono sociológico” norteado por esquemas representacionais fundados nas violências da identidade. Para tanto, parte da estratégia de Oliveira consiste em promover uma oposição entre duas sociologias de um Durkheim cindido: uma sociologia maior, ou “molar”, feita à moda das representações e sob a medida dos aparelhos de captura do Estado; e uma sociologia menor ou “molecular”, ironicamente bem próxima de um dos seus principais adversários – Gabriel Tarde. Esta última, trabalhando no nível de imanência, seria responsável pelas possibilidades de abertura do

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pensamento a toda uma multiplicidade dos fluxos “diferençantes” que, produzindo seus traços, não se deixariam conformar facilmente a códigos pré-estabelecidos. Oliveira encontra, então, uma potencial sociologia da diferença – não da diferença conceitual, mas da diferença em si, da différance – justamente em passagens das Regras do Método, onde são desenvolvidos os conceitos de associação e de segmentação. Ele o faz rompendo com o vitalismo “organicista” do Durkheim “maior”, que se baseia na presunção ontológica de fenômenos de emergência, a fim de reunir a “sobra” do pensamento de um Durkheim menor, que se torna então possível representante de uma sócio(filo)logia protoanarquista aberta aos devires imanentes da vida. A partir das releituras aqui reunidas, esperamos apresentar um amplo conjunto de perspectivas – não poucas vezes, como se vê, em tensão ou conflito – com suas várias possibilidades de apreciação não apenas de um mesmo autor, como também de sua obra e tradição. Acreditamos que tal diversidade fornece ao leitor uma experiência hermeneuticamente rica e lhe revela estar diante de uma obra clássica que, mesmo depois de um século, surge ainda como fonte de inesgotáveis questões e possibilidades de reconstrução. A obra durkheimiana é clássica, logo viva, não apenas por colocar problemas que ainda são nossos, transcendendo assim sua situação histórica, como também por articular possibilidades de pensar problemáticas inteiramente distintas, mas igualmente essenciais. Nesse sentido, não há questão fundamental que não seja tocada pelo pensamento do sociólogo. Sua radicalidade, isto é, sua capacidade de ir à raiz, consiste em efetuar um trabalho de reflexão sociológica em torno de todos aqueles questionamentos que pareciam ser originariamente um monopólio do pensamento teológico e filosófico. O que podemos saber? O que devemos fazer? O que é bom fazer? Que é o homem? Que é o ser? O que podemos esperar? Vemos que cada uma dessas questões encontra, no interior do seu pensamento, um espaço novo de desdobramento e de articulação, cuja originalidade torna conveniente que voltemos a ele com a devida abertura de pensamento e com um desejável apetite intelectual.

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Notas [1] LUKES, Steven. Émile Durkheim: his life and work – a historical and critical study. New York: Penguin Books, 1985 [1973]. Mesmo publicada há mais de 40 anos ela jamais ganhou uma tradução em português.

[2] DURKHEIM, E.; KARADY, V. (ed.). Textes v. 1. Éléments d’une théorie sociale. v. 2. Religion,

morale, anomie. v. 3. Fonctions sociales et institutions. Paris: Les Éditions de Minuit, 1975. Infelizmente a coletânea e a grande maioria dos textos presentes nela jamais foram traduzidos para o português.

[3] CLARK, Terry N. Prophets and Patrons: The French University and the Emergency of the

Social Sciences. Cambridge, Mass: Harvard Univ. Press, 1973; KANDO, Thomas M. «L’Année

Sociologique: From Durkheim to Today» in: The Pacific Sociological Review. Vol. 19, No. 2, 1974, pp. 147-174; NANDAN, Y. Le maître, les doctrines, les membres et le magnum opus. Une étude critique et analytique de l’école durkheimienne et de l’Année sociologique. Paris [Thèse

Doct. Univ. Paris V.], 1974. BESNARD, Philippe. «La formation de l’équipe de l’Année

sociologique» in: Revue française de sociologie .Vol. 20, No. 1, 1979, pp. 7-31. Nos anos

2000 foi publicada a obra mais recente dedicada ao tema: MARCEL, Jean-Christophe. Le durkheimisme dans l’entre deux guerre. Paris: PUF, 2001.

[4] FILLOUX, Jean-Claude. Durkheim et le socialisme. Paris/Genève: Librairie Droz, 1977.

[5] LACROIX, Bernard. Durhkeim et le politique. Montréal : Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques/Presses Universitaire de Montréal, 1981.

[6] BESNARD, P. et al (Org.). Division du travail et lien social: la these de Durkheim

un siècle après. Paris: PUF, 1993; CUIN, Charles-Henry (org.). Durkheim d’un siècle à l’autre: Lectures actuelles des Règles de la méthode sociologique. Paris: PUF, 1997; BOR-

LANDI, Massimo; CHERKAOUI, Mohamed. Suicide. Un siècle après Durkheim. Paris: PUF, 2000.

[7] BESNARD, P. L’anomie: ses usages et ses fonctions dans la discipline sociologique depuis Durkheim. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.

[8] BAUDELOT, Christian & ESTABLET, Roger. Durkheim et le suicide. Paris: PUF, 1984.

[9] STEINER, Philippe. L’école durkheimienne et l’économie : sociologie, religion et connaissance. Genève-Paris: Droz, 2005; STEINER, Philippe. A Sociologia de Durkheim. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

26

[10] TAROT, Camille. De Durkheim à Mauss, l’invention Du symbolique: sociologie et science des religions. Paris: La Découverte, 1999.

[11] KARSENTI, B. L’homme total: Sociologie, anthropologie et philosophie chez Marcel

Mauss. Paris: PUF, 1997; KARSENTI, B. La société en personnes: études durkheimiennes. Paris: Economica, 2006.

[12] DURKHEIM, Émile. Lettres à Marcel Mauss. Paris: PUF, 1998 (présentées par Phi-

lippe Besnard et Marcel Fournier, avec la collaboration de Christine Delangle, MarieFrance Essyad et Annie Morelle).

[13] FOURNIER, Marcel. Émile Durkheim: 1858-1917. Paris: Fayard, 2007. Marcel

Founier foi também biógrafo de Marcel Mauss: FOURNIER, Marcel. Marcel Mauss. Paris: Fayard, 1994.

[14] GIDDENS, Anthony. Capitalism and Modern Social Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

[15] ALEXANDER, Jeffrey. (ed.) Durkheimian Sociology: Cultural Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

[16] ALUN JONES, Robert. The Development of Durkheim’s Social Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

[17] JONES, Susan Stedman. Durkheim Reconsidered. Cambridge: Polity Press, 2001

[18] NIELSEN, Donald A. 1999. Three Faces of God: Society, Religion, and the Categories of

Totality in the Philosophy of Émile Durkheim. Albany: State University of New York Press, 1999.

[19] RAWLS, Anne. Epistemology and Practice: Durkheim’s the Elementary Forms of Religious Life. New York: Cambridge University Press, 2004.

[20] ROSATI, Massimo. Ritual and the sacred : a neo-Durkheimian analysis of politics, religion and the self. Farnham: Ashgate, 2009. ROSATI, M. The Making of a Postsecular Society: A Durkheimian Approach to Memory, Pluralism and Religion in Turkey. Texas: Ashgate, 2015.

[21] PAOLLETI, Giovanni. Durkheim et la philosophie: Représentation, réalite et lien social. Paris: Editions Classiques Garnier, 2012.

[22] SCHMAUS, Warren. Durkheim’s Philosophy of Science and the sociology of knowledge:

creating an intellectual niche. Chicago: The University of Chicago Press, 1994; SCHMAUS, Rethinking Durkheim and his tradition. New York: Cambridge University Press, 2004.

[23] MILLER, Willie Watts. Durkheim, Morals and Modernity. London: Routledge, 1996.; MILLER, W. W. A Durkheimian Quest: Solidarity and the Sacred. New York/Oxford: Berghahn Book, 2014.

27

[24] PICKERING, W. & WALFORD, G.(eds.). Durkheim and Modern Education. Lon-

don and New York: Routledge, 1998; ALLEN, N. J.; PICKERING, W.S.F.; MILLER, W.W (Orgs.). On Durkheim’s Elementary Forms of Religious Life. London and New York: Routledge, 1998; PICKERING, W. (ed) Durkheim and Representation. London: Rout-

ledge. 2000; PICKERING, W. & WALFORD, G.(eds.). Durkheim’s Suicide: A century

of research and debate. London and New York: Routledge, 2003; PICKERING, W. (ed.). Durkheim, the Durkheimians, and the Arts. New York/Oxford: Berghahn Book, 2013.

[25] TURNER, S.(Ed.). Emile Durkheim: sociologist and moralist. London and New York: Routledge, 1993.

[26] ALEXANDER, J. & SMITH, P. (Eds.). The Cambridge Companion to Durkheim. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

[27] Para uma apresentação dos ciclos de recepção da obra durkheimiana no Brasil, ver: OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel. La trajectoire de l’oeuvre durkheimienne au

Brésil, 2017 (no prelo); OLIVEIRA, Márcio de. Émile Durkheim e a Sociologia Brasilei-

ra. In: MASSELA, Alexandre et al (Org.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Ed. Argumentum, 2009.

[28] Neste sentido, é importante assinalar o papel de Fernando de Azevedo como pioneiro

em uma dupla frente de ação: de um lado, ele participou da formação e institucionalização

da sociologia brasileira enquanto professor da primeira geração de sociólogos da USP; de outro lado, juntamente com Anísio Teixeira, ele foi líder do movimento de renovação educacional dos anos 1930 conhecido pelo codinome “Escola Nova”. Na primeira frente

de ação, Fernando de Azevedo publicou um dos primeiros manuais (de alta qualidade) de sociologia, Princípios de Sociologia, com primeira edição em 1935, onde apresenta ao

público as ideias de Durkheim. Em uma segunda frente de ação, enquanto um dos principais idealizadores e realizadores do escolanovismo, ele redigiu o seminal e ainda bem

atual Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), que é uma proposta de reforma

educacional, de impulso democratizante, influenciada, ao mesmo tempo, pelo pragmatismo americano de John Dewey e pela sociologia de Durkheim. Se Anísio Teixeira foi

o grande responsável pela recepção criativa de John Dewey no Brasil, Fernando de Azevedo construiu intelectual, técnica e politicamente uma proposta de sistema educacional brasileiro e uma sociologia da educação fortemente tributárias do sistema educacional

francês e da sociologia durkheimiana – o que não deixou de mostrar, historicamente e em

ato, o vínculo entre a sociologia de Durkheim e o projeto de democratização social pela via de uma educação pública, laica e científica, bem contrário, portanto, à sua posterior

associação ao conservadorismo político. Como braço do projeto reformista, Fernando de

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Azevedo empreendeu as primeiras traduções de Regras do Método (1935) e de Educação e

Sociologia (1939), assim como escreveu um inovador livro, bem durkheimiano, de Sociologia Educacional (1940), que era voltado a formar os futuros profissionais de educação para a democracia em construção.

[29] A obra de Florestan Fernandes foi decisiva no destino da recepção durkheimiana no Brasil. Antes de tudo porque Florestan introduziu e canonizou a leitura funcionalista

de Durkheim, que foi aplicada em seus primeiros estudos empíricos e exposta em suas obras de sociologia teórica. Mas, sobretudo, porque, com sua ruptura com o funcionalismo

e conversão ao marxismo, ele lidera uma tradição sociológica que se consolidará vendo

Durkheim como sociólogo ao mesmo tempo “funcionalista” e “conservador”, inadequado, assim, às demandas de desenvolvimento de nossa realidade nacional. Para uma investiga-

ção sobre a recepção de Durkheim como sendo um funcionalista conservador e o papel de Florestan, ver: QUEIROZ, José Benevides. A Sociologia de Durkheim no Brasil. XV Congresso Brasileiro de Sociologia, 26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR), GT 18 - Pensamento Social no Brasil; QUEIROZ, J. B. A Recepção de Émile Durkheim nas Primeiras

Obras de Florestan Fernandes (Décadas de 1940 e 1950). XXIX Congreso ALAS Chile, 2013.

[30] Os principais trabalhos desta retomada são os de Renato Ortiz e Fernando Dias

Duarte: ORTIZ, R. Durkheim, arquiteto e herói fundador. RBCS, vol.4., n.11, pp. 5-26, 1989; DUARTE, L. F. D. Classificação e Valor na Reflexão sobre Identidade Social. In: Ruth Cardoso (Ed.), A aventura antropológica. Teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1986. p. 69-92; id. O Culto do Eu no Templo da Razão. Boletim do Museu Nacional, 41 (Três Ensaios Sobre Pessoa e Modernidade), 1983.

[31] Referimo-nos ao Seminário Durkheim 150, que foi organizado pelo Departamento

de Sociologia da USP e realizado entre 11 e 14 de dezembro de 2008, e ao Seminário internacional As Formas Elementares: 100 Anos de um Clássico, foi organizado pela Escola de Altos Estudos da CAPES em parceria com o departamento de sociologia da UFRGS

e realizado entre os dias 15 e 18 de outubro de 2012. O primeiro seminário resultou na

publicação: MASSELLA, Alexandre et al (Org.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.

[32] OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel (orgs.). David Émile Durkheim: a atualidade de um clássico. Curitiba: Editora UFPR, 2011.

[33] MASSELA, Alexandre. O naturalismo metodológico de Émile Durkheim. São Paulo:

Humanitas, 2006; MASSELLA, A. Leituras da Escola Durkheimiana. In: MASSELA, Alexandre et al (Org). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.

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[34] WEISS, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. 2010. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; WEISS, Raquel. A concepção de educação

de Durkheim como chave para a passagem entre Positivo e Normativo. In: MASSELA, Alexandre et al (Org.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009; WEISS, Raquel. Émile Durkheim e a revolução copernicana no conceito de moral; in: OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel (orgs.).David Émile Durkheim: a atualidade

de um clássico. Curitiba: Editora UFPR, 2011; WEISS, Raquel. Durkheim e as Formas

Elementares da Vida Religiosa. Debates do NER, Porto Alegre, ano 13, n. 22 p. 95-119, jul./dez. 2012; WEISS, Raquel. Efervescência, Dinamogenia e a Ontogênese Social do Sagrado. Mana 19 (1): 157-179, 2013.

[35] OLIVEIRA, Márcio. O Estado e a política em Durkheim; in: OLIVEIRA, Márcio

de; WEISS, Raquel (orgs.). David Émile Durkheim: a atualidade de um clássico. Curitiba: Editora UFPR, 2011; OLIVEIRA, Márcio de. Op.cit., 2009.

[36] A Coleção Durkheimiana já consta de três publicações, uma de O individualismo e os intelectuais de Durkheim e outros dois textos inéditos de colaboradores de L’Année So-

ciologique, Henri Hubert e Antoine Meillet: DURKHEIM, E. et al. O individualismo e os

intelectuais (edição bilíngue com dossiê crítico composto de textos de Louis Pinto, Marcia Consolim, Susan Stedman Jones, Raquel Weiss, William Watts). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. HUBERT, Henri. Estudo Sumário da Representação do Tempo na Religião e na Magia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016

(edição bilíngue com dossiê crítico composto de textos de Christine Lorre, Jean-François

Bert e Rafael Benthien); MEILLET, Antoine. Como as Palavras Mudam de Sentido. São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016 (edição bilíngue com dossiê crítico

composto de textos de Renato M. Basso, Rodrigo T. Gonçalves, Jean-François Bert e Carlos Alberto Faraco).

[37] As poucas exceções são: BROOKS, John I. The Eclectic Legacy: Academic Philosophy and the Human Sciences in Nineteenth-Century France. London, Associated University

Presses, 1998; SCHMAUS, W.  Rethinking Durkheim and his tradition. New York: Cambridge University Press, 2004.

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CAPÍTULO I. ESFORÇO, HÁBITO E MORALIDADE: INTERLOCUÇÕES ENTRE A SOCIOLOGIA DURKHEIMIANA E O ESPIRITUALISMO Rodolfo Amaro

As linhas a seguir foram escritas a partir da percepção de uma considerável lacuna nos estudos sobre Durkheim, a partir da qual se tornou possível conduzir uma reinterpretação do desenvolvimento de sua obra. Essa percepção foi viabilizada pelo foco em algumas tensões que marcavam o pensamento francês do século XIX.2 O nascimento da sociologia francesa se deu em meio a uma série de tensões em torno do problema primordial continuamente envolvido nas pretensões científicas sobre os fenômenos humanos: aquele da especificidade, do caráter e do status dos fenômenos mentais ou espirituais em sua relação com outros fenômenos da natureza. Cientistas e filósofos participavam de disputas aguerridas sobre tal domínio do conhecimento, transposto nas últimas décadas daquele século, em grande medida, para o debate sobre liberdade e determinismo. Nele encontramos uma extensão de um dos mais fundamentais dualismos do pensamento ocidental que, da antiguidade ao presente, contrapõe o espírito, como espaço de um quase divino livre-arbítrio e liberdade, e a natureza, enquanto reino guiado por processos rígidos e deterministas. Esse debate aparecia 2.  Elas emergiram para mim por conta da necessidade de uma análise comparativa, realizada em minha tese de doutorado, da relação entre o projeto sociológico de Durkheim e o do filósofo-sociólogo neoespiritualista francês Jean-Marie Guyau. Sobre isso, ver AMARO (2014).

de forma renovada e com nova roupagem a partir do advento das teorias evolucionistas que passavam a compor o quadro das discussões sobre a posição do homem no mundo.3 Três grandes movimentos compunham as disputas no pensamento filosófico francês da segunda metade do século XIX: o positivismoempirismo, o criticismo e o espiritualismo. Como nos lembra Susan Stedman Jones (2001, p. 62), enquanto que, na interpretação do pensamento de Durkheim, a influência do positivismo-empirismo tem sido supervalorizada e a do criticismo subestimada, a influência do espiritualismo tem sido amplamente ignorada. Esse esquecimento histórico poderia até ser compreensível em virtude dos ataques do autor ao espiritualismo e ao pensamento filosófico francês estabelecido, que, naqueles moldes, frustravam o avanço das ciências sociais no país. Contudo, sabemos que ele não poupava ataques a praticamente todas as formas de pensar com as quais dialogava, o que claramente não impediu que muitas delas fossem abertamente consideradas essenciais à formação de seu pensamento. Nesse sentido, não seria exagero dizer, como o fez Brooks (1998), que a sociologia durkheimiana é inseparável e um produto dos problemas centrais da filosofia em que foi educado e preparado.4 Ainda que tenha trazido para seu empreendimento muito do naturalismo, do positivismo e de diversas outras formas de pensar estranhas a seu ambiente intelectual de origem, Durkheim 3.  O século XIX foi um período em que as teorias científicas passaram forçosamente a ser reinterpretadas para admitir o progresso histórico ou a evolução da vida e do homem, gerando concepções sobre uma ascensão gradual a níveis superiores da existência concebidos como liberdade e dando lugar a teses sobre o avanço criativo da natureza rumo a formas cada vez mais elevadas, amparadas por noções de uma evolução biológica, individual ou social. O desenvolvimento do pensamento sociológico daquele período pode ser lido como mais um capítulo dessa história, em que ao lado das teorias sobre a evolução biológica comparecem concepções sobre o desenvolvimento da modernidade, como um movimento em direção à liberdade. 4.  Assim, Brooks (1998) ressaltou o fato de que muitos dos que representaram uma marcante inovação na psicologia ou na sociologia tiveram uma relação estreita e de imersão na filosofia acadêmica durante toda a vida. Essa relação começava muito cedo, em suas formações nos liceus; muitos se especializavam em filosofia na École Normale Supérieure, a partir da qual se tornavam professores de filosofia nos próprios liceus; suas próprias teses seriam mais tarde avaliadas e submetidas às apreciações dos filósofos acadêmicos; por fim, eles ensinavam e recrutavam novos pesquisadores dentre os estudantes de filosofia.

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permanecia inserido, de modo bastante significativo, em muitas das orientações características daquela filosofia sob o domínio da qual havia sido “treinado”. Podemos seguramente afirmar que, mesmo diante de uma crescente exigência de cientificidade da sociologia e mesmo com as pretensões declaradas de emancipação da filosofia, os desenvolvimentos sociológicos sempre se mostraram continuamente dependentes de uma série de pressuposições filosóficas, tornando evidente a profunda dependência da sociologia em relação a uma “filosofia da sociologia”, a uma filosofia social ou mesmo a uma metafísica do social (VANDENBERGHE, 2012). Contudo, são poucos os estudos sobre as relações entre a sociologia durkheimiana e o pensamento filosófico que era então hegemônico nos meios acadêmicos franceses. As razões para o reduzido número de trabalhos são difíceis de compreender quando lembramos que, há muito tempo, já se demonstrou que muitas das características distintivas da sociologia durkheimiana resultaram de sua imersão em determinados problemas de filosofia moral (WALLWORK, 1972). Mas, nas últimas décadas, tem-se empenhado em demonstrar que a obra de Durkheim, assim como a própria emergência da sociologia e da psicologia francesas – que ao final do século se tornariam institucionalizadas como disciplinas independentes –, não pode ser compreendida como uma simples negação das heranças do espiritualismo ou do ecletismo. A relação entre essa tradição e as emergentes disciplinas científicas foi intensa, de modo que os grandes inovadores tiveram contato com tal tradição de pensamento durante toda vida intelectual, o que fez com que ela participasse das estratégias teóricas para dar conta da especificidade dos fenômenos relativos ao homem. Por causa disso, estão sendo revistas as narrativas que se centravam tão somente no afastamento das nascentes disciplinas em relação a um tipo de pensamento “decadente” e “anticientífico”, que passam a ser vistas, agora, mais como esforços de conciliação e compatibilização, em que a ordem era mais mesclar do que rejeitar. Por essa razão, tem se tornado cada vez mais clara a necessidade de explorar a fundo a relação entre Durkheim e o espiritualismo

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francês e, especialmente, o novo espiritualismo. Nos últimos anos, impulsionados pela relativamente recente descoberta e publicação das lições de Durkheim no liceu de Sens, de 1883-1884, alguns estudos importantes já chamaram a atenção para certas dívidas do autor com o chamado “espiritualismo eclético”. Em The Eclectic Legacy, John Brooks (1998) realizou um trabalho voltado para a relação entre a “filosofia acadêmica” e a institucionalização da psicologia e da sociologia, assinalando o compromisso delas com muitas convicções ecléticas, incluindo a ênfase na realidade psicológica entendida de forma específica, bem como os esforços conciliatórios durkheimianos como uma extensão do ecletismo. Em Rethinking Durkheim and his Tradition, Warren Schmaus (2004) procurou situar a discussão sobre as categorias, trazida nos trabalhos tardios de Durkheim, no contexto da tradição filosófica francesa, demonstrando, a meu ver convincentemente, as suas claras dívidas com o espiritualismo eclético, inclusive na sua interpretação da filosofia kantiana.5 Muito embora tenhamos esses estudos, faltava ainda uma investigação focada nas discussões em torno da defesa dos pilares centrais do espiritualismo e do novo espiritualismo: as noções de liberdade e espontaneidade da atividade espiritual. No presente capítulo, busco contribuir para suprimir tal lacuna, tematizando as relações de Durkheim com o espiritualismo francês, com atenção especial à exigência espiritualista quanto ao caráter ativo da alma humana, da consciência e das escolhas morais. Isso nos remeterá a uma discussão em torno das polarizações entre liberdade e determinismo, moralidade e hábito. A investigação não se resumirá, contudo, à questão das influências do espiritualismo sobre o autor, pois minha intenção é explorar não só a maneira pela qual o autor assimilou as contribuições da tradição espiritualista, mas também as formas pelas quais se afastou e dialogou com ela. Meu argumento é que Durkheim dialogou e incorporou elementos da filosofia espiritualista nas várias 5.  Ainda sobre esse crescente interesse e reconhecimento, poderíamos citar o livro The development of Durkheim’s social realism ( JONES, 1999) e a introdução de Gross à tradução para o inglês das notas do liceu de Sens [Notes from the Lycée de Sens Course] (GROSS, 2004).

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etapas de sua teorização, de modo a criar, ao final, uma síntese entre as diversas posições conflitantes sobre questões cruciais de teoria social. A seguir, recuperarei, primeiramente, alguns dos princípios básicos do espiritualismo, trazendo sucintamente a crítica do positivismo a esta corrente de pensamento, para, depois, apresentar o que considero ter sido um movimento de síntese teórica no qual situo a obra durkheimiana. Apenas então passarei a percorrer cronologicamente as várias etapas da produção de Durkheim. 1. O Espiritualismo Filosófico, a Hegemonia Eclética e a Crítica Positivista O cenário intelectual em que se travou grande parte da discussão sobre as ciências do homem na França do século XIX contou com a presença da chamada tradição “espiritualista”. A meu ver, certas pressuposições centrais dessa filosofia, tal como cultivada nos meios acadêmicos franceses do século XIX, produziram alguns efeitos notáveis na emergência da sociologia na França. Colocandose como guardiões de uma irredutível especificidade do espírito humano, os filósofos espiritualistas exerceram um duplo papel: por um lado, obscureceram e travaram o desenvolvimento do potencial sociológico para a elucidação dos fenômenos morais, dificultando a compreensão de temas para os quais o olhar das ciências sociais seria fundamental; por outro, contribuíram para afastar e contestar várias formas de reducionismo da existência mental e espiritual, colocando-a intransigentemente como avessa a determinações simplistas e, assim, gerando uma pressão para a formulação de saberes mais sofisticados sobre temas que eles consideravam como sendo de seu domínio exclusivo. Pelo termo espiritualismo (spiritualisme) costuma-se qualificar toda uma linhagem da filosofia francesa que teve início nas décadas finais do século XVIII e que carregava uma preocupação central: salvaguardar a peculiaridade constitutiva da posição humana no mundo e, com isso, apartá-la da intenção de submetê-la e reduzi-la a formas

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de compreensão que seriam, sob sua ótica, inadequadas.6 Não por acaso o seu alvorecer ocorreu no final do século XVIII, quando da expansão de um método científico que passava a incluir o estudo dos fenômenos corpóreos e psíquicos da vida humana, florescendo a tentação de reduzir toda a vida humana, inclusive toda a vida intelectual, a suas bases fisiológicas ou ao resultado de um complexo jogo de estímulos e reações, levando a tentativas de destacar os vínculos de dependência do homem com sua natureza e com o ambiente social que o circunda. Nesse sentido, uma concepção puramente cientificista do homem significa, para eles, perder de vista aquilo que ele possui de mais profundo: sua interioridade, sua consciência e, especialmente, sua liberdade. 1.1. Maine de Biran (1766-1824): Esforço e Hábito, Atividade e Passividade As origens do pensamento espiritualista francês são geralmente associadas a Maine de Biran, filósofo em quem se inspirariam os grandes expoentes posteriores dessa vertente, mas que inicialmente teve fraca ressonância na França, por não ter se dedicado ao ensino e pela publicação tardia de suas principais obras. Maine de Biran descrevia seu próprio empreendimento como um estudo sobre os fundamentos da psicologia que, pela introspecção, debruçase sobre as faculdades do espírito enquanto elas são exercidas, evitando as abstrações da metafísica tradicional (ENGEL, 2009). É absolutamente central ao seu pensamento a contraposição entre a atividade do espírito e a passividade que caracteriza as demais ordens do ser. Isto é, o núcleo de sua antropologia filosófica supõe uma distinção entre a atividade interior e a passividade oriunda 6.  Muitos filósofos argumentam que uma definição precisa do espiritualismo é sempre problemática e que seria mais conveniente abandonar a tentativa de dar uma definição abstrata precisa para simplesmente apresentar o espiritualismo como uma corrente de pensamento, ou melhor, um movimento que parte de Maine de Biran até Bergson e que insiste na espontaneidade da atividade espiritual humana como chave para interpretação da realidade, opondo-se às formas de pensar deterministas e materialistas.

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dos fatores externos, afirmando a impossibilidade de derivação das primeiras em relação a estes últimos. Visualizando a vida interior como um campo de conflito entre a vida sensível e a vida reflexiva, o filósofo concebia seu próprio homo duplex, em que a parcela relativa às paixões e aos desejos não corresponde ao verdadeiro eu, mas sim a que envolve a memória, o raciocínio e a vontade (GUNN, 2009, p. 9). O pensamento biraniano está, nesse sentido, envolvido no problema central da liberação da vontade em relação às coerções físicas ou fisiológicas. Como explica Lucien Lévy-Bruhl (1899, p. 321-8), a primeira realidade que o sentido interno percebe é a de uma atividade que tem consciência de si e, precisamente por conta disso, não é mera passividade, mas uma vontade, o que significa liberdade. Essa liberdade depende da consciência de nossos elementos ativos, de nossa atividade reflexiva, de nosso esforço.7 O esforço é considerado por Maine de Biran como o “fato primitivo”, isto é, um fato psicológico acessível apenas através da introspecção, que remete à experiência sentida conscientemente do e no próprio corpo em atividade. É esse sentido de esforço que revela o eu (moi), nossa força interior, pois para ele a alma é concebida como força (BIRAN, 1803, p. 25-29). Para Duburque (1990), Maine de Biran foi o primeiro a eleger a noção de esforço como alicerce de uma análise psicológica e como elemento propulsor e revelador de nossa existência ativa frente aos componentes passivos que a acompanham. Através do esforço temos uma consciência imediata de nós mesmos como livre causa de nossas próprias volições: quanto maior o esforço ativo do eu, mais somos livres e não vítimas do hábito. Em Influence de l’habitude sur la faculté de penser (BIRAN, 1803])8, o filósofo ressalta que a liberdade não pode ser sempre realizada, já que contra a atividade interior existem sempre forças contrárias, passivas. E entre os polos da atividade absoluta e da passividade completa, há hábitos variando 7.  Para uma análise mais aprofundada a respeito da noção de esforço e de sua centralidade para o pensamento de Maine de Biran, ver L’Effort, de Bernard Duburque (1990). 8.  BIRAN, Maine de. Influence de l’habitude sur la faculté de penser. Paris: Henrichs, An XI, 1803.

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em diversos tipos e graus, que se aproximam mais ou menos desses dois extremos. Nesse sentido, há hábitos passivos, que se constroem em relação às sensações e às percepções, e hábitos ativos, que se relacionam fundamentalmente à memória. Os hábitos passivos e ativos representam uma atenuação do esforço, já que através do tempo e da repetição eles tendem a suprimir o esforço consciente. Por isso, se a vida da inteligência é essencialmente atividade, essa atividade, para ser mantida, deve ser continuamente retomada contra aquilo que a ameaça de todos os lados, isto é, o hábito. Se não reagirmos ao hábito, a passividade passa a prevalecer em nossa vida psíquica. Mas se, ao contrário, opomos aos hábitos nosso esforço enquanto expressão de nosso ser mais elevado, o espírito encontrará neles até mesmo um auxílio, pois podem proporcionar uma maior facilidade e precisão dos movimentos e operações voluntários. Portanto, ainda que promova uma função auxiliadora e facilitadora de certas operações voluntárias, o hábito é hierarquicamente inferiorizado em relação à expressão mais elevada e livre da existência psíquica, sendo tomado pelo filósofo de forma predominantemente negativa, como fonte de passividade e de forças cegas que tendem a se reproduzir e a obscurecer a consciência. Além disso, o princípio de toda moralidade é, para Maine de Biran, a consciência do eu, que pressupõe justamente a livre atividade interior através do esforço ativo. A ação verdadeiramente moral é, portanto, expressão dessa atividade interior mais elevada, e não uma simples passividade como a que caracteriza o hábito. Como a vida moral não pode encerrar-se apenas na consciência do indivíduo, ela deve abrir-se aos outros. E isso só é possível porque haveria no homem “sentimentos expansivos” que, baseando-se no desinteresse e na generosidade, levam-no a reconhecer nos outros os mesmos valores e a mesma atividade que reconhece em si próprio e, assim, a amá-los. Essa expansividade que caracteriza a moral apenas pode se realizar a partir da consciência do eu e pelo caráter ativo do espírito, responsável por nossa personalidade e pela humanidade que haveria em nós ( JANET, 1873, p. 286-305).

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1.2. Victor Cousin (1792-1867) e a Escola Eclética Os escritos de Maine de Biran exerceram tremenda influência sobre diversos dos principais pensadores das décadas seguintes. Entretanto, pela prolongada ausência de publicação de seus trabalhos, alguns princípios espiritualistas disseminaram-se, durante muito tempo, apenas através da obra de Victor Cousin e de sua escola eclética, que acabaria por se tornar uma espécie de “filosofia oficial” na França. A filosofia de Cousin dominou o ensino francês e foi responsável pela criação de uma ortodoxia hegemônica no meio acadêmico, tendo sido ele diretor da École Normale Supérieure, professor da Sorbonne, ministro da educação, organizando e controlando a educação de seu país e, consequentemente, exercendo uma enorme influência sobre uma geração inteira a quem propagava as doutrinas de seu “espiritualismo eclético”, incluindo seguidores de relevo como Théodore Simon Jouffroy (1796-1842) e Paul Janet (18231899). Através de suas posições institucionais, Cousin foi capaz de profissionalizar o ensino de filosofia e de estabelecer como saber legítimo todo um conjunto peculiar de visões filosóficas, disseminadas através da “classe de philosophie”, que levava a filosofia a um status de prestígio como um ponto culminante na hierarquia do conhecimento.9 Assim, o sistema educacional francês concedia à filosofia um papel altamente privilegiado, tornando-a fonte dos saberes necessários e legítimos para a formação intelectual de seus principais pensadores. Mesmo após a morte de Cousin, seriam sentidos os efeitos da institucionalização do espiritualismo eclético e de sua consolidação 9.  O sistema educacional francês trazia como especificidade o ensino de filosofia aos jovens de uma forma muito peculiar através da classe de philosophie, que completava a educação secundária e era extremamente importante para a ocupação de cargos públicos e para a preparação dos estudantes para o exame baccalauréat, crucial à educação universitária ( JONES, 1999, p. 113). Ensinada em apenas um ano (o último ano do ensino secundário), a filosofia era apresentada como o ponto culminante dos saberes e a síntese de tudo o que havia sido ensinado, coroando a educação secundária. Esse era o modo pelo qual os filósofos procuravam reafirmar às pessoas que eles ocupavam o topo da hierarquia do conhecimento (FOURNIER, 2013, p. 46).

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como espécie de poder hegemônico na filosofia acadêmica, incluindo sua decisiva participação na formação dos principais intelectuais, nas avaliações, nas publicações, nos critérios para ascensão profissional e nas disputas por posições no campo acadêmico.10 O ecletismo de Cousin assumia que os sistemas filosóficos divergentes e aparentemente inconciliáveis continham elementos de uma verdade filosófica que só poderia ser alcançada descartando os aspectos rígidos e excessivos de cada doutrina a fim de torná-las conciliáveis entre si ( JONES, 1999; BROOKS, 1998).11 Mas ainda que procurasse conciliar distintas perspectivas filosóficas, Cousin apresentava sua própria doutrina como o verdadeiro espiritualismo, subordinando, assim como Maine de Biran, os elementos sensoriais e sensuais da existência aos espirituais e acentuando a natureza essencialmente espiritual do homem, sua liberdade, sua responsabilidade e sua obrigação moral. Tal como Maine de Biran, Cousin defendia que as bases do pensamento filosófico deveriam partir de uma psicologia, pela qual se poderia analisar e demonstrar as capacidades e os limites da mente humana. A psicologia era entendida como uma ciência da alma e de suas faculdades, implicando precisamente a existência da consciência, devendo se utilizar do método psicológico para organizar e extrair conclusões para todos os ramos da filosofia – a lógica, a metafísica, a ética, etc. De acordo com o filósofo, a peculiaridade dos fatos psicológicos é que eles não podem ser acessados externamente. A observação psicológica deve ser feita por uma análise de nossa vida interior, razão pela qual os estudos psicológicos se diferenciam da fisiologia. Sendo assim, é compreensível que o próprio Cousin preferisse o termo “espiritualismo” a “ecletismo” em relação à sua própria doutrina. Sua visão sobre a moral se compatibilizava também com a de Maine de Biran: ela era compreendida como a busca pelos princípios 10.  Sobre isso, ver: JONES, 1999; SCHMAUS, 2004; BROOKS, 1998; FABIANI, 1988. 11.  De acordo com Jones, o ecletismo de Cousin era uma extensão filosófica de suas visões políticas e ideológicas igualmente conciliatórias ( JONES, 1999, p. 114). Por exemplo, ainda que um de seus principais objetivos fosse o de contribuir para uma educação mais secular na França, laicizando o ensino de filosofia, ele procurava apresentar sua doutrina como perfeitamente compatível com o catolicismo, de modo a neutralizar o trabalho e a influência dos chamados tradicionalistas, como De Bonald, De Maistre e Lamennais.

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que deveriam reger a ação livre, pressupondo a existência de indivíduos moralmente livres e responsáveis. Por isso, tornava-se indispensável a ideia de livre-arbítrio. Mas se por um lado os princípios morais eram tomados como algo para além das determinações materiais, por outro lado o espiritualismo eclético sustentava que a moral seria, ao menos em parte, uma ciência de observação, devendo também descrever os fenômenos morais: para essa ciência, seria preciso descrever e analisar as práticas morais, já que os fenômenos da consciência moral eram considerados como parte inegável da natureza humana, e por isso a observação deveria revelar como os seres humanos realizam julgamentos morais nos diversos domínios de sua existência. Dessa forma, a tradição do espiritualismo eclético subdividia a moral em várias partes, de acordo com os vínculos a que é relacionada: a família, o Estado, a humanidade, etc. (COUSIN, 1854; JANET, 1893). Um dos objetivos fundamentais de Cousin foi fundar uma “metafísica espiritual” com base em uma psicologia, usando de sua influência para rejeitar o sistema de Kant, as doutrinas empiristas, bem como as tendências materialistas e céticas de seu tempo. Seguramente, o espiritualismo francês possui fortes dívidas para com toda uma linhagem de concepções filosóficas e religiosas que claramente visam fundamentar a superioridade da posição da alma no universo, sempre confrontada com ordens hierarquicamente inferiores da realidade, incluindo os atributos corpóreos do homem. Nesse sentido, possui longa e espinhosa jornada de contestação do materialismo, dada sua tendência de afirmar o caráter psíquico da realidade e sua irredutibilidade, sendo por isso muitas vezes associado e mesmo mencionado como o “idealismo francês”. Durante boa parte do século XIX, a filosofia acadêmica francesa seria dominada pela tradição do espiritualismo eclético moldada por Cousin. Com o tempo, ele e seus discípulos moldaram todo um universo filosófico que incluía e encorajava uma abordagem empírica sobre os fenômenos humanos, não vendo motivos para a separação entre a filosofia e as ciências do homem, razão pela qual haveria uma disputa ferrenha com as demais abordagens que buscavam adentrar

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nesse mesmo domínio do conhecimento. Contudo, não tardariam a aparecer uma série de críticas à filosofia de Cousin, com acusações de que esta possuiria um caráter vago, falta de rigor e, sobretudo, de ser alheia aos demais desenvolvimentos científicos do período. Tais críticas seriam acompanhadas pela atração que muitos dos pensadores do período passariam a ter para com outra vertente intelectual altamente influente daquele século: o positivismo de Comte. 1.3. Auguste Comte (1798-1857): a Negação Positivista da Cientificidade do Espiritualismo A obra de Comte representou um ataque direto ao coração do espiritualismo. Reconhecido por ter cunhado o termo sociologia, Comte sustentou uma concepção de ciência na qual a realidade espiritual, assim como a realidade física, seria passível de leis e poderia ser conhecida de modo análogo àquela última. De acordo com sua visão, se as ciências naturais já se encontravam mais desenvolvidas àquela época, a ciência social, por sua vez, ainda estaria distante de se afastar das pseudoexplicações típicas dos estágios anteriores do desenvolvimento do pensamento, sendo os métodos teológicos e metafísicos ainda empregados como meio de investigação ou de argumentação. Por isso, na abordagem dessa ordem de fenômenos não deveria haver espaço para qualquer “psicologia ilusória” que, sob orientações nitidamente teológicas e metafísicas, estaria procurando se reavivar em seu tempo (COMTE, 1830). Para chegar às leis fundamentais que regem o espírito humano, essas psicologias deveriam ser afastadas a fim de não se colocarem como obstáculo ao estudo dos fenômenos intelectuais. Daí a necessidade urgente de se fundar uma “física social” capaz de realizar um estudo positivo desses fenômenos. Comte acreditava que a crescente necessidade de estudos positivos sobre os fenômenos espirituais seria tão evidente que até mesmo os metafísicos (Comte aqui tem em mente os espiritualistas), a fim de frear a decadência de sua “pretensa ciência”, teriam passado a apresentar suas doutrinas como fundadas também na observação dos fatos, elencando duas espécies de observação de igual relevo: uma exterior e outra interior.

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Esta última espécie seria destinada ao estudo dos fenômenos intelectuais. Comte, evidentemente, rejeita a validade científica dessa última espécie de observação, sendo o método psicológico nulo em seu princípio: “a observação interior engendra quase tantas opiniões divergentes quantos indivíduos há que acreditam a ela se entregar” (COMTE, 1830, p. 37). Nesse sentido, os métodos introspectivos são vistos como incompletos, contraditórios, vagos e estéreis, e os fenômenos espirituais, tal como as outras categorias de fenômenos, devem ser observados “de fora” (VERRIER, 1949). Isso porque a verdadeira revolução científica dependeria da substituição da determinação de causas – que são consideradas inacessíveis – pela simples descoberta de leis, isto é, de relações constantes entre os fenômenos observados. Para Comte, se a ideia de sociedade ainda aparecia como uma abstração é porque não se havia compreendido que tanto a vida prática como a vida especulativa seriam dependentes das ligações estabelecidas entre os homens, da solidariedade social mais ampla que as rege. Disso resulta que a vida intelectual não poderia ser cientificamente e proveitosamente estudada por meio de uma psicologia, mas apenas de um ponto de vista social. E se a vida intelectual deveria ser compreendida como dependente de leis características dos fenômenos sociais, a moralidade também deveria ser explicada por sua relação com as leis do progresso da inteligência no decorrer da história. Com isso, a reforma da ciência estaria intimamente atada a uma reforma da moral, rumo a uma moral positiva pela qual se reorganizaria a sociedade. Nesse sentido, a moral passaria a ser cada vez mais entregue à razão humana, florescendo a reflexão individual e decompondo as fés dogmáticas que até então se mostravam como as únicas bases em que podiam repousar as regras morais (COMTE, 1844). Portanto, o positivismo atingia o espiritualismo frontalmente, avançando e conquistando adeptos em território francês. Com o tempo, os termos “positivismo” e “positivo” passaram a ser empregados para se referir ao espírito científico e aos métodos típicos das ciências naturais e exatas, indo além do próprio “comtismo”. A ciência se tornava caracterizada pela crença no determinismo, em leis

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necessárias e na explicação do complexo por referência ao simples. Com isso, muitos filósofos se viram acuados pelas críticas sobre os limites do ecletismo e do espiritualismo diante do contínuo avanço das ciências positivas. Por um lado, tornava-se difícil não reconhecer que as abordagens cientificistas tinham ultrapassado a abordagem filosófica em muitas questões até então monopolizadas pela filosofia. Por outro lado, a aplicação de pressupostos deterministas e de leis simplistas à vida intelectual logo mostraria suas fragilidades: ao ignorar a complexidade e peculiaridade dos fenômenos espirituais, o positivismo dava margem ao argumento de que estes domínios da vida espiritual realmente deveriam ser defendidos de tal visão de ciência, sofrendo desgastes e ataques. Além disso, a ausência de reconhecimento, por parte de Comte, da psicologia como campo de estudos cientificamente relevante só faria aumentar a desconfiança em relação à verdadeira adequação do positivismo para a compreensão da condição humana. Foi nesse contexto que as discussões sobre liberdade e determinismo ganharam força e centralidade. 2. Positivismo, Neocriticismo e Neoespiritualismo: Rumo às Sínteses entre Liberdade e Determinismo Nas últimas décadas do século XIX, as limitações – tanto do positivismo de Comte quanto do ecletismo espiritualista de Cousin – para o avanço dos saberes sobre o homem tornar-se-iam cada vez mais evidentes. A partir de uma continuada confrontação entre a enfraquecida ortodoxia do pensamento de Cousin e o positivismo, as batalhas centrais foram transferidas para o debate sobre liberdade e determinismo, que passava a moldar o teor das discussões filosófico-científicas sobre o homem a partir da década de 1860. Os adeptos do positivismo atacavam a visão cousiniana de uma individualidade autônoma fora do alcance da investigação científica, vendo o espiritualismo eclético como a face filosófica da Igreja e do

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Império.12 Os discípulos de Cousin respondiam com uma variedade de argumentos a favor da autonomia e da indeterminação da vida intelectual. Foi então que as discussões prosseguiram guiadas por uma necessidade de crítica a essas duas vertentes intelectuais em suas formas originais. E o ponto de maior tensão nas discussões sobre a relação entre ciência e filosofia se expressava prioritariamente no problema da liberdade humana e da extensão de seus efeitos para a compreensão do mundo social e psicológico.13 Desse modo, encontramos nesse período uma série de desenvolvimentos sobre o problema da liberdade procurando fornecer alternativas tanto ao ecletismo de Cousin quanto ao positivismo de Comte, assim como a outras soluções filosóficas vinculadas, sobretudo, à filosofia de Kant. Surgem espaços a algumas tendências: uma procurava formular uma versão revista e corrigida do positivismo, como encontramos em Ernest Renan e Hippolyte Taine; outra consistia em uma forma de “neokantismo” ou “neocriticismo”, como o de Charles Renouvier; e uma terceira vertente era a representada pelo novo espiritualismo, que, como veremos, contou com expressivos porta-vozes que ocupavam posições de peso no meio intelectual francês. 2.1. O Positivismo Revisado e o Neocriticismo de Renouvier Por um lado, Hippolyte Taine (1828-1893) e Ernest Renan (1823-1892) encarregaram-se em levar adiante o espírito positivista, expressando uma firme crença no determinismo, mas sem o compromisso com muitos dos pressupostos comtianos. A crença no determinismo é mais clara e rígida nos primeiros trabalhos de 12.  Pode-se dizer, como afirma Revill (2009), que esse debate foi em parte uma transposição das lutas entre republicanos e a Igreja, e um intermediário para a batalha disciplinar entre as ciências e as humanidades. 13.  Seja na esfera de uma estrita fundamentação religiosa ou filosófica e nas discussões sobre o livre-arbítrio, seja por sua importância social, política e econômica – é bom lembrar que “liberté” era a primeira das três palavras de ordem da república –, esse problema foi ventilado de forma aguda naquele período. A filosofia, não menos que as discussões políticas, estava comprometida com a sua tematização. Por isso, é sempre relevante ressaltar que as discussões em foco tinham dimensões políticas, sociais e institucionais que, sem dúvida, atuavam como componentes estruturantes das posições em debate.

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Taine, que eram hostis a qualquer liberdade. Ao final de sua obra De l’intelligence (1883), ele afirma que o determinismo “se torna a base de todo o progresso e toda a crítica científica” (p. 454). Taine considera que a ciência não poderia conceder espaço à liberdade e defende uma doutrina da determinação universal, que incluiria não apenas um determinismo físico como também um determinismo psicológico que contrariaria o que ele chamou de “ilusão humana” sobre a liberdade de ação. Outros desenvolvimentos científicos foram consideráveis nesse quesito, principalmente aquele presente na obra de Claude Bernard (1813-1878), um dos principais fisiologistas do século XIX, que foi uma das que mais impactaram a nova geração de filósofos e cientistas que buscavam um modelo de ciência capaz de adentrar no domínio da vida humana (HIRST, 1980). Bernard era reconhecido também como um filósofo e seu conceito de determinismo científico foi especialmente influente. Para ele, o princípio do determinismo deveria ser absoluto tanto para os seres brutos quanto para os seres vivos (BERNARD, 1875, p. 105-15). Por outro lado, pensadores vinculados ao neocriticismo, como Charles Renouvier (1815-1903), ofereciam objeções à extensão dos modelos deterministas às ciências humanas. Com seu ideal político de uma “república de homens livres”, Renouvier foi um pensador bastante influente à época, especialmente sobre os intelectuais republicanos (WEISS, 2010, p. 14, 53). Ele entendia que os fenômenos psicológicos deveriam ser explicados no seu próprio nível, o que significava adotar as noções de finalidade e de personalidade como centrais em sua abordagem. Igualmente, a noção de liberdade não poderia ser afastada para a compreensão das ações humanas, sendo ela pensada como capacidade humana de produzir ou suspender as ações (RENOUVIER, 1908). Com isso, qualquer abordagem da mente deveria levar em conta a liberdade da volição humana, sob o risco de negligenciá-la dentro de um esquema determinista. Assim como Kant, Renouvier usava sua filosofia crítica para definir os limites precisos do conhecimento humano, mas diferentemente do filósofo alemão e assim como os espiritualistas, ele acreditava que a liberdade da vontade não deveria estar situada no reino numênico,

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mas deveria se manifestar no mundo fenomênico, pela própria capacidade humana de produzir ou suspender as ações. Essa liberdade, embora não pudesse ser provada lógica ou empiricamente, também não poderia ser descartada, de modo que qualquer psicologia fundada sob orientações estritamente deterministas seria inadequada. Da existência do livre-arbítrio decorre que não poderia haver leis deterministas na história como, por exemplo, leis do progresso. Ainda assim, Renouvier asseverava que uma ciência da moral era possível, desde que respeitadas essas especificidades de seu objeto. O impacto das ideias de Renouvier sobre o pensamento durkheimiano foi significativo. No que concerne às exigências sobre o caráter ativo do agente humano e sua liberdade, é bem provável que, ao lado do espiritualismo, o seu neocriticismo tenha desempenhado um papel relevante. Alguns estudos têm chamado a atenção também para a relevância do pensamento de Renouvier para a formação intelectual de Durkheim, como os trabalhos de Susan Stedman Jones (2000, 2001). Mas o que importa aqui é assinalar que, para além das alternativas de um positivismo renovado e de um neocriticismo kantiano, o cenário intelectual francês passaria a contar com outra alternativa teórica: a filosofia neoespiritualista, que esteve presente de forma notável na formação e consolidação do pensamento sociológico francês. 2.2. O Neoespiritualismo como Tentativa de Síntese entre Liberdade e Determinismo As reações mais veementes contra a extensão do modelo determinista das ciências naturais aos fenômenos humanos encontraram sua expressão, nas últimas décadas do século XIX, em uma renovação do espiritualismo. Seus representantes contavam com uma inspiração mais biraniana do que eclética, pois, diferentemente de Cousin, procuravam absorver os avanços das disciplinas científicas levados adiante pelo espírito positivista. Eles buscavam formas de promover, por uma via distinta da kantiana, uma reconciliação entre a abordagem das ciências naturais e a especificidade do homem no

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mundo, considerando seu papel ativo e criativo, sua personalidade e sua espontaneidade. Como já devidamente mencionado por Schmaus (2004, p. 57-60), eles detinham conhecimento e admiração pela obra de Kant, que era a principal referência sobre a relação entre liberdade e ciência com a qual dialogavam. Mas a ideia central do sistema kantiano, a da divisão entre o numênico e o fenomênico, foi considerada artificial, sendo lugar comum, dentre eles, as acusações sobre a artificialidade da solução kantiana. Eles sentiam necessidade de evitar o formalismo e as abstrações da filosofia kantiana e de resolver a tensão entre ciência e liberdade articulando a filosofia e a psicologia. Para isso, eles deveriam encontrar soluções inovadoras, tendo como principal pretensão a de construir elementos ou conceitos que mediassem liberdade e determinismo suprimindo a polarização abstrata. O novo espiritualismo se erigiu como uma busca por uma abordagem capaz de contemplar a complexidade característica dos fenômenos psicológicos, de modo a refutar as teses sobre o determinismo psicológico. Porém, ao fazê-lo, não se restringia à elaboração filosófica, mas procurava obter legitimidade científica. Se, por um lado, aqueles que buscavam levar adiante as convicções do positivismo, as abordagens naturalistas e as teses deterministas passavam a ter de fundamentar suas posições no plano psicológico sem negar, diferentemente de Comte, a cientificidade da psicologia, por outro lado, os que buscavam levar adiante o espiritualismo seriam cada vez mais obrigados a lidar com a determinação social sobre a espiritualidade do homem. Desta forma, estava em curso um movimento de síntese teórica que procurava mesclar e conjugar as contribuições do positivismo e do espiritualismo, às vezes mais tendentes a um ou a outro, devendo tais sínteses emitir um posicionamento a respeito do problema sobre liberdade e determinismo. Em quase todas as posições, de toda forma, compareciam os raciocínios próprios do espiritualismo biraniano, com as noções de hábito, esforço e liberdade. Alguns dos principais representantes do novo espirituaslimo foram Félix Ravaisson, Étienne Vacherot, Jules Lachelier, Alfred Fouillée, Émile Boutroux, Jean-Marie Guyau e Henri Bergson. Félix Ravaisson (1813-1900) desenvolveu, em De l’habitude (2008 [1838]),

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a ideia de vida como sendo uma forma de unificação da atividade e da passividade e de justificação da tendência natural à espontaneidade.14 Se o mundo material seria marcado pela necessidade, o mundo vivo daria lugar à atividade espontânea manifestada em todos os organismos vivos. O ponto de interseção entre os dois reinos seria o hábito, como disposição que combina em si os mecanismos da matéria com a espontaneidade dinâmica da vida (RAVAISSON, 2008 [1838], p. 24-7). Para Ravaisson, o hábito era o elemento de mediação para as tensões em debate. O hábito não é um mero estado, mas consiste em um modo de ser (manière d’être) e em uma disposição que passa a ser duradoura e resistente à mudança de modo tanto mais forte quanto mais repetido ou prolongado for o processo em que se consolidou. É através dele que a atividade espontânea da vida se submete às condições materiais, à esfera dos mecanismos, resultado de uma série de movimentos voluntários que encontram resistência e são acompanhados por um sentido de esforço. Ravaisson buscou em Maine de Biran não só a ênfase no hábito como mediação entre os elementos ativos e passivos da existência, mas também a noção de esforço como expressão do eu mais ativo e como meio de enfrentar as tendências passivas. Assim, necessidade cega e liberdade são unidas pelo hábito, formando uma ponte entre liberdade e determinismo. Mais tarde, Étienne Vacherot (1809-1897) adotou uma posição à qual ele mesmo se referia como “novo espiritualismo” que, aliás, serviu de título para seu livro Le nouveau spiritualisme (1884), visando a uma conciliação entre a atitude científica e a especificidade espiritual do homem.15 Esse movimento de reaproximação entre o espiritualismo e as ciências positivas rendeu ainda outros rótulos, como o de “positivismo espiritualista”. Tornava-se evidente para os neoespiritualistas que a assimilação dos desenvolvimentos científicos deveria servir como forma de rejeitar o determinismo absoluto e justificar a liberdade e o caráter ativo da alma humana. Nesse sentido, a inadequação das atitudes puramente cientificistas era um tema recorrente. Jules Lachelier (183214.  RAVAISSON, Félix. Of Habit/De l’habitude. London: Continuum, 2008 [1838]. 15.  VACHEROT, Etienne. Le nouveau spiritualisme. Paris: Librairie Hachette, 1884.

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1918) acreditou ter encontrado a mediação do problema entre determinismo e liberdade ao tratar dos fundamentos da indução (1871), com a formulação das noções de movimento e de força.16 De seu lado, Alfred Fouillée (1838-1912), em La liberté et le déterminisme (1907), forneceu sua resposta através da noção de “ideias-forças”, equiparando ideias a forças existentes no mundo: os estados de consciência deveriam, para ele, ser tratados como forças.17 Por conta disso, as ideias seriam dotadas de eficácia, de modo a poderem ser consideradas como causas eficientes. Por sua vez, Émile Boutroux (1845-1921) buscou sua solução na noção de contingência (1874).18 Confrontando as teses sobre o determinismo, ele construiu uma doutrina da liberdade baseada na contingência. É na independência de uma ordem de realidade superior em relação à inferior, isto é, na independência das formas vivas do ser em relação à matéria bruta e, mais ainda, na independência das formas espiritualizadas e pensantes do ser em relação à matéria orgânica e à rigidez que a acompanha, que cresceria o espaço da contingência, da liberdade e da espontaneidade. Assim, a aparente uniformidade a partir da qual alguns cientistas haviam procurado derivar leis psicológicas seria tão somente um dos aspectos da atividade humana, negligenciando-se indevidamente aquilo que constituiria a essência da condição da ação humana, insuscetível de determinações absolutas e não condenada ao reino da necessidade. Além disso, é interessante notar como Boutroux assimila as ações do homem orientadas pelas ordens mais baixas nele presentes à busca de interesses próprios e egoístas: o homem que persegue apenas seus próprios interesses é escravo de sua própria natureza. Por isso, a verdadeira liberdade deveria se constituir e se fortalecer em sociedade, isto é, por sentimentos sociais. Subordinando-se espontaneamente à sociedade, a liberdade humana reprime as paixões egoístas que retiram do homem a posse sobre si mesmo (BOUTROUX, 1898, p. 158-65). 16.  LACHELIER, Jules. Du Fondement de L’induction. Paris: Librairie Philosophique de Badrange, 1871. 17.  FOUILLÉE, Alain. La Liberté et le déterminisme. Paris: Félix Alcan, 1907. 18.  BOUTROUX, Émile. De la contingence des lois de la nature. Paris: Félix Alcan, 1895 (2ª edição da tese de doutorado defendida em 1874).

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É importante notar que se fortalecia aí, enquanto resultado da fusão dos elementos do positivismo com as reivindicações espiritualistas, uma concepção da sociedade como meio da plena realização da liberdade humana. Tal fusão seria mais nítida em Jean-Marie Guyau (1854-1888)19, cujas obras foram rotuladas pelo próprio autor de “estudos sociológicos”. Assimilando muitos elementos do positivismo e do naturalismo, ele tratou a noção de causa eficiente como adequada para as ciências do homem. Essa assimilação, contudo, não significou o abandono das preocupações centrais ao espiritualismo. Para ele, a liberdade era uma conquista histórica, sendo sociologicamente explicável e vista como fruto de um contexto social cada vez mais anômico.20 Dessa forma, o debate sobre liberdade e determinismo ocupou o centro do palco nas discussões sobre a especificidade da condição humana e de sua relação com as outras ordens da natureza. Na virada do século XIX ao XX, a filosofia neoespiritualista contava com uma significativa predominância institucional nos liceus e nas universidades, sedimentando-se naquilo que Brooks (1998) chama de “filosofia acadêmica”, que exercia uma grande influência no campo intelectual francês nas décadas de 1870 e 1880. Esse foi o período no qual Durkheim iniciou seus estudos. Naquele momento, os maiores expoentes do pensamento francês procuravam formular perspectivas mediadoras, conciliatórias e originais da polarização entre liberdade e determinismo. Porém, nenhuma das opções conciliatórias parecia suficientemente consistente para servir de base para uma ciência social, que seria objeto de interesse renovado e crescente a partir da década de 1880, na esteira das contribuições de Spencer e Espinas. A ciência social começaria a despontar como a mais promissora fonte de respostas para muitas das discussões dominadas pela filosofia, e 19.  Os principais livros de Guyau são, em ordem cronológica: GUYAU, Jean-Marie. Crítica da ideia de sanção. São Paulo: Martins Fontes, 2007 [1883]; id. Esquisse d’une morale sans obligation, ni sanction. Paris: Félix Alcan, 1885; id. A Irreligião do Futuro: Estudo Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2014 [1887]; id. Éducation et Hérédité: étude sociologique. Paris: Félix Alcan, 1889; id. A arte do ponto de vista sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [1889]. 20.  Sobre os “estudos sociológicos” de Jean-Marie Guyau, ver AMARO, 2014, capítulos 1 e 2.

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a sociologia renasceria profundamente atada à missão de responder ou de se posicionar em relação aos principais impasses presentes naquele contexto. 2.3. Durkheim e Guyau: a Via Sociológica de Mediação pela Moralidade Eis então que entra em cena outra forma de mediação para o impasse, tão promissora quanto polêmica, que estaria no epicentro dos debates dos próximos anos: a moralidade. Esta seria crucial na abordagem tanto de Durkheim quanto de pensadores neoespiritualistas como Jean-Marie Guyau e Henri Bergson. Todos eles acreditavam poder solucionar, através da noção de moralidade, os problemas engendrados por décadas no pensamento francês. Eles procurariam responder ao problema da liberdade em sua relação com os determinismos intrínsecos às ordens inferiores do ser, inclusive os que circundavam de perto a alma humana. Diante da constatação de que havia algo de regular e de rígido na moralidade que dependia de sua relação com contextos societários, fato que se tornava cada vez mais evidente na época, eles abraçariam a noção de moralidade como crucial para a fundamentação de seus objetos de estudo. Dada sua relevância como elemento primordial da ação humana e dadas as soluções insatisfatórias colocadas pelo positivismo, pelo neocriticismo e pelo neoespiritualismo, era necessária uma teoria mais sofisticada sobre as propriedades da moral em sua relação com a vida psíquica. A própria tendência de pensar o homem e seus atributos por uma perspectiva evolutiva contribuiu para vê-los como dependentes de seu desenvolvimento histórico, pelo qual se alcançavam formas sociais mais complexas, elevadas ou evoluídas, como uma superação de crenças, costumes e fé tradicionais. Naquele contexto, a moralidade parecia então capaz de mediar a transição entre formas mais ou menos rígidas, mais ou menos elevadas, da espiritualidade do homem. Por essa razão, tanto Guyau quanto Durkheim concluíram que ela poderia ser o caminho para um desenlace sociológico do impasse sobre liberdade e determinismo.

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Em minha tese de doutorado (AMARO, 2014) procurei reinterpretar a obra durkheimiana a partir de uma análise comparativa com a perspectiva de Guyau, situando a produção teórica dos dois autores dentro de um mesmo quadro de tensões e problemas que marcavam o ambiente francês. Ambos procuravam: (a) realizar sínteses teóricas entre o positivismo e o espiritualismo; (b) resolver de forma original o impasse sobre liberdade e determinismo; (c) utilizar a noção de moralidade como o elemento da realidade capaz de realizar essa transição; (d) adotar a noção de vida (vida individual no caso de Guyau e vida social no caso de Durkheim) como chave explicativa; (e) e resolver tais problemas através de uma via sociológica, isto é, de um discurso sobre o homem atado ao desenvolvimento da modernidade. Assim, muitos dos conceitos centrais de suas obras, tais como obrigação, regra de conduta, hábito e anomia, só podem ser devidamente interpretados se incluídos nessa discussão. Para o que importa aqui, é fundamental perceber que, no seio daquele quadro de tensões existentes entre o espiritualismo e o positivismo, o problema científ ico da moralidade era necessário para uma fundamentação sistemática da sociologia. De um lado, é verdade, tínhamos uma propensão cada vez maior à absorção dos desenvolvimentos das ciências naturais, especialmente da biologia e da fisiologia, o que tornava as analogias biológicas extremamente sedutoras para aqueles que procuravam defender as possibilidades científicas de abordar os fenômenos humanos. Mas, ainda que orientado por postulados naturalistas e utilizando-se de analogias com a vida21, Durkheim sabia que os elementos espirituais da existência deveriam ter um tratamento diferenciado e, dentre eles, a moralidade se apresentava como dimensão de especial importância que abriria as portas para uma via sociológica de mediação do debate entre liberdade e determinismo. Isso ajuda a explicar porque, para Durkheim, a fundamentação dessa noção passou a consistir tanto no seu maior desafio quanto no pilar principal capaz de sustentar uma ciência social. 21. 

Sobre isso, ver infra cap. 2 de Magnelli.

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Os fenômenos morais deveriam implicar em algum tipo de rigidez para a vida psíquica, como sendo uma espécie de “disposições normativas” socialmente constituídas. Não por acaso, para Durkheim, assim como para Guyau, o interesse privilegiado da análise sociológica se dirigiria para as regras de conduta e as atividades humanas padronizadas e cristalizadas, cujo traço peculiar era sua orientação normativa. Essas distinções normativas socialmente engendradas, estabelecidas e impostas ao espírito seriam, por isso, fundamentais para o debate sobre autonomia individual e determinismo. Durkheim e Guyau procuram fundamentar a moral no campo da experiência, sustentando que os chamados princípios morais não são normas de caráter absoluto, nem mesmo regras dedutíveis a partir de um princípio formal único. As obrigações morais se dão na experiência histórica dos distintos contextos sociais em que os homens efetivamente se encontram. A moralidade passa, portanto, a ser objeto privilegiado da teorização sociológica ao ser sociologicamente observável e explicável. O que implicava em contestar, ao menos em parte, seu status privilegiado como atributos humanos impassíveis de determinações. Ou seja, o grande problema para Guyau e Durkheim, cujas resoluções correspondem a suas originais formas de pensar, é que realizar a mediação entre liberdade e determinismo através da moralidade significava ter que rebaixar uma parte da vida espiritual à condição de uma rigidez análoga àquela das ordens inferiores, que se constituiriam como empecilhos à liberdade. Realizar tal mediação através da moralidade significava, de um lado, romper com Kant, para quem o agir moral não está submetido às leis causais que operam na natureza, mas aos princípios racionais independentes da experiência; mas significava também o rompimento com o velho espiritualismo, para o qual a moral era pensada como uma busca por princípios que orientam a ação livre e que ocupavam o ápice das manifestações superiores da existência na hierarquia do ser. Se por um lado uma abordagem naturalista da moral significava um rompimento com a sua inviolabilidade característica das versões filosóficas hegemônicas, haveria, contudo, uma série de premissas da tradição de pensamento francês do século XIX que persistiriam

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nos pensamentos de Durkheim e Guyau, especialmente quanto à vinculação da moralidade com a ideia de hábito. A moralidade e o hábito serão pelo menos parcialmente mesclados, a partir do que a questão do esforço far-se-á presente. Contudo, se para os espiritualistas e neoespiritualistas a questão da relação entre hábito, esforço e liberdade já se fazia presente, o acréscimo do ingrediente sócio-moral, feito por Guyau e Durkheim, representaria novos desafios teóricos. Nas próximas páginas, veremos a forma pela qual Durkheim buscou fornecer, nas distintas etapas de sua teorização, uma articulação, na questão da moralidade e do seu papel na constituição da vida psíquica, entre o caráter social da composição psíquica e a “atividade” (ou autonomia) da qual seria dotado cada indivíduo. Vale assinalar, desde já, que o que distingue Durkheim dos neoespiritualistas não é propriamente a sua sociologização da moral, pois também a encontramos claramente em Guyau ou em Bergson, que reconheciam a existência de uma “moral coletiva” ou de uma “moral social” que seriam sociologicamente engendradas e explicáveis. Para alcançar uma perspectiva mais promissora à compreensão da dimensão social da vida moral, era necessário, para o autor, ir além de um espiritualismo sociologicamente ingênuo e de um positivismo sociológica e psicologicamente simplista. Veremos, portanto, que Durkheim irá capturar algumas das virtudes do espiritualismo e do positivismo. Se a grande deficiência do espiritualismo era evidente – a de ver na consciência, na reflexão e na conduta moral algo imune às forças no mundo, em especial as forças resultantes da inserção social e histórica do homem, imunidade esta que ao mesmo tempo garantia a liberdade e negava o poder analítico da sociologia –, por outro lado, ele possuía a vantagem de não pensar a moralidade como algo capaz de restringir a atividade humana e a ação livre, isto é, ele não opunha a moral à reflexão consciente e ativa e, com isso, evitava formas grosseiras de reducionismo da vida espiritual típicas do naturalismo. Por sua vez, se a grande deficiência do positivismo também era evidente ao autor – seu determinismo caía no equívoco de procurar leis por demais simplistas sobre a existência espiritual sem adentrar satisfatoriamente na gênese dos componentes subjetivos da ação, reduzindo a

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sua inerente complexidade –, por outro lado, ele possuía a grande virtude de considerar a “espiritualidade” como sujeita a uma experiência e conformação social e histórica, tomando a mente humana como algo que não está à parte do mundo e nem é imune a determinações e, por isso, como sendo algo passível de tratamento científico. 3. O Jovem Durkheim: Das Lições de Sens à Sociologia como Ciência da Moral 3.1. O Espiritualismo no Jovem Durkheim das Lições de Sens (1883-4) Antes de adentrarmos nas teorizações propriamente sociológicas de Durkheim, convém nos atermos sobre alguns pontos das suas lições de Sens (1883-4). Primeiramente, um pequeno parêntese sobre essas lições. Até poucos anos atrás as discussões sobre o desenvolvimento intelectual do jovem Durkheim tomavam como pontos de partida mais concretos e palpáveis seus primeiros artigos, publicados entre 1885 e 1887. Mas em 1995 um volume manuscrito de quase seiscentas páginas foi encontrado na Sorbonne dentre os documentos pertencentes ao filósofo francês André Lalande, que fora aluno de Durkheim na pequena cidade francesa de Sens.22 Esses manuscritos, que exibiam o título “E. Durkheim – Cours de philosophie fait au Lycée de Sens en 1883-84”, foram imediatamente objeto de interesse de pesquisadores, tornando-se uma fonte de renovada compreensão do jovem professor de filosofia.23 Apesar de ser um texto de apresentação, pelo qual se buscava introduzir os estudantes nos diversos terrenos da filosofia, era permitido (e, em certo grau, até exigido) articular e for22.  Ao deixar a École Normale e após se submeter à agrégation de philosophie em 1882, Durkheim havia se tornado professor dos liceus, primeiramente em Puy, depois em Sens e, finalmente, em Saint Quentin. Seus estudantes o admiravam pelo caráter metódico e claro de suas aulas e Lachelier considerou-o como um dos mais sérios dos jovens professores de filosofia ( JONES, 1999; BROOKS, 1998, p. 198). 23.  Para uma apreciação geral sobre o impacto representado por esse novo material e para uma discussão sobre a autenticidade e o grau de liberdade e de pressões institucionais a que o conteúdo dos cursos estava sujeito, ver a introdução de Neil Gross (GROSS, 2004, p. 1-30).

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necer considerações críticas sobre os diversos temas.24 Isso o torna valioso para melhorar a compreensão do desenvolvimento intelectual de Durkheim, nomeadamente a apreciação da relação entre seu projeto sociológico, que se consolidaria somente alguns anos depois, e os problemas filosóficos dos quais ele emanou. Se, como diria ele mais tarde, a sociologia deveria renovar a filosofia, então o mínimo que encontramos aqui é uma noção sobre o tipo de filosofia que ele acreditava ser necessário renovar. O conteúdo das aulas expõe um ambiente filosófico nitidamente marcado pelos ensinamentos do espiritualismo e da filosofia eclética (SCHMAUS, 2004; BROOKS, 1998; GROSS, 2004). A partir de sua leitura tornou-se possível aclarar uma série de relações entre o discurso filosófico característico do ambiente de que emanava o autor e as dificuldades teóricas que seriam por ele experimentadas em seu projeto de ciência. Ainda que tal relação seja bastante complexa e com muitos desdobramentos dependendo de cada tema específico, é possível afirmar que o rompimento com a “velha filosofia” em razão de sua visão de ciência não significou um rompimento com muitos dos seus temas e pressupostos. A sociologia passaria a ser pensada como uma superação ou renovação da filosofia em muitos de seus domínios, levando adiante muitas discussões tipicamente filosóficas que, caso sejam omitidas pelo intérprete, representarão sérias lacunas na elucidação de um discurso que se pretendia inovador (WALLWORK, 1972). Além disso, como a sociologia não era um campo disciplinar distinto e consolidado, os filósofos eram os 24.  Ainda que atados aos tópicos filosóficos e a conteúdos específicos que deveriam ser obrigatoriamente abordados, naquele momento estes cursos de filosofia estavam abertos a uma tendência que encorajava investigações mais empíricas dos fenômenos psicológicos, permitindo a exposição de uma maior diversidade de abordagens. Havia então uma busca por um meio termo entre originalidade e conformismo, de modo que a própria progressão na carreira dos professores desses liceus dependia da demonstração de certa criatividade na apresentação do material de ensino. Assim, além dos filósofos que compunham as referências legítimas daquele campo intelectual, as abordagens científicas mais empiricamente orientadas pairavam no ar como caminhos alternativos aos problemas filosóficos. O próprio Durkheim, durante suas exposições, cita os trabalhos Gustav Fechner, Ernest Weber, Wilhelm Wundt, Herbert Spencer e Stuart Mill. Sobre isso, ver, por exemplo, Jones (1999, p. 112-52) e Gross (2004, p. 13-22).

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detentores das chaves para a institucionalização da nova disciplina, já que guardavam um enorme poder no sistema educacional francês, tendo sido o público-alvo prioritário de Durkheim. Vale assinalar que, nas décadas finais do século XIX, a filosofia e a sociologia se redefiniriam através de um debate contínuo sobre seus respectivos limites e domínios. Nas lições de Sens, Durkheim define a filosofia como a “ciência dos estados de consciência e de suas condições” e afirma que “o domínio da filosofia é o homem interior” ([1884a] Lycée de Sens Course, p. 34-5). Ele adota, com isso, ensinamentos compatíveis com o espiritualismo, cuja concepção de filosofia coincide com a ênfase na realidade interior entendida como psicologia. Outra importante constatação é relativa à moral. Em uma rápida definição, Durkheim explica que a moral é a ciência que tem como objetivo determinar as leis que regem as atividades humanas (ibid., p. 229). Mas quais seriam as condições para a responsabilidade moral? A primeira, diz ele, é a liberdade, isto é, para ser moralmente responsável, cada um deve ser a causa isolada de suas próprias ações. Dessa forma, a noção de responsabilidade moral é inconciliável com o determinismo, pelo simples fato de que, se não somos livres, não podemos ser culpados por nossas ações. A segunda condição é a identidade do eu, o que nos torna responsáveis pelos atos que cometemos no passado, onde o eu no passado e o eu no presente devem ser idênticos. Como indica Jones (1999, p. 135), apesar do tratamento da moral ser próximo ao de Kant (a lei moral deve ser absoluta, universal e obrigatória), suas condições são pensadas como condições psíquicas. O que faz com que possamos notar o peso da tradição espiritualista na recepção e na crítica de Durkheim em relação a Kant. Em vez de ser buscada em juízos sintéticos a priori, a moral é tratada como objeto de uma ciência experimental, devendo ser compreendida como expressão de fenômenos psíquicos em sua atividade. Contudo, ele não menciona, nas Lições, qualquer insight ou via de solução minimamente sociológica capaz de levar adiante uma ciência da moral. Como sabemos, ele perceberia nos anos subsequentes quais as insuficiências da concepção de moral por ora apresentada.

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Após percorrer vários tópicos em suas aulas, Durkheim centra sua discussão em torno dos elementos que compõem a atividade, entendida como a faculdade pela qual nós produzimos as ações e que se apresenta sobre três formas distintas: o instinto (como atividade não voluntária); o hábito (como atividade que já foi voluntária, mas não é mais); e a vontade (como atividade voluntária) (ibid., p. 148). Os instintos são concebidos como formas de predeterminação natural da atividade, desempenhando um papel importante na vida dos animais, e cumprindo um papel limitado nas crianças, que vai se perdendo à medida que elas crescem. Já o hábito é definido inicialmente como uma tendência à repetição de ações que já foram realizadas muitas vezes, consistindo numa faculdade de preservação, isto é, numa tendência a reproduzir nossas ações passadas. Os hábitos podem apresentar quase todas as características dos instintos, trazendo um caráter inconsciente e uma passividade. Contudo, há diferenças significativas dos hábitos em relação aos instintos que devem ser destacadas. Citando Maine de Biran e Ravaisson, Durkheim adverte para o aspecto “individual” do hábito pelo qual ele se opõe aos instintos, que seriam comuns a todos os membros da espécie. Ele procura demonstrar tanto os elementos ativos envolvidos no processo de formação dos hábitos quanto a possibilidade de eles sempre poderem ser alterados por um ato da vontade. Os esforços ativos podem, com o tempo e com a repetição, dar lugar a hábitos que serão responsáveis por fazer perseverar em nós tendências oriundas do passado. Além disso, o caráter mais ou menos ativo dos hábitos depende da forma como se estabelece a conexão entre os esforços passados e a atividade presente de nossa vontade, que é mediada por uma faculdade específica da inteligência: a memória. Se em sua maior parte a inteligência é uma faculdade ativa, algumas formas mais baixas de conhecimento são notavelmente passivas, pois a tendência à reprodução da ação está associada a um tipo de espontaneidade não refletida (ibid., p. 151-5). Isso quer dizer que os elementos de preservação e reprodução representados pelo hábito são considerados como hierarquicamente inferiores às funções mais ativas e reflexivas do intelecto.

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Dessa forma, ao final da lição, Durkheim lança a questão sobre qual seria o papel do hábito para a vida: embora o hábito seja visto como um elemento facilitador das operações mentais e mesmo necessário à vida, ele enfatiza o elemento habitual da existência como um “inimigo da mudança”, que pode se colocar como um obstáculo ao progresso. Isso porque o hábito tende a nos manter no passado: “há muito a temer ao viver uma vida demasiadamente centrada no hábito, ao se deixar aprisionar por ele e permanecer na imobilidade” (ibid., p. 155). Portanto, ele não só se mostra plenamente inteirado das discussões do espiritualismo sobre a noção de hábito, citando Maine de Biran e Ravaisson, como termina sua lição expondo um posicionamento tipicamente espiritualista. Depois de tratar das duas primeiras fontes de atividade, o instinto e o hábito, ele se move à discussão sobre a vontade. Ele define a vontade como a faculdade pela qual somos a causa determinante de algumas de nossas ações e, a seguir, afirma que toda a teoria da vontade tem como questão principal a relação entre vontade e liberdade. Em uma discussão que, nas transcrições de Lalande, perdura por várias páginas, Durkheim expõe uma série de argumentos favoráveis tanto às hipóteses deterministas quanto às hipóteses sobre a liberdade. Passando por Jouffroy, pelas teses sobre o determinismo psicológico, por Kant e por uma crítica a este último à típica moda espiritualista – afirmando que as ações em nossas vidas são concretas e têm lugar no mundo fenomênico, e assim a liberdade oferecida por Kant seria apenas virtual, estéril e metafísica – o jovem professor dá como superado o problema no final, defendendo a ideia de liberdade amparando-a nas noções de contingência e de finalidade. A resolução da questão da liberdade pela noção de finalidade era, como se sabe, algo característico da tradição espiritualista. Além disso, ao mencionar a noção de contingência como solução para o impasse, vislumbra-se a possibilidade de que ele estivesse familiarizado com as ideias de Boutroux, de quem Durkheim havia sido aluno, defendidas na tese de doutorado De la contingence des lois de la nature, de 1874. Pois bem. Sabemos que essas lições não seriam aquilo que tornaria Durkheim conhecido como um dos fundadores da sociologia.

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Mas ainda que elas não expressem aquele que conhecemos como o Durkheim sociólogo e clássico da disciplina, nem por isso devemos desprezá-las. Demonstrando o grau de intimidade que ele tinha com determinadas opções intelectuais, elas nos ajudam não só a ver quais eram e de onde brotavam muitas das preocupações centrais características de seu ambiente de formação intelectual, como também a vasculhar por certas persistências e continuidades nas suas posteriores teorizações. Essas persistências estarão no âmago de nossas preocupações a partir de agora. Iremos interpretar as transformações em seu pensamento como uma procura por alternativas de resolver alguns dos mesmos problemas e de desfazer algumas das tensões que marcavam seu ambiente de formação. 3.2. Uma Nova Ciência do Social: Influências e Conversão à Sociologia Durkheim entrava na cena intelectual francesa numa época em que não só a ideia de uma ciência social, como também o próprio termo sociologia haviam caído em descrédito, como alvo de críticas de que constituiria uma ciência vaga e indefinida, carente de metodologia apropriada, com pobres análises empíricas e conclusões muito gerais. Os trabalhos de Herbert Spencer passaram a ser bastante conhecidos na França a partir da década de 1870, reforçando a ideia de Comte de que as leis naturais aplicar-se-iam também à vida espiritual e à moral e estariam submetidas às leis do progresso. A partir de meados da década de 1880, a sociologia começava a se reavivar, não como um simples retorno a Comte, mas sim ao se conectar profundamente a uma série de embates contemporâneos e ao caminhar, conjunta ou paralelamente, com o novo espiritualismo, com a missão de responder ou de se posicionar em relação aos principais impasses presentes no universo acadêmico francês. Dentre os empreendimentos que inspiraram a “conversão” de Durkheim à sociologia, Marcel Fournier (2013, p. 63-5) narra, em sua riquíssima e recentemente publicada biografia, a importância de Alfred Espinas (Des sociétés animales, 1877), do economista alemão Albert Schäffle e, sobretudo, de Alfred Fouillée como im-

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pulsionadores dos problemas para os quais o jovem professor de filosofia iria então se dirigir. Alfred Fouillée (1838-1912) elaborou uma série de noções que seriam centrais para Durkheim, tais como a concepção de sociedade como um organismo ou as noções de consenso, consciência comum e de representação. Posteriormente à sua discussão direta sobre liberdade e determinismo, Fouillée se lançou na tarefa de desenvolver uma ciência do social, advogando em sua defesa numa época em que a sociologia não era exatamente algo em moda nos círculos acadêmicos franceses (LUKES, 1985, p. 66). Em La science sociale contemporaine (1885)25, ele julgava ser indispensável o estabelecimento de uma ciência social sobre uma base positiva, mas dizia ser necessário ir muito além de Comte, que teria prestado um grande serviço ao batizar a nova ciência e colocála ao lado das outras ciências positivas, mas que teria falhado em fundamentá-la de uma forma condizente com a complexidade e especificidade de seu objeto. Ou seja, a sociologia, como qualquer abordagem sistemática sobre a vida humana, deveria teorizar sobre temas fundamentais deixados de lado por Comte, estando mais atenta às peculiaridades da alma humana e à psicologia. Com isso, era exigido das abordagens pretensamente sociológicas que se posicionassem em relação aos debates pré-existentes ou que procurassem rearranjar os elementos presentes no debate. Na esteira dos trabalhos de Fouillée, Durkheim tomou como problemática de partida para suas reflexões a tentativa de articular individualismo e socialismo, que conjugava, por sua vez, os desafios de articular indivíduo e sociedade, personalidade e solidariedade, liberdade e determinismo.26 Segundo Marcel Mauss, as investigações do jovem Durkheim o convenceram gradualmente de que as respostas seriam proporcionadas pela sociologia. Os trabalhos de Comte, Espinas, Fouillée, Boutroux, Schäffle, Renouvier, Tönnies, dentre outros, passaram a abastecer seu arsenal teórico. Mas ficaria nítido 25.  FOUILLÉE, Alfred. La science sociale contemporaine. Paris: Librairie Hachette, 1885. 26.  Sobre a tentativa de sintetizar individualismo e socialismo, ver capítulo abaixo de André Magnelli.

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para ele que os principais obstáculos à sociologia seriam os modos tradicionais e predominantes de pensar a moralidade em seu país, inclusive, e sobretudo, o dos espiritualistas. 3.3. Os Primeiros Impasses (1885-6): Sentimentos Naturais de Sociabilidade e Imposição Moral Na busca por uma solução para sua problemática inicial, Durkheim moveu-se, em seus primeiros escritos de 1885 e 188627, diante de distintas estratégias teóricas, ora mais “individualistas”, ora mais enfaticamente “coletivistas”, ainda sem apresentar uma direção consistente. Jeffrey Alexander (1982, p. 96-8) percebeu com argúcia que Durkheim chegou a flertar com o recurso a “sentimentos naturais de sociabilidade”, enfatizando os “instintos de solidariedade” inerentes ao ser humano como sendo sentimentos naturais que levariam a associações. Tais recursos teóricos eram um indício de que ele ainda não havia encontrado uma solução mais consistente do que a de seus predecessores. Ao mesmo tempo, ele emitia posições em que a moralidade seria uma força e uma autoridade que se impõe aos indivíduos, demonstrando não estar plenamente satisfeito com a ideia da organização social como resultado exclusivo desses sentimentos naturais sociáveis. Assim, no mesmo texto, ele falava das “imposições da moral” como um tipo de cristalização do comportamento.28 Essas imposições sociais passavam a ser apresentadas como formas de agir fixadas pelo hábito (tal como encontramos em Guyau). Assim, tendo em vista a mencionada problemática inicial que o impelia à elaboração e sistematização de uma ciência social, em meados de 1880 ele ainda não havia alcançado uma solução teórica minimamente coerente, a despeito de demonstrar uma inclinação por uma abordagem com ênfase nos aspectos coletivos e socialmente impostos da organização social. Suas suposições sobre os sentimentos naturais de sociabilidade individualmente constitutivos de cada indivíduo, embora pudessem resolver uma série de 27.  Ver, por exemplo, [1886] Os Estudos de ciência social. 28.  [1886] Os Estudos de ciência social, p.172.

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problemas, pareciam criar outros tantos, especialmente quando colocados ao lado das suas já visíveis tendências a pensar a moral como imposição. Isso criava problemas teóricos praticamente insolúveis. Por isso, em suas obras subsequentes ele concluiria que a teoria da solidariedade natural não era apta a resolver aqueles dilemas teóricos e não poderia ser o ponto de partida para seu projeto de ciência.29 Isso porque, na sua visão, os indivíduos independentemente motivados não poderiam desenvolver um senso do todo social que seria exterior a cada um deles. Ora, se a realidade social deve implicar numa regulação se sobrepondo aos indivíduos, essa regulação não pode ser baseada no caráter ou na natureza individual de cada membro do grupo. Consequentemente, ele rejeitaria essa solução como sendo muito precária. 3.4. Por uma Ciência Positiva da Moral (1885-7): a Noção de Hábito Coletivo como Cristalização de Comportamento É bastante plausível a hipótese de que a viagem de Durkheim à Alemanha em 1885, que incluiu visitas a várias universidades e institutos de pesquisa, tenha desempenhado um papel fundamental em sua sistematização teórico-sociológica. Tanto que, após retornar à França, ele publica, em 1887, um importante ensaio sobre a “ciência positiva da moral” alemã.30 Nos trabalhos de Wilhelm Wundt (1832-1920) e em sua “psicologia dos povos” (Völkerpsychologie), Durkheim encontrou a chave para o que ele entendia como um avanço necessário ao tratamento sociológico da moralidade. Wundt pretendia criar uma ciência da moral realizando um estudo empírico da linguagem, da religião, dos costumes e das leis, a partir de um método experimental que consistiria no único meio de explicar como a moralidade emergiu e se desenvolveu. A moralidade seria para ele um fenômeno coletivo dos mores, que só poderiam ser produtos de outros fenômenos 29.  Ver, por exemplo, [1894a] As Regras, p.117. 30.  [1887c] La science positive de la morale en Allemagne, p. 267-343.

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coletivos. A derivação da moral a partir de hábitos individuais é vista, por isso, como uma ficção enganosa, pois as criações mais importantes da vida em comum (a linguagem, os mitos, os costumes, as leis), embora influenciadas pelo indivíduo, jamais podem ser individualmente criadas.31 Para Durkheim, a virtude dos pesquisadores alemães seria a aplicação de um método experimental que, valendo-se da observação e da experimentação, era capaz de tratar a moralidade a partir de uma ciência positiva. Em termos bem simples, a questão não era mais entender o que deveria ser, mas o que é. Por esse motivo, Wundt teria sido o primeiro psicólogo a romper com quase todas as conexões com a metafísica ( JONES, 1999, p. 215). Isso permitiria um avanço científico sem precedentes, superando as teorias que procuravam explicar a moralidade a partir das intuições, motivos, prazeres ou ideais individuais, ou pela expressão de propriedades naturais a cada indivíduo, ou ainda por princípios que independem da experiência. Com isso, Durkheim passava a defender que o objeto da sociologia deveria ser entendido como uma espécie de realidade psicológica, mas que seria acessível não por métodos de análise interior, tal como pensavam os espiritualistas, mas sim por métodos experimentais. Os fenômenos morais exerceriam sobre a vontade individual uma espécie de ascendente, sendo ela coagida a conformar-se com eles. Sendo assim, os métodos de análise interior ou introspectivos seriam incapazes de captar os elementos anteriores e superiores às vontades que sobre elas se exercem. O indivíduo passa a ser visto como parte integrante de um todo maior e mais complexo, e qualquer tentativa de isolá-lo ou abstraí-lo do todo corresponderia a um sério equívoco científico e metodológico. Essa referência teórica passaria a ser fundamental para a sociologia durkheimiana. A esse respeito, é valiosa a constatação de Jones (1999, p. 216) das dívidas de Wundt para com o romantismo alemão ao relacionar a moralidade a construções supraindividuais e 31.  WUNDT, Wilhelm. Ethics: an investigation of the facts and laws of the moral life (vols. I & II). London, Swan Sonnenschein & CO., Lim. New York: The Macmillan CO, 1897, p. 159-60.

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históricas. Tal raciocínio propriamente romântico faria Durkheim dar um primeiro passo para além das tensões que marcavam o pensamento francês, colocando-o inicialmente em franco afastamento em relação às perspectivas dos filósofos então em evidência na França e das principais correntes que permeavam o ambiente de sua formação intelectual. Foi sobretudo a partir do contato com os alemães que ele passou a expressar um repúdio por formulações científicas ou filosóficas que tentavam explicar os fenômenos sociais a partir da consciência individual: a sociedade não seria uma coleção ou justaposição de indivíduos cuja natureza intrínseca de cada um emana para o todo, mas algo mais complexo, funcionando à base de solidariedade. A influência alemã permitiu a ele reelaborar suas influências filosóficas francesas. O caminho oferecido por Wundt parecia se encaixar, antes de tudo, com o pressuposto de Renouvier de que o homem, sendo uma criatura social, é um ser moral e de que os sentimentos morais possuem uma base social, e não instintiva. É a coexistência característica de toda associação humana que espontaneamente cria a moralidade. Encaixava-se também com os ensinamentos de Boutroux sobre o princípio de que, se as ciências sociais deveriam existir, elas deveriam ter seu próprio objeto e princípios explicativos, em defesa da autonomia relativa das ordens de realidade mais altas vis-à-vis às baixas, cada uma com seus próprios princípios explicativos. A produção de um saber sistemático sobre a vida social deveria ser orientada por seus próprios princípios explicativos. E, evidentemente, as contribuições dos autores alemães permitiam também um alinhamento com algumas linhas gerais do positivismo de Comte: a vida moral é vista como dependente da organização social e está sujeita a certa regularidade inerente aos fenômenos sociais e às leis que os regem. Durkheim caminhava, portanto, para uma ciência positiva da moral, mas diferentemente de Comte, trazia algumas pistas de como ela poderia ser fundamentada no plano psicológico. Tal como Guyau, cujas recentes publicações contribuíam para gerar um clima favorável à sociologia, a pretensão fundamental de

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Durkheim passava a ser de investigar a moralidade de um ponto de vista sociológico, a partir da noção de fato moral. Ele consiste em regras de conduta que provocam o sentimento de dever e de obrigação, cujo descumprimento gera desaprovação, um sentimento de ultraje ou uma resposta ainda mais punitiva. Mais tarde Durkheim diria que o critério empiricamente observável do fato moral é uma sanção específica, entendida como um símbolo visível da própria moralidade e de sua obrigatoriedade: “todo fato moral consiste em uma regra de conduta sancionada”.32 Mas como seria realizada a transposição dos fenômenos normativos coletivos à vida psíquica? De que forma essas obrigações e maneiras de agir – enquanto fenômenos coletivos – seriam fixadas nos indivíduos? Citando outro alemão, o economista Gustav von Schmoller (1838-1917), Durkheim explica como seria possível essa transposição: Schmoller explicou muito bem como se realiza essa transformação. Quando repetimos uma mesma ação por algumas vezes, ela tende a se reproduzir da mesma maneira. Pouco a pouco, por efeito do hábito, nossa conduta toma uma forma que se impõe a nossa vontade como uma força obrigatória. Sentimo-nos como que obrigados a sempre lançar nossas ações nesses mesmos moldes. Assim acontece tanto nas relações sociais quanto nos eventos de nossa conduta privada. Após um período inicial de tentativa e erro e de instabilidade, elas se fixam, tomando a forma que reconhecemos através da experiência como a melhor, e, então, somos obrigados a nos conformarmos. [...] Assim se formam os costumes, sementes iniciais de onde nascem sucessivamente o direito e a moral. Pois a moral e o direito não são mais do que hábitos coletivos, formas constantes de agir que se tornam comuns a toda uma sociedade. Em outros termos, é uma forma de cristalização da conduta humana.33

Portanto, as normas sociais se estabelecem na composição psíquica individual através dos hábitos, como mecanismo pelo qual a sociedade 32.  33. 

[1902b] Da Divisão, p. 24; cf.: ISAMBERT, 1993. [1887c] La science positive de la morale en Allemagne, p. 40.

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se firma na vida espiritual do indivíduo. Durkheim introduz então a importantíssima noção de hábito coletivo, que é uma expressão da consolidação da estrutura moral de uma sociedade. É o hábito que funciona como elemento de mediação entre os fenômenos coletivos que caracterizam a vida social e a vida psíquica de cada um de seus membros, entre as circunstâncias e exigências de adaptação do organismo social no tempo e no espaço e os padrões de crenças e formas de agir. Alguns anos mais tarde, em sua lição inaugural em Bourdeaux (1888)34, ele afirma que os costumes e as prescrições do direito e da moral seriam impossíveis se o homem não fosse capaz de contrair hábitos. E obviamente, não hábitos individuais, mas hábitos coletivos. Mais adiante, observa que “a estrutura é a função consolidada, é a ação que se tornou hábito e se cristalizou”.35 Assim, ele falava das “imposições da moral” e da moralidade como um tipo de cristalização do comportamento.36 Essas imposições sociais passavam a ser, tal como encontramos em Guyau, apresentadas como formas de agir fixadas pelo hábito. Com isso, iniciava-se uma longa jornada na sequência da tradição espiritualista, que se manteria em suas futuras obras, de associação entre moralidade e hábito.37 Como vimos, a noção de hábito era central à tradição espiritualista, pensada como forças cristalizadas que tendem a se reproduzir na vida psíquica, sendo fonte de uma passividade e determinismo característicos das ordens inferiores da natureza. Eis que, após algum tempo envolvido na problemática cujas respostas não o satisfaziam, ele parecia agora ter encontrado um caminho que acreditava ser promissor e consistente para a fundação da sociologia. Se ainda havia um árduo trabalho teórico pela frente, isso não o impediu de anunciar a moralidade e a sociologia da moral como seu objeto primordial de interesse. Contudo, diante do peso e do significa34.  [1888a] Curso de ciência social, p. 75-102. 35.  Ibid., p. 98. 36.  [1886a] Os estudos de ciência social, p. 172. cf. FOURNIER, 2013, p. 81. 37.  Embora Wallwork (1972) e Alexander (1982) tenham chamado a atenção para essa ênfase inicial de Durkheim na noção de hábito como relevante para a questão da moralidade nos primeiros escritos do autor, eles parecem não ter se dado conta do peso que essa noção carregava naquele ambiente intelectual e, provavelmente por isso, não puderam visualizar a continuidade de seu papel para o desenvolvimento de sua sociologia.

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do que a noção de hábito guardava em seu ambiente de formação, cabia perguntar: que tipo de consequência tal noção de moralidade atrelada à ideia de uma cristalização do comportamento iria ocasionar em suas futuras teorizações? E, principalmente, como poderia ser justificada uma noção de liberdade como “atividade” do agente individual? Por um lado, a sua missão de levar adiante uma ciência social certamente dependeria de um conflito com os saberes hegemônicos nos meios acadêmicos franceses. Para ele, a filosofia deveria perder terreno para duas ciências empíricas, a psicologia e a sociologia. De acordo com ele, os problemas que outrora pertenciam exclusivamente à ética filosófica pertenceriam agora à ciência social.38 Ela deveria contestar o tratamento dos elementos espirituais da existência como apartados de forças reais e efetivas. Nesse sentido, ele passaria a desferir críticas aos pensadores que via como ameaça ao pensamento científico, reagindo contra a falta de rigor, o misticismo e o “esteticismo” que ele iria chamar de “diletantismo anárquico” da filosofia tradicional francesa, derivado do ecletismo de Cousin. Entretanto, com o passar dos anos, ficaria cada vez mais claro que Durkheim havia se lançado em uma tentativa de conciliar os métodos das ciências naturais com os insights de uma filosofia não positivista, comprometida com a existência psicológica e com a espiritualidade do homem. Na verdade, ele era avesso a rótulos: nem positivista, nem materialista, nem espiritualista, nem kantiano. O único rótulo que parecia aceitar era o de racionalista.39 4. Da Divisão do Trabalho Social (1893): A Liberdade como Especialização Funcional 4.1. A Descontinuidade da Obra e o Lugar de Da Divisão Empreendimento teórico de notável envergadura, a primeira grande obra de Durkheim trazia não só a responsabilidade de funda38.  [1888a] Curso de ciência social, p. 99. 39.  [1901c] As Regras, p. 13.

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ção de uma disciplina científica mediante o confronto com variadas formas de reflexão sobre a realidade social, mas também a necessidade de elaboração de uma complexa interpretação sobre o caráter e a especificidade do homem na modernidade. Para tanto, incorporava distintas orientações teóricas a fim de produzir uma forma inovadora de saber. Não é novidade que sua tese de doutorado, Da Divisão do Trabalho Social, carregava múltiplas dimensões de análise, incluindo uma tentativa de traduzir e de conciliar certos compromissos ideológicos da IIIa República. Tal relação do projeto sociológico de Durkheim com a IIIa república é apresentada no próximo capítulo por Magnelli. Aqui, é importante focar em apenas uma das dimensões: a sua relação com as reivindicações espiritualistas quanto ao caráter ativo da existência espiritual de cada indivíduo. Antes de continuarmos, é necessária uma advertência sobre minha interpretação da produção intelectual durkheimiana, que difere, neste sentido, da interpretação realizada por Magnelli no próximo capítulo. Parto da constatação de que algumas das soluções encontradas em Da Divisão foram provisórias. Isto é, adoto a interpretação (controversa entre os estudiosos do autor) de que seu pensamento passou por mudanças substanciais em questões elementares, do início ao fim de sua obra. De acordo com minha interpretação, se Da divisão apresenta o gérmen de boa parte dos temas desenvolvidos nos trabalhos subsequentes do autor e uma grande quantidade de posições que seriam sustentadas até o fim de sua carreira, há também algumas soluções que foram retrabalhadas após algum tempo. Leituras recentes e mesmo outras não tão atuais, tal como a interpretação de Parsons em The Structure of Social Action (1937), têm focado justamente nas descontinuidades do pensamento durkheimiano, tornando possível falarmos de um jovem ou de um “primeiro” Durkheim e de um “segundo” ou mais maduro (FOURNIER, 2005, p. 43-4). Contrariamente a tal interpretação, há estudiosos que negam explicitamente a existência de qualquer ruptura teórica fundamental no pensamento do autor, como é o caso de Seidman (1984, p. 189-90) e de Schmaus (1994, p. 12-7). Além dos autores que sustentam a tese da continuidade, uma ampla

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variedade de abordagens carrega implicitamente a premissa de uma não ruptura, transitando entre suas obras iniciais e maduras sem qualquer menção a modificações importantes em seu pensamento. No caso dos intérpretes que reconhecem uma ruptura fundamental, além de Parsons, o próprio Lukes interpreta que teria ocorrido uma significativa mudança nas teorizações de Durkheim (LUKES, 1985, p. 229-36), assim como Némedi (2000) ou Alexander (1982). Este último radicaliza tal interpretação no segundo volume de seu Theoretical Logic in Sociology. Outros autores, como Brooks (1998, p. 197) e também Magnelli (capítulo II), preferem se esquivar e não se posicionar. É importante notar, antes de tudo, que Da divisão representou, no pensamento francês das últimas décadas do século XIX, mais um esforço sistemático para solucionar aquilo que já vinha sendo objeto de variados empreendimentos: (a) aquilo que Boutroux havia procurado solucionar através da ênfase na independência de cada ordem de realidade em relação à inferior e através da noção de contingência; (b) aquilo que Fouillée havia buscado em La liberté et le déterminisme com seu conceito de ideia-força, destacando a irredutibilidade e a efetiva atividade causal da consciência perante o mundo material; (c) ou aquilo que Guyau, mais tardiamente, havia procurado ao estabelecer uma íntima associação entre liberdade e anomia. Sob esse prisma, Durkheim estava diante do mesmo tipo de projeto: como justificar uma noção de liberdade da atividade espiritual a partir de uma sistematização teórica que procurava assimilar contribuições oriundas das ciências naturais e do positivismo? 4.2. Liberdade e Determinismo em Da Divisão: Especialização Funcional e Personalidade Individual Durkheim estava em busca de uma solução original tanto em relação ao espiritualismo quanto às outras soluções disponíveis. Ele já havia se enveredado para um naturalismo sociológico, como o mostra Magnelli no próximo capítulo, segundo o qual tudo o que existe (mesmo que espiritual, psicológico ou social) está englobado na natureza, no que reivindicava para os fenômenos sociais a mesma

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atitude das outras ciências naturais. Ele já havia se comprometido com a ideia de sociedade como sendo um todo não redutível à soma das partes e regido segundo suas próprias leis, argumentando que todos já nascemos em um mundo onde as instituições sociais e as regras morais já se encontram constituídas. Com isso, rejeitava as teses finalistas afirmando que a análise da causalidade eficiente seria válida para os fenômenos espirituais assim como para os naturais, defendendo uma visão de ciência social que se esquiva da questão da intencionalidade ao mesmo tempo que denuncia os equívocos das explicações utilitaristas. Nesse sentido, o estabelecimento de relações causais, de leis e de regularidades se situava no centro do projeto, pois apenas os fenômenos submetidos a leis regulares seriam suscetíveis de um estudo metódico e científico. Com isso, sua sociologia se configurou como um projeto calcado num racionalismo científico que supõe um mundo social, a exemplo do natural, constituído por um sistema de forças atuantes que, por mais complexas que sejam, podem ser apreendidas racionalmente mediante a percepção empírica de suas regularidades ao serem conjugadas com o método experimental adaptado à especificidade dos fatos sociais (TAROT, 1999, p. 65-78). Essa reflexão sobre causalidade o levava a pensar em termos de forças morais anteriores, independentes e exteriores a qualquer indivíduo tomado isoladamente, de modo que a sua investigação das causas da divisão do trabalho significava inquirir sobre quais forças atuavam para seu desenvolvimento.40 Tais direcionamentos representavam, evidentemente, um afastamento notável em relação ao espiritualismo. Entretanto, assumir uma postura naturalista sobre o homem e sobre a moral não significava necessariamente romper com alguns dos pressupostos caros à filosofia espiritualista. É o que podemos ver com as publicações de Guyau, que era não só um notável expoente do novo espiritualismo, como também se amparava profundamente por uma visão naturalista.41 A 40.  Os desenvolvimentos mais pormenorizados sobre a relação entre o naturalismo durkheimiano, fundado na noção de força moral e nos conceitos de causa, forma e função, são feitos infra no capítulo de Magnelli. 41.  Sobre isso, ver: AMARO, 2014; GUYAU, 1906, 1913; FIDLER, 1994..

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extensão de uma visão determinista, calcada na noção de causalidade eficiente, aos fenômenos humanos reservava a Durkheim outro empecilho: o enfrentamento do dilema teórico da relação entre liberdade e determinismo. Afinal, como afirmou Fouillée: até mesmo os deterministas precisariam encontrar algum lugar para a ideia de liberdade. Durkheim buscará, portanto, mediar a relação entre determinismo e liberdade. Ao mesmo tempo em que defendia, com radicalidade, o alcance da ciência social para a compreensão dos fenômenos humanos, Durkheim, assim como os espiritualistas, procuraria, criticando Kant, justificar uma noção de liberdade enraizada no mundo dos fenômenos. Para tanto, deveria enfrentar a difícil questão sobre como poderia defender a não passividade do indivíduo ao mesmo tempo em que defendia intransigentemente a existência da moralidade como um sistema de regras de conduta impostas do exterior. Foi na transição para a modernidade que ele acreditou poder alcançar a tão sonhada via de superação da discussão sobre determinismo e liberdade. Por ter elegido o problema científico da moralidade (como domínio de fatos dotados de uma racionalidade própria) para realizar essa síntese e reconciliação, seu foco (assim como o de Guyau) eram as regras de conduta socialmente estabelecidas como estados mentais dotados de certa rigidez. A partir desse primeiro pressuposto, ele tinha que responder a alguns pensadores que, como Spencer e o próprio Guyau, declaravam os costumes e as regras socialmente estabelecidas como destinados ao desaparecimento, o que colocaria em cheque a própria existência da moralidade (da forma como Durkheim a concebia) na modernidade.42 Contra isso, Durkheim almejava demonstrar a existência, mesmo nas sociedades modernas, de forças coletivas capazes de se impor às consciências, afirmando, portanto, a existência da moralidade como fundamento da realidade social moderna. A rejeição das propostas de Spencer e Guyau se apresenta logo nas 42.  É também conveniente lembrar que já em seus primeiros artigos, anteriores a Da divisão, ele criticava Fouillée e seus seguidores, por superestimar o conhecimento de cada indivíduo sobre o mundo social, e Schäffle, por considerar a consciência individual como onipresente e por conceber o socialismo como o resultado de livres decisões individuais.

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primeiras páginas de Da Divisão, onde ele diz que a divisão do trabalho seria um fenômeno moral, isto é, que a sociedade moderna não estaria isenta de um conjunto de obrigações morais, posto que a especialização funcional se mostra não apenas como uma utilidade, mas, sobretudo, como um dever: “coloca-te em condições de cumprir proveitosamente uma função determinada”.43 O artifício primário para a reconciliação entre liberdade e determinismo foi o foco na constatação empírica da divisão do trabalho. Embora se desenvolvesse por mecanismos estritamente determinados, a divisão do trabalho abriria espaço para a manifestação da liberdade individual. Desta forma, a “antinomia” entre liberdade e determinismo seria apenas aparente. Ou seja, a gênese da liberdade poderia ser explicada em termos deterministas, sendo produto de um longo desenvolvimento, de uma regulamentação e de obrigações que constrangem os homens a se diferenciarem e especializarem. Para Durkheim, longe de consistir no desenvolvimento de propriedades de algum tipo de estado natural do indivíduo, a liberdade é uma conquista da sociedade e, assim, fruto de uma coercitividade. É somente através das forças sociais que ela pode ser conquistada.44 Os termos básicos da solução durkheimiana são bastante conhecidos: é a distinção entre os grupos humanos de “solidariedade mecânica” e os de “solidariedade orgânica”. Em uma analogia com os organismos complexos, o desenvolvimento da personalidade individual é pensado de modo similar à especialização e à autonomização dos órgãos e das funções do organismo. Ao se expandirem para cobrir mais território e produzirem uma concentração populacional mais densa, as sociedades apresentam indivíduos com a necessidade de especializar suas atividades e, consequentemente, desenvolvem as personalidades individuais ao gerar uma progressiva diferenciação individual. A consciência comum, ao contar com cada vez menos sentimentos fortes faz com que a regulamentação de várias esferas da vida perca o caráter penal. O conteúdo das consciências se diferencia e se multiplica, estando elas 43.  44. 

[1902b] Da Divisão, p. 6. Ibid., p. 405-6.

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direcionadas para pontos distintos do horizonte e refletindo aspectos diferentes do mundo, a tal ponto de não haver mais qualquer conteúdo comum, a não ser os atributos constitutivos da pessoa humana em geral. Tal processo é acompanhado e sustentado, assim, por uma força moral geral e abstrata expressa no “culto do indivíduo” ou “culto da pessoa humana”. Ao mesmo tempo que ele acentua a dignidade e o valor do indivíduo, ele estabelece como imperativo que cada homem desenvolva ao máximo suas capacidades e seus talentos. Desta forma, quanto mais especializados são os indivíduos, quanto menos as suas consciências se fundem e tanto mais eles são liberados do coletivo. As tradições e regras morais não podem mais conter toda a diversidade de situações e circunstâncias e a sociedade adquire um estado de plasticidade e adaptação contínua ao ambiente (LUKES, 1985, p. 147-67). Contudo, a explicação do desenvolvimento da liberdade através da constatação da diferenciação e especialização funcional não era plenamente satisfatória em termos de fundamentação no nível da vida psíquica, ou melhor, de justificação no domínio da psicologia. Para avançar em uma teoria social capaz de satisfazer os requisitos teóricos de seu ambiente intelectual, Durkheim sabia ser necessário adentrar na discussão das questões sobre o determinismo psicológico (tal como ele havia discutido em suas lições de Sens), ou seja, nas questões sobre os componentes da vida psíquica. Ao mesmo tempo, era necessário apresentá-la no plano da própria concepção de ciência que adotava. Foi assim que ele incorporou em Da Divisão uma série de reflexões sobre as transformações da consciência humana resultantes da modernidade. Se a liberdade progride como a divisão do trabalho, seria frágil desvinculá-la das forças envolvidas em sua manifestação psicológica. Dessa forma, para incluir a esfera do intelecto individual como instância ativa, a solução por ora encontrada foi elaborar uma explicação do desenvolvimento da liberdade a partir das determinações relativas às porções da vida psíquica e dos materiais da consciência. Suas formulações enfatizam os determinantes envolvidos no processo de formação da vida psíquica, que correspondem, por sua vez, aos

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determinantes da própria conduta humana. Por isso, procurando desvendar o jogo de forças envolvido na composição do psiquismo, ele discorre sobre a estrutura e os móveis da consciência. A vida social permitiria o desenvolvimento da liberdade a partir de uma transformação das forças que atuam na composição da vida psíquica. Nesse sentido, a especificidade da explicação durkheimiana depende, no plano da vida psíquica individual, do modo peculiar como ele relata uma mudança do peso e da proporção relativa das parcelas da existência psíquica resultante das transformações macrossocietárias demonstradas em suas análises. A autonomia individual é narrada em termos da não determinação de uma parcela psíquica: o homem é mais livre na medida em que seus materiais psíquicos não são orientados por certas forças que predeterminam sua composição. A liberdade é o desenvolvimento de uma atividade mental cuja composição escapa a determinados tipos de força ou de determinação. Durkheim pensa a vida psíquica como cindida em três esferas fundamentais e que apresentam uma gradação hierárquica, no sentido de serem mais ou menos elevadas, complexas e flexíveis. Em primeiro lugar e ocupando a posição inferior, temos as determinações hereditárias e da raça; em segundo e ocupando a posição intermediária, as determinações coletivas; e, por fim, uma esfera da vida psíquica narrada justamente por seu desvencilhamento das duas primeiras. Ao analisar a influência da “hereditariedade” na divisão do trabalho, Durkheim a associa com o papel da “raça”, como condições orgânico-psíquicas cuja base é anatômica e congênita, responsável por gostos e aptidões transmitidos por nossos ascendentes. Essa parcela da vida psíquica seria responsável por comprometer a conduta humana de uma forma bem rígida, imobilizando e nos desviando da esfera dos interesses próprios. Contudo, a especialização funcional atenuaria a força dos fatores hereditários, que perdem sua importância relativa.45 Assim, nas sociedades com45.  Segundo ele, a redução da força dos fatores hereditários sobre a vontade se deve ao fato de que: “no selvagem, essa parte inferior de nós mesmos representa uma fração mais considerável do ser total, porque, sendo as esferas superiores da vida psíquica menos desenvolvidas neste, sua extensão é menor; portanto, ela tem maior importância relativa

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plexas “a orientação do indivíduo é predeterminada de uma maneira menos necessária pela hereditariedade”.46 O estrato da consciência vinculado à força do grupo e da coletividade, que é relativo aos estados comuns entre os membros do grupo social, nos desvia igualmente da esfera dos interesses próprios. Com a divisão do trabalho, o jugo coletivo se reduz em relação à porção total da consciência, o que permite o desenvolvimento de estados singulares a cada um. Nesse sentido, os estados fortes da coletividade são considerados como forças que se contrapõem ao desenvolvimento da parcela superior, que é a mais elevada e a responsável pela liberdade humana. Cada um de nós dispõe de duas consciências: “uma que é comum a nós e ao grupo inteiro e, por conseguinte, não é nós mesmos, mas a sociedade que vive e age em nós. A outra, que, ao contrário, só nos representa no que temos de pessoal e distinto, no que faz de nós um indivíduo”.47 Aquilo que torna o homem mais livre é aquilo “que cada um de nós tem de próprio e de característico, o que nos distingue dos outros”.48 Portanto, a liberdade é possível pelo aumento relativo da esfera diferenciada da personalidade que não é aprisionada nem pelas forças coletivas, com suas crenças, suas regras e suas obrigações, nem pelas forças carregadas pela raça, que são congênitas e anatômicas. Em uma das passagens mais relevantes do livro, ele torna explícita essa visão: Há mais: longe de ser prejudicada pelos progressos da especialização, a personalidade individual se desenvolve com a divisão do trabalho. [...] De fato, ser uma pessoa é ser uma fonte autônoma de ação. Portanto, o homem só adquire essa qualidade na medida em que há nele algo que lhe é próprio, só dele e que o individualiza, na medida em que ele é mais do que uma simples encarnação do tipo genérico e, em consequência, maior domínio sobre a vontade (ibid., p. 184). Ou seja, uma vez desenvolvidas a consciência e a inteligência resultantes da maior diferenciação e da maior extensão da parcela pessoal da vida mental, elas reduziriam o grau de influência dos fatores hereditários, que não podem se impor senão sobre coisas simples e gerais. 46.  Ibid., p. 326 (grifo meu). 47.  Ibid., p. 106. 48.  Ibid.

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da sua raça e de seu grupo. Dir-se-á que, seja como for, ele é dotado de livre arbítrio e que isso basta para fundar sua personalidade. Mas, seja essa liberdade o que for, objeto de tantas discussões, não é esse atributo metafísico, impessoal, invariável, que pode servir de base única para a personalidade concreta, empírica e variável dos indivíduos. Esta não poderia ser constituída pelo poder totalmente abstrato de escolher entre dois contrários; mas, além disso, é necessário que essa faculdade se exerça sobre fins e móveis do próprio agente. Em outras palavras, é necessário que os próprios materiais da sua consciência tenham um caráter pessoal. [...] O desaparecimento do tipo segmentário, ao mesmo tempo que necessita de uma maior especialização, separa parcialmente a consciência individual do meio que a suporta, assim como do meio social que a envolve e, em consequência dessa dupla emancipação, o indivíduo se torna ainda mais um fator independente de sua própria conduta. A própria divisão do trabalho contribui para essa emancipação; porque as naturezas individuais, especializando-se, se tornam mais complexas e, por isso mesmo, são em parte subtraídas à ação coletiva e às influências hereditárias, que só se podem exercer sobre as coisas simples e gerais.49

Portanto, a autonomia é fundamentada pela diferenciação e complexificação dos materiais psíquicos individuais, por aquilo que há de único e diferente dos demais indivíduos. Durkheim a entende a partir do crescimento de forças espontâneas que capacitam o indivíduo a ser ele mesmo, mas só consegue descrever essas forças apoiado em particularizações por meio das quais o indivíduo se desvia das determinações gerais do seu meio social (HABERMAS, 1990b, p. 184). Especializar-se significa ser subtraído às forças coletivas e, por isso, o processo de diferenciação das personalidades é dependente da abertura da consciência a realidades peculiares e especiais: ao escapar das referidas determinações hereditárias e coletivas, a consciência individual se enriquece a partir das circunstâncias de suas tarefas e das especificidades dos objetos diversos apresentados a ela de forma cada 49. 

Ibid., p. 425-6 (grifos meus).

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vez mais especializada, formando sistemas complexos e adaptados. O homem passa a ter sua própria esfera de ação e, com isso, a atividade de cada um é tanto mais livre quanto mais especializada. Por essa razão, a transição para a solidariedade orgânica faz do indivíduo uma fonte de atividade mais espontânea, de modo que o indivíduo passa a ser “menos agido” [moins agi].50 Durkheim insere aí o fato do declínio da religião, que teria levado a um número cada vez menor de crenças e de sentimentos coletivos, de modo a permitir o desenvolvimento do potencial de reflexão do homem. Assim, o desenvolvimento da inteligência e da reflexão significa maior espontaneidade, isto é, uma maior atividade espiritual centrada no indivíduo que não se norteia ou não deriva de certas ordens de coerção, com uma maior autonomia das porções superiores do intelecto em relação às determinações habituais coletivas e hereditárias. Como em Guyau, a maior autonomia do indivíduo na modernidade pode ser lida, em Da divisão, como uma emancipação da composição psíquica tanto de hábitos hereditários quanto de hábitos coletivos. Com isso, a oposição típica da filosofia espiritualista entre atividade e passividade reaparece nele, juntamente com uma ênfase no homem moderno como veículo de uma maior espontaneidade. Embora adotando outros pressupostos, Durkheim chega ao objetivo primordial do novo espiritualismo: justificar cientificamente a liberdade e a espontaneidade do espírito calcando-se nas contribuições das ciências naturais e positivas. 4.3. Moralidade sem Autonomia? O Impasse de Da Divisão A solução durkheimiana fazia todo sentido dentro do contexto intelectual por nós examinado: pensar a liberdade como uma atividade espiritual que escapa a certos tipos de determinação. Entretanto, ela colocava outro problema mais difícil: o de sua relação com a moralidade. Lembremos: se as determinações hereditárias da 50. 

Ibid., p. 152.

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vida psíquica eram impostas ao indivíduo por serem congênitas e anatômicas, as determinações coletivas eram impostas ao indivíduo por uma ação moral.51 Em Da Divisão, o que temos é uma relação problemática entre liberdade e moralidade, fato que é muitas vezes obscurecido aos olhos dos intérpretes, possivelmente devido às transformações posteriores de seu pensamento, quando ele modifica a postura inicial e passa a conceber a porção moral e impessoal da existência como a parcela psíquica responsável pela liberdade (SEIGEL, 1987, p. 485-92). Mas, ao longo de Da Divisão, existe uma forte tensão entre a moralidade, precisamente por sua definição como regras de conduta que predeterminam a ação e o pensamento, e o estrato mental especializado correspondente à personalidade individual e à autonomia. Ela produz consequências ao longo de todo o livro, gerando omissões e ambiguidades em muitos pontos cruciais. Ao procurar se posicionar sobre a relação entre moralidade e liberdade individual, Durkheim transmite a nítida sensação de estar diante de dificuldades teóricas: como ações orientadas por regras e por obrigações predeterminadas e pré-estabelecidas poderiam ser livres? A encruzilhada se torna clara se nos lembramos de seus primeiros artigos, em que associava explicitamente a moralidade a formas de hábito: as imposições morais seriam formas de agir fixadas pelo hábito, isto é, a moralidade deveria ser entendida como comportamento regular, que se repete diante das mesmas condições, como uma força fixada e cristalizada na vida psíquica pela repetição. Portanto, nos termos em que se colocava e no ambiente intelectual em que se apresentava, a tensão entre o elemento de predeterminação e enrijecimento do espírito e a autonomia individual era praticamente incontornável. Se as imposições morais predeterminam a conduta, como a conduta individual orientada por elas poderia ser livre? Não é de todo surpreendente, assim, que, em uma das passagens finais do livro, acreditando poder emitir um juízo mais consistente sobre a moralidade, ele afirme: 51. 

Ibid., p. 310.

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Vê-se o quão inexato é defini-la [a moralidade], como se faz com tanta frequência, pela liberdade; ela consiste antes num estado de dependência. Longe de servir para emancipar o indivíduo, para separá-lo do meio que o envolve, ela tem como função essencial, ao contrário, torná-lo parte integrante de um todo e, por conseguinte, tirar-lhe parte da sua liberdade de movimento. Por vezes encontramos, é verdade, almas que não são desprovidas de nobreza e que, no entanto, acham intolerável a ideia dessa dependência. Mas é porque não percebem as fontes de que emana sua própria moralidade, porque essas fontes são demasiado profundas. A consciência é um mau juiz do que acontece no fundo do ser, porque não penetra nele.52

Tal argumento de que as regras morais restringem a liberdade é utilizado em outros momentos do livro e contrasta significativamente com as interpretações de sua obra tardia. Sabemos que, para ele, a autonomia individual é estritamente dependente do respeito à lei moral que obriga cada um a se especializar. Diferenciando-me dos outros, estou cumprindo o mandamento moral central à modernidade. Entretanto, Durkheim consegue descrever a especialização apenas pela não predeterminação de uma parcela do pensamento e da conduta, na medida em que estes, para serem livres, não podem ser predefinidos em toda sua extensão.53 O problema é que ele sabia que a coesão social moderna não poderia ser depositada tão somente na moralidade geral e abstrata do culto do indivíduo. À especialização funcional seria necessário também um corpo de regras. Ainda assim, uma tensão entre essas próprias regras e a autonomia individual seria mantida, dando lugar a diversas estratégias teóricas. Dessa forma, o problema da distância entre as funções espe52.  Ibid., p. 420. 53.  O argumento principal utilizado em Da divisão é expresso pelo que ele entende como “indeterminação progressiva da consciência comum”, pelo qual a consciência coletiva e suas regras morais, ao se tornarem mais abstratas e gerais, e justamente por ocuparem uma porção relativamente menor da consciência, demandam um maior uso do intelecto para se mover sobre coisas que não poderiam ser expressas e delimitadas por normas morais: quanto mais as regras de conduta e as regras do pensamento são gerais e indeterminadas, mais a reflexão individual deve intervir (Ibid., p. 133).

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cializadas e a regulamentação coletiva de suas atividades era crucial em Da divisão. Procurando resolver esse ponto de tensão, Durkheim recorria a distintos argumentos. Em certas passagens, ele diz que a liberdade só teria se tornado possível pelo aparecimento de uma zona da consciência que se desenvolveria em um ambiente não regrado, isto é, “fora da moral”, atribuindo às iniciativas (ao maior uso do intelecto) e às vontades individuais a preeminência no processo. Outras vezes, argumenta que os elementos que conduziriam à especialização funcional se situariam não apenas fora da consciência coletiva, mas também fora do domínio das regras morais (ainda que suportadas e possibilitadas por certas formas gerais), de modo que os conhecimentos mais especializados não poderiam ser restringidos pela moralidade, sob o risco de limitar sua própria expansão: a ciência está, pois, como a arte e a indústria, fora da moral. [...] Costuma-se qualificar de moral tudo o que tem alguma nobreza e algum apreço, tudo o que é objeto de aspirações um tanto elevadas e é graças a essa excessiva abrangência da palavra que se fez a civilização entrar na moral. Mas o domínio do ético está longe de ser tão indeterminado; ele consiste em regras de ação que se impõem impositivamente à conduta e a que está vinculada uma sanção, mas não vai além disso. Por conseguinte, já que nada há na civilização que apresente esse critério de moralidade, ela é moralmente indiferente. Portanto, se a divisão do trabalho não tivesse outro papel além de tornar a civilização possível, ela participaria da mesma neutralidade moral.54

Neste sentido, ele entende que, nas sociedades complexas, “as regras puramente morais já são uma parte menos central” (ibid., p. 87), cedendo lugar à livre iniciativa e a normas jurídicas e técnicas que seriam, por assim dizer, mais “instrumentais”. Com isso, o grande dilema em Da divisão decorria do fato de que a lógica de sua solução para o impasse entre liberdade e determinismo o forçava inevitavelmente a eliminar o poder de códigos morais “in54. 

Ibid., p. 18.

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ternalizados” de modo a preservar a autonomia, forçando-o a se aproximar significativamente daquelas visões do mundo social que, de início, queria contestar.55 Ora, se o raciocínio sobre a liberdade se assenta sobre o pressuposto de que ela decorre da ausência de determinações coletivas ocorrida fundamentalmente via especialização funcional, então acentuar o papel moral de comunidades especializadas de modo semelhante à solidariedade mecânica seria voltar a reduzir o espaço da liberdade. Afinal, novas normas coletivas não perdem o caráter de determinações gerais pelo simples fato de serem multiplicadas e especializadas dentro de uma mesma sociedade.56 Por esse motivo, as principais dificuldades teóricas se concentravam na relação entre especialização funcional, ação livre e moralidade, elementos que estavam no âmago de sua conciliação entre liberdade e determinismo.57 Se Durkheim havia apostado suas fichas na solidariedade orgânica como condição na qual as consciências não se fundem, ele era obrigado a assumir que, também neste contexto, as consciências se fundem e, assim, deveria surgir um tipo de regulamentação coletiva mais localizada. Como os vínculos estabelecidos através das funções decorrem de condições gerais e constantes da vida social, eles fazem surgir formas de habituação pelas quais passam a imperar “maneiras de agir definidas, que se repetem idênticas a si mesmas”.58 Por isso, as regras 55.  Afinal, se os indivíduos, em suas posições complementares, alimentam a ordem social simplesmente agindo por uma lógica de seus próprios interesses ou de uma esfera especializada mais racional que seria em grande medida alheia à moral, então o nexo do argumento de Durkheim não se diferenciava completamente das teorias que visava superar. Alexander bem observa que as primeiras descrições de Durkheim sobre a natureza e a especificidade da solidariedade orgânica, da predominância do direito restitutivo e das funções especializadas, colocavam-no sob o risco de se aproximar daquelas visões sobre o mundo social que já havia repudiado (ALEXANDER, 1982, p. 119-60). 56.  Disso resultam as complicações características de seu método de conciliação quando ele, em sua análise das formas anormais da divisão do trabalho, não só percebe a necessidade de uma normatização entre as funções, como trata sua carência como uma grave patologia. 57.  É também sua posição frente a algumas dessas questões que foi e têm sido fonte de grande parte das divergências interpretativas sobre Da divisão, sobretudo pelo fato de que ele se vale de distintas linhas argumentativas, algumas delas sensivelmente conflitantes entre si (PARSONS, 1966, p. 309-11). 58.  Ibid., p. 382.

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estabelecidas nessas funções não podem deixar de alcançar um grau de fixidez e de regularidade: Há certas maneiras de reagir umas sobre as outras [as relações entre as funções] que, achando-se mais conformes à natureza das coisas, se repetem com maior frequência e tornam-se hábitos; depois, os hábitos, à medida que adquirem força, se transformam em regras de conduta. O passado predetermina o futuro.59

O processo de formação das regras características da solidariedade orgânica passa, portanto, por práticas que se tornam habituais e que depois se convertem em regras obrigatórias. Após ter assumido o papel dessas regras especializadas, Durkheim recorre a diferentes ordens de explicação a fim de evitar que a existência dessas regras colida com a autonomia individual. Às vezes ele afirma que isso se deve ao fato de tais regras valerem apenas ao ambiente profissional, deixando ao indivíduo as outras esferas da vida não regulamentadas em que ele poderia exercer sua livre iniciativa60; outras vezes ele defende o caráter geral e abstrato das regras (de modo análogo ao argumento sobre a consciência coletiva); em outros trechos, ele argumenta que elas são mais racionais e, portanto, menos coercitivas. Assim, ele diz que se “a cooperação também tem sua moralidade intrínseca, [... ela] não é da mesma natureza que a outra”.61 Ela “estorva menos” (mas estorva) o desenvolvimento das variedades individuais.62 Nesse sentido, tais regras não sufocariam o livre exame: “por serem muito mais feitas 59.  Ibid., p. 382. 60.  Por isso, o jugo sofrido por nós seria bem menos pesado do que quando a sociedade inteira pesa sobre nós. 61.  Ibid., p. 219. 62.  Ibid., p. 307. Assim, é possível interpretar a aquisição de uma maior liberdade com base em uma distinção entre, como diz Isambert, uma “moral dura” e uma “moral suave”, de modo que os hábitos coletivos seriam mais rígidos do que os cooperativos, estes últimos restringindo menos a atividade espiritual (ISAMBERT, 1993, p. 126-7). Essa moral suave seria decorrente de um processo de laicização da moral e, com isso, a fundamentação não racional da conduta e os elementos emocionais cederiam lugar a um caráter mais humano, racional e justo das regras, como pressuposto para uma moralidade laica. Contudo, mesmo essa moral suave era ainda entendida como algo que, em certa medida, estorva a liberdade individual.

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para nós e, em certo sentido, por nós, somos mais livres diante delas”.63 Tamanha era a dificuldade de teorização sobre essa relação que, ao falar da “moralidade da cooperação”, ele chegou a dizer que muitas das obrigações teriam origem numa “opção da vontade”, contrariando aquele que era um de seus principais compromissos metodológicos até então defendidos. Dessa forma, as dificuldades teóricas centrais de Da divisão eram relativas à tensão entre os elementos de predeterminação embutidos em seu conceito de moralidade e a autonomia individual, pois o autor demonstrava claramente sua preocupação com uma noção de indivíduo que não é simplesmente um receptáculo passivo de formas sociais, mas um agente ativo (GIDDENS, 1998, p. 161). Como então justificar a existência de tal atividade do agente humano diante dos grupos especializados? Já vimos que ele argumentava que as regras seriam, em certo sentido, “feitas por nós”, e que seriam resultantes de uma “opção de nossa vontade”. Vimos também que as atividades desempenhadas nas funções especiais seriam responsáveis por colocar os indivíduos diante de um tipo de habituação de suas disposições intelectuais. Mas por que essas disposições não seriam tão rígidas? Ademais, pela própria força das coisas, a faculdade que ele [o indivíduo] intensifica em detrimento das demais é chamada a tomar formas definidas, de que se torna pouco a pouco prisioneira. Ela contrai o hábito de certas práticas, de um funcionamento determinado, que se torna tanto mais difícil de mudar quanto mais tempo já dura. Porém, como essa especialização resulta de esforços puramente individuais, ela não tem nem a fixidez, nem a rigidez que tão somente uma longa hereditariedade pode produzir.64

Durkheim surpreendentemente recorre a um pressuposto que remete a Maine de Biran, para quem o elemento ativo da atividade es63.  64. 

Ibid., p. 219. Ibid., p. 341-2 (meus grifos).

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piritual frente à passividade consolidada nos hábitos seria fundamentado precisamente pela categoria de esforço individual. Vimos que os neoespiritualistas também recorriam a essa noção. Procurando justificar a maior liberdade individual frente aos hábitos e às regras morais originados da especialização, Durkheim trouxe a noção de um esforço (puramente) individual, a fim de justificar, tal como os espiritualistas, a preeminência da reflexão como expressão da existência psíquica mais elevada.65 Como hábitos originados a partir do esforço individual consciente, eles são menos rígidos (e assim “estorvam menos”) do que os hábitos hereditários e os hábitos coletivos. Ou seja, para colocar o raciocínio durkheimiano dentro do quadro espiritualista: como esses hábitos resultam de atividades do espírito que exigem o esforço individual e a reflexão consciente, eles se configuram como hábitos ativos em contraposição aos hábitos passivos típicos das formas coletivas características da solidariedade mecânica. Portanto, diante das dificuldades de solucionar o problema entre liberdade e determinismo através de uma ciência social, e diante dos termos de sua própria definição de moralidade, ele parecia se contorcer para encontrar uma saída coerente.66 A definição do fato moral apresentada na introdução à primeira edição do livro, cujo trecho, aliás, foi omitido das edições posteriores, parecia colidir com uma visão de homem como fonte de atividade espontânea, colocando-o mais como “passividade” do que como “atividade”. Engessando a consciência e predeterminando a ação, sua definição da conduta moral seria não só um dos objetos privilegiados de ataques dos espiritualistas, como também um problema para suas próprias teorizações. Ao tomar de empréstimo pressuposições do romantismo 65.  Por exemplo: “há e sempre haverá, entre o ponto que nos encontramos e o fim para o qual tendemos, um espaço vazio aberto para nossos esforços (ibid., p. 385, grifo meu). 66.  Mesmo após ter procurado afirmar e reafirmar que essa moralidade que fornece suporte às funções especializadas seria menos restritiva à livre atividade do espírito do que aquela carregada de preconceitos religiosos, ele retorna ao argumento de que a maior liberdade decorre de que essa forma de solidariedade deixaria mais espaços “descobertos” da moral, de modo que esse “esclarecimento” era muitas vezes narrado como algo que se constitui na medida em que a reflexão vai além dos limites das formas morais. Ou seja, sua noção de liberdade continua a estar em tensão com a determinação moral da consciência. É nos interstícios não moralmente regrados que a reflexão pode mover-se mais espontaneamente.

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alemão e transpô-las para o quadro do debate francês, ele havia se colocado frente a problemas quase que insolúveis. Foi em sua busca por redefinir os termos da relação entre moralidade e liberdade através de uma perspectiva científica que Durkheim enfrentou alguns dos mais sérios obstáculos teóricos, resultando em inconsistências e em oscilações. Por diferentes vias, autores como Parsons (1966), Alexander (1982; 2005), Lukes (1985), Giddens (1979; 1998) e Seidman (1983) enfatizaram o caráter mais “individualista” ou mais “instrumental” que decorria de boa parte das argumentações apresentadas em Da divisão. A meu ver, tal ênfase individualista enfatizada pelos intérpretes reflete o próprio modo pelo qual ele havia procurado fundamentar a autonomia individual como sendo uma composição da vida psíquica cada vez menos orientada por mecanismos hereditários e pressões coletivas. Contudo, a tensão entre a habituação coletiva da conduta e a liberdade do agente humano, que era característica do raciocínio espiritualista referente à relação entre disposições formadas através da repetição e vontade livre, se colocava como obstáculo a uma teoria capaz de levar adiante, de forma consistente, o projeto de uma ciência social. De fato, com sua tese, Durkheim havia oferecido uma elaboração original e alternativa à dos novos espiritualistas, conjugando ciência e moralidade, liberdade e determinismo. Talvez ele tenha imaginado que o seu modo de conceber a liberdade como ponto de chegada do desenvolvimento da divisão do trabalho poderia satisfazer alguns dos anseios dos filósofos apegados a essa noção. Mas, se esse foi o caso, ele se equivocou. Sua solução não agradaria aos pensadores inclinados às tendências espiritualistas. Em primeiro lugar, por causa do modo como o desenvolvimento histórico foi narrado no livro, sem que houvesse a participação das intenções humanas. Em segundo, porque sua concepção de moralidade como um tipo de determinação regrada da consciência era acentuadamente agressiva e incompatível com os postulados espiritualistas. Nesse sentido, ainda que a trajetória do progresso da divisão do trabalho culminasse com o desenvolvimento da liberdade humana, o próprio caminho trilhado para chegar até ela

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seria colocado em xeque, juntamente com as premissas que, logo no início da tese, compunham sua definição do fato moral. Sendo assim, seu naturalismo sociológico só poderia ser recebido com hostilidade. 4.4. Das Críticas de Materialismo e Determinismo à Espiritualização da Sociologia Não tardariam, portanto, as críticas em relação ao tipo de explicação sociológica proposto no livro. Sua tese seria vista como um exemplo de explicação mecanicista, determinista e materialista. As mais imediatas respostas foram, evidentemente, as que acompanharam a defesa da tese. E, em geral, não foram nada boas. Afinal, convém nos lembrarmos de que Da divisão foi uma tese de doutorado em filosofia defendida perante filósofos, em que era afirmado, já no prefácio, que não deveria haver barreiras entre a ciência e a moral. A forte reação dos examinadores não seria então nenhuma surpresa. As principais questões a ele colocadas foram justamente sobre a relação entre as explicações mecânicas e funcionais das regras morais e a ausência das propriedades que eram consideradas essenciais a qualquer teoria moral: a liberdade e o dever abstrato. Qualquer abordagem sobre a moral que não levasse em consideração essas duas características da ação moral seria automaticamente inadequada aos olhos de um espiritualista ou de um neokantiano. Henri Marion (1846-1896), um dos membros da banca, afirmou que a tese não era suficientemente refinada para alcançar o cerne da moralidade, constituindo somente uma physique des mœurs. Paul Janet (1823-1899), outro membro, argumentou que Durkheim confundira função com dever. Charles Waddington (1819-1914), por sua vez, afirmou que o autor havia tratado apenas das regiões inferiores da moral, ignorando a liberdade. E Gabriel Séailles (18521922) finalizou os questionamentos à tese procurando demonstrar a Durkheim a existência dos aspectos “interiores” da moralidade (BROOKS, 1998, p. 200; LUKES, 1985, p.296-8; FOURNIER, 2013, p.153-5; BESNARD, 1993). Dentre os examinadores, a opinião que certamente mais pesaria a Durkheim era a de Boutroux,

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pela evidente proximidade institucional e biográfica.67 Boutroux não aceitou a tese sem ressalvas, demonstrando insatisfação com o tipo de demonstração determinista que lhe parecia um retorno ao espírito de Taine (FOURNIER, 2013, p. 153). O descontentamento de Boutroux com a ênfase determinista seria perceptível não só na defesa da tese, mas seria sistematizado pouco depois, em seu curso De l’idée de loi naturelle dans la science et la philosophie, de 1893, que embora não trouxesse a menção direta a Durkheim, apresentava uma crítica direta ao tipo de explicação sociológica expressa em Da divisão. Nessa oportunidade, o filósofo atacava as formas de reducionismo presentes nas novas formas de naturalismo vinculadas a ideias evolucionistas, para as quais o “fator espiritual” era ainda tratado como dependente de fatores causais não espirituais, reduzindo as experiências propriamente humanas, morais, estéticas ou lógicas, a processos cegos e mecânicos.68 Em suma, havia um consenso entre os membros de que Durkheim tinha deixado de adentrar naquilo que consistia a essência e a especificidade do domínio moral: sua dimensão interior e sua liberdade.69 Profundamente preocupado com as críticas, Durkheim procuraria, ao longo de seu percurso intelectual, se esquivar das acusações que o colocavam como partidário de um determinismo absoluto. Em seu próximo livro, As Regras (1895), ele daria uma resposta a Boutroux, onde ele não nega a existência das finalidades humanas e reproduz algumas das constatações de seu mentor sobre a noção de contingência.70 67.  Boutroux teve um impacto direto incontestável sobre a formação intelectual de Durkheim, e sua própria tese foi dedicada a seu mentor: “A mon cher maitre M. Émile Boutroux, Hommage respectueux et reconnaissant” ([1893b]). 68.  BOUTROUX, Émile. De l’idée de loi naturelle dans la science et la philosophie contemporaine. Paris: Société Française D’Imprimerie et de Librairie, 1913, p. 128-33. 69.  Apesar das duras objeções, a tese foi aprovada e apreciada por sua originalidade, abrangência, por ser bem estruturada e pela convicção demonstrada pelo autor. 70.  Nessa passagem, ele diz: “onde reina o finalismo, reina também certa contingência. Pois não há fins, e menos ainda meios, que se imponham necessariamente a todos os homens, mesmo quando sujeitos às mesmas circunstâncias. Cada indivíduo se adapta a um mesmo meio da maneira como prefere, de acordo com seu humor. [...] E para chegar a um mesmo objetivo, quantos caminhos diferentes podem ser e são efetivamente seguidos!”

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Dessa maneira, apesar de suas denúncias sobre o viés anticientífico que marcaria a posição dos filósofos espiritualistas, ele seria obrigado a reconhecer que eles lançavam críticas pertinentes à sua sociologia, de modo que as tentativas de lidar com elas parecem ter contribuído para o desenvolvimento e sofisticação de sua própria perspectiva. Depois de publicado o livro, Durkheim sentiria de uma forma mais clara as implicações das posições assumidas. Além das objeções dos examinadores à sua tese e dos ataques sistemáticos de Boutroux e, ainda, das próprias dificuldades encontradas por ele para solucionar a oposição entre liberdade e determinismo através da sociologia, sua tese também seria objeto de um grande número de apreciações, resenhas e artigos. Dentre as apreciações, a relação de sua sociologia com as abordagens materialistas parece ter exercido uma especial pressão.71 Pouco tempo após publicar sua tese de doutorado ele se viu obrigado a sofisticar a abordagem e oferecer uma alternativa teórica ao materialismo e ao marxismo de forma mais nítida, de modo a se distinguir claramente daquelas formas de pensar.72 Dessa maneira, ([1901c] As Regras, p. 107). Contudo, Durkheim argumenta que as explicações sociológicas não podem partir das finalidades, já que elas só podem ter influência na evolução social na condição de também evoluírem, de modo que as mudanças pelas quais elas passam apenas podem ser explicadas por causas que nada têm de final. Assim, o desenvolvimento histórico não poderia ser explicado por elas porque, caso isso ocorresse, os fatos sociais deveriam apresentar uma diversidade infinita e uma ciência social seria praticamente impossível, o que não é o caso, considerando a enorme regularidade e uniformidade apresentada pelos fenômenos sociais. Se os indivíduos possuem cada um sua história, as bases de sua organização moral e psíquica são as mesmas para praticamente todos. Isso porque, assim como seria impossível a vida de um organismo sem reflexos e sem hábitos, seria impensável uma sociedade que fosse destituída de uma regularidade baseada em uma organização moral e habitual cristalizada através dos indivíduos nela presentes. 71.  Na década de 1890, por motivos que passam pela conjuntura sociopolítica da época, o ambiente intelectual da França se viu em parte atraído pelo marxismo. Alexander (1982; 2005) expõe essa renovação do marxismo na França, estimulado pelo aumento dos conflitos de classe e por mudanças e turbulências políticas, como elemento propulsor para as insatisfações de Durkheim. Ele cita revistas de peso como a Revue de metaphysique et de morale, a Revue Internationale de sociologie e a Revue Philosophique (essa última em que Durkheim publicava muitos de seus artigos mais importantes), que passavam a publicar diversas discussões sobre teorias socialistas e o materialismo histórico, incluindo resenhas dos trabalhos de Marx, Engels e seus seguidores. 72.  Essa demarcação era ainda mais necessária pelo fato de que uma parte de seu público francês interpretou seu primeiro trabalho como uma demonstração de um materia-

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Da divisão o colocou no centro de uma série de embates a partir dos quais ele teve não só que se posicionar mais claramente, como também retrabalhar questões ambíguas e pouco consistentes. Nos anos seguintes à publicação, surgiram indícios de que ele não estava plenamente satisfeito com sua solução.73 Em As Regras do Método Sociológico (1895), ele já expressava um entendimento da vida social que levava muito mais em conta os correspondentes “subjetivos” da modernidade, contrastando significativamente com os primeiros capítulos de Da divisão, de modo que os processos de especialização funcional passavam a ser plenamente fundamentados em termos da dependência de elementos interiorizados através de processos de socialização. Protestando contra a rotulação de sua perspectiva como uma espécie de determinismo ou de materialismo, ele procuraria definir os fatos sociais de um modo mais “espiritualizado” e “subjetivo”.74 A veemência com que rejeitava muitos daqueles rótulos parecia caminhar lado a lado com a percepção de que uma renovação teórica ainda mais radical seria necessária para uma fundamentação consistente da sociologia. Como demonstra Lukes (1985, p. 229-36), uma transição rumo à preponderância do tema da religião e da autonomia relativa das representações coletivas em relação a seu substrato formaria a base para o desenvolvimento subsequente do pensamento durkheimiano. Tal mudança de ênfase e tal “espiritualização” fariam passar por várias modificações entrelaçadas, algumas delas mais sutis, outras lismo convicto, muitas vezes equiparado à forma de pensar marxista, como demonstram muitas resenhas recebidas por ele nos anos que se seguiram à publicação do livro. Charles Andler, por exemplo, afirmou que o determinismo e o fatalismo envolvidos na análise sociológica de Durkheim conflitavam com a própria cultura democrática que o autor visava criar, acusando-o de cair nos “equívocos marxistas”. Para além do território francês, Paul Barth o atacava por ser, do mesmo modo que Spencer, um adorador do contrato e por sua visão da moralidade se opor ao progresso econômico, sendo desfavorável à autonomia do indivíduo (FOURNIER, 2013; ALEXANDER, 2005). 73.  Contudo, Durkheim não era afeito a reconhecer a existência de transições e mudanças significativas em sua obra, o que torna seu pensamento uma fonte de grandes divergências entre os intérpretes. 74.  Como ressalta Raquel Weiss (2010, p. 84), as tentativas de Durkheim de se esquivar das acusações de determinismo estiveram presentes de forma marcante ao longo da obra do sociólogo.

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mais drásticas, onde notamos um destaque à questão da religião, uma ênfase na noção de representações coletivas, um relevo crescente à questão da dualidade da natureza humana, um refinamento e uma transformação em seu próprio conceito de moralidade e uma modificação na forma de fundamentar a autonomia individual. 5. Por Uma Sociologia Hiperespiritual: Liberdade e Determinismo a partir de O Suicídio Dentre as diversas críticas dirigidas à ciência social apresentada por Durkheim, algumas delas estavam dentre as mais recorrentes: as acusações de determinismo, materialismo e mecanicismo, vinculadas aos supostos equívocos e dificuldades do jovem cientista de contemplar as especificidades inerentes aos fenômenos espirituais. Sua visão sobre a moralidade havia causado forte repulsa em boa parte dos leitores da obra, sendo ele acusado de tratar apenas das regiões inferiores da moral e de ignorar sua evidente “interioridade”. Ainda assim, mesmo diante do turbilhão de críticas, é importante salientar que ele não recuaria em sua pretensão de seguir adiante com um audacioso projeto de ciência. Ele já havia demonstrado enorme capacidade intelectual e criatividade e teria que recorrer novamente a essas qualidades para promover uma significativa transformação em suas teorizações, movendo-se adiante sem demonstrar ou tornar evidentes as modificações efetuadas em questões centrais. 5.1. O Suicídio (1897): Representações, Forças Sociais e Autoridade Moral Muitos intérpretes compartilham a visão de Parsons (1966) de que Durkheim começou a revisar suas formulações teóricas a partir da segunda metade da década de 1890.75 Para Alexander, Durkheim se sentiu obrigado a encontrar “uma forma de tornar a subjetivação 75.  Ver por exemplo LUKES (1985); LACAPRA (1985); ALEXANDER (1982, 2005).

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da ordem social mais explícita e mais refinada” (2005, p. 150). Foi justamente nesse contexto que os novos escritos antropológicos de Robertson Smith e de seus seguidores teriam lhe aberto novas portas.76 Observamos em O Suicídio (1897) aquela tendência, narrada por Alexander, de uma “espiritualização” da sociologia durkheimiana, com uma crescente emocionalização e espiritualização das mais diversas esferas de atividade social, chegando à afirmação central de que a vida social é essencialmente feita de representações.77 Se em seu Curso no Liceu de Sens (1883-4), a filosofia foi vista como a “ciência dos estados de consciência”, em O Suicídio (1897), a sociologia seria apresentada como uma “ciência das representações”. Neste livro podemos visualizar certas transições que gradualmente ganhariam corpo. As relações sociais passam a ser estudadas a partir das dinâmicas e relações entre as representações, por conceitos como os de correntes de opinião ou correntes coletivas, que refletiriam o estado da “alma coletiva”. A ênfase nos elementos normativos para a conduta, que eram, em Da Divisão, a parte central e mais problemática de sua conciliação entre liberdade e determinismo, passava a ser objeto ainda mais privilegiado de suas atenções e descrições empíricas. Esse foco encontra expressão bem nítida em sua tipologia das formas de suicídio. Os quatro tipos de suicídio (egoísta, altruísta, anômico e fatalista) correspondem a dois eixos socializadores fundamentais para a análise sociológica: integração e regulação, como sendo duas dimensões cruciais pelas quais o homem está socio76.  O encontro com os trabalhos de Robertson Smith teria oferecido a Durkheim uma perspectiva inovadora sobre a religião que ele assimilaria para resolver algumas de suas próprias preocupações teóricas. Contudo, apesar de ter mencionado que os escritos de Smith teriam sido para ele uma espécie de “revelação”, o autor nunca chegou a explicitar o conteúdo exato dessa revelação e como ela teria efetivamente modificado seu pensamento nas questões que havia trabalhado anteriormente. Mas parece evidente que esse desenvolvimento o fez colocar os fundamentos da experiência religiosa no centro de toda a vida social, primitiva e moderna, ecoando em diversos outros pontos de suas teorizações. Além disso, autores como Seigel (1987, p. 283-8) e Besnard (1982) relacionam determinados elementos biográficos, sobretudo a morte do pai de Durkheim, como significativos para certas transições teóricas. 77.  [1897a] O Suicídio, p. 400.

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logicamente disposto no mundo (BESNARD, 1993, 1993b, 2005). Através delas, Durkheim busca ressaltar a contínua dependência do equilíbrio psíquico em relação a uma inserção contínua e viva em grupos integrados e regrados.78 Enquanto os argumentos centrais de Da divisão repousavam na tese sobre o desenvolvimento de uma forma de sociabilidade em que as consciências não se fundem (forçando-o a decretar uma diminuição da dependência psíquica a sentimentos fortes e vivos por conta de sua tese da progressiva perda de centralidade e da indeterminação da consciência coletiva), aqui a fusão das consciências passa a ser essencial para a estabilidade psíquica até mesmo nas sociedades complexas. Assim, o ponto crucial é que as relações contratuais e outras tantas relações sociais estáveis e, sobretudo, o próprio equilíbrio psíquico individual, são estritamente dependentes da existência de uma estrutura normativa para a conduta e para o pensamento, sendo, assim, subordinados a uma autoridade moral.79 Acompanhando essa maior dependência da vida psíquica em relação aos componentes normativos nas formas de sociabilidade modernas, outra modificação relevante pode ser observada em O Suicídio: o alcance do conceito de moralidade. Vimos que, em Da divisão, Durkheim dizia que a moral não poderia reger excessivamente as funções, isto é, ela tendia a restringir seu livre desenvolvimento; que as regras puramente morais já eram menos centrais à modernidade; que a ciência, a arte, a indústria e a própria civilização só eram possíveis pelas forças sociais que se emancipavam dos entraves morais; e ainda que a própria liberdade individual era narrada em permanente tensão com as regras morais. Diante das críticas à sua noção de moralidade como algo que limitava a própria autonomia 78.  Sobre essa dependência, a questão do egoísmo aparecia como particularmente relevante para Durkheim, que percebia mais nitidamente que o desenvolvimento exacerbado da reflexão e o excesso de individuação não poderiam ser fonte de liberdade, mas sim de um importante desequilíbrio psíquico pernicioso ao indivíduo. 79.  Essa autoridade é responsável não só por regular a escolha de meios para atingir determinados fins individuais, mas também as próprias necessidades, os desejos e a vontade passam a ser determinados por ela. Quando a integração e a regulamentação são abaladas ou fragilizadas, a conduta individual é igualmente afetada, gerando desequilíbrios.

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do indivíduo, bem como da tensão não plenamente resolvida entre a moral e a livre atividade espiritual, o autor passava então a realizar uma plena associação entre a moral e as forças sociais, isto é, com os próprios produtos da vida social e das associações humanas. Assim, Durkheim se lança a uma ampliação de sua noção de moralidade que, como forças ou conjunto de energias que nos atingem de fora, passa a ser associada a tudo o que é social e, nesse sentido, passa a abarcar e se atrelar a todos os produtos psíquicos superiores. Nessa etapa de suas teorizações, o social é também pensado como uma realidade psíquica, mas agora ele é plenamente identificado com o que é moral. A meu ver, tal transição pode ser lida como uma tentativa de aliviar a tensão presente em Da Divisão. Percebendo mais nitidamente a complexidade dos elementos envolvidos na composição das ações e se vendo obrigado a sofisticar seu entendimento sobre a relação entre normas sociais e desejos individuais, o sociólogo passava a exibir uma outra tendência: a de uma compreensão cada vez mais dual do homem, cujos traços em O Suicídio já se delineavam, mas ainda apareciam confusos diante de sua ânsia de demonstrar a onipresença das forças coletivas e morais. Juntamente com suas formulações sobre a anomia e o egoísmo, passa a aflorar uma distinção que se tornaria cada vez mais aguda e tenderia a polarizar cada vez mais as formulações do sociólogo: de um lado, temos o elemento dos impulsos e desejos indisciplinados e caóticos; de outro lado, as forças propriamente sociais e morais. A fim de justificar toda a nova ênfase no controle e autoridade moral, Durkheim passa a opor radicalmente esses dois elementos da vida psíquica. Aos desejos individuais que seriam inerentemente caóticos e centrífugos, deve-se contrapor a força da autoridade moral, já que indivíduos abandonados a si mesmos seriam movidos por desejos ilimitados. 5.2. Dialogando com o Espiritualismo: Individualismo e Dualidade da Natureza Humana (1898) Pouco tempo depois da publicação de O Suicídio, Durkheim publicaria outros dois artigos centrais na sua jornada intelectual: O

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Individualismo e os Intelectuais (1898) e Representações Individuais e Representações Coletivas (1898). Diante da reação apresentada pelos espiritualistas, encontramos, em ambos os textos, evidências bem claras de que ele procurava dialogar e realizar aproximações entre sua perspectiva e a dos espiritualistas. Em O Individualismo e os Intelectuais (1898) notamos um esforço para demonstrar que o individualismo defendido por sua sociologia como fundamento da modernidade era também o individualismo dos espiritualistas. Durkheim procurava distinguir o individualismo utilitarista – expressão de uma grande miséria moral – de outro tipo de individualismo completamente distinto: aquele professado por Kant, por Rousseau e pelos espiritualistas. Ao invés de fazer dos interesses pessoais seu objetivo, essa outra forma de individualismo considera “tudo o que é motivação pessoal como a origem do próprio mal”80, de modo que o comportamento imoral é reconhecido por estar estreitamente vinculado à individualidade do agente e a seus móveis egoístas, ou, em outros termos, aos elementos inferiores de nossa existência. Por outro lado, o individualismo pregado tanto pelos espiritualistas quanto por sua sociologia seria algo arraigado nas instituições e nos costumes das sociedades de seu tempo, tendo como base a “pessoa humana”, objeto sagrado capaz de conduzir à solidariedade e ao respeito à humanidade presente em cada um de nós. Contudo, é em Representações individuais e representações coletivas (1898) que podemos notar mais nitidamente o seu empenho em aproximar a sociologia de certas premissas espiritualistas; e, por essa razão, o artigo pode ser lido como uma tentativa de diálogo com um público inclinado à aceitação daquelas premissas. Na verdade, a preocupação em se justificar perante o público espiritualista passava a ser exigida diante das duras críticas sofridas. Era necessário um esforço consistente para demonstrar a proximidade de sua sociologia em relação a alguns dos seus princípios elementares do espiritualismo, sobretudo aquele que rejeitava qualquer redução ou determinação da vida espiritual. 80. 

[1898c] O Individualismo e os Intelectuais, p. 237.

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Como vimos,um dos pressupostos fundamentais dos espiritualistas era o da independência da vida espiritual em relação aos aspectos materiais da existência, isto é, às determinações orgânicas, fisiológicas e exteriores. Como base para sua argumentação, Durkheim oferece a premissa de que os fatos mentais possuiriam independência em relação às células cerebrais, isto é, ao seu substrato físico e biológico. Com isso, ele reconhece a pertinência da crítica espiritualista às tentativas científicas de reduzir as funções espirituais às ordens inferiores da realidade. Ele procura convencer os espiritualistas do pressuposto de sua sociologia valendo-se de uma analogia: assim como a vida mental e espiritual possuiria relativa independência de seu substrato material e biológico, as representações coletivas ou os fatos sociais possuiriam relativa independência em relação aos estados mentais tomados isoladamente. O valor da analogia decorreria do critério geral segundo o qual, à medida que uma associação se constitui, ela dá origem a fenômenos que não derivam diretamente da natureza dos elementos associados. Por isso, ao nos associarmos, as representações reagem umas sobre as outras e dão origem a representações coletivas. Elas não podem derivar dos indivíduos considerados isoladamente, mas de sua cooperação. Sendo assim, sua sociologia não seria contrária à ideia de uma espiritualidade, já que ela ocupar-se-ia de fenômenos fundamentalmente psicológicos. Aliás, a preocupação em convencer e trazer os espiritualistas ao seu próprio empreendimento teórico pode ser vista também pela recorrente utilização do termo “espiritualidade” grifado no texto.81 Isso servia para destacar que essa espiritualidade, enquanto realidade independente das formas inferiores do ser, estaria no centro de sua perspectiva. Assim, ao acentuar a hiperespiritualidade do objeto da sociologia, Durkheim procura afastar as assimilações de seu pensamento ao materialismo. Mas há uma advertência importante que ele fazia questão de ressaltar: o reconhecimento da relativa independência das realidades psicológicas, ou seja, da espiritualidade, não significava conceber uma alma separada do corpo e levando, em 81. 

[1898b] Representações individuais e coletivas, p. 36, 40.

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algum meio ideal, uma existência à parte do mundo. Ao contrário, “a alma está no mundo”.82 E sendo essa espiritualidade uma realidade, ela está sujeita também ao racionalismo e à análise científica. Assim, afirmar a independência relativa da vida espiritual não significa que suas leis e suas forças possam ser tematizadas e apreendidas pelos velhos processos de análise interior.83 Assim, ao perceber a busca de uma aproximação entre Durkheim e o espiritualismo, Célestin Bouglé, em seu artigo Le ‘spiritualisme’ d’Émile Durkheim, afirmou que o sociologismo do clássico da sociologia francesa consistiria, em grande medida, num esforço para fundamentar e justificar, de uma maneira nova, as tendências espiritualistas.84 5.3. Educação Moral (1903): Desejabilidade, Esforço e os Hábitos Coletivos como Meio de Elevação Até aqui, visualizamos vários problemas enfrentados por Durkheim em suas primeiras tentativas sistemáticas de resolver, por meio da sociologia, a controvérsia sobre liberdade e determinismo. As distintas críticas direcionadas à sua noção de moralidade, associadas à sua própria insatisfação com a solução apresentada em Da Divisão, impeliam-no a uma transformação em seu próprio conceito de moralidade. Certas modificações em torno da noção de moralidade já eram sensíveis em O Suicídio, mas Durkheim ainda estava à procura de meios e de conceitos sistemáticos para desfazer a tensão existente em Da Divisão entre a moralidade e a liberdade, tensão esta trazida a partir da assimilação dos princípios adotados por Wundt em sua “psicologia dos povos”, e que foi origem de notórias dificuldades para Durkheim ao serem transplantadas para o quadro intelectual francês. Diante de tais dilemas, que solução poderia adotar Durkheim 82.  Ibid., p. 36. 83.  Ibid., p. 40-1. 84.  BOUGLÉ, Célestin. Le Spiritualisme d’Émile Durkheim. Revue Politique et Littéraire-Revue Bleue, Paris, 62 Année. Germer Baillière, 1924, p. 553.

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para dar prosseguimento a suas teorizações sem desconstruir por completo o edifício de sua sociologia? Rejeitar as pressuposições sobre a moral como obrigação e como regras socialmente apreendidas que predeterminam a conduta? Evidentemente, essa não seria a resposta, pois significaria o reconhecimento do insucesso de seu primeiro empreendimento e destruiria o principal fundamento de seu projeto de ciência. Durkheim faria justamente o oposto. Após ter reconhecido o caráter problemático de sua solução para o debate sobre liberdade e determinismo, ele retorna a Wundt para assimilar o outro elemento da moralidade que havia sido deixado de lado em sua primeira obra e que lhe abriria as portas para uma importantíssima inflexão teórica. Para Wundt, a autoridade dos fatos morais seria resultado não só do elemento de coerção, mas de sua força de atração, ou seja, da satisfação ao fazer o bem. Recorrendo a Wundt, Durkheim se moveu de uma definição da moral calcada apenas em seu caráter coercitivo e no dever para uma definição à qual se adicionava o elemento de “desejabilidade” (désirabilité), enquanto atração para o bem. Com a adição dessa nova faceta da moralidade, abriram-se novas portas para pensar a conexão entre os componentes subjetivos e os fundamentos morais da vida social (ISAMBERT, 1993a).85 Ainda que essas transformações pudessem ser observadas desde o Suicídio (1895), foi a partir de A Educação Moral (1903) que Durkheim passou a exibir sistematicamente a moralidade como uma combinação entre o imperativo e o desejável, entre o “espírito de disciplina” e a “adesão aos grupos sociais”.86 Nessas lições, ele analisa sistematicamente o que considera serem várias facetas da moralidade e volta a teorizar a respeito da íntima associação entre moralidade e hábito, sendo este último visto como uma força acumulada pela repetição.87 Para ele, a moral é uma espécie de hábito coletivo: 85.  Para Parsons, o fato de o Durkheim de Da Divisão ter ignorado esse aspecto da moralidade indicava sua proximidade com o “dilema utilitário”. Isso porque, naquele momento, o desejável era, para o sociólogo francês, associado a concepções utilitárias (PARSONS, 1966, p. 387). 86.  [1925a] A Educação Moral. 87.  Ele reafirma o entendimento comum à tradição espiritualista de que há no hábito uma força acumulada pela repetição, dotada de consistência e densidade, isto é, uma força

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Portanto, a moral pressupõe certa aptidão a repetir as mesmas ações nas mesmas circunstâncias, e por isso pressupõe a capacidade de adquirir hábitos, uma vez que necessita de regularidade. A afinidade entre o hábito e a prática moral é de tal monta que todo hábito coletivo apresenta quase que inevitavelmente certo caráter moral. Quando uma maneira de agir se torna habitual no âmbito de um grupo, tudo o que a contraria desperta um movimento de reprovação muito parecido com aquele produzido quando ocorre um falta moral propriamente dita. Essas maneiras de agir habituais gozam do mesmo respeito particular de que são objeto as práticas morais. Se nem todos os hábitos coletivos são morais, todas as práticas morais são hábitos coletivos. Como decorrência disso, qualquer um que seja absolutamente refratário a tudo aquilo que é hábito corre também o risco de ser refratário à moralidade.88

Portanto, as práticas morais são hábitos coletivos, mas há uma característica que permite distinguir os hábitos propriamente morais: eles não podem ser entendidos como forças interiores ao indivíduo, mas se vinculam a algo que os transcende e os ultrapassa, isto é, a força de uma autoridade moral. À regularidade característica dos hábitos coletivos junta-se a noção de autoridade que, além de nos ditar modos de agir, impõe-se a nós “de fora” como uma força superior, com o poder de fazer nossa vontade se dobrar. E entre esses dois aspectos, o da regularidade e o da autoridade, há uma noção capaz de abarcá-los motriz consolidada. É uma necessidade quase mecânica, diz o autor, que o “centro gravitacional da conduta” esteja na região dos hábitos (ibid., p. 141). Refletindo sobre a formação intelectual da criança, Durkheim diz que o poder do hábito organiza, corrige e contém a instabilidade inerente à vida psíquica infantil. Para que o comportamento infantil não seja um espetáculo contraditório de extrema mobilidade e instabilidade, “basta levá-la [a criança] a adquirir hábitos regulares em relação às circunstâncias mais importantes de sua existência” (ibid.). Assim, aquilo que há de fugaz poderá ser fixado e a rotina poderá se organizar e se regularizar em seu conjunto. É por essa abertura psicológica da criança à formação de hábitos que é realizada sua iniciação na vida moral, passando esses hábitos a compor os recônditos de sua vida interior. É por eles que podemos orientar sua formação intelectual e pelos quais ela passa a sentir que há uma ordem natural das coisas contraposta aos arranjos acidentais. 88.  Ibid., p. 42-3 (grifos meus).

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para emitir seu significado mais amplo: a noção de disciplina (ou o “espírito de disciplina”), que engloba tanto o aspecto da regulação da conduta quanto o da autoridade, pressupondo ações que se repetem em condições determinadas, isto é, formas habituais de agir.89 Até aqui, ele basicamente repetia a fórmula que havia anunciado há alguns anos em sua tese de doutorado. Mas a seguir ele anuncia outro aspecto da moralidade que havia sido deixado de lado por Kant (e também por ele mesmo). Ao contrário do que Kant supôs, diz ele, a moral não poderia se restringir à noção de dever e de obrigação, pois seria impossível o cumprimento de um ato com abstração de seu conteúdo. Isso significa que, além do dever, deve haver desejabilidade.90 Para nos atingir, a moral deve tocar, de alguma forma, a nossa sensibilidade, ou seja, é preciso que ela desperte nosso interesse e nosso desejo. E essa forma específica de desejo deve partir da vinculação a um grupo social, isto é, de nossa inserção em agrupamentos humanos (família, corporação, associação política, pátria, humanidade, etc.) dos quais de algum modo participamos. Com isso, ele estabelece o segundo elemento da moralidade: a “adesão aos grupos sociais”, como outro elemento básico da vida social responsável pela produção de fins ou de ideais “impessoais”, coletivos e supraindividuais, produtos da sociedade e de suas várias esferas. A moralidade consiste não só de regras imperativas, mas também de ideais aos quais os homens aspiram. Contudo, o modo pelo qual desejamos o ato ordenado pela regra moral traz uma importantíssima peculiaridade: nosso impulso e nossa aspiração em sua direção não ocorrem sem certa dificuldade, sem um esforço. Esse faz com que experimentemos um prazer sui generis em cumprir nosso dever. Temos então uma faceta crucial da execução do ato moral frequentemente menosprezada pelos intérpretes: ele reiteradamente vincula o cumprimento da ação moral ao esforço individual do agente, na medida em que é esse esforço que torna a ele possível não se guiar pelos elementos inferiores de sua existência:

89.  90. 

Ibid., p. 46. [1906b] Determinação do Fato Moral, p. 52-3.

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existe algo da natureza do dever nesta desejabilidade do aspecto moral. Se é verdade que o conteúdo do ato nos atrai, não é menos verdade que está em sua própria natureza o não ser cumprido sem esforço, sem constrangimento de nossa parte. O impulso, mesmo entusiasta, com o qual possamos agir moralmente nos afasta de nós mesmos, eleva-nos acima de nossa natureza, o que não ocorre sem dificuldade ou sem contenção. É a este desejável sui generis que damos habitualmente o nome de bem.91

Assim como Maine de Biran e os espiritualistas, Durkheim fez questão de associar a elevação espiritual e moral de um ato a um esforço pelo qual nos desvinculamos e nos elevamos em relação aos aspectos inferiores de nosso ser.92 Esse caráter desejável da moral, que decorre de nossa inserção em grupos humanos, significa que incorporamos ideais que passam a organizar nossa vida psíquica como uma finalidade superior. Por essa razão, a atividade moral ultrapassa as consciências individuais, tornando-se um objetivo transcendente. O agir moral depende de certa violência, de certo esforço contra os aspectos estritamente individuais de nossa natureza. Mesmo quando realizamos um ato moral com um “ardor entusiasta”, sentimos que nos afastamos de nós mesmos e temos consciência de estarmos violentando uma parte de nossa natureza, aquela parte que nos é puramente individual e que se vincula a nossos atributos corpóreos. Evidentemente, Durkheim já trabalha aqui no quadro de sua concepção dual da natureza humana, o seu peculiar homo duplex. A partir desse quadro, ele retoma a noção de esforço adaptando-a a uma noção de moral que ultrapassa o indivíduo. Portanto, Durkheim, que antes se valia de uma concepção mais restrita de moralidade, passa a ver nela algo mais amplo, de modo a torná-la mais condizente com a complexidade e a variabilidade 91.  Ibid., p. 44 (tradução alterada, grifos meus). 92.  Também para Guyau o sujeito verdadeiramente moral seria aquele constituído por uma vontade capaz de agir com um esforço para realizar um ideal. Para ele, o cumprimento do dever resulta de um estado de tensão interior a partir de um esforço que contrapõe um ideal de ordem mais elevada à passividade existente em nós.

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inerentes aos aspectos normativos e ativos que orientam a conduta humana. Nesse sentido, a chamada “espiritualização” da sociologia durkheimiana coincide com o acréscimo de um elemento primordial à moralidade que irá culminar em outra síntese teórica visando solucionar a problemática do determinismo e da liberdade. É justamente esse movimento que, conjugado com sua visão da vida psíquica cada vez mais polarizada por seu homo duplex, permite a ele devolver à moral parte de sua “nobreza”. Esse movimento de devolução da “atividade” à moral correspondia à exigência dos espiritualistas de não contrapor liberdade e moralidade. Com isso, ele reiteradamente admitia que “essa tendência da consciência moral, de vincular a moralidade do ato à liberdade do agente, é um fato que não pode ser contestado e que devemos ser capazes de explicar”.93 Com essas inflexões, como não poderia mais subsistir a tensão entre, por um lado, o coletivo e o moral e, por outro, a autonomia, a solução na fase intermediária de sua produção foi passar a incluir a autonomia como um elemento inerente à própria moralidade. Dessa maneira, em A educação moral, além do espírito de disciplina e da adesão aos grupos sociais, a autonomia da vontade aparece como o terceiro elemento da moralidade. Diferentemente de Da Divisão, aqui a autonomia não mais se fundamenta pela diminuição das regras morais; ou pela ausência de fusão das consciências que se diferenciam; ou pela indeterminação da consciência coletiva e das representações coletivas; ou ainda, pelo crescimento de uma esfera da mente humana não regida por forças coletivas, isto é, pela não determinação coletiva ou moral da consciência. Mas sim por um sistema de representações coletivas que, alimentando nossa consciência, nos coloca em condições de compreender os fundamentos das regras e, consequentemente, de poder desejá-las “livremente”. Durkheim passa a pensar o processo não mais como uma crescente indeterminação das representações coletivas, mas por transformações em seu conteúdo. É pelo desenvolvimento (científico) e complexificação das representações coletivas que ganhamos uma maior autonomia. 93. 

[1925a] A Educação Moral, p. 117-8.

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Em outros termos, ganhamos a liberdade na medida em que compreendemos as coisas e essa maior compreensão é decorrência do desenvolvimento científico. Por isso, “a ciência é fonte de nossa autonomia” (ibid., p. 121). Dessa forma, libertar-se é abastecer-se de elementos psíquicos sócio-morais que nos permitem uma oposição às forças cegas e não inteligentes, e essa libertação é apenas conquistada pela sociedade e suas forças morais. Com isso, como não mais podia contrapor a autonomia ao que é coletivo, moral ou habitual, Durkheim recorreu a um dos argumentos que mais causaram estranheza ou aversão dos críticos posteriores: o de que nossa autonomia é nada mais que um tipo de conformação à ordem das coisas, ainda que por um “querer” esclarecido sobre a realidade moral. Além disso, já nesse curso sobre a educação moral se evidencia uma mudança fundamental que prosseguiria em sua produção intelectual subsequente. Lembramos que nas Lições de Sens (1883-4) Durkheim posicionava o hábito entre os instintos e a vontade livre. Lembramos também que em Da divisão (1893) os hábitos coletivos se colocavam entre a parcela hereditária e orgânica e a parcela da livre atividade espiritual da personalidade individual, atuando na vida psíquica como uma espécie de determinação espiritual que, ainda que não tão rígida quanto os fatores hereditários, era também contraposta à liberdade. Já em Representações Individuais e Coletivas (1898) e Educação Moral (1903), os hábitos coletivos passam a expressar aquilo que temos de mais elevado, isto é, aquilo que é coletivo, social e moral. A mediação entre liberdade e determinismo passa a ser pensada através dos hábitos, sendo cada vez mais articulada pelo conceito de representações coletivas enquanto elemento da realidade que responde por nosso ser mais elevado. Nesse sentido, aquilo que é coletivo e moral não aparece como uma força de pressão que apenas constrange, mas como um meio de elevação para o indivíduo. Eis que, depois de um longo período, ele havia encontrado um modo mais sofisticado de promover a “subjetivação da ordem social” e de resolver algumas das principais tensões que marcaram sua primeira tentativa sistemática de promover uma síntese entre liberdade e determinismo através da sociologia. Foi com a

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assimilação de um outro elemento da moralidade, coincidente com uma das dimensões da vida moral presentes na Völkerpsychologie de Wundt, que ele pôde encontrar uma forma mais consistente de superar a tensão entre hábito e liberdade. Através dessa visão da moralidade, ele pôde conceber os hábitos coletivos e a moralidade não como uma restrição da atividade espiritual contraposta a sua parte mais livre, mas como aquilo que constitui o próprio meio pelo qual alcançamos um patamar mais elevado. Com isso, a moralidade passa a ser pensada como uma força espiritual que molda inclusive nossos fins, desejos e que nos fornece ideais. Ou seja, ela responde pelos aspectos mais ativos da vida espiritual. 6. Forças Morais e Criatividade Social: a Síntese Final em As Formas Elementares Mesmo após a virada para o século XX, a questão da moralidade continuava a fazer parte da agenda nos meios intelectuais franceses, sendo objeto de intensos debates. A essa altura, muitos dos pressupostos da sociologia durkheimiana passavam a ser levados adiante por um esforço coletivo, e sua ciência da moral era especialmente defendida por Lévy-Brühl.94 A noção durkheimiana de moralidade continuava sendo alvo predileto de ataques, particularmente de filósofos que partilhavam das premissas do espiritualismo. O foco central das divergências era bem nítido: os limites do elemento social (da determinação social e exterior) para a explicação das ações morais, para as decisões interiores e conscientes, para o caráter ativo e livre da vida espiritual do homem. Nesse contexto, Fouillée continuava seu debate com Durkheim.95 Ele argumentava que a moralidade teria de ser pensada como uma construção de ideias-forças que 94.  Para uma consideração sobre esse e outros debates em torno da noção durkheimiana de moralidade após a virada do século, ver: LUKES (1985, p. 500-6); FOURNIER (2013, p. 443-8); WALLWORK (1972). 95.  Como podemos observar em: FOUILLÉE, Alfred. Les elements sociologiques de la morale. Paris: Félix Alcan, 1905.

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reagem continuamente sobre os determinismos, inclusive os sociais e coletivos. As representações não possuiriam, para ele, uma existência real a não ser nas consciências individuais.96 6.1. Um Novo Desafio: Henri Bergson e o Bergonismo Mas a polarização intelectual mais reveladora e mais interessante para os propósitos aqui perseguidos, na França do início do século XX, foi aquela entre a sociologia durkheimiana e a filosofia de Henri Bergson (1859-1941). É importante sinalizar que as críticas e tendências espiritualistas não se resumiam a uma velha geração de filósofos ultrapassada, relutante e decadente diante dos avanços da sociologia. O ambiente intelectual continuava fortemente inclinado às premissas espiritualistas. Tanto é que Durkheim, embora envolvido num empreendimento coletivo junto à sua equipe de colaboradores (dentre os quais poderíamos citar Marcel Mauss, Henri Hubert, Célestin Bouglé, Paul Lapie, François Simiand, Gaston Richard, Maurice Halbwachs, Robert Hertz, dentre outros) que participavam tanto do esforço para a institucionalização da sociologia quanto compunham as publicações da L’Année sociologique, gozava de um prestígio inferior ao que seu ex-colega normalien, Henri Bergson, desfrutava já na primeira década do século XX.97 O grande esforço coletivo empreendido em cada publicação da revista L’Année era acompanhado por aquelas mesmas acusações das quais já estamos plenamente familiarizados: naturalismo, positivismo e determinismo, críticas que serviam bem aos ataques oriundos da filosofia espiritualista (FOURNIER, 2013; LUKES, 1985, p. 363-71). Bergson era o filósofo em evidência e recebia enorme atenção nos círculos intelectuais franceses. Ele foi aluno de Guyau no Lycée Condorcet e colega de Durkheim na École Normale Supérieure. Sua produção seguiu paralelamente à de Durkheim, de modo que os enfrentamentos 96.  Ibid., p. 160. 97.  Sobre o significado do empreendimento coletivo representado pela Escola Durkheimiana, ver MASSELA, A. Leituras da Escola Durkheimiana. In: MASSELA, Alexandre et al (Org). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.

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entre suas respectivas formas de pensar, ainda que em grande parte implícitos, eram praticamente inevitáveis.98 O “bergsonismo” representou uma renovação da filosofia espiritualista a partir de uma postura que reconhecia alguns avanços da sociologia e do tratamento científico da moral. Seguindo uma linha de pensamento claramente descendente dos espiritualistas, nomeadamente de Guyau, ele apresentava uma solução alternativa para o problema da liberdade envolvendo os mesmos elementos-chave por nós examinados: moralidade, hábito e esforço. Tal como Durkheim, Bergson percebia a efetividade da inserção social do homem para sua vida moral, recorrendo, tal como o sociólogo, à metáfora biológica do “organismo” para se referir à organização das vontades em conjunto numa sociedade. E para essa organização das vontades, é novamente o hábito o elemento fundamental. Os hábitos socialmente engendrados exercem uma pressão sobre a vontade, na forma de obrigação social.99 Eles se apresentam, para Bergson, como obrigações que representam exigências sociais. Nesse sentido, a moral social é hábito, e as obrigações impostas por esses hábitos introduzem uma regularidade que possui uma analogia com a ordem inflexível dos fenômenos da vida. Contudo, essa moral nos aprisiona. Reproduzimos algo que já está dado e essa reprodução não requer esforço. O dever é cumprido “quase que automaticamente” e pré-reflexivamente.100 Ao contrário do que afirma Durkheim, o cumprimento das obrigações habituais da moral social não seria 98.  A rivalidade entre Bergson, que lecionava no Collège de France (no qual Durkheim havia, aliás, sido rejeitado) e Durkheim, que era professor da Sorbonne, acabaria polarizando muitos dos jovens intelectuais do período. Mesmo entre os jovens colaboradores de Durkheim, houve aqueles que ficaram fascinados pela obra de Bergson, como Halbwachs, Hertz e Simiand (FOURNIER, 2013). 99.  Percebendo a associação originária da sociologia durkheimiana entre moralidade e hábito, Bergson passa, tal como Guyau, a aceitar a associação entre uma parte da moralidade, aquela das obrigações sociais, ao hábito, como algo de que não temos sequer uma consciência plena. 100.  BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Coimbra: Almedina, 2005b [1932], p. 31. Para Bergson, se a gênese do hábito remete a uma atividade inteligente e livre, com o tempo e com a repetição ele se converte em algo automático e assume a forma de necessidades ou de determinações naturais. Assim como os instintos, os hábitos exercem uma pressão sobre nossa vontade, correspondendo a certos tipos de necessidade social.

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para Bergson intrinsecamente atrelado a um esforço sobre si mesmo. Isso porque, a partir de sua rotineirização social, as obrigações passariam a ser cumpridas natural e habitualmente. Portanto, a verdadeira liberdade não poderia ser conquistada como um mero reflexo dessa moral social, pois esta não requer esforço. Mais de um século após Maine de Biran, a questão da relação entre hábito, liberdade e esforço entra em cena com a mesma força. Mas essa relação é agora atualizada e atrelada não só ao hábito, mas à chamada “moral social”. Para Durkheim, o que distingue os hábitos coletivos dos instintos é a sua inerente flexibilidade e maleabilidade quando comparados com as esferas inferiores de nosso ser. Enquanto isso, Bergson adere ao raciocínio propriamente espiritualista de aproximação entre hábito e instinto, no sentido de que tanto os instintos quanto os hábitos são similares pelo poder de determinação sobre a vontade e a conduta, diferindo apenas quanto ao grau de determinação, de modo que ambos opõem-se à livre atividade espiritual. Os hábitos são uma espécie de “instinto virtual”, tornando-se uma forma de obrigação natural e impensada, e é através deles que as sociedades humanas alcançam sua estabilidade, durabilidade e regularidade. Sua orientação corresponde a necessidades básicas da vida – coesão, preservação e obrigação – que abarcam tanto homens quanto animais. Portanto, a verdadeira liberdade não poderia ser alcançada através deles, pois aprisionam o espírito. O salto para além das tendências “fechadas” da moral social só pode ocorrer, para ele, na forma de uma resistência aos hábitos através do esforço, enquanto única possibilidade de ativar nosso impulso criativo vinculado à expressão das emoções. Esse salto é o meio pelo qual nos movemos para além daquilo que é natural para nós, transcendendo as determinações que nos são impostas, sobretudo as espirituais impostas pelos hábitos e pelas pressões sociais. Já para Durkheim, são justamente os hábitos coletivos morais, enquanto produtos de nossa associação, que nos movem para além da rigidez que marca as ordens mais baixas do ser. Ou seja, a capacidade de nos elevarmos depende de nossa imersão social, em hábitos coletivos, em uma realidade moral que eleva nossa natureza, trazendonos a nossa humanidade (WHITE, 2013).

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Com o sucesso do empreendimento neoespiritualista de Bergson e o clima de rivalidade que se estabelecia entre suas perspectivas, várias críticas foram lançadas contra a ciência social durkheimiana, acusando-a de possuir uma visão estática da moral que privilegiaria um conformismo com a moral social, dando, com isso, pouco ou nenhum espaço à criatividade, liberdade e autonomia da pessoa humana. De seu lado, Durkheim transformaria tais críticas em motores para novas preocupações teóricas. 6.2. As Formas Elementares (1912): Criatividade e Interiorização da Alma Não é de se surpreender, portanto, que, na última fase de sua produção, Durkheim tenha produzido uma resposta à questão da criatividade, buscando relacioná-la, de forma original, com as emoções e a moralidade. Essa resposta foi sendo paulatinamente fornecida por meio do modelo do ritual como fundamento para a noção de associação. A associação passaria a ser vista como ao mesmo tempo emocional e voluntária, da qual os indivíduos seriam motivados a participar por uma vibrante aderência à divindade e ao outro. Esse modelo permitiu a ênfase, muito mais do que antes, nas práticas emocionais que fundam as crenças, a partir de episódios ao mesmo tempo cerimoniais e criativos.101 Com isso, diferentemente dos espiritualistas, Durkheim pôde rejeitar a tese da espontaneidade criativa da atividade espiritual como fruto da atividade isolada de cada consciência individual, para defender uma ideia de criatividade como fruto de processos interativos. As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) emergiu como uma resposta sistemática que permitiu ir além das posições em de101.  Sobre isso, são especialmente importantes as partes de As formas elementares nas quais o sociólogo francês narra os momentos de efervescência das tribos australianas. Com as concentrações periódicas, a vida coletiva podia alcançar o máximo de intensidade e de eficácia, fornecendo aos membros um sentimento mais forte da dupla existência da qual participam ([1912a] As Formas Elementares, p. 225-7). Para Durkheim, é nesses meios sociais efervescentes que estaria a gênese das ideias religiosas e as matrizes do pensamento humano.

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bate no universo intelectual francês. Os estudos de Durkheim sobre a religião primitiva culminaram em uma análise revolucionária da gênese das noções fundamentais do pensamento, das categorias e dos conceitos, que repercutiria diretamente no âmbito da teoria do conhecimento. Nesse livro, ele procura demonstrar que as noções essenciais do pensamento – tais como as noções de tempo, espaço, força, gênero, causalidade, substância, totalidade e personalidade – encontram sua origem nos fenômenos religiosos, e por extensão, são resultantes de uma gênese social.102 As religiões teriam sido responsáveis não só por prover ideias a um espírito humano previamente constituído, mas também pela gênese e pelo desenvolvimento do próprio espírito. Como demonstra Schmaus (2004) em seu convincente livro, ao elaborar sua sociologia do conhecimento e lançar sua interpretação sobre a gênese social das categorias, Durkheim estava elaborando uma resposta dirigida muito mais diretamente aos espiritualistas do que propriamente a Kant. No capítulo de Gomes Neto (cap. III) abaixo, é minuciosamente analisada a forma pela qual a teoria sociológica das categorias se apropria da filosofia de Kant. O que nos interesse aqui, no final de nossa análise, é mostrar como a interlocução com espiritualismo foi uma faceta crucial de tal construção teórica. Ao contrário de Kant, Maine de Biran e outros espiritualistas defendiam a tese de que as próprias ideias de causalidade e de “força ativa” derivavam do senso interno de nossa própria causalidade ou atividade (SCHMAUS, 2004, p. 69). Nesse sentido, diferentemente de Kant, que argumentava por uma dedução a priori das categorias do entendimento, uma teoria das categorias deveria advir de uma investigação psicológica: através da introspecção, da experiência interior, é que seria possível demonstrar a gênese psicológica das categorias do pensamento. Contra isso, Durkheim procura, então, demonstrar a gênese sociológica, e não psicológica, de tais categorias. Ele entende os conceitos como aquilo que se opõe às representações sensíveis – 102. 

[1912a] As Formas Elementares, p. xv-xvi.

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sensações, percepções ou imagens. Se estas últimas se encontram num fluxo perpétuo, como função apenas do instante imediato em que ocorrem, os conceitos, ao contrário, são algo abstraído dessa agitação, consistindo em elementos da vida psíquica que são mais serenos, mais calmos e mais resistentes à mudança. Trata-se de modos de pensar mais fixos e cristalizados e que, por isso, modificam-se apenas lentamente.103 O sistema de conceitos através do qual pensamos em nossa vida cotidiana é vinculado a nossa inserção em uma linguagem, que é produto de uma elaboração coletiva. Por conta disso, um conceito é uma representação essencialmente impessoal e é através dele que as inteligências se comunicam.104 Os conceitos são, portanto, representações coletivas, a matéria-prima que faz com que a sociedade exista como algo além das sensações e imagens individuais, como um sistema de representações pelo qual as inteligências se interpenetram, graças a sua força e ascendência moral ( JONES, 2000).105 Assim, os conceitos e as representações coletivas são produto de uma longa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas também no tempo, por gerações que compartilharam e acumularam saberes e experiências, expressando uma intelectualidade muito mais rica e complexa do que um indivíduo isolado poderia criar. Através dessas premissas, Durkheim preparava terreno para superação da antinomia entre a atividade do eu e disposições socialmente engendradas. Mas há ainda outro aspecto importante: além das representações coletivas terem sua origem enraizada na realidade da vida coletiva do grupo, Durkheim supõe que elas podem revelar algo de substancial sobre essa realidade. As representações coletivas seriam capazes de exprimir algo da realidade sui generis na qual a sociedade se consti103.  Ibid., p. 480-1. 104.  Se ele não é universal, é ao menos universalizável, já que um conceito não pode ser algo restrito a um ou outro homem, mas é uma obra da existência em comum, isto é, associações humanas. 105.  Assim, de acordo com Durkheim, se as categorias fundamentais do pensamento, os conceitos e o raciocínio lógico possuem uma ascendência religiosa, o mesmo vale para o próprio pensamento científico. Com isso, longe de haver entre a ciência, de um lado, a moral e a religião, do outro, uma espécie de antinomia, elas derivam de uma mesma fonte pela qual os indivíduos são capazes de se elevar acima de seu ponto de vista próprio e de viver uma vida impessoal.

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tui (LUKES, 1985; PICKERING, 1993, 2000). É dessa premissa que se torna possível compreender seu raciocínio sobre aquela noção que é a verdadeira matriz das preocupações filosóficas espiritualistas: a noção de alma.106 Ele acreditava ter encontrado uma explicação científica e sociológica sobre essa noção fundamental tanto a concepções religiosas quanto a boa parte da tradição filosófica existente. Pelos estudos sobre o sistema totêmico australiano, Durkheim chegou à conclusão de que havia uma noção que constituiria o protótipo a partir do qual todos os outros “seres espirituais” foram derivados: a noção de alma. Não haveria sociedades humanas sem um sistema de representações coletivas relacionadas à alma.107 Isso porque a ideia de alma seria uma representação de uma das duas espécies distintas e irredutíveis de princípios que habitam nossa vida interior. Obviamente, não a que se relaciona com o mundo material, mas a que decorre de um mundo ideal ao qual atribuímos uma superioridade moral sobre o primeiro. Com isso, o homo duplex durkheimiano aparece em sua forma mais nítida e bem acabada: de um lado, temos o natural e interno, que corresponde a nossos atributos sensíveis e a nossas paixões; de outro, o social e moral, onde encontramos o raciocínio conceitual e a atividade moral. O primeiro tem sua base no organismo e seu círculo de ação se acha, por isso, estreitamente limitado; o segundo representa em nós a mais elevada realidade, na ordem intelectual e moral. Assim, a alma, como expressão do polo moral do homem, não é senão uma porção da “alma coletiva” do grupo. Ela teria algo da força anônima que estaria na base dos cultos totêmicos, mas encarnada num indivíduo. Enquanto o corpo é meramente material e não poderia ser fonte de autonomia, o fator espiritual que as religiões identificam como alma seria a parte do indivíduo na qual a sociedade estabelece sua presença. Nesse sen106.  Para Durkheim, a despeito de envolverem algo de ilusório, as crenças religiosas não podem repousar apenas sobre uma ilusão: sua tese é de que deve haver nelas formas de expressão da realidade inerente à forma como o grupo está associado: “não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem, ainda que de maneiras diferentes, a condições dadas da existência humana” (Ibid., p. vii). 107.  Ibid., p. 457.

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tido, a parte mais elevada da personalidade não deriva do que separa cada indivíduo dos outros, mas do que todos têm em comum, do fator impessoal que é o princípio espiritual que serve de alma à coletividade, que faz parte do patrimônio coletivo e pelo qual todas as consciências se comunicam. A cada indivíduo, em sua existência, é atribuída uma alma, que é precisamente o que representa a totalidade em nós. É a porção do social no indivíduo. É a totalidade no particular. A existência de indivíduos enquanto seres diferenciados, conscientes, como entidades morais seria indicação de suas relações mútuas por um senso compartilhado de totalidade de que eles existem como representativos de cada outro e da totalidade. Assim, pelo termo pessoa, Durkheim passava a designar o fato de que o homem possui uma identidade social e moralmente constituída. É a esfera simbólica e ideal da vida coletiva, sedimentada em padrões relativamente estáveis, fixos e cristalizados da organização social e da vida institucional a responsável pela formação da personalidade, que contrasta com os determinismos orgânicos ao ser um componente da vida psíquica constituído pela inserção em comunidades morais e em hábitos coletivos. A personalidade é social e moral por origem e por orientação, ao passo que o organismo é inteiramente individualista. Com isso, nossa autonomia pessoal não é uma questão de diferenças individuais, mas do que é imposto aos indivíduos a partir de fora. Por isso, ele conclui que estamos longe de ser mais pessoais quanto mais individualizados: “a paixão individualiza, no entanto escraviza”.108 E se as nossas sensações são essencialmente individuais, disso decorre que somos tanto mais pessoas quanto mais livres dos sentidos e mais capazes de pensar e agir por conceitos. Portanto, enquanto, em Da Divisão (1893), Durkheim buscava justificar nossa maior liberdade por aquilo que temos de distinto, enfatizando que se especializar significa ser subtraído à ação coletiva, em As Formas Elementares (1912) é pelo fator essencialmente impessoal, pelo princípio espiritual que brota do patrimônio coletivo, que a autonomia passa a ser entendida (SEIGEL, 1987). A autonomia (a 108. 

Ibid., p. 287.

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alma) se torna tanto mais desenvolvida quanto mais simbolicamente desenvolvida é a sociedade em questão, ou seja, a maior complexidade simbólica, consequência da própria complexificação social, permite justamente um maior desenvolvimento de nossa parcela moral, conceitual e espiritual. O desenvolvimento da autonomia é pensado nos termos de um crescente autocontrole (maîtrise de soi), significando uma maior submissão dos apetites e paixões ao plano moral, conceitual, da razão propriamente dita, algo que se tornaria cada vez mais acentuado nas sociedades complexas. Assim, tal como Maine de Biran, a alma é entendida como força e sua força é responsável pelos elementos ativos de nossa existência. A diferença é que, para Durkheim, seus elementos ativos não podem ser tomados como uma autoprodução individual. Suas forças possuem uma origem, e essa origem é social. A alma é a parte da existência psíquica que não pode ser simples passividade. Quanto mais desenvolvida essa força social em nós, quanto maior nossa inserção no universal e no conceitual, maior nossa liberdade. É pela aquisição de uma herança espiritual, simbólica e coletiva, herança da própria complexificação da sociedade, que Durkheim vislumbra a maior autonomia. É a inserção em hábitos coletivos transferidos “de fora”, com ascendência social e moral, que nos dota de nossa humanidade. Também na última fase de sua produção intelectual, Durkheim continua a empregar a noção de esforço para se referir ao meio pelo qual nos elevamos acima de nossos atributos corpóreos tornandonos mais livres.109 Mas, se observarmos atentamente, em todas essas novas aparições há uma diferença crucial: em Da Divisão, o esforço individual, enquanto modo por excelência pelo qual o intelecto opera em uma especialidade, se dá numa zona moralmente neutra que permite a livre reflexão, para só depois se consolidar em hábitos, ou seja, o esforço se insere como uma reflexão sobre o mundo desprendida da passividade dos hábitos coletivos. Nesse sentido, ele compartilhava o raciocínio comum à tradição espiritualista do esforço como expressão de uma força ativa além e superior à rigidez e determinismo 109. 

[1914a] O dualismo da natureza, p. 303.

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das cristalizações habituais, ou seja, além dos hábitos coletivos. Já em sua obra tardia, o esforço é também visto como o elemento fundamental para a livre atividade espiritual, mas aqui seus contornos são outros. O esforço se realiza através dos hábitos coletivos obrigatórios, enquanto uma força coletiva consolidada em nós. Os hábitos coletivos são pensados como o meio de interiorização das forças ativas que passarão a compor cada alma singular. Nesse sentido, Durkheim incorpora uma noção positiva do hábito para a liberdade como mais adequada à compreensão do ser humano em sua existência concreta, pois permite conceber as mais elevadas expressões espirituais como originadas em formas de vida comuns, encarnadas em rotinas e práticas construídas na história. Os próprios conceitos pelos quais opera nosso pensamento são vistos como formas de pensar que, assim como os hábitos, são fixadas e cristalizadas através da vida e da sociedade.110 Com isso, Durkheim finalmente alcançava sua última síntese entre o positivismo e o espiritualismo, pela qual ele forneceu uma resposta mais sofisticada para o impasse entre liberdade e determinismo. As potencialidades espirituais não podem emanar de cada ser humano abstraído de sua imersão e de seu pertencimento em associações e interações humanas. Apenas podemos nos tornar humanos através da participação em processos supraindividuais que fornecem o material para nossa constituição psíquica. Nesse sentido, após algumas décadas de teorização, ele alcançava um caminho mais promissor à superação das deficiências tanto do positivismo quanto do espiritualismo, permitindo superar as tensões que opunham a causalidade social sobre a vida psíquica à verdadeira atividade da consciência, à reflexão e às escolhas mais livres, isto é, às forças ativas presentes em cada “alma” singular. Com isso, desfazia também a rígida contraposição entre as forças exteriores e a força interior. A marca distintiva de Durkheim em relação aos espiritualistas foi, portanto, não somente a sua mais abrangente sociologização da moral, mas também e principalmente a sua rejeição à existência de uma dimensão interior mais elevada imune às forças sociais. 110. 

Ibid., p. 480-1.

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CAPÍTULO II DA FORÇA AO SÍMBOLO: ONTOLOGIA VITALISTA, ANTROPOLOGIA DOS AFETOS E SIMBOLISMO SOCIAL André Magnelli

Quando se assinala que uma investigação mobilizará argumentos que mostram os fins políticos de uma determinada teoria científica, parece, de imediato, que se terá o objetivo de negar a validade da teoria por meio de demonstrações de sua parcialidade e dos interesses que lhe são subjacentes. Seria o caso, por exemplo, de reduzir a sociologia de Durkheim a um interesse político determinado, vendo nela uma religião de Estado que estaria em aliança com setores da burocracia estatal com o fim de constituir uma ideologia que doutrinasse as novas gerações; ou ainda, de reduzi-la a uma estratégia conservadora burguesa que teria como adversário o socialismo e como objetivo eliminar o risco dos movimentos revolucionários. Ou então, poder-se-ia mostrar que a sociologia durkheimiana se reduz a uma estratégia institucional que segue a lógica da luta por recursos de poder e prestígio do sistema universitário francês da época, marcado pelo conflito entre a Velha e a Nova Sorbonne. Ou ainda, poderse-ia provar que a proposta de Durkheim se define em oposição com uma teoria ou ciência adversária, por exemplo, caracterizando-a como um antibergsonismo, um anti-Tarde ou uma antipsicologia, fazendo com que as razões científicas fossem lidas a partir de uma espécie de lógica do amigo-inimigo. Enfim, poder-se-ia reduzi-la a objetivos pessoais, dizendo que o seu projeto seria apenas uma ambição desmedida de um sujeito que tinha uma indesejável postura

sacerdotal e um ar desagradavelmente profético, querendo impor, pela força das ideias, os seus valores enquanto um padrão universal. Portanto, uma explicação que versa sobre a presença do político em uma obra científica, pode reduzir as propostas intelectuais estritamente à esfera dos interesses, remetendo então as razões de ser da sociologia à ideologia, às dinâmicas institucionais, aos conflitos teóricos ou, enfim, às vaidades pessoais. E de fato, todas estas pretensas explicações são muito verossímeis, tendo uma parte de verdade que lhes cabe. Mas não é a isso que me proponho aqui. O risco inerente a todas as proposições deste tipo é o de reduzir a leitura crítica da sociologia clássica a uma conjunção de argumentos ad personam disfarçados de explicações científicas. Ainda que esse seja um caso-limite de tais empreendimentos, e não a regra, precavenhome de seguir este rumo. A leitura política da sociologia de Durkheim é feita aqui num sentido distinto. O objetivo da análise é mostrar como que sua sociologia, assim como toda a sociologia, trata de problemas radicalmente teóricos e práticos dentro de seu contexto sócio-político. Digo “radicalmente” porque considero que os problemas defrontados são sistemáticos, e não apenas contingentes ou factuais, podendo ser, desta forma, desdobrados segundo uma coerência lógica que transcende a sua existência histórica. Antes indicar quais são tais problemas radicais e a forma durkheimiana de defrontação sistemática, importa-nos, primeiramente, apresentar quais serão as diretrizes da análise. Diretrizes da Análise: Nova Retórica, Argumentação Científica e Lógica da Invenção A análise será feita ancorada, em parte, na teoria da argumentação da nova retórica de Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca. Essa teoria nos delimita os parâmetros iniciais de uma epistemologia e de uma axiologia que lida com o problema da verdade enquanto uma questão de justificação racional do preferível. Segundo a nova retórica, toda argumentação é concernente ao preferível, porque sempre se

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reporta à prática, e, com isso, a uma decisão. No entanto, somente se justifica o que é, a um só tempo, discutível e discutido, na medida em que, nem o que é completamente condenado, nem o que é completamente aceito, é passível de justificação.111 Sendo assim, toda justificação é, potencialmente, alvo de crítica. E esse fato a molda e lhe dá sua razão de ser. O processo de justificação é “uma refutação das razões efetivas que podemos ter para criticar um comportamento” [...] “é refutar objeções a respeito de um ato ou de uma atitude”.112 No entanto, a justificação não diz respeito apenas a uma conduta, pois ela é igualmente uma disposição para crer e uma pretensão de saber.113 Quando se argumenta com fins de conhecimento, mobilizase, no próprio ato, enquanto seu pressuposto, a reivindicação de um direito à certeza. Para que a legitimidade deste direito seja auferida, é necessário que existam critérios e regras para que se julgue se o fato da argumentação está conforme com o direito de argumentar. Mesmo que esteja fundada numa visão de mundo particular, uma argumentação somente pode postular legitimidade, portanto, caso cumpra regras de validação que a tornem competente para reivindicar um direito à certeza. Mas existe sempre uma possibilidade de se afirmar a incompatibilidade das regras entre si dentro de um sistema de regras e/ ou das regras com os fatos aos quais elas se aplicam. Desta forma, a argumentação deve defender-se da crítica de incompatibilidade, podendo versar tanto sobre questões de fato, quanto sobre questões de direito114. Veja-se, por exemplo, o caso de uma defesa de um fato diante da acusação de incompatibilidade com uma regra. Em relação às questões de fato, a justificação pode alegar, ou que o fato que é dito como incompatível com a regra não existe, ou que ele é diferente daquele que foi interpretado, e, portanto, que o fato real é conforme à regra. Em relação às questões de direito, ela pode, por um lado, assumir que os fatos foram cometidos ou existem, mas que a regra 111.  112.  113.  114. 

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.168-9. Ibid., p.171. Ibid., p.174-5. Ibid., p.172-4.

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não se aplica a ele, questionando, então, ou o campo de aplicação das regras (isto é, a sua extensão) ou a sua intepretação (isto é, seu conteúdo). Por outro lado, pode-se assumir que o fato ocorreu e que, inclusive, não é conforme à regra, mas que a própria regra é ilegítima. Desta forma, no primeiro caso, a justificação versa sobre o problema da aplicação da regra, que diz respeito ao da sua escolha (quando o campo da regra não é perfeitamente delimitado) e ao da sua interpretação (quando ela não é perfeitamente clara). No segundo, temos o problema da validade da regra, que pode ser posto para desqualificála, adaptá-la ou limitá-la. As regras serão emendadas caso haja uma contradição (dentro do sistema formal), uma incompatibilidade com os fatos (dentro da experiência) ou com os princípios (em relação à consciência moral). Tal lógica de justificação se aplica ao domínio da argumentação científica. Cada ciência possui regras e critérios específicos de validação. Todo fato deve ser adequado às regras de validação para que sejam tomados como verdadeiros. Segundo Perelman, os valores de uma proposição científica normalmente se reduzem (a) à origem e à formação dos conceitos e regras que constituem o sistema em questão e (b) aos termos do raciocínio e aos meios de prova, na medida em que esses visam o valor de verdade.115 No entanto, as ciências humanas fazem com que os valores intervenham a todo o momento como base da argumentação, determinando todo o seu desenrolar de forma a justificar ao ouvinte as suas escolhas (tornando-as aceitáveis e aprovadas) e, ao mesmo tempo, atuando sobre a sua motivação para que ele faça certas escolhas ao invés de outras. Sendo assim, para que um inovador se faça valer, é preciso que ele apresente justificativas que tornem legítimos os seus novos fatos ou regras. Uma proposta de institucionalização de uma nova ciência, como a de Durkheim, depende, assim, de recurso a uma argumentação que a justifique, caso contrário estará fadada desde o início às mais puras boas intenções. O que podemos falar, então, da sua justificação, que buscou convencer seus interlocutores da necessidade 115. 

Ibid., p.258.

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de institucionalização da sociologia tal como ele a compreendia? Desde já, devemos ter em vista que, assim como qualquer justificação, ela foi uma argumentação concernente ao preferível para o convencimento da fundação da sociologia. Portanto, o orador teve de associar o seu ato a valores acordados em sua época e por seu auditório, de forma a mostrar que a sociologia a eles se coadunava. Existem, contudo, vários agravantes para o movimento argumentativo, que decorrem do papel do inovador. Em primeiro lugar, ele tem que estabelecer provas da existência do novo fato que pretende estudar, no caso, o fato social. Para isso, ele discorrerá sobre a estrutura do real, versando sobre as suas ligações. É o que podemos chamar de argumento ontológico. Ele deve, para tanto, realizar críticas que desfaçam as ligações anteriormente aceitas, de forma a questionar as antigas regras e propor novas. Ele se esforçará em realizar dissociações entre realidade e aparência, com o fim de mostrar, por um lado, que um fato que não era aparente possuía, ainda assim, uma existência bem real, e, por outro, que os fatos que eram vistos como evidentes seriam, na verdade, apenas aparência. Nesta operação, ele poderá reforçar a diferença do novo fato em relação aos outros fatos, como, por exemplo, afirmando a existência de diferenças não apenas de grau, mas também de natureza. Além disso, ele questionará a validade da aplicação das antigas regras aos novos fatos, ou mostrando a sua incompatibilidade com o novo fato, ou diminuindo a extensão de aplicação dessas últimas a outros fatos, ou mesmo questionando a própria legitimidade delas, como, por exemplo, fazendo ver que o antigo método é inadequado, ou que não se aplica ao objeto, ou que o esconde, ou que se aplica apenas ao aparente, ou que é apenas subjetivo, etc. Contudo, para que não seja acusado de petição de princípio, ele deverá tentar se associar a alguns elementos da tradição, de forma a participar de seu prestígio. Portanto, ele deve se esforçar, a um só tempo e cuidadosamente, em se vincular e criticar seus antepassados. Há, no entanto, um agravante decorrente da peculiaridade do objeto reivindicado pela sociologia, que diz respeito a seu caráter abstrato ou quase imaterial, pondo o sociólogo refém fácil da crítica

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de estudar algo que não existe. Fato agravante é que as tentativas de prova devem vir juntamente com a criação de critérios e regras de validação. O risco é, sempre, de ser acusado de petição de princípio. A forma de evitá-la é de recorrer, igualmente, a precedentes e modelos da tradição. Ele deverá recorrer a analogias, precedentes e modelos, com o fim de fundar a estrutura do real. Será pelas analogias com fatos estabelecidos por outras ciências prestigiosas que ele conceberá hipóteses que sejam verossímeis sobre a estrutura da realidade social. Não é por acaso que elas serão feitas tendo por base fatos estabelecidos pela autoridade de outras ciências (a biologia e a psicologia), pois é o recurso ao modelo e ao precedente que lhe permitirá livrar-se da acusação de petição de princípio. Além disso, em decorrência do fato de se tratar de uma argumentação de fundação, ele deverá enfatizar a importância de sua ciência na hierarquia científica, comparando-a com as experiências anteriores e presentes, de forma a orientar para uma conduta proativa de incentivo e adesão, ou no mínimo para uma passiva aceitação. Nisso surgirão vários adversários, ou inimigos, que se tornarão alvos das críticas. O sociólogo acusador será, provavelmente, acusado, contra ofensivamente, de argumentos ad hominem, visto que na ofensiva crítica ele abalará prestígios estabelecidos. Dentre outras coisas, será acusado de defender valores particulares, ou seja, de não discorrer sobre fatos. Para evitar semelhantes críticas, o proponente se esforçará, novamente, em recorrer a precedentes e modelos, apelando ao prestígio de determinada tradição, a fim de desviar o foco das críticas por meio de assentimentos anteriores que se tornaram fatos estabelecidos, coisas julgadas. O argumento de fundação tem um interesse ainda mais especial quando se trata do método de prova. Para tanto, remeto às distinções dos tipos de provas dialéticas feitas por Aristóteles, a do diálogo erístico, a do diálogo crítico e a do diálogo propriamente dialético.116 Sendo animado pelo puro e simples desejo de vencer, o diálogo erístico não é direcionado para o convencimento 116.  Ibid., 1997, p.49-53.

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do adversário. Por isso, ele não é adequado para as condições de argumentação científica. Por sua vez, o diálogo crítico objetiva testar uma tese mostrando a incompatibilidade com as outras teses aceitas por quem a formula, norteando-se, então, pelo critério de coerência interna segundo o princípio da não-contradição. O diálogo crítico serve, desta forma, para apresentar os resultados de uma ciência dentro dos seus âmbitos já estabelecidos, expondo-os ao exame da univocidade e coerência formal. Ora, este método não pode ser o único no caso da fundação da sociologia, porque não havia um sistema que tivesse já um significativo grau de formalização dos princípios e conceitos. Do mais, a sociologia, assim como todas as ciências humanas, não pode chegar a tal grau de formalização, sob pena de perder a substância do próprio objeto. Resta, por fim, o raciocínio propriamente dialético, que serve para justificar alguma coisa quando não se está de acordo com os princípios primeiros de determinada ciência. Ele é utilizado para descobrir ou aprovar os âmbitos de uma ciência em gestação a partir do exame das diversas formações possíveis. Ele assume a forma de um diálogo, em que haverá perguntas e respostas, objeções e réplicas. Uma vez que eram os próprios princípios da sociologia que estavam em jogo, as condições de justificação tornaram necessário o uso do método dialético. Embora o sociólogo tenha feito uso de argumentos analíticos próprios ao método crítico, apresentando a presença de incompatibilidades e contradições nas teorias alheias e a ausência na sua própria, o método dialético foi um recurso indispensável, juntamente com o raciocínio analógico, para o estabelecimento dos princípios primeiros da ciência sociológica. Esses são os meios adequados para a lógica da invenção científica. Et Propter Vitam Vivendi Perdere Causas: As Razões da Vida e a Política da Sociologia A política da sociologia não é tomada aqui, então, como uma imposição unilateral, explícita ou camuflada, de quaisquer valores particulares, mas sim como uma argumentação específica que versa apre-

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ciativamente sobre a estrutura do real tendo por fim o consentimento do “auditório universal”.117 Neste sentido, a justificação não é tomada apenas no seu aspecto ocasional, que seria condicionado pela natureza do orador, pela particularidade de seu auditório e pelos termos do acordo, mas é entendida também como uma visão de mundo construída e consolidada por determinada tradição sociológica. Mas isso não quer dizer que o contexto sócio-político não seja um elemento essencial da análise; muito pelo contrário, pois ele constitui o seu ponto de partida. Os termos históricos do debate em que a sociologia nascente se insere são condição do seu próprio surgimento. Ele será tratado como versando sobre o problema da legitimidade das regras intelectuais e morais em um mundo crescentemente individualista onde as antigas formas de autoridade perderam o seu valor. Neste mundo, as diversas correntes de pensamento, em debates nem sempre amistosos ocorridos na arena política francesa, reivindicavam para si uma visão normativa válida para uma determinada visão de interesse público. Seus argumentos mobilizavam determinados valores, fatos, imagens, símbolos e modelos a serem seguidos, formatando certas concepções do que é e deve ser o homem, o mundo e a sociedade. Havia neste debate o que proponho chamar de processo do individualismo. Esta querela estava fundada em um problema que a enquadrava, que era o da relação entre a razão e a vida. Eram as próprias ideias de razão e de vida que estavam em debate e, portanto, não havia definições prévias a partir das quais bastaria escolher. Ao contrário, as oposições entre “racionalistas” e “irracionalistas”, ou “intelectualistas” e “anti-intelectualistas”, ou “individualistas” e “tradicionalistas”, são apenas alguns exemplos de tentativas de definição de termos e de convencimento do interlocutor para uma tomada de decisão. Qual será o papel da sociologia neste debate? Podemos adiantar, a esse respeito, que Durkheim se colocará, em nome da sociologia, como um defensor do réu, o “individualismo”, mas sob a condição de provar a sua capacidade de (re)socialização e de investir a sociologia do papel 117.  Aqui não é o espaço para discorrer sobre o conceito de auditório universal. Para tanto, cf. PERELMAN, Ch.; OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da Argumentação, 2005, §7.

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de “terapeuta do social”. Isso será feito tendo por ponto de articulação sistemático o problema do fato e do valor da vida. Neste sentido, a citação do pensador latino da Antiguidade Juvenal, realizada em “O individualismo e os intelectuais” – et propter vitam vivendi perdere causas118 –, pode ser retirada do contexto do caso Dreyfus e tomada como síntese do seu questionamento: como defender a vida sem perder a razão de viver? A sociologia nascerá como defensora da preservação da vida individual e social e de seu sentido, propondo-se a ser uma “ciência da vida”, ao passo que os seus adversários serão vistos, por ela, como pondo em risco a preservação da vida e, mesmo, como sendo expressões sintomáticas do esvaziamento do seu sentido. O debate em torno da legitimidade da sociologia versa, fundamentalmente, sobre os problemas da legitimidade das regras e critérios intelectuais e morais da vida social. E isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, o sociólogo realizará uma crítica sistemática às posições teóricas e práticas de seus adversários sobre os valores em dissídio, mobilizando argumentos sobre o que podemos chamar de “regras da vida sociológica”. O contexto sócio-político pôs questões sobre a legitimidade da ordem, o que o conduzirá a elaborar argumentos, com pretensão científica, sobre a origem, a lógica e a dinâmica das regras legítimas da vida social. Ele recorrerá, para isso, a uma ontologia do social e a uma antropologia a ela correspondente. Em segundo lugar, ele reivindicará o direito de estabelecer as regras do método sociológico, que lidam com o problema da verdade da sociologia e estabelecem uma divisão entre verdade e falsidade a partir de critérios de verificação: observação, escolha dos fatos, apresentação, definição, classificação, argumentação, administração de provas, explicação e passagem do ser ao dever ser. A análise da retórica durkheimiana se estruturará em alguns momentos. O ponto de partida é o contexto sócio-histórico da fundação da sociologia, com seus interlocutores, o conflito de valores e o compromisso político-moral do autor. Utilizo a sua intervenção no caso 118.  Refiro-me ao texto disposto abaixo na primeira seção deste capítulo. Nele Durkheim remete a um trecho das Sátiras de Juvenal: “A maior das vergonhas é preferir a vida à honra. E, para viver a vida, renunciar à sua causa” [Summum crede nefas animam præferre pudori, Et propter vitam vivendi perdere causas]” ( JUVENAL, Satires. VIII, p. 106).

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Dreyfus como um meio de apresentação de suas tomadas de posição em relação ao individualismo moderno no contexto do que chamo de processo do individualismo. Em seguida, realizo uma análise do argumento ontológico, apresentando-o por meio dos raciocínios dialéticos e de analogias de Durkheim que tornam a noção de vida central tanto factual quanto valorativamente. Apresentarei os argumentos sobre a estrutura do real, que são fundados em raciocínios dialéticos sobre a natureza do laço entre o social e o psíquico e por meio de analogias com a vida e com o psiquismo. Os argumentos têm a finalidade de, por um lado, por meio de um procedimento de naturalização, eliminar o caráter arbitrário da escolha dos valores e, por outro, a de construir a inteligibilidade do novo objeto, estabelecendo, ao mesmo tempo, as formas de ligação do real (causalidade, forma e função) e as regras de verificação e validação do conhecimento. Com estes argumentos, a política da sociologia se fundará, supostamente, nas próprias leis da natureza em um processo de naturalização dos valores, sobretudo o da solidariedade. Da ontologia seguimos, então, para o que chamo de antropologia do humano sentimental. Ela dará inteligibilidade para a concepção durkheimiana do social, pois tornará menos misteriosa a explicação dinamogênica, baseada em um conceito de sociedade enquanto associação de forças morais emergentes, ao fundá-la em uma concepção de natureza humana que a torna possível. Concluímos vendo como a teoria durkheimiana do simbolismo e da formação simbólica do social nasce de tal concepção vitalista do social e afetiva do humano, no que refletimos, por fim, tanto sobre seus limites, quanto também sobre suas consequências para a concepção de político a que se propôs o fundador da sociologia francesa. 1. O Processo do Individualismo e a Política da Sociologia A sociologia de Durkheim deve ser situada dentro do contexto da Terceira República francesa (1870-1940).119 Tendo nascido em 1858 119.  A IIIa República nasceu da derrota da guerra franco-alemã (1870) e do fracasso da Comuna de Paris (1871). Após um momento de indecisão constitucional entre monarquia e república e uma tentativa de restauração monárquica fracassada, ela ganhou leis

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e iniciado sua vida adulta em 1882, a reflexão, o amadurecimento e a produção intelectual do sociólogo se deu ao longo da Belle Époque da IIIa República (1879-1914). Ele vivenciou as duas grandes crises logo no início de sua consolidação − o boulangismo (18871889) e o caso Dreyfus (1894-1906) – e, sem dúvidas, extraiu de tais experiências reflexões intelectuais.120 Como diz Seidman, a sua sociologia teve origem e deve ser compreendida a partir da percepção que Durkheim teve do significado social e cultural do advento da República e da crise do liberalismo a ele associado (SEIDMAN, op. cit., p.158). O próprio autor realizará seus diagnósticos e proposições de soluções, seja indiretamente, por meio de argumentações tidas como científicas, ou, mais raramente, de forma direta na esfera pública, como no caso Dreyfus. Importanos perceber então, antes de tudo, quais são os problemas e desafios da experiência republicana de virada do século e como eles repercutiram no pensamento durkheimiano. 1.1. A Terceira República e o Desafio das Novas Formas de Representação A história francesa do século XIX foi marcada, como se sabe, pela ruptura sucessiva de regimes políticos (foram sete ao todo) e pela profunda divisão social, tendo conquistado apenas na IIIa República um regime de significativa estabilidade e durabilidade. Fundada em um regime republicano de tipo parlamentarista bicameral, ela foi constitucionais em 1875, iniciando-se um grande período republicano a partir de 1879 sob o governo de Jules Ferry (1879-1885). Logo no seu início ela foi abalada por duas grandes crises: a do boulangismo antiparlamentarista (1887-1889) e a do Affaire Dreyfus (1894-1906). A partir de então chegou ao que podemos chamar de uma “democracia de equilíbrio”, que teve rara vida longa quando se trata de história da França, entrando em decadência a partir da crise de 1929 e caindo com a ocupação nazista e a instauração do regime de Vichy em 1940. 120.  Para a biografia e a contextualização histórica de Durkheim, são indicadas principalmente as duas biografias: LUKES, Steven (1985); FOURNIER, Marcel (2007). Além disso, temos ótimos capítulos dos seguintes intérpretes: SEIDMAN, Steven (1983, cap.VI e VII); JONES, Robert Alun (1999, cap.1); LaCAPRA, Dominick (1985, cap.2); JONES, Susan Stedman (2001, cap.3).

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construída, em um processo conflituoso e dinâmico, tendo por resultados a universalização do sufrágio eleitoral (masculino), a laicização do Estado, a formação de uma escola pública universal, gratuita e laica, a liberalização da imprensa, a aquisição dos direitos de associação e sindicalização, a extensão dos direitos sociais, a industrialização da economia e o expansionismo colonial.121 Para compreender o contexto de surgimento da sociologia durkheimiana, eu assumo aqui a tese, desenvolvida brilhantemente na trilogia de história da democracia na França de Pierre Rosanvallon, de que a grande questão do período, no tocante à democracia, é aquela das formas possíveis de representação política da soberania do povo e de representação do social, questão que se tornou aguda com o advento do sufrágio universal. Encontramos, aí, a articulação entre duas problemáticas que comumente não são pensadas em conjunto: de um lado, a questão da representação eleitoral nascida com a instauração do sufrágio universal como meio de expressão da vontade coletiva; e, de outro, o desafio de representação do social – da identidade e vontade da sociedade – em um momento em que, com a progressiva saída das formas religiosas de estruturação da sociedade, assistimos ao surgimento de uma sociedade de indivíduos. Enquanto instrumento da igualdade política, o sufrágio universal realiza uma efetiva mutação ontológica do regime político e da forma social. Ele não é uma mera técnica de formação da vontade de maioria, mas sim uma forma de representação que, segundo Rosanvallon, é uma pedra angular da modernidade política. Ao consagrar uma estruturação simbólica fundada no ideal de uma sociedade dos iguais, ele se torna uma dupla matriz da democracia, que é entendida, então, como regime político de soberania do povo e como religião consagradora da igualdade dos cidadãos (ROSANVALLON, 2001 [1992], p. 12). Com ele, nós temos um duplo movimento na gênese da sociedade moderna: de um lado, o de secularização, com rompimento da antiga estruturação re121.  Para a história francesa e, especialmente, da IIIa República, apoio-me aqui em: NORD, Philip (1997, 2011); e, especialmente na trilogia de Rosanvallon (2001 [1992], 2002 [1998], 2003 [2000]). Sobre o nascimento e o papel da elite dos intelectuais no período republicano, ver: CHARLE, Christophe (2015 [1990]).

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ligiosa e o advento de uma autoinstituição do social e do político; de outro, o de subjetivação, com o advento do indivíduo como categoria organizadora do social (ibid., p.42-3). Tal subjetivação decorre da nova representação do social oriunda do sufrágio, a partir do qual a sociedade passa a ser representada de modo atomístico, abstrato e, por isso, artificial. Ele dá origem assim a um individualismo radical, pois anula, por princípio, as desigualdades de saber e poder, abrindo um horizonte de equivalência ao mesmo tempo imaterial e radical entre os homens. Eis então que surge um grave problema na própria consciência dos atores: o da possível atomização do social decorrente de um crescente individualismo cognitivo, moral e político. É por essa razão que o sufrágio possui uma centralidade filosófica normalmente despercebida pelos historiadores e sociólogos, pois ele articula todas as interrogações sobre o sentido e as formas da democracia moderna: as relações entre direitos civis e políticos, entre legitimidade e poder, entre representação e participação, entre igualdade e capacidade, entre pertencimento e soberania, entre racionalidade e subjetividade e entre liberalismo e democracia (ibid., p.12; 17). Dentre as várias tensões originadas de tal regime de representação, a principal é aquela entre o princípio procedimental-eleitoral, o princípio político e o princípio sociológico. De um lado, temos o princípio procedimental-eleitoral de estabelecimento da representação pela delegação de mandato via eleições; de outro lado, temos o princípio político de que as instituições devem expressar a vontade geral de um “povo”; e, enfim, entre ambos, temos o princípio sociológico de que este “povo” a ser representado deve ser a “sociedade real”, que, no modelo de Estado-nacional, se identifica com a “nação”. Ora, existe um grande hiato e uma incontornável contradição entre os três princípios. Isso porque a legitimação de um poder pelas eleições, realizada de forma aritmética pelo contagem do número de votos de indivíduos em equivalência absoluta está em conflito com a pressuposição de uma vontade geral a ser representada, que, por sua vez, está em incompatibilidade com a existência de uma sociedade real muito mais complexa, diversa e inabarcável do que o princípio de legitimação pressupõe. Com isso, existe uma tensão interna às

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democracias entre as formas de representação: a representaçãomandato e a representação-figuração – uma figuração que deve ser ao mesmo tempo política e social. A representação-mandato implica que o poder do povo somente pode ser exercido de modo mediatizado e instrumentalizado pelos procedimentos do governo representativo que estabelecem uma maioria legitimadora. A representação-figuração exige, doutro lado, que o sujeito da democracia, “o povo” ou “a nação”, seja representado em sua vontade e identidade figurando-se simbolicamente nas instituições e atores políticos reais. Neste sentido, temos que a sociedade democrática tem uma contradição imanente entre, de um lado, a existência de uma sociedade sem corpo a ser operada pelo atomismo eleitoral (os direitos políticos) e jurídico (os direitos civis), e, de outro, a exigência de um princípio político de instituição social: o da existência de sujeito soberano (o corpo político), identificando-se de alguma forma à sociedade real e sendo representado pelos mandatos representativos. Ora, a própria ficção jurídica de uma vontade geral que seja expressa aritmeticamente pela regra da maioria não apenas retira a substância do povo, como também dificilmente encontra um respaldo sociológico, pois o individualismo atomista da cidadania civil e política impõe uma abstração em relação ao social-histórico e, com isso, põe em crise a própria visibilidade social do povo “soberano”. Disso resulta que “o princípio político consagra a potência de um sujeito coletivo [procedimentalmente representável] cujo princípio sociológico tende a dissolver a consistência e a reduzir a visibilidade” (ROSANVALLON, 2002 [1998], p.15-6). Afinal, como “representar” uma sociedade de indivíduos? Se o cidadão é o indivíduo abstrato, apreendido fora de todas as suas determinações, existirá ainda uma representação do povo? Como definir, expressar, reconhecer e exercer a vontade geral? Portanto, a contradição entre a necessidade de ficção jurídica e a necessidade de identificação sociológica torna a figuração do corpo sensível do povo incerta e problemática. Ele não tem mais forma e perde toda densidade corporal ao se tornar, positivamente, um número, isto é, uma força composta de individualidades puramente

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equivalentes e iguais sob o império da lei. Já que é sempre possível dissociar os princípios procedimental-eleitoral, político e social, o sufrágio promove uma promessa de igualdade ao mesmo tempo em que um medo diante da dissolução do social (ibid., p.19). Ora, este é o campo de problemas no qual os atores estão situados na época em que Durkheim desenvolve seu pensamento e o projeto de uma sociologia como sendo capaz de responder a tais exigências. No final do século XIX e início do XX, o sufrágio universal masculino já é considerado, por quase todos, como uma instituição irreversível com a qual todas as forças políticas, inclusive as mais reacionárias, tinham que lidar. Por causa disso, torna-se preciso, para os intelectuais: responder a urgentes questões [nascidas após a Revolução Francesa e retornadas com força ao final do século XIX]: como gerir as massas? Como canalizar as suas paixões e seus interesses? Como evitar que a potência do povo se degrade em brutalidade da multidão? As inquietudes do início do século XIX sobre o advento de uma sociedade de indivíduos são brutalmente reavivadas [no final do XIX e início do XX] e acentuadas com a ascensão em potência do povo-eleitor. Buscam-se os princípios de ordem compensadores que permitam ao mesmo tempo conjurar a ameaça conjunta do número e da atomização social. É neste contexto, sabe-se, que nasce a sociologia. Durkheim, Pareto, Tarde, Le Bon respondem todos à mesma questão (ROSANVALLON, 2001 [1992], 497, grifos meus).

Diante deste processo de “democratização fundamental” – para utilizarmos a sintética e certeira expressão de Karl Mannheim122 –, quase todos os países lidaram com as mesmas questões e exploraram simultaneamente semelhantes caminhos. Contudo, a experiência francesa tinha uma especificidade muito particular: a saber, o peso 122.  Ver o ensaio brilhante e esquecido sobre a democratização da cultura (na verdade, do Geist): MANNHEIM, Karl. A democratização da cultura (1933) [Demokratisierung des Geistes]; in: MANNHEIM, K. Sociologia da cultura. Rio de Janeiro: Perspectiva, sem data, p.142-208.

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e a força da herança da Revolução francesa, com seu universalismo abstrato dos direitos do homem, que fundavam, “em última instância, as representações dominantes do político e do social” (ROSANVALLON, P., ibid., p.498). Neste contexto, a sociologia vai propor uma nova abordagem da representação do social que permitisse sair da “camisa de força” da abstração democrática: “De Fouillée a Durkheim, toda uma geração vai se esforçar para reformular sobre bases renovadas o programa comtiano de uma política positiva. Ao risco universalmente sentido de uma dissolução social, o sociólogo opõe as realidades subjacentes de formas orgânicas que se trata de fortificar” (2002 [1998], p.144). É um momento marcado, paradoxalmente, pelo duplo movimento de enraizamento do liberalismo e de sua crise na democracia francesa. Podemos dizer, de forma geral, que o principal problema, assumido pela sociologia durkheimiana, foi de reconceber a liberdade individual própria da cultura liberal, propiciada pelo individualismo radical de uma sociedade dos iguais decorrente do sufrágio universal, mas tornando-a compatível com novas formas de solidariedade social e um novo regime de “ser-em-conjunto” (êtreensemble, para utilizarmos a terminologia de Marcel Gauchet). Mas antes de entender como isso é feito, é importante se perceber o quanto a tradição de liberalismo francês estava em crise, vendo-se atacada por todas as demais posições políticas. O cenário intelectual na França era composto, grosso modo, por quatro grandes linhas de pensamento: além do liberalismo, havia o conservadorismo (tradicional ou contrarrevolucionário), os democratas-radicais (jacobinistas, radicais, socialistas reformistas ou revolucionários) e tradição republicana (de direita e de esquerda). O liberalismo francês pautou-se por princípios tomados do liberalismo anglo-saxão de Locke e Newton, tendo como principais representantes de meados do século XIX Benjamin Constant (1767-1830), Pierre Paul Royer-Collard (17631845), Jean-Baptiste Say (1767-1832), Frédéric Bastiat (1801-1850) e François Guizot (1787-1874). Segundo Seidman (op.cit. p.152), a principal característica do liberalismo francês, antes da Terceira República, era sua incapacidade de realizar uma duradoura hegemonia sociocultural e política, o que fez as instituições políticas oscila-

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rem ao longo do século entre o radicalismo democrático (jacobinismo, movimento de 1848, comuna de 1871) e a aliança do liberalismo com regimes autoritários (primeiro Império, a Monarquia de Julho, os Bourbons, orleanistas e bonapartistas). Na passagem do século XIX ao XX, tal liberalismo era representado pelos discípulos franceses do filósofo britânico Herbert Spencer (1820-1903), sobretudo os economistas políticos e certas correntes de darwinismo social. Tal versão spenceriana do liberalismo era, ao mesmo tempo, conservadora e utilitarista. Desta forma, estando o liberalismo atrelado a ideais muito afastados da realidade da sua sociedade, ele tornou-se um alvo fácil de crítica tanto por parte dos conservadores quanto dos socialistas (ibid., p.152). Por um lado, os conservadores se opunham a quase todos os ideais liberais – individualismo, democracia, industrialismo, livre iniciativa, educação secular, racionalismo científico – ao defenderem valores simetricamente opostos – comunidade, autoritarismo, militarismo, tradição agrária, autoridade e hierarquia social, ensino clerical, e tradicionalismo católico. Por outro lado, os socialistas franceses, salvo alguns movimentos mais reformistas das cooperativas operárias, mantinham-se com reservas quanto às instituições liberais (com o rompimento em 1904 da aliança entre radicais e socialistas, o socialismo tornou-se estreitamente vinculado às ideologias revolucionárias). Em ambos os casos, o liberalismo foi acusado pelo seu individualismo econômico, pelo não intervencionismo estatal e pelo utilitarismo moral. A crítica ao liberalismo não se reduzia apenas à esfera da política, pois tratava de todos os setores da vida social: eram discutidas não apenas a ordem econômica e a organização do Estado, mas também a concepção de indivíduo, o papel da família, a legitimidade das regras e normas morais, jurídicas e religiosas, o papel da ciência, etc. Nos argumentos das partes em confronto eram mobilizadas noções sobre a relação entre indivíduo e sociedade, que eram, a bem dizer, verdadeiras concepções de mundo. O projeto republicano de constituição de uma ordem democrático-liberal era assim ameaçado, segundo Seidman, pelo fato de que “a República carecia de uma doutrina que pudesse unificar os

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seus defensores liberais e democratas e legitimar o ideal republicano” (ibid., p.156). É neste contexto de “crise do liberalismo” (ibid., p.154) que se colocam as distintas propostas sociológicas, incluindo, obviamente, a de Durkheim. Ele se propôs a articular uma doutrina que poderia fornecer “a base social e ideológica de unificação para a Terceira República francesa” (ibid., p.156). Para tanto, ele se afastará do liberalismo utilitarista, o que o fez defender teses “organicistas”, muitas vezes associadas ao pensamento conservador. A respeito deste fato, contudo, vale lembrar, com Rosanvallon, que raras eram as posições políticas à época que não assumiam algum tipo de organicismo: As preocupações do sociólogo convergem sobre este ponto com as questões postas sobre o terreno diretamente político. Esta visão do social termina quase por se impor como uma nova ideologia dominante. A tal ponto que as raras vozes que opõem a perspectiva de um individualismo positivo a esse credo organicista têm dificuldades de se fazerem ouvir. A hora de uma nova abordagem da representação, fundada sobre o reconhecimento e a expressão dos grupos estruturando a sociedade, soou assim de todos os lados. As rigidezes da cultura política revolucionária foram pela primeira vez, postas de lado (ROSANVALLON, Pierre. 2002 [1998], p.146, grifos meus).123

Por causa deste “organicismo” e da crítica à forma utilitarista do liberalismo, é muito comum, ainda hoje, identificar a sociologia durkheimiana ao conservadorismo e ao anti-individualismo, chegando-se mesmo a colocá-la na linhagem do pensamento contrarrevolucionário e, mesmo, como protofascista.124 Contudo, tal tradição de interpretação bastante equivocada vem sendo revista 123.  O “organicismo” era comum tanto à direita quanto à esquerda, mesmo nas suas formas mais extremas, como, por exemplo, à direita, nos meios do catolicismo tradicional, e, à esquerda, no sindicalismo revolucionário, no neocorporativismo e no anarquismo (ROSANVALLON, 2001 [1992], p.498). 124.  Um dos principais a contribuir para difundir o mito foi Robert Nisbet, no seu, apesar disso, muito bom: NISBET, R.. The Sociological Tradition (1993, 2ª edição). Cf. tb. LÖWY, M (1987, p.30); MITCHELL, M. M. (1931).

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nas últimas décadas125, de tal modo que, por trás da roupagem conservadora, revelou-se um Durkheim não apenas progressista como também simpático às tradições socialista e liberal.126 Podemos dizer, a respeito disso, que ele se situa, mais propriamente, no interior da tradição democrático-republicana francesa, que tenta uma fusão entre ideais liberais e revolucionários (SEIDMAN, op.cit., p.197-9). Essa tradição de pensamento político se divide, segundo Seidman (ibid.), em duas linhas. De um lado, a democracia liberal, que tem origem em Condorcet (1743-1794), Alexis de Tocqueville (18051859), Saint-Simon (1760-1825), Alphonse de Lamartine (17901869) e Jules Michelet (1798-1874), seguida, no fim de século, por três intelectuais muito próximos a Durkheim, Charles Renouvier (18151903), Alfred Fouillée (1838-1912) e o promotor do solidarismo Leon Bourgeois (1851-1925). De outro lado, temos a socialdemocrata, que é representada por Louis Blanc (1811-1882), Benoît Malon (1841-1893), Alexandre Millerand (1859-1943) e Jean Jaurès (18591914) (que, como se sabe, era amigo de Durkheim desde os tempos de Liceu). Considero, a respeito disso, correta a tese, defendida por Seidman, de que Durkheim estaria bem próximo à vertente democrataliberal da tradição republicana francesa (ou seja, em forte interlocução com Fouillée, Renouvier e Bourgeois).127 Ela fazia um esforço para fundir os temas liberais – tais como individualismo, pluralismo, descentralização política e progresso industrial –, com os temas revolucionários – tais como igualdade social, solidariedade, controle comunitário descentralizado e socialização da propriedade –, tendo por traço característico a ênfase na justiça social enquanto valor supremo e o seu centro ideológico. O que faz com que a questão da liberdade se 125.  Além do biógrafo S. Lukes (1973), Giddens é um dos primeiros na sociologia a contribuir para o debate que descontrói o mito de Durkheim como conservador e anti-individualista: GIDDENS, A. (1998). 126.  As principais interpretações da visão política de Durkheim são: RICHTER, Melvin (1964); FILLOUX, Jean-Claude (1977); LACROIX, Bernard (1981); GANE, M (2002). No Brasil, ver principalmente: OLIVEIRA, Márcio (2011). 127.  Ainda está por ser feita, a meu ver, uma reconstrução da influência das duas tradições sobre o pensamento de Durkheim (e de Marcel Mauss) e sobre toda a tradição sociológica francesa. Quem chega mais próximo disso é Fournier (2007).

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elabore em função do valor da justiça, defendendo-se a igualização das condições exteriores da vida social. Ela pode ser considerada como uma espécie de liberalismo ao mesmo tempo moral, social e idealista, antes que econômico e contrário ao utilitarismo. Ele é visto, segundo Seidman (ibid.), como uma base ideológica possível para uma aliança entre a burguesia e os socialistas, integrando os três princípios da cultura francesa: a ideia de comunidade moral, o individualismo e a justiça social. Este foi o projeto do chamado solidarismo, assim como da sociologia.128 Filiado a esta tradição, o projeto durkheimiano será, assim, de unificação das forças sociais e dos princípios intelectuais do liberalismo e da revolução. No conflito de visões de mundo, ele mobilizará uma argumentação sistemática sobre as relações entre indivíduo e sociedade e proporá a sociologia como agente capaz de resolver alguns dos conflitos iminentes de sua época, tendo em vista construir uma base ideológica para a consolidação de uma concepção de qual deveria ser a ordem democrático-liberal da IIIa República. Ele realizou, para tanto, uma crítica de todas as linhas de pensamento político, buscando uma espécie de solução de compromisso entre as forças sociais e explorando, criticamente, a unilateralidade dos pontos de vista de seus adversários e reformulando-os no seu sistema teórico. Para que se tenha clara a posição de Durkheim, é válido citar este longo trecho de Seidman: 128.  O excelente trabalho de Marie-Claude Blais sobre a história da ideia de solidariedade é uma importante contribuição para a compreensão da proposta solidarista e de sua proximidade à concepção durkheimiana de solidariedade: Marie-Claude Blais fez, felizmente, uma genealogia do problema da solidariedade no pensamento francês, mostrando com ele tem seu nascimento no século XIX e se vincula estreitamente à sociologia: “Atrás do irradiamento atual da noção de solidariedade se dissimula a herança de dois séculos de reflexão sobre as relações entre o individual e social. Toda a história do conceito contemporâneo de ‘sociedade’ se encontra, de algum modo, implicado nela, da mesma forma que a do seu correlato, o projeto de uma ‘ciência social’ [...] No fim do século XIX, o contexto das lutas sociais e políticas no seio do quadro republicano confere à ideia o que se tornará seu emprego definitivo. A solidariedade é decididamente a única noção capaz de pôr de acordo estas duas exigências às quais deve satisfazer uma República digna deste nome: a autonomia das consciências e uma obrigação social de uns em relação aos outros. É ao ovo de Colombo [...]. A solidariedade desenha uma terceira via entre o individualismo liberal e o socialismo coletivista, a via de uma democracia não menos social que liberal” (BLAIS, Marie-Claude, 2007, p.12-3).

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É claro, a crise era social, política e cultural - e não intelectual. Entretanto, Durkheim reconheceu que as doutrinas e teorias intelectuais projetaram ideais de sociedade e, enquanto fontes de legitimação, elas têm efeitos sobre a vida política e cultural da sociedade. Isso era verdade [...] particularmente para as doutrinas dos economistas e socialistas, assim como para as sociologias de Comte e Spencer, cujas teorias formais eram associadas respectivamente às pressuposições ideológicas conservadora e liberal lockeana. Durkheim acreditou que estas distintas doutrinas e teorias intelectuais incorporaram pressuposições e ideais sociais que perpetuaram a polarização social, política e cultural da Terceira República Era crucial desacreditar a função de legitimação de suas ideias pela crítica e reconstrução da teoria social. Em outras palavras, os debates analíticos de Durkheim com Comte, Spencer, os socialistas e os economistas devem ser lidos, em parte, como conflitos de visão de mundo e política. Em seu esforço para salvaguardar a República, Durkheim repudiou todas as três ortodoxias ideológicas que sustentavam estas teorias: o conservadorismo, o liberalismo e a revolução. Ele buscou uma doutrina que unificaria as forças sociais e os princípios intelectuais do liberalismo e da revolução (SEIDMAN, op.cit., p.158, grifos meus).

Para tanto, ele fez um duplo movimento: uma crítica da concepção utilitária do liberalismo hegemônico, ao mesmo tempo em que uma defesa do liberalismo contra o iliberalismo dos conservadores e revolucionários. É assim que devemos compreender sua relação com a tradição revolucionária francesa. Ele não se opôs, como se pensou durante algum tempo associando-o à tradição contrarrevolucionária, aos ideais revolucionários franceses; ele se contrapôs, sim, ao “individualismo intransigente” associado a ela. Para Durkheim, como veremos à frente, tal forma de individualismo abstrato e atomista seria uma “fé comum” de concepções tão diferentes quanto a do utilitarismo da economia política, a da filosofia rousseauniana da vontade geral e do moralismo do neokantismo e do espiritualismo filosófico.129 Desde que os princípios revolucionários sejam bem compreen129. 

[1890a] Os Princípios de 1789 e a sociologia, p.196.

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didos em sua associação com o liberalismo e a ideologia republicana, ocorreria que a tarefa da República seria de realizar a revolução, cabendo à sociologia buscar “um liberalismo reconstruído que cumpriria a herança revolucionária francesa” (ibid., p.156), compreendendo-se por revolução “uma transformação moral instituindo uma religião civil centrada sobre os ‘Princípios de 1789’” (ibid., p.160). “Liberdade, igualdade, solidariedade e sociologia”, eis um provocativo lema como raiz do pensamento durkheimiano. É, portanto, pela articulação entre liberalismo e revolução, dentro de uma ordem republicana, que devemos compreender o “organicismo” durkheimiano. Neste sentido, ele está nas antípodas dos organicismos que moviam o pensamento contrarrevolucionário, contribuindo de forma especial, com isso, para o debate em torno das novas formas de representação do social e do político. Como diz, de forma certeira, Rosanvallon: Consolidação da organicidade social e reconstrução da democracia participam, portanto, do mesmo movimento a seus olhos [de Durkheim] [...] Ele propõe uma nova abordagem da representação, a fim de que a sociedade, em toda sua diversidade e sua complexidade, possa fazer escutar sua voz no campo político (ROSANVALLON, 2002 [1998], p.145, grifo meu).

Para que afastemos de vez o erro de perspectiva que atribua ao “organicismo” do argumento durkheimiano um “anti-individualismo”, e, mesmo, um “conservadorismo contrarrevolucionário e protofascista”, é importante, portanto, que analisemos quais foram os seus argumentos durante o caso Dreyfus em favor do individualismo e dos direitos do homem. Com isso, poderemos assinalar a distância que o separa do conservadorismo, ao mesmo tempo em que reconheceremos alguns elementos organicistas que dão à sua sociologia uma verdadeira “ontologia vitalista”.

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1.2. Perdere Causas? Completar, Alargar e Organizar o Individualismo em Perigo Nós não podemos renegar hoje [os princípios do individualismo] sem renegar a nós mesmos, sem nos diminuir aos olhos do mundo, sem cometer um verdadeiro suicídio moral. Já se perguntou se conviria talvez consentir a um eclipse passageiro destes princípios, a fim de não perturbar o funcionamento da administração pública, que todo mundo, aliás, reconhece como indispensável. Nós não sabemos se a antinomia se põe realmente sob esta forma aguda; mas, em todo caso, se uma escolha é realmente necessária entre estes dois males, seria assumir o pior caso sacrifiquemos o que foi até agora a nossa histórica razão de ser. Um órgão da vida pública, tão importante quanto o seja, é apenas um instrumento, um meio de um fim. Em que serve conservar com tanto cuidado o meio, se nós nos desfazemos do fim? E qual triste cálculo seria renunciar, para viver, a tudo o que faz o preço e a dignidade da vida: Et propter vitam vivendi perdere causas!.130

O caso Dreyfus polarizou, como se sabe, os representantes “antidreyfusards” de um conservadorismo francês, com forte vinculação a ideias monarquistas e à tradição católica, e um movimento “dreyfusards” de autointitulados intelectuais (cientistas, literatos, etc.), que se associavam, grosso modo, aos pilares do mundo moderno (ciência, direitos do homem e democracia). De forma muito sucinta, podemos resumir o Caso e a participação de Durkheim da seguinte forma.131 Alfred Dreyfus, politécnico e 130.  [1898c] O Individualismo e os Intelectuais, p.246. 131.  Sobre a história do affaire Dreyfus, ver a excelente história política recentemente publicada: ORIOL, Philippe. L’Histoire de l’Affaire Dreyfus: De 1894 à nos jours. Paris: Les Belles Lettres, 2014. Sobre a participação de Durkheim no Caso Dreyfus, ver FOURNIER, op.cit., cap.11, p.365-390  ; LUKES, op.cit. cap.17, p.320-360, principalmente p.323-354, bem como os artigos que compõem o dossiê crítico da edição bilíngue organizada por Marcia Consolim, Márcio de Oliveira e Raquel Weiss: DURKHEIM, E.; CONSOLIM, Marcia; OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel. O Individualismo e os Intelectuais (artigos de Louis Pinto, Marcia Consolim, Susan Stedman Jones, Raquel Weiss e William Watts Miller). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.

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judeu alsaciano, foi culpado pelo conselho de guerra por alta traição e condenado em 22 de dezembro de 1894, sendo deportado para a ilha do Diabo, na Guiana francesa, em fevereiro de 1895. O affaire estourou com a publicação de J’accuse de Émile Zola em 13 de janeiro de 1898 na revista L’Aurore. Com ela inflamou-se uma opinião pública em que, por várias cidades, manifestou-se pela “morte aos judeus, morte a Zola, morte a Dreyfus”. Zola será, em poucos meses, acusado e condenado à pena máxima pelo delito de “difamação” às forças armadas, o que o leva a se “refugiar politicamente” na Inglaterra de 18 de julho de 1898 a junho de 1899. Logo após os episódios desencadeados pelo J’accuse, é feita uma petição em favor da revisão do processo e contra a violação das suas formas jurídicas, assinada pelos autointitulados “intelectuais”, dentre eles Durkheim e alguns de seu círculo próximo (Lucien Herr, Céléstin Bouglé, Paul Lapie, François Simiand, Henri Hubert, Paul Fauconnet e Marcel Mauss). Em 20 de fevereiro, é fundada a dreyfusard Ligue pour la defense des droits de l’homme et du citoyen, à qual Durkheim aderira avant la lettre e da qual ele se torna o primeiro secretário da seção de Bordeaux. No fim de outubro, o acusador de Dreyfus, convencido da falsidade do processo, suicida-se. É o começo da derrota dos antidreyfusards. Contudo, a antidreyfusard Ligue de la patrie française nascerá em 31 de dezembro de 1898. A Ligue de la patrie française e a Action Française, com sua revista (Revue d’Action Française), tornaram-se então dois expressivos movimentos conservadores, nos anos de 1898-1899, sob a bandeira de “Reaction d’abord!”. Tais conservadores vinham de uma linhagem formada da virada do século XVIII até meados do XIX, tendo por principais expoentes Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de Bonald (1754-1840). No final do século XIX, o conservadorismo era fortemente vinculado às forças armadas e à Igreja Católica, tendo como principais representantes intelectuais Henri Vaugeois (18641916), Maurice Pujo (1872-1955), Maurice Barrès (1862-1923) e, principalmente, Charles Maurras (1868-1952).132 Sob a influência 132.  Sobre a tradição contrarevolucionária como um todo, remeto aos livros clássicos do historiador Zeev Sternhell, em especial: STERNHELL, Zeev (2010, 2016).

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da teoria do nacionalismo integral de Maurras, a Action Française se tornará, além de antissemita e nacionalista, também monarquista. Além destes representantes, outro importante conservador não vinculado diretamente a tais movimentos, era o literato polemista Ferdinand Brunetière (1849-1906), diretor da Revue des deux mondes (uma revista de combate a serviço da direita católica). Ele respondeu ao J’accuse com um artigo intitulado Après le Procès, na Revue des Deux Mondes, em 15 de março de 1898.133 Vários intelectuais reagiram imediatamente (Émile Duclaux, Victor Basch, Frédéric Paulhan, Alphonse Darlu). Durkheim o fará igualmente, publicando em julho de 1898 o seu famoso O Individualismo e os Intelectuais pela Revue bleue.134 Dá-se início à querela que denomino de “processo do individualismo”, da qual Durkheim participará diretamente com fortes argumentos, que podem ser considerados uma aplicação de suas teses da Divisão do Trabalho Social (1893) em favor do individualismo e dos intelectuais. 1.3 Vida ou Razão? Os Intelectuais, o Individualismo e o Problema da Autoridade O processo do individualismo desencadeado no Caso Dreyfus pode ser analisado tomando como modelo de acusação os argumentos de Maurice Barrès, que atacam simultaneamente os valores do individualismo, do intelectualismo, dos direitos do homem e do liberalismo. Associando-se a uma tradição intelectual que conjuga De Maistre com Ernest Renan, Barrès vincula, significativamente, 133.  BRUNETIÈRE, “Après le procès”. Revue du Deux Mondes. LXVIIIe année, tome cinq quarante sizième, 1e mars 1898 p.428-446. Felizmente o dossiê crítico, organizado por Marcia Consolim, Márcio de Oliveira e Raquel Weiss, nos brindou com uma tradução do artigo de Brunetière: DURKHEIM, E.; CONSOLIM, Marcia; OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel. O Individualismo e os Intelectuais (edição bilíngue e crítica com dossiê com textos de Louis Pinto, Marcia Consolim, Susan Stedman Jones, Raquel Weiss, William Watts). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016, p.135-167. 134.  [1898c] O individualismo e os intelectuais. Para a versão crítica e bilíngue: DURKHEIM, E.; CONSOLIM, Marcia; OLIVEIRA, Márcio de; WEISS, Raquel. O Individualismo e os Intelectuais, op.cit., 2016.

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os “desregramentos” intelectuais e morais dos indivíduos como as causas da anomia social.135 Os intelectuais não passariam, para ele, de vaidosos (fous d’orgueil) com corrupção intelectual e moral. O indivíduo é associado às paixões, tais como “vaidade” e “rebeldia”, e o uso do intelecto é visto como um instrumento delas. O individualismo e o intelectualismo se uniriam tomando por alvo os valores mais sagrados da sociedade francesa: as crenças e tradições populares e as instituições sociais da família, da religião, das forças armadas e da pátria. No capítulo Os intelectuais e a lógica do absoluto (que é oposto ao “espírito relativo” de sua posição), Barrès (ibid., p.42-45) define “intelectual” como sendo um “indivíduo que está persuadido de que a sociedade deve se fundar sobre a lógica e desconhece que ela repousa, de fato, sobre necessidades anteriores e talvez estranhas à razão individual” (ibid., p.45). Zola padeceria, segundo ele, de uma vontade livre que é, por sua vez, um mal social. Ele vê a busca da verdade universal por todas as ordens de conhecimento como um esforço decorrente de uma vontade livre. Contra isso, ele diz que é melhor ser inteligente do que ser intelectual, porque, ao invés de querer tratar de questões que fogem à sua competência, é melhor manter uma noção nítida do papel que cada um deve preencher segundo sua predestinação e sua função. Apropriando-se de Renan136, Barrès afirma que as ideias e os raciocínios provêm da nacionalidade. A “consciência nacional” seria constituída pelo entendimento das pessoas reunidas ao longo das gerações afirmando interesses morais em comum. Só que tal consciência da nação estaria sendo contaminada pelos estrangeiros internos e externos que expandiriam os males do intelectualismo e do individualismo. Eles deveriam ser combatidos com o sentimento de amor, com espírito de pai de família e com o fortalecimento das instituições seculares da nação. Barrès defende, portanto, uma retórica permeada de alguns lugares de qualidade próprios ao pensamento conservador, que são os 135.  BARRÈS, Maurice. Scènes et doctrines du nationalisme. Paris: Libraire Félix Juven, 1902, p.208-12. 136.  RENAN, Ernest. Qu’est-ce que une nation?. Conférence faite en Sorbonne, le 11 mars 1882. Paris : Calmann Lévy, 1882.

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da valorização da unidade e da singularidade.137 Contra a razão universalista, ele defende a concretude da vida. Daí a oposição conservadora, mas não somente conservadora, entre a razão e a vida. Esse argumento nos apresenta hierarquias de valores bem definidas. As pretensões universalistas dos intelectuais se apresentam como uma ameaça ao corpo social, e isso porque eles questionariam as regras vigentes produzidas pela própria sociedade e, ao mesmo tempo, proporiam regras externas a ela, reivindicando para si uma autoridade ilegítima. Contudo, as regras legítimas seriam as que brotariam da vida, e não da lógica. A razão torna tudo plano, eliminaria as hierarquias e diferenças e, portanto, conduz a vida social à morte. As regras legítimas são as que correspondem às necessidades sociais e que estão depositadas na tradição. Elas não podem brotar do julgamento de indivíduos que se julgam legisladores e juízes soberanos do mundo social. Ao contrário disso, o indivíduo deve respeitar a autoridade e as hierarquias estabelecidas, reservando-se a cumprir as suas funções. Tais teses conservadoras expressam certa proximidade com algumas defendidas por Durkheim, principalmente nos escritos do período de conversão e fundação da sociologia, entre 1885-1893. Na Lição de Abertura do curso de ciência social, em Bordeaux (1888), por exemplo, ele nos apresenta um projeto da sociologia com argumentações assemelhadas.138 Segundo ele, a França era um país que reconhecia como único mestre a opinião, e que o espírito de coletividade havia enfraquecido nos últimos tempos. Cada indivíduo teria de seu eu um sentimento exorbitante, de tal forma que já não se apercebia mais dos limites que, de todos os lados, o cercavam. Isso faria com que os indivíduos se iludissem sobre o seu próprio poder e, assim, aspirassem à autossuficiência empenhando-se em se distinguirem ao máximo uns dos outros e de seguirem o seu próprio 137.  O que faz na esteira do pensamento pós-revolucionário de Edmund Burke (BURKE, E. Reflexões sobre a Revolução em França [1790]. Topbooks, 2015) e de Joseph de Maistre (DE MAISTRE, Joseph, Considerations sur la France. Londres, 2a edição, março de 1797). Para uma análise da argumentação contra-revolucionária, ver: MAGNELLI, A. “Figurações do Político e Políticas da Verdade no Pensamento (Pós)Revolucionário”. Cadernos do Sociofilo, v. 4, p. 200-299, 2014. 138.  [1888a] Curso de Ciência Social, p.75-102.

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movimento. O resultado seria uma tendência dispersiva contra a qual se devia reagir com todas as forças. A partir daí, ele enuncia uma regra: é necessário evitar que este mestre se torne um déspota pouco inteligente. Seria preciso, por um lado, fazer com que a sociedade retomasse a consciência de sua unidade orgânica e, por outro, que o indivíduo sentisse a existência da massa social que o envolve e o penetra, senti-la sempre presente e ativa, fazendo com que este sentimento regule sempre a sua conduta, isso porque não bastaria a inspiração intermitente ocorrida pelas circunstâncias críticas, pois o sentimento deveria ser constante e ininterrupto. Como se pode ver, ele está aqui próximo da preocupação conservadora, pois via um despotismo da opinião no individualismo com um consequente desrespeito generalizado pela autoridade. No entanto, esta preocupação o conduz a um projeto completamente diferente. Em primeiro lugar, vale ressaltar, de novo, que o acordo com ideias conservadoras não decorre de uma mera filiação; ela vem muito mais do fato de tratar de questões que atravessam sua época, especialmente a questão da necessidade de conciliar o individualismo crescente com um solidarismo, o valor da liberdade com os da solidariedade e da coletividade. Além disso, é importante se perceber que a vertente contrarrevolucionária de pensamento político tinha traços tipicamente antimodernos, rejeitando os princípios do Esclarecimento e os da Revolução francesa – mas não sem se apropriar deles, muitas vezes, para dar uma roupagem moderna a um projeto reacionário, como era feito no caso de dar verossimilhança a argumentos racistas. No tocante a isso, Seidman é mais uma vez certeiro, pois assinala o quanto Durkheim é mobilizado por um diagnóstico de preocupante movimento geral, nos extremos políticos, de “assalto à razão”: A crise do liberalismo não somente refletiu a instabilidade social e política da Terceira república. As premissas secular, racionalista e individualista do liberalismo estiveram amplamente em disputa. De todos os lados do espectro político, o racionalismo científico esteve exposto a uma crítica política e idealista. Durkheim referiu-se ao “assalto à razão” na sua leitura do pragmatismo americano de William James e

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a filosofia intuicionista de Bergson; o ressurgimento do “misticismo nascente” dos idealistas franceses; as correntes irracionalistas vinculadas ao renascimento católico de Henri Massis e Alfred de Tarde; o nacionalismo racista e antissemita de Maurras e Barrès; e o anti-intelectualismo de certas formas de sindicalismo e anarquismo que, tal como a Action Française conservadora, defenderam a violência e o terrorismo como modos legítimos de atividade política. Vinculada ao assalto à razão, Durkheim notou uma corrente subterrânea de antimodernismo [...] Péguy e os revolucionários, tradicionalistas, católicos e idealistas místicos expressaram um tipo de repúdio cruamente neorromântico sustentado por uma versão idealizada da cultura tradicional francesa, com suas raízes em uma visão de mundo cosmológica. Este antimodernismo e antirracionalismo estavam conectados a uma crítica do “individualismo e intelectualismo” (SEIDMAN, op.cit., p.157).

Portanto, se há em Durkheim uma preocupação com a ausência de autoridade e à expansão do que ele entende como “desordem moral” oriunda de um individualismo mal compreendido – reduzido à forma de um utilitarismo intransigente –, ele o faz mais proximamente aos projetos socialistas do que aos conservadores. A sua obra está muito mais próxima, neste sentido, do “solidarismo” liderado por Leon Bourgeois e tributário de Renouvier e Fouillée. Durkheim critica o individualismo mal compreendido assumindo uma posição, tipicamente iluminista, vinculada ao “projeto da razão” sob a responsabilidade dos racionalistas. Desta forma, a única maneira de evitar tal “despotismo de um indivíduo caprichoso” seria, de um lado, pelo seu esclarecimento através da ciência e, de outro lado, pela reforma social feita por homens políticos. De que forma isso se realizaria? Do ponto de vista científico, a sociologia teria por finalidade prática fazer com que as ideias relativas à autoridade social fossem restauradas, mas de forma moderna. Ela o faria por meio das seguintes provas: (a) prova da insuficiência constitutiva do indivíduo sem a sociedade: com ela, o indivíduo compreenderia o que é a sociedade, como a completa e quanto ele é insignificante quando reduzido às

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suas próprias forças; (b) prova do dever de cumprir a sua função social: com ela, ensinar-se-ia que o indivíduo não é um império no seio de outro império, mas um órgão dum organismo, mostrando o quanto há de belo em cumprir com o seu papel de órgão (mas também como, em uma sociedade injusta, surgem processos anômicos e formas ilegítimas de coerção e exigência de cumprimento de função); por fim, (c) prova do valor individual da solidariedade: com ela, o indivíduo sentiria que ele não fica diminuído por estar solidário com outrem e dependente dele, por não se pertencer completamente a si próprio, pois haveria uma satisfação individual no exercício do seu dever. Elas deveriam ser elaboradas cientificamente nas Universidades, por meio do trabalho dos intelectuais. Há de ressaltar, portanto, que existe aqui uma ênfase na limitação da liberdade da vontade a partir de elaboração de provas que afirmem a existência de uma solidariedade exigindo uma disciplina social – projeto que os conservadores e os socialistas defendiam por caminhos distintos. Mas Durkheim não adere totalmente a nenhuma das duas linhas de pensamento, pois ambas poderiam, para ele, recair em um anti-individualismo e em regimes políticos autoritários. Isso fica claro quando nos debruçamos na sua intervenção política no caso Dreyfus, com o escrito sobre O Individualismo e os Intelectuais.139 1.4 Por um Individualismo Bem Compreendido: O Projeto Sociológico de Racionalização da Autoridade e de Naturalização da Solidariedade O argumento pode ser dividido em três momentos analíticos: no primeiro, ele reafirma a importância da autoridade da razão diante das outras formas de autoridade; no segundo, ele distingue o individualismo em duas correntes opostas, deixando ao individualismo utilitarista todas as críticas, e identificando o individualismo legítimo 139.  [1898c] O individualismo e os intelectuais. Analiso aqui, muito de passagem, a “lógica argumentação” durkheimiana. Para uma análise retórica mais densa, ver MAGNELLI, André R. As razões da vida: a justificação sociológica dos valores em E. Durkheim. 2011. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011, p.77-86.

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com o individualismo moral, ao qual ele se vinculava; no terceiro, ele mostra que o individualismo não era apenas um valor, mas sim um fato histórico, que havia se decantado nas instituições, possuía uma tradição e era uma verdadeira religião constitutiva da própria unidade da nação francesa. Ora, o argumento conservador via uma incompatibilidade entre a liberdade intelectual e moral dos indivíduos e os valores da solidariedade e da comunidade: o que se ganharia em liberdade, se perderia em solidariedade. Autoridade e opinião livre seriam contraditórias e, assim, haveria de se escolher, de se decidir, entre ambos os valores. Para Durkheim, ao contrário, o individualismo e a solidariedade devem ser vistos como inteiramente vinculados, sendo cada qual a condição de existência do outro. A liberdade de pensamento do individualismo consiste no direito que cada indivíduo tem de julgar as coisas as quais ele pode legitimamente conhecer. O individualismo dos intelectuais não tem nenhuma incompatibilidade com a autoridade, desde que a autoridade seja fundada racionalmente140; e ele não é incompatível com o respeito, desde que os indivíduos sejam considerados como competentes para julgar racionalmente sobre determinado fato. Assim, num mesmo movimento argumentativo, ele assegura o direito do individualismo dizendo, por um lado, que não há uma incompatibilidade da regra com o fato, pois o individualismo não seria a anulação da regra, mas sim uma forma diferente de fundá-la; e, de outro, que não há uma incompatibilidade do fato com o valor, pois o individualismo não anularia o princípio moral do respeito. Esta é uma questão chave da argumentação durkheimiana, porque a fundação racional da autoridade se aplicaria a todos os indivíduos, intelectuais ou não. Qual será a fundação do respeito racional pelas regras? A resposta de Durkheim já estava contida, em parte, na sua Lição de Abertura de 1888. Não basta, para que haja autoridade, que os indivíduos sejam intimados a se unirem a um sentimento comum por meio do argumento de que a sociedade somente é possível a partir de sacrifícios mútuos e espírito de subordinação. 140. 

Ibid., p.242.

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Estas questões que pertencem ao julgamento comum são contrárias a toda a razão, e, consequentemente, a todo o dever. É necessário, ao contrário, demonstrar a existência da incompetência dos indivíduos em bastarem a si mesmos, justificando na espécie (dans l’espèce). Esta argumentação deverá ser capaz de convencer aos indivíduos a decidirem pelo respeito às regras sociais e morais e, muitas vezes, pelo sacrifício de seus interesses individuais. Estes argumentos se colocam no difícil limiar entre o direito individual à razão crítica e a necessidade de respeito à autoridade. Para a teoria social, o problema se apresenta como aquele da relação entre ação e ordem, que demanda a resposta à pergunta: como a ordem social é possível? A primeira resposta ao problema passa, evidentemente, pela conceituação do que se entende por individualismo. Sendo o advogado de defesa no processo, Durkheim tentará desvencilhar o réu da acusação, o que será feito mostrando que sua pessoa não realizou os atos pelos quais é acusada. Para isso, ele discorre sobre o caráter do réu, sua biografia e qualidades, esforçando-se para afastá-lo de tal modo da acusação que ele se tornará, no final, a antítese do acusado. Estabelece, para tanto, uma distinção entre dois tipos de individualismo: o individualismo utilitarista ou egoísta e o individualismo moral ou altruísta.141 Longe de se limitar a elogiar os nossos instintos, como o faz o utilitarismo, o individualismo moral estabelece um ideal moral que ultrapassa infinitamente a sua natureza. São duas formas distintas de concepção da origem da dignidade. Se ela viesse das características individuais e particulares que nos distinguem do próximo, a tendência é um egoísmo moral e a impossibilidade da solidariedade. Mas se a dignidade vem de uma origem mais elevada que é comum a todos os homens, ela adquire um caráter impessoal correspondente ao altruísmo e à coletividade. No terceiro momento do argumento, Durkheim passa a apresentar o caráter religioso do individualismo. Ele se esforça, então, em mostrar que o individualismo é religioso tanto de fato, quanto de direito. O problema não é saber se a religião é indispensável, mas sim qual deve 141. 

Ibid., 236-7.

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ser a religião das sociedades atuais. A decisão deve ser, então, entre as seguintes opções: ou a representação simbólica e metafórica pela religião dos valores sagrados do indivíduo, que seriam defendidos e efetivados por todo o aparelho exterior da igreja; ou a representação direta e racional pelos conceitos da ciência, que defenderiam e efetivariam os valores por meio das instituições seculares. Para ele, tudo leva a crer que a única religião possível é a religião da humanidade, da qual a moral individualista é a sua expressão racional. Como ele diz com força, a moral individualista adquiriu nas sociedades modernas o caráter de religião, com seus dogmas, cultos e símbolos. O seu dogma é o caráter sagrado da pessoa humana, o seu rito é o livre exame, sendo a sua regra sagrada a dignidade da pessoa humana, como pedra de toque que serve de referência para distinguir o que é o bem e o mal. Ela tem por motor a simpatia por tudo o que é humano, uma piedade por todas as dores e misérias humanas, caracterizando-se por uma sede de justiça que provoca uma ardente necessidade de combater e atenuar todo e qualquer sofrimento humano.142 Por isso, a comunhão dos espíritos deixa de ser feita por ritos e preconceitos, não havendo nada mais a amar e honrar em comum do que o próprio humano: “Eis como o homem tornou-se um Deus para o homem e por que ele não pode mais, sem mentir a si mesmo, se fazer outros deuses”.143 Portanto, invertendo os argumentos de seus adversários, o individualismo não apenas não é uma doutrina particular que seria o fermento de dissolução moral da sociedade, quanto também é um fato decantado nas instituições, um fator de solidariedade social, que é o único sistema de crenças que pode garantir a unidade moral do país. O individualismo não pode ser entendido, neste sentido, somente em uma chave negativa, a de negação da tradição e de todo e qualquer obstáculo social à vontade individual; ao contrário, Durkheim assinalará a necessidade de concebê-lo em uma chave positiva: “tratase de completar, de alargar, de organizar o individualismo, e não de o combater e restringir”.144 142.  Ibid., p.241. 143.  Ibid., p.234. 144.  Ibid., p.248.

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Enfim, se Durkheim considera de fato que há crise de final de século, ela não seria decorrente da liberdade dos modernos. A questão é como conciliar tal liberdade com a solidariedade social por meio de uma autoridade racionalmente legitimada. Isso implica o problema da legitimidade da autoridade criadora e aplicadora das regras sociais. Qual o ponto de referência, em mundo individualizado e secularizado, pelo qual os valores das regras serão julgados e postos sob o crivo da legitimação? Tal racionalidade adviria, para ele, da conciliação entre os valores da liberdade individual, da solidariedade e da justiça social. Mas a questão é muito delicada, pois se trata de uma resposta que pretende ser científica e, assim, livre de qualquer acusação de opinião individual disfarçada. Se, como assinalamos há pouco, ele se propõe a dar provas científicas da (a) insuficiência constitutiva do indivíduo sem a sociedade, do (b) dever do indivíduo para com a sociedade e do (c) bem da sociedade (normal, isto é, não patológica) para o indivíduo, a questão é como tal processo de justificação será efetuado. Ele o será por meio de uma “ontologia vitalista”, que se proporá a conciliar a razão com a vida, a ciência com os valores, a liberdade individual com formas naturalmente geradas de solidariedade social. Eis, então, que estamos em meio a uma argumentação ontológica em favor da “vida social”. 2. O Argumento Ontológico: A Vida Social Durkheim realizará uma argumentação ontológica que transpõe os valores morais e políticos por ele defendidos para o plano da natureza, ou seja, é a própria natureza que os torna possíveis e necessários. E, portanto, as escolhas dos valores se tornam leis naturais. Tal transubstanciação incidirá, a um só tempo, nas regras da vida sociológica e nas regras do método sociológico. A argumentação será efetuada por quatro concepções decisivas: (1) o laço social entre o indivíduo e a sociedade é conceituado a partir da noção de vida, enquanto fato e valor; (2) o indivíduo será concebido como constitutivamente dependente da vida social, devendo participar do processo vital total, que lhe é ao mesmo tempo obrigatório, justo e bom, sendo

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a socialização uma condição da própria individuação; (3) a condição de possibilidade da vida social está na emergência de estruturações simbólicas oriundas do próprio processo vital, que lhe são ao mesmo tempo expressão e constituinte; (4) tendo em vista a natureza da sociedade, a sociologia é uma ciência da vida, devendo estudar e zelar pela saúde e equilíbrio dos processos vitais; portanto, tem que utilizar métodos que apreendam as suas formas espontâneas sem matálas, interpretando seus símbolos, indícios e sintomas, descobrindo as causas profundas que se manifestam na superfície da vida, buscando o espírito por trás da letra; afinal, antes de curar é preciso cuidar, antes de cuidar é preciso conhecer. Acompanhemos tal percurso tratando, antes de tudo, do primeiro momento da argumentação, o da dialética. As oposições dialéticas são estruturadas tendo por ponto de referência a ideia de vida, tanto enquanto valor, quanto enquanto fato. É a partir dele que serão efetuadas suas críticas ontológicas e metodológicas, que desembocam numa espécie de síntese vital. 2.1. Dialética das Concepções do Social: Fato e Valor da Vida O primeiro momento da argumentação é realizado por uma dialética fundadora da estrutura do real. A operação de transposição de valor a fato é feita pela oposição entre vida concreta e razão abstrata. Além da problemática da democracia da qual tratamos na primeira seção, mas associada a ela, a passagem do século XIX ao XX é marcada também por uma ascendência de um acordo valorativo, dentre visões filosóficas de mundo, em torno da noção de vida, da qual as imagens organicistas do mundo são a principal expressão, em uma oposição comum às “abstrações” da razão. Na esteira da crítica romântica do século XIX, a “razão” era associada ao Esclarecimento, visto como representando um pensamento mecanicista, simplista e abstrato. O avanço da biologia, que se torna o principal modelo a ser seguido dentre as ciências da natureza, é uma das razões de tamanha mudança de visão de mundo (Weltanschauung). Durkheim estabelece, quanto a isso, um acordo de fundo entre a tradição racionalista seguida pela sociologia e as distintas vertentes

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críticas do racionalismo do Esclarecimento. Em seu último curso na Sorbonne, Pragmatismo e Sociologia (1913-4), ao reconhecer um sentimento comum entre o pragmatismo e a sociologia, ele afirma que ambos têm um sentido da vida e da ação devido ao fato de serem filhos de sua época.145 Ele diz que tal sentimento é expresso, durante o século XIX, tanto na sociologia nascente de Saint-Simon e Comte, quanto no romantismo e em Nietzsche. O que os uniria seria uma crítica da insuficiência do racionalismo simplista do Esclarecimento, contra o qual eles afirmam a complexidade, a riqueza e a diversidade da vida. Do lado sociológico, Saint-Simon e Comte teriam compreendido que a vida social era feita não de relações abstratas, mas sim de uma matéria extremamente rica, o que os fizeram ter por projeto a fundação de uma sociologia mais complexa, mais rica e menos formalista do que a filosofia social do século XVIII. Contudo, ainda que ele assuma uma posição “vitalista”, Durkheim não o faz recusando o racionalismo; ao contrário, trata-se de um “vitalismo racionalista”, ou de um “racionalismo vitalista”, em que a razão deve se ampliar de forma a dar conta dos fenômenos da vida.146 A teoria é construída por uma síntese entre duas concepções antagônicas sobre o laço entre o social e o psíquico.147 De um lado, ele identifica no direito natural moderno, presente, sobretudo, nas filosofias de Hobbes e de Rousseau, como concebendo o laço entre o 145.  [1955a] Pragmatisme et Sociologie, p.27. 146.  Ao contrário, então, de algumas tendências vitalistas, que negariam o conhecimento da vida pela ciência, a sociologia de Durkheim é um vitalismo com vida, em oposição ao sem vida (CANGUILHEM, 1975, p. 94). Em um vitalismo com vida a ciência explica a vida caso ela seja também viva. 147.  O que se segue baseia-se principalmente na importante seção IV do cap.V d’ As Regras ([1901c]), mas também nos primeiros escritos de 1885 a 1889, quando de sua conversão à sociologia e anteriores à Divisão do trabalho, especialmente o curso inaugural em Bourdeaux e o artigo sobre a ciência da moral alemã: [1885a] Organisation et vie du corps social selon Schaeffle, p.355-377 ; [1885b] Propriedade social e democracia, p.155164; [1885c] La sociologie selon Gumplowicz, p.344-354 ; [1886a]. Os estudos de ciência social, p.165-189; [1887c] La science positive de la morale en Allemagne, p. 267-343; [1888a] Curso de Ciência social, p.75-102. São escritos igualmente importantes os que apresentam a história da sociologia: [1900c] La sociologie et son domaine scientifique, p.13-36; [1903c] (com Paul Fauconnet) Sociologie et sciences sociales, p.121-159; [1909e] Sociologia e ciências sociais, p.125-142.

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social e o psíquico como sendo sintético e artificial; por outro, ele vê na economia política clássica, que representava o liberalismo utilitarista do qual tratamos na primeira seção, como concebendo o laço como sendo analítico e natural. A sociologia realizaria uma terceira via que conceberia o laço como sendo sintético e natural. Não nos interessa, aqui, questionar ou refletir sobre a verdade de tais interpretações críticas de Durkheim em relação a seus oponentes – o direito natural moderno, a economia política e, como se verá após, a filosofia kantiana –; importando-nos tão somente mostrar como, a partir delas, ele constrói a sua concepção de sociedade e de sociologia. Concepção Sintética e Artificial (Direito Natural Moderno) A concepção sintética entende que existe uma solução de continuidade entre o indivíduo e a sociedade. Não haveria nada na natureza do homem que o predestinasse para a vida coletiva, nenhuma força natural que o inclinasse à vida em conjunto, ou seja, o indivíduo é naturalmente anti ou a-social. Ocorre, mesmo, que os fins sociais e os fins individuais sejam contrários uns aos outros. Sendo refratário à vida comum, o indivíduo somente se adequa por meio da força. É necessário, por isso, que haja coerção para que haja sociedade. A razão de ser da sociedade está na institucionalização e organização da coerção. A concepção sintética é artificial porque entende que o indivíduo é a única realidade do reino humano e, portanto, a sociedade é concebida como sendo artificial. Ela é um arranjo convencional tendo por finalidade fazer violência sobre o indivíduo impedindo-o de produzir suas consequências antissociais. A forma da sociedade não é espontânea, mas provocada, não é natural e necessária, mas sim convencional e arbitrária. Portanto, a causa da ordem e da dinâmica social é exterior à sociedade. A sociedade é vista como uma obra humana, como um fruto de arte e de reflexão, como sendo uma máquina, uma obra de arte, que foi construída pelas mãos humanas segundo a sua vontade. O homem é o criador, a sociedade, a criatura. A imagem normalmente vinculada a ela é a de um relógio. Os laços entre suas peças são conce-

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bidos como arbitrários, ou seja, as partes se uniriam sem que houvesse afinidade natural, seguindo apenas o plano preconcebido pelo artista. Portanto, o homem é entendido como detentor de um poder eficaz, sendo capaz de, uma vez estabelecidos os critérios de sua fabricação, conceber, por meio do seu intelecto e de sua imaginação, a forma social que seja conforme a sua vontade. Com Rousseau, seria a obra de todos, com Hobbes, seria a de um só. E assim, sendo sua causa oriunda da vontade do demiurgo humano, ela será mudada segundo o decreto de sua vontade, pois, da mesma forma que a criou, ele pode transformá-la. Ela é um instrumento, um meio para atender a fins, e, por isso, a sociedade pode ser livremente desfeita. Em termos abstratos, o ser social está em função do dever ser humano. Ao apresentar a sociedade como derivada sintética e artificialmente sem qualquer necessidade e inclinação natural, surge o problema prático da arbitrariedade das instituições. No limite, elas estariam em função da vontade do soberano, não havendo limites para que uma vontade a moldasse segundo a sua imagem. Para Durkheim, a grande contribuição de Comte, e depois de Spencer, foi de se opor a tal concepção artificialista e analítica de sociedade, o que foi feito por meio de analogias com a ideia de organismo tirada da biologia. Ora, diz Durkheim endossando Comte, a sociedade não é uma obra de arte, mas sim uma espécie de organismo ou uma planta, que nasce, cresce e se desenvolve em virtude de uma necessidade interna. Os seres humanos que a compõem são partes deste organismo. Assim como as células de um corpo de um animal tornam-se o que são porque o fim da transformação já estava na sua natureza, assim também os seres humanos se agregam porque se inclinam neste sentido pela própria natureza da sociedade. Ou seja, se eles se agregaram assim é porque, dado o seu meio ambiente, não era possível se agregarem de outro modo. Desta forma, a sociedade não seria um meio para atender a fins humanos, mas sim um fim em si mesmo, do qual os seres humanos fazem parte.148 148.  Tendo por base o argumento durkheimiano, podemos estabelecer, inspirados na análise do juízo teleológico da Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, que haveria três tipos de concepção de causa: ordem por acaso cego, ordem por causa externa ou ordem por causa

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Ele apresenta, portanto, uma oposição teórica entre a espontaneidade e o artifício do ser social, que corresponde, por sua vez, no domínio prático, à oposição entre a necessidade e o arbítrio das formações sociais e de suas regras. Esta oposição é representada segundo um confronto entre duas analogias, uma com a máquina, outra com o organismo vivo. Endossando o “socialista de cátedra”, a frase de Albert Schäffle (1831-1903), que é uma segunda grande influência teórica, além de Comte, a respeito desta concepção de sociedade como ser vivo, é plenamente significativa: “a reflexão produz as obras de arte, não as da natureza. A reflexão se corporifica nas máquinas artificiais que construímos, não em organismos vivos”.149 Isso quer dizer que a sociedade é um ser natural que possui uma vida independente da reflexão humana e, portanto, o humano deve respeitá-lo. No que diz respeito às regras da vida social, o corolário desta afirmativa é que: ao invés do ser social estar em função do interna. A primeira possibilidade elimina qualquer finalidade do processo, qualquer razão de ser; a segunda, se a considera, põe-lha mecanicamente, pois o processo será regido de fora, seja pelo desígnio do demiurgo (homem ou divino), seja pelas séries de eventos ambientes (por exemplo, a determinação da raça ou do clima na forma social); por fim, no caso da última, estar-se-á refletindo sobre o fim natural da organização (que pode ter sido intencionado pelo demiurgo, mas que possui vida própria). Esta última concepção se diferencia das demais porque o ser organizado possuirá não somente uma força motora, própria das máquinas, mas também uma força formadora, ou seja, uma força que está presente nele e que se comunica a seus materiais. No caso de pensar o ser organizado como possuindo apenas uma força motora, vê-se nele apenas um análogon da arte, que tem a sua forma dada pelo artífice fora dela. No último, visto que a força formadora faz ver o ser organizado organizando-se a si próprio, segundo um modelo do todo, podendo ainda se transformar, pode-se ver nele um análogon da vida. O problema consistirá, então, neste caso, em como haverá esta força viva que dinamiza o todo. Tal concepção encontra-se numa forma de pensamento comumente denominado de vitalismo, que não se reduz a esta afirmação causal, mas parte necessariamente dela e do problema que lhe resulta. Não querendo ser fiel a Kant, fica como indicação a frutífera tentativa de compreender as teses de teoria social a partir da sua crítica da faculdade de juízo, que permite pensar a sociologia conforme possibilidades: ciência da matéria, ciência da vida e/ ou reflexão estética, que corresponderiam, respectivamente, a um atomismo/mecanicismo, a um vitalismo e a uma arte. No caso do Durkheim, buscando se desvencilhar da tendência metafísica do vitalismo, ele recorre a uma concepção mecanicista de causalidade que permite conceber a origem e as funções vitais das formas da vida social sem postular intencionalidade. Seria, portanto, um misto de vitalismo mecanicista. Mas esta é uma tendência contemporânea ao nosso próprio tempo, proveniente da cibernética, de forma que seu vitalismo é bem atual. 149.  Tal citação está em  : [1887c] La Science positive de la morale en Allemagne, p.268-297.

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dever ser humano, o que ocorre é, inversamente, que o dever ser humano deve estar em função do ser social; noutras palavras: a vontade e as regras humanas devem se adequar às leis da natureza. Os teóricos do artificialismo não teriam, segundo ele, como explicar a possibilidade de passagem de uma ordem imoral ou amoral a uma ordem moral, noutros termos, do estado de natureza ao estado civil. O problema de Rousseau estaria em explicar como seria possível passar de indivíduos igualmente independentes para indivíduos unidos voluntariamente. Se o indivíduo se basta a si mesmo, fica difícil ver como estado civil se formou; além disso, fica difícil explicar por que ele quis fazer um mal a si mesmo, institucionalizando a coerção. Portanto, há uma solução de continuidade entre os dois estados que não permite conceber a passagem. É preciso, assim, estabelecer as passagens da natureza à sociedade, do imoral ou amoral ao moral, que não postulem uma geração espontânea, uma criação ex nihilo. A afirmação ontológica de Durkheim adquire uma aparência de evidência lógica-demonstrativa por causa do princípio que ele afirma ao longo de toda a obra: nada vem de fundo do nada (rien ne vient de rien), nem a sociedade, nem nada na ordem do ser, é um império dentro do império (empire dans une empire); a partir disso, é evidente que a diferença de natureza põe o problema da passagem entre as ordens como irracional, sendo a solução lógica a de eliminação das contradições de mudança de ordem por meio da inclusão das partes no todo em que a totalidade integra diferenças tão somente de grau. A sociedade aparece, assim, como um reino da natureza, uma parte do todo. Mas ela é tida como sendo a de maior nível e dignidade, pois apresenta todas as determinações presentes nos outros reinos. Concepção Analítica e Natural (Economia Política) Contrariamente ao direito natural moderno, os economistas políticos, tal como Frédéric Bastiat em seu Harmonies Économiques (1848-1950), assumem uma concepção espontaneísta da ordem, concebendo a sociedade como coisa natural. Para eles, a sociedade é regida por leis necessárias (por exemplo, da formação dos preços),

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com efetividade análoga àquelas presentes na física. Assim, para Durkheim, eles foram os primeiros a distinguir tudo quanto há de vivo e de espontâneo nas sociedades, pois viram que elas não resultam de um impulso exterior e mecânico, mas sim de leis que se elaboram lentamente no seu próprio seio por uma necessidade interna. No entanto, a perspectiva analítica os faria considerar que a única base da sociedade está na natureza do indivíduo. As leis naturais da economia têm o indivíduo como, a um só tempo, princípio, meio e fim da vida social. A sociedade é, então, apenas um ser nominal ou uma mera abstração, sendo uma palavra que serve para designar um agregado mecânico de indivíduos justapostos. Existiria apenas uma força maior oriunda da soma das forças das partes, tendo-se por fórmula, portanto, que o todo é a soma das partes. No que diz respeito à natureza dos laços, as relações humanas são consideradas intermitentes e desvinculadas, com contatos decorrentes do fenômeno da troca. Além disso, os fenômenos da vida social processam-se paralelamente, alinhados em séries lineares, alheios uns aos outros, sem se tocarem ou só o fazendo acidentalmente. Ou seja, os laços entre os fatos sociais são superficiais, eles são em grande parte independentes. Portanto, igualmente aos sintéticos, eles não veriam na sociedade um sistema de coisas que existe por si mesmo em virtude de causas que lhe são especiais. Ao invés de ser vista como convencional, a sociedade é tida, contudo, como tendo origem nos instintos fundamentais do coração humano, que é inclinado naturalmente à vida social. Por isso que a coercitividade social é vista como ilegítima, própria de estados anormais de sociedade, porque onde a sociedade é normal, não há necessidade de coerção. A regra é então a de deixar as forças individuais se desenvolverem em liberdade para que elas se organizem socialmente. A finalidade da ciência consiste em procurar como deve o indivíduo, dada a sua natureza, conduzir-se nas principais circunstâncias da vida econômica, tendo em vista seu bem-estar ou felicidade. O critério da conduta é, portanto, o interesse individual. Por isso, segundo ele, os economistas estabeleceram, como corolário, uma teoria da liberdade com base mais sólida do que uma hipótese metafísica porque pautada por leis da natureza. Posto que a causa da ordem e do movi-

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mento social é interna, a vida coletiva tem uma espontaneidade que tem de deixar seguir o seu curso, evitando lhe fazer entraves. Se há leis naturais da sociedade, as leis humanas devem se adequar a elas, não podendo nem criá-las nem modificá-las. Tentar fazer isso pode ser negativo; com isso, não se conhecendo suas leis, é preferível se abster. A natureza segue seu próprio curso sem necessidade de forçála ou ajudá-la; ela possui suas próprias forças e seu próprio sentido. Uma força externa em sentido distinto de seu movimento natural seria uma violência. Para fazer as críticas dos utilitaristas, Durkheim utiliza novamente os argumentos de Comte. Nos utilitaristas, não há laços humanos sólidos, mas apenas relações intermitentes. Se, de fato, o indivíduo é a única realidade tangível, isso não quer dizer que ele é a única realidade existente, isso porque existe uma outra realidade, intangível, que é a sociedade. Como os economistas consideram como essencial o que é mais tangível, eles acabam por tomar a matéria pela forma. Contudo, mesmo que a sociedade seja composta da matéria, isso não quer dizer que ela não tenha uma forma própria e que não exista fora das partes que a compõem. Ao contrário, ao se agruparem, como veremos, os humanos formam um ser novo que tem a sua própria natureza e suas próprias leis: o ser social. A vida coletiva não é, assim, uma simples imagem ampliada da vida individual, pois possui caracteres sui generis. A sociedade é um todo maior que a soma das partes. O ser social tem um lugar determinado na série dos seres, no cume da hierarquia de complexidade, inclusive porque ela engloba os outros reinos da natureza. Pelo fato de ser o topo da hierarquia da vida, ela tem um caráter inerente, no mais alto grau, a todo corpo vivo: o consensus universal (nos termos de Comte); sendo ele não apenas interno ao organismo, mas também na relação deste com o ambiente. Vemos, assim, que, prolongando a analogia com a vida, Durkheim chega a uma concepção do laço social como sendo ao mesmo tempo espontâneo, necessário, específico e real. Ele afirma a existência de uma “harmonia universal” da sociedade em decorrência de laços sólidos, permanentes e regidos por leis espontâneas. Com isso, ela combina,

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em apenas um argumento, a valorização tipicamente romântica do espontâneo em relação ao artificial com aquela tipicamente clássica da constância, permanência, regularidade, equilíbrio e ordem. O resultado disso é a naturalização do valor da solidariedade. Seguindo ainda Comte, ele considera que há interdependência entre todos os fatos na vida social. O ser mais complexo é também o ser mais flexível, mais mutável, mais dependente do ambiente e mais instável. Ora, com os economistas, temos um simples agregado de ações sem plano. A ordem que resulta dele vem de um acaso cego, e não das leis do movimento interno da sociedade. A economia, mesmo anunciando embrionariamente o que há de vivo na sociedade (força formadora), contra uma concepção da sociedade como máquina (impulsionada do exterior), acaba por matá-la ao ver em seu movimento interno apenas relações mecânicas entre as partes. Decompondo-a em partes, cai, então, em um atomismo social. Assim como na outra concepção, a vida social seria vista como um instrumento dos interesses dos indivíduos, como um meio, e não como um fim em si mesmo. Não basta, para afirmar a vida diante do mecânico, enunciar a existência de leis internas da sociedade. Pois os utilitaristas a afirmam, contra o soberano e o legislador, mas eles se mantêm num ponto de vista mecanicista. Além disso, os economistas primam pela simplicidade dos fatos; mas fatos simples são fatos mortos. Pois, conforme mostrou Comte, os fatos sociais são demasiado solidários para que possamos estudá-los separadamente. A sociologia deve ser integrada, e não somente anexada, às ciências naturais. Se as ciências perdem autonomia com isso, elas ganham, em compensação, seiva e vigor. Enquanto os fatos para a economia são independentes e parecem flutuar no vazio, tendo alguma coisa de abstrato e de morto, a sociologia tem que perceber as suas interdependências, suas afinidades naturais, enquanto faces distintas de uma mesma realidade viva: a sociedade. Recorrendo assim a um lugar do existente, ele considera, então, que a sociedade seria desvalorizada se fosse considerada apenas uma virtualidade, sendo, ao contrário, algo real, que existe. Além disso, fazendo uso de um lugar da essência combinado com um lugar da

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quantidade, ele atribui valor à sociedade porque ela é a realização mais alta, mais rica e mais complexa da vida. Temos uma visão hierarquizada de natureza, que lhe confere uma imagem de cosmos bem ordenado, em que o ser de nível superior é visto, a partir da inclusão da parte no todo, como incluindo os de nível inferior, o que lhe propicia reforçar a hierarquia valorativa. É muito importante perceber a combinação entre os lugares de quantidade e os lugares de qualidade, de forma a fazer com que ele oscile entre o espírito clássico e o romântico. Ele afirma, de forma romântica, o maior valor do concreto sobre o abstrato, da interpendência sobre a separação, do natural sobre o artificial, do complexo e opaco sobre o simples e claro, mas, ao mesmo tempo, ele valoriza a busca de leis, e não de espontaneidade, a ordem, e não a originalidade. Por fim, há algumas observações de ordem prática. Em primeiro lugar, ele diz que o utilitarismo pode aceitar qualquer tipo de compromisso sem que, com isso, fique em contradição com seu axioma. Admite-se, por exemplo, que a liberdade individual pode ser suspensa toda vez que o interesse do grande número exija este sacrifício; não sendo, portanto, possível compor o princípio da utilidade com ideais fora e além de todos os interesses temporais. Assim, haveria uma solução de continuidade entre os interesses individuais e os interesses coletivos, e mais ainda, entre os valores da liberdade individual e da dignidade da pessoa humana, pois a razão de Estado pode atentar, segundo os princípios utilitaristas, contra ela. Desta forma, a regra utilitária é ilegítima porque incompatível com a consciência moral que afirma a dignidade da pessoa humana. Em segundo lugar, no que diz respeito à relação entre economia e moral, os utilitaristas concebem uma independência de uma em relação à outra, ou de subordinação da moral à utilidade; mas ao contrário, deve-se pensar a relação de uma à outra como sendo a de forma à matéria, isto é, a vida econômica, que é a matéria, desenvolve, com o passar do tempo, a forma, que é a moral e, assim, a forma não precede à matéria, mas sim deriva dela e a expressa, sendo, portanto, uma relação entre conteúdo e continente, não podendo se abstrair uma da outra.

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As Fontes Vitais da Moralidade: Por um Dualismo Moral a partir e contra Kant É nesta argumentação que enfatiza que a matéria precede a forma, do mesmo modo que a sociedade precede a moral, que incide a crítica de Durkheim ao individualismo moral de Kant. Neste caso, como nos outros, a ideia de vida se afirma contra uma visão de mundo que nega as formas e interdependências da vida. Mas, neste caso, a crítica diz respeito mais diretamente ao objeto principal da sociologia, a moral, que é o cerne das preocupações a respeito das regras da vida social. Se, no caso Dreyfus, ele apenas elogiou a concepção moralista de mundo presente no individualismo moral, por outro lado, tendo por fim fundar as ciências sociais enquanto uma ciência da moral, ele mobilizou argumentos contra a concepção dualista kantiana.150 Para ele, Kant fez da razão teórica e da razão prática dois aspectos diferentes da mesma faculdade.151 O que faz a unidade é que todas as duas são orientadas para o universal. Por um lado, pensar racionalmente é pensar segundo leis que se impõem à universalidade dos seres racionais. Por outro lado, agir moralmente é se conduzir segundo máximas que possam sem contradição ser estendidas à universalidade das vontades. Ou seja, a ciência e a moral implicam que o indivíduo é capaz de se elevar além de seu ponto de vista próprio e de viver uma vida impessoal. Estas são as formas superiores de pensamento e ação. O que define a personalidade é a sua capacidade de ser uma fonte autônoma de ação, mas isso é visto, no caso do moralismo, do ponto de vista da vontade pura (da faculdade de agir orientado pela razão). Assim, com Kant, o indivíduo possui o poder de se elevar além do particular e do contingente. O que faz a pessoa 150.  Percebe-se que as observações relativas a Kant repetem alguns pontos elaborados no artigo O Individualismo e os Intelectuais. O importante a assinalar é que o dualismo kantiano inclui em si o aspecto utilitário dos economistas, mas tirando-lhe qualquer pretensão à moralidade. Assim, de forma mais clara do que no artigo, Durkheim não pensa os dois individualismos como sendo efetivamente contraditórios, mas sim que o individualismo moral integra o utilitarismo dentro de seu escopo por meio da subordinação do valor utilitário do interesse e do materialismo ao valor moral do desinteresse e do espiritualismo. 151.  [1912a] As Formas Elementares, p. 635-6.

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é o que a confunde com outros homens, e não o que a individualiza; ou seja, os sentidos, o corpo, tudo o que individualiza o homem, é considerado como o antagonista da personalidade.152 Desta forma, para Durkheim, Kant concebe a liberdade como somente podendo ser pensada fora da ordem da natureza, pois o homem enquanto um ser sensível é determinado, e a liberdade só é possível se o sujeito for pensado como incondicionado. A conduta moral é aquela realizada pelo sujeito impessoal, que toma por referência o dever, que é um fim em si mesmo, sendo, portanto, um ato desinteressado que não está relacionado com o apetite do indivíduo. O interesse pessoal é a origem de todo o mal. A moral é, desta forma, um conjunto de deveres de que o indivíduo seria, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, que só o ligariam a si mesmo, enquanto sujeito transcendental, e que, por conseguinte, subsistiriam mesmo que ele fosse só. A dignidade da pessoa humana tem valor transcendental, sendo a pessoa tomada de forma impessoal e anônima. Para ele, contudo, Kant não explica de onde vem a espécie de contradição entre o sensível e o inteligível que o homem se vê realizar: por que o indivíduo é constrangido a se fazer violência para ultrapassar a sua própria natureza? Trata-se de saber o que nos faz precisar levar concorrentemente as duas existências do homem, a sensível e a inteligível: por que os dois mundos humanos, que parecem se contradizer entre si, não permanecem fora um do outro? O que os faz necessitar penetrar-se mutuamente a despeito de seu antagonismo? O erro do moralismo seria, para ele, de colocar a moral fora do espaço e do tempo empírico. Isolada então dos fatos, a moral parece flutuar no vazio, e assim, separada da fonte da vida, ela acaba por fenecer a ponto de se tornar apenas um conceito abstrato, uma fórmula seca e vazia, que não toca o sentimento, mas apenas à razão. Torna-se difícil fazê-la voltar à vida, tornando-se um fator de morte. Contrariamente a isso, Durkheim propõe que a moral seja entendida como entretecida nas múltiplas relações com os inúmeros fatos que lhe definem a forma e que, por sua vez, ela regula. A moral está, 152. 

Ibid., p.386-390.

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portanto, em inter-relações com a fonte da vida, surgindo como uma função viva e complexa do organismo social. Ou seja, as regras morais surgem da vida social, espontânea e naturalmente. Eis o primeiro critério de validade das regras. Além disso, a definição kantiana do fato moral segundo o dever é, para Durkheim, muito restritiva. A moral, em Kant, está em contradição com a sensibilidade, devendo ser apenas formal e vinculada à ideia de dever. Mas, para Durkheim, há na moral também a ideia de bem, em que se afigura ao indivíduo como desejável, afetando-lhe a sensibilidade. A moral possui certo apetecível sui generis. Portanto, a regra moral deve tocar não apenas à razão, mas também à sensibilidade, sendo não apenas justa, mas também boa, não apenas coercitiva, mas desejável. Ela deve tocar não apenas à moralidade do humano justo, mas também o desejo do humano prático. Eis um segundo critério de validade da moralidade. Por fim, Durkheim diz ser um erro definir a moral pela liberdade, pois sua função é tornar possível que as pessoas vivam juntas; portanto, a moral é uma ciência da vida. Ela é “tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a contar com outrem, a reger seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo”.153 E a fonte da vida moral é a sociedade. Para ele, o homem só é um ser moral porque vive em sociedade; se se fizer desaparecer toda a vida social, a vida moral desaparecerá igualmente, pois não terá mais objeto a que se prender. Portanto, eis um terceiro critério da validade da regra moral: a moral deve ser mais um fator de solidariedade do que de liberdade, ou seja, ela é o que faz espontaneamente os homens viverem juntos. Tais argumentos nos apresentam a últimas dissociações do autor: entre razão e sensibilidade e entre liberdade, enquanto independência, e solidariedade, enquanto convívio interdependente. Mais uma vez, nós o vemos se aproximar do espírito romântico, já que valoriza a sensibilidade e a matéria, criticando a razão abstrata por matar a vida e a liberdade pura por desvincular o ente da solidariedade com os outros seres. Percebe-se, então, neste aparente ecletismo, que a 153. 

[1902b] Da Divisão, p.420.

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oposição entre razão e vida aparece em vários níveis. No entanto, o autor se propõe a fundar e efetuar uma ciência da moral, o que aparece, de imediato, como contraditório com a valorização da vida em relação às pretensões da razão. Todavia, ele busca soluções para sair deste impasse, que são encontradas dentro de sua própria compreensão do conceito de vida. É por meio dele que empreenderá uma síntese vital entre as antinomias acima expressas. Ao contrário das supostas tendências irracionalistas do romantismo, ele conceberá sua saída dentro do domínio de uma ciência positiva. Segundo ele, deve haver uma explicação científica para a passagem entre sensibilidade e razão, imanência e transcendência, entre o determinismo e a liberdade humana. A distinção crítica kantiana não basta, devendo haver uma síntese real entre estes domínios; deve haver uma força ascendente que leve o humano a transcender sua natureza, saindo do domínio da pura sensibilidade e espontaneidade para aquele da razão e da regra. Como, então, realizar esta síntese na experiência? A síntese é feita, ironicamente, por um golpe de imaginação. Mas antes de abordá-la, é importante discorrer sobre o que ele considera ser o erro fatal de todos os seus interlocutores – direito natural moderno, economistas políticos, sociologias comtiana e spenceriana e filosofia kantiana, moralista e espiritualista – e signo distintivo da sua sociologia: o método. 2.2. O Erro Fatal: O Método Todos os opositores se uniriam no plano metodológico, compartilhando o método de análise ideológica. Ele critica a tal método por ser introspectivo, caracterizando-se por ser a priori, dedutivo, intuicionista e subjetivo. Ela operaria partindo de uma ideia, para fundamentar uma premissa que estabelece um indivíduo distinto e independente, sem meio e sem história, deduzindo daí o ideal que convém. Ao invés de tratar da sociedade, tal método trataria do autor do pensamento, que escolheria subjetivamente os princípios dos quais ele parte para derivar daí os conteúdos que lhe aprazem. Esse método seria um corolário da concepção artificialista, pois,

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caso se conceba a sociedade como produto da reflexão humana, ela será tomada como objeto evidente e imediato da consciência. Contudo, mesmo na concepção naturalista pode ocorrer a derivação de leis a partir de uma concepção abstrata de indivíduo humano. O que é feito muitas vezes confundindo o racional com o natural; por exemplo, quando alguém se contenta em afirmar que “as coisas se passam assim por serem racionais”. Reduzindo o indivíduo apenas a uma ideia clara e distinta, mas seca e vazia, retira-se do indivíduo concreto tudo quanto tem de vivo e de complicado. A teoria é, portanto, simplista, dizendo muito pouco sobre a complexidade da vida social. Os economistas, por exemplo, fariam uma demonstração lógica das possibilidades metafísicas, mas nunca o estabelecimento de leis da realidade, pois o homem egoísta é somente um ser de razão e uma necessidade lógica, e não uma abstração induzida pela observação do real. Falta-lhes, portanto, uma natureza a observar. Teríamos como resultado um humano empobrecido artificialmente por uma espécie de metafísica naturalista e racionalista. Assim, no fim das contas, todas as perspectivas se encontrariam num método que desproveria a vida de sua carne. Isso ocorre porque a concepção artificialista, ainda que veja o laço como sendo sintético, entende-o como artificial, e, portanto, acessível pela reflexão, ao passo que a concepção naturalista, muito embora conceba a sociedade como natural, entende-a como derivada analiticamente da natureza individual e, portanto, acessível pela concepção de natureza humana. Contrariamente, a sociedade deve ser entendida, para Durkheim, como ao mesmo tempo sintética e natural, pois somente assim poderse-ia torná-la passível de um método que não seja introspectivo. A perspectiva sintética e naturalista concebe a sociedade como realizando uma síntese exterior às consciências, obedecendo a leis que lhes seriam estranhas e, portanto, que lhes seriam opacas. Por causa disso, dever-se-ia estudá-las por métodos indiretos de acesso, numa palavra, por experimentações. Portanto, ela teria por regra de método a necessidade de um estudo metódico, baseado na observação indireta e na comparação. Por ser uma realidade sintética viva, não seria possível explicá-la, além disso, por um método analítico, que a fragmentasse

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em elementos simples que seriam as causas que a explicariam; ao invés de explicar o complexo pelo simples, a regra do método deveria ser, portanto, a da explicação do complexo pelo complexo. As condições do debate científico deveriam ser estabelecidas segundo confronto de provas empíricas, baseadas em dados da experiência, a serem elaborados metodicamente. Esta seria a única forma de controlar os valores do indivíduo, expondo-o a fatos que podem contrariá-los, tomando consciência da riqueza, pluralidade e complexidade da matéria. Durkheim não aceita que a ciência se fundamente apenas num método referido aos princípios morais e ao princípio da não-contradição, isto é, à consciência moral e à lógica. Ao contrário, a principal forma de justificação e crítica é a prova de compatibilidade das regras do sistema teórico e do método com os fatos. Esta seria uma condição não apenas de validação do argumento, mas também de entrada em contato com a complexidade dos fenômenos vitais. Dado que o mundo durkheimiano é feito de uma vida que efetivou suas sínteses e que segue seu curso independentemente da vontade e da reflexão humana, a única condição de possibilidade de se produzir conhecimento é, tal como um biólogo ou médico, de auscultar, sondar, comparar, observar, enfim, de curvar-se à experiência de um objeto que é confuso, opaco e mediato pois inacessível pela pura e simples intuição. Tal posição metodológica responderia diretamente ao problema moral de sua época: “o único meio de fazer cessar esta situação de instabilidade e inquietude é encarar a própria moral como um fato cuja natureza se deve perscrutar atentamente, eu diria mesmo respeitosamente, antes de ousar modificá-lo”.154 A sociologia é fundada, portanto, em uma argumentação da insuficiência da racionalidade diante da vida e da necessidade de uma concepção de racionalidade mais ampla. Diferentemente dos vitalismos “anticientíficos” ou “antirracionalistas”, o que se opõe à complexidade e riqueza da vida não é a atividade racional, mas sim a autossuficiência de um racionalismo estrito. Curioso, portanto, notar que a imaginação do objeto enquanto um ser vivo atribui propriedades ao objeto que não são extraídas da experiência, mas servem para ordenar a razão a se curvar a ela. 154. 

[1888a] Curso de Ciência social, p.99.

166

2.3. Síntese Vital: A Vida Social Durkheim pega de cada qual uma parte. Do lado da via sintética e artificialista, ele assume que a coerção é a característica de todo fato social, mas não aceita que o coercitividade seja artificial. Do lado da via analítica e naturalista, ele assume que a realidade social é da ordem da natureza, mas não aceita que as leis da natureza possam ser derivadas da natureza do indivíduo. Por fim, do lado do dualismo kantiano, ele assume que a natureza humana oscila entre o sensível e o inteligível, mas não aceita que esse dualismo permaneça sem explicação, sendo necessário, portanto, que seja dito como estes dualismos se sintetizam na experiência. É por meio da síntese que podemos chegar à segunda concepção decisiva do sociólogo: a de que o indivíduo é concebido como constitutivamente dependente da vida social. O problema das teorias anteriores seria que o indivíduo passava por ser finis naturae, e, assim, a sociedade aparecia ou como amoral ou como imoral. Na passagem de uma ordem a outra se acaba por recorrer a uma criação ex nihilo ou a uma geração espontânea. O problema será, então, o de responder à seguinte pergunta: como o indivíduo poderia, sem sair de si, adquirir energias que ele não possui? Como poderia ultrapassar-se por meio de suas próprias forças? 155 Segundo Durkheim, não poderia. A operação deve ser de inserir o indivíduo dentro de um processo vital mais amplo, em que a vida psíquica individual se alimenta e se fortalece da vida social. “Tudo posso naquela que me fortalece”: este seria o sentimento bem compreendido do indivíduo em relação à sociedade. Sabendo disso, ele descobriria as fontes de suas próprias forças. Para que possamos pegar o fio do argumento, apresentemos como ele insere o indivíduo no processo vital através do recurso à noção de força e qual é a concepção de liberdade que daí deriva, e com ela, as de justiça e de bem; em seguida, veremos como ele concebe a própria natureza da vida social por meio da noção de associação.

155. 

[1912a] As Formas Elementares, p.607.

167

Liberdade como Compreensão da Necessidade: Força Moral, Autonomia e Civilização Em Lições de Sociologia (1890-1900), ele apresenta, por meio de uma analogia entre a vida material e a vida espiritual do indivíduo, sua concepção de indivíduo inserido no processo vital: Do mesmo modo como só sustentamos nossa vida material com a ajuda dos alimentos que extraímos do meio cósmico, nós só alimentamos nossa vida mental com a ajuda de ideias, de sentimentos que nos vêm do meio social. Nada vem do nada, e o indivíduo abandonado a si mesmo não poderia elevar-se acima de si mesmo. O que faz com que ele se supere, com que ele tenha ultrapassado a tal ponto o nível da animalidade, é o fato de a vida coletiva repercutir nele, de penetrá-lo; são estes elementos adventícios que lhe fazem uma outra natureza.156

A analogia promove a imagem de um indivíduo aberto ao meio e dependente dele: da mesma forma que não há organismo sem retirar sua fonte de energia física do meio cósmico, da mesma forma não há vida espiritual sem retirar sua fonte de energia psíquica do meio social. Portanto, dentro de uma concepção próxima à de Comte, Durkheim define a vida como relação entre organismo e meio, utilizando-a tanto para o domínio da matéria, quanto para o do espírito. Dentro do domínio da matéria, há forças físicas que compõem o mundo externo e interno dos homens; dentro do domínio do espírito, há forças sociais ou morais que igualmente compõem os meios externo e interno. As duas forças são tidas por naturais e estão integradas na grande cadeia do ser. Assim como a vida orgânica, a vida espiritual estaria inserida na ordem da causalidade eficiente, tendo por fonte de suas ideias e de seus sentimentos as próprias entranhas da realidade. Aqui se coloca a questão da relação entre determinismo e liberdade; afinal, estando na ordem da causalidade eficiente, como podemos pensar a autonomia humana? Ora, diz-nos, existem duas maneiras de um ser 156. 

[1950a]. Lições de Sociologia, p.126-7

168

receber ajuda de forças exteriores: por um lado, ele pode recebê-las passiva e inconscientemente, sem saber o porquê, sendo, neste caso, tão somente uma coisa; por outro lado, ele pode dar-se conta do que as forças são e de quais as razões que existem para se submeter e de se abrir a elas, sendo, neste caso, uma pessoa, pois não apenas as sofre, mas, sobretudo, age consciente e voluntariamente compreendendo o que faz.157 Portanto, o indivíduo pode ser uma pessoa ou uma coisa conforme tenha ou não conhecimento e controle das forças que atuam sobre ele. Sendo coisa, é inteiramente determinado; sendo pessoa, possuirá um domínio de liberdade. A autonomia individual não consiste, portanto, em se insurgir contra a natureza; ao contrário, “ser autônomo é compreender as necessidades às quais se deve dobrar e aceitá-las com conhecimento de causa”.158 De forma deveras spinozista (relação esta a Spinoza muito próxima, como veremos adiante), ele diz que se nós não podemos fazer com que as leis sejam outras do que elas são, podemos ao menos nos liberar pensando-as, ou seja, fazendoas nossas pelo pensamento. Além do mais, as forças externas não são um limite para uma liberdade compreendida de forma pura. Elas são, na verdade, a própria condição de existência da autonomia. Do fato que tudo se faz de acordo com leis, não decorre que nada possamos fazer; ao contrário, as forças morais promovem um duplo processo de emancipação dos indivíduos.159 Entendendo por pessoa uma fonte autônoma de ação, ele diz que a liberdade não pode ser constituída pelo poder totalmente abstrato de escolher entre dois contrários, pois as faculdades devem se exercer sobre fins e móveis próprios do agente que possui materiais da consciência de caráter pessoal.160 A autonomia individual somente é possível na medida em que a pessoa se torne mais do que um indivíduo orgânico-psíquico possuindo qualidades genéricas, assim como uma simples encarnação do tipo genérico da sua raça ou de seu grupo. A liberação das determinações 157.  158.  159.  160. 

Ibid., p.128. Ibid. [1902b] Da Divisão, p.353. Ibid., p.425-6.

169

orgânico-psíquicas e hereditárias ocorre pela aquisição de atributos pessoais, promovida por uma força ascendente que faça o indivíduo transcender as determinações naturais do seu estado inicial. Portanto, longe de ser entendida como um atributo constitutivo do indivíduo em si, a liberdade deve ser um produto de uma coercitividade que se lhe impõe de fora; longe de estar em antagonismo com a ação do indivíduo, a coerção é a condição de possibilidade da liberdade. Trata-se de uma inversão da ordem natural, pois a condição de estado natural é aquela em que o indivíduo está unicamente sob a influência de causas físicas e orgânico-psíquicas.161 A liberdade é, por isso, “uma conquista da sociedade sobre a natureza” por meio da subordinação das forças físicas do organismo ou do meio físico às forças sociais, fazendo com que as forças individuais possam se desenvolver mais livremente.162 Nos animais, o organismo assimila os fatos sociais e, despojando-os de sua natureza especial, transforma-os em fatos biológicos, de tal forma que “a vida social se materializa”; inversamente, nos humanos, e sobretudo nas sociedades com maior divisão do trabalho, as causas orgânicas são transformadas em causas sociais; de tal forma que “é o organismo que se espiritualiza”.163 O indivíduo se transforma por meio de uma atividade que desprende uma nova vida, mais livre, mais complexa e mais independente dos órgãos que a suportam. A vida psíquica surge e se desenvolve a partir daí. A diferença entre o humano e o animal está, portanto, em Durkheim, no maior desenvolvimento de sua vida psíquica que se associa a sua maior sociabilidade.164 Se a partir da sensibilidade confusa da origem desprendeu-se pouco a pouco a ideação, se o homem aprendeu a formar conceitos e a formular leis, se seu espírito abraçou porções cada vez mais extensas do espaço e do tempo, se, não contente em reter o passado, ele avançou cada vez mais no futuro, se suas emoções e suas tendências, a princí-

161.  162.  163.  164. 

Ibid., nota.8. Ibid., p.405-6. Ibid., p.359. Ibid., p.360-1.

170

pio simples e pouco numerosas, multiplicaram-se e diversificaram-se, é porque o meio social mudou sem interrupção.165

A civilização é a intensificação da diferenciação e solidarização das forças sociais e individuais. Tais sociedades são sistemas em perpétuo equilíbrio instável. A vida social é tanto mais intensa quanto mais frequentes e mais enérgicas são as reações trocadas entre as unidades componentes. Nas sociedades de estrutura segmentada, a estrutura determinava a vida; nas sociedades modernas, as funções de cada órgão mudam incessantemente. Os indivíduos desenvolvem funções complexas que lhes permitem adaptarem-se a um meio cada vez mais complexo, mais instável, mais flexível, que produz sem cessar novidades e rupturas no equilíbrio. Neste movimento evolutivo, as funções tornaram-se cada vez mais independentes dos órgãos. Uma estrutura não é apenas uma maneira determinada de agir, mas é também uma maneira de ser que requer uma maneira de agir. Mas, se a função adquire maior maleabilidade, é porque mantém uma relação menos estreita com a forma do órgão, é porque o vínculo entre os dois termos se tornou mais frouxo. Portanto, o progresso teria por efeito destacar cada vez mais, sem todavia separá-los, a função do órgão, a vida da matéria, consequentemente, espiritualizando-a, tornando-a mais flexível, mais livre, mais complexa. Ora, ao mesmo tempo em que as sociedades adquirem maior vida, se tornam mais facilmente vítimas da sua intensidade. Tal concepção antropológica e histórica desemboca em um conceito de civilização como sendo ao mesmo tempo um fator de libertação e de justiça. Civilização é a evolução das forças sociais ao longo da história em um processo de contínua emancipação da cultura e do indivíduo em relação à hereditariedade biológica e às particularidades dos grupos.166 Quanto maior a complexidade das forças sociais, maior será a complexidade psíquica do indivíduo, maior será então sua individualidade. Quanto mais avançada uma civilização, mais separada será a consciência individual do meio orgânico que a suporta e do 165.  166. 

Ibid., 361-2. Ibid., p.316.

171

meio social que a envolve; consequentemente, por meio dessa dupla emancipação, o indivíduo se torna um fator independente de sua própria conduta. Temos, com isso, uma concepção de individuação como resultado de um processo de complexificação. Como as desigualdades entre os indivíduos é um fato natural, ao tornar as diferenças naturais ou hereditárias cada vez mais insignificantes diante das forças sociais materializadas nos produtos da civilização (língua, direito, técnicas, etc.), a civilização torna possível que a base orgânica da desigualdade seja eliminada. Ela permite aumentar a equidade em nossas relações sociais a fim de garantir o livre desenvolvimento de todas as forças socialmente úteis.167 O ideal das sociedades mais avançadas seria a libertação a mais elevada possível da natureza que seria por si só injusta e desigual. O homem não pode escapar da natureza senão criando outro mundo, o social, a partir do qual a domina. A civilização seria não apenas, portanto, um “fator de libertação”, como também uma “obra de justiça”.168 A moral das sociedades organizadas é marcada por algo mais humano, portanto, mais racional, porque mais universal e menos transcendente.169 Ela não nos faz servidores de forças ideais de natureza diferente das nossas e postas em um mundo além. Ao contrário, ela nos faz orientar nossas atividades rumo a finalidades que nos interessam mais diretamente, reivindicando tão somente maior solidariedade e justiça, assim como o dever de se especializar profissionalmente a fim de receber em retribuição o que é equivalente a seu mérito. Portanto, sendo menos transcendentes, as regras das sociedades modernas não têm uma força coercitiva que chegue a sufocar o livre exame. Elas são muito mais feitas para nós e, em certo sentido, são feitas por nós, o que nos torna mais livres diante delas: Um ideal não é mais elevado por ser mais transcendente, mas porque nos prepara perspectivas mais vastas. Portanto, não importa que ele paire 167.  168.  169. 

Ibid., p.406-7. Ibid., p.406. Ibid., p.430.

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muito acima de nós, tornando-se estranho, mas sim que ele abra à nossa atividade uma carreira bastante longa. O ideal da sociedade moderna é o de que cada indivíduo tenha o lugar que merece, seja recompensado como merece, onde todo mundo concorrerá espontaneamente para o bem de todos e de cada um. É uma obra árdua edificar esta sociedade, apesar de ser um ideal terreno. O único sustentáculo transcendental que ele precisa é a sacralidade da pessoa humana, o resto cabe aos homens e a seus interesses.170

A liberdade dos indivíduos é, portanto, a um só tempo resultado da atuação de forças exteriores e da tomada de consciência e de controle sobre essa coercitividade externa. As regras morais enunciam as condições fundamentais da solidariedade social. Se, como vimos, a moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força os seres humanos a contar com outrem, a reger seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos do seu egoísmo171, a liberdade é um produto desta regulamentação e somente há exercício de liberdade pela existência e consciência de regras que independem da vontade individual, porque são naturalmente coercitivas. Toda liberdade é, portanto, conscientemente regrada segundo as leis naturais da sociedade. Temos, com isso, todos os compromissos de valores postos à mesa: solidariedade, liberdade e justiça. Todos são realizados na e pela sociedade, na e pela coercitividade social, na e pela natureza. Se a regra é coercitiva e imperativa, tal como em Kant, ela o é porque advém de forças naturais, tal como no naturalismo; se ela é uma obra de todos, tal como em Rousseau, não o é pelo arbítrio ou pela convenção, pelo cálculo ou pela deliberação, mas sim pela própria espontaneidade do social, tal como no naturalismo; contudo, se a regra é espontânea, tal como no naturalismo, ela não o é, diferentemente dos economistas utilitaristas, devido às paixões ou desejos dos indivíduos, mas sim a uma coercitividade contra-natureza-individual, tal como em Hobbes; contudo, se há coercitividade das regras, ela não é realizada, diferentemente de Hobbes, por obra de um indivíduo, mas sim pela 170.  171. 

Ibid., p.431 (grifos meus). Ibid., p.420.

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própria coletividade, de forma impessoal, anônima e independente dos indivíduos, tal como em Rousseau e Kant; no entanto, se ela é de uma coercitividade própria ao princípio de justiça, tal como em Rousseau e Kant, ela o é mobilizando a vontade dos indivíduos segundo o princípio do bem, como nos economistas utilitaristas. Portanto, como a noção de força moral, temos que as regras da vida social serão ao mesmo tempo coercitivas e desejadas, justas e boas, em um dualismo que é a sua própria forma de ser. O indivíduo não obedece apenas à regra, mas também a ama e a quer. Temos, portanto, uma conjugação das duas noções de liberdade do liberalismo, a kantiana e a utilitarista. O que somente é possível porque a moral durkheimiana está na e nasce da vida. Temos que elucidar, contudo, a própria noção de vida social. Se Durkheim falou que “é assim”, não sabemos ainda como isso ocorre. Ao saber como a sociedade atua e como ela é o que é, a própria ideia de vida social irá adquirir mais sentido. O que será feito pela análise de um aspecto muito pouco estudado do pensamento durkheimiano: a sua teoria emergentista do social. As Forças, as Associações e as Emergências Vejamos algumas definições explícitas do que Durkheim chama de “sociedade”. Na Lição de Abertura em Bordeaux, ele nos diz que “vemonos perante um enorme sistema de acções e reacções, neste equilíbrio sempre mutável que caracteriza a vida”.172 No final de Formas Elementares (1912), ele faz uma afirmação mais desenvolvida no mesmo sentido: Uma sociedade é o mais poderoso feixe de forças físicas e morais cujo espetáculo a natureza nos oferece. Em nenhuma parte se encontra uma tal riqueza de materiais diversos, levados a semelhante grau de concentração. Não é surpreendente, pois, que dela emane uma vida mais elevada que, reagindo sobre os elementos de que resulta, os eleva a uma forma superior de existência e os transforma. 172. 

[1888a] Curso de Ciência social, p.84.

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Assim, a sociologia parece chamada a abrir um novo caminho à ciência do homem [...] A partir do momento em que se reconhece que acima do indivíduo existe a sociedade e que esta não é um ser nominal e de razão, mas um sistema de forças atuantes, uma nova maneira de explicar o homem se torna possível.173

Nas Regras (1894-5), ele recorre aos precedentes estabelecidos na psicologia, dizendo que ela já havia mostrado que o fator da associação tem uma importância fundamental para a explicação da vida do espírito. Muito embora afirme que os fatos sociais são sui generis, ele considera que a sua constituição possui analogias com o que se produz na consciência individual, pois em ambos existe, por meio do fenômeno da associação, uma transformação progressiva dos elementos dos quais a ordem de fatos é originalmente constituída. As três ordens da cadeia do ser organizado, a saber, os reinos biológico, psicológico e sociológico, teriam em comum o fato da associação. Se analisarmos, portanto, o que ele entende por “associação”, nós poderemos compreender o que significa o conceito de força moral. Caso ele não seja passível de conceituação e de experiência, Durkheim será refém da uma crítica igual à que ele dirigia aos outros: o recurso ao mistério adventício, a um deux ex machina. A noção de vida é entendida como idêntica à de associação. Ela tem, com isso, duas funções na argumentação: primeiramente, permite estabelecer uma relação entre o todo e as partes; em segundo lugar, permite estabelecer o atributo de exterioridade dos fatos sociais. Comecemos pela questão da relação entre as partes e o todo e os fenômenos de emergência resultantes das associações. Durkheim constrói a noção de vida de modo a afastar a explicação dos fatos sociais a partir das leis psicológicas. Ele busca mostrar o surgimento de novos sistemas de fatos a partir da associação entre fatos mais simples ocorrendo fenômenos de emergência.174 173.  [1912a] As Formas Elementares, p.497-8. 174.  Sobre os desenvolvimentos teóricos contemporâneos sobre o conceito de emergência e suas implicações para os debates em sociologia contemporânea (como em Bhaskar e Archer), ver: SAWYER, R. Keith. Emergence in Sociology: Contemporary Philosophy of Mind and Some Implications for Sociological Theory. AJS Volume 107 Number 3 (November 2001): 551–85.

175

Recorrendo à analogia, ele diz que os fenômenos inorgânicos estão para os fenômenos vitais assim como os fenômenos psíquicos estão para os fenômenos sociais.175 Por causa disso, os segundos termos do foro e do tema (B e D) não poderiam derivar analiticamente dos primeiros (A e C). Ou seja, a célula viva é composta materialmente da associação da matéria bruta, mas isso não implica que a vida derive das propriedades da matéria, pois o que caracteriza a vida é o surgimento de algo novo advindo da associação em que o todo é mais do que a soma das partes. A associação é, portanto, um fenômeno fecundo e criador. Ela não se caracteriza por meras relações exteriores dos fatos adquiridos e das propriedades constituídas. As diferenças entre os seres vivos são diferenças entre associações, organizações. O mesmo vale para a sociedade. Deve-se aceitar que as consciências associadas fazem gerar uma individualidade psíquica de um novo tipo. Ele fortalece ainda mais o argumento quando diz que a refutação do tema implicaria igualmente na do foro, o que seria inaceitável, pois o conhecimento biológico, tomado enquanto precedente, já havia adquirido estatuto científico. Se não houvesse na sociedade nada mais do que indivíduos, dever-se-ia admitir também que nada mais há na natureza viva do que natureza bruta; afinal, da mesma forma que a célula é constituída por átomos que não vivem mas que são os seus únicos elementos constitutivos, da mesma forma os indivíduos são as únicas forças atuantes da sociedade. O argumento ganha mais vigor quando ele apresenta a única alternativa supostamente viável a sua, que seria aquela de Gabriel Tarde.176 A única forma de negar o surgimento de um ser sui generis a partir da interação entre os elementos seria admitir duas sentenças: primeiro, que o todo é qualitativamente idêntico à soma de suas partes; segundo, que o efeito é redutível ao somatório das causas que o engendraram. Em relação à primeira sentença, ele diz que ela somente seria possível com dois postulados: a identidade entre leis do elemento e leis do composto, ou seja, da consciência individual 175.  176. 

[1898b] Représentations individuelles et collectives, p.1-2. [1897a] O Suicídio, Livro III, cap.I.

176

e da reunião de consciências; a inexistência de algo social que não esteja no individual. Para refutar o primeiro postulado, ele recorre ao precedente da psicologia, dizendo que ela já provara que a vida psíquica não é acessível imediatamente, como se fosse sem mistérios, ao contrário, ela tem profundezas que o sentido íntimo não penetra e que só podem ser atingidos aos poucos por processos experimentais indiretos e complexos. Para refutar o segundo postulado, ele recorre aos fatos, argumentando que, enquanto alguns, tal como Tarde, consideram que a vida social resulta da expansão do interior ao exterior do indivíduo, outros têm um sentimento exatamente oposto de que há uma força antagônica que limita o indivíduo e contra a qual ele luta. Quanto à segunda sentença, ele diz que implicaria negar toda e qualquer mudança (ou torná-la misteriosa). Portanto, presume-se que aqueles que reconhecem a existência da mudança não poderiam aceitar esta sentença sem cair em contradição. A mudança e a novidade surgem das associações entre forças das quais derivam resultantes. Portanto, ainda que ele pense numa natureza contida apenas de forças que fluem e refluem, elas associam-se fazendo surgir novidades. Dito isso, passemos para o segundo momento da argumentação: é a partir da concepção de vida social que podemos compreender a concepção de fato social como exterior e coercitivo, tal como uma “coisa”. As Regras do Método Sociológico: O que “Fato Social como coisa” quer dizer? Discorramos sobre o segundo problema, que é o da exterioridade dos fatos sociais. Ele concede que, de fato, não há como haver outro substrato para a vida social do que a individual.177 No entanto, recorre novamente à analogia para formular o argumento: assim como as características da célula viva não estão presentes nos elementos e lhes são exteriores, assim como a vida é una e só pode ter por sede a substância viva na sua totalidade estando no todo e não nas partes, pois é o todo que se nutre, se reproduz e vive, assim também o será 177. 

[1901c] Les Règles, p.XV-XVII.

177

para a vida social. Considera mesmo que esse seria um princípio que se pode repetir para todas as sínteses possíveis incluindo algumas da matéria inorgânica, tratando-se, portanto, nós de uma lei da natureza que valeria para todos os reinos e justificaria o caráter sui generis da sociedade como exterior, coercitiva e independente. É assim que se fundamentam as regras do método sociológico. A regra de estudar “os fatos sociais tais como coisas” não é apenas metodológica, mas uma atribuição ontológica. Neste sentido, o conceito de coisa deve ser bem compreendido. Coisa não se identifica à “matéria”, o que faria ser impossível pensar em uma realidade social imaterial. Coisa é entendida, por ele, como força; e, inclusive, as próprias ciências da matéria (físico-químicas) são, no exato termo, ciências das forças. As características dos fatos sociais – independência, exterioridade, coercitividade, generalidade – são características de forças, e não da matéria. Uma prova disso está na afirmação do autor: “Uma coisa é uma força que não pode ser engendrada senão por uma outra força”. 178 A causa é a força antes que ela tenha manifestado o poder que está nela; efeito é o mesmo poder, mas atualizado.179 Causa e efeito são, portanto, os dois momentos de uma força. O princípio de causalidade consiste em um julgamento que enuncia duas coisas: a) toda força se desenvolve de uma maneira definida (isto é, tem um sentido determinado); e b) o estado em que ela se acha a cada momento de seu vir a ser (causa) predetermina o estado consecutivo (efeito). Assim, o julgamento causal é a afirmação de que entre estes dois momentos de toda a força há um laço necessário e contínuo. É neste sentido que deve ser entendida a regra de explicação dos fatos sociais, pela qual uma causa determinante de um fato social deve ser buscada entre fatos sociais antecedentes e a função de um fato social deve ser sempre investigada na relação com algum fim social.180 178.  179.  180. 

Ibid., p.142. [1912a] As Formas Elementares, p.519; 525. [1901c] Les Règles, p.109.

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Equilíbrios Instáveis e a Naturalização da Solidariedade As regras somente são possíveis porque a sociologia durkheimiana se fundamenta em uma visão de um mundo que é formado por um sistema de ações e reações entre forças atuantes, que se expandem e se contraem, se concentram e se dispersam, realizando equilíbrios sempre mutáveis, que são vida. Nas Formas Elementares, ele diz explicitamente: Quando o Iroquês diz que a vida da natureza inteira é o produto dos conflitos que se estabelecem entre os orenda, desigualmente intensos, dos diferentes seres, ele não faz senão exprimir em sua linguagem esta ideia moderna que o mundo é um sistema de forças que se limitam, se contêm e se fazem o equilíbrio.181

O elemento primordial do mundo é a força ou energia, sendo as duas denominações encontradas ao longo de sua obra. Forças que se limitam, contêm-se mutuamente e se fazem equilíbrio conquistando nesta dinâmica uma harmonia específica. Existe, de fato, a formação de interdependências e estabilidades nas relações de força com a constituição de uma solidariedade natural. Nesta visão naturalista de mundo, temos, portanto, uma naturalização da solidariedade. Tal ideia de força tem, implícita em si, a outra face da moeda, que é o reconhecimento do caráter incontornável do conflito entre forças de variáveis intensidades, quantidades e qualidades. Durkheim chega a reconhecer tal dimensão do conflito, mas infelizmente nem o enfatiza, nem o analisa. Mas isso não é tudo. Ele trata de forças morais ou sociais, e não de forças físicas. O que elas serão? Haverá uma dualidade de forças na natureza, que seria composta de forças físicas e de forças morais? Ele oscila a respeito disso. Nas Formas Elementares, no capítulo que trata da noção de força em geral182, ele reforça o caráter dual da força 181.  182. 

[1912a] As Formas Elementares, p.291. Ibid., p.319.

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moral, que é ao mesmo tempo física e humana, material e moral. No entanto, em nota de rodapé, ele afirma que a base da noção está bem estabelecida, porque a ciência moderna tenderia a admitir crescentemente que a dualidade do homem e da natureza não excluiria sua unidade e, portanto, que as forças físicas e morais, ainda que distintas, seriam parentes próximas. De qualquer forma, independente de que a força moral seja da mesma natureza ou não da força física, a própria noção de força tem que ser elucidada. Será que o recurso à ideia de força moral foi apenas um recurso a precedente tomado do modelo das ciências naturais para dar legitimidade às suas pretensões? Já que a experiência é o critério principal de verificação do argumento sociológico, se a noção não for passível de experiência, o edifício se desmoronará no vazio, pois a força social seria apenas um deus abscôndito. Para que decifremos a noção, vamos seguir as analogias com a noção biológica de vida. Elas proporcionam as categorias científicas de pensamento: meio interno (milieu), causa, função e forma. Após isso, veremos as analogias que ele fará com a vida psíquica, o que lhe proporciona as categorias de representação e consciência. É pela articulação destes conceitos “físico-biológicos” – meio interno, causalidade (retroativa), função, forma, densidade dinâmica, meio social, substrato social – com aqueles construídos em diálogo com a “psicologia” – representações individuais e coletivas, correntes sociais, simbolismo, associação, etc. –, que Durkheim comporá sua concepção emergentista da sociedade.183 A Vida Social Auto-organizadora: Meio, Causa, Função e Forma A noção de força social permite compreender a sociedade sob o conceito de um sistema de causas eficientes. As noções de causa e de função podem ser tratadas, desta forma, como categorias explicativas dos fatos sociais, ao passo que a noção de forma, inspirada nas taxionomias zoológicas, propicia classificações em espécies e tipos sociais. 183.  SAWYER, Keith R. Durkheim’s Dilemma: Toward a Sociology of Emergence. Sociological Theory, v. 20, n. 2, p. 227-247, 2002, p.232.

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Durkheim considera que é necessário investigar separadamente a causa eficiente, que produz o fato social, da função que ele preenche.184 A palavra função é utilizada diferenciando-a das noções de fim e de objetivo. Isso porque ele quer afastar a explicação conforme a utilidade de modo que os fenômenos sociais não sejam vistos como existindo em decorrência dos resultados úteis produzidos. Com isso, ele desconsidera as questões de intencionalidade. É preciso, distintamente, determinar a correspondência entre um determinado fato e as necessidades gerais do organismo social e, em seguida, em que consiste essa correspondência. Aplicada à explicação dos fatos sociais, a função é um elemento necessário da explicação, mas ela somente pode vir depois de estabelecida a causalidade eficiente. Mesmo que determinado fato tenha se tornado útil após ter vindo a existir, a função deve ser explicada apenas a partir da causalidade eficiente. Contudo, se a utilidade do fato não é o que o faz vir a ser, é preciso, por outro lado, que ele seja útil para poder se manter, pois um fato vital que somente custasse sem nada retribuir teria um caráter parasitário insustentável tornando a vida social impossível. A inteligibilidade dos fatos sociais provém, portanto, da possibilidade de mostrar como as matérias da vida social concorrem para colocar a sociedade em harmonia com o exterior e consigo mesma. Ele reforça, neste sentido, a definição de vida de Comte como uma correspondência entre o meio interno e o meio externo. Ainda que seja uma definição aproximada, ele considera que é uma verdade geral que serve para explicar um fato de ordem vital ao mostrar não apenas a causa da qual um fenômeno vital depende, mas também a parte que cabe a ele no estabelecimento da “harmonia geral”. Mas não devemos considerar que todo o fato social tem utilidade para a vida simplesmente por existir, pois existem diferentes regras e instituições que não servem a nada, mas que compõem a vida social. As coisas existem simplesmente porque existem, embora, após terem existido, possam passar a integrar a vida social de forma a não 184. 

[1901c] Les Règles, p.95.

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poderem deixar de existir sem que desequilibrem a vida interna ou a sua relação com o meio. Há, portanto, uma considerável contingência no surgimento das regras, formas e fatos sociais, pois eles apenas assumem ou não uma função ou um efeito de equilíbrio ou desequilíbrio a posteriori. Ao discorrer sobre a diminuição dos provérbios correspondente ao enfraquecimento da consciência coletiva com o avanço da divisão do trabalho, Durkheim explicita uma lei da vida que está na base da sociologia: “toda função que dura faz para si um órgão à sua imagem”; lei que pode ser enunciada na negativa: “o órgão se atrofia porque a função não mais se exerce”.185 Portanto, a causalidade é entendida, por ele, a partir de uma concepção vitalista sem princípio vital. Neste sentido, ele pode ser visto como um inovador, pois postula a existência de um laço de solidariedade e reciprocidade que une causa e efeito, de forma que o efeito não possa existir sem a causa, e reciprocamente. Em uma espécie de cibernética avant la lettre, ele estabelece uma causalidade recursiva que permite explicar os fenômenos sociais sem postular intencionalidade ou utilidade. É assim que tenta resolver o problema da causa final, que foi comumente tratado, aristotelicamente, pela postulação de um princípio vital ou uma enteléquia. A reciprocidade da causa e do efeito pode fornecer um meio de reconciliar o mecanicismo com o finalismo, possibilitando conceber a autonomia da vida e a perseveração do ser sem recorrer a um princípio metafísico. Neste sentido, ele antecipa não apenas a cibernética, mas também as teorias dos sistemas e da complexidade, como diz, oportunamente, Sawyer: “Durkheim esboçou, avant la lettre, uma teoria dos sistemas complexos, que ele acreditou aplicada não apenas ao nível social, mas também aos níveis químico, biológico e mental. Somente neste sentido as suas muitas analogias com estas outras ciências podem ser substantivamente compreendidas” (SAWYER, 2002, p.235). Durkheim mobiliza, a este respeito, uma noção fundamental: a de meio interno (milieu interne).186 Ele desenvolve a noção de vida so185.  186. 

[1902b] Da Divisão, p. 152-4. [1901c] Les Règles, p. 112-9.

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cial a partir de uma analogia com o organismo vivo: da mesma forma que o conjunto dos elementos anatômicos, com a maneira pela qual eles são dispostos no espaço, constitui o meio interno dos organismos, da mesma forma o conjunto determinado formado pela reunião de todos os tipos de elementos constitui o meio interno da sociedade. Os elementos do meio social são de duas espécies: as coisas e as pessoas. As coisas são tanto os objetos materiais que estão incorporados à sociedade, quanto os produtos da atividade social anterior. A impulsão motora provém das pessoas, que são as forças vivas da sociedade, sendo, para ele, seus únicos fatores ativos; portanto, as coisas são apenas as matérias às quais tais forças se aplicam.187 A tarefa do sociólogo deve ser, portanto, de descobrir as diferentes propriedades do meio social que são suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos. Como ele já havia estabelecido em Da Divisão, existe pelo menos duas séries de características próprias ao meio social: por um lado, temos o volume da sociedade, que é o número das unidades sociais; de outro, temos a densidade dinâmica, que é o grau de concentração da massa social, que se divide, por sua vez, em densidade material e moral. Além destas propriedades gerais, ele considera que existem ainda meios especiais, tais como a família, as corporações profissionais, etc. Tal concepção de meio social interno é a condição de possibilidade de existência de relações de causalidade social.188 Afinal, somente há vida com a diferenciação entre o organismo vivo e o meio, ou melhor, entre meio interno e meio externo. Por mais que a noção de meio externo possibilite estabelecer relações de causalidade, ela não é determinante, pois somente se exerce pelo intermédio do meio interno. Defendendo-se da crítica de que o método sociológico buscaria as fontes da vida fora da vida, ele a inverte, afirmando que, ao se buscar as causas internas dos fenômenos sociais, ele estaria fazendo o mesmo que a biologia e a psicologia: a saber, ele busca o caráter espontâneo de todo ser vivo na fonte de sua atividade, a partir de dentro, e não de fora, 187.  188. 

Ibid., p.112. Ibid., p.115.

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do mais e não do menos.189 Desta forma, é a posição de um atomismo psicológico, que busca explicar a sociedade a partir dos indivíduos, que “mataria” tudo o que há de vivo na sociedade, tal como ocorre quando tentamos, de modo reducionista, explicar a vida psíquica a partir da vida orgânica, ou a vida orgânica a partir da matéria inorgânica. 2.4. Das Forças Morais às Formas Simbólicas Discorremos até agora sobre a noção biológica de vida. Ainda que seja um ser vivo, a sociedade não é apenas orgânica, mas também psíquica; não possui apenas um corpo, mas também uma alma, não apenas funções vitais, mas também representações. Isso faz com que se pense a vida como constituída de uma oposição entre o interior e o exterior; e é no interior que se encontra o sentido de sua atividade, o seu ideal. Para que façamos a passagem da noção biológica de vida à noção de vida psíquica, vejamos como as forças vivas da sociedade produzem as mais diversas formas simbólicas. No Suicídio (1897), Durkheim afirma que a força coletiva é o que dá unidade ao feixe formado pela multidão dos casos particulares que estão espalhados no território; é o enfeixamento destas forças que dá origem às formas sociais.190 Mas há dois tipos de formas: as formas fixas, que são forças ligadas; e as formas difusas, que são forças em estado livre. Comecemos pelas formas fixas. Para bem entender como que a sociedade se constitui, é necessário que se assuma que ela é composta não somente de pessoas, mas também de coisas; que ela compreende, assim, diversas materialidades que desempenham um papel essencial na vida comum: “a vida social (...) se cristalizou e fixou em suportes materiais”.191 Ela é formada por forças morais que se materializam em diversas formas materiais, a ponto de se tornarem um elemento do mundo exterior, tais como a arquitetura, as vias de transporte e comunicação, as mais diversas tecnologias e técnicas, os monumentos nacionais, etc. 189.  190.  191. 

Ibid., p.119. [1897a] O Suicídio, p. 244-5. Ibid.

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Essas diversas formas mais ou menos fixas, herdadas pela tradição e, portanto, anteriores à nossa existência individual, imprimem um andamento numa direção determinada. As formas materiais das quais os sentimentos e as ideias se revestem não são puros envoltórios, como no caso de meras combinações verbais sem eficácia, elas são realidades atuantes, que possuem eficácia, pois produzem efeitos que não ocorreriam se não existissem. Estando as forças sociais exteriorizadas em materialidades, ela atua sobre nós do exterior e independentemente. Uma prova pode ser vista nos fenômenos de renascimentos culturais quando, de repente, se desprende uma vida que estava depositada, em forma latente, nos diversos monumentos, de tal modo que é capaz de mudar a orientação intelectual e moral de povos que nem mesmo contribuíram para elaborá-la. Estas obras de cultura dependem, com certeza, das consciências que as revivem, mas essas, por sua vez, não teriam pensado e sentido da mesma forma se não tivessem sofrido esta influência exterior. Os maiores exemplos destas formas fixas são o direito e a religião, mas temos também a moral, as modas, as instituições políticas, as práticas pedagógicas, etc. Já no Suicídio, assim, a religião é vista como o grande depositório das representações coletivas, como sendo a maneira de pensar própria do ser coletivo e, “em última análise, [como] o sistema de símbolos pelos quais a sociedade toma consciência de si mesma”.192 Da mesma forma que em Da Divisão, ele aproxima religião e direito: tanto as fórmulas definitivas condensadas nos dogmas de fé, quanto os preceitos do direito, são fixações que assumem uma forma consagrada. Se eles não fossem vividos pelas consciências (na forma de mito) e postos em prática (na forma de rito), eles seriam letra morta, por melhor concebidas que possam ser; no entanto, eles têm um modo de ação próprio, que depende inclusive da forma em que estão sedimentados (por exemplo, se escritas ou não escritas). O Estado é concebido também como uma forma simbólica que emerge da vida.193 Uma vez constituído, o poder governamental é 192.  193. 

Ibid. [1902b] Da Divisão, p. 53-56.

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uma força que tem poder suficiente de ligar espontaneamente uma sanção a certas regras de conduta, criando ou mudando a gravidade de crimes. O poder de reação característico do Estado deve ser da mesma natureza daquele presente, de forma difusa, na sociedade, isso porque ele é uma concentração da força moral que está difusa na sociedade. Onde quer que um poder diretor se estabeleça, a sua função primeira e principal é a de fazer respeitar crenças, tradições e práticas coletivas, defendendo a consciência comum contra todos os inimigos de dentro como de fora. Ele torna-se, desta forma, um símbolo, ou seja, a expressão viva da consciência comum aos olhos de todos. É por esta razão que a vida que está na sociedade se comunica ao Estado, da mesma forma que as afinidades de ideias se comunicam às palavras que as representam. Com isso, ele adquire um caráter ímpar que é o da supremacia, pois o Estado não é apenas uma função social, mais sim o tipo social encarnado. Fazendo referência implícita a uma das leis de associação das ideias, ele diz que ocorre uma participação da autoridade do Estado na autoridade que a consciência social exerce sobre as consciências, adquirindo por aí a eficácia simbólica necessária para fazer o direito. Há uma condição para que esta autoridade venha a existir, a saber, o Estado não pode se libertar da fonte de que emana e da qual ele deve continuar a se alimentar. Atendida esta condição, ele tornase um fator autônomo da vida social, que é capaz de produzir espontaneamente movimentos próprios, sem necessitar que uma impulsão externa lhe determine. Mas, uma vez que o Estado é tão somente a derivação da força que é imanente à consciência comum, ele tem as mesmas propriedades e reage da mesma maneira que ela, com a diferença de que, enquanto essa reage de forma difusa e não totalmente em uníssono, ele atua centrada e unificadamente. É por isso que o Estado repeliria toda força antagonista em relação à alma difusa da sociedade ainda que essa não o sinta ou não o sinta de forma vívida. É dela que ele recebe a energia. Neste sentido, Durkheim faz uma analogia do Estado com o cérebro, dizendo que assim como o cérebro não cria a unidade do organismo, mas a exprime e a coroa, assim também o Estado é a ex-

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pressão (simbólica) do consenso das partes, da solidariedade interna da sociedade.194 Ele ao mesmo tempo traduz em outra linguagem o que é a solidariedade social e a consagra. Uma vez que a uniformidade não poderia ser mantida à força e a despeito da natureza das coisas, ele nega a pretensão de Comte de proporcionar a unidade social a partir de um Estado centralizado e autoritário. A natureza das sociedades modernas é de uma diversidade funcional e moral e, por isso, o órgão dirigente não saberia e não poderia controlar todos os acontecimentos, mesmo que aumentasse seu volume e esfera de ação, porque, sob a vida geral e superficial abarcável pelo Estado, há toda uma vida intestina, um mundo de órgãos que funcionam sem que ele intervenha e tome consciência disso, e que são subtraídos da ação. Portanto, o governo não pode regular todas as condições da vida social, pois os problemas práticos levam a uma multidão de detalhes e circunstâncias que o espírito de conjunto do Estado não saberia dar conta. A vida social não é constituída, contudo, apenas de formas mais ou menos fixas exteriorizadas e materializadas; há também formas difusas, forças livres. A esta forma de vida fluída, dinâmica, ele dá o nome de “correntes de vida”: É incontestável que nem toda consciência social chega a se exteriorizar e materializar desse modo. Nem toda estética nacional se acha nas obras que ela inspira; nem toda moral se formula em preceitos definidos. A maior parte permanece difusa. Há toda uma vida coletiva em permanente liberdade: todas as espécies de correntes vão, vêm, circulam em todas as direções, cruzam-se e se misturam de mil maneiras diferentes e, precisamente porque estão em estado de perpétua mobilidade, não chegam a fixar-se numa forma objetiva. Hoje é uma vaga de tristeza e depressão que se abate sobre a sociedade; amanhã será um alento de radiosa confiança aliviando os corações. Durante certo tempo, todo o grupo é arrastado ao individualismo; segue-se uma outra época na qual preponderam as aspirações sociais e filan194. 

Ibid., p. 375-7.

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trópicas. Ontem, tudo era cosmopolitismo, hoje é o patriotismo que prevalece. E todos esses movimentos, todos esses fluxos e refluxos ocorrem sem que os preceitos fundamentais do direito e da moral, imobilizados por suas formas hieráticas, sofram a mínima alteração. De resto, esses preceitos nada mais fazem senão exprimir toda uma vida subjacente da qual fazem parte; resultam dela, não a suprimem. Na base de todas essas máximas, há sentimentos concretos e vivos, que essas fórmulas resumem, mas dos quais não passam de envoltório superficial. Elas não despertariam eco algum se não correspondessem a emoções e a impressões concretas, esparsas na sociedade. Se, pois, lhes atribuímos uma realidade, nem por isso imaginamos transformá-las na essência da realidade moral. Porque seria tomar o signo pela coisa significada. Um signo é certamente alguma coisa, não é uma espécie de epifenômeno suplementar. É conhecido hoje em dia o papel que ele desempenha no desenvolvimento intelectual. Mas afinal não passa de um signo. 195

Esta esplêndida passagem do Suicídio tem implícita, quase que secretamente, uma regra do método que atravessa toda a obra durkheimiana e que, se bem escutada, revela por detrás de seu suposto positivismo uma hermenêutica bem cuidadosa: jamais tomar o espírito pela letra. A Regra Secreta de Método: Os Sintomas e a Letra pelo Espírito Todas essas formas e atividades simbólicas são manifestações sensíveis da alma mais profunda da sociedade: elas são a letra de seu espírito. Todos estes símbolos devem ser interpretados, porque eles são apenas formas manifestas que veiculam significações latentes. Assim, uma regra moral, jurídica ou religiosa não pode ser legitimada pela forma, mas sim pelo fundo, pelo espírito. Confundir o espírito com a letra seria destituí-lo de sentido. A vida se expressa nas mais diversas formas materiais, sendo elas o único meio de acesso ao interior dos fatos sociais. Daí o 195. 

[1897a] O Suicídio, p. 251.

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sentido da regra de método: estudar os fatos sociais por seus signos exteriores e sensíveis. Ao invés de substituir o interno pelo externo, a regra que ordena que se parta do externo decorre do fato de ele ser o único imediatamente dado para que se atinja o interno. Isso não quer dizer que se reduza este àquele. Seria apenas um método mais complicado de acesso ao interno, mas o único disponível, visto que o interno não seria acessível diretamente por meio de um método puramente introspectivo.196 O contrato é o símbolo da troca e do ideal de justiça das sociedades secularizadas. As vias de transporte e de comunicação e toda a morfologia social são símbolos de sua densidade moral e de toda a atividade social, sua fisiologia. Os suicídios egoístas são símbolos de uma crise moral de uma alma social que agoniza ao ter seus laços dissolvidos, lançando os homens em correntes de depressão. Os suicídios anômicos são símbolos de uma vida desarmônica que fez com que o todo e suas partes estivessem num movimento conflituoso e doloroso para todos. Enfim, a vida se expressa nas mais diversas formas materiais, sendo elas o único meio de acesso ao interior dos fatos sociais. Daí o sentido da regra: estudar os fatos sociais por seus signos exteriores e sensíveis. Eis, então, como a noção de vida, com seu enfeixamento de forças, conduz-nos às formas simbólicas – máximas, provérbios, sistemas teóricos, direito, religião, moral, modas, técnicas, Estado, etc. – e fluxos de forças. Percebe-se desde já que há laços significativos entre as noções de força moral e a de forma simbólica. É de se estranhar, contudo, como Durkheim passa das categorias de vida próprias à biologia para as noções de sentimento e de ideia, próprias à psicologia. É difícil entender como ele se autoriza a passar de uma analogia à outra. Ela pode ser esclarecida pela noção de vida psíquica, que é a forma de vida mais próxima da vida social no império da natureza durkheimiana. E de forma irônica, a sociologia tem de beber das fontes que nega, que são aquelas das leis da psicologia presentes na ideia de representação. 196. 

Ibid., p. 335, n.1.

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Em Busca das Leis da Ideação Coletiva Durkheim apresenta, em vários lugares, as representações como o principal elemento da vida social. De forma felizmente explícita, ele nos diz, em Da Divisão, que: “a consciência, como o organismo, é um sistema de funções que se fazem equilíbrio”.197 Isso quer dizer que as próprias noções de forma, função e causalidade se aplicam também à vida psíquica, uma vez que todas as formas de vida têm em comum o fator da associação. Sendo assim, para que elucidemos a noção de força moral, na sua vinculação com a de vida, é necessário que analisemos a concepção de vida psíquica. Afinal, é nela que encontramos como principal elemento a noção de representação. Como se sabe, ele distingue as representações coletivas das representações individuais, considerando que a primeira cabe à psicologia individual, ao passo que a segunda cabe à psicologia social ou coletiva, que é uma parte integrante da sociologia. Qual a diferença entre os dois modos de representação? No prefácio das Regras Elementares, Durkheim discorre de modo esclarecedor sobre as semelhanças e diferenças entre ambos. Ele abre a possibilidade, inclusive, de que haja elementos em comum entre as representações individuais e as coletivas. Para estudar tais semelhanças seria perfeitamente possível criar uma nova ciência, que investigaria algumas leis abstratas comuns às duas formas de representação. Poder-se-ia, neste caso, ver as mais distintas formas de representação coletiva, tais como os mitos, as lendas populares, as concepções religiosas, etc., como obedecendo às mesmas leis da associação das ideias descobertas pela psicologia (as leis de contiguidade, de semelhança e contraste e de antagonismos lógicos). Seria possível, desta forma, descobrir a existência das mesmas leis abstratas em todos os reinos “ideacionais”, independentemente do “sujeito” que representa e do “objeto” que é representado. Para tanto, Durkheim indica a possibilidade de construção de uma psicologia totalmente formal, como sendo um terreno comum à psicologia e à sociologia, algo que seria da competência de uma 197. 

[1902b] Da Divisão, p. 288-9.

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filosofia geral e de uma lógica abstrata.198 Contudo, Durkheim recusa, em seu tempo, que tal empreendimento fosse possível diante dos atuais avanços das duas ciências. Isso porque não haveria elementos suficientes, para se sustentar uma síntese teórica, bem fundamentada, das semelhanças entre as ideações individuais e as coletivas. Além disso, ele defende que cada categoria de estados mentais possui as suas próprias leis, assim como cada esfera da realidade. Ora, se a lógica das imagens, que trabalham sobre as sensações, não se reduz à lógica desta última, se a lógica dos conceitos, que trabalham sobre as imagens, não se reduz à lógica do imaginário, porque, afinal, a lógica das representações coletivas haveria de se reduzir à das representações individuais? Recusando-se, então, a seguir esse caminho, ele propõe uma demarcação das diferenças entre os dois modos de ideação e defende que cada qual seja investigado separadamente. As investigações sobre as ideações partem de um fato comum: a existência de sistemas simbólicos. Isso porque os estados de consciência, individuais ou coletivos, representam a si mesmos e ao mundo por meio de símbolos.199 Toda representação se realiza pelo médium de símbolos. Durkheim reconhece, efetivamente, que as representações coletivas são compostas pela reunião de representações individuais, sendo a matéria da vida social composta, principalmente, de estados de consciência individuais. Mas, tal como já indicamos acima, as representações coletivas têm origem no fenômeno de emergência decorrente da associação e combinação dos elementos individuais. Com a associação e a combinação de representações individuais vivendo coletivamente, emerge então uma realidade sui generis que traduzirá, a partir de então, o modo pelo qual determinado grupo representa a si mesmo e as suas relações com o mundo. Elas resultam de sínteses 198.  [1901c] Les Règles, p. XVIII-XIX. É interessante percebermos que Lévi-Strauss seguiu, de certa forma, este caminho, propondo, a partir de Mauss, uma psicologia “não-intelectualista” que investigue as leis estruturas inconscientes do espírito humano, rompendo com um “representacionalismo” presente na tradição filosófica ocidental, incluindo a sociologia durkheimiana, que investigariam o simbolismo a partir de uma filosofia da consciência. 199.  [1901c] Les Règles, p.xv-xix.

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que têm lugar fora de nós e das quais temos apenas percepções confusas. As representações agem conforme os modos de combinações e uma lógica do todo que é maior do que a da soma das partes. Mas qual será a lógica emergente? Aquela do próprio grupo que a produz. Assumindo uma posição realista e “representacionista”, Durkheim estabelece, portanto, uma correspondência entre os símbolos pelos quais uma representação coletiva se realiza e a identidade do grupo que a produz. Os símbolos coletivos expressam a constituição morfológica e fisiológica da coletividade que os produz. As investigações sociológicas em torno das representações coletivas permitiriam então descobrir uma esfera sui generis de ideações coletivas. Se, de um lado, as leis da associação das ideias são muito poucas, vagas e gerais, de outro, as leis da ideação coletiva são ainda completamente ignoradas. É preciso buscar, segundo ele, a partir da comparação das distintas formas de representações coletiva – mitos, lendas, tradições populares, línguas, etc. –, quais são os modos pelos quais as representações sociais se atraem e repelem, se fundem e se distinguem.200 Ele traz, como indício de que há leis da mentalidade social, o exemplo das concepções religiosas, que se misturam, separam-se e transformam-se mutuamente, dando nascimento a compostos contraditórios que contrastam com os produtos originários do pensamento privado. É assim que ele defende uma busca das leis de ideação coletiva, para a qual ele estabelece, como regra de método, que “o pensamento coletivo inteiro, na sua forma como na sua matéria, deve ser estudado em si mesmo e por si mesmo, com o sentimento do que ele tem de especial”.201 200.  [1901c] Les Règles, p.xvii. 201.  ibid., p.XIX, grifo meu. Esta citação é extremamente parecida com a famosa frase no final do Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure. Enquanto Durkheim afirma que sociologia tem por único e verdadeiro objeto a sociedade considerada em si e por si mesma, Saussure diz, com todas as letras, que “a linguística tem por único objeto e objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot, 1969 [1915], p.271). Na verdade, existe uma querela, a partir do conhecimento dos manuscritos do linguista, se tal frase era dele ou se foi posta pelos organizadores do volume, Charles Bally e Albert Sechehaye. De todo modo, não apenas não se duvida muito que Saussure conhecia a sociologia de Durkheim, como também alguns, como Doroszewski, defendem a tese de uma estreita influência durkheimiana

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Não adianta dizer, contudo, que haverá uma síntese entre as consciências que dará origem a uma consciência coletiva, pois é necessário, além disso, mostrar como isso é possível e como ocorre. É necessário mostrar, discorrendo sobre aspectos da natureza da vida psíquica, como as consciências individuais possuem uma natureza tal que permita a realização da síntese. Somente com a posse de tais argumentos o sociólogo poderá convincentemente mostrar como surge e persevera a vida social. 3. A Antropologia do Humano Sentimental e a Formação Simbólica do Social Falamos até aqui da noção de vida social a partir dos raciocínios analógicos retirados, primeiramente, da biologia, e, em segundo lugar, da psicologia. Com elas, alguns conceitos centrais à ontologia durkheimiana foram esclarecidos – o de associação, o de emergência, as noções de meio, causa, função e forma e, principalmente, a noção de força moral ou social e a constituição do social por formas simbólicas a serem interpretadas –, a partir dos quais, de um lado, foram esclarecidas algumas regras de método, e, de outro, foram assumidos alguns posicionamentos sobre a esfera da razão prática, com os conceitos de moralidade e de autonomia, bem como com uma concepção de história como “processo civilizador” pela via da complexificação dos laços de solidariedade e das formas de individuação. No fim do percurso até agora percorrido chegamos, enfim, à noção de representações coletivas e à exigência de uma psicologia social dedicada a investigá-las em si e por si mesmas. Com tais raciocínios, as várias teses adquiriram sentido, mas os fenômenos de emergência decorrentes da associação das forças mona linguística saussuriana (DOROSZEWSKI, W. Quelques remarques sur les rapports de la sociologie et de la linguistique: E. Durkheim et F. de Saussure, in: E. CASSIRER et al. Essais sur le langage. Paris: Éditions de Minuit, 1969, p.97-109). Para nos certificarmos disso, basta ver a definição saussuriana de língua como “fato social” e como “parte social da linguagem, exteriorao indivíduo, que, por si só, não pode nem cria-la nem modificá-la” (ibid., p.31; ver capítulo III do Curso para definição de língua).

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rais ainda são opacos, pois ainda não temos como conceber a atuação das forças sobre e através das consciências individuais. Portanto, já sabemos que, para Durkheim, o indivíduo depende da vida social para a conquista dos valores que lhes são caros; e, também, que a atividade social dá origem às mais variadas formas simbólicas. Contudo, ainda não temos muitas determinações sobre a natureza do indivíduo e do psiquismo individual para que as teses se tornem inteligíveis. Sendo assim, exponhamos quais são, para ele, os atributos da natureza humana. Ainda que Durkheim considere que a sociedade não deriva analiticamente dela, ainda assim ele deve ter elementos que expliquem como a síntese é possível. Em seguida, vejamos como ela se realiza em meio a um processo de formação simbólica do social. 3.1. O Humano Apaixonado e a Representação Emotiva Encontramos as noções psicológicas, de forma bem elaborada, nas lições de filosofia ministradas quando o jovem Durkheim era professor do Lycée de Sens (1883-4).202 Ele mostra aí que não apenas dominava o debate filosófico da época, marcadamente influenciado, como mostrou Amaro no cap.I, pelas escolas espiritualista e eclética, em torno da sensibilidade, da percepção, da consciência, da razão, da inteligência, da atividade e da gênese do conhecimento, como também que já conhecia as investigações de psicologia científica e experimental presentes nos trabalhos de psicofísica de E. H. Fechner e G. T. Weber e de psicofisiologia de Wilhelm Wundt. Nós reencontraremos algumas dessas noções dez anos mais tarde em Da Divisão (1893), quando ele discorre sobre a natureza do crime apresentando uma concepção do que podemos chamar de “representação emotiva”. Após ter tratado da definição de pena como reação passional de intensidade variável associada às formas de solidariedade por similitude, ele apresenta aí, como já vimos, uma concepção de vida 202.  A descoberta, o conteúdo e a autenticidade dos manuscritos de tais lições já foram apresentados por Amaro no capítulo I. Usarei a primeira publicação das lições que foi feita em inglês ([1884a] Lycée de Sens Course), mas também me basearei no manuscrito original em francês disponível na internet.

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psíquica como sendo um sistema de representações e ações constituído por forças em equilíbrio instável.203 A fim de sustentar uma concepção de representação como esteio do conceito de consciência coletiva, ele se utiliza do psicofisiologista inglês Henri Maudsley e do já mencionado pioneiro da sociologia francesa Alfred Espinas. Muito embora não esteja explicitamente nas referências, sabe-se, também, de uma forte influência do psicólogo Théodule Ribot (1839-1916).204 Todas essas influências vindas da psicologia refletem o contexto intelectual bem resumido por Marcel Fournier: é um momento em que “o saber filosófico ‘oscila’ em direção à psicologia. Os filósofos não estudam mais apenas as ‘formas as mais elevadas’ da atividade humana, a saber, a vontade, a resolução ou o livre arbítrio, mas também suas ‘formas as mais simples, as mais rudimentares’” (op.cit., p.93). Para que vejamos a apropriação durkheimiana do saber psicológico, é importante começar, agora, pela sutileza conceitual das lições do Lycée de Sens.205 Ainda que elas tenham sido feitas antes de sua conversão à sociologia, considero que são esclarecedoras para algumas questões conceituais implícitas na obra posterior. 203.  Para o que se segue, cf.: [1902b] Da Divisão, p.68-74. 204.  Théodule Ribot (1839-1916) é um dos pioneiros da psicologia francesa e ocupante, a partir de 1886, da primeira cátedra de “psicologia experimental e comparada” do Collège de France, que foi criada para ele por Ernest Renan. Quando aluno da Escola Normal, Durkheim leu os livros de Ribot sobre hereditariedade e sobre La Psychologie anglaise contemporaine e La Psychologie allemande contemporaine e, segundo Mauss, ele foi “conquistado”; a tal ponto que foram tais obras que ele recomendou a um jovem Mauss que começava a se interessar por filosofia e sociologia, leitura que levou à decisão do sobrinho de seguir estudos universitários em filosofia (MAUSS, M. Théodule Ribot et les sociologues, in MAUSS, M. Oeuvres, tome 3, p.560; FOURNIER, p.51). Por meio de Ribot foram introduzidas, na França, as psicologias experimentais de Fechner, Weber e Wundt e a obra de Spencer (que ele traduziu em parceria com Espinas). Além disso, foi ele que propôs pela primeira vez a ideia de inconsciente em uma linha crítica, assumida, ao mesmo tempo, a partir da tradição espiritualista e da psicanálise. Durkheim quase certamente frequentou os cursos de Ribot na Sorbonne sobre psicologia experimental, leu com certeza os artigos de Ribot dos anos 1880 sobre as bases afetivas e intelectuais da personalidade e colaborou, mais tarde, por convite do próprio Ribot, com suas seminais resenhas entre 1885 e 1886, que marcaram sua conversão à sociologia, sobre Fouillée, Schaeffle, Gumplowicz, De Greef, Spencer, dentre outros, para a Revue Philosophique de la France et l’étranger (da qual o psicólogo era diretor) (FOURNIER, p.73-5; p.92-3). 205.  Para o que se segue, ver: [1884a] Lycée de Sens Course, p.51 e seguintes.

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Afetos, Inclinações, Emoções e Paixões Trabalhando no registro de uma filosofia bem espiritualista das “faculdades da alma”, Durkheim define “faculdade” como um modo particular da atividade consciente do sujeito, dividindo-as em três classes: sensibilidade, inteligência e atividade. A respeito de tais divisões, ele nega a possibilidade de reduzir todas as faculdades a uma só, tal como tentaram Condillac, Maine de Biran e Spinoza, que, segundo ele, buscaram reduzi-las respectivamente à sensibilidade, à atividade e à inteligência; mas ele recusa igualmente que elas sejam tomadas como seres distintos uns dos outros, tal como o fez Platão. Contrário tanto à redução quanto à personalização das faculdades, ele assume uma posição aristotélica, traduzida em termos kantianos, dizendo que as faculdades: são propriedades, os poderes de um único e mesmo ser, o eu. Elas são apenas as formas distintas que revestem nossa atividade. O eu é uno: ele é o ponto em direção ao qual convergem todas as faculdades. Elas agem sempre concorrentemente. Não se pode encontrar fato psicológico que dependa de uma única dentre elas. Nós somente agimos de acordo com os motivos ditados pela razão ou com móbeis fornecidos pela sensibilidade. Isso prova bem a unidade original destas três faculdades. Nós não vivemos com uma faculdade, mas com a alma inteira [tal como o diz Aristóteles].206

Ele faz importantes distinções analíticas no tocante à sensibilidade, fazendo uma distinção entre os afetos, as inclinações, as emoções e as paixões, no que critica Spinoza por ter confundido as paixões propriamente ditas com as inclinações e as emoções. A sensibilidade é, para Durkheim, uma faculdade afetiva de experimentar prazer e dor. Os fenômenos afetivos (também denominados, tal como em Spinoza, de afecções) são caracterizados pelas (relativas) passividade, necessidade e relatividade.207 206.  207. 

Ibid., p. 56. Ibid., p. 60.

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Antes de analisar a relação entre prazer e dor, é importante apresentar a distinção entre inclinações, emoções e paixões, que é estabelecida a partir da perspectiva que um sujeito estabelece com o objeto agradável ou desagradável.208 As inclinações se distinguem em três grandes classes: as egoístas, as altruístas e as superiores. A inclinação egoísta é a que tem por objeto o próprio sujeito. Ela se distingue em duas: as inclinações de autoconservação (conservatrices), voltadas a manter o ser tal como é, e as aquisitivas (acquerantes), voltadas ao crescimento do ser. As necessidades físicas demandadas pelas inclinações egoístas de autoconservação são caracterizadas por terem por sede um ponto determinado do organismo e por serem periódicas. De outro lado, as inclinações egoístas aquisitivas podem ser tanto físicas quanto intelectuais (como o amor, a glória, etc.), não havendo necessariamente uma localização física e periodicidade temporal.209 Por sua vez, as inclinações altruístas, chamadas também de inclinações simpáticas, têm por objeto não o eu, mas sim nossos semelhantes. Ele as divide em função da maior ou menor semelhança entre o eu e outrem, desde as inclinações domésticas, passando pelas «inclinações sociais» (tais como as da religião e da pátria), até as voltadas à humanidade.210 Por fim, temos as inclinações superiores, que são a tendência do homem em direção aos ideais, tais como o verdadeiro, o belo e o bem. Tais inclinações são insaciáveis, pois infinitas, e impessoais e não concorrentes na sua aquisição, pois o gozo do ideal não priva outrem do mesmo gozo, ao contrário, suscita uma inclinação altruísta de fazer a outrem desfrutar ou conhecer.211 Ao tratar das inclinações altruístas e superiores, ele mostra estar ciente do debate sobre se elas existirão realmente, tal como defendem os kantianos, ou se, tal como os utilitaristas o creem, os únicos fins de nossas inclinações são o ser e o bem estar de nós mesmos. Durkheim assume a primeira posição, ao “constatar que certas de nossas inclinações 208.  Ibid., p. 63. 209.  Ibid., p. 63-64. 210.  Ibid., p. 64. 211.  Ibid., p.64-65.

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se aplicam a outros seres do que nós; naturalmente, nós somos feitos de modo a nos ocupar, a ter necessidade de outrem”.212 Além disso, certas inclinações não têm jamais, nem consciente nem inconscientemente, por objetivo se apropriar do objeto agradável unicamente para fazê-lo servir a fins próprios do eu: em uma palavra, há “inclinações desinteressadas [désinteréssées]”.213 Muito embora ele reconheça que existam exceções provenientes da mistura inevitável das diferentes inclinações, e que as preocupações egoístas frequentemente sequestram a impessoalidade das inclinações superiores, ele se recusa a reduzir a multiplicidade das inclinações a uma dominante: “Todas estas unificações não saberiam ser admitidas: esses três sentimentos não apenas têm sua própria razão de ser, mas também se apoiam ainda uns nos outros”.214 De todo modo, importa notar que a inclinação é uma tendência do sujeito em direção a um objeto particular que orienta a ação de forma “não invasora” (non envahissant), isto é, sem envolver e possuir o sujeito por completo. Ela é composta por dois movimentos, o do eu que se dirige ao objeto pelo desejo ou necessidade em um movimento de expansão; e o do eu que atinge e se apropria do objeto em um movimento de concentração. É neste sentido que podemos distingui-las das emoções. As emoções são fenômenos afetivos em geral, ou seja, que, diferentemente das inclinações, não possuem objeto e são inespecíficos. As emoções são fenômenos passionais como as inclinações, mas, diferentemente delas, elas invadem o eu por inteiro e são, por natureza, expansivas e invasoras (envahissantes). Pode-se dizer, inclusive, que elas “são o contragolpe do sucesso ou do insucesso dos esforços de inclinação”.215 Por fim, temos as paixões, que são definidas como “um movimento sensível de uma intensidade particular” caracterizado, sobretudo, pela violência.216 Ela é uma força intensa que pode se manifestar seja 212.  213.  214.  215.  216. 

Ibid., p. 64. Ibid., p.66. Ibid., p.65. Ibid., p.67. Ibid., p.69.

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de forma aguda, em uma irrupção espontânea e rápida, seja de forma crônica, lenta e repetidamente ao longo do tempo: “Assim certas paixões são hábitos: sua força se manifesta pela sua tenacidade. Outras, ao contrário, duram tão somente um instante; elas se esgotam ao se exprimirem”.217 A paixão apresenta duas características quando comparada com a inclinação e com a emoção. Assim como a inclinação, a paixão é relativa a um objeto definido, afinal nos apaixonamos por alguma coisa, ao passo que a emoção agita o eu sem conduzi-lo a um objetivo determinado. De outra parte, assim como a emoção, a paixão é invasora e possui inteiramente o eu; enquanto que as inclinações absorvem uma fraca parte do eu, a paixão é exclusiva e dirige em direção a seu objeto todas as faculdades do eu. Em síntese, a paixão é a intensificação de alguns dos atributos das inclinações e emoções: Assim, a paixão toma emprestado um de seus carácteres da inclinação, o outro da emoção. É que, com efeito, a paixão não é senão o estado o mais violento da inclinação ou da emoção. Uma emoção muito viva se torna uma paixão. Se a cólera não é muito violenta, ela é apenas uma emoção. Torna-se ela mais forte, mais viva, é uma paixão. O medo em si mesmo não é senão uma emoção: se pela sua violência ele absorve todas as faculdades do ser, ele se torna uma paixão. Se o amor maternal está em repouso, não é senão uma inclinação; se um obstáculo qualquer aumenta a sua vivacidade, ele invade o eu, torna-se paixão. As duas características da paixão podem ser expressas em um único golpe: de uma parte, ela concentra o eu; de outra parte, ela o dirige em direção a um objeto. Pode-se, portanto, dizer que ela concentra todo o eu em direção a um único e mesmo objeto. Todas as forças são dirigidas em direção a um mesmo objetivo, são reunidas. É dizer que a paixão introduz na vida psicológica uma unidade absoluta.218

217.  218. 

Ibid. Ibid., p.69-70.

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Tão logo saímos de tais instrutivas lições aos adolescentes feitas pelo jovem Durkheim e percorremos uma década para nos debruçarmos sobre Da Divisão, vemos que tais noções de inclinação, emoção e paixão retornam, implicitamente, quando ele trata da natureza do crime. Aqui entra o segundo nível da análise que deixamos lá atrás antes de analisarmos a faculdade da sensibilidade: é o da relação entre as inclinações, emoções e paixões com as sensações de prazer e dor. Será que as causas da inclinação de um sujeito são encontradas plenamente na busca do prazer e na fuga da dor? Durkheim nega tal possibilidade dizendo que “o prazer é incapaz de criar integralmente uma inclinação; ele apenas pode vincular as que existem à determinada finalidade particular, contanto que esta esteja relacionada à sua natureza inicial”.219 Contrariamente à concepção utilitarista da inclinação dos sujeitos, ele assume uma posição spinozista informada pelas pesquisas científicas da época: “a psicologia contemporânea retorna cada vez mais à ideia de Spinoza segundo a qual as coisas são boas porque as amamos, não é que nós as amamos por serem boas. O que é primitivo é a tendência, a inclinação; o prazer e a dor são apenas fatos derivados”.220 É a própria atividade humana que, no seu curso, adquire determinadas formas que, tornadas hábitos, se tornam inclinações afetivas das quais poderão derivar emoções e paixões: Tudo o que determina a atividade a tomar uma forma definida pode dar nascimento a hábitos de que resultam tendências que é preciso, a partir de então, satisfazer. Além disso, apenas essas últimas tendências são verdadeiramente fundamentais. As outras não são senão formas especiais e melhor determinadas; porque, para achar encantador este ou aquele objeto, é preciso que a sensibilidade coletiva [e individual] já esteja constituída de maneira a poder apreciá-lo 219.  [1902b] Da Divisão, p.53. 220.  Ibid., p.52. Ele se refere à proposição 15 da Terceira Parte da Ética de Spinoza: “Qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de alegria, de tristeza ou de desejo”, cujo corolário diz que “simplesmente por termos considerado uma coisa com um afeto de tristeza ou de alegria, afeto do qual essa coisa não é a causa eficiente, podemos amá-la ou odiá-la” (SPINOZA, Baruch de. Ética, Ética. Belo Horizonte: Autêntica, edição bilíngue, 2007 [1675], p.182-3).

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[pouvoir le goûter]. Se os sentimentos correspondentes são abolidos, o ato mais funesto à sociedade poderá ser não apenas tolerado, mas estimado e proposto como exemplo.221

Tal afirmativa o conduzirá à definição bastante criticada de crime a partir de meras causalidades eficientes (vista pelos críticos como “mecanicista”), a partir da qual ele recusa a hipótese utilitarista de que o crime estaria associado às experiências de prazer e de dor: “Mas, dir-se-á, acaso não há sentimentos coletivos que resultam do prazer ou da dor que a sociedade sente em contato com os objetos de tais sentimentos? Sem dúvida, mas nem todos têm essa origem”.222 Ele pretende afastar a definição utilitarista, ao mesmo tempo em que recusa aquela de matriz kantiana: o crime não é resultante dos “interesses vitais da sociedade”, tal como podem pensar os utilitaristas, mas também não é, tal como pensariam os moralistas, oriundo de um sentimento mínimo de justiça. Durkheim está se recusando assim a buscar a natureza intrínseca dos sentimentos que estão no fundamento do crime, pois existiriam os mais diversos objetos possíveis das inclinações, sendo impossível, portanto, dar uma fórmula única. A fim de evitar uma explicação teleológica de crime, ele diz que: “Não se deve dizer que um ato ofenda a consciência comum por ser criminoso, mas que é criminoso porque ofende a consciência comum. Não o reprovamos por ser um crime, mas é um crime porque reprovamos”; para, mais abaixo, estabelecer a natureza de tal processo: “pelo simples fato de um sentimento, quaisquer que sejam sua origem e seu fim, se encontrar em todas as consciências com certo grau de força e precisão, todo ato que o ofende é um crime”.223 Para bem compreendê-lo, contudo, é necessário analisarmos a sua concepção de representação, com sua dependência de uma experiência fundamentalmente afetiva. 221.  Ibid., p.52-3. Vale lembrar que, além de Spinoza, tal noção de hábito remete à tradição espiritualista envolta com o debate da relação entre liberdade e determinismo, tal como vimos no capítulo I de Amaro. 222.  Ibid. 223.  Ibid.

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Representação Emotiva, Intensidade de Consciência e Reação Apaixonada Não encontramos infelizmente desenvolvimentos suficientes sobre a noção de representação nas lições do Liceu de Sens.224 Durkheim se contenta aí em afirmar que a faculdade da inteligência se define pela representação, mas não discorre sobre a natureza do processo representativo na consciência do sujeito. A inteligência é definida de modo kantiano como instância reflexiva do sujeito consciente de si mesmo: Quando nós agimos, nós sabemos que nós agimos; quando nós sofremos, nós sabemos que nós sofremos; quando nós pensamos, nós sabemos que nós pensamos. Não é agir ou sentir: é ter o conhecimento de nossa ação ou de nossa sensação. De uma maneira geral, há toda uma categoria de estados de consciência que são o que se chama de ideias. Estas ideias se relacionam ora ao mundo exterior, ora ao mundo interior. O conjunto desses estados de consciência e a faculdade correspondente formam a inteligência.225

Ele estabelece, contudo, uma relação muito importante entre as faculdades da alma, ao colocar, em primeiro plano, a sensibilidade. Para ele, não é a inteligência, mas sim as inclinações e as paixões que são fundamentais na atividade da consciência. Na verdade, elas podem ser vistas como única fonte de tal atividade: As inclinações e as paixões entram evidentemente no estudo da atividade do espírito humano. Pode-se até mesmo dizer que elas são a única fonte dessa atividade, que nenhum ato é realizado pelo indivíduo que não tenha sua razão primeira em um instinto, inclinação, uma paixão. A inteligência não é uma fonte de atividade. Toda atividade 224.  Sobre a noção de representação no curso, Schmauss escreveu um ensaio, só que focando no aspecto categorial das representações, que aqui não me interessará muito: SCHMAUS, Warren. Representation in Durkheim Sens Lectures: an early approach to subject. In: PICKERING, W. (ed) Durkheim and Representation, (p. 27-36) London: Routledge. 2000. 225.  [1884a] Lycée de Sens Course, p.58.

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supõe um objetivo, a inteligência não nos fornece jamais senão constatações. Ela nos ensina o que é; mas para agir, é preciso que saibamos o que deve ser – checar, ao menos, que nós representemos alguma coisa como sendo bom, bem, vantajoso, etc.226

Desta forma, a atividade do sujeito, motivada não pelo que é, mas pelo que deve ser, é mobilizada por valores – o termo não está aí, mas se trata disso – que possuem sua fonte na sensibilidade, em um instinto, inclinação ou paixão. Ainda que a inteligência seja uma faculdade superior, ela não é a mais determinante, pois ela tem por função “constatar” algo, o que é (no que podemos chamar de uma relação puramente cognitiva), sem envolver, para tanto, uma afecção do sujeito em relação ao objeto segundo a diretriz de um dever ser – única capaz de motivar a atividade. A respeito disso, podemos ver, mais uma vez, uma influência de Spinoza, cuja pista encontramos nas lições do velho Durkheim sobre Pragmatismo e Sociologia (1913-4). Ele trata, em tais lições, do papel das sensações sinestésicas (coenesthésiques). Elas são aquelas que emanam de todas as partes do nosso corpo e estão na origem de nossa consciência pessoal. Contrariamente ao pragmatismo de William James, que, segundo o sociólogo, entende a consciência como sendo uma função com papel de orientar os movimentos do corpo, a consciência é, para Durkheim “o organismo conhecendo-se”, ao que devemos acrescentar que: “pelo simples fato do organismo se conhecer, poder-se-á dizer que algo de novo se produz”, ou seja, “emerge”.227 Ora, tal concepção de origem da consciência é remetida à famosa sentença de Spinoza de que “a alma é a ideia de corpo”.228 Afora tais concepções de consciência (ou, se quiser, de “mente”) e de atividade, ambas enraizadas na sensibilidade corporal, presentes no início (1884) e no final (1914) da obra de Durkheim – o que nos faz crer que é uma constante de sua teoria –, nós encontramos uma elaboração explícita da noção de representação, segundo o mesmo sentido, em 226.  Ibid., p.48 (grifos meus). 227.  [1955a] Pragmatisme et Sociologie, p.170. 228.  Ver SPINOZA, op.cit., Segunda Parte, proposições 13 e 19.

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Da Divisão.229 Ele a desenvolve baseando-se nas investigações de “fisiologia do espírito” de Henri Maudsley (1835-1918).230 Algumas linhas de Maudsley nos serão esclarecedoras para entender como se dá a articulação entre a concepção de representação e a faculdade de sensibilidade, e como ela desemboca em uma noção de força moral. Vale indicar antes de tudo, com Ribot (1876, p.407), que, sendo um “acusador decidido da metafísica” tal como Durkheim o será (pois, note-se, a obra é anterior à de Durkheim), Maudsley critica, no capítulo I, o método de observação interior (introspectivo) em favor de um método objetivo (no caso dele, fisiológico). Ele se propõe a investigar o espírito (mind) como uma função do sistema nervoso, considerando-o como uma exaltação e uma concentração da força. Neste sentido, ele defende, tal como o fará Durkheim (como vimos na seção 2), uma concepção de natureza como composta por forças que, associando-se umas às outras, vão gerando emergências que se estratificam partindo de um nível de menor complexidade, maior independência e menor capacidade de evolução para um de maior complexidade, maior dependência e maior capacidade evolutiva. Ribot sintetiza belamente: Da mesma forma que um equivalente de força química corresponde a vários equivalentes de força inferior e que um equivalente de força vital corresponde a vários equivalentes de força química, da mesma forma, na escala dos tecidos, o mais elevado [o centro nervoso superior] representa o maior número de forças atuantes simultaneamente [...] A mais alta energia da natureza é na realidade 229.  A existência aí da questão da representação, ainda que sem diferenciar as “coletivas” das “individuais”, enfraquece, a meu ver, as interpretações que veem a noção de representação surgindo, a partir de meados de 1890, como uma resposta às críticas de um suposto “materialismo” de Da Divisão. Para uma forte interpretação neste sentido, ver o capítulo de Amaro. 230.  MAUDSLEY, Henri. Physiologie de l’esprit. Paris: C. Reinwald et Libraires Éditeurs, 1879. Esse psicofisiologista inglês desenvolve uma fisiologia do espírito inspirando-se nas investigações de Darwin sobre a expressão das emoções e na Ética de Spinosa, a qual ele considera como um “admirável estudo” sobre as paixões que será muito dificilmente superado (ibid., p.390). A tradução para o francês teve uma resenha elogiosa escrita por Ribot na Revue Philosophique: RIBOT, Théodule. D. H. Mausley. The Physiology of Mind. Revue Philosophique de la France et l’étranger, 1876, volume 2, p.406-410.

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a mais dependente; e é porque elas contêm implicitamente a quintessência de todas as espécies inferiores de energia que ela pode exercer potência sobre estas forças inferiores que servem para sua evolução. Como o homem de gênio contêm implicitamente a humanidade, assim o elemento nervoso contém implicitamente a natureza (RIBOT, 1879, p.409).

Da mesma forma que vimos em Durkheim, Maudsley também defende, a partir daí, uma concepção de liberdade bem spinozista, articulada a uma lição de sabedoria, que está associada ao reconhecimento de nossa inserção no determinismo da natureza: Por muito tempo se teve o hábito de falar dos fenômenos psíquicos como sendo radicalmente diferentes dos fenômenos naturais, como sendo completamente especiais e não se conformando à ordem da natureza. Pareceria que o homem fez sua própria lei, se governou independentemente da natureza, controlando-a sem se submeter a ela. Mas o homem não é investido de qualquer autoridade deste gênero; ele não a controla senão submetendo-se e não a conquista senão obedecendo: se ele não se conforma à natureza, ele é controlado a despeito de si mesmo e paga esse erro por penosos sofrimentos, ao passo que a sabedoria lhe daria a felicidade (MAUDSLEY, op.cit., p.326).

Maudsley propõe assim um movimento de renaturalização da mente feita por um método experimental. Ao classificar os centros nervosos em quatro tipos (orgânicos, reflexos, sensoriais e ideacionais), ele os estuda até chegar a capítulos centrais sobre as emoções e afecções do espírito, a volição, a atividade (actuation), a memória e a imaginação. O que nos interessa aqui é o capítulo sobre as afecções e emoções. Maudsley (op.cit., p.326) lembra bem que o significado etimológico do termo emoção (e-motion) denuncia a sua origem física – como também o termo comoção (com-motion) já em desuso na época –; afinal, as emoções receberam este nome porque são movimentos da alma e do corpo, sendo tal palavra uma espécie de indução que resume a experiência do gênero humano de que os sentimentos

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estão enraizados nos movimentos psicofísicos. Quando investigamos este paralelismo, rompemos com a grande tradição da metafísica (representada, vale lembrar, pela tradição espiritualista). Ele defende então que as emoções possuem uma força de ação no organismo, que não apenas é mais intensa do que as próprias representações, quanto também é capaz de agir em nós tal como uma força física. Eis, então, nesta citação um pouco extensa, como as conclusões psicofisiológicas nos fazem entrever a concepção de força moral como sendo a outra face da noção de força física, ambas passíveis de serem investigadas metodicamente: As emoções, boas ou más, são fenômenos físicos, que procedem da vida vegetativa, conformando-se a leis naturais em sua origem, em sua natureza, em sua expressão, e devem ser estudadas e discutidas como todos os outros fenômenos da natureza. [...] As emoções agem sobre o organismo mais fortemente que as ideias, porque elas representam um movimento interno mais violento e porque todas as funções vegetativas são mais profundamente implicadas em sua origem, em sua natureza e em sua expressão. De acordo com o que nós vemos, uma forte emoção pode agir algumas vezes sobre o sistema nervoso da mesma maneira que um violento choque físico; ela pode resultar em convulsões, em uma síncope, na perda da sensibilidade, na paralisia do movimento, na surdez, todos sendo fenômenos que podem ser produzidos igualmente por uma forte descarga elétrica. Nós não estamos lidando, portanto, com misteriosas potências determinando-se a si mesmas, mas sim com fenômenos que, apesar de sua incontestável complexidade, se prestam eventualmente a uma análise completa [...] é o sentimento ou a vida afetiva, que revela a natureza essencial do indivíduo; ela é a base de sua natureza intelectual, assim como a vida vegetativa é a base da vida animal; ela exprime o tom fundamental de sua substância nervosa, o que resulta da constituição ou da composição herdada ou adquirida desta substância. [O que me leva a afirmar] seguindo nisso Spinoza, Unzer e Müller, que uma ideia em harmonia com as impulsões e os desejos dos indivíduos, com a expansão individual, é acompanhada de

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um prazer mais ou menos vivo, ao passo que uma ideia desarmônica e que restringe a individualidade prova um maior ou menor mal-estar ou dor231.

Já vemos aí uma forte proximidade de tais ideias com o que foi dito anteriormente no tocante às lições de Durkheim: um spinozismo integrando corpo e alma, uma superioridade da vida afetiva sobre a intelectual, o impacto físico das ideias emotivamente carregadas, etc. É importante perceber, agora, como um argumento no mesmo sentido é expresso na concepção de representação de Da Divisão. Ao trazer sua concepção de representação “emotiva”, Durkheim defende, apoiando-se em Maudsley e contra as concepções representacionais das ideias como “espelhos do mundo”, que, independente de terem como referentes uma sensação, ideia ou sentimento, as representações desencadeiam consigo um processo psicoorgânico essencial: Uma representação não é, com efeito, uma simples imagem da realidade, uma sombra inerte projetada em nós pelas coisas, mas uma força que ergue a seu redor todo um turbilhão de fenômenos orgânicos e psíquicos. Não somente a corrente nervosa que acompanha a ideação se irradia nos centros corticais em torno do ponto em que se originou e passa de um plexo a outro, mas ressoa nos centros motores, onde determina movimentos, nos centros sensoriais, onde desperta imagens, excita por vezes começos de ilusões e pode até afetar as funções vegetativas; esse ressoar é tanto mais considerável quanto mais intensa for o seu elemento emocional.232

Ao contrário de uma rígida filosofia das faculdades, ele reafirma aqui, de forma mais desenvolvida do que na Lição de Sens, que o processo de representação operado pela inteligência envolve todas as faculdades do sujeito “orgânico-psíquico”, ou seja, a sensibilidade, a inteligência e a atividade. A representação não é, portanto, contrariamente à metafísica clássica, um suposto espelho do real, 231.  ibid., p.326-7, grifos meus. 232.  [1902b] Da Divisão, p.68-9 (grifo meu).

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mas sim uma força que atua sobre nós provocando um turbilhão de fenômenos orgânicos e psíquicos. Elas envolvem não somente o córtex e as demais áreas do sistema nervoso central, mas também os centros motores e sensoriais e, por meio deles, provoca a atividade de imaginação que, em estados específicos (como no sono) e em condições extremas, pode conduzir a delírios. Tal ressonância orgânico-psíquica das representações é tanto maior quanto mais intenso o seu elemento emocional, a ponto de despertar efetivos estados passionais, ou seja, como dissemos acima, estados essencialmente violentos, invasivos e expansivos. Mais importante do que ver como a ressonância de uma representação é tanto maior quanto mais vinculada às inclinações, emoções, quiçá paixões, é perceber, ainda, que os estados de consciência dos indivíduos variam sua intensidade e vivacidade em proporção direta a tais sentimentos: Todo estado forte da consciência é uma fonte de vida, é um fator essencial de nossa vitalidade geral. Por conseguinte, tudo o que tende a enfraquecê-lo nos diminui e nos deprime; resulta daí uma impressão de confusão e de mal-estar análoga à que sentimos quando uma função importante é suspensa ou distendida.233

Nossa vitalidade geral depende da vitalidade de nossos estados de consciência, que, por sua vez, depende da natureza da associação entre nossas representações e seus elementos emocionais. Mais uma vez, parece resplandecer por detrás das palavras de Durkheim a filosofia spinozista, em que a ação ou padecimento da mente dependem da “adequação das ideias”: “A nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade, padece. Mais especificamente, à medida que tem ideias adequadas, ela necessariamente age; à medida que tem ideias inadequadas, ela necessariamente padece” (SPINOZA, op.cit., Terceira Parte, proposição 1, p.165) –; de tal forma que a potencialização ou padecimento do corpo e da mente são correlatos: “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula 233. 

Ibid., p.68 (grifo meu).

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ou refreia a potência de agir de nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente” (ibid., proposição 11). Como já dissemos anteriormente, Durkheim entende que a mente (ou consciência), seja a individual ou coletiva, opera por meio de um processo de simbolização. Vemos, agora, que tal processo de simbolização é carregado de afetos. Ao representar uma ideia, sentimento ou sensação, os símbolos se vinculam, com intensidade variável, a estados emocionais que envolvem todo o organismo. Uma representação de um sentimento específico tem as mesmas afinidades, ainda que menos intensas, do que aquilo que representa; ou seja, ela tende a despertar as mesmas ideias, as mesmas emoções e os mesmos movimentos. Como diz Spinoza: “Se a mente foi, uma vez, simultaneamente afetada de dois afetos, sempre que, mais tarde, for afetada de um deles, será também afetada do outro” (ibid., proposição 14). Caso a representação tenha por origem afetos tristes, nós somos enfraquecidos e debilitados; caso seja originada por afetos alegres, aumentamos a potência de nosso ser. “O homem é afetado pela imagem [“representação”] de uma coisa passada ou de uma coisa futura do mesmo afeto de alegria ou de tristeza de que é afetado de uma coisa presente” (ibid., proposição 18). A confusão e o mal-estar desencadeados por um afeto triste são semelhantes ao que temos quando algo se passa de errado em nosso corpo, ou quando nossa atividade motora voltada a uma determinada inclinação é interrompida exteriormente. É fundamental, pois, perceber como age em nós uma representação de um sentimento contrário às nossas inclinações suscitando reações emocionais ou passionais: Assim, a representação de um sentimento contrário ao nosso age em nós no mesmo sentido e da mesma maneira que o sentimento que ela substitui; é como se ele mesmo tivesse entrado em nossa consciência. Ela tem, de fato, as mesmas afinidades, embora menos vivas; ela tende a despertar as mesmas ideias, os mesmos movimentos, as mesmas emoções. Ela opõe, pois, uma resistência ao jogo de nosso sentimento pessoal e, por conseguinte, o debilita, atraindo numa direção contrária toda uma parte de nossa energia. É como se uma força

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estranha se houvesse introduzido em nós, de modo a desconcertar o livre funcionamento de nossa vida psíquica. Eis por que uma convicção oposta à nossa não pode se manifestar em nossa presença sem nos perturbar: é que, ao mesmo tempo, ela penetra em nós e, encontrando-se em antagonismo com tudo o que em nós encontra, determina verdadeiras desordens.234

Poderíamos até supor que tal raciocínio permite postular que, no extremo, uma representação pode baixar o nível de vitalidade psíquica a ponto de ameaçar, ou conduzir, um indivíduo à morte.235 Por causa disso, “é inevitável que reajamos energicamente contra a causa que nos ameaça da diminuição, que nos esforcemos por afastá-la, a fim de mantermos a integridade de nossa consciência”.236 A respeito da lógica de tal reação, Durkheim constrói quase que uma verdadeira equação matemática “à moda dos geômetras”: “Um estado forte reage mais que um estado fraco, e dois estados de mesma intensidade reagem desigualmente conforme sejam mais ou menos violentamente contraditos”.237 É igualmente importante que percebamos aí uma diferença de afecção e de reação afetiva entre representações meramente dirigidas ao intelecto e as representações que tocam o núcleo emocional do indivíduo. A reação emocional ou passional será ainda mais forte caso a contradição não seja puramente discursiva, ou seja, caso não se afirme apenas por palavras, mas também por atos, o que leva o sentimento de ofensa ao seu máximo e provoca uma reação ainda mais apaixonada. Não sem lembrar a famosa passagem de Rousseau em Origem das Desigualdades (1755), temos que, no primeiro caso, meramente cognitivo, a afecção é débil, porque o intelecto é a camada mais superficial da consciência, ao passo que, no último caso, temos uma 234.  Ibid., p.69. 235.  Neste sentido, o famoso ensaio de Mauss sobre a sugestão de morte continua de certa forma as precoces formulações do jovem Durkheim: MAUSS, M. Effet physique chez l’individu de l’idée de mort suggérée par la collectivité (Australie, Nouvelle-Zélande) (1926), in: MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1950. 236.  [1902b] Da Divisão, p.69. 237.  Ibid., p.74.

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dor infligida que gera uma reação passional – poderíamos dizer, com Rousseau, compassiva (“com-passional”) – que tende a repercutir na própria atividade motora: Sem dúvida, enquanto o conflito só se manifesta entre ideias abstratas, nada há de muito doloroso, pois nada há de muito profundo. A região dessas ideias é, ao mesmo tempo, a mais elevada e a mais superficial da consciência, e as mudanças que nela sobrevêm, não tendo repercussões extensas, afetam-nos apenas debilmente. No entanto, quando se trata de uma crença que nos é cara, não permitimos e não podemos permitir que seja impunemente ofendida. Toda ofensa dirigida contra ela suscita uma reação emocional, mais ou menos violenta, que se volta contra o ofensor. Nós nos arrebatamos, nos indignamos contra ele, ficamos com raiva, e os sentimentos assim provocados não podem deixar de se traduzir por atos; fugimos dele, mantemo-lo à distância, banimo-lo de nossa companhia, etc.238

A questão, aqui, não diz respeito apenas às formas de reação a um sentimento ou representação que sejam contrários ao que um determinado sujeito individual ou coletivo investe afetivamente. Durkheim vai mais além, o que o deixou com um flanco aberto a severas críticas feitas pelos moralistas. Segundo ele, “todas essas emoções violentas [isto é, paixões] constituem uma convocação de forças suplementares que vêm restituir ao sentimento atacado a energia que a contradição lhe retira”.239 Desta forma, a energia do sentimento reafirmado após a reação à ofensa é retirada da própria contradição, de tal modo que a reação passional não é apenas uma consequência natural dos sentimentos, com também é útil para a sua manutenção. Analisando o processo próprio da lógica penal sem apressar-se em denunciar o seu caráter amoral do ponto de vista do dever, Durkheim assinala assim como que as reações próprias à pena, muitas vezes, sobretudo em sociedades em que um direito penal não 238.  239. 

Ibid., p.70. Ibid.

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se diferenciou em um sistema de justiça, são naturais ao estado de consciência coletiva e servem para reforçá-lo ainda mais, mantendoo vivaz e enérgico. Uma simples restauração da ordem não seria capaz de nos bastar; precisamos de uma satisfação mais violenta. A força contra a qual o crime vem se chocar é demasiado intensa para reagir com tanta moderação. Aliás, ela não poderia fazê-lo sem se enfraquecer, porque é graças à intensidade da reação que ela se recupera e se mantém no mesmo grau de energia.240

Se analisarmos as implicações implícitas do argumento, temos que aqui é afirmado um papel positivo do conflito provocador de reações emocionais ou passionais. Não por acaso, ele se recusa a ver na vingança e na cólera atributos meramente negativos e estéreis. A cólera não é, para ele, apenas uma emoção ou paixão destrutiva, pois consiste numa “superexcitação de forças latentes e disponíveis que vêm a ajudar nosso sentimento pessoal a encarar os perigos, reforçando-as”.241 Até em momentos de paz, existiriam “reservas passionais” a serem acionadas no momento necessário; caso contrário determinada sociedade poderia sucumbir à luta uma vez que ela emergisse. Ao falar assim, parece que, para ele, toda convicção forte é necessariamente intolerante. Mas não é o caso, o que ele apressa por dizer ao afirmar que podem ocorrer causas exteriores que neutralizam a violência, a cólera, a vingança ou a paixão. É quando uma força mais intensa contém a efetivação da força que impulsiona a reação. Ele menciona pelo menos dois casos em que isso ocorre. Em primeiro lugar, pode haver entre os adversários uma simpatia geral que, na condição de ser mais forte do que o antagonismo, é capaz de contê-lo e atenuá-lo. Em segundo, pode ocorrer de as duas partes antagonistas renunciarem à luta e de se tolerarem mutuamente caso seja evidente que nenhuma delas possa ganhar e que acabarão por 240.  241. 

Ibid., p.72. Ibid., p.70-1.

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se destruírem mutuamente. “Em todos esses casos, se o conflito dos sentimentos não engendra suas consequências naturais, não é porque não as contenha, é porque é impedido de produzi-las”.242 De certa forma, podemos dizer, portanto, que as paixões são não apenas inevitáveis, mas, sobretudo, necessárias, porque nos mantém vivos e vivazes. Tal concepção de representação nos conduz a uma visão de um mundo – exterior e interior – composto por forças em equilíbrio instável sempre em potencial conflito ou, mesmo, em guerra. Como eu disse acima, a própria vida psíquica é definida por ele como um sistema de representações e ações constituído por forças em equilíbrio instável, de tal modo que, conforme veremos na próxima seção, os conflitos são inerentes à nossa constituição natural e vivemos em permanente dilaceramento. O primeiro aspecto da natureza humana é, portanto, que o humano é, antes de tudo, um ser afetivo, sentimental, apaixonado, pois o entendimento humano é apenas uma parte superficial, ainda que superior, na hierarquia da consciência. O que nos motiva à ação e intensifica a vida são os afetos enquanto fontes da vitalidade da consciência e motores da ação. A representação está ligada, desta forma, a um conteúdo afetivo que mobiliza toda a vida orgânicopsíquica do indivíduo. Quanto mais viva uma representação, quanto mais afetivamente ela está investida. Mas como os sentimentos e as ideias adquirem uma alta energia afetiva mobilizando ações e reações emotivas e apaixonadas? Em que tal intensidade afetiva depende da vida social? E, para chegarmos ao termo da passagem da força ao símbolo: em que a formação simbólica do social depende, vitalmente, de uma conformação afetiva da vida em comum? É aqui que entra o conceito de consciência coletiva presente em Da Divisão. Mesmo depois de ser abandonado, a partir de 1898, a favor da noção de representações coletivas, a fim de escapar aos críticos, ainda assim ele se manterá essencialmente o mesmo ao longo de toda obra. Tal conceito articula a relação entre o social e o sagrado, fato do qual o próprio autor vai adquirindo maior clareza ao longo de seu percurso.

242. 

Ibid., p.70.

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3.2. A Sagração do Social: Efervescência Coletiva e Formação Simbólica A vida social, sob todos os seus aspectos e em todos os momentos de sua história, somente é possível graças a um vasto simbolismo.243

Chegamos aqui à possibilidade de compreender como, por meio da associação das forças morais que atuam sobre e através das consciências individuais, ocorrem a emergência e a formação simbólica do social. A tese da similitude de consciências é defendida desde Da divisão, em que o social gerado pela similitude é aproximado ao conceito de sagrado; daí se anunciam as grandes linhas do argumento que será retomado e desenvolvido até Formas elementares. Pena e Expiação: Sinergia das Similitudes e Alienações Parciais da Personalidade A consciência coletiva nasce, para o sociólogo, de uma sinergia das similitudes de estados de consciência. Durkheim se apropria, para tanto, da noção de Alfred Espinas, considerando que ele havia bem estabelecido que as ideias e os sentimentos podem adquirir um alto grau de energia “pelo simples fato de serem sentidos por uma comunidade de homens em relação uns com os outros”.244 A partir daí, ele defende a tese forte de que a potencialização da intensidade sentimental decorre das semelhanças das consciências: Do mesmo modo que estados de consciência contrários se enfraquecem mutuamente, estados de consciência idênticos, intercambiando-se, fortalecem-se uns aos outros. Enquanto os primeiros se subtraem, os segundos se adicionam. Se alguém exprime diante de nós uma ideia que já era nossa, a representação que fazemos dela vem se somar à nossa própria ideia, superpor-se a ela, confundir-se com ela, comunica-lhe o que ela própria tem de vitalidade; dessa fusão sai uma nova 243.  [1912a] Formas Elementares, p.242. 244.  [1902b] Da Divisão, p.71. ESPINAS, Alfred. Des Sociétés animales. Paris: Librairie Germer Baillière, 1878.

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ideia, que absorve as precedentes e, em consequência, é mais viva do que cada uma delas considerada isoladamente. Eis por que, nas assembleias numerosas, uma emoção pode adquirir tamanha violência: é que a vivacidade com a qual ela se produz em cada consciência ressoa em todas as demais. Não é sequer necessário que já sintamos por nós mesmos, em virtude apenas de nossa natureza individual, um sentimento coletivo, para que ele adquira em nós tamanha intensidade; porque o que a ele acrescentamos é, em suma, bem pouca coisa. Basta que não sejamos um terreno demasiado refratário para que, penetrando do exterior com a força que traz de suas origens, imponha-se a nós.245

O argumento sobre a formação da consciência coletiva é, portanto, uma consequência da compreensão do social como composto por forças. Quando forças semelhantes se intercambiam, elas se fortalecem mutuamente e se fundem. Os nossos sentimentos e as nossas ideias se tornam mais fortes e intensos quando se assemelham às de outras consciências, ou mesmo, são inteiramente transformados, como se em algum ponto de bifurcação houvesse uma transformação de quantidade em qualidade. Nós somos invadidos por eles, de tal forma que eles tendem a impor-se sobre nossa própria maneira de sentir e pensar. É a partir de tal conceito que ele define a natureza do crime. Os crimes são uma ofensa a representações emotivas da coletividade que possuem alta intensidade e precisão, gerando em reação uma pena. A vingança presente na repressão ao crime tem por objetivo defender algo que sentimos, de forma mais ou menos confusa, como sagrado, como “fora e acima de nós”: “os atos que ele castiga parecem ser atentados contra algo transcendental, ser ou conceito”.246 A pena possui, portanto, um caráter “quase-religioso”, expiatório. A partir da noção de expiação, Durkheim já aproxima assim, em 1893, o direito penal da religião. Tal caráter quase religioso da expiação é um elemento integrante da pena. O direito penal não é religioso apenas na origem histórica, mas mantém algo essencialmente reli245.  246. 

Ibid., p.71 (grifos meus). Ibid., p.72.

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gioso nas próprias sociedades modernas.247 Podemos dizer que entre o direito penal e a religião existe uma mesma estrutura simbólica: “entre a pena de hoje e a de outrora não há, portanto, um abismo [...] A estrutura interna dos fenômenos permanece a mesma, sejam eles conscientes ou não”.248 Tanto no crime quanto na infração de um tabu existe um sentimento de que houve uma ofensa a algo que é sentido ou ideado como mais ou menos sagrado. Isso ocorre porque eles estão investidos por nós e pela sociedade em que vivemos por sentimentos intensamente compartilhados.249 Tal transcendentalidade seria uma consequência natural do indivíduo vivendo em sociedade. Ela somente existe por meio do que Durkheim denomina de alienações parciais da personalidade. As alienações decorrem de nossa existência social, que faz com que haja uma interação entre consciências semelhantes que gera, por sua vez, o surgimento das forças morais que penetram sensivelmente o indivíduo, independente do nível de esclarecimento de seu entendimento. É neste sentido que ele considera, em Da Divisão, que o sentimento próprio ao crime de que defendemos algo transcendental não é uma mera ilusão, do mesmo modo que ele defenderá, em Formas Elementares, que a oposição entre sagrado e profano própria à religião é uma “ilusão bem fundamentada”. Se, de fato, a representação expiatória do direito penal é ilusória, pois o que vingamos são apenas os interesses bem mundanos da sociedade e dos próprios indivíduos que nela vivem, tal ilusão é, contudo, necessária e bem fundada, porque os sentimentos coletivos nos dominam efetivamente como se fossem alguma coisa sobre-humana, uma força estrangeira e superior que nos liga a objetos que estão fora de nossa consciência, o que faz com que nós tenhamos necessidade de projetálas para fora de nós, relacionando-as a algum objeto, que se tornará um representante, um símbolo, desta coisa sentida. Ou seja, há uma 247.  Ibid., p.63; 72. 248.  Ibid., p.59. 249.  É nisso que o direito penal se distingue do direito restitutivo. O primeiro envolve sempre algo transcendente e impessoal que defendemos, de alguma forma “desinteressada”, como uma grave ofensa semelhante a uma heresia, ao passo que o segundo diz respeito à ordem do interesse, o que demanda apenas uma restituição do dano à parte interessada.

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necessidade de expressão dos sentimentos pela projeção em objetos externos à consciência, o que dará origem à representação simbólica. Ainda que ela só exprima a natureza de uma maneira metafórica, a metáfora não é sem verdade. Tal expressão simbólica é tão necessária, para ele, que ela não deixa de existir mesmo quando nós tomamos consciência de sua ilusão. Durkheim demarca, assim, um corte entre a experiência vivida do participante da sociedade e a experiência teórica do observador, que é semelhante àquela entre o indivíduo que observa o sol a olho nu de sua posição na terra e o saber científico do astrônomo que nos informa que ele é um astro imenso. Isso ocorre por causa da natureza afetiva das representações. A faculdade de entendimento pode certamente nos ensinar a interpretar as nossas sensações, mas ela não pode mudá-las, ainda mais porque é uma faculdade mais superficial, ainda que superior, de nossa mente. Aqui, na sua tese de doutorado, encontramos in nuce a teoria durkheimiana da religião e da formação simbólica do social.250 Em Formas Elementares, o direito penal será um setor dentro das atividades religiosas correspondente aos ritos piaculares e sacrificiais e a própria religião adquirirá uma definição sistemática a partir da oposição estrutural entre sagrado e profano e o conceito de Igreja. Vimos, até agora, como o humano é mobilizado por representações emotivas, sendo que nada os dispõe a priori à paz e à tolerância. Veremos agora que, para existir vivamente, o indivíduo precisa de forças que, fazendo-o transcender os estreitos limites de uma autorreferência, sejam capazes de abri-lo a imagens, representações e afetos compartilhados coletivamente que o vivificam e fortalecem. Afinal, como dissemos anteriormente, se existe autonomia humana, ela é possível somente pela solidariedade que emerge da interação 250.  O que não quer dizer que não haja mudanças significativas no conceito de religião na obra de Durkheim, sobretudo a partir de sua “grande revelação” em 1895, quando, lecionando um curso sobre a “origem da religião” e dedicando-se aos estudos de história, principalmente os trabalhos de Robertson Smith e sua escola, descobriu, segundo suas próprias palavras, o “papel capital da religião na vida social” e encontrou a forma de abordar sociologicamente a religião (FOURNIER, 2007, p.257).

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entre consciências que se afetam mutuamente e, assim, fazem emergir forças morais superiores. Efervescência Coletiva, Simbolização Expressiva e a Eeoria do Simbolismo A teoria durkheimiana do simbolismo é apresentada, de forma mais madura, nas Formas Elementares, que, como bem assinala Raquel Weiss (2012, p. 97), é um livro ao mesmo tempo de epistemologia/sociologia do conhecimento251, de sociologia da religião252, de sociologia moral253 e de sociologia geral. Ao tratar da origem simbólica do social, Durkheim aplica o princípio da similitude das consciências, estabelecido em Da Divisão, desdobrando-o em uma explicação da formação simbólica da sociedade a partir da experiência de efervescência coletiva.254 Em artigo recente, Weiss (2013) se propôs a extrair dos escritos durkheimianos uma teoria da ontogênese do sagrado. Ela mostrou precauções com o uso do termo “ontogênese”, porque ele se aplica a seres vivos e, portanto, se trataria mais propriamente de uma metáfora (ibid., p.158). Se levarmos, contudo, a sério o argumento ontológico do autor, podemos utilizar a expressão sem tantas precauções. Remetendo ao importante artigo de Watts Miller (2005) dedicado à origem e sentido das noções durkheimiana de “dinamogenia” e “elementar”, Weiss assinala a importância de esclarecer o sentido do que Durkheim quer dizer por uma “explicação dinamogênica da religião” presente em Formas Elementares.255 Antes de tudo, cabe perceber um 251.  Para a contribuição à espistemologia e à sociologia do conhecimento, além de Schmauss (2004) e Rawls (2004), ver o capítulo III de Gomes Neto abaixo sobre as categorias sócio-lógicas do conhecimento. 252.  Quanto à contribuição à sociologia da religião, Raquel Weiss fez uma recente apresentação da importância de Formas Elementares: WEISS, Raquel (2012b). 253.  Cf.: MILLER, Willian Watts (1996, 2005, 2014); WEISS, Raquel (2012a). 254.  Sobre a noção de efervescência coletiva, ver: WEISS, Raquel (2013); ALLEN, N. J (1998b); RAMP, Williams (1998) e SHILLING, Chris & MELLOR, Philip A. (1998, 2005). 255.  As definições de “dinamogenia” deflagram o quanto estamos em terreno ontológico já desbravado. Ao debruçar-se sobre o significado do termo nos léxicos, Weiss (2013) indica a sua origem no vocabulário da fisiologia. Segundo ela, em português significa “ativação intensa de um órgão em virtude de uma excitação provocada por causas de qualquer

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fato importante que reafirma o que dissemos até agora: se a principal razão de ser da religião é a sua “virtude dinamogênica”, tal como diz Durkheim, isso quer dizer que a função energética da religião é mais importante do que a cognitiva (ibid., p.198). As experiências de efervescência coletiva constituem, para a teoria dinamogênica da religião, uma “instância originária do sagrado que, por sua vez, está na base de todo fenômeno religioso e também moral” (WEISS, 2013, p.176). Buscando respaldo sobre os fatos etnográficos a respeito das tribos australianas, que teriam em comum uma suposta religião totêmica256, Durkheim encontra nas hiperexcitações festivas das tribos australianas, em especial no cerimonial da Serpente celebrado pelos Warramunga, uma ilustração da experiência de efervescência que estaria na origem da ideia de princípio totêmico.257 Durkheim acredita encontrar aí uma ilustração, com valor de prova, da existência de fato de uma espécie de eletricidade desprendida e circulando quando ocorre uma aglomeração dinâmica dos indivíduos. Quando isso ocorre haveria uma abertura das consciências umas às outras fazendo circular uma energia inaudita para cada indivíduo. Nesta situação de alta excitação, o entendimento é bloqueado natureza”; em francês, onde apenas existe na forma adjetivante, “dynamogénique” significa “aquilo que acrescenta energia, que estimula, que aumenta o tônus vital” (ibid., p.197). 256.  Não me interessa aqui entrar na querela do totemismo, da qual a posição de LéviStrauss propiciou um rompimento (cf. LÉVI-STRAUSS, Cl. Totemismo Hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975 [1962]). Felizmente, Robert Alun Jones suprimiu uma lacuna bibliográfica com The Secret of the Totem. Religion and Society from McLennan to Freud (New York: Columbia University Press, 2005) ao reconstruir a questão do totemismo desde o formulador da tese, McLennan, passando por Robertson Smith, a tradição anglo-saxônica de antropologia e a sociologia durkheimiana até Freud. Cada um destas referências teriam construído distintas concepções do totemismo, respectivamente: totemismo como “culto dos animais” (McLennan), como sacramento (Robertson Smith), como utilidade (antropologia anglo-saxônica), como neurose (Freud) e como autotranscendência (Durkheim). No capítulo 4, Jones apresenta uma detalhada análise do desenvolvimento da concepção durkheimiana de religião desde suas primeiras elaborações até o final da vida. 257.  Não é espaço aqui para descrever o cerimonial. Para o que se segue, ver o famoso cap.VII do livro II: [1912a] Formas Elementares, p.209-250, em especial seção III e seguintes. Vale indicar o interessante paralelo, feito por William Watts Miller (MILLER, 2005) e acompanhado por Weiss (2013, p.171-175), entre esse ritual australiano e o balé de Stravinski, Le sacré du printemps.

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por uma intensa carga de energia, que mobiliza todos os sentimentos que fazem a consciência ser projetada para fora de si. Tal como ele havia dito em Da Divisão, tal experiência intensamente afetiva precisa ser simbolizada, ou seja, tem que ser expressa pela consciência em movimentos corpóreos ou em exteriorizações materiais. Inicialmente, isso é feito na própria cerimônia por meio de emissões sonoras (gritos, músicas, etc.), movimentos corporais (gestos, danças, etc.) e instrumentos (como os boomerangs e bull-roares). Tal intensa energia afetiva desprendida pelo grupo desencadeia movimentos expressivos que, de seu lado, intensificam ainda mais as emoções. O próprio processo de expressão coletiva leva a uma forma cada vez mais homogênea, ritmada e uníssona de simbolização. Sendo um sentimento coletivo e expresso coletivamente, ele tende a ser posto em uma ordem comum. Eis que vai emergindo um movimento uniforme e estereotipado como uma forma de representação espontânea de sentimentos coletivos do instante. É um processo dinâmico de simbolização de sentimentos que, em feedback, contribui para reforçar e constituí-los. O primeiro ato de simbolização é, portanto, o de um movimento estereotipado. Contudo, Durkheim não encerra aí a sua análise da formação simbólica. O passo decisivo é dado quando o sentimento coletivo é objetivado em uma coisa que o simbolizará. Afinal, ele não pode ser expresso apenas em um instante fugaz por meio de movimentos corporais e pela música. Caso contrário, ele se esvairia logo após o término da própria experiência. Para que resista ao tempo, ele deve ganhar materialidade, ou seja, ele precisa ser projetado em algo, que pode ser desde emblemas materiais e representações figuradas até pessoas e fórmulas. Como as consciências precisam exprimir tal experiência sentimentalmente arrebatadora, quase que automaticamente se buscará exteriorizar o sentimento em algo. Como ela é coletiva, é necessário apenas que seja algum objeto tido comum ao grupo. É daí que, para Durkheim, nascem as coisas sagradas. Quando uma determinada coisa se torna expressão do sentimento coletivo (ou das ideias afetivamente investidas pelo grupo), ela passa a ser algo provido de caráter sagrado, ao qual se oporá tudo o que é visto

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como nãosagrado, profano. Mas como tal processo de simbolização é realizado? Dentre os vários objetos possíveis de representação, Durkheim dará uma ênfase especial a uma forma de emblematismo considerada por ele bem primitiva: a tatuagem. Para ele, a vida coletiva conduz os indivíduos a uma tendência instintiva de pintar ou gravar imagens sobre o corpo. A tatuagem é produzida, segundo ele, com um automatismo alheio a qualquer cálculo e reflexão, sendo o meio mais direto e expressivo de afirmar a comunhão das consciências. É importante que vejamos quais são as características da tatuagem, pois elas dizem muito sobre a teoria durkheimiana da simbolização. Mas antes dela, devemos assinalar que ele desenvolve sua teoria baseando-se em “leis” de associação das ideias bem aceitas em seu tempo e que são tomadas por ele como verdadeiras. Elas permitem compreender algumas propriedades do processo de simbolização do sagrado social, a começar pela sua ubiquidade, contagiosidade e necessidade de ser posto “em separado” (valendo lembrar que sagrado significa, etimologicamente, separado). Em primeiro lugar, ele pressupõe uma lei da semelhança, que diz que os sentimentos despertos em nós por uma coisa se transferem espontaneamente ao símbolo que a representa. Em outras palavras, o investimento afetivo pelo representado é transferido ao representante. Isso ocorreria, segundo ele, porque a ideia da coisa e a ideia de seu símbolo são estreitamente unidas nos nossos espíritos, de tal modo que as emoções provocadas por uma se estendem contagiosamente à outra. Em segundo lugar, ele assume a lei do contágio, que é uma espécie de corolário da anterior, que diz que a transferência de sentimentos entre o representado e seu símbolo é tanto maior e mais marcada quanto mais simples, definido e facilmente representável é o símbolo. Sendo o inverso verdadeiro: quanto mais complicado, complexo e difícil de ser representado, mais inadequado é o símbolo para a função de representar os sentimentos coletivos. Partindo de ambas as leis, Durkheim assume uma premissa maior central para o conceito de símbolo: a de que a relação entre o símbolo e a coisa simbolizada é completamente

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arbitrária.258 É uma teoria que atravessa a sua obra, estando mais ou menos explícita em todos os momentos em que ele reflete sobre a relação entre linguagem e pensamento. Contudo, ela adquire todo seu sentido ao tratar da questão da simbolização do sagrado. Para ele, não existe qualquer coisa que esteja vocacionada ou que seja incapaz de cumprir com a função de representar simbolicamente o sagrado. A coisa que o representa é resultado de projeções de sentimentos que a consciência objetivou, não havendo nada nela que esteja predestinado por sua natureza à função. O que determinará a escolha da coisa que servirá de símbolo são as circunstâncias em que determinados sentimentos são projetados em determinadas coisas. É por isso que a tatuagem cumpre bem com tal função simbólica em uma situação “primitiva”.259 Ela é, ao mesmo tempo, completamente arbitrária e inteiramente simples. Ela não tem a função de ícone que reproduziria, analogicamente, um aspecto ou um atributo do que é representado. Ela pode, inclusive, não ter qualquer traço que remeta, analogicamente (por cor, assemelhamento de forma, etc.) ao representado. Ela pode ser apenas uma simples figura composta de linhas e pontos com uma significação completamente convencional que, para o observador exterior, a torna inteiramente ininteligível. O que decide a natureza do símbolo é uma convenção (inconsciente) social motivada pela necessidade de simbolizar a força social subjacente que é sentida em comunhão. A sua arbitrariedade permite 258.  É importante assinalar, neste sentido, que Durkheim trabalha com um conceito de símbolo inteiramente diferente daquele de Saussure. O princípio de arbitrariedade do signo linguístico, defendido por Saussure, se aplica apenas aos signos e não aos símbolos. Enquanto os signos são arbitrários e imotivados, os símbolos são caracterizados pela sua relativa motivação e por manter um laço entre significante e significado que possui um rudimento de vínculo natural (tal como entre a justiça e a balança). Contudo, Durkheim não trabalha com a distinção saussuriana entre significante, significado e referente, o que o faz defender uma teoria do símbolo passível de fortes críticas, como veremos à frente. 259.  Assim como não me interessa discutir, aqui a natureza do “totemismo”, também não desejo entrar na questão da existência ou não de evolucionismo na teoria da religião de Durkheim. Como bem assinalou Lévi-Strauss, o caráter “elementar” ou “primitivo” das formas religiosas oscila em Durkheim entre uma concepção estrutural e outra evolucionista (do totemismo como “religião mais primitiva e mais simples que a observação nos permite conhecer”). Recuso-me a aceitar o evolucionismo e filio-me a uma interpretação de viés estruturalista.

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explicar, inclusive, um dos atributos dos objetos sagrados: o de que “a parte vale o todo”. Como é possível se assumir, em um ritual qualquer, que a gota de sangue vale o sangue? Para que tal princípio seja inteligível, é necessário que se assuma que o ser sagrado permanece igual a si mesmo muito embora tenha se dividido em partes ínfimas. Isso somente ocorre, segundo Durkheim, porque tem uma diferença absoluta em relação à coisa. A “gota-de-sangue” (símbolo) não representa o “sangue-coisa”, mas sim um “isso” sentido e representado, em toda a sua integridade, por uma projeção sobre o “sangue-coisa” ou a “ideia de sangue”. Digamos que a relação do símbolo ao representado é de evocação, e não de designação. Basta uma parte do símbolo para que ela evoque o todo do representante – a saber, o sentimento coletivo compartilhado por todos. Em conformidade com a supramencionada lei da semelhança, ele considera, assim, que o símbolo evoca as mesmas representações emotivas que o objeto representado, tais como sentimentos de amor, respeito, temor, etc. Ele é, então, uma representação figurativa que, condensando os sentimentos coletivos nele projetados, possui um papel evocador. Tal função evocadora do símbolo em relação ao sagrado é inteiramente compatível com o segundo atributo da tatuagem: a sua simplicidade. Isso a torna o meio mais adequado de transferência de sentimentos, porque a energia projetada nela pode fluir mais facilmente. Quando queremos representar um sentimento, dificilmente ele poderá ser feito, para Durkheim, por meio de entidades abstratas (ideias pura e simples), pois elas somente podem ser pensadas laboriosa e confusamente. Por essa razão escolhemos, ao invés de ideias, algum objeto material de nosso campo de experiência. Contudo, qualquer objeto tem uma complexidade organizacional difícil de ser abarcada pelo pensamento (é tridimensional, tem várias partes, etc.); é por isso que optamos, normalmente, por um signo que evoque a coisa material que representa o sagrado social. Nas Formas Elementares temos então uma teoria do simbólico chegando a seu pleno desenvolvimento. Se, em Da Divisão, poderíamos identificar uma teoria implícita do processo de simbolização das forças morais da sociedade atuando de forma afetiva

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sobre o complexo orgânico-psíquico dos indivíduos, agora ela está elaborada com todas as letras: o símbolo representa as forças morais exteriores, coercitivas e independentes. Tal fato explica a objetividade da significação dos símbolos em relação às variações das consciências: a sua objetividade não faz senão traduzir a exterioridade da força. Mas qual a função do processo de simbolização para a sociedade? O sistema simbólico religioso, composto por crenças e práticas estruturadas pela oposição entre sagrado e profano e organizadas em uma coletividade (que Durkheim chama de “igreja”), tem função de expressar e reproduzir, de forma figurada, a integração da sociedade, ou seja, as ideias, sentimentos e práticas que todos comungam. Mas e a forma elementar de crença religiosa, o totemismo, qual a sua função? Podemos dizer, com ele, que ele possui uma tripla função. Em primeiro lugar, ele é útil ao grupo, uma vez que exprime a unidade social sob uma forma material, tornando-a sensível a todos e fazendo com que o grupo adquira consciência de si. Em segundo lugar, ele é constitutivo, porque faz com que as consciências individuais possam traduzir seus estados interiores e se comunicar mutuamente pela fusão de todos os sentimentos individuais em uma única e só resultante – o símbolo –, de forma a gerar uma efetiva unidade moral. Por último, ele tem uma função mnemônica, porque garante a continuidade do grupo ao fazê-lo perseverar sob a forma de uma memória inscrita nas coisas, sempre presente e periodicamente reavivada por práticas rituais daqueles sentimentos arrebatadores, o que permite que eles perseverem e atuem no tempo, como se a causa que os suscitou continuasse a agir depois de ter sido extinguida. Se as coisas sagradas obedecem às leis da associação das ideias – semelhança, oposição e contágio –, isso não quer dizer, contudo, que a sua contagiosidade seja explicada por tais operações formais do espírito. Se as forças contagiam e desencadeiam um processo associativo emocional em que o sagrado parece invadir a tudo e tendo que ser posto em separado, protegido do que é profano, isso ocorre, para ele, porque as forças coletivas são muito intensas e assim acarretam a circulação de energia e a transformação de um estado de consciência a outro. Ou seja, as próprias forças, projetadas

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sobre as coisas e ideias, que são contagiosas, não devendo às nossas tendências de assemelhar, transferir e opor. Caso o indivíduo fosse deixado apenas em seu estado primário de operador formal de ideias, ele jamais derivaria disso, para Durkheim, um sistema cosmológico estruturado, mas tão somente ideias confusas, misturadas e incomunicáveis. Portanto, se, de um lado, os símbolos são puramente arbitrários e convencionais a priori, por outro, como há uma ideia sagrada estruturadora do sistema simbólico, conduzindo o indivíduo a associar as mais diversas coisas da experiência tendo por referência a ideia primitiva e a oposição estrutural entre sagrado e profano, ocorre, então, que, a posteriori, os símbolos são necessários e representam efetivamente uma realidade subjacente. Eis, portanto, em que consiste a teoria dinamogênica da religião. Seu esclarecimento depende das três dimensões do pensamento durkheimiano tratadas ao longo deste capítulo: a ontologia vitalista do social, a antropologia do homem sentimental e, por fim, a teoria do processo de simbolização social. A teoria durkheimiana da religião é a forma mais acabada de sua teoria da sociedade e, portanto, de sua sociologia. À primeira vista, essa espécie de “energética” do social parece muito estranha; e não faltam aqueles a concordar com a acusação crítica de Lévi-Strauss de que a concepção sentimental de sociedade de Durkheim é um resquício de “misticismo”. A crítica é feita, indiretamente, por exemplo, quando Lévi-Strauss fala do erro cometido por Marcel Mauss ao explicar a obrigação de dar, receber e retribuir presente, nas trocas de dons arcaicos, pelo recurso à teoria nativa do hau. Para explicar o que obriga as pessoas a trocar, Mauss recorreu, de forma inteiramente durkheimiana, a uma “energética” do social encontrando na teoria nativa um termo que remete à força que obriga as pessoas ao dom. Para Lévi-Strauss, Mauss manifestou aí uma incapacidade de se liberar do sentimentalismo durkheimiano, precisando então de “um cimento afetivo e místico” para explicar as operações de síntese operadas pelo simbolismo: A troca não é um edifício complexo, construído a partir das obrigações de dar, de receber e de retribuir, com o auxílio de um ci-

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mento afetivo e místico. É uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico que, na troca como em qualquer outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as coisas como os elementos do diálogo, simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e destinadas por natureza a passarem de um a outro. Que elas sejam de um ou de outro representa uma situação derivada relativamente ao caráter relacional inicial [...] A noção de mana [assim como a de hau] não é da ordem do real, mas da ordem do pensamento que, mesmo quando se pensa ele próprio, nunca pensa senão um objeto. É no caráter relacional do pensamento simbólico que podemos buscar a resposta ao nosso problema.260

Esta passagem sintetiza com força a diferença entre a teoria durkheimiana e a teoria lévi-straussiana do simbólico. Do lado durkheimiano, encontramos uma teoria dinamogênica do simbolismo, fortemente emocionalista, em que o processo de simbolização é antes de tudo expressivista, derivativamente cognitivista; do lado lévistraussiano, temos uma teoria estruturalista do simbólico, fortemente intelectualista, que compreende o processo de simbolização como operado pelas estruturas inconscientes de um espírito humano formal e vazio. Tudo se joga em uma problemática de fundo, inteiramente kantiana, acerca da instância operadora das sínteses a priori e das estruturas formais do entendimento humano. Descobrimos aqui, no final de um percurso da força ao símbolo, como Durkheim construiu uma teoria do simbólico a partir de uma ontologia vitalista e de uma compreensão do humano como animal antes de tudo sentimental e sempre dual, em que a síntese que permite a comunicação entre as consciências individuais é operada por meio de uma energética ubíqua e pervasiva chamada sociedade. No próximo capítulo, de Gomes Neto, veremos como o mesmo Durkheim e nas mesmas Formas Elementares, contribui para uma epistemologia e uma sociologia do conhecimento que responde ao desafio kantiano, presente na Crítica da Razão Pura, das condições de possibilidade dos juízos 260.  LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à obra de Marcel Mauss (1950). In: MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950. p. 40-41 (alguns grifos são meus).

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sintéticos a priori, das operações formais do entendimento e da unidade originária da apercepção, com a construção de sua teoria das categorias socio-lógicas de classificação. Para encerrar a nossa análise, é importante apresentar agora duas fortes críticas à sociologia durkheimiana, feitas por Bruno Karsenti e Camille Tarot, que nos fazem refletir – de forma próxima a LéviStrauss, mas já liberada dos extremos que caracterizaram a época heroica do estruturalismo –, sobre os limites da ontologia, antropologia e teoria do simbólico de Durkheim. Entre Símbolo, Condensação e Sintoma: Os Limites da Representação e o Esquecimento da Linguagem A sociologia durkheimiana começa com a dinamogenia (ou energética) e se consuma no simbolismo, atribuindo ao sociólogo o papel de um hermeneuta bem especial capaz de descobrir, sob as formas simbólicas, as forças sociais subjacentes. Cabe-nos, no fim deste percurso, pensar alguns de seus limites. Antes de tudo, é importante reconhecer, com Bruno Karsenti, que Durkheim não diferencia adequadamente as noções de imagem, de signo e de símbolo.261 Tal fato seria característico de um pensamento da representação ainda preso às concepções psicológicas do século XIX, dentre elas a concepção de uma consciência constitutivamente fechada em relação ao exterior e a consideração do símbolo como sendo uma cópia da realidade, um reflexo. Neste caso, o laço entre significante e significado, ou entre símbolo e simbolizado, se daria por um processo figurativo de substituição de uma realidade por outra. Como representar (espelhar) o “real” percebido na nossa mente e como expressá-lo por palavras? Eis a questão fundamental que anima o pensamento representacionista, que é radicalmente criticado no capítulo IV, de Marcelo de Oliveira, a partir da arqueologia de Foucault. Por causa desta forma de pensar, Durkheim se viu, segundo 261.  Para o que se segue, ver: KARSENTI, B. L’homme total: Sociologie, anthropologie et philosophie chez Marcel Mauss. Paris: PUF, 1997. p.207-220.

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Karsenti, na necessidade de tornar o simbolismo inteligível por meio de uma hipóstase do social como um tipo psíquico coletivo. Como vimos, de fato, o social é pensado a partir de uma analogia com a vida psíquica, o que o conduziu a uma personificação da sociedade realizada a partir do reconhecimento científico da existência de fenômenos de emergência. Por sua vez, outro teórico francês do simbólico e intérprete de Durkheim, Camille Tarot262, considera que falta a ele uma teoria mais completa do simbolismo e da linguagem que seja capaz de servir de ‘cursor’ para sua “tópica da consciência coletiva”.263 Se Durkheim representa, de fato, a sociedade como camadas, estratos e funções, ele somente as consegue religar por meio da ação mecânica de uma sobre a outra. Apesar de conceber uma realidade atravessada por uma energia libidinal, ao invés de transformar tal tópica em uma hermenêutica do simbolismo sensível à lógica da linguagem, Durkheim teria eliminado o papel da linguagem. Isso porque, segundo Tarot, se nele temos uma hermenêutica, ela serve apenas para evacuar os signos, pois o trabalho de interpretação os afasta ao considerá-los como expressões de forças sociais operando “por debaixo”. Tal teoria do simbólico se preocupa em atingir um “real” espelhado metaforicamente pelo simbólico, importando muito pouco a ela a lógica simbólica e as relações entre os signos em si mesmos. O processo de interpretação é sempre o mesmo: o de buscar a realidade, a força moral, sob a letra. Tarot repete, portanto, Karsenti, vendo nesta teoria do simbólico um pensamento que busca uma representação transparente que seja capaz de espelhar o real em si mesmo, esquecendo-se, para tanto, 262.  Para o que se segue, ver: TAROT, Camille. De Durkheim à Mauss, l’invention Du symbolique: sociologie et science des religions. Paris: La Découverte, 1999. p. 245-64. 263.  Tarot fala em “tópica” no sentido freudiano, pois vê interessantes analogias entre a tópica freudiana e a teoria dinamogênica do social. O que não deixa de indicar um caminho muito promissor de uma interpretação de Durkheim inspirada no que Ricoeur fez de Freud em De l’Intérpretation (1965). Ricoeur entende que o psicanalista construiu uma teoria que é, ao mesmo tempo, energética e hermenêutica, e que somente pode ser aceita em bloco, sem que se faça a opção entre um modelo ou outro. Cabe, assim, entender como eles se integram, o que é também integrar as dimensões da explicação e da compreensão.

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da linguagem em sua autonomia relativa. Seguindo um racionalismo clássico, ele entende que o símbolo e a linguagem são uma vestimenta e uma alegoria do real ou da ideia. O símbolo é uma representação que esconde o outro dela, um duplo que cria uma imagem perturbadora gerando confusão. O intérprete tem o trabalho de remeter o símbolo à representação simples, “clara e distinta”, “por detrás” das imagens e metáforas. A primeira representação, que é o “sentido manifesto”, é uma figura que esconde o sentido próprio, único e unívoco, o “sentido latente”. Quando recolocamos o sentido adequado no lugar do sentido figurado, o trabalho de interpretação terminou e chegamos, por fim, à ciência. Ora, como vimos na primeira seção, a política da sociologia em prol da dignidade da pessoa humana, defendida no caso Dreyfus, indicou um dilema diante do qual devemos optar: ou a realidade subjacente acessível e revelável pelo método científico, ou as metáforas e figurações distorcidas da realidade propostas pelos sistemas religiosos. Nas Formas Elementares, ele é ainda mais direto e claro: ou Deus ou a sociedade. Independente da importância de tal posicionamento em um momento marcado pelo movimento anticlericalista essencial para a modernização cultural francesa, o fato é que a teoria durkheimiana entende, em conformidade com a “episteme clássica”, para falarmos com o Foucault d’As Palavras e as Coisas, que o aparelho simbólico humano opera, em grande parte, ornamentado por metáforas, tropos e outras presenças indevidas do médium linguístico, que distorcem seu bom uso e devem ser tratadas terapeuticamente pelo cientista. Com isso, a hermenêutica sociológica pode se tornar um pretenso atalho percorrido da aparência da linguagem à realidade social; atalho que só pode ser seguido caso nos desembaracemos dos tortuosos caminhos da linguagem em todo o seu volume e espessura. Caso aceitemos as críticas de Karsenti e Tarot, temos que reconhecer que a hermenêutica durkheimiana funda-se em uma teoria do simbólico que não discerne adequadamente o conceito de símbolo e não possui uma teoria da linguagem. Qual é, afinal, o significado do conceito durkheimiano de símbolo? Do que foi dito acima, vemos antes de tudo que ele entende, de modo representacionista, símbolo

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como uma expressão material de alguma outra coisa. Se seguirmos Tarot, descobrimos que, por além deste significado unívoco, ele o compreende em três sentidos distintos: como símbolo, como condensação e como sintoma (Cf. TAROT, ibid., p.248-50). Primeiramente, temos o conceito de símbolo entendido, de forma crítica, em sentido tirado da retórica, como tropos ou figura de retórica. Neste caso, símbolo é uma metáfora que exprime algo de determinado modo, com um benefício estilístico, poético, imaginário ou afetivo que contribui para o processo persuasivo, mas sem que possua em si uma verdade ou conteúdo. A partir desta compreensão, temos a tarefa do intérprete, tal como dissemos acima, de traduzir o símbolo para uma expressão direta do real ou do que está sendo dito. Para citar um exemplo: dado que as diversas formas simbólicas da religião são figurações, metáforas, etc., que expressam de diversas formas a mesma coisa – a existência de uma força social subjacente e de uma organização morfológica específica –, o sociólogo não tem que se preocupar com o que se manifesta na e pela metáfora, poética, alegoria, etc., pois ele já sabe que ela distorce a realidade social que é, afinal, a única que interessa. Com isso, perde-se toda uma sensibilidade para a poética da linguagem e o caráter “vivo” das metáforas, para aludirmos aqui a Paul Ricoeur. Em segundo lugar, temos uma compreensão de símbolo como imagem de condensação e cristalização. Se, no primeiro sentido, temos uma concepção de símbolo que exige o trabalho do hermeneuta para se desfazer dos ornamentos da linguagem a fim de acessar o real, no segundo sentido temos outra aplicação da mesma noção de forma a permitir ao intérprete descobrir a presença do social. Isso porque, neste caso, os símbolos são intuições ou pressentimentos, muito obscurecidos e impossíveis de serem expressos em palavras, de algo que se sente, mas que não se sabe: a força social que nos move. O processo de simbolização é, neste sentido, a condensação de uma apercepção sensível imediata, pré-linguística ou ante-predicativa, somente exprimível por noções tão polissêmicas e confusas como o mana melanésio ou o hau maori. Nelas, o pensamento se condensa gerando uma confusão de uma multidão de coisas que um pensamento claro distingue e desdobra por juízos analíticos. Tal concepção de relação

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entre o pensamento e a linguagem é encontrada em passagens desde a juventude de Durkheim. É ela que permite ao sociólogo discorrer, nos escritos de educação ou no final da Divisão do Trabalho, a respeito do hiato existente entre o que a alma sente e a linguagem permite dizer, ou entre a “ciência viva” e a “ciência teorizada”. Nestas passagens, o pensamento “espontâneo” ou a prática “vivida” são tidos como espécie de “alma” da qual apenas uma ínfima parte toma corpo em proposições linguísticas. É ela que está presente, também, na sua concepção da linguagem – que é, para ele, “coisa social por excelência” – como uma forma que se impõe, exterior e coercitivamente, sobre a sensibilidade e o pensamento dos indivíduos, possibilitando assim a emergência de conceitos e de um pensamento analítico sobre e acima do que é sentido, pensado ou desejado, na origem, de forma confusa, indistinta e egocentricamente. Por último, encontramos uma concepção clínica de símbolo, tirada da semiologia médica, tido como sintoma. Nesta perspectiva, determinado símbolo (palavra, gesto, ato, etc.) representa, de modo indireto e latente, uma disfunção da vida social. O sociólogo será então um semiólogo treinado tal como o médico, voltado a sondar, auscultar, interpretar sintomas de uma patologia subjacente, a fim de realizar um diagnóstico, um prognóstico e uma terapêutica. Vimos anteriormente, ao falar sobre a relação entre a letra e o espírito, como ele trabalha com esta noção de símbolo (seção 2.4). Tarot considera que esta noção de símbolo é aquela que preside a visão durkheimiana de religião como “delírio bem fundado”. Não concordo com isso, pois a interpretação durkheimiana das formas religiosas corresponde mais a uma hermenêutica da confiança que vê nos símbolos, entendidos na segunda acepção, como condensação de uma afecção alegre intuída de modo confuso. Elas são, desta forma, não sintomas, mais índices. Representam o funcionamento “saudável” do social. Contrariamente a isso, encontramos as interpretações sintomáticas no livro III da Divisão do Trabalho, ao discorrer sobre as suas formas anômicas, e no Suicídio, quando trata dos casos “epidêmicos” de suicídios egoístas e anômicos. Em ambos os acasos, ele realiza diagnósticos de patologia, dos quais deriva propostas terapêuticas reformistas.

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Em suma, encontramos três concepções de símbolo, tratadas sem o devido discernimento teórico, operando na teoria social de Durkheim. Não devemos, contudo, pensá-los como não estando articulados. Ao contrário, como bem acentuou Tarot, eles têm algo em comum: a concepção de sintoma está de acordo com a de metáfora ou tropo, que, por sua vez, não contradiz a de condensação-imagem. O mais importante, aqui, é chegar ao ponto crítico da teria do simbólico e da hermenêutica durkheimiana: será que, em Durkheim, o símbolo não tem um alcance verdadeiramente semântico e não entra em uma ordem própria, uma vez que ele apenas exprime uma força, seja ela uma emoção, uma condensação-imagem-ainda-não-formulada ou o esforço de uma vida que luta contra a anomia ou morte? Tanto para Tarot como para Karsenti, ambos na esteira de Lévi-Strauss, Durkheim não consegue pensar a natureza simbólica dos fatos sociais, pois ele acaba por se reduzir a explicar a natureza social dos fatos simbólicos. Tarot considera que, ao enfatizar o caráter arbitrário dos símbolos, Durkheim não se preocupou em interpretar os significantes em sua presença material no simbolismo, sendo incapaz, por isso, de abordar o estudo da linguagem em si mesma, tomada como um sistema a ser estudado a partir do exterior (Ibid., p.254). Dito de outro modo, Durkheim ignoraria as remissões de significantes e as redes de significações, apressando-se a ligar os símbolos à força que foi projetada e investida neles. Nesta teorização, como vimos, o elemento intelectual acaba por ficar muito reduzido face ao efeito de concentração das forças emocionais, de forma que o que retém a atenção de Durkheim é, de um lado, a energia que se fixa ou se projeta sobre os signos e, de outro, a forma social – morfologia do grupo – que a canaliza constituindo um sistema categorial de classificação. É assim que as categorias de pensamento são vistas como correlatas aos fatos da morfologia, sem que as conceba na relação com os sistemas de signos que as exprimem. Desta forma, a simbolização é vista como resultando, antes de tudo, de um mecanismo automático e espontâneo propulsionado por forças anteriores ao pensamento reflexivo; portanto, como uma espécie de síntese que não podemos produzir “a frio”, mas só “a quente”, por meio dos processos de efervescência coletiva.

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A respeito disso, cabe-nos perceber a última implicação desta teoria. Se, como dissemos, Lévi-Strauss considera a explicação durkheimiana por meio da força moral como um resquício de metafísica mística, tal fato tem implicações para a noção de inconsciente. Contrariamente ao inconsciente estrutural, formal e vazio do “kantismo sem sujeito transcendental”, defendido por Lévi-Strauss, temos, em Durkheim, um inconsciente dinamogênico, com uma origem pulsional mais próxima de Freud do que de Lévi-Strauss ou Lacan. Da força ao símbolo, a inconsciente presença dinamogênica da sociedade nos força, enfim, a pensar e agir, fortalecendo-nos a vida ou inclinando-nos a por ela morrer... 4. Conclusão: Século Passado, Pensamento Presente Dissemos no início deste ensaio que Durkheim formulou uma resposta radical às questões de seu tempo. Será que tais respostas ainda nos são atuais? Para que pensemos a possível atualidade de seu pensamento, reflitamos, em conclusão, sobre algumas articulações entre as dimensões política, ontológica e antropológica do pensamento durkheimiano. A começar pela questão política. Não há poucas semelhanças entre nossos problemas contemporâneos e os da época de Durkheim. Muitas das questões da virada do século XIX ao XX retornaram na vaga liberal da passagem ao século XXI. Vivemos, assim como Durkheim, uma crise do liberalismo. Também é nosso o problema de um liberalismo reduzido, erroneamente, a um utilitarismo à medida de um economicismo incapaz de pensar o social sem reduzi-lo ao mercado. Deste liberalismo utilitarista deriva aquele problema já diagnosticado pelo velho sociólogo: afirmando-se num individualismo mal compreendido – intransigente, egocêntrico, apequenado ao interesse próprio, quiçá cínico e niilista –, o indivíduo torna-se incapaz de reconhecer os laços de solidariedade dos quais depende para se tornar uma pessoa autônoma; e, com isso, as autoridades morais necessárias e promotoras de democratização se extinguem, perdem eficácia e mesmo se tornam impensáveis. Não por acaso

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autores tão diferentes como Alain Renaut, Marcel Gauchet e Slavoj Zizek falam em “fim” ou “crise de autoridade”. Da combinação de um individualismo intransigente com um utilitarismo pervasivo, resulta a “permissividade” neoliberal, como gosta de falar Zizek, bem na medida de um capitalismo avançado que, em fuga para frente, dissolve o político e deixa aos indivíduos não muito mais do que a adaptação sistêmica e o salve-se quem puder. Mas Durkheim não teria qualquer atualidade caso ele se reduzisse à crítica de um individualismo utilitarista a favor de um individualismo moral. Como vimos, ele se propõe a sintetizar o liberalismo e a revolução, os direitos do homem com a solidariedade e a justiça social. A agenda durkheimiana não é, portanto, apenas moral, mas econômica, política e social, bem próxima à tradição socialista reformista. Ora, nada mais atual, hoje, do que projetos políticos que levem a sério as duas dimensões do regime democrático: a liberal (autonomia e direitos dos indivíduos), e a democrática (autogoverno da vontade geral). Por essa razão, Durkheim e seus colegas da tradição democrático-republicana devem ser retomados com atenção. Em uma era pós-totalitária como a nossa, em que a vertente revolucionária do socialismo fracassou retumbantemente e a social-democracia clássica recua em todo mundo, estamos às voltas com um problema muito semelhante ao pré-guerra: a busca de uma síntese reformista entre o liberalismo e o socialismo. Caso não façamos esforço neste sentido, pode não restar à esquerda muito mais do que a oscilação entre quatro possíveis: a nostalgia pelo heroísmo revolucionário de outrora; a promoção de populismos de esquerda (com certa simpatia pelos de direita); a “linha de fuga” de um anarquismo libertário bem afim à dinâmica de nosso hodierno “capitalismo deleuziano”; ou, por fim, a torcida esperançosa, de camarote, por um apocalipse final ou o erguer das multidões. Nesta falência geral, parece restar àqueles que recusam a fragmentação, a atomização e o cinismo generalizado e que desejam, de certa forma, compatibilizar liberdade, solidariedade, justiça e autoridade moral, apenas a opção ao apelo às religiões e formas comunitárias de vida, vistas como legítimas reservas de sentido e formas de resistência ao

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curso das coisas. Noves-fora-zero, temos os recursos a rebeldias e populismos “trumpistas”, bem próprios à tradição contrarrevolucionária das quais fluem os fascismos. Atravessando, contudo, este campo dos possíveis, há um eco durkheimiano ressoando por todos os lados dizendo: “é a solidariedade, estúpido!”. Ora, “quem não reivindica hoje solidariedade?”, pergunta provocativamente Marie-Claude Blais, para então concluir: “A solidariedade poderia muito bem ser o nome que a obrigação social assume na hora do direito dos indivíduos [ou seja, dos direitos do homem]” (BLAIS, op.cit., p.9). Estou em pleno acordo com Blais, ao ver que nossas condições são análogas àquelas presentes nos tempos de Durkheim, quando o termo “solidariedade” foi consagrado. Se vivemos hoje “um refluxo das soluções coletivistas, o apagamento do modelo marxista da luta de classes, a ascensão do individualismo jurídico e o ressurgimento ofensivo do liberalismo econômico”, tudo isso conduz a uma renovação da problemática subjacente à “matriz intelectual que havia imposto a categoria de solidariedade como a única a pôr de acordo a liberdade e o laço, a independência dos seres e sua interdependência, a responsabilidade de cada um e a proteção de todos” (ibid., p.14). Tal afirmação nos remete ao que expusemos na Introdução, quando dissemos que a IIIa República vivia em uma crise de representação política resultante da atomização, secularização e subjetivação. Foi daí que nasceu a questão da solidariedade, que é, ao mesmo tempo, teórica, moral, política e, igualmente, social, porque não existem direitos sociais sem a antecedência de uma solidariedade que os justifique conforme princípios de justiça, distribuição e redistribuição. Como nos disse Rosanvallon, tratava-se, para Durkheim, de consolidar uma nova solidariedade, compatível com o liberalismo e articulada à reconstrução da democracia, tudo isso propondo uma nova forma de representação do social em que o campo político fosse capaz de reconhecer a sociedade em sua complexidade, diversidade e espontaneidade. Ora, nada mais atual.264 264.  Para somente dar três exemplos da atualidade da política durkheimiana: (a) Serge Paugam elabora, no livro de referência, organizado por ele, sobre as novas formas de solidariedade, uma reflexão sobre a importância de Durkheim e do solidarismo para a

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É deste novo projeto de representação que vimos nascer sua ontologia vitalista. Pois uma das grandes forças do pensamento durkheimiano está em combater o individualismo mal compreendido por meio de uma teoria emergentista do social. Como foi dito na Introdução, a sociologia sempre se depara com o seguinte problema: dado que a sociedade é intangível, será que ela realmente existe e tem um estatuto ontológico, ou ela é apenas um ser nominal? Durkheim será um dos primeiros a perceber que esta questão é crucial para a fundação da sociologia e para lidar com as questões políticas. Vimos que ele assume uma posição realista: sim, as sociedades existem ontologicamente e podem ser estudadas metodicamente. Como bem assinala Sawyer (2002, p. 227), as filosofias do século XIX tendiam a oscilar entre dois possíveis ontológicos – um atomismo utilitarista e um organicismo metafísico –, como se houvesse um dilema entre, de um lado, ser cientista logo atomista, e, de outro, ser metafísico logo holista. Como vimos, entre a economia política, o direito natural moderno, o individualismo moral kantiano, a tradição revolucionária francesa e o liberalismo utilitarista havia, para Durkheim, uma cumplicidade ontológica: a de um individualismo atomista, que se traduzia, metodologicamente, em um método de “análise ideológica”. Contrário a isso, Durkheim construirá uma teoria da emergência do social por meio de associações entre forças morais, o que podemos ver agora como uma tentativa de resolver pelo fenômeno de emergência o dilema entre atomismo e holismo consolidação da questão social na França e do próprio Estado social francês (PAUGAM, 2007); mais recentemente, ele se propõe a desenvolver uma teoria dos vínculos sociais por meio da reconstrução atualizada de seu esboço presente em Durkheim (PAUGAM, 2013, 2017); (b) nas contribuições ao debate ético e à teoria democrática, a questão durkheimiana da sacralização da pessoa humana aparece como candidata a meio de solidarização em sociedades complexas, em Luc Ferry (2010) (sem que ele tenha conhecimento da obra de Durkheim), ou em Hans Joas (2012) – para não mencionarmos as teorias sociais de Habermas, Honneth e cia.; (c) por fim, nas suas propostas reformistas que respondam às mutações das democracias contemporâneas, Rosanvallon retoma a proposta durkheimiana de uma democracia reflexiva e deliberativa, presente nas Lições de Sociologia, dizendo que a compreensão dupla da democracia, presente em Durkheim, como sendo ao mesmo tempo um modo de governo e uma forma de sociedade, se assemelha à do próprio Rosanvallon, só que o historiador francês a “radicalizou pelas urgências de nosso presente” (ROSANVALLON, 2015, p.301).

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(Ibid., p.237).265 Neste sentido, as críticas à ontologia durkheimiana como sendo uma hipóstase da sociedade decorrem, em grande parte, de uma incompreensão deste argumento emergentista; o que é uma enorme perda, pois “a premissa chave que unifica toda a obra de Durkheim é a tentativa de dar conta tanto da emergência do social a partir do individual, quanto da retroação [downward causation] do social para o individual” (ibid., p.227). Poucos conseguem, portanto, conectar as duas pontas da teoria: a concepção de social “como coisa” e a visão de uma sociedade que “emerge” como um todo maior que a soma das partes. Conexão que buscamos fazer. Na falta disso, ele é visto, ao mesmo tempo, como “positivista” – que reifica a sociedade –, e “metafísico” – que a personaliza e fetichiza. Na ausência de percepção do elemento central da teorização, volta-se ad nauseam ao velho chavão de Durkheim como um “antiindividualista” e, logo, um autoritário de fato ou “tendencialmente”. Caso leiamos Durkheim como um teórico vitalista que reconhece os fenômenos de emergência, descobrimos que o indivíduo é constituído pela sociedade por meio de uma dialética encontrada em sistemas complexos com retroalimentação causal (Ibid., p.2345). Vimos que tal processo é, para ele, condição de possibilidade para a personalização ao liberar os indivíduos do determinismo natural da hereditariedade e constituição orgânico-psíquico – é um processo civilizador efetivado por causalidades eficientes, que permitem os indivíduos de tornar as forças sociais como fontes de sua autonomia ao pensá-las e agir com conhecimento de causa. Tal articulação do político ao ontológico, pela via dos fenômenos de associação de forças morais e de emergência, conduz-nos, enfim, à última dimensão: a de uma antropologia dos afetos. Não faltam críti265.  Sawyer mostra que a teoria emergentista do social de Durkheim não apenas é contrária a qualquer metafísica ou misticismo, como também pode ser atualizada e revista em diálogo com as aquisições cognitivas oriundas das filosofias da mente desenvolvidas desde a década de 1960. Infelizmente, ao opor-se aos intérpretes durkheimianos, tal como J. Alexander, que assumem a perspectiva de uma teoria voluntarista da ação, Sawyer desconsidera a dimensão dinamogênica de Durkheim, recusando-se a ver nos seus desenvolvimentos sobre os sentimentos coletivos e as representões passionais algo pertinente para a problemática da emergência.

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cas, como bem vimos, aos riscos presentes na teoria durkheimiana das forças morais e dos sentimentos coletivos. Ao tratar da dimensão antropológica, desenvolvida por ele em franca apropriação da psicologia de sua época, busquei esclarecer como o processo de emergência social se daria na e pelas consciências individuais. Pudemos descobrir, então, uma centralidade dos afetos ao longo da obra durkheimiana, como sendo corolário de sua teoria da sociedade como sendo composta por forças morais. Se, de fato, não podemos mais nos convencer facilmente de tais argumentações, pois são respaldadas por uma psicofisiologia e uma psicologia social do século XIX, cabe-nos, contudo, não aceitar, de pronto, a recusa da sensibilidade durkheimiana ao papel dos afetos na constituição simbólica dos laços sociais e na construção de uma intersubjetividade genésica. Ao invés de incorporar sem delongas a argumentação lévi-straussiana contra o “sentimentalismo” e a favor de uma “psicologia não-intelectualista”, vale a pena explorar o potencial de atualização da sua argumentação antropológica, desenvolvendo possíveis elucidações de processos, ao mesmo tempo, filo-, onto- e sociogenéticos.266 Elas poderão informar uma antropossociologia dos afetos e das emoções, para a qual Randall Collins (2004) contribuiu com sua teoria das cadeias rituais. Desta forma, ao invés de fechar o debate durkheimiano, deixemonos afetar pelo seu pensamento e tentemos responder, talvez, pelos recursos da ciência, à sua problemática nuclear, que foi o leitmotiv de nosso texto: como é possível que possam sair das forças afetivas formas simbólicas, e da energia libidinal, uma ordem estável? (TAROT, op.cit., p.258). Respondê-la exige-nos uma atenção especial ao tertium quid 266.  Pode-se também realizar um diálogo com as ciências naturais, tais como (a) os conhecimentos adquiridos com as neurociências e as ciências cognitivas - penso, por exemplo, em uma apropriação das teses de um Antonio Damasio (2005); (b) a teoria da complexidade de Edgar Morin, desenvolvida em seu Método (2006); (c) ou, por fim, as investigações, tal como aquela de Steven Mithen em The Singing Neanderthals (2007), sobre o processo de hominização e de desenvolvimento (recursivo) de mente, corpo e linguagem, tomando como forças geradoras as experiências afetivas propiciadas pela dança e a música (nascidas conjuntamente com a emergência da sociedade) - uma investigação que às vezes lembra as argumentações durkheimianas presentes tanto em Da Divisão, quanto em Formas Elementares, mas lembra, também e sobretudo, as de Mead em Mind, Self and Society.

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da realidade, a linguagem, o que nos leva além e contra Durkheim. Mas podemos seguir tal rumo incorporando os aprendizados adquiridos no percurso de sua obra: a física, a vida, o corpo, a mente e o social, são realidades sui generis, certamente, mas inteira e complexamente conectadas.

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CAPÍTULO III AS CATEGORIAS SOCIO-LÓGICAS DO PENSAMENTO: DURKHEIM, HERDEIRO CRÍTICO DE KANT Jayme Gomes Neto

A questão das categorias do pensamento não foi enunciada originalmente, como se sabe, pela sociologia, mas sim pela filosofia e remonta à teoria do conhecimento. Ela concerne, na filosofia moderna, a uma tradição que se interroga sobre o conhecimento humano em termos da justificação de suas condições de possibilidade. Perguntar-se pelo conhecimento é, nesse caso, perguntar-se pelas categorias ou conceitos sem os quais ele não seria possível. Trata-se, pois, de uma investigação que busca desvelar à consciência um conjunto de noções fundamentais que estariam a guiar os processos de identificação, diferenciação e síntese intelectuais, isto é, processos entendidos como indissociáveis de todo o pensamento conceitual. Em 1903, Durkheim e seu sobrinho Marcel Mauss encontravam-se às voltas com o mesmo problema.267 Diferentemente da tradição filosófica, no entanto, eles acreditavam poder encontrar a chave de compreensão do pensamento conceitual por meio do esclarecimento de suas condições sociais. Anos mais tarde, imbuído da mesma pretensão, Durkheim se pôs a investigar aquelas noções que consistiriam, segundo ele, a “ossatura de nossa inteligência”, isto é, aquele conjunto de noções capazes de estruturar todas as demais. Nas Formas Elementares (1912), sua última grande obra, ele tentou 267. 

[1903a] De quelques formes de classification.

fornecer, então, um tratamento original aos conceitos de tempo, espaço, força, causalidade, gênero e totalidade, compreendidos como indispensáveis a todo e qualquer pensamento humano. O objetivo de nosso capítulo é não apenas o de apresentar alguns dos passos que levaram à enunciação deste projeto no seio da sociologia, mas também esclarecer alguns pressupostos fundamentais da argumentação durkheimiana. Uma apreciação adequada do que se encontrava em jogo nesse tipo de questão, entretanto, não pode ser dissociada de algumas breves considerações sobre a filosofia kantiana. Kant foi quem forneceu, no interior da filosofia moderna, o tratamento mais sistemático das chamadas “categorias” do pensameto, e Durkheim situa-se na esteira dessa tradição. Teremos a oportunidade de mostrar, no limite, que essa continuidade não é inteiramente isenta de tensões e que a originalidade de Durkheim consiste justamente em saber explorar algumas questões aparentemente mal resolvidas no interior da abordagem kantiana. Nesse contexto, veremos como Durkheim julgou encontrar na sociologia a chave para solucionar alguns desses problemas e encaminhar a sua tese central: a do caráter social das categorias do pensamento. 1. Kant: As Categorias Como Objeto de Investigação Transcendental A investigação kantiana a respeito do conhecimento humano é aquela que se volta às representações mentais e à experiência sensível no intuito de inquirir-lhe suas condições transcendentais de possibilidade. Nesse sentido, o projeto kantiano tem por objeto primeiro compreender a lógica de organização daquilo que entendemos por “experiência”. A chamada “lógica transcendental” não se confunde aqui com a lógica geral − aquela que abstrai de todo o conteúdo do conhecimento, reduzindo-o a variáveis conceituais e signos lógicos, a fim de investigar o modo pelo qual, partindo de premissas, poderíamos chegar a suas respectivas conclusões. Antes disso, ela se coloca uma outra pergunta, bastante diferente. Trata-se de investigar e elucidar como, afinal de contas, o pensamento seria capaz de referir-se à experiência. A questão do conhecimento tem como sua pergunta norteadora, nesse caso, aquela que esclarece

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o modo pelo qual o entendimento seria capaz de pensar objetos em geral; quais expectativas transcendentais em relação ao dado deveriam ser colocadas e satisfeitas para que esse dado pudesse aparecer como objeto segundo determinado regime de experiência; e, mais ainda, o que significaria, em termos gerais, ser um objeto capaz de subsunção ao pensamento. Notemos o quão contraintuitivo é esse modo de pensar. Sua primeira consequência é a de que as representações sensíveis, por definição, estão descartadas enquanto princípio de justificação do conhecimento com aspiração à validade epistêmica. Perguntar-se pelas condições de possibilidade da experiência implica necessariamente voltar-se ao modo pelo qual opera a atividade intelectual (entendimento) que organiza essa experiência e, portanto, o modo pelo qual opera o pensamento da experiência. Seguindo a tendência de sua época, Kant divide o conhecimento humano em dois troncos fundamentais: sensibilidade e entendimento. O primeiro diz respeito à capacidade do espírito de se deixar afetar pelo que se lhe coloca, isto é, sua capacidade de receber representações situadas no tempo e no espaço. Eis aqui o que Kant denomina por intuições sensíveis. O segundo tronco diz respeito à capacidade de pensar essas representações, isto é, à capacidade de determinar, segundo conceitos, o que só podia aparecer primeiramente como matéria indeterminada. Isso ocorre, num primeiro nível, uma vez que a matéria da sensibilidade é ordenada segundo uma regra, fazendo da intuição dada no tempo e no espaço uma unidade estruturada. A essa regra capaz de estruturar nossas intuições sensíveis Kant dá o nome de conceito. O conceito indica, portanto, a estrutura que o múltiplo das intuições sensíveis deve ter para que ele possa ser considerado como um determinado tipo de objeto.268 268.  Do ponto de vista formal, Kant entende que cada conceito contém uma série de predicados parciais que podem ser organizados segundo determinadas relações – de coordenação ou subordinação − sendo essas mesmas relações aquilo que caracteriza sua regra, isto é, sua identidade enquanto conceito. O conceito de “homem”, por exemplo, contém simultaneamente os predicados “é um animal” e “é racional”. Esses predicados, do ponto de vista semântico, são independentes e mantêm, portanto, um vínculo de coordenação dentro da unidade do conceito. No entanto, o predicado “é um animal” contém outros predicados parciais a ele submetidos como, por exemplo, “é um ser vivo” ou “tem um corpo”, os quais aparecem contidos no conceito mediante uma relação de subordinação. A análise de predicados teria fim somente quando chegássemos a

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Mas para além dos chamados conceitos empíricos, isto é, os conceitos de primeiro grau relativos à estruturação das intuições empíricas, a atividade intelectiva deveria implicar uma segunda ordem de conceitos fundados no próprio entendimento, a saber, as categorias do entendimento. É por meio do mapeamento dessa estrutura categorial que Kant busca demonstrar as condições de possibilidade do conhecimento em geral. 1.1. Dedução “Metafísica” das Categorias Em sua dedução das categorias do entendimento, Kant começa a encaminhar um dos pontos fundamentais de sua reflexão: pensar, diz ele, nada mais é que ligar representações numa consciência − sendo tal ligação aquela que assume a forma dos juízos gramaticais de tipo sujeito-predicado (S é P). Isso de modo tal que pensar e julgar podem ser considerados, para Kant, como sinônimos. Se podemos pensar com base na experiência, é porque essa experiência, inicialmente indeterminada, foi trazida às formas gramaticais do pensamento discursivo por uma mediação conceitual que constitui sua verdadeira condição de possibilidade. Nesse caso, deve haver certos conceitos do entendimento capazes de ligar o diverso que se apresenta à nossa sensibilidade em estruturas gramaticais do tipo sujeitopredicado e, portanto, submetê-lo a certas formas gerais que lhe são exteriores. Eis o argumento geral: temos determinados conceitos do entendimento que subsumem o diverso da sensibilidade de modo que possamos alcançar, mediante sua síntese, conhecimentos discursivos. 269 Procedendo dessa maneira, o argumento pretende desvelar o princípio capaz de nos guiar a uma descoberta sistemática das categorias a priori do pensamento. Pois, se as categorias devem ligar o múltiplo da sensibilidade segundo a estrutura dos juízos e em concordância com esta mesma estrutura, então a própria forma dos juízos deve nos fornecer o modo de organização das categorias que lhe correspondem. Afinal, estas formas sintáticas de ligação devem submeter as representações a certas categorias gerais, sem as quais seria impossível organizá-las discursivamente. predicados elementares ou indivisíveis. Seu resultado (final ou parcial) seria expresso no que Kant chamou de “juízos analíticos” em contraposição aos chamados “juízos sintéticos”. 269.  KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 94.

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Eis então as chamadas categorias. Elas constituem, aqui, como que os correlatos semânticos das funções sintáticas de ligação fornecidas pelos juízos sem o que os múltiplos da sensibilidade não poderiam ser subsumidos em conceitos e estes conceitos não poderiam ser levados à discursividade do entendimento. Assim, mesmo sem saber quais são as categorias, Kant conclui que podemos saber de antemão onde encontrálas, isto é, na tábua dos juízos, tal como formulada pela lógica geral. Segundo essa tábua, ao menos tal como Kant a expõe, os juízos poderiam ser organizados formalmente em quatro classes, as quais conteriam, por sua vez, três momentos ou possibilidades. Supondo que para cada ajuizamento possível, deveria haver, igualmente, uma categoria correspondente, Kant apresenta a seguinte correspondência:

Figura 1. Tábua das Categorias e Tábua dos Juízos (Fonte: Crítica da Razão Pura, B 95, B 106)

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Ao final da dedução, Kant chega às doze categorias que guiariam a atividade sintética capaz de remeter o múltiplo da sensibilidade às condições de objetividade do entendimento. Nesse contexto, é importante assinalar uma noção que nos parece fundamental a todo o percurso argumentativo kantiano e que também será de extrema importância ao pensamento de Durkheim: a noção de síntese. Num primeiro momento, a síntese remete à operação pela qual o múltiplo da sensibilidade deve ser “percorrido, recebido e ligado de determinado modo para que se converta em conhecimento”.270 Ela é o processo intelectual de ligação que confere ao múltiplo uma unidade e uma determinação, algo que vale tanto para a unificação das representações sensíveis num conceito empírico (unidade sintética do múltiplo), como para a unificação de segunda ordem que liga as representações do entendimento (inclusive as categorias) numa estrutura judicativa (unidade discursiva). Desse modo, a síntese fornece a chave para compreendermos a passagem entre os vários níveis da argumentação kantiana e, sobretudo, a passagem da chamada dedução “metafísica” para a dedução “transcendental” das categorias. 1.2. Dedução “Transcendental” das Categorias No capítulo da dedução transcendental, Kant leva adiante sua reflexão sobre a atividade sintética do entendimento. Sua preocupação com a questão da síntese se justificava, entre outras coisas, pelo fato de que “entre todas as representações, a ligação é a única que não pode ser dada pelos objetos, mas realizada unicamente pelo próprio sujeito, porque é um ato da sua espontaneidade”271. Mas a ligação do diverso pressupõe mais do que a simples ideia de um múltiplo e sua respectiva síntese. O que a ideia de ligação indica é a unidade do múltiplo ligado e, portanto, determinado. Isso de modo tal que a verdadeira condição de possibilidade de toda ligação do entendimento só pode ser a sua própria unidade. Mas se toda ligação pressupõe 270.  271. 

KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 102. Ibid., B 130.

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uma unidade, então essa unidade tem de ser procurada antes de qualquer estrutura judicativa e, portanto, antes daquelas condições que possibilitam a estruturação discursiva das percepções com vistas à constituição de objetos num determinado regime de experiência: “Esta unidade, que precede a priori todos os conceitos de ligação, não é a categoria da unidade (§ 10); porque todas as categorias têm por fundamento as funções lógicas nos juízos e nestes já é pensada a ligação, por conseguinte a unidade de conceitos dados. A categoria pressupõe, portanto, já a ligação. Temos, pois, que buscar esta unidade (como qualitativa, § 12) mais alto ainda, a saber, no que já propriamente contém o fundamento da unidade de conceitos diversos nos juízos e, por conseguinte, da possibilidade do entendimento, mesmo no seu uso lógico”.272

Ora, tal unidade, anterior às funções lógicas do juízo e à própria unidade das categorias, só poderia ser a unidade da pura autoconsciência que, sob a representação “eu penso”, deveria poder acompanhar todas as outras representações.273 Possuir representações, aliás, não significaria outra coisa senão o poder de remetê-las à unidade de uma consciência que se manteria autoidêntica; pois, de outro modo, dizia Kant, eu teria tantas consciências quantas fossem as minhas representações e não poderia chegar com isso a nenhuma identidade. Nesse caso, eu nem poderia dizer de tais representações que fossem minhas, pois só as chamo “minhas” na medida em que tomo consciência de minha identidade por meio da unidade de suas sínteses. Com isso, Kant chegava ao ponto mais alto de sua dedução. Ele já havia insistido que a mesma unidade sintética que num primeiro nível referia-se aos conceitos empíricos também era aquela que, num segundo nível, remeteria à unidade dos conceitos puros do entendimento capazes de ligar as representações empíricas à unidade dos juízos. Ele concluía agora que essa unidade, num terceiro e último 272.  273. 

Ibid., B 131. Ibid., B 132.

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nível, era justamente a unidade da autoconsciência pura mediante a unidade transcendental da atividade sintética. Daí porque Kant poderia dizer que “a unidade sintética da apercepção é o ponto mais elevado a que se tem de suspender todo o uso do entendimento, toda a própria lógica e, de acordo com esta, a filosofia transcendental”.274 Se os argumentos kantianos chegavam à unidade transcendental da autoconsciência como a unidade mais elevada do entendimento, que, por isso mesmo, deveria ser aquela à qual estariam conformes os múltiplos sensíveis, as representações conceituais e os juízos, então o restante da argumentação deveria perfazer o caminho de volta; ou seja, desvelar o modo específico pelo qual da pura autoconsciência se poderia passar aos objetos. Nesse caso, não se tratava apenas de mostrar “que” a autoconsciência fundamentava um determinado modo de experiência dos objetos, mas de explicar “como” ela era capaz fazê-lo.275 Restava à dedução a tarefa de explorar os limites e as possibilidades de um processo de intelecção de objetos que, em princípio, estariam, eles mesmos, fora de todo intelecto e, num certo sentido, ilustrar essa possível passagem do entendimento à sensibilidade. Nesse caso, parte do argumento consistia em mostrar como o entendimento, a despeito de seu ímpeto categorizante, não poderia dispor indistintamente do múltiplo, cujo respectivo processo de remissão ao uno, longe de aparecer como algum tipo de dissolução marcada pela violência da identidade, deveria, antes, ser representado como algum tipo de passagem capaz de mediação. A ilustração dessa passagem 274.  Ibid., B 134, nota. 275.  Vale lembrar que essa distinção entre mostrar 1) “que” a dedução é inteiramente a priori e 2) mostrar “como” ela é possível inteiramente a priori, não remete necessariamente aqui à existência de uma segunda dedução, de cunho empírico-psicológico. Responder à pergunta pelo “como”, nesse contexto, não significaria empreender uma dedução subjetiva relativa ao conjunto das faculdades cognitivas envolvidas no processo de conhecimento mediante categorias. Significaria, antes, afastar as dificuldades que impossibilitariam o argumento central, a saber, o argumento segundo o qual os conceitos puros, a despeito do caráter a priori, deviam necessariamente se aplicar a intuições. Assim, o argumento relativo à possibilidade deveria apenas mostrar sob qual determinado tipo de arranjo (entre sensibilidade e entendimento) seria possível visualizar a relação necessária das categorias aos diversos sensíveis. A esse respeito, ver: HENRICH, D. The Proof-Structure of Kant’s Transcendental Deduction. In: The Review of Metaphysics. v. 22, n. 4, p. 640-659. Jun. 1969.

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possível chega não apenas à conclusão de que as categorias seriam as únicas condições de uma relação a objetos, mas também a de que elas se aplicariam a todas as representações da autoconsciência.276 O argumento de Kant,desenvolvido ao fim da dedução transcendental (§ 26), remonta à unidade das próprias representações formais do tempo e do espaço, com as quais estariam conformes, de saída, os múltiplos da sensibilidade. Essa unidade imediata, realizada não pela sensibilidade (passiva), mas pela síntese intermediária da imaginação, fornecia um elo de mediação possível entre o diverso da intuição e a unidade dos conceitos − haveria, no fim das contas, uma unidade imediata, capaz de fazer a ponte entre o imediato sensível e a unidade mediata dos conceitos. O argumento é, em verdade, um tanto complexo, mas, para nossos propósitos, a solução propriamente fornecida por Kant interessa menos. O importante, nesse caso, é assinalar o seguinte ponto: se os múltiplos da sensibilidade, pelo próprio modo como nos aparecem, já nos são dados necessariamente segundo representações sensíveis dotadas de certa unidade e homogeneidade (porque sempre submetidos ao tempo e espaço), então todas as nossas intuições sensíveis encontramse em condições de serem levadas à discursividade do pensamento conceitual. Essa conclusão, como veremos, será objeto de uma tensão no interior do argumento kantiano. 1.3. Tensões transcendentais (I): O Estatuto das Categorias Vimos que parte da estratégia argumentativa de Kant tinha por afirmação central aquela que postulava a ligação entre as formas do juízo e os conceitos do entendimento. A alegação partia da aposta de que as categorias deveriam ter sua necessidade vinculada à necessidade do uso dos juízos enquanto forma adequada ao conhecimento objetivo dos objetos. O pensamento capaz de ordenar objetivamente seus objetos deveria ser, nesse contexto, aquele capaz de estruturar-se em enunciados segundo determinadas funções lógicas. No entanto, para que uma dada representação pudesse de fato ser representada 276. 

Ibid., B 143

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desta ou daquela maneira estabelecida, segundo relações necessárias a priori, era preciso que alguns de seus traços ou feições fundamentais não nos remetessem diretamente a conteúdos contingentes resultantes da síntese das intuições sensíveis, mas a conteúdos necessariamente adequados a essas mesmas formas de representação a priori. Assim, dizia Kant, se um juízo prescreve, por exemplo, uma relação de inerência entre dois termos (sujeito e predicado), essa prescrição só pode ser realizada na medida em que o sujeito sintático remeta a algo capaz de ser representado como substância e o predicado remeta a algo capaz de ser representado como acidente. Os conceitos capazes de figurar nos juízos deveriam possuir não apenas um conteúdo material dado a partir da síntese das intuições, mas um conteúdo transcendental.277 O argumento geral de Kant pode ser expresso na seguinte passagem dos Prolegômenos a toda metafísica futura (1783): (...) não basta à experiência, como comumente se imagina, comparar percepções e uni-las numa consciência por meio do juízo; daí não brota nenhuma validade universal e necessária do juízo, em virtude das quais unicamente ele se pode tornar objetivamente válido e ser uma experiência. (...) a intuição dada deve ser subsumida num conceito que determina a forma do juízo em geral relativamente à intuição, o qual liga a consciência empírica desta intuição numa consciência em geral e assim cria para os juízos empíricos uma validade universal; semelhante conceito é um conceito puro do entendimento

277.  Essa ideia de um “conteúdo transcendental” aparece explicitada em uma famosa passagem da Crítica: “A mesma função, que confere unidade às diversas representações num juízo, dá também unidade à mera síntese de representações diversas numa intuição; tal unidade, expressa de modo geral, designa-se por conceito puro do entendimento. O mesmo entendimento, pois, e isto através dos mesmos atos pelos quais realizou nos conceitos, mediante a unidade analítica, a forma lógica de um juízo, introduz também, mediante a unidade sintética do diverso na intuição em geral, um conteúdo transcendental nas suas representações do diverso; (...)”. (ibid., B 108, grifo meu). Era assim que as categorias podiam estabelecer aquela dupla função antes mencionada, a saber, a de constituírem-se como elementos mediadores entre formas puras (juízos) e conteúdos sensíveis (intuições) – eram conteúdos, mas puros.

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que nada mais faz do que determinar em geral para uma intuição a maneira como ela pode servir aos juízos.278

Colocar as coisas dessa maneira, no entanto, nos leva a um conjunto de considerações a respeito do estatuto das categorias. Pois, a essa afirmação, Kant parece acrescentar, às vezes, outra mais exigente, que diz respeito ao modo específico pelo qual as categorias possibilitam os juízos. Nesse caso, não bastaria assinalar que as categorias constituem os conteúdos adequados à realização da forma lógica do juízo, mas sim que constituem conteúdos aptos a realizarem essas formas de determinadas maneiras. Ora, parece natural que um problema desse tipo se colocasse a Kant. Isso porque, do ponto de vista das funções lógicas, seria indiferente se as posições sintáticas de sujeito e predicado, por exemplo, fossem ocupadas por esta ou aquela representação. Isto é, do ponto de vista formal, poderíamos dispor livremente das representações em uma ou outra posição – ora como substância ora como acidente, ora como causa ora como consequência, etc. – contanto que a relação formal entre elas fosse preservada. Daí a estratégia transcendental de Kant parecer, em alguns momentos, não se contentar com afirmação de que as categorias simplesmente possibilitariam a realização de determinadas funções lógicas dos juízos, insistindo que elas deveriam constituir, na verdade, algum tipo de restrição extralógica de aplicação dessas funções. Como bem aponta um conhecido comentador, Paul Guyer279, essa parece ser a sua visão num parágrafo adicionado à segunda edição da Crítica: Antes, porém, quero apenas retomar ainda a explicação das categorias. São conceitos de um objeto em geral, por intermédio dos quais a intuição desse objeto se considera determinada em relação a uma das funções lógicas do juízo. Assim, a função do juízo categórico era a da relação do sujeito com o predicado; por exemplo: todos 278.  KANT, Immanuel. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. Lisboa: Edições 70, 1970 [1783], § 20. 279.  GUYER, P. The transcendental deduction of the categories. In: GUYER, P. (Ed.) The Cambridge Companion to Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p.131.

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os corpos são divisíveis. Mas, em relação ao uso meramente lógico do entendimento, fica indeterminado a qual dos conceitos se queria atribuir a função de sujeito e a qual a de predicado. Pois também se pode dizer: algo divisível é um corpo. Pela categoria da substância, porém, se nela fizer incluir o conceito de corpo, determina-se que a sua intuição empírica na experiência deverá sempre ser considerada como sujeito, nunca como simples predicado; e assim em todas as restantes categorias.280

Dizer que uma determinada intuição empírica, no caso de sua subsunção categorial, “deverá sempre ser considerada como sujeito, nunca como simples predicado” é o modo kantiano de insistir que as categorias não apenas prescrevem uma adequação a funções lógicas gerais, mas determinam, quando aplicadas, que certas representações devam necessariamente ocupar certas posições sintáticas específicas. No exemplo dado, algumas representações deveriam ser tomadas por sujeito e algumas por predicado, de modo que as categorias evocariam restrições não diretamente ligadas à pura forma lógica do juízo. Elas remeteriam, nesse caso, a um tipo de restrição extralógica do uso de tais funções. Em verdade, Kant parece oscilar em sua estratégia transcendental, ora defendendo aquela forma mais simples de argumento, segundo a qual as categorias simplesmente possibilitariam o uso lógico dos juízos – o que sugere que a necessidade categorial depende simplesmente da necessidade de fazermos juízos sobre os objetos –, ora defendendo essa segunda forma de argumento, mais exigente, que encontra nas categorias não apenas as condições de possibilidade, mas um conjunto de determinações relativas ao uso propriamente dito dos juízos. Insistir na afirmação de que as categorias constituem um tipo de restrição extralógica do discurso, no entanto, exige um tipo de argumentação mais elaborada. Pois se esse é o caso, então Kant deve nos fornecer a fonte dessa restrição. Isto é, ele deve nos mostrar qual a instância capaz de justificar essas mesmas restrições e não outras. 280. 

KANT, I., op.cit., B 128-9 (grifo meu).

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Veremos que Kant também parece oscilar a esse respeito, recorrendo, por um lado, a certo tipo de autoconsciência transcendental, por outro, a certa concepção específica de objeto como instâncias que exigiriam um uso restritivo das funções lógicas dos juízos e, portanto, um conjunto de categorias que nos remeteriam a certa normatividade dessas funções. Eis a primeira tensão no argumento transcendental: o estatuto categorial. 1.4. Tensões Transcendentais (II): a Justificação das Categorias Uma segunda questão, diretamente ligada à primeira, remontava às estratégias de justificação epistemológica das categorias. Num caso a justificação epistêmica das categorias recorreria à imagem do que Kant denominou, na edição de 1781, por “objeto transcendental”281, o que remeteria àquelas expectativas transcendentais a que o objeto empírico deveria atender uma vez que consistiriam as condições sem as quais não poderia ser encaminhado, ao menos não como objeto, à discursividade do entendimento. Num segundo caso, a justificação parecia ainda requerer um princípio de unidade superior, o que Kant encontrava na autoconsciência transcendental. Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, a passagem entre esses dois modelos de justificação é clara: (...) os nossos conhecimentos não se determinam ao acaso ou arbitrariamente, mas a priori e de uma certa maneira, porque, devendo reportar-se a um objeto, devem também concordar necessariamente entre si, relativamente a esse objeto, isto é, possuir aquela unidade que constitui o conceito de um objeto.282

E mais à frente: O conceito puro deste objeto transcendental (...) a nenhuma coisa dirá respeito a não ser àquela unidade que se tem de poder encontrar num 281.  282. 

Ibid., A 108. Ibid., A 104-5.

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diverso do conhecimento, na medida em que esse diverso está em relação com um objeto. Porém, esta relação outra coisa não é senão a unidade necessária da consciência, por conseguinte, também da síntese do diverso por meio dessa comum função do espírito, que consiste em o ligar numa representação. Uma vez que esta unidade tem que ser considerada como necessária a priori (de outra maneira o conhecimento seria sem objeto), a relação a um objeto transcendental, isto é, a realidade objetiva do nosso conhecimento empírico, repousará sobre esta lei transcendental, a saber, que todos os fenômenos, na medida em que por eles nos devem ser dados objetos, têm que estar submetidos a regras a priori da sua unidade sintética, únicas que tornam possível a sua relação na intuição empírica; quer dizer, devem estar, na experiência, submetidos às condições da unidade necessária da apercepção, tanto como, na simples intuição, submetidos às condições formais do espaço e do tempo e que mesmo todo o conhecimento só é possível, antes de mais nada, graças a esta dupla condição.283

Vemos então que a necessidade categorial, inicialmente centrada nas funções lógicas dos juízos, cede lugar à necessidade da unidade sintética do diverso mediante a identidade da consciência empreendedora da síntese. Mas um encaminhamento dessa natureza parecia levar Kant a um problema: se a representação dos objetos mediante conceitos encontra seu fundamento não mais em um regime geral de objetividade, mas na autoconsciência transcendental, e se ela, por sua vez, deveria poder referir-se a todas as representações dadas à consciência, então, tornava-se difícil encontrar um critério de demarcação entre juízos objetivamente válidos e juízos não objetivamente válidos. Isso porque a autoconsciência, capaz de prescrever determinadas funções judicativas às representações, deveria prescrevê-las indistintamente a todas as suas representações. Talvez por conta de dificuldades como essas é que Kant tenha reformulado os argumentos da dedução, nos anos subsequentes,

283. 

Ibid., A 109-110.

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praticamente sem referência à apercepção transcendental.284 Em verdade, a necessidade de estabelecer um critério de demarcação mais nítido entre juízos objetivos e juízos subjetivos é o que o levará a empreender, dois anos mais tarde, nos Prolegômenos, a famosa distinção entre “juízos de percepção” e “juízos de experiência”.285 Afinal, se o ato de pensar consistia em ligar representações numa consciência, nem toda ligação poderia possuir aquele grau de universalidade que seria a marca de juízos objetivamente válidos. De fato, a ligação de representações numa consciência empírica não poderia aspirar validade nesse sentido. Objetividade deveria ser, aqui, uma prerrogativa daquelas representações cuja ligação se encontraria dada numa espécie de consciência geral e que, portanto, se efetuaria mediante os conceitos puros do entendimento. Essa distinção era o que possibilitava a diferenciação entre juízos do tipo: 1) “se tenho um corpo, então sinto uma pressão de peso” (juízo de percepção) e 2) “o corpo é pesado” (juízo de experiência). O primeiro ligava representações numa consciência empírica enquanto o segundo as ligava numa consciência geral. A partícula “é”, presente no segundo juízo, indicava justamente que a ligação entre os conceitos empíricos de “corpo” e de “peso” era aí efetuada por uma consciência não subjetiva; como se se tratasse de um juízo no qual o sujeito, tomando em sua substancialidade, se dissolveria, deixando que o contexto e os objetos “falassem por si”, mediante sua ligação no espaço geral de uma consciência agora indeterminada. A consciência, nesse contexto, não seria mais que um ponto de referência, um espaço lógico de toda ligação. Mas o que está implícito nessa distinção entre uma ligação feita pela consciência empírica e uma ligação feita mediante uma consciência geral é que a primeira não subsume as percepções em categorias enquanto a segunda o faz. Ora, é justamente nesse momento que se deve lançar mão daquela concepção de categoria que, como vimos, as tomava como determinações extralógicas do uso dos juízos. Pois, se as funções lógicas dos juízos eram as 284.  Destacam-se ai dois textos: os Prolegômenos a Toda Metafísica Futura, de 1783, e os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência Natural, de 1786. 285.  KANT, I. Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, §19.

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mesmas para 1) juízos subjetivamente ligados numa consciência empírica e 2) juízos objetivamente ligados numa consciência geral, já que se tratava de juízos nos dois casos, não poderíamos encontrar nessas mesmas funções um bom critério de demarcação. Essa demarcação só seria possível se assumíssemos que as categorias, longe de se limitarem à condição de correlatos conceituais dessas funções lógicas, seriam também capazes de conferir-lhes algum tipo de determinação adicional. O que os Prolegômenos indicavam, justamente, é que embora utilizássemos a função lógica dos juízos para promover nossas ligações entre percepções, nem toda ligação implicaria a subsunção a conceitos puros do entendimento – ao menos não no sentido de conceitos enquanto restrições extralógicas dos juízos. As categorias, precisamente por constituírem um critério distintivo de objetividade, não poderiam então se aplicar a todas as nossas representações. Nesse caso, Kant se deparava com um problema complexo que dizia respeito à limitação da atividade categorial. Isso porque a demanda de uma aplicação restritiva das categorias deveria parecer totalmente incompatível com a universalidade pretendida por Kant. Provavelmente por conta disso é que sua nova abordagem teria encontrado dificuldade em recorrer à ideia de apercepção transcendental, essa figura de um universal da consciência. Com efeito, se as categorias deviam encontrar seu princípio fundamental na unidade sintética do múltiplo em geral e, portanto, mediante a unidade da autoconsciência capaz de acompanhar todas as representações, como explicar que as categorias pudessem se aplicar apenas a juízos de experiência e, portanto, somente a algumas representações? Aparentemente, o único jeito de responder a esse impasse seria assumindo que a autoconsciência, embora capaz de acompanhar todas as representações, aplicaria categorias apenas a algumas delas, entrando em uma relação não categorial com as restantes; ou seja, que a autoconsciência deveria ser independente de qualquer regime categorial. Mas então o filósofo deveria explicar em que medida seria possível essa dissociação entre as restrições extralógicas do uso dos juízos e a própria apercepção, o que levaria à

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necessidade de procurar o fundamento daquelas mesmas restrições fora da própria apercepção transcendental. Tratava-se de fornecer, assim, uma resposta a demandas aparentemente contraditórias de universalidade da subsunção categorial e limitação de seu uso com vistas à objetividade. 1.5. O Transcendental e a Problematização Socio-lógica Considerações desse tipo, é claro, levantam problemas ao pensamento kantiano. Dizer que devemos buscar o fundamento da normatividade categorial, com seus imperativos a respeito da disposição de objetos no interior dos juízos, numa outra região que a da lógica discursiva, equivale a afirmar que algo da ordem das categorias não se encontra dado imediatamente da tábua dos juízos e, portanto, que a dedução encarregada da passagem dessa tábua lógica à tábua das categorias não poderia ser isenta de considerações adicionais. Nesse caso, as categorias, ao menos as categorias enquanto esses conteúdos transcendentais, não poderiam resultar inteiramente de uma dedução dos juízos, tal como pretendia a “dedução metafísica”. Assim, esse caráter extralógico dos conceitos com os quais trabalhava o entendimento, esse elemento suplementar que os tornava mais do que os correlatos semânticos de formas sintáticas de disposição do diverso, poderia ser procurado em outro lugar. Essa maneira peculiar de ler o transcendental kantiano será, como veremos, de fundamental interesse à empreitada durkheimiana, pois, ainda que as demandas discursivas com vistas à disposição de objetos num regime judicativo de experiência continuassem valendo ‒ e as categorias ainda devessem respeitar essas necessidades transcendentais enunciadas pela forma dos juízos ‒, esse tipo de encaminhamento abria claramente a possibilidade para que o social tomasse seu lugar lá onde as puras exigências discursivas já não podiam mais arbitrar sobre o modo adequado de disposição das representações. Mais do que isso, valeria lembrar aquela afirmação kantiana, já mencionada, segundo a qual, do ponto de vista da pura forma dos juízos, seria indiferente dizer que “a pedra é pesada” ou que “algo pesado é uma pedra”. A escolha do conceito “pedra” e não do concei-

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to de “peso” como adequado a exercer a função de sujeito gramatical (mediante a categoria de substância), nesse caso, deveria ser feita segundo um critério outro que aquele fornecido pela pura forma lógica dos juízos. Escolher entre um e outro desses ajuizamentos possíveis, nesse caso, seria tarefa de uma certa lógica das representações e não mais da lógica dos juízos. Essa lógica, e aqui reside a aposta fundamental de Durkheim, deverá possuir um caráter social. Segundo essa leitura do argumento, poderíamos compreender a investigação a respeito das categorias como estando parcialmente liberada em relação à lógica dos juízos e, num certo sentido, liberada em relação à própria arquitetônica kantiana. Nesse caso, não apenas as famosas distinções entre sensibilidade, entendimento e razão, com suas respectivas faculdades, poderiam ser, em alguma medida, reconfiguradas à luz de novas considerações, mas o próprio empreendimento investigativo poderia debruçar-se para fora dessa arquitetônica a fim de encontrar uma lógica das representações agora liberada. 2. As Formas Elementares (I): Às Voltas com a Questão das Categorias 2.1. O Debate com a Filosofia A proposta de uma investigação sociológica do conhecimento humano, tal como pretendida por Durkheim em sua última grande obra, constitui, sem dúvida, um dos maiores esforços intelectuais de sua época. Entretanto, esse projeto notável só pôde aparecer, em toda sua complexidade, ao fim de um longo processo de amadurecimento intelectual cujo ponto de inflexão seria aquele marcado pela elevação do conceito de representação a um papel central no interior do pensamento durkheimiano – as categorias, como se sabe, serão compreendidas, por Durkheim, como um tipo de representações coletivas. Tal como proposta em 1898286, a teoria durkheimiana das representações era fruto de uma tentativa crítica de superação 286. 

[1898b]. Représentations individuelles et collectives.

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tanto do materialismo como do idealismo filosóficos. O que estava em jogo, naquele momento, era que ambas tratavam de reduzi-las à condição de epifenômeno, fosse da materialidade de seu substrato, fosse de algum tipo de princípio superior. No contexto de sua discussão sobre as categorias, essa tentativa de superação crítica reaparecerá, anos mais tarde, em meio a um diálogo com duas vertentes filosóficas maiores: o empirismo e o apriorismo. De um lado, Hume, Stuart Mill e Spencer, de outro, Kant e seus discípulos. Frente a essas duas posições, Durkheim proporá uma hipótese sociológica que deveria dar conta de explicar, ao menos de maneira mais satisfatória que as hipóteses filosóficas, alguns traços fundamentais do conhecimento humano.287 Em todo caso, antes de tentarmos reconstruir quais argumentos estavam em jogo, é preciso saber o que Durkheim compreendia como sendo a matéria primeira dessa disputa e, nesse sentido, sob que perspectiva ele compreendia a própria noção geral de “categoria”. Em um trecho bastante conhecido − ao qual retornaremos mais tarde por outras razões −, Durkheim dizia o seguinte: Na raiz de nossos julgamentos, há um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual; são aquelas que os filósofos, desde Aristóteles, chamam de categorias do entendimento: noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade, etc. Elas correspondem às propriedades mais universais das coisas. São como quadros sólidos que encerram o pensamento; este não parece poder libertar-se deles sem se destruir, pois tudo indica que não podemos pensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço, que não sejam numeráveis, etc. As outras noções são contingentes e móveis; concebemos que possam faltar a um homem, a uma sociedade, a uma época, enquanto aquelas nos parecem quase inseparáveis do funcionamento normal do espírito. São como a ossatura da inteligência.288 287.  A respeito do caráter hipotético do argumento durkheimiano, ver: SCHMAUS, Warren. Durkheim’s Philosophy of Science and the sociology of knowledge: creating an intellectual niche. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 232. 288.  [1912a] As Formas Elementares, p. xv-xvi.

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Afirmações como essas nos levam diretamente a um diagnóstico fundamental de Durkheim, a saber, o de uma heterogeneidade radical entre as chamadas “categorias do entendimento” e outros tipos de representações “contingentes e móveis” que conceberíamos poder “faltar a um homem, a uma sociedade, a uma época”. Ora, veremos que um objeto central da reflexão durkheimiana é justamente a natureza peculiar dessa diferença qualitativa que marcaria, de um lado, aquilo que compreendemos com o selo do universal, do necessário e do categórico, e de outro, aquilo que remetemos à ordem do particular, do contingente e do hipotético. Sua própria leitura das teses filosóficas − empirismo e apriorismo −, aliás, só pode ser compreendida de maneira adequada tendo em vista essa questão fundamental. Podemos ver, de saída, como esse eixo de leitura impacta a reconstrução durkheimiana da chamada “tese empirista”. Nesse contexto, derivar as categorias da experiência, tal como pretendiam as diversas vertentes do empirismo, só poderia significar dissolver as características distintivas e fundamentais das categorias do conhecimento, isto é, sua universalidade e sua necessidade. Pois, ao menos desde Hume, saberíamos que a experiência pode nos mostrar, quando muito, o modo como as coisas atualmente são, mas nunca o modo como elas devem necessariamente ser. Esse tipo de crítica ao empirismo, expresso no famoso “problema da indução”, é, em verdade, bastante conhecida e não cabe retomá-la aqui. O próprio Durkheim parece tomá-la como evidente. Para os propósitos de nossa reconstrução, o que importa assinalar é que a tese empirista negaria uma verdadeira heterogeneidade entre razão e experiência sensível. Durkheim é bastante claro a esse respeito: (...) submeter a razão à experiência é fazê-la desaparecer, pois é reduzir a universalidade e a necessidade que a caracterizam a serem apenas puras aparências, ilusões que, na prática, podem ser cômodas, mas que a nada correspondem nas coisas; consequentemente, é recusar toda realidade objetiva à vida lógica que as categorias têm por função regular e organizar. O empirismo clássico conduz ao ir-

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racionalismo; talvez até seja por esse último nome que convenha designá-lo.289

Sob essa perspectiva, o apriorismo parecia ser, por irônico que pudesse soar, “mais respeitoso com os fatos”.290 Nesse caso, isso equivalia a dizer que ele respeitava a distinção qualitativa entre os conceitos do entendimento e as intuições da sensibilidade, sem tentar reduzi-los um ao outro. “Kant, mais do que qualquer outro, insistiu no contraste entre razão e sensibilidade, entre atividade racional e atividade sensível”.291 Vimos, aliás, como essa dualidade constitutiva do conhecimento encerrava, justamente, um dos maiores desafios de Kant: mostrar que as categorias, a despeito de sua heterogeneidade em relação à sensibilidade, podiam, ainda assim, aplicar-se a ela e, mais ainda, de maneira absolutamente necessária. Kant não apenas assumia a distinção entre entendimento e sensibilidade, mas buscava recolocá-la e solucioná-la no interior de uma investigação de tipo transcendental. Nesse sentido, não há dúvidas de que o kantismo deveria constituir um avanço importante no campo do discurso filosófico. Entretanto, algo no interior de seu encaminhamento parecia ainda insatisfatório aos olhos de Durkheim. Isso porque a capacidade de transcender a experiência e de remetê-la à unidade da consciência, essa espontaneidade que se traduzia na atividade da síntese a priori do entendimento e que habilitava a passagem das categorias ao mundo, parecia ficar, ela mesma, sem uma explicação adequada. A esse respeito, Durkheim nos diz o seguinte: Os aprioristas são racionalistas; crêem que o mundo tem um aspecto lógico que a razão exprime eminentemente. Mas, para isso, precisam atribuir ao espírito um certo poder de ultrapassar a experiência, de acrescentar algo ao que lhe é imediatamente dado; ora, desse poder singular, eles não dão explicação nem justificação. Pois não é explicar dizer apenas que esse poder é inerente à natureza da inteligência 289.  290.  291. 

Ibid., p. xxi. Ibid., p. xxi. [1914a] Le Dualisme de la nature humaine, p. 327.

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humana. Seria preciso fazer entender de onde tiramos essa surpreendente prerrogativa e de que maneira podemos ver, nas coisas, relações que o espetáculo das coisas não poderia nos revelar. Dizer que a própria experiência só é possível com essa condição, é talvez deslocar o problema, não é resolvê-lo. Pois se trata precisamente de saber por que a experiência não se basta, mas supõe condições que lhe são exteriores e anteriores, e de que maneira essas condições são realizadas quando e como convém.292

Feitas tais colocações, seria preciso insistir em ao menos dois aspectos que nos parecem importantes. O primeiro é o de que, a despeito do tom demasiado crítico, Durkheim não se distancia radicalmente da perspectiva kantiana, ao menos não tanto quanto pode parecer à primeira vista. O problema com o qual ele parece se deparar aqui pode ser compreendido, num certo sentido, até mesmo como complementar à abordagem kantiana. Em nenhum momento ele põe em questão a necessidade e a universalidade transcendentais das categorias: elas ainda constituem, para ele, a expressão por excelência do modo como ultrapassamos e, portanto, transcendemos, no campo do pensamento, o diverso da natureza sensível. Em segundo lugar é preciso lembrar que − a despeito do que sugere essa passagem específica − nem mesmo o tradicional modo de argumentação kantiano, que justifica seu objeto na medida que concebe-o como “condição de possibilidade” de uma realidade dada, é inteiramente eliminado. Antes, ele será reformulado no interior do texto durkheimiano, e bastaria lembrar, nesse sentido, o modo como Durkheim compreende as categorias. Elas constituem: “certas maneiras de pensar que são como a condição indispensável de toda ação comum”293; “o lugar comum no qual se encontram todos os espíritos”294; os instrumentos e as condições últimas do nosso “comércio intelectual”295. Elas são tomadas então, como teremos a oportunidade de mostrar mais a frente, como as “condições de possibilidade” da vida social. 292.  293.  294.  295. 

[1912a] As Formas Elementares, p. xxii. Ibid., p. xxv. Ibid., p. xx. Ibid., p. 481; [1914a] Le Dualisme de la nature humaine, p. 319.

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A divergência com o kantismo, nesse sentido, não é uma diferença propriamente de diagnóstico, mas de elucidação e, talvez, da explicação última do próprio diagnóstico. Vimos, em verdade, que parte da dedução kantiana se ocupava com a questão de como conceber essa alegada passagem do entendimento à sensibilidade. O argumento kantiano acabava por recorrer a uma terceira potência mediadora, a imaginação, que deveria inventar os esquemas de construção das imagens e fornecer uma primeira unidade sintética às representações do tempo e do espaço, sem o que a síntese do entendimento não poderia encontrar uma matéria adequada ao seu direcionamento. A questão durkheimiana, entretanto, era a de que esse modelo de resolução preocupava-se apenas com a possibilidade de visualização de uma eventual passagem, mas nunca punha em questão a natureza própria e peculiar desse abismo lógico que separava razão e experiência. A partir da perspectiva kantiana, podíamos inferir apenas − e essa parece ter sido justamente a intuição de Durkheim − o seguinte: que esse abismo lógico podia ser percorrido e que esse movimento obscuro de passagem não poderia ser dado senão por algum tipo especial de síntese. 2.2. O Argumento Geral de Durkheim A despeito da complexidade do debate com a filosofia, o argumento sociológico geral de Durkheim fundava-se numa percepção bastante simples: a da existência de uma homologia entre 1) as antinomias que opunham razão e sensibilidade e 2) aquela heterogeneidade fundamental em torno da qual se desenvolveram os primeiros sistemas de representações coletivas, isto é, a oposição entre o sagrado e o profano. Foi por meio desse tipo de aproximação, aliás, que ele intuiu poder articular, simultaneamente, uma sociologia da religião e uma teoria do conhecimento. A ideia de Durkheim era a de que, no fundo, essas oposições fundamentais − entre razão e experiência, sagrado e profano, alma e corpo, etc. −, que pareciam persistir em cada um dos diferentes momentos históricos como motor de um conflito permanente e sempre reatualizado da

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condição humana, podiam ser compreendidas, em verdade, como remetendo a uma única e mesma realidade subjacente: o caráter ao mesmo tempo individual e coletivo do homem. Desse modo, a transcendência em relação ao domínio do sensível e do profano, que marcava determinados regimes de representação, passava a ser compreendida à luz da irredutibilidade que marcava tudo aquilo que era coletivo, em oposição ao seu substrato individual. Não era, aliás, por outra razão que ele julgava poder equacionar ao mesmo tempo conceitos, símbolos e valores, sob o signo geral das chamadas representações coletivas. Suas respectivas transcendências em relação ao diverso da sensibilidade podiam justificar-se, nesse contexto, com base na irredutibilidade de sua dimensão sociológica frente às chamadas representações individuais. Essa intuição fundamental parece ter sido bem expressa numa passagem de As Formas Elementares: A sociedade é uma realidade sui generis; tem suas características próprias que não se encontram, ou que não se encontram da mesma forma, no resto do universo. As representações que a exprimem têm, portanto, um conteúdo completamente distinto das representações puramente individuais, e podemos estar certos de antemão de que as primeiras acrescentam algo às segundas. A maneira como ambas se formam acaba por diferenciá-las. As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para criá-las, uma multidão de espíritos diversos associou, misturou, combinou suas ideias e seus sentimentos; longas séries de gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais complexa que a do indivíduo, encontra-se, portanto, como que concentrada aí. Compreende-se, assim, de que maneira a razão tem o poder de ultrapassar o alcance dos conhecimentos empíricos. Não deve isso a uma virtude misteriosa qualquer, mas simplesmente ao fato de que, segundo uma fórmula conhecida, o homem é duplo. Há dois seres nele: um ser individual, que tem sua base no organismo e cujo círculo de ação se acha, por isso mesmo, estreitamente limitado,

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e um ser social, que representa em nós a mais elevada realidade, na ordem intelectual e moral, que podemos conhecer pela observação, quero dizer, a sociedade. Essa dualidade de nossa natureza tem por consequência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móbil utilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual. Na medida em que participa da sociedade, o indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age.296

Ora, insistir nesse tipo de encaminhamento consistia, na verdade, um movimento estratégico no interior da perspectiva durkheimiana. Com esse deslocamento peculiar de perspectiva, o autor pretendia não apenas elucidar o caráter social e histórico de determinados sistemas de representações, mas, principalmente, alocar sob a tutela da sociologia, compreendida agora como ciência positiva, algumas questões que desde há muito preocupavam filósofos, moralistas, teólogos, etc. No entanto, para que esse movimento fosse justificável, ainda era preciso um passo adicional, pois não bastava que os dualismos religioso e filosófico fossem substituídos por um outro dualismo, agora sociológico. Era preciso, além disso, poder explicá-lo positivamente. Nesse sentido, a simples remissão do caráter transcendente de determinadas representações à sua respectiva condição social deveria parecer insuficiente aos olhos de Durkheim. Mais do que isso, a sociologia deveria ser capaz de elucidar as condições sociais desse dualismo fundamental da natureza humana e, ao mesmo tempo, explicar cientificamente o aparecimento dessa heterogeneidade qualitativa entre social e individual − a partir do que se seguiriam, então, uma série de outras antinomias fundamentais. Somente desse modo, ela poderia pretender alicerçar novas bases, mais positivas e apropriadas, a uma “ciência do homem”297. Somente nesse caso o dualismo, tomado como pura antinomia, poderia ser explicado e, num certo sentido, superado. 296.  297. 

[1912a] As Formas Elementares, p. xxiii-xxiv. Ibid, p. 498

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Posto isso, não era difícil entrever o próximo passo de Durkheim. Seu argumento deveria remontar quase que necessariamente àquela passagem entre as chamadas representações individuais e coletivas. Ela nos remetia a uma síntese particular e, sobretudo, a uma concepção emergentista que estaria a guiar implicitamente toda a sociologia durkheimiana. A irredutibilidade do social fundava-se num tipo específico de realidade que não remeteria diretamente às representações individuais, mas ao fato positivo de seu concurso por meio da própria associação humana. Esse jogo de relações de evocação e afastamento, de associação e dissociação, de copresença, choque e síntese de representações − jogo que podia ser compreendido como remetendo a determinadas possibilidades de combinatória e interditos de transposição representacionais − era o que inaugurava uma nova dimensão do real, a dimensão social. A sociologia, nesse sentido, não apenas fundava-se numa realidade positiva (o fato da associação), como fundava um domínio autônomo e irredutível de investigação. Até aqui, encontramos-nos no limiar de sua teoria geral das representações. O que os estudos de religião nos mostravam de maneira mais concreta era o modo pelo qual a sociologia podia elucidar não apenas as condições sociais da superioridade lógica e moral de determinados sistemas representacionais, mas as condições de suas respectivas reproduções e, até mesmo, num certo sentido, suas atualizações históricas. Esse tipo de explicação se dava mediante uma dialética das representações que fora bem desenvolvida em As Formas Elementares. O que o autor nos mostrava, nessa ocasião, era que a autoridade social de determinadas representações mentais (conceitos e valores), proveniente do concurso e das associações sintéticas entre representações dos indivíduos, expressava-se em representações materiais (emblemas, performances rituais, etc.) que, por sua vez, tinham a função de atualizá-las e, num certo sentido, recriá-las, no campo da prática e da comunicação simbólica. A teoria das representações mentais (“representado”) era agora complementada por uma teoria das representações materiais (“representante”). O simbolismo, vale dizer, só poderia ter, nesse sentido, uma papel fundamental. Ele não apenas remetia a um modo privilegiado de

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expressão da realidade social, sem o que a sociologia não poderia pretender acessá-la, mas aparecia no registro de uma participação constitutiva dessa mesma realidade. Os símbolos materiais, dizia Durkheim, “(...) não se limitam a revelar o estado mental ao qual estão associados: eles contribuem para produzi-lo”.298 Esse argumento geral parece ter sido bem sintetizado num texto publicado dois anos mais tarde (1914), ocasião na qual Durkheim julgava importante esclarecê-lo frente à incompreensão dos críticos. Os trechos são longos, mas ilustram a tese central do livro: Foi precisamente essa explicação que tentamos na obra supramencionada, As Formas Elementares de Vida Religiosa. Nos preocupávamos em mostrar que as coisas sagradas são simplesmente ideais coletivos que se fixaram em objetos materiais. As ideias e os sentimentos elaborados por uma coletividade, qualquer que seja ela, são investidos, em razão de sua origem, de um ascendente e de uma autoridade que fazem com que os sujeitos particulares que as pensam e que nelas crêem as representem sob a forma de forças morais que os dominam e os sustentam. (...) E estas virtudes sui generis não decorrem de algum ação misteriosa; são simplesmente os efeitos dessa operação psíquica, cientificamente analisável, mas singularmente criadora e fecunda, a que chamamos pelo nome de fusão, a comunhão de uma pluralidade de consciências individuais em uma consciência comum. Mas, por outro lado, as representações coletivas não podem constituir-se senão pela sua encarnação em objetos materiais, coisas, seres de todos os tipos, figuras, movimentos, 298.  Ibid., p. 240. Essa centralidade desempenhada pelo símbolo no interior da teoria durkheimiana era possibilitado por uma concepção do símbolo que fora bem analisada por Paoletti (1998). O símbolo, para Durkheim, parecia ter, nesse caso, uma dupla dimensão: do ponto de vista epistemológico, o símbolo fornecia as condições de acesso cognitivo à realidade social (complexa), já que a traduzia simbolicamente numa imagem sensível (simples); do ponto de vista ontológico, a materialidade símbolo lembrava que aquilo que ele expressava era, no fundo, uma realidade concreta (exterior), diante da qual o homem podia não apenas defrontar-se, mas participar e, consequentemente, transcender sua própria condição individual (interior). Para mais detalhes dessa análise, ver: PAOLETTI, Giovanni. The cult of images: reading chapter VII, book II, of The Elementary Forms. In: ALLEN, N et all. (ed.) On Durkheim’s Elementary Forms of Religious Life. London: Routledge, 1998. p. 84-87.

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sons, palavras, etc., que lhes afigurem exteriormente e lhes simbolizem; pois é somente exprimindo seus sentimentos, traduzindo-lhes por meio de signos e simbolizando-lhes exteriormente, que as consciências individuais, naturalmente fechadas umas em relação as outras, podem sentir que se comunicam e que estão em uníssono. As coisas que desempenham esse papel participam necessariamente dos mesmos sentimentos que os estados mentais que elas, por assim dizer, representam e materializam.299

Donde ficava clara, no interior do projeto durkheimiano, a correlação entre uma teoria das crenças e uma teoria das práticas rituais: Mas estes ideais, produto da vida em grupo, não podem se constituir, nem sobretudo subsistir, sem penetrarem nas consciências individuais e sem aí se organizarem de modo duradouro. Estas grandes concepções religiosas, morais, intelectuais que as sociedades extraem do seu seio durante os períodos de efervescência criadora, os indivíduos carregam-nas consigo uma vez que o grupo se dissolveu e que a comunhão social já foi realizada. Sem duvida, uma vez terminado o período de efervescência, quando cada qual, retornando a sua existência privada, se distancia da fonte de onde lhe viera este calor e esta vida, ela não se mantém no mesmo grau de intensidade. Entretanto, ela não se acaba, pois a ação do grupo não para por completo; ao contrário, ela vem perpetuamente fornecer a estes grandes ideais um pouco da força que lhes pode atenuar as paixões egoístas e as preocupações pessoais do dia a dia: é para isto que servem as festas públicas, as cerimônias, os diversos tipos de rituais.300

O argumento geral parece, ao menos em princípio, ser bastante claro. No entanto, ele não deixa de suscitar algumas questões. Talvez a mais importante delas seja aquela que se interroga sobre a natureza da relação entre as representações coletivas, elaboradas no seio da coletividade, e o mundo objetivo. De fato, alguns dos 299.  300. 

[1914a] Le Dualisme de la nature humaine, p. 329-30. Ibid., p. 330-31.

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meandros internos dessa relação ainda deveriam ser elucidados. Um modo possível de encaminhar essa questão era perguntar, por exemplo, qual o sentido da alegada “autoridade moral” adquirida pelas representações sociais; mais especificamente, podíamos mesmo nos perguntar se, no caso das representações conceituais, esse tipo de autoridade era suficiente para organizar de maneira objetiva o conhecimento discursivo dos objetos. Veremos mais tarde, de maneira mais detalhada, o modo como Durkheim tenta responder a esses e outros questionamentos por meio de uma articulação entre argumentos diversos – de ordem ontológica, epistemológica e histórica. Entretanto, não nos parece possível compreender o que estava em jogo nesse tipo de articulação, nem na tentativa de resolução dessas questões, sem levar em consideração uma série de pressupostos anteriores que, de uma forma ou outra, já começamos a delinear. 2.3. Religião e Conhecimento Dissemos que uma das chaves para a compreensão do argumento durkheimiano estava no entrelaçamento, proposto pelo mestre francês, entre religião e conhecimento. Entretanto, a despeito da centralidade dessa ligação, o vínculo propriamente dito entre uma teoria sociológica do conhecimento e uma sociologia da religião nunca fica explícito. Ao contrário, ele parece muitas vezes vago ou até mesmo obscuro, e o próprio estilo de exposição parece não contribuir para sua compreensão adequada − bastaria lembrar a esse respeito que as partes dedicadas ao debate epistemológico são aquelas localizadas na introdução e na conclusão do livro, enquanto o interior da obra é marcado pelas análises das crenças e práticas totêmicas. Afirmações como essas nos levam a um problema de ordem teórica, a saber: como e a partir de quais considerações é possível conceber essa ligação entre uma sociologia da religião e uma sociologia do conhecimento? Ou ainda, em outras palavras: o que poderia ter sugerido a Durkheim essa ligação fundamental entre um sistema de crenças e práticas a respeito do sagrado e a sua reflexão episte-

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mológica a respeito das chamadas categorias? No último ponto, é verdade, já havíamos começado a encaminhar uma resposta. Nossa hipótese, no entanto, é a de que só é possível esclarecer plenamente essa questão se voltarmos os olhos à reflexão durkheimiana sobre as classificações, algo que não parece ter sido devidamente explorado pela maioria de seus intérpretes. A esse respeito nos parece razoável seguir algumas pistas deixadas pelo próprio Durkheim. O ponto de partida desse alegado parentesco entre religião e conhecimento remontava, decerto, a um momento originário no qual religião, filosofia e ciência pareciam ainda andar juntas: (...) os primeiros sistemas de representação que o homem produziu do mundo e de si próprio são de origem religiosa. (...) Se a filosofia e a ciência nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes da ciência e da filosofia. Mas o que foi menos notado é que ela não se limitou a enriquecer com um certo número de ideias um espírito humano previamente formado; também contribuiu para formar esse espírito. Os homens não lhe devem apenas, em parte notável, a matéria de seus conhecimentos, mas igualmente a forma segundo a qual esses conhecimentos são elaborados.301

Não por acaso, será justamente o sistema religioso compreendido como o mais antigo e primitivo – do ponto de vista da complexidade de seu sistema de práticas e crenças – que aparecerá como alvo primeiro da análise: trata-se aqui daquele sistema religioso conhecido pelo nome de totemismo, presente nas tribos da Austrália e da América do Norte. Seguindo Durkheim, é por aí que devemos começar. O totemismo, dizia o sociólogo, constitui, como toda religião, um sistema de crenças e de práticas que tem por conteúdo as noções de sagrado e profano e cuja articulação estabelece, entre os homens, uma espécie de comunidade moral. O que caracteriza propriamente o totemismo, entretanto, é que esse sistema de crenças 301. [1912a] As Formas Elementares, p.xv.

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e práticas relativas ao sagrado se baseia na crença fundamental de uma cosubstancialidade entre determinados grupos de homens e determinadas espécies ou tipos naturais, os chamados “totens”. O totem, vale lembrar, não se referiria aqui a um exemplar específico do mundo natural, mas à espécie em sua generalidade: trata-se do clã do canguru, o clã do corvo e não o clã de tal corvo ou tal canguru. Mais ainda, o totem é um nome e um emblema, o que equivale a dizer, em outras palavras, que sua representação, longe de restringirse ao círculo específico da espécie natural, é capaz de aplicação a uma multiplicidade de objetos. Eis o ponto que nos interessa. É por ser um sistema de representações gerais que o totemismo podia equacionar a sacralidade de uma série de objetos sociais, a saber, coisas302, animais303 e pessoas304, 302.  A sacralização de determinados objetos materiais fica clara, por exemplo, no caso dos churingas, instrumentos rituais marcados com o emblema totêmico. Os churingas, diz Durkheim, devem ser afastados de todos os seres (objetos e pessoas) relacionados ao domínio profano. Eles não podem ser tocados senão por alguns membros do grupo e em ocasiões especiais − a comunicação com o sagrado, vale lembrar, não é vetada, mas constitui sempre um processo delicado. Acredita-se que eles têm poderes especiais (de cura, de auxílio em combates, etc.) e que sua sacralidade se estende aos demais objetos ou localidades que lhes são próximos. Os locais onde são guardados constituem verdadeiros santuários onde só se pode adentrar por meio de regras específicas e onde não são permitidas quaisquer disputas. 303.  A sacralidade de certos animais ou vegetais, no interior do totemismo, manifesta-se por meio de uma série de interdições. Se os animais e vegetais profanos são aqueles que se prestam a alimentação (e eventualmente até a outras atividades humanas), os animais sagrados, ao contrário, são aqueles cercados por interditos, principalmente alimentares. Não se pode matá-los (ou colhê-los, no caso vegetal) nem comê-los. Esses interditos, diz Durkheim, só podem ser descumpridos em situações muito especiais (como em determinados rituais) ou em situações de absoluta necessidade − quando o animal, por exemplo, é muito perigoso ou quando é o único alimento disponível − e ainda assim, quando a regra é desrespeitada, ela não é feita sem qualquer mediação: pede-se desculpas ao animal, lamenta-se sua morte e toma-se precauções pra que ele sofra o menos possível. 304.  O indivíduo portador do nome do totem, diz Durkheim, estabelece com ele um vínculo de parentesco e portanto, não poderia deixar de participar, num certo sentido, do domínio sagrado. O membro do clã, desse modo, passa a ser investido de um caráter sagrado que não fica atrás daquele concedido ao animal da espécie totêmica. Nesse caso, a sacralidade do homem se manifesta normalmente em alguma parte, órgão ou tecido do corpo. Durkheim lembra a esse respeito como os cabelos e, principalmente, o sangue humano, parecem ser investidos de uma tal sacralidade que os habilitam a figurar como peças chave numa série de rituais: “não há cerimônia religiosa em que o sangue não desempenhe algum papel” ([1912a] As Formas Elementares, p. 132)

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todos eles situados no interior de uma cosmologia, dotados de um lugar próprio e depositários de algum grau específico dessa qualidade especial a que demos o nome de “sagrado”. Assim, o totemismo constituiria, na verdade, não apenas um sistema de crenças e práticas relativas ao sagrado e ao profano, mas um sistema de representações capaz de equacionar ao mesmo tempo uma multiplicidade de objetos à unidade clânica, onde o resultado dessa identificação entre o múltiplo e sua respectiva unidade só poderia ser aquele sentimento que Durkheim descrevera, em sua definição inicial, sob o nome de “comunidade moral”, uma função da identidade. Mas isso não era tudo. Pois as crenças a respeito da sacralidade dos objetos situados sob a unidade da tribo não se articulavam aqui de maneira aleatória; ao contrário, tratava-se de uma articulação sistemática. O totemismo podia ser compreendido como uma verdadeira cosmologia, pois tratava-se de um sistema capaz de ordenar não apenas alguns, mas todos os objetos segundo suas categorias de classificação do sagrado. Nos sistemas das ideias religiosas, Durkheim nos lembrava, nada podia ficar de fora. Nesse sentido, o autor nos mostrava que para os australianos todos os objetos deveriam fazer parte da tribo, isto é, todos eles deveriam pertencer a algum clã. Assim, se uma determinada tribo se dividisse, por exemplo, em duas fratrias e cada uma delas respectivamente em quatro clãs, então os objetos do mundo pertenceriam necessariamente a uma das oito categorias fundamentais referentes a cada dos clãs. O totemismo, portanto, mais do que um sistema de crenças, forneceria também um quadro geral de classificação dos objetos do mundo. Postas estas considerações podemos ver como a sociologia da religião e a sociologia do conhecimento começam a se entrelaçar no interior do projeto durkheimiano. Pois as classificações totêmicas teriam sido, historicamente, as primeiras classificações existentes. Nesse caso, o argumento durkheimiano tinha por estratégia central mostrar o modo como o pensamento classificatório tomava os marcos sociais para aplicá-los às coisas do mundo: é porque os homens estavam agrupados segundo um sistema social de classificação que puderam estender essa mesma classificação às outras coisas do mundo. Ora,

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já havíamos visto que os objetos, no interior do totemismo, não são simplesmente justapostos, mas dispostos segundo um sistema unitário de classificação. Mas essa unidade, dizia Durkheim, só poderia ser a unidade da tribo que alinhava sob si as fratrias e sob estas os clãs, dispondo-as sempre segundo uma ordem geral. Como se o autor nos dissesse que nesse momento inicial da história do pensamento a verdadeira unidade lógica por trás dos processos de categorização de objetos não fosse mais do que um resultado da unidade da tribo. Em todo caso, parece importante lembrar que a existência de um quadro classificatório, aos olhos de Durkheim, não excluiria a capacidade da consciência de perceber semelhanças e diferenças entre as representações dos objetos. Essa faculdade seria, aliás, pressuposta por toda classificação. Ele insistirá, a esse respeito, que “não é ao acaso que o australiano ordena as coisas num mesmo clã ou em clãs diferentes. (...) as imagens similares se atraem, as imagens opostas se repelem, e é de acordo com o sentimento dessas afinidades e repulsas que ele [australiano] classifica, aqui ou ali, as coisas correspondentes.”305. Mas, uma afirmação como essa, entretanto, não poderia deixar de colocar uma certa dificuldade à hipótese geral de Durkheim. Pois a assunção de semelhanças e diferenças já dadas para além de toda classificação implicava ao menos duas coisas: 1) que os quadros classificatórios encontravam, no campo dos objetos, um certo constrangimento inicial fornecido pelo material sensível e 2) que encontram, no campo do sujeito cognoscente, algum tipo de intelecção pré-social. Afinal, as próprias ideias de semelhança e diferença, num certo sentido, pareciam sugerir algum tipo de remissão do múltiplo a uma unidade serial sem o que toda comparação seria vetada. A saída do mestre francês − atento ao fato de que os quadros classificatórios dificilmente poderiam esgotar a totalidade do fenômeno da classificação − foi desenvolver uma distinção analítica no campo do próprio conceito de identidade. Donde o simples sentimento de semelhança deveria distinguir-se da forma lógica da identidade operada aqui pela noção de gênero: 305. 

Ibid., p.142.

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Uma coisa (...) é o sentimento das semelhanças, outra coisa a noção de gênero. O gênero é o quadro exterior cujo conteúdo é formado, em parte, por objetos percebidos como semelhantes. Ora, o conteúdo não pode fornecer o quadro no qual se dispõe. Ele é feito de imagens vagas e flutuantes, devido à sobreposição e à fusão parcial de um número determinado de imagens individuais que eventualmente têm elementos comuns; o quadro, ao contrário, é uma forma definida com contornos nítidos, mas suscetível de aplicar-se a um numero determinado de coisas, percebidas ou não, atuais ou possíveis. Todo gênero, com efeito, tem um campo de extensão que ultrapassa infinitamente o círculo dos objetos cuja semelhança percebemos por experiência direta.306

Ora, a chave para entender a sociologia do conhecimento encontra-se precisamente na noção de gênero. O gênero é, para Durkheim, um símbolo lógico, e, provavelmente, o mais fundamental. O que está em jogo nesse tipo de encaminhamento é que o gênero, tal com compreendido aqui, marca a abstração do múltiplo com vistas a uma unidade. Não seria exagero afirmar, aliás, que ele constitui, num certo sentido, a forma por excelência de todo o pensamento identitário; pois o gênero fornece, por assim dizer, a regra de ligação das espécies e estabelece, tal como o conceito, embora em outro nível, um laço de familiaridade (identidade) entre seus exemplares. Ora, sem esse vínculo subterrâneo entre as coisas, sem o estabelecimento de sua identidade segundo uma regra geral, não haveria conceitos nem qualquer pensamento discursivo. Feitas essas considerações podemos então compreender o modo pelo qual Durkheim repõe em circulação, embora agora em outro nível, aquela que constitui talvez a mais importante questão da teoria do conhecimento, a saber: onde poderia o homem encontrar um modelo que lhe sugerisse esses laços fundamentais capazes de ligar os objetos segundo séries e de estabelecer entre suas qualidades relações de coordenação e subordinação? Em uma resposta absoluta306. 

Ibid., p.144.

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mente original, Durkheim nos dizia que esse modelo fundamental só poderia ser o próprio vínculo de identidade estabelecido entre os homens. É o grupo social − e não as coleções de objetos fornecidos pela natureza ou o sujeito transcendental − que sugere ao homem a existência desses vínculos de identidade e familiaridade entre os particulares, vínculos que só posteriormente poderão ser estendidos aos objetos naturais e que servirão então de base à sua intelecção conceitual. Em um trecho longo, porém muitíssimo elucidativo, Durkheim expõe seu argumento: A ideia de gênero é um instrumento do pensamento que foi manifestamente construído pelos homens. (...) Ora, não se percebe onde teríamos podido encontrar esse modelo indispensável senão no espetáculo da vida coletiva. Um gênero, com efeito, é um agrupamento ideal, mas claramente definido, de coisas entre as quais existem laços internos análogos aos laços de parentesco. E os únicos grupamentos desse tipo, que a experiência nos dá a conhecer, são aqueles formados pelos homens ao se associarem. As coisas materiais podem formar coleções, amontoados, agregados mecânicos sem unidade interna, mas não grupos no sentido que acabamos de dar à palavra. Uma pilha de areia, um monte de pedras nada tem de comparável a esse tipo de sociedade definida e organizada que é um gênero. Portanto, é muito provável que jamais teríamos podido pensar em reunir os seres do universo em grupos homogêneos, chamados gêneros, se não tivéssemos diante dos olhos o exemplo das sociedades humanas, e inclusive se não tivéssemos começado por fazer das próprias coisas membros da sociedade dos homens, de tal maneira que grupamentos humanos e grupamentos lógicos foram a princípio confundidos.307

Considerações como essas no esclarecem então o porquê de o totemismo ser um objeto privilegiado de análise e o ponto de partida para questão do conhecimento humano. O totemismo, se bem compreendido, é, aqui, mais do que um simples sistema religioso. A chave 307. 

Ibid., p.144-5.

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de compreensão do totemismo está no fato de que ele constitui, na verdade, a primeira expressão histórica do pensamento identitário e é precisamente disso que decorre seu interesse à teoria do conhecimento. O que o totemismo estabelece de maneira fundamental é um sistema de identidades entre objetos e, com isso, a ligação intelectual de objetos segundo regras unitárias. Ele nos mostra que os princípios de unidade e determinação com os quais trabalha o pensamento conceitual são, em sua origem, sociais. 2.4. Classificação e Normatividade Social Dissemos anteriormente que a sociologia do conhecimento e a sociologia da religião apareciam como duas ordens de reflexão intrinsecamente solidárias. O interesse no totemismo tornava-se claro na medida em que esse sistema de representações, se entendido em seu conjunto de operações formais, parecia mobilizar noções fundamentais ao pensamento lógico, tais com as de unidade, identidade e diferença. O totemismo, e nisso reside nossa leitura, poderia ser compreendido, de certo modo, como sendo uma matriz do pensamento identitário, e talvez até mesmo sua primeira expressão histórica. O que a análise do totemismo parecia desvelar, ao menos num primeiro momento, era uma correspondência entre a unidade fundamental das séries de classificação − unidade que perpassaria num único movimento gêneros, espécies, etc. − e a unidade social. Mas vimos também que a questão não se reduzia às séries classificatórias pois, de certo modo, as operações aí descritas eram idênticas àquelas operadas no campo interno dos conceitos. A determinação dos conceitos, tal como o estabelecimento das séries de classificação, também só era possível pelo movimento de ligação dos múltiplos numa unidade segundo um regime de identidades; tratava-se de uma mesma operação intelectual trabalhando em várias dimensões. Donde se seguia que sociologia parecia poder dizer algo até mesmo sobre o próprio pensamento conceitual. Eis então a possibilidade de passagem entre o totemismo (a religião mais primitiva) e as categorias (os conceitos mais fundamentais).

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Ao colocar a questão desse modo, nos deparamos com a forma intelectual do pensamento totêmico. Mas à descrição intelectual desse tipo de pensamento − que subsume os múltiplos em regimes de unidades por meio do estabelecimento de ligações − é preciso acrescentar algo sem o qual não se poderia compreender propriamente a natureza sociológica do fenômeno classificatório. Pois essa ligação que coordenava e subordinava os múltiplos com vistas ao estabelecimento de séries unitárias, essa regra que fornecia a “identidade” dos objetos situados em determinado grupo, não era e não poderia ser, ao menos aos olhos de Durkheim, um procedimento puramente intelectual. Como se o autor nos dissesse que aos processos de ligação fosse preciso acrescentar um elemento extralógico sem o qual as séries não se instaurariam. Daí porque Durkheim podia dizer, por exemplo, o seguinte: (...) uma classificação é um sistema cujas partes estão dispostas segundo uma ordem hierárquica. Há caracteres dominantes e outros subordinados aos primeiros; as espécies e suas propriedades distintas dependem dos gêneros e dos atributos que os definem; ou, ainda, as diferentes espécies de um mesmo gênero são concebidas como situadas no mesmo nível, tanto umas com as outras. Se o ponto de vista da compreensão é o que prevalece, representam-se então as coisas segundo uma ordem inversa: colocam-se em cima as espécies mais particulares e mais ricas em realidade, em baixo, os tipo mais gerais e mais pobres em qualidades. Mas não se deixa de concebê-los sob uma forma hierárquica. E não se deve pensar que a expressão tenha aqui apenas um sentido metafórico: trata-se realmente de relações de subordinação e coordenação que uma classificação tem por objeto estabelecer, e o homem sequer teria pensado em ordenar seus conhecimentos dessa maneira se não soubesse, antes, o que é uma hierarquia. Ora, nem o espetáculo da natureza física, nem o mecanismo das associações mentais poderiam ser capazes de nos fornecer essa ideia. A hierarquia é exclusivamente uma coisa social. Somente na sociedade existem superiores, inferiores, iguais. Consequentemente, ainda que os fatos não fossem a tal ponto demonstrativos, a simples

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análise dessas noções seria suficiente para revelar-lhes a origem. Foi da sociedade que as tomamos para projetá-las em seguida em nossa representação do mundo. Foi a sociedade que forneceu o suporte sobre o qual trabalhou o pensamento lógico.308

Este trecho nos parece extremamente elucidativo, pois ele marca, justamente, aquela passagem fundamental entre lógica e sociologia. A ordenação sistemática das séries classificatórias com vistas, quer à abstração da generalidade, quer à riqueza da multiplicidade, constituiria, na verdade, uma “hierarquização” e, portanto, um tipo de operação intelectual que encontraria parte de sua fundamentação para além de sua pura forma lógica. Pois a hierarquia “é exclusivamente uma coisa social”. Colocar a questão nestes termos era o modo durkheimiano de insistir que os processos de ordenação e classificação deviam operar, em alguma dimensão, com um elemento dado à lógica “de fora”. Compreender as séries segundo as categorias de “superiores” e “inferiores” era, nesse contexto, mais do que apenas alocá-los no interior de uma simples relação; era, antes, atribuir-lhes valor e, mais ainda, um valor apreendido primeiramente no interior de relações sociais: “somente na sociedade existem superiores, inferiores, iguais.” O mesmo valia, é claro, para os conceitos, pois a própria identidade conceitual, isto é, aquilo que fornecia regra de familiaridade entre os exemplares situados sob um conceito, só podia operar por meio do estabelecimento de relações de coordenação e subordinação entre os predicados dos múltiplos: o conceito seria justamente a regra capaz de definir, para um dado objeto, quais as características necessárias (superiores) e quais as contingentes (inferiores). Caso contrário não se poderia instaurar nenhuma regra com vistas à generalidade e, portanto, nenhuma subsunção do múltiplo, quer em conceitos, quer em classes. Assim, o argumento geral, aquele segundo o qual o homem só poderia pensar as famílias de objetos (e, portanto, alocar os objetos empíricos sob um conceito), porque ele mesmo estabelecia laços 308. 

Ibid., p.145 (grifo meu).

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de parentesco e alocava-se sob uma família ou grupo, poderia ser entendida aqui como mais do que uma simples homologia. O parentesco, essa síntese fundamental que perpassaria os homens (e possivelmente quaisquer objetos submetidos à discursividade do entendimento), longe de ser uma noção puramente intelectual, era também normativa. Ele estabeleceria obrigações, direitos e, principalmente, um significado específico de necessidade entre as partes ligadas. Ele constituiria o elemento propriamente extralógico da síntese conceitual que habilitaria, no interior das séries, o estabelecimento da “superioridade” de alguns predicados (necessários) em detrimento de outros (contingentes), sem o que não haveria hierarquia e nem mesmo qualquer série. Tratar-se-ia de um laço que implicaria não apenas o ser das coisas, na medida em que as descreveria como ligadas, mas seu próprio dever ser, na medida em que as familiarizaria com seu múltiplo e reconheceria, nesse embate, sua identidade. Ora, era precisamente a existência dessa normatividade extralógica a guiar como que subterraneamente os processos de síntese intelectual com vistas à discursividade que habilitava o projeto durkheimiano de uma teoria sociológica do conhecimento. Esse elemento extralógico era, aos olhos do mestre francês, um elemento fundamentalmente sociológico. Eis o cerne de sua teoria do conhecimento! Com isso, Durkheim pretendia ter mostrado que princípios lógicos como os de unidade, identidade e diferença eram expressos primeiramente na sociedade e encontravam nela, ao menos parcialmente, uma fundamentação adequada à sua dimensão extralógica. Mas não vimos ainda como, exatamente, ele pretendia estabelecer essa remissão ao social, isto é, como e por quais caminhos exatamente ela se configurava. O arremate do argumento não poderia ser outro: para ele, a prova de que tais princípios eram, num certo sentido, sociais é que carregavam um elemento de normatividade expresso, nesse primeiro momento histórico, pela religião e, mais especificamente, pelo signo da sacralidade. Tratava-se de mostrar que os laços de familiaridade que reuniam o diverso sob uma mesma rubrica, laços que reuniam as espécies sob os gêneros e que instauravam séries com vistas à unidade interna de seus elementos, que eles

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possuíam um caráter sagrado; tratava-se de mostrar que eram laços da mesma natureza daqueles que vinculariam os membros da espécie totêmica ao totem. A identidade (assim como a hierarquia das partes) poderia ser compreendida, nesse contexto, como um modo de relação com o totem. Os seres poderiam ser compreendidos, todos eles, como modalidades desse ser superior chamado “totem”. Daí porque Durkheim podia dizer, a respeito da identificação entre um objeto e o gênero totêmico, o seguinte: (...) [O australiano] não está querendo aplicar a todos esses seres dispares um rótulo comum, mas puramente convencional: a palavra tem para ele uma significação objetiva. (...) Um laço interno os prende ao grupo no qual são classificados, são membros regulares dele. Diz-se que pertencem a esse grupo da mesma forma que os indivíduos humanos que dele fazem parte; por conseguinte uma relação do mesmo gênero os une a estes últimos. O homem vê nas coisas de seu clã parentes ou associados; chama-as seus amigos, considera-as como feitas da mesma carne que ele. Assim, existem entre elas e ele afinidades eletivas e relações de conveniência muito particulares. Coisas e pessoas comunicam-se, de certo modo, entendem-se, harmonizam-se naturalmente.309

Donde se segue: Assim, as pessoas do clã e as coisas que nele são classificadas formam, por sua reunião, um sistema solidário em que todas as partes estão ligadas e vibram simpaticamente. Essa organização que, à primeira vista, podia nos parecer puramente lógica é, ao mesmo tempo, moral. Um mesmo princípio a anima e faz sua unidade: é o totem.310

A prova de que as coisas submetidas à classificação totêmica estabeleciam com ele não apenas um vínculo de subordinação, mas uma 309.  310. 

Ibid., p.146-7. Ibid., p.147.

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identificação é que tais seres partilhariam de uma sacralidade que seria da mesma natureza daquela experimentada pelo ser totêmico. Isso era demonstrado, por exemplo, pelo fato de que cada um dos objetos submetidos ao totem poderia constituir virtualmente um subtotem de um subgrupo. Esse subtotem podia até mesmo, em circunstâncias de diferenciação social, servir de totem primário a determinado grupo que viesse a emergir. Ora, se não partilhassem da mesma natureza, tais objetos jamais poderiam substituir o totem propriamente dito. Com isso, Durkheim pretendida não apenas estabelecer, do ponto de vista de seu argumento geral, uma fundamentação parcialmente social a uma série de operações lógicas, mas fornecer uma ilustração adequada a partir da qual se poderia vislumbrar essa passagem fundamental entre lógica e sociologia. Sua articulação peculiar não apenas era possível, mas podia ser empiricamente concebida se tivéssemos em mente o exemplo totêmico. 2.5. Algumas Considerações Intermediárias Nosso saldo parcial é, até o momento, o seguinte: classificações e conceitos se fundam em procedimentos intelectuais homólogos – de uma remissão do múltiplo ao uno por meio do estabelecimento de séries de ligações – mas, tanto num caso como no outro, a intelecção dos objetos acaba por recorrer, nesse mesmo processo, a algum tipo de noção – como, por exemplo, hierarquia, gênero, familiaridade, etc. – cujo significado é, ao menos em parte, social. Disso decorre que a necessidade intelectual de determinados procedimentos deveria ser, em parte, complementada por algum outro tipo de elemento. Ao lado da necessidade de tipo intelectual haveria também um tipo de necessidade moral ou social a guiar os processos de síntese e constituição de objetos, fosse nas séries classificatórias, fosse na própria discursividade conceitual. Mas o que implica então uma afirmação desse tipo? Por ora não podemos responder essa pergunta inteiramente, mas algumas considerações podem ser feitas para que possamos vislumbrar um encaminhamento possível. A primeira consideração a ser feita diz respeito ao papel da sociologia em todo esse processo. A reconstrução que fizemos aqui

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tratou de mostrar apenas “que” certas noções fundamentais à lógica remontavam à sociedade, mas abordamos apenas lateralmente o “como” exatamente essas noções deveriam poder surgir no interior de determinados grupos. Sabemos que essa segunda questão, que poderíamos traduzir em termos de “origem” ou “gênese”, será uma peça importante no interior da montagem da sociologia durkheimiana. O mestre francês, como se sabe, tentou responder a essa questão por meio de uma teoria dos símbolos rituais e por meio de uma ideia central à sua sociologia da religião, a noção de mana. Essa questão, entretanto, não constituiu aqui, como dissemos, nosso objeto principal. Uma distinção como essa, é claro, só pode ser feita a partir da compreensão de que embora as questões do “que” e do “como” mantenham estreita relação, elas conservam certa autonomia. Isso implica dizer, nesse contexto, que a questão da fundamentação de determinados princípios, como os de unidade, hierarquia, identidade e diferença, deveria operar em um nível autônomo. Isto é, se bem fundados – seja no social, no intelecto ou em ambos – tais princípios continuariam a operar, independentemente de sua gênese, por meio de determinados padrões que lhes são próprios. Esse tipo de afirmação é o que permitia a Durkheim pensar a variabilidade de determinadas representações coletivas sem, no entanto, desconsiderar um certo aspecto universalista das categorias do pensamento humano. O fato de a sociologia poder elucidar, por exemplo, o modo pelo qual determinadas noções caras ao pensamento humano se constituíam e operavam não implicava que seus traços gerais, enquanto noções intelectuais, fossem completamente modificados. Lembremos, afinal, que, para ele, a necessidade moral por trás de determinados procedimentos do pensamento não substituía a intelectual, mas, antes, a complementava. Insistir nesse aspecto do pensamento durkheimiano nos leva então à nossa próxima consideração. Nossa segunda consideração diz respeito a uma possível aproximação entre a teoria durkheimiana dos conceitos e o modo como Kant parecia encaminhar esse tipo de questão. Esta aproximação, tal como a compreendemos, parece sugerir exatamente o que acabávamos de dizer: que a dimensão intelectual dos processos de

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classificação e conceituação de objetos não perde em nenhum momento sua importância. Pois, se bem compreendido, o pensamento durkheimiano parece operar com categorias muito próximas àquelas mobilizadas pelo transcendentalismo kantiano. Quando ele insiste, por exemplo, que no interior do totemismo uma multiplicidade de seres estabelecem sua identidade no processo de remissão à unidade clânica, ele acaba por repor em circulação, embora em outro nível, uma figura fundamental do pensamento kantiano: a unidade pura da apercepção transcendental. Os princípios de unidade e determinação que marcavam a síntese pura do entendimento reaparecem aqui sob a figura da totalidade do grupo. Não por acaso, a “totalidade” aparecerá a ele como aquela que, dentre as chamadas categorias, é a mais fundamental ou, ao menos, a mais alta na hierarquia dos conceitos.311 Por fim, restava passar aos conceitos mais altos nessa hierarquia rumo à “totalidade”. Afinal, se era possível supor, de antemão, que a sociologia estava apta à fundamentação (ainda que parcial) dessa nova figura da unidade, então ter-se-ia uma pista de onde começar um possível mapeamento. Foi seguindo um raciocínio desse tipo que Durkheim pensou poder passar a uma sociologia das categorias. 3. As Formas Elementares (II): Por uma Teoria Social das Categorias 3.1. Prolegômenos a uma Teoria Social das Categorias Dissemos que o pensamento kantiano poderia ser lido como remetendo a uma espécie de bifurcação transcendental que abria duas vias possíveis de fundamentação do conhecimento sintético a priori: de um lado, encontrávamos as demandas colocadas por uma certa figura do que Kant chamara, na edição de 1781 da Crítica, de “objeto transcendental” e que remetia a certas coordenadas de um regime de objetividade − isto é, de concordância com objetos em geral −; de outro, tínhamos a unidade do espaço lógico de comparação e 311. 

Ibid., p.490-1.

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de ligação entre representações, que seria fundado, como vimos, em uma subjetividade transcendental. De nossa parte, veremos que Durkheim pode ser compreendido, de certo modo, como alguém que teria levado adiante esse tipo de tensão. O sociólogo parecia se equilibrar entre uma teoria das representações coletivas, concebida como remetendo a determinadas condições transcendentais de um regime de experiência, sem, no entanto, desconsiderar uma certa figura da unidade transcendental, que reaparecerá sob uma nova roupagem. Ele começava por levar adiante o primeiro daqueles encaminhamentos abertos por Kant, mas de modo a reabsorver, mais à frente na economia de sua obra, também algo do segundo. Veremos como essa delicada operação se efetua, no pensamento de Durkheim, mediante a mobilização da noção de totalidade, compreendida agora num novo sentido. Seja como for, não nos parece equivocado dizer que o sociólogo, embora de maneira heterodoxa, se situa ainda nas malhas do pensamento kantiano. Observações como essas são importantes, pois permitem precisar melhor o que estava em jogo no interior do projeto de Durkheim. Em seu tratamento sobre a questão das representações − ao menos a partir de seu texto de 1898 −, Durkheim parecia conceber as chamadas representações coletivas como estruturadas em sistemas. Mais do que isso, ele parecia insistir que tais sistemas de representação eram aí organizados como que correspondendo à existência de determinadas possibilidades de combinatória e interditos de transposição representacionais. Como se o autor nos dissesse que o campo das representações coletivas encerraria, por trás de sua aparente diversidade, uma espécie de gramática própria que caberia investigar. Isso equivalia a dizer que as representações deveriam se concatenar e se relacionar por meio de determinadas formas ou estruturas gerais, as chamadas leis da ideação coletiva, as quais a sociologia deveria poder desvendar. De fato, esse projeto específico de investigação − que parecia prometer resolver os principais problemas da teoria durkheimiana do conhecimento − nunca foi concretizado em seu plano empírico. Entretanto, na ausência desse tipo de investigação empírica, o fato é

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que o sociólogo parecia retornar à mesma questão, anos mais tarde, por uma via um pouco diferente, já nas malhas de uma reflexão de tipo transcendental. Tais formas de organização das representações aparecerão então, ao menos nesse contexto, como remetendo às chamadas formas dos juízos. Não por acaso, ele conceberá as categorias − entendidas aqui como um tipo específico de representações coletivas − como estando localizadas “na raiz de nossos julgamentos”.312 Afinal, os julgamentos não seriam senão a expressão das relações entre os conceitos.313 Nesse caso, eles poderiam mesmo ser entendidos como fornecendo as formas possíveis da ligação entre ideias e, num certo sentido, como constituindo uma condição de possibilidade de toda comunicação intersubjetiva. O que a abordagem durkheimiana dos juízos parece sugerir, entretanto, é que a mera forma dos juízos, ainda que necessária, não poderia ser suficiente para garantir a objetividade da relação expressa. Lembremos, aliás, como Kant já havia insistido nesse ponto quando afirmava, nos Prolegômenos, a necessidade de uma distinção entre os chamados “juízos de percepção” e os “juízos de experiência”.314 Isso equivalia a dizer que poderia haver juízos não objetivos. Durkheim, ao seu modo, parece pensar de maneira muito semelhante quando nos diz, por exemplo, que “os elementos do 312. [1912a] As Formas Elementares, p. xv. A importância dos juízos no interior do pensamento de Durkheim parece ter passado despercebida pela maioria de seus comentadores. Há, entretanto, ao menos duas honrosas exceções que, de uma maneira ou outra, chamaram atenção à importância dessa questão. Ver a esse respeito: JONES, S. S. 2012. Forms of Tought and Forms of Society: Durkheim and the question do categories. In: L’Anné Sociologique, vol. 62, nº 2, 2012. p. 399; SCHMAUS, W. Rethinking Durkheim and his tradition. New York: Cambridge University Press, 2004, p. 128. 313.  A concepção durkheimiana dos juízos, ao menos nos termos de uma definição geral, é bastante simples. O juízo expressa discursivamente uma relação formal que se estabelece entre dois termos. Essa concepção geral, aliás, parece não ter mudado ao longo de sua vida. Em seus cursos no Lycée de Sens em 1884 (p.135) ele dizia, por exemplo, que “um juízo é a operação mental pela qual a mente afirma que uma ideia relaciona-se, de algum modo, a outra ideia”, ao passo que em 1911 (quase trinta anos depois), em um texto intitulado “julgamentos de valor e julgamentos de realidade”, ele se dizia, de maneira muito próxima, que “um julgamento de valor expressa a relação de uma coisa com um ideal. (...) A relação expressa une, pois, dois termos dados, tal como num julgamento de existência”. ([1911b] Jugements de valeur et jugements de realité, p. 139) 314.  KANT, I. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura, §19.

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julgamento são os mesmos de uma parte a outra. (...) [e que] Não existe, portanto, e nem deve existir mais do que uma única e mesma faculdade de julgar”.315 Nessa ocasião, Durkheim não apenas tentava aproximar, do ponto de vista de sua estrutura formal, o que ele chamou de “juízos de realidade” e “juízos de valor” − caso em que a objetividade da forma juízo podia ainda ser defendida se fosse admitida uma objetividade no campo dos valores − mas, parecia equacionar, no interior dos próprios “juízos de realidade”, juízos concernentes a objetos e juízos concernentes a sujeitos.316 Nesse caso, a mera forma dos juízos, entendida como expressando as possíveis relações entre termos, ainda que constituísse uma condição necessária à expressão objetiva da experiência, parecia não ser inteiramente suficiente à objetividade discursiva. Segundo nossa hipótese, eram as categorias, entendidas como sendo mais do que a simples expressão conceitual das funções judicativas, que poderiam desempenhar esse papel demarcatório.317 Elas deveriam ser pensadas, na verdade, como prescrevendo uma normatividade extralógica às funções lógicas dos juízos. Vimos, aliás, como a categoria mais alta na hierarquia das categorias, a totalidade, desempenhava, por meio dos operadores lógicos de “gênero” e “espécie”, uma tal função normativa – o que se expressava na noção de hierarquia. O que tínhamos como resultado desse encaminhamento sociológico que levava adiante parte dos argumentos kantianos era 315.  [1911b] Jugements de valeur et jugements de réalité, p. 139. 316.  É o que estava em jogo na seguinte passagem: “Quando dizemos que os corpos são pesados, que o volume dos gases varia em razão inversa à pressão que sofrem, formulamos julgamentos que limitam-se a exprimir fatos dados. Eles enunciam aquilo que é e, por essa razão, nós os chamamos de julgamentos de existência ou de realidade. (...) Quando digo: gosto da caça, prefiro a cerveja ao vinho, a atividade ao repouso e etc., eu emito juízos que podem parecer exprimir avaliações, mas que são no fundo, simples juízos de realidade. Eles referem-se unicamente à maneira pela qual nos comportamos diante de certos objetos; que gostamos destes, que preferimos aqueles. Essas preferências são fatos tanto quanto o peso dos corpos ou a elasticidade dos gases. Semelhantes juízos não têm por função atribuir às coisas um valor que lhes pertença, mas somente afirmar estados determinados do sujeito.” ([1911b] Jugements de valeur et jugements de réalité, p. 117-8) 317.  Nesse ponto, nos afastamos de Susan Stedman Jones (2012), que parece remeter as condições de objetividade das categorias simplesmente às condições formais dos juízos por meio da noção de “relação”.

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um tipo de deslocamento transcendental que passava a centrar-se no jogo de relações que se estabelecia entre: 1) as prescrições sintáticas das funções judicativas e 2) uma semântica normativa das categorias, entendidas agora como equacionadas às chamadas representações coletivas. Essa espécie de gramática transcendental fundava as coordenadas gerais de um regime de objetividade em que formas lógicas (juízos) articulavam-se a representações sociais (categorias). Mas dissemos, paralelamente a tudo isso, que a figura da unidade transcendental, indissociavelmente ligada aos processos de síntese do diverso, não poderia deixar de desempenhar uma papel importante no interior da discursividade conceitual. Se é verdade que ela não aparecia mais como a unidade da autoconsciência transcendental, nem por isso ela deixava de figurar, ainda que sob uma nova imagem, no esquema durkheimiano. O abandono do sujeito transcendental como instância fundadora era, ao menos como Durkheim parecia compreender, o resultado de uma tentativa de dissociação entre a objetividade das representações sociais e o espaço próprio da consciência. Embora a consciência aparecesse como o lócus do conhecimento representacional, ela não aparecia mais, ao menos desde o texto de 1898, como sua verdadeira instância fundadora. Em seu descentramento, a faculdade da consciência era compreendida, como bem apontou Stedman Jones, como constituindo então um conjunto de funções solidárias.318 Além das passagens analisadas pela autora – provenientes de A Divisão do Trabalho (1893) e O Suicídio (1897) –, insistiríamos que esse tipo de interpretação parece ser confirmada também por uma passagem de 1913 – portanto, mais próxima ao período de publicação de As Formas Elementares (1912) –, na qual Durkheim referia-se à consciência como uma espécie de “organismo do conhecimento”.319 Nesse caso, ela não parecia poder ser compreendida, dado seu caráter descentrado, como instância fornecedora de uma unidade sintética necessária. 318.  JONES, Susan Stedman. Representation in Durkheim’s masters: Kant and Renouvier. In: PICKERING, W. (ed.) Durkheim and Representation. London: Routledge, 2000, p. 48-52. 319.  [1955a] Pragmatisme et Sociologie, p. 170.

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A unidade sintética, esse princípio fundamental sem o qual não se organizariam os conceitos, aparecia então, ao menos no contexto da reflexão sobre o totemismo, como um tipo de função da unidade social – e não mais como ligada à unidade da consciência como espaço lógico de referência, embora houvesse aí, é claro, uma certa proximidade. Não era por outra razão, aliás, que a categoria mais alta na hierarquia dos conceitos, aquela sob a qual seriam subsumidas todas as outras sínteses, só poderia ser, aos olhos de Durkheim, a categoria de totalidade. Pois, nesse contexto, o conceito de totalidade parecia identificar-se à sociedade tomada como unidade, donde se podia compreender então um novo tipo de unidade transcendental. Durkheim lembrava a esse respeito que “o conceito de totalidade não é senão a forma abstrata do conceito de sociedade: ela é o todo que compreende todas as coisas, a classe suprema que abrange todas as outras classes”320, e que “(...) talvez não haja categoria mais essencial do que esta, pois, como o papel das categorias é envolver todos os outros conceitos, a categoria por excelência parece dever ser, exatamente, o conceito de totalidade”.321 Ora, um encaminhamento desse tipo, que deslocava a reflexão sobre a unidade transcendental da autoconsciência para uma reflexão sobre a unidade sintética da sociedade – tomada agora como totalidade – parecia ser uma saída mais compatível com o que até então havia sido colocado. Em primeiro lugar, porque a sociedade, constituindo-se como uma parte objetiva da realidade, parecia poder equacionar melhor a objetividade do regime cognitivo de experiência do que, por exemplo, a autoconsciência kantiana.322 Em segundo lugar, porque, constituindo também uma espécie de potência moral, a sociedade parecia mais adequada à fundamentação do alegado caráter normativo dos processos 320.  [1912a] As Formas Elementares, p. 491. 321.  Ibid., p. 490. 322.  Nesse caso, uma possível vantagem em se equacionar a questão da objetividade do conhecimento à dimensão objetiva (e, portanto, real) da própria sociedade, é que o clássico problema da distinção entre fenômeno e coisa em si parece poder dissolver-se. Veremos que o pensamento de Durkheim, embora às vezes de maneira mal resolvida, parece caminhar nesse sentido.

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de síntese conceitual.323 Mas, feitas todas essas considerações, poderíamos nos perguntar então o seguinte: o que significava, do ponto de vista da explicação durkheimiana, essa série de deslocamentos no contexto de uma apropriação heterodoxa do pensamento de Kant? A primeira consequência é a de que o esquema explicativo deveria abolir, em termos formais, as antigas divisões kantianas entre sensibilidade, entendimento e razão. Afinal, se a unidade social expressava-se, entre outras coisas, no conceito de totalidade e era, sobretudo, ele que parecia regular, mediante os operadores lógicos de gênero e espécie, as diversas sínteses conceituais, então os antigos conceitos do entendimento, tal como as antigas formas da intuição, deveriam situar-se, todos eles, sob essa atividade fundamental. Não por acaso, as representações formais da estética (tempo e espaço), as relações lógicas (causalidade e substância) e os princípios de classificação (gênero e espécie) serão todos eles compreendidos como equivalentes: todos são, para Durkheim, categorias e, principalmente, todos remetem à totalidade – essa figura intelectual da sociedade – entendida então como a categoria mais alta na hierarquia dos conceitos. Não deixava de ser sintomático o fato de que Durkheim parecia inverter, na ordem de sua investigação, o encaminhamento kantiano − onde a investigação sobre o problema das classificações aparecia apenas no final da Crítica. De fato, vemos aqui como os princípios de classificação e, sobretudo, a categoria de totalidade, sua expressão maior, pareciam fornecer a chave de compreensão tanto das chamadas categorias do entendimento como das intuições formais da sensibilidade. Não é por outra razão que a investigação sobre as classificações (primeiramente expressa em 1903) antecedia a investigação das categorias (1912): a antecedência cronológica da inves323.  Uma pergunta interessante que podia ser feita a esse respeito, ao menos da perspectiva de Kant, era se o sujeito kantiano também não poderia aparecer, por meio de uma figura da vontade autônoma, como sendo capaz de preencher, ao menos em princípio, essa função normativa. Isto é, cabia saber se a razão prática não poderia fornecer aos princípios regulatórios de classificação da razão teórica um complemento normativo que, nesse caso, poderia então servir como elemento distintivo da síntese organizadora das séries de tipo ascendente (rumo à homogeneidade) e descendente (rumo à heterogeneidade), tal como descritas no apêndice da “dialética transcendental”, ao fim da Critica da Razão Pura.

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tigação pareceu acompanhar aqui a afirmação de uma antecedência lógica. Quando Durkheim partiu em direção à sua investigação das categorias, portanto, ela já tinha em suas mãos aquilo que acreditava ser o princípio fundamental de sua explicação: enquanto conceitos, as categorias deveriam remeter, mediante processos classificatórios, à totalidade; ou ainda, dito de outra maneira, enquanto representações coletivas, as categorias deveriam remeter sempre à sociedade. A segunda consequência desse conjunto de deslocamentos promovidos por Durkheim é também a que liga de maneira mais evidente a reconstrução aqui proposta – que alega a uma apropriação peculiar do kantismo – ao argumento geral da obra, a saber, aquele a respeito da homologia entre 1) a heterogeneidade que marcava a relação entre indivíduo e sociedade e 2) as antinomias entre razão e sensibilidade, sagrado e profano, alma e corpo, etc. A esse respeito, gostaríamos de insistir no seguinte: se é verdade que o movimento de desvinculação entre o que chamamos aqui de uma “gramática” representacional – com sua respectiva unidade lógica, agora alocada no conceito de totalidade – e a figura do sujeito transcendental era um movimento que implicava certa submissão das unidades das intuições da sensibilidade, dos conceitos do entendimento e dos princípios reguladores da razão, todas elas, a uma mesma unidade superior (totalidade), ainda assim, esse movimento era literalmente menos “totalizante” do que podia parecer. Ora, se é verdade que todas as representações conceituais remetiam, direta ou indiretamente, à totalidade da sociedade, esta não parecia possuir, tal como o sujeito transcendental, uma prerrogativa de aplicação a todas as representações mentais.324 Vimos como Durkheim não apenas concebia uma heterogeneidade entre indivíduo e sociedade, mas entre representações individuais e coletivas. Donde se seguia que a unidade lógica operada pela categoria de totalidade não se aplicaria, ao menos em termos formais, a sentimentos, imagens, percepções ou quaisquer variações 324.  Vimos como as representações mentais, para Kant, tomavam sempre ao espaço lógico da consciência como referência possível e podiam ser acompanhadas pelo “eu-penso”. Essa era, aliás, uma das consequências da dedução transcendental: as categorias deveriam poder aplicar-se a todas as representações sensíveis (B 143).

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de representações individuais. Vale lembrar, nesse mesmo sentido, o modo como ele alegava até mesmo a possibilidade de uma cognição pré-social ao afirmar, por exemplo, que a categoria de gênero pressupunha uma habilidade prévia de identificação de semelhanças e diferenças entre objetos.325 As categorias eram compreendidas aqui como quadros lógicos e forneciam os critérios distintivos de objetividade. Nesse sentido, elas não poderiam, por definição, aplicar-se a todas as representações mentais.326 Isso nos leva diretamente às questões que haviam sido colocadas anteriormente e reconectam nossa reconstrução a respeito dos fundamentos filosóficos e metateóricos durkheimianos à sua teoria propriamente sociológica. Nesse caso, recoloca-se a pergunta sobre a relação entre social e individual, ou ainda, sobre a compatibilidade entre uma possível fundamentação sociológica das representações e as demandas de objetividade do conhecimento discursivo. 3.2. A Tese Fundamental: o Caráter Social das Categorias Dissemos que talvez a principal questão à qual a teoria durkheimiana das categorias deveria responder era aquela 325.  Como bem apontou Schmaus (1994: 58), Durkheim parece admitir, em alguns momentos, uma espécie de realismo de entidades. Como se para além do domínio das representações houvesse determinados “tipos naturais” (natural kinds), aos quais as representações deveriam estar conformes. Em concordância com esse tipo de leitura, lembraríamos aqui de uma nota da introdução de As Formas Elementares em que esse tipo de encaminhamento fica bem claro: “(...) a noção de gênero formou-se sobre a de grupo humano. Mas se os homens formam grupos naturais, pode-se supor que existam, entre as coisas, grupos ao mesmo tempo análogos e diferentes. São esses grupos naturais de coisas que constituem os gêneros e as espécies.” ([1912a] As Formas Elementares: 503 n23) 326.  Na verdade, algo desse tipo de posição parece ter sido sustentada já em seus escritos de juventude. Embora Durkheim ainda não falasse em “categorias”, ao menos não no sentido exato de As Formas Elementares, ele assumia, de maneira bastante sintomática, uma irredutibilidade do pensamento à linguagem, e portanto, uma não identidade entre representação mental e conceito. Em uma análise bastante interessante, Schmaus (2000: 30-33) mostra que, em seus cursos no Liceu de Sens em 1883-4, por exemplo, ele parecia admitir a possibilidade de algum tipo de pensamento (ainda que obscuro e muito precário) para além da forma conceitual. Para mais detalhes, ver: SCHMAUS, Warren. «Representation in Durkheim Sens Lectures: an early approach to subject”. In: PICKERING, W. (ed) Durkheim and Representation. London: Routledge. 2000, p. 27-36.

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relativa à natureza da passagem entre representações individuais e representações coletivas. Vimos como ele parecia pensar esse tipo de questão recorrendo a uma explicação que focava em seus condicionantes sociais. As causas relativas ao aparecimento das chamadas representações coletivas (das quais as categorias seriam um tipo particular) remontavam ao concurso das representações de tipo individual, ao fato empírico de sua associação e às possibilidades abertas de ligação entre elas, donde emergiriam, por fim, essas representações de um novo tipo, fundamentalmente coletivas. Entretanto, uma vez que se assumia que tais representações eram de uma natureza sui generis e, num certo sentido, heterogêneas em relação às primeiras, a antiga questão kantiana, que temporariamente havia saído de cena, podia então reaparecer no conjunto de suas preocupações. Como se, num certo sentido, fosse ainda preciso explicar as representações coletivas em termos “de direito” e não apenas em termos “de fato”. Nesse sentido, vale lembrar que embora o argumento a respeito do caráter social das categorias tenha sido encaminhado por Durkheim em vários momentos e de diversas maneiras, algumas de suas articulações centrais e até mesmo de suas formulações mais bem acabadas aparecem apenas na última seção de As Formas Elementares. Desse modo, acreditamos não ser possível responder à questão do direito categorial sem reconstruir detalhadamente alguns dos argumentos presentes nessa seção. Nesse caso, veremos que Durkheim parecia mobilizar ao menos três tipos de argumentos um tanto distintos − ontológicos, epistemológicos e históricos −, cada um deles focando num certo aspecto de sua tese central: o caráter social das categorias, compreendidas agora como equacionadas às chamadas representações coletivas. Dimensão Ontológica da Tese O argumento a respeito do caráter social das categorias parecia ser encaminhado, primeiramente, num sentido ontológico. Nesse caso, a dimensão social das categorias não remetia apenas à sua elaboração

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por parte da sociedade, mas à sua natureza propriamente social: as categorias eram compreendidas como sendo feitas de elementos sociais. Elas não constituíam apenas elaborações sociais que expressavam, de maneira convencional, os modos pelos quais a sociedade se punha a pensar, mas, antes disso, configuravam os “modos de ser” da sociedade: Não apenas foi a sociedade que as instituiu [as categorias], como são aspectos diferentes do ser social que lhes serve de conteúdo: a categoria de gênero começou por ser indistinta do grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da categoria de tempo; o espaço ocupado pela sociedade é que forneceu a matéria da categoria de espaço; a força coletiva é que foi o protótipo do conceito de força eficaz, elementos essencial da categoria de causalidade.327

Ora, isso sugeria quase que imediatamente o seguinte problema: se as categorias são “coisas sociais”328 e se expressam aspectos do ser da sociedade, como poderiam então aplicar-se a objetos situados fora da sociedade? Isto é, como seria possível conceber a possibilidade de correspondência entre as representações sociais e o mundo dos objetos naturais? Esse tipo de questionamento é absolutamente central e Durkheim, de sua parte, pretende respondê-lo positivamente, isto é, de modo a garantir a existência de uma verdadeira correspondência. Como bem apontou Steven Lukes, a despeito da assunção de um certo convencionalismo e de uma certa variabilidade dos sistemas representativos, Durkheim procurou encaminhar a questão sem cair em uma relativismo cognitivo: para ele “(...) a validade das categorias e da ciência permanecia intacta”329. Numa primeira tentativa – talvez não inteiramente satisfatória – de responder ao chamado problema da correspondência, ele pareceu mobilizar um tipo de argumento metafísico a partir do qual repunha em circulação uma espécie de “harmonia preestabelecida” 327.  [1912a] As Formas Elementares, p. 489. 328.  Ibid., p. 488. 329.  LUKES, Steven. Émile Durkheim: his life and work - a historical and critical study. Stanford, California: Stanford University Press, 1985 [1973], p. 437.

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entre pensamento e mundo ou, nesse caso, entre categorias sociais e objetos não sociais. Em verdade, o argumento insistia no suposto de que a sociedade era também uma parte da natureza e que, embora constituindo seu extrato mais rico e mais complexo, não deixava de manter uma certa correspondência com os outros extratos que compunham sua base material.330 Nesse caso, isso equivalia a dizer que a unidade sintética das representações sociais não poderia estar em franca contradição com as síntese dos outros domínios da natureza, a saber, os domínios psicológico, biológico, químico e físico. Essa compatibilidade era, sem dúvida, um elemento tenso no interior do pensamento durkheimiano, entretanto, era justamente por meio dessa tensão que ele parecia equilibrar seu alegado emergentismo. Sem um mínimo grau de concordância em relação aos substratos anteriores, as esferas complexas e parcialmente autônomas do real sequer teriam condições de emergir. O surgimento da sociedade, tal como seu desenvolvimento histórico, dependiam, desde seu início, de um arranjo delicado, mas possível. O argumento ontológico de que as categorias seriam, por natureza, coisas sociais, podia ser então parcialmente complementado. Se elas expressavam de maneira direta os modos de ser da sociedade e encontravam nela sua base fundamental, nem por isso deixavam de poder expressar, ainda que de maneira indireta, outras relações, de naturezas mais longínquas, capazes de constituir algo como uma base não imediata. O argumento é o de que as relações expressas de maneira clara no interior do pensamento coletivo não deixavam de existir, em algum grau, e ainda de que de modo obscuro ou tácito, nas consciências individuais. As categorias de tempo, espaço, causalidade e, por fim, totalidade, não deixavam de manter relações com os respectivos sentidos internos da temporalidade, da espacialidade, dos nexos de sucessão regular e das noções de semelhança e diferença.

330.  Lukes (1985: 437) aponta de maneira bastante interessante um paralelo entre esse alegado “isomorfismo” entre pensamento e mundo, defendido por Durkheim, e aqueles argumentos que mais tarde serão usados por Lévi-Strauss e o jovem Wittgenstein no Tratactus.

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Certamente, as relações que elas [as categorias] exprimem existem, de maneira implícita, nas consciências individuais. O individuo vive no tempo e possui, como dissemos, um certo sentido de orientação temporal. Está situado num ponto determinado do espaço e foi possível afirmar, com boas razões, que todas as sensações tem algo de espacial. Possui um sentimento das semelhanças, nele as representações similares se atraem, se aproximam, e a nova representação, formada por essa aproximação, tem já algo de genérico. Temos igualmente a sensação de uma certa regularidade na ordem de sucessão dos fenômenos; o próprio animal não é incapaz disso.331

Considerações como estas, vale lembrar, estão em perfeita concordância com teoria das representações coletivas enunciada anos antes. Em seu texto dedicado às representações, ele parecia identificar, no campo da consciência, representações e relações que seriam apenas “parcialmente conscientes”, por vezes “obscuras” e, até mesmo, possivelmente “inconscientes”.332 Existiriam, pois, representações fundamentais, mas obscuras, que só poderiam tornar-se claras em meio à reflexividade do pensamento coletivo. No entanto, feita essa reconexão com a natureza − que encontraria agora um lugar mais ou menos adequado de expressão no interior do quadro categorial − o argumento ontológico não poderia deixar de ressaltar a peculiaridade da natureza social das categorias. Decerto, ainda que elas fossem, num sentido longínquo, coisas naturais − e não apenas sociais −, somente seu caráter social é que podia explicá-las em seu conteúdo mais imediato e fornecer, ao mesmo tempo, as características de sua objetividade discursiva. Nesse caso, a peculiaridade da remissão ao social passava, mais uma vez, pela vinculação dos conceitos fundamentais à categoria de totalidade, sem o que não se poderia passar dos sentidos internos aos quadros lógicos correspondentes. Parte do argumento ontológico consistia, pois, em insistir que os sentidos internos, ou ainda, as relações implicitamente dadas à consciência individual, não poderiam passar à condição 331.  332. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 489-90 [1898b] Représentations individuelles et collectives, p.31

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discursiva dos conceitos apenas por simples processos de abstração e generalização que o indivíduo pudesse eventualmente vir a operar. Ainda que uma operação desse tipo fosse possível pela simples comparação de representações individuais, a questão, ao menos na perspectiva de Durkheim, era a de que os conceitos não se explicavam dessa maneira e não se reduziam a esse tipo de procedimento; eles eram de uma natureza distinta. Pensar por conceitos, dizia ele, “(...) não é simplesmente ver o real pelo lado mais geral, é projetar sobre a sensação uma luz que a ilumina, a penetra e a transforma. Conceber uma coisa é, ao mesmo tempo que aprender melhor seus elementos essenciais, situá-la num conjunto (...)”333. Pensar remetia, nesse contexto, à “faculdade de conceber”334 e implicava, portanto, um ato de construção. Mas construir era, nesse sentido, ultrapassar a diversidade dos conteúdos dados; era apreender o modelo a partir do qual também o não dado poderia ser pensado e alocado no interior dessa regra de construção que chamamos “conceito”. Ora, se os conceitos tem essa capacidade e se implicam uma riqueza que ultrapassa, por definição, o conjunto das experiências individuais é porque, no fundo, eles referem-se à totalidade das experiências possíveis no interior da regra, algo que não se poderia pensar fora dessa totalidade de relações que é a sociedade. Como se o autor nos dissesse que o pensamento coletivo era aquele que possibilitava não apenas o aprendizado de determinados conteúdos, mas das próprias regras intelectuais de sua construção com vistas à generalidade, à impessoalidade e à discursividade.335

333.  [1912a] As Formas Elementares, p. 483-84. (grifo meu) 334.  Ibid., p. 485. 335.  Há aqui uma clara correspondência com os argumentos presentes na seção do “esquematismo transcendental” na Crítica da Razão Pura. A peculiaridade do argumento de Durkheim − que, no mais, segue de perto o pensamento de Kant − é a de que é a sociedade que submete e organiza, por meio da figura da totalidade, essa capacidade de construir as imagens a partir de seus respectivos esquemas. A síntese da imaginação, que num outro momento fornecia a unidade das intuições formais no interior da estética transcendental e que se submetia, para Kant, à unidade sintética do múltiplo em geral, também se submete aqui a uma figura da unidade: a totalidade social.

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Dimensão Epistemológica da Tese Vimos que em sua dimensão ontológica o argumento a respeito das categorias insistia que elas poderiam ser compreendidas como sendo coisas propriamente sociais, isto é, que constituiriam traços fundamentais desse ser que era a sociedade. Entretanto, esse tipo de encaminhamento, se compreendido de maneira isolada, deveria parecer ainda bastante insatisfatório; pois a simples afirmação de que as categorias constituiriam modos de ser da sociedade não era, por si só, nem uma justificação, nem uma razão de ser. Ciente dessa deficiência, Durkheim parecia encaminhar, já no interior do argumento, um dos elementos de sua possível resolução. Como vimos, parte da resposta consistia em mostrar que sem a admissão do caráter social dificilmente se poderia explicar o modo como operavam as categorias. No entanto, a verdade é que ele apontava para uma segunda dimensão da argumentação, a saber, a dimensão epistêmica de sua abordagem das categorias. Nesse caso, tratava-se de mostrar não apenas que as categorias remontavam aos chamados “modos de ser” da sociedade, mas que elas constituíam igualmente seus “modos de pensar” e, inclusive, as condições de inteligibilidade sem as quais sequer esses traços gerais – que constituíam seus modos de ser – poderiam tornar-se conscientes.336 Um modo de ler esse tipo argumento era aquele que recolocava a enunciação e a justificação kantiana das categorias: elas consistiriam, também aqui, “condições de possibilidade” da experiência. No entanto, diferentemente de Kant, essas condições de possibilidade não seriam, como vimos, as condições de toda a experiência possível, nem sequer de toda a experiência mental, mas, simplesmente, as condições de possibilidade da experiência social e da vida comunicativa. Essa diferença, aparentemente sutil, era, em verdade, absolutamente fundamental. Caso contrário, não apenas as categorias seriam elementos insuficientes para promover uma verdadeira distinção entre juízos objetivos e subjetivos − pois acompanhariam 336. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 492.

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indistintamente todas as experiências possíveis −, como implicariam uma certa circularidade do argumento durkheimiano. Afinal, como a sociedade poderia fornecer as condições da experiência se ela mesma não passava de uma dimensão, ainda que mais rica e complexa, da própria experiência? Como bem apontou Warren Schmaus em um trabalho bastante cuidadoso, Durkheim parecia estar ciente do problema da circularidade e já havia ele próprio mobilizado, em 1884, esse argumento contra a tentativa de uma derivação empírica das categorias promovida por Spencer: É irônico que ele [Durkheim] tenha feito essa crítica a Spencer, uma vez que, desde o início, seus próprios críticos levantaram, como objeção a sua teoria sociológica das categorias n’ As Formas Elementares, o problema da circularidade. (...) Parece muito improvável que Durkheim não estivesse ciente do problema da circularidade em 1912 dado que ele fizera a mesma objeção à teoria de Spencer em 1883-4.337

De fato, ciente dessa e de outras dificuldades, Durkheim procurou pôr em operação uma certa distensão no conceito de categoria. Elas constituiriam agora não as condições de toda a forma do pensado, mas as condições últimas de nosso “comércio intelectual”338, ou ainda, as coordenadas gerais do “mínimo conformismo lógico sem o qual a sociedade não poderia passar”.339 Esse encaminhamento epistêmico do argumento – que marcava, em parte, a peculiaridade do alegado transcendentalismo durkheimiano – chamava atenção à função cognitiva e reflexiva das representações sem o que o pensamento discursivo e a comunicação intersubjetiva não poderiam aparecer. Essa era, aliás, a marca da passagem ao social. Em verdade, é possível dizer que o argumento acompanhava, de maneira estruturalmente idêntica, a clássica questão kantiana: dado um certo conhecimento, como responder sobre sua possibilidade e seu direito? A resposta era 337.  338.  339. 

SCHMAUS, W. Rethinking Durkheim and his Tradition, p.115. [1912a] As Formas Elementares, p. 481. Ibid., p. xxiv. (grifo meu)

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a de que o pensamento coletivo era possibilitado por um conjunto de conceitos capazes de envolver todos os outros e remetê-los, intelectual e normativamente, a séries unitárias com vistas à totalidade do social, compreendido agora em termos de um conjunto de relações e representações (intelectuais e morais). A necessidade das categorias remetia, ao menos nesse sentido, ao fato de comporem as condições de possibilidade da vida e do pensamento coletivo. Parte de sua justificativa das categorias era dada então, como bem apontou Schmaus, num sentido funcional.340 Tratava-se não mais de uma necessidade lógica − aquela marcada pela negação da possibilidade de uma oposição −, mas uma necessidade que se submetia à realização de uma determinada função − sem que se compreendesse aqui qualquer vínculo finalista. É verdade, como dissemos, que as categorias mantinham uma certa correspondência com as representações individuais e remetiam, como que indiretamente, a representações obscuras e a relações implicitamente dadas à consciência; entretanto, era apenas em razão do aparecimento de um comércio intelectual que se poderia compreendê-las. A experiência puramente individual não apenas era insuficiente para que pudéssemos erigi-las e pensá-las, como sequer as requeria como condição: Para orientar-se pessoalmente na extensão, para saber em que momento deveria satisfazer as necessidades orgânicas, o indivíduo não tinha a menor necessidade de elaborar, de uma vez por todas, uma representação conceitual do tempo e do espaço. Muitos animais sabem reencontrar o caminho que os leva aos lugares que lhes são familiares; fazem isso no momento adequado, sem precisar de nenhuma categoria: as sensações são suficientes para dirigi-los automaticamente. Elas também seriam suficientes ao homem se seus movimentos tivessem que satisfazer apenas a necessidades individuais. Para reconhecer que uma coisa se assemelha a outras que já vimos, de modo nenhum é necessário que classifiquemos uma e outras 340.  SCHMAUS, W. «Durkheim on Causes and Functions of the Categories». In: On Durkheim’s Elementary Forms of Religious Life. Routledge, London. 1998a, p. 182-3.

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em gêneros e em espécies: a maneira como as imagens semelhantes se atraem e se fundem é suficiente para dar o sentimento da semelhança. A impressão do já visto, do já experimentado, não implica nenhuma classificação. Para discernir as coisas que devemos buscar daquelas que devemos evitar, não precisamos associar os efeitos de ambas às suas causas por um nexo lógico, quando apenas conveniências individuais estão em jogo. Encadeamentos puramente empíricos, fortes conexões entre representações concretas são, para a vontade, guias perfeitamente seguros. Não somente o animal não tem outros, mas também nossa prática privada, com muita frequência, não supõe nada além.341

O arremate do argumento – de que as categorias corresponderiam a necessidades sociais – vinha logo em seguida numa passagem conhecida: (...) [A sociedade] só é possível se os indivíduos e as coisas que a compõe são repartidos entre diferentes grupos, ou seja, classificados, e se esses próprios grupos são classificados uns em relação aos outros. A sociedade supõe, portanto, uma organização consciente de si que nada mais é que uma classificação. Essa organização da sociedade comunica-se naturalmente ao espaço que ela ocupa. Para evitar qualquer conflito, é preciso que a cada grupo particular seja destinada uma porção determinada de espaço; em outros termos, é preciso que o espaço total seja dividido, diferenciado, orientado, e essas divisões e orientações sejam conhecidas de todos os espíritos. Por outro lado, toda convocação para uma festa, uma caçada, uma expedição militar, implica que datas sejam combinadas, marcadas, e, portanto, que se estabeleça um tempo comum que todos concebem da mesma forma. Finalmente, o concurso de muitos tendo em vista um fim comum só é possível se houver entendimento a cerca da relação que existe entre esse fim e os meios capazes de alcançá-lo, isto é, se uma mesma relação causal for admitida por todos os participantes 341. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 492-3.

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do empreendimento. Não é surpreendente, pois, que o tempo social, o espaço social, as classes sociais e a causalidade coletiva estejam na base das categorias correspondentes, já que é só por meio de suas formas sociais que diferentes relações foram, pela primeira vez, apreendidas com uma certa clareza pela consciência humana.342

Tais considerações nos parecem significativas em vários sentidos. Dissemos anteriormente que Durkheim operava uma distensão no conceito de categorias. De fato, tratava-se de equacioná-las a uma certa região específica de nossa experiência e de nossas operações psíquicas. Elas não remontavam mais às formas possíveis de todo o pensado, mas às relações intelectuais imprescindíveis à sociedade e à discursividade. Mas insistir que as categorias expressavam “relações” intelectuais, isto é, insistir no seu aspecto relacional significava, com efeito, pôr em operação ainda um deslocamento suplementar. Como bem apontou Stedman Jones, as categorias aqui não remetiam mais a algum tipo de “entidade”, mas a uma espécie de “força dinâmica”.343 Elas constituíam-se então, como tentamos mostrar, como expressando determinados modos de relação entre outras representações e era exatamente por isso que elas encontravam-se “na raiz de nossos juízos”: tratava-se de conceitos que prescreviam modos de ligação entre termos e, por isso mesmo, desempenhavam um “papel preponderante” em nosso conhecimento.344 As categorias prescreviam modos sociais de ligação e de relação capazes de organizar, por exemplo: simultaneidade e sucessão, por meio da categoria de tempo; proximidade e distância, por meio da categoria de espaço; gênero e espécie, por meio da categoria de totalidade; antecedente e consequente, por meio da categoria de causalidade. Ao colocar a questão desse modo, vemos que a dimensão puramente epistêmica do argumento pode ser extrapolada. Primeiramente, porque, como dissemos, as categorias pareciam acrescentar aos juízos uma normatividade extralógica na medida em que reme342.  343.  344. 

Ibid., p. 493-4. JONES, S. S. “Forms of thought and forms of society”, p. 397. [1912a] As Formas Elementares, p. 489.

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tiam sempre à categoria da totalidade e, portanto, implicitamente, à noção de hierarquia do diverso no interior de toda ligação. Mas é preciso insistir que haveria ainda um segundo sentido no qual o argumento parecia poder ser complementado já no interior do próprio pensamento durkheimiano. Pois a forma dos juízos, tal como compreendida por Durkheim, era também aquela que ligava, no interior dos chamados “julgamentos de valor”, termos conceituais e valores. Vimos, aliás, como ele concebia apenas “uma única e mesma faculdade de julgar”.345 Nesse sentido, poderíamos insistir que as categorias não apenas constituiriam as condições de possibilidade dos chamados juízos cognitivos, mas também dos chamados juízos morais. Schmaus parece ter sido aquele que melhor percebeu esse ponto. Em sua análise sobre a categoria de causalidade, por exemplo, ele insistia que a relação aí prescrita – a conexão necessária entre antecedente e consequente – era mesmo uma condição de todo ajuizamento moral: A abordagem de Durkheim sugere que a ideia de uma conexão necessária é, ela própria, necessária para que os membros individuais de uma sociedade compreendam as obrigações que a própria sociedade impõe sobre eles. A sociedade não pode obrigar seus membros a fazer uma coisa a menos que eles tenham algum conceito de conexão necessária. (...). Enquanto Kant via as categorias como necessárias à existência de juízos universalmente válidos sobre os objetos de nossa experiência, Durkheim parece sugerir que a categorias de causalidade, e talvez até mesmo as outras categorias, são necessárias para que possa haver juízos morais universalmente válidos.346

De fato, como insiste Schmaus, a responsabilidade moral parece pressupor, num certo sentido, que o agente seja concebido como a causa de sua ação. Assim, sem uma conexão necessária – isto é, um nexo de causalidade – entre sua intencionalidade e um determinado 345.  346. 

[1911b] Jugements de valeur et jugements de réalité, p. 139. SCHMAUS, W. Rethinking Durkheim and his Tradition, p.132.

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estado de coisas daí resultante, não seria possível falar em responsabilização nem sequer em ação propriamente dita.347 Veremos mais a frente, aliás, como as categorias se ligam propriamente à questão da ação. Por ora, entretanto, podemos levantar duas questões que nos levarão ao nosso próximo argumento. A primeira questão é aquela relativa à universalidade e à variabilidade das categorias. Nesse sentido, o argumento de que categorias eram as condições da comunicação intersubjetiva ou mesmo do ajuizamento moral, se tomado isoladamente, parecia não garantir uma universalidade das categorias. Durkheim discernia, na passagem supramencionada, as “categorias” e suas respectivas “representações sociais”. Nesse caso, elas poderiam ainda constituir “metáforas”, eventualmente bem construídas, mas cuja universalidade seria restrita às fronteiras da cultura, isto é, elas poderiam ser tomadas como instrumentos comunicativos e avaliativos que serviriam para articular e coordenar as ações, mas que em nada responderiam sobre a natureza dos objetos. Precisamente por isso, o argumento parecia precisar ser complementado. Isso levava então a uma segunda questão: o problema da correspondência. Uma resposta possível, como vimos, era fornecida pelo argumento da unidade ontológica: a sociedade seria concebida também como uma parte do mundo natural. Desse modo o problema da correspondência e, consequentemente, o da universalidade, eram resolvidos de uma só vez: a despeito da variabilidade de suas roupagens, as representações coletivas mais fundamentais, as categorias, ainda teriam por substrato imediato sempre os mesmos modos de ser da sociedade (suas condições últimas seriam as mesmas em todos os lugares e épocas) e por substrato indireto as unidades das sínteses operadas na natureza, fossem dadas na consciência individual ou nos outros domínios mais elementares. No entanto, essa primeira resposta ao problema da correspondência, dotada de uma certa carga metafísica, deveria ainda parecer algo incômoda. No fim das contas, ela dependia da não problematização de um suposto fundamental: a unidade da natureza. Mais ainda, 347. 

Ibid., p.134-5

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o problema era o de que a própria correspondência, nesse tipo de argumentação, era apenas enunciada, mas nunca explicada ou mesmo ilustrada em seus processos constitutivos. Ainda que aceitássemos o suposto da harmonia entre pensamento e mundo por meio da tese da unidade ontológica, algo da passagem propriamente dita entre mundo e pensamento permaneceria ainda sem uma ilustração adequada. Talvez por conta dessas dificuldades Durkheim tenha tentado articular uma segunda resposta a esse problema, aparentemente menos custosa e mais apropriada à economia de seu texto. Dimensão Histórica da Tese A tese durkheimiana a respeito do caráter social das categorias já havia fornecido a essa altura uma resposta, ainda que de maneira parcial, ao estatuto ontológico e epistêmico das categorias. Em todo caso, faltava ainda ilustrar e esclarecer alguns aspectos importantes de sua tese e, principalmente, qualificar melhor o argumento da correspondência. Durkheim, de sua parte, parecia estar ciente de que a fragilidade desse argumento poderia não apenas pôr em cheque seu argumento ontológico, mas implicar uma modificação significativa em seu argumento epistemológico: sem a alegada correspondência entre categorias e mundo a unidade ontológica seria dissolvida e a justificação epistêmica deveria ser reformulada em termos meramente convencionalistas, o que implicava uma modificação no sentido de sua alegada universalidade. Frente a esses eventuais perigos, Durkheim procurou encaminhar seu argumento numa terceira dimensão, fundamentalmente histórica, na qual tentou articular e ao mesmo tempo pôr em perspectiva, de um modo bastante engenhoso, os pontos anteriores. O argumento epistemológico, como vimos, insistia que as categorias desempenhavam papéis preponderantes no conhecimento e constituíam como que as coordenadas gerais do pensamento discursivo. Elas possibilitavam pensar por conceitos e, portanto, permitiam uma certa transcendência em relação à sensibilidade. Esse era, com efeito, um

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movimento necessário no interior da perspectiva de Durkheim, pois a pura sensibilidade, dizia ele, era sempre descontínua, contingente, não idêntica e, portanto, “refratária a explicações”.348 Com efeito, era somente por meio do pensamento coletivo que o espírito, até então “subjugado às aparências sensíveis”,349 parecia encontrar as condições de dominá-las e explicá-las. Explicar “(...) era ligar as coisas entre si, era estabelecer entre elas relações que as fizessem aparecer em função umas das outras, vibrando simpaticamente segundo uma lei interior, fundada em sua natureza”.350 Ora, as categorias expressavam e prescreviam justamente relações e, portanto, conexões intelectuais entre os objetos do pensamento. Entretanto, é claro que a simples prescrição de relações, ainda que em concordância com determinados critérios de objetividade – pois em conformidade com a figura de um objeto em geral – não podiam garantir a verdade empírica de sua enunciação. As primeiras representações coletivas, dizia ele, eram mesmo “grosseiras em sua origem”.351 Isso equivalia dizer que, num certo sentido, elas pareciam estar em desacordo com a natureza dos objetos a que se punham a pensar e, portanto, subsumir em séries de relações. O importante, entretanto, é que o pensamento coletivo já apresentava, para o sociólogo francês, os germes de uma nova atitude e, nesse sentido, deveria ser apenas uma questão de tempo até que sua prerrogativa epistêmica se traduzisse em uma maior correspondência com os objetos do mundo. Era justamente aí que entrava, aliás, o argumento da unidade ontológica: a correspondência, em longo prazo, era uma possibilidade na medida em que representações e mundo passavam a participar de uma mesma região ontológica. A articulação com o argumento ontológico parecia ser enunciada então da seguinte maneira: se é verdade que os conceitos consistem construções coletivas e se aparecem, num certo sentido, como tipo um artifício, trata-se de um “(...) artifício que segue de perto a na348.  349.  350.  351. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 248. Ibid., p. 249. Ibid., p. 248. Ibid., p. 495.

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tureza e que se esforça por aproximar-se dela cada vez mais”;352 Ora, o que se encontrava em jogo nesse tipo de enunciado era uma imagem específica na qual a própria sociedade, por meio do uso cada vez mais impessoal de suas representações, trataria de pôr em questão e retificar seus conceitos de modo a lapidá-los à imagem dos chamados “tipos naturais”. É verdade que as representações coletivas já apresentavam, por si só, uma garantia de objetividade. Segundo Durkheim, “se elas estivessem em desacordo com a natureza das coisas não poderiam ter adquirido um domínio amplo e prolongado sobre os espíritos”353, isto é, elas “não pode[ria]m tornar-se coletivas sem corresponder a nada de real”354. Mas, mais do que isso, a questão era a de que o pensamento coletivo punha em jogo, como bem apontou Schmaus, o desenvolvimento histórico e social de processos de “verificação”.355 Isso significava dizer que a sociedade, na perspectiva durkheimiana, acabava por operar uma atividade crítica e intersubjetiva que garantia a aproximação crescente de suas representações à sua realidade subjacente. No entanto, ao articular os argumento epistemológico e ontológico por meio de uma dimensão temporal e histórica, a perspectiva sociológica parecia, de certa formar, correr o risco enfraquecer-se ou, até mesmo, dissolver-se. Com efeito, a admissão de que o regime conceitual e as relações intelectuais elaboradas e esclarecidas no interior do pensamento coletivo tendiam a modificar-se e, portanto, descolar-se de suas circunstâncias sociais iniciais em nome de uma maior adequação com os objetos situados fora da sociedade parecia insinuar que a verdadeira condição de um conhecimento adequado e objetivo era sua desvinculação em relação ao social. Como se a especificidade do social necessitasse então sempre ser desfeita e retificada em nome de uma naturalização dos conceitos. De fato, esse argumento parecia possuir algo de verdadeiro, ao menos no caso dos objetos situados fora da cultura. Pois, a sociedade, dizia Durkheim, 352.  Ibid., p. xxiv. 353.  Ibid., p. 486. 354.  [1955a] Pragmatisme et Sociologie, p.176. 355.  SCHMAUS, W. Durkheim’s Philosophy of Science and the Sociology of Knowledge, p. 67.

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era também, num certo sentido, uma subjetividade e, ainda que fosse mais geral que os indivíduos, seu conhecimento dos objetos não eliminava todo e qualquer traço de particularidade. Aliás, era justamente por isso que as primeiras representações coletivas, não eram tidas senão como representações mais ou menos grosseiras da realidade, cujo conteúdo de verdade – em termos de correspondência – era muitas vezes indireto ou mesmo metafórico. A astúcia de Durkheim, no entanto, consistia em insistir num ponto que nos parece fundamental: o de que esse processo de descolamento em relação aos condicionantes sociais mais imediatos não era senão função de um processo social mais amplo de desenvolvimento que, num certo sentido, já encontraria sua possibilidade em germe no próprio modo de funcionamento do pensamento coletivo. A impessoalidade do pensamento conceitual, esse aspecto fundamental sem o qual o conhecimento não poderia, num momento futuro de seu desenvolvimento, pretender-se válido para além de todo contexto social específico, constituía-se, na verdade, como condição (mas também como resultado) de uma nova forma de vida social. Em determinados momentos de expansão das fronteiras da vida social, dizia ele, o pensamento deveria tornar-se mais abstrato e as antigas representações, devendo agora responder a formas de vida menos restritas e localizadas, acabavam por tornar-se mais abstratas e impessoais.356 Ele nos lembrava em seu curso sobre o pragmatismo (1913-14) como esse processo histórico de larga escala rumo a universalização deitava suas raízes já na sociedade grega – onde o pensamento coletivo, pela primeira vez, tomava consciência de si – e tinha por figura fundamental a antiga dialética socrática: (...) a ciência nasceu na Grécia, e somente na Grécia, visando satisfazer certas necessidades. Para Platão, como para Aristóteles, a ciência tem por papel unificar os julgamentos individuais. A prova é que o método empregado para edificá-la é a ‘dialética’, isto 356.  É interessante notar que esse argumento já havia sido mobilizado em A divisão do trabalho social (1893).

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é, a arte de confrontar os julgamentos humanos divergentes para chegar a extrair aqueles como os quais se está de acordo. Ora, se a dialética é o primeiro dos métodos científicos, se esse método tem por finalidade fazer cessar as divergências, é porque o papel da ciência é conduzir os espíritos a verdades impessoais e fazer cessar as divergências e os particularismos.357

Em todo caso, o fato é que essa reconfiguração social das representações com vistas à impessoalidade não era simplesmente uma característica inscrita desde sempre na própria natureza do pensamento coletivo – esse outro nome que Durkheim dá à Razão. A abstração rumo ao universal era função de uma forma histórica própria e, num certo sentido, de um ideal histórico localizado: a chamada sociedade internacional: Se o pensamento lógico tende cada vez mais a se desembaraçar dos elementos subjetivos e pessoais que ainda carrega na sua origem não é porque fatores extrasociais intervieram; é, muito pelo contrário, por que uma vida social de um novo tipo passou a se desenvolver. Trata-se dessa vida internacional que tem por efeito, desde então, universalizar as crenças religiosas. À medida que ela se estende, o horizonte coletivo se alarga, a sociedade deixa de aparecer como o todo por excelência, para se tornar a parte de um todo bem mais vasto, com fronteira indeterminadas e suscetíveis de recuar indefinidamente. Em consequência, as coisas não podem mais se manter como nos marcos sociais em que primitivamente eram classificadas, requerem ser organizadas segundo princípios que lhes sejam próprios. Assim, a organização lógica diferencia-se da organização social e torna-se autônoma. Eis como, parece, o vínculo que ligava inicialmente o pensamento a individualidades coletivas vai pouco a pouco se afrouxando; como, portanto, este passa a ser impessoal e universaliza-se. O pensamento verdadeira e propriamente humano não é um dado primitivo, é um produto da história, um limite ide357. 

[1955a] Pragmatisme et Sociologie, p 179.

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al do qual nos aproximamos sempre mais, mas que provavelmente nunca chegaremos a atingir. 358

Vemos assim como Durkheim procurava pôr em operação uma articulação peculiar entre ontologia, epistemologia e história na qual as unidades do ser e do pensar realizavam-se em meio a um processo de superação de totalidades localizadas rumo a totalidades mais abstratas. Nesse caso, a vida social tinha, no próprio ato de sua superação histórica, a chave explicativa da história da razão. O movimento, por fim, especificava melhor os termos do suposto metafísico da adequação entre pensamento e mundo: à medida que a história realizava totalidades mais e mais abstratas, novas séries classificatórias, com seus respectivos princípios de gênero (unidade/homogeneidade) e espécie (diferenciação/heterogeneidade) passavam a operar. Novas figuras da unidade e da abstração do pensamento passavam a corresponder às respectivas diferenciações no interior da natureza de modo que a cada novo reordenamento histórico, sua remissão recíproca parecia poder tornar-se mais precisa. Era por isso, aliás, que a suposta variabilidade dos sistemas de representações coletivas não era incompatível com seu caráter de universalidade. Antes de tudo, era sua flexibilidade que possibilitava, no plano histórico, a realização desse ideal último da razão. 4. Sobre as Quatro Categorias Fundamentais Dissemos que a abordagem durkheimiana equacionava, no plano das categorias, três tipos de elementos que, sob a ótica kantiana, eram bastante distintos: as intuições formais, as relações lógicas e os princípios de classificação. Pois, num certo sentido, suas três unidades respectivas, a saber, a unidade das representações do espaço e do tempo por meio da síntese da imaginação, a unidade dos conceitos por meio da síntese do entendimento e a unidade das séries por meio da atividade reguladora da razão pareciam ser absorvidas agora 358. 

[1912a] As Formas Elementares, p.495-6.

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na unidade ao mesmo tempo sintética e normativa da totalidade do social. Com efeito, considerações desse tipo parecem nos esclarecer a respeito da estratégia de Durkheim na escolha das categorias. Em As Formas Elementares o autor acabava por concentrar sua análise, não por acaso, em seis categorias: tempo, espaço, gênero, totalidade, força e causalidade. Decerto, essa lista, já bastante econômica, poderia ainda ser reduzida; pois a categoria de gênero, como vimos, era tomada como função direta da categoria de totalidade, ao passo que a categoria de força era considerada como sendo constitutiva da categoria de causa.359 Nesse caso, Durkheim nos apresentaria então quatro categorias centrais: tempo, espaço, totalidade e causa.360 Insistiríamos no quão sintomático é esse modo de colocar as categorias. Pois, do ponto de vista estratégico, sua análise constituía o mínimo necessário para que Durkheim submetesse à análise sociológica aqueles três conjuntos de problemas anteriormente mencionados. Assim, o problema das intuições era esclarecido por meio da análise das representações coletivas do tempo e do espaço, o problema das relações lógicas era esclarecido por meio da análise da causalidade361 e o problema das classificações era esclarecido por meio da análise da representação da totalidade. O argumento geral deveria mostrar então o modo como os conceitos de tempo, espaço, causa e totalidade eram dotados, na verdade, de um caráter social. Vejamos de maneira mais detida como o sociólogo francês pensa cada uma dessas noções, qual a sua estratégia ao analisá-las e como elas podem servir para ilustrar alguns dos argumentos que desenvolvemos anteriormente. 359.  [1912a] As Formas Elementares, p. 394. 360.  Uma análise atenta da última sessão de As Formas, onde alguns dos argumentos centrais são elaborados de maneira mais clara, parece sugerir que estas são, aos olhos de Durkheim, as categorias mais fundamentais. 361.  Também nos parece sintomático que Durkheim tenha escolhido aqui a causalidade e não outras categorias da tábua kantiana − por exemplo, aquelas relacionadas às rubricas da quantidade, da qualidade ou da modalidade. A escolha parece estratégica se tivermos em vista que se trata de uma das categorias alocadas sob a rubrica da relação (juntamente com as categorias de inerência e comunidade). Ora, a noção de relação não constituía apenas o cerne de toda forma do juízo (uma vez que remetia à conexão propriamente dita entre os termos ligados), mas era aquela que compunha de maneira mais clara a sociologia durkheimiana. A sociedade não era senão uma totalidade de relações.

310

4.1. Tempo e Espaço Na introdução de As Formas Elementares, Durkheim procurou trabalhar a hipótese geral segundo a qual seria possível conceber as noções de tempo e espaço como apresentando um caráter social ou, ao menos, como sendo “ricas em elementos sociais”.362 A remissão das noções de tempo e espaço ao seu alegado caráter social era feita então por meio de dois argumentos gerais que, na linha do que já vimos, seguem de perto o argumento das classificações: em primeiro lugar, Durkheim tentava mostrar que a unidade quantitativa do tempo e do espaço era função de uma unidade qualitativa superior, expressa pela categoria da totalidade; em segundo lugar, ele tentava mostrar que essa noção de totalidade, mais do que uma simples noção lógica, apresentava uma dimensão extralógica (sociológica), e, justamente por isso, permitia o aparecimento de diferenciações qualitativas no interior do tempo e do espaço, as quais a sociedade organizaria por meio de “pontos de referência”363 convencionados, isto é, marcadores sociais. Em todo caso, antes de analisar em mais detalhes esses dois argumentos cabe insistir num aspecto que nos parece central. Embora Durkheim pense as representações coletivas de tempo e espaço com sendo dotadas de um caráter de universalidade e necessidade em relação à experiência, elas não constituem as condições de toda a experiência possível. Como dissemos anteriormente, Durkheim procurou não confundir representações coletivas e individuais. Nesse sentido, o ponto de partida do argumento era a separação entre as categorias do tempo e do espaço, por um lado, e os respectivos sentidos internos da sucessão e da extensão, por outro. Essa heterogeneidade fundamental, como vimos, era precisamente o que sugeria a hipótese do caráter social dessas representações. Posto isso, cabe encaminhar os argumentos que nos parecem centrais a respeito do tempo e do espaço. 362.  363. 

[1912a] As Formas Elementares, p. xvi. Ibid., p. xvii.

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Enquanto categorias, o tempo e o espaço apareciam com sendo quadros lógicos capazes de organizar e coordenar os sentidos internos da duração e da extensão com vistas à comunicação e à ação coletivas. Em uma definição dada à categoria de tempo − que poderia ser facilmente transposta para a categoria de espaço −, Durkheim dizia o seguinte: [O tempo] É um quadro abstrato e impessoal que envolve não apenas nossa existência individual, mas a da humanidade. É como um painel ilimitado, em que toda a duração se mostra sob o olhar do espírito e em que todos os acontecimentos possíveis podem ser situados em relação a pontos de referência fixos e determinados. Não é o meu tempo que está assim organizado; é o tempo tal como é objetivamente pensado por todos os homens de uma mesma civilização.364

O fundamental dessa passagem é que ele concebe o tempo remetendo-o às noções de impessoalidade e universalidade. É justamente por isso, aliás, que a categoria de tempo se diferenciava do sentido interno da simples duração. A experiência interna não poderia sugerir, para ele, a ideia do tempo como um “painel ilimitado” capaz de agregar “todos os acontecimentos possíveis”, isto é, do tempo como totalidade. Mas o que significava insistir que tempo e espaço poderiam ser concebidos como totalidades? Nesse caso, isso significava dizer que suas representações se constituiriam em meio a sínteses que articulariam a unidade (quantitativa) à pluralidade (qualitativa) do tempo e do espaço. Em outras palavras, Durkheim parecia pensar que a comparação entre as diferentes parcelas do tempo e do espaço segundo uma regra geral – e, portanto, a sua própria objetividade – só seria possibilidade na medida em que suas unidades quantitativas fossem pensadas no registro qualitativo que atribuía a essas identidades determinados “valores afetivos”365 capazes de diferenciá-las 364.  365. 

Ibid., p. xvii Ibid., p. xviii.

312

e, portanto, alocá-las em regiões diferentes no interior da totalidade. Pensar o tempo era submetê-lo a divisões: “(...) se puséssemos de lado os procedimentos pelos quais o dividimos, o medimos, o exprimimos através de marcas objetivas (...) [ele] seria mais ou menos impensável”.366 Mas a divisão pressupunha mais do que a separação de unidades idênticas. Ela pressupunha processos classificatórios de coordenação e subordinação que introduziam uma diferenciação qualitativa entre as partes ligadas. Dividir não era apenas separar, mas alocar as partes em regiões significativamente distintas; era pensar algo como situado “antes de”, “depois de”, no mesmo ciclo (semana, mês, ano, etc.) de um outro algo. Mas cada uma dessas regiões só poderia ser compreendida à medida se que introduzia uma desigualdade semântica (qualitativa) no interior das unidades lógicas (quantitativas) que subsumia. No caso do espaço, aliás, o argumento parecia ser ainda mais claro. Seguindo seu colega Hamelin, Durkheim lembrava: O espaço não é esse meio vago e indeterminado que Kant havia imaginado: puramente e absolutamente homogêneo, ele não serviria para nada e sequer daria ensejo ao pensamento. A representação espacial consiste essencialmente numa primeira coordenação introduzida entre os dados da experiência sensível. Mas essa coordenação seria impossível se as partes do espaço se equivalessem qualitativamente, se fossem realmente intercambiáveis umas pelas outras. Para poder dispor espacialmente as coisas, é preciso poder situá-las diferentemente: colocar umas à direita, outras à esquerda, estas em cima, aquelas embaixo, ao norte ou ao sul, a leste ou a oeste, etc., do mesmo modo que, para dispor temporalmente os estados da consciência, cumpre poder localizá-los em datas determinadas. Vale dizer que o espaço não poderia ser ele próprio se, assim como o tempo, não fosse dividido e diferenciado. Mas essas divisões, que lhe são essenciais, de onde provêm? Para o espaço mesmo, não há direita nem esquerda, nem alto nem baixo, nem norte nem sul. Todas essas 366. 

Ibid., p. xvi-xvii

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distinções provêm, evidentemente, de terem sido atribuídos valores afetivos diferentes às regiões.367

Ora, os elementos afetivos são aqui os correspondentes diretos da normatividade que havíamos identificado anteriormente e que estaria a guiar os processos de classificação. Em ambos os casos, tratava-se de mostrar que o pensamento identitário e judicativo era complementado por um elemento extralógico capaz de hierarquizar e qualificar os termos ligados nas relações prescritas por cada uma das categorias (relações de sucessão, distanciamento, generalização e, como veremos, de causalidade). As categorias encerravam, mais do que a prescrição das puras relações dos juízos, também uma normatividade e uma valoração que eram parte constituinte da objetividade discursiva. A segunda parte do argumento consistia em mostrar como essa normatividade podia ser compreendida em termos sociológicos. De fato, a própria ideia de que se poderia encontrar um “dever ser”, uma “hierarquia” ou mesmo um “afeto” partilhados na base das divisões representacionais do tempo e do espaço já era suficiente para sugerir seu caráter social. Em todo caso, Durkheim parece complementar seu primeiro argumento com um outro tipo de enunciação: a de que o caráter social não se expressava apenas pelo fato de que as categorias seriam inconcebíveis sem uma dimensão propriamente social, mas porque elas seriam, primeiramente, feitas de elementos sociais. Os marcadores objetivos, isto é, aqueles capazes de remeter aos diferenciais qualitativos atribuídos às diferentes regiões do espaço e do tempo eram, na verdade, “tomados da vida social”.368 Isso significava dizer que o homem só podia pensar as distribuições dos objetos no espaço e no tempo porque ele mesmo, em meio à sua existência social, passou a dividir e classificar coletivamente as diferentes parcelas espaciais e temporais. No caso do espaço, Durkheim nos lembrava como, entre os Zuñi, por exemplo, o espaço parecia ser pensado como dividido em sete regiões que, não por acaso, teciam relações diretas com os setes quar367.  368. 

Ibid.. xvii-xviii (grifo meu). Ibid., p. xvii.

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teirões ocupados por cada um de seus sete clãs. Mais ainda, “cada um desses sete quarteirões” parece ter “sua cor característica que o simboliza”, donde se seguia então que “cada região do espaço tem a sua [cor], que é exatamente a do quarteirão correspondente”.369 Isto é, era por terem divido socialmente o território em diferentes regiões e atribuído a cada uma delas, nesse mesmo processo, significados sociais distintos, que os homens puderam pensar uma categoria de espaço capaz de direcionar-se aos outros objetos do mundo e remetê-los, nesse direcionamento, a uma totalidade maior. Era pensando nisso que ele podia insistir na afirmação de que “(...) a organização social foi o modelo da organização espacial, que é uma espécie de decalque da primeira”.370 No caso do tempo: “(...) a observação estabelece que esses pontos de referência indispensáveis, em relação aos quais todas as coisas se classificam temporalmente, são tomados da vida social. As divisões em dias, semanas, meses, anos, etc., correspondem à periodicidade dos ritos, das festas, das cerimônias públicas. Um calendário exprime o ritmo da atividade coletiva, ao mesmo tempo que tem por função assegurar sua regularidade”.371

4.2. Causalidade O argumento a respeito da noção de causalidade é desenvolvido de maneira mais direta apenas no último dos três livros que compõe As Formas Elementares, isto é, aquele dedicado à análise dos rituais totêmicos.372 Embora acompanhe em linhas gerais os outros argumentos relativos às demais categorias, ele parece apresentar duas peculiaridades que nos parecem importantes. A primeira, como 369.  Ibid., p. xviii-xix. 370.  Ibid., p. xix. 371.  Ibid., p. xvii. 372.  É verdade que o argumento a respeito da noção de força, que compõe uma parte do argumento relativo à causalidade, é encaminhada já nos capítulos 6 e 7 do livro II, relativo às crenças totêmicas. No entanto, o tratamento mais detalhado da causalidade enquanto uma categoria do conhecimento só é encaminhado na última seção do capitulo 3 do livro III.

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veremos, é a de que o argumento a respeito da causalidade não serve apenas a uma teoria social do conhecimento, mas constitui também um movimento estratégico no interior de sua sociologia da religião: trata-se de um ataque direto às teses do naturismo e do animismo. A importância desse apontamento, para nossos propósitos, encontrase no fato de que a preocupação com a questão da religião parece ter alterado a ordem da exposição do argumento da causalidade, o que pode levar a uma certa confusão quanto a sua ordem lógica. A segunda peculiaridade, que nos interessa mais diretamente, é a de que o argumento da causalidade, ao estabelecer uma íntima relação com a questão dos rituais, é provavelmente aquele que melhor explicita a relação entre categorias e práticas sociais. Em linhas gerais, a investigação a respeito da categoria de causalidade parte da aposta de que existiria uma relação fundamental entre essa noção intelectual e determinadas práticas religiosas identificadas no interior do totemismo, os chamados “rituais de imitação”. Posto isso, nos parece justificado dedicar algumas breves considerações sobre a questão dos rituais antes de adentrarmos os argumentos propriamente ditos sobre a causalidade. Os rituais constituíam-se, para Durkheim, por meio de representações imagéticas. Eles remetiam, nesse caso, a determinados “processos de figuração”373 capazes de equacionar a um só tempo imagens temporais (cantos, danças, performances, etc.) e imagens espaciais (emblemas, instrumentos, materiais, etc.). A peculiaridade dos rituais de imitação, entretanto, encontrava-se no fato de que eles punham em jogo, de maneira bastante clara, o caráter eminentemente produtivo da comunicação e da representação simbólicas. Eles partiam da crença fundamental de que a produção e a reprodução imagéticas de determinados objetos (a espécie totêmica, por exemplo), prescritas no interior de certas práticas religiosas, seriam suficientes para promover a produção e reprodução desses mesmos objetos também fora dos rituais, isto é, no mundo. Tratava-se de um movimento que punha em operação dois princípios fundamentais: 1) a crença de que “o 373. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 388.

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que atinge um objeto atinge também tudo o que mantém com esse objeto uma relação de proximidade ou de solidariedade (...)” e 2) a crença que “o semelhante produz o semelhante”.374 No primeiro caso, tínhamos um princípio de comunicação simpática, no segundo, um princípio de produção eficaz. Basicamente, é por meio da análise deste último princípio que Durkheim julga poder esclarecer a noção de causalidade. O argumento geral parte do seguinte: o princípio totêmico segundo o qual “o semelhante produz o semelhante” parece constituir, na verdade, uma primeira enunciação do princípio de causalidade e, portanto, um objeto privilegiado da reflexão sociológica do conhecimento. O que estava em jogo, nesse caso, era uma dupla enunciação. De um lado, haveria um elemento produtivo: o semelhante produz efetivamente o semelhante. Nesse caso, a causalidade implicaria a ideia de um “poder produtor” ou uma espécie de “força ativa”.375 Por outro lado, a noção de causa não apenas prescreveria uma produção, mas uma relação capaz de conectar e direcionar de maneira específica seus termos: o semelhante produziria o semelhante, por assim dizer, como que necessariamente. Isto é, além da noção de força, a causalidade mobilizaria também uma relação de “vínculo necessário”376 entre causa e efeito. A partir dessa constatação, o argumento consistirá em mostrar que tanto a noção de força como a noção de conexão necessária só podem ser devidamente compreendidas a partir de seu caráter social. O primeiro dos argumentos − e talvez o mais problemático − era aquele relativo ao caráter social da noção de força, afinal: “a causa é a força antes que tenha manifestado o poder que está nela; o efeito é o mesmo poder, mas atualizado”.377 Esse argumento, como dissemos, parecia possuir uma complexidade adicional: ele consistia não apenas uma parte do argumento a respeito da causalidade, mas um ataque às teses do naturismo e do animismo e, portanto, parecia possuir papel estratégico no interior da teoria durkheimiana da religião. Nesse 374.  375.  376.  377. 

Ibid., p. 385. Ibid., p. 394. Ibid., p. 399. Ibid., p. 394. (grifo meu)

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contexto, o argumento geral consistia em mostrar que a apreensão da noção de força não poderia ter por modelo primeiro nem a experiência externa dos objetos (naturismo), nem experiência interna do sujeito (animismo).378 O que a análise do conceito mostrava era que somente a sociedade poderia constituir seu modelo fundamental: (...) a ideia de força, tal como a implica o conceito de relação causal, deve apresentar um duplo caráter. Em primeiro lugar, só pode nos vir de nossa experiência interior; as únicas forças que podemos diretamente atingir são necessariamente forças morais. Mas, ao mesmo tempo, é preciso que elas sejam impessoais, já que a noção de poder impessoal foi a primeira a se constituir. Ora, as únicas que satisfazem essa dupla condição são as que provêm da vida comum: 378.  O primeiro alvo das críticas durkheimianas é aqui o empirismo clássico. Seguindo de perto o clássico argumento de Hume, Durkheim insiste que a noção de força não poderia ser explicada por algum tipo de abstração de nossa experiência externa. “Os sentidos nos fazem ver fenômenos que coexistem ou que se sucedem, mas nada do que eles percebem pode nos dar a ideia dessa ação (...) que denominamos de um poder ou uma força”. Os sentidos, continua ele, “só alcançam estados realizados, adquiridos, exteriores uns aos outros; o processo interno que liga esses estados lhe escapa. Nada do que eles nos informam seria capaz de sugerir-nos a ideia do que é uma influência ou uma eficácia”. (ibid., p.395) Assim, dada a impossibilidade e acessarmos qualquer força por meio de nossos sentidos externos, a única via de concebê-la deveria ser, segundo ele, por meio de algum tipo de “experiência interna”. (ibid., p.395) A próxima hipótese seria aquela relativa à experiência interna da vontade, popularizada por Maine de Biran e amplamente aceita pelos teóricos animistas. Essa tese partia da aposta de que nossos comandos corporais forneceriam um modelo privilegiado de inteligibilidade no qual veríamos a deliberação interna de nossa vontade (causa) ligar-se necessariamente a nossos respectivos movimentos corporais (efeito). Nesse caso, é claro, as forças individuais apareceriam como o primeiro modelo das forças da natureza (tese animista). A refutação dessa tese é feita por meio de dois argumentos. O primeiro é um argumento alegadamente empírico e remonta à sociologia durkheimiana das religiões: o que a análise do totemismo nos mostra é que as primeiras forças que o homem concebeu não foram forças individuais e humanas, mas “potências vagas, anônimas e difusas que se assemelham, por sua impessoalidade, às forças cósmicas e que contrastam, portanto, de maneira mais definida, com esse poder eminentemente pessoal que é a vontade humana” (ibid., p.396). O segundo argumento é de natureza teórica e insiste que o conceito de vontade seria semanticamente insuficiente para explicar o caráter comunicativo da noção de força. As forças da natureza são marcadas precisamente pela capacidade de passarem de um ponto a outro da matéria, de se combinarem e de se aplicarem a uma multiplicidade de fenômenos. Sem isso, aliás, não se poderia passar da causa ao efeito. Ora, as forças subjetivas, ao contrário, eram não apenas pessoais por definição, mas “incomunicáveis”. Elas não poderiam, de modo algum, constituir o modelo da noção de força em geral.

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as forças coletivas. Com efeito, elas são, por um lado, inteiramente psíquicas, são feitas exclusivamente de ideias e sentimentos objetivados. Mas, por outro lado, são impessoais por definição, por serem o produto de uma cooperação. Obra de todos, não pertencem a ninguém em particular.379

Durkheim parece acreditar aqui que as forças sociais, ao contrário das forças físicas, são acessíveis à experiência interna de maneira direta e imediata: “elas fazem parte de nossa vida interior e, portanto, não conhecemos somente os produtos de sua ação: vemo-las agir.”.380 A questão da apreensão da noção de força constitui em verdade uma dificuldade na interpretação de Durkheim e foi alvo de controvérsia.381 Em todo caso, insistiríamos que essa problemática pode ser contornada sem um grande prejuízo do argumento geral. O ponto aqui é o de que a própria noção de força, independentemente de ser ou não apreendida de maneira direta por algum tipo de experiência privilegiada, não pode encerrarse no simples ato da percepção sensível. Durkheim reconhece que a simples participação no ritual e, portanto, o contato com a experiência social nele encerrada, não seria capaz de gerar senão uma sensação de expectativa em relação à eficácia causal (da reprodução da espécie totêmica, por exemplo). “Efetuados os gestos miméticos, todos esperariam, como maior ou menor confiança, ver manifestarse em breve o acontecimento desejado [efeito], mas nem por isso uma regra imperativa do pensamento se constituiria”.382 Ora, a 379.  [1912a] As Formas Elementares, p.396-7. 380.  Ibid., p. 397. 381.  Há aqui um debate bastante interessante que foi travado, a partir de meados dos anos 90, entre Anne Rawls e Warren Schmaus. A controvérsia, em grande parte, gira em torno de 1) saber se Durkheim conseguiu responder ou não a Hume quanto a questão da impossibilidade de atingirmos, por meio da experiência, a noção de força e 2) saber se seria razoável ou não supor que as chamadas forças sociais estariam numa posição epistêmica privilegiada quando comparadas às forças físicas, isto é, saber se elas comportam ou não uma espécie de acesso direto. Os detalhes desse debate e as diferentes respostas dadas a essas questões podem ser encontradas em: RAWLS, A (1996; 1998) e SCHMAUS, W. (1998b; 2004: 123-9) 382.  [1912a] As Formas Elementares, p. 400.

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questão fundamental aqui é a de que se à expectativa sensível não viesse se sobrepor um imperativo moral da coletividade, a própria noção de força, em seu sentido causal, não se instauraria. A dimensão sensível da força causal só poderia operar uma vez complementada pela dimensão normativa e, portanto, sociológica, da noção causal. Ora, isso nos leva diretamente ao segundo argumento durkheimiano, a saber, o da conexão necessária. Dissemos no início desse ponto que o encaminhamento dado por Durkheim ao argumento da causalidade encerrava algumas dificuldades em relação às outras categorias e, num certo sentido, poderia ser considerado até mesmo como enganoso. A confusão encontra-se no seguinte: ao partir da noção de “força” para chegar à noção de “conexão necessária” o encaminhamento pode sugerir algo equivocado, a saber, que dimensão sensível da noção de causa antecederia sua dimensão intelectual.383 De fato, a primeira remetia à capacidade de afecção por um tipo experiência interna (força coletiva), enquanto a segunda remetia à dimensão lógica do ajuizamento cognitivo (a conexão necessária entre termos). A esse respeito é preciso insistir em relação a algo que nos parece fundamental, a saber, que a causalidade constitui, mais do que uma expectativa, um quadro lógico impessoal capaz de regular e trazer à inteligibilidade discursiva toda uma diversidade de experiências sensíveis e, portanto, capaz de regulálas segundo uma ordem geral que as ultrapassa em cada aparição. Nesse registro, a dimensão intelectual da causalidade só poderia anteceder, do ponto de vista epistemológico, a dimensão sensível. Em todo caso, veremos com o cerne do argumento consiste em mostrar que ambos, modos de pensar e sentir, deveriam ser compreendidos na condição de serem complementados por uma dimensão normativa. Do ponto de vista de sua especificidade intelectual, a noção de causa remete a um vínculo lógico que, no interior do juízo, direciona a priori os termos ligados e estabelece entre eles um nexo de sucessão necessária. Isso fica claro quando Durkheim diz: 383.  Uma leitura contrária à nossa, porém muito interessante, é a promovida por Anne Rawls. Para mais detalhes, ver: RAWLS, Anne. “Durkheim’s Epistemology: the Neglected Argument” in: The American Journal of Sociology, vol. 102, 1996, p. 430-82.

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(...) a noção de força não é todo o princípio de causalidade. Este consiste num juízo que enuncia que toda força se desenvolve de maneira definida, que o estado em que ela se encontra em cada momento do seu devir predetermina o estado consecutivo. Chama-se o primeiro causa, o segundo efeito, e o juízo causal afirma a existência de um vínculo necessário entre esses dois momentos de toda força. Essa relação, o espírito coloca, antes de qualquer prova, sob o domínio de uma espécie de coerção da qual ele não pode se libertar; ele a postula, como se diz, a priori.384

Ora, dizer que a relação de causalidade remete à ação do juízo é o modo durkheimiano de insistir que a síntese categorial era aquela que remeteria o diverso conceitual à unidade de sua relação lógica. Mas, como vimos anteriormente, o argumento não poderia se contentar apenas com esse tipo de afirmação. Sua estratégia central passava necessariamente pela remissão das categorias do pensamento à noção de totalidade e à noção de normatividade, sem o que a própria unidade sintética, a seu ver, não se realizaria objetivamente. O que a noção de causalidade implicava era, para além da unidade de um vínculo lógico, a ideia de uma “ordem universal de sucessão” capaz de impor-se “à totalidade dos espíritos e dos acontecimentos”.385 Essa remissão, é claro, era justamente aquilo que fornecia, no interior das sínteses conceituais, o qualificador semântico e normativo capaz de diferenciar “antecedente” e “consequente” de modo a hierarquizá-los e a prescrever entre eles um “dever ser”. É desse modo que devemos entender, por exemplo, a afirmação segundo a qual o nexo de causalidade constituiria uma “norma exterior e superior no curso de nossas representações”, norma “investida de uma autoridade que submete e ultrapassa o espírito”.386 É, aliás, a partir de considerações como essas que podemos reconectar o caráter a priori da causalidade com a questão dos rituais imitativos e com o argumento relativo à noção de força. A respeito desta última, Durkheim dizia que: 384.  385.  386. 

[1912a] As Formas Elementares, p. 398. Ibid., p. 491 (grifo meu). Ibid., p. 399 (grifo meu).

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(...) a ideia de força traz, de maneira evidente, a marca de sua origem. Ela implica a ideia de poder que, por sua vez, sempre se acompanha das de autoridade, domínio, dominação, e, correlativamente, de dependência e subordinação; ora as relações que todas essas ideias exprimem são eminentemente sociais. Foi a sociedade que classificou os seres em superiores e inferiores, em mestres que comandam e em súditos de obedecem. Foi ela que conferiu aos primeiros essa propriedade singular que torna o comando eficaz e que constitui o poder. Tudo tende, portanto, a provar que os primeiros poderes de que o espírito humano teve noção são aqueles que as sociedades instituíram ao se organizar: é à imagem deles que as forças do mundo físico foram concebidas. Assim, o homem só pôde chegar a se conceber como uma força que domina o corpo onde ele reside, com a condição de introduzir, na ideia que fazia de si próprio, conceitos tomados da vida social.387

O ritual, de sua parte, constituía precisamente um momento privilegiado no interior do qual os aspectos ao mesmo tempo lógicos e normativos da vida social eram enunciados e performados de maneira fundamental. Esse ato de expressão e produção simbólicas, feito por meio de imagens e práticas, fornecia às regras fundamentais do espírito coletivo – seus modos de pensar e sentir – não apenas um primeiro modo adequado de apreensão; ele também as esclarecia em seu caráter de necessidade. O que o ritual prescreve, diz Durkheim, não é apenas um modo possível de expressão, mas um modo necessário e obrigatório de reatualização das crenças e valores coletivos por meio da participação na ação coletiva. Nesse sentido, ele põe em jogo e ilumina, por trás dos modos coletivos de pensar e sentir, seu respectivo caráter normativo. Não era de outro lugar que viria, aliás, o interesse fundamental dos rituais para a sociologia do conhecimento.388

387.  388. 

Ibid., p. 397-8. Ibid., p. 399-402

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4.3. Totalidade Dissemos que a questão das classificações era compreendida a partir da análise da categoria de gênero. Ela remetia à espontaneidade sintética que possibilitava, no campo dos conceitos, encaminhálos segundo uma ordem geral e estabelecer entre eles nexos de coordenação e subordinação. O gênero era, para Durkheim, o símbolo lógico por excelência do pensamento coletivo e racional. Em verdade, é por esse motivo que o encaminhamento da investigação parecia inverter a ordem aparentemente natural das questões até então postas por Kant. Em todo caso, o fato é que já expusemos a abordagem sociológica da noção de gênero. Ela remetia a um modelo fundamental que prescrevia a identidade do múltiplo como função de uma unidade superior. Vimos que essa unidade era aqui a unidade da sociedade tomada como totalidade e que essa instância legisladora da síntese era indissociável de uma dimensão normativa, sem o que não se poderia compreender adequadamente as hierarquizações classificatórias e predicativas.389 Nesse sentido, fica claro que a categoria de totalidade, de certo modo, já foi analisada quando expusemos a teoria durkheimiana das classificações. Por esse motivo, não trataremos de promover nesse ponto uma reconstrução detalhada do conceito. Em todo caso, frente às análises das outras categorias e à reconstrução do argumento geral d’As Formas Elementares, cabe fazer ainda algumas breves considerações sobre essa que é, muito provavelmente, a categoria fundamen389.  Vale aqui remeter à discussão de Magnelli sobre a existência, na obra durkheimiana, de uma combinação entre os lugares de qualidade e os de quantidade. Tanto lá quanto aqui vimos surgir a imagem do social como a categoria superior, seja nos níveis do ser, seja nos níveis do pensar. No contexto de análise das categorias, que constitui nosso interesse primordial, a dualidade apontada por Magnelli (seção 2.1) reaparece por meio de uma articulação que equaciona a unidade (que Magnelli chama de “quantitativa-clássica”) dos múltiplos ligados sob a forma do conceito ao seu respectivo diferencial semântico (que ele chama de “qualitativo-romântico”). Sem essa dupla articulação, como tentei insistir, não se poderia dispor diferencialmente os predicados de modo a estabelecer entre eles qualquer hierarquia (por exemplo, entre necessários e contingentes) e, consequentemente, nenhuma unidade conceitual ou serial se faria possível. A unidade totalizante do social seria, nesse caso, aquela capaz de conjugar, a um só tempo, um regime de identidades e diferenças, quantidades e qualidades.

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tal do livro. Vimos a esse respeito como a categoria da totalidade possuía papel absolutamente estratégico no interior do pensamento durkheimiano: as noções de tempo, espaço, causalidade, assim como todos os demais conceitos, remetiam, direta ou indiretamente, à totalidade como um ponto de referência fundamental. Do ponto de vista de suas relações lógicas, é possível dizer que a noção de totalidade configurava-se, tal como em Kant, como uma espécie de síntese entre as noções de unidade e pluralidade. É justamente por isso, aliás, que ela aparecia como estando imediatamente vinculada à questão das classificações: unidade e pluralidade apareciam sob a forma dos operadores lógicos de “gênero” e “espécie”, cada um deles remetendo a um movimento específico no interior das séries de classificação conceitual. A totalidade era justamente o resultado do cruzamento entre o princípio da abstração do múltiplo por meio da unidade de suas formas (gênero) e a possibilidade sempre presente da especificação continuada dessas mesmas formas com vistas à multiplicidade (espécie). Não é por outra razão, aliás, que Durkheim nos lembrava dessa marca central do pensamento lógico: “pensar logicamente, com efeito, é sempre, em alguma medida, (...) pensar sub specie eternitatis”390. Tal como no caso das outras categorias, parte do argumento consistia então em insistir no caráter lógico dessa noção fundamental. Nesse contexto, isso equivalia a afirmar, mais uma vez, sua irredutibilidade frente ao sensível. Esse encaminhamento ficava claro, por exemplo, na seguinte passagem: (...) não há experiência individual, por mais extensa e prolongada que seja, capaz de nos fazer sequer suspeitar a existência de um gênero total, que compreenderia a universalidade dos seres e do qual os outros gêneros não seriam mais do que espécies coordenadas entre si ou subordinadas umas às outras. Essa noção do todo, que está na base das classificações que apresentamos, não pode provir do indivíduo, que não é senão uma parte em relação ao todo e que não passa de 390. 

Ibid., p. 484

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uma fração ínfima da realidade. No entanto, talvez não haja categoria mais essencial do que esta, pois, como o papel das categorias é envolver todos os outros conceitos, a categoria por excelência parece dever ser, exatamente, o conceito de totalidade. Os teóricos do conhecimento geralmente o postulam como evidente, ao passo que ele excede infinitamente o conteúdo de cada consciência individual tomada à parte.391

Mais do que isso, esse tipo de argumento era também um modo de recolocar o papel transcendental da sociedade frente ao conjunto das operações intelectuais do indivíduo. O caráter “evidente” do conceito era, na verdade, reflexo de seu caráter social, até então não devidamente compreendido pelos “teóricos do conhecimento”, que o “postulavam” sem explicá-lo de fato. A explicação durkheimiana, por outro lado, longe de afastar o caráter “evidente” da noção, remete-o à sua condição específica no interior do pensamento coletivo: o conceito de totalidade não é apenas um conceito que pode ser compreendido a partir de uma dimensão sociológica; ele é, de fato, o próprio modo de enunciação intelectual dessa realidade que chamamos sociedade. Essa ideia aparece num trecho que nos parece central: Como o mundo que o sistema total dos conceitos exprime é aquele que a sociedade representa, somente a sociedade pode nos fornecer as noções mais gerais segundo as quais ele deve ser representado. Somente um sujeito que envolve todos os outros sujeitos particulares é capaz de abarcar um tal objeto. Como o universo só existe na medida em que é pensado e como só é pensado totalmente pela sociedade, é nela que ele acontece; ela própria é o gênero total fora do qual nada existe. O conceito de totalidade não é senão a forma abstrata do conceito de sociedade: ela é o todo que compreende todas as coisas, a classe suprema que abrange todas as outras classes.392

391.  392. 

Ibid., p. 490. Ibid., p. 491.

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No entanto, também insistimos que a noção de totalidade era dotada de um caráter normativo que ultrapassava a dimensão puramente lógica das relações aí prescritas. Remeter a totalidade à sociedade era remetê-la não apenas a um determinado conjunto de imperativos intelectuais, mas, num certo sentido, a imperativos morais. Não é por outra razão, aliás, que a categoria da totalidade era compreendida como dotada de um caráter muito particular, como uma categoria capaz de ir além de todas as outras: ela encarnava a normatividade capaz de guiar as sínteses categoriais de maneira mais direta. A sociedade era também uma potência moral. Assim, tal como no caso da unidade qualitativa da apercepção kantiana, que se diferenciava em relação à simples categoria quantitativa da unidade393, a totalidade durkheimiana não se restringia a uma síntese lógica, nem situava-se no mesmo nível das outras categorias. A esse respeito, também parece bastante sintomática uma das notas encontradas na última seção do livro, em que Durkheim observava que “no fundo, os conceitos de totalidade, sociedade e divindade não são, provavelmente, mais do que aspectos diferentes de uma mesma e única noção”.394 Observações como estas estão de acordo com a aproximação entre as necessidades de tipo intelectual, que estariam a guiar, entre outras coisas, a discursividade dos conceitos, e as necessidades de tipo moral, que estariam a guiar as práticas da vida religiosa. No contexto de sua análise ritual, ele chegava mesmo a dizer, num tom um tanto radical, que “os imperativos do pensamento são verossimilmente tão só uma outra face dos imperativos da vontade”395, e que mesmo tendo deixado de se confundir na modernidade, ainda permaneciam como “duas espécies diferentes de uma mesmo gênero”396. Em todo caso, o importante era insistir que a noção de totalidade, remetendo imediatamente à sociedade, era aquela que contemplava de maneira mais direta esse cruzamento peculiar. No caso especí393.  394.  395.  396. 

KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 131. [1912a] As Formas Elementares, p. 609, nota 18. Ibid., p. 402 Ibid., p. 502, nota 20.

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fico das outras categorias, submeter-se à categoria de totalidade era participar dessa articulação fundamental que possibilitava classificar e, portanto, conhecer objetos para além da sensibilidade. Com esse encaminhamento Durkheim parecia oferecer as condições de visualização específicas a partir das quais sua sociologia poderia encaminhar aqueles três tipos de questões anteriormente mencionadas, a saber: a questão das formas das intuições sensíveis, a questão das relações lógicas e a questão das classificações conceituais. Aliás, não foi outra coisa o que tentamos fazer nessa reconstrução do velho mestre francês.

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CAPÍTULO IV POR UMA SOCIOLOGIA MENOR: UMA LEITURA (IM)POSSÍVEL Marcelo de Oliveira Embora o texto aqui apresentado dedique boa parte das linhas que o compõem ao comentário da obra de Durkheim, ele não tem a pretensão de ser enquadrado nessa modalidade de escrita erudita que, na qualidade de bibliografia secundária, esmera-se e se esgota na exegese de uma determinada obra ou de um determinado autor. Não pretendo o ofício de comentador nem o epíteto de durkheimiano. Muito antes, o que aqui se propõe é uma leitura estratégica, diria até instrumental, da obra do sociólogo francês com vistas à, através da “pilhagem” do seu conteúdo397, desenvolver uma sociologia articulada nos termos da diferença. Nesse sentido, se boa parte do argumento arvora-se na economia discursiva desenvolvida por Durkheim, a intenção que mobiliza as ideias aqui desfiladas é, em termos mais do que gerais, anti-durkheimiana – ao menos no que se refere a esse Durkheim sacralizado pela tradição e erguido como o pensador das grandes representações, da consciência coletiva e dos grandes conjuntos. O que confere um estatuto curioso ao papel desempenhado pela sua obra no conjunto argumentativo do texto que aqui se apresenta. Pois se, de um lado, não cerra fileira com os comentadores simpáticos ao seu projeto, de outro, passa ao largo da verve dos críticos e detra397.  Agradeço a Bernard Lahire por ter chamado a minha atenção, em comunicação oral, para o fato de que o sociólogo deve literalmente “pilhar” – expressão usada pelo próprio Lahire – as obras canônicas da filosofia visando renovar e resolver as questões colocadas pelo momento atual da pesquisa. Ainda que Lahire – sendo coerente com o seu programa de uma sociologia eminentemente empírica –, talvez, reprovasse, de cabo à rabo, o esforço que aqui é proposto; no entanto, penso que nada mais justo para com um grande pensador do que tomar literalmente as suas considerações mesmo que isso implique numa negação do seu projeto global.

tores que fizeram fortuna contraditando as diatribes durkheimianas com ditirambos de ordem inversa. Isso não significa que adote-se, aqui, qualquer pretensão de neutralidade, mas apenas quer dizer que entre a crítica e o comentário, nas múltiplas posições que podem ser ocupadas entre esses dois grandes polos, o presente trabalho procura encontrar o seu direito de cidade. Assim, valer-se-á do aporte durkheimiano conquanto ele se mostre interessante para o desenvolvimento de uma sociologia articulada nos termos da diferença, ou, em outras palavras, na medida em que facilite o desenvolvimento de uma sociologia menor. Para avançar esse argumento, o presente capítulo desdobra-se em três partes. Na primeira, aprofundo a reflexão acerca da questão das fundações arqueológicas da sociologia a partir do aporte desenvolvido por Foucault n’As Palavras e as Coisas. Argumentando em duas frentes, procurarei mostrar como, de um lado, os a prioris históricos constitutivos da sociologia apontam para o vínculo estabelecido pela sociologia com o modelo de uma ciência maior – isto é, uma ciência comprometida com os temas da permanência, da identidade e dos grandes conjuntos de ordem molar – procurarei, de outro lado, deixar em aberto as possibilidades do desenvolvimento da sociologia enquanto ciência menor e o que isso significa. Feito isso, passarei, na segunda parte, ao platô propriamente sociológico. Trata-se da sessão incumbida de demonstrar o compromisso durkheimiano com o modelo de sociologia maior. Entendendo que ninguém melhor do que Durkheim ofereceria as condições de veracidade para os vaticínios foucaultianos acerca da constituição epistêmica da sociologia, procurarei realizar incursões sistemáticas na sua obra de modo a defender o argumento de que as fundações arqueológicas que apontam para a sociologia enquanto saber das representações não são meras acusações transcendentes de um filósofo judicante, mas encontram respaldo no interior mesmo da tradição sociológica. Ou seja, mostrarei que a própria obra durkheimiana pode ser lida como uma espécie de confirmação da acurácia das investidas de Foucault.

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Terminando essa parte e dando margem para o encadeamento da próxima, procurarei sondar se mesmo Durkheim, sendo um pensador das representações, sua obra não ofereceria elementos “não representativos” capazes de arvorar a tematização da questão da diferença em terreno sociológico. Assim, se de um lado teríamos uma teoria das formas simbólicas apta a repor o social como garantia do cogito, e, portanto, como condição de possibilidade de unidade das representações; de outro lado, como procurarei defender na terceira parte, a condição mesma de pensar esse social passaria por uma teoria dos fluxos “não representativos” não cristalizados, mobilizados a partir de uma teoria da associação e da segmentaridade. Mostrar essa possibilidade é justamente a tarefa a que se incumbe a terceira e última parte do capítulo. 1. Entre as Formas e os Fluxos: Notas para a Colocação do Problema Investigar uma disciplina face ao seu a priori histórico, não é outro o objetivo da arqueologia. Ou seja, perquirir quais foram os meios, ou melhor, quais foram as costuras e as configurações dos saberes na sua relação com as positividades, que daí emergem a partir de um regime de visibilidades, e passam a vigorar sob o estatuto de objeto científico. Numa palavra, tudo consiste em reportar um conjunto de enunciados a uma determinada episteme. Tal análise, como se vê, não compete à história das idéias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo

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epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma “arqueologia”. (FOUCAULT, 2002, p. XIX).

Tal procedimento, subverte, no início, todas as relações primárias e vacilantes entre a sociologia e a filosofia. Ao desnudar a episteme que dá ensejo ao surgimento da sociologia, enquanto ciência humana, a arqueologia traz à baila a dependência constituinte das ciências humanas com relação à filosofia, à matemática e as ciências empíricas (biologia, economia, linguística). Isso não significa que a sociologia seja redutível a uma filosofia específica, a um economicismo ou a um biologismo. Muito pelo contrário, significa apenas que do volume composto por esse triedro do saber (matemática, filosofia e ciências empíricas) as ciências humanas tateiam em busca do seu lugar ao sol. Mas antes de entrar nos pormenores arqueológicos que configuram a episteme das ciências humanas e da sociologia em especial, cumpre tecer alguns comentários sobre essa arqueologia das ciências humanas, conforme proposta por Michel Foucault nas Palavras e as Coisas (1966). A tese do livro é tão clara quanto polêmica.398 Segundo Foucault, as ciências humanas não são frutos de um longo amadurecimento da reflexão sobre o homem, nem, muito menos, a aplicação dos métodos extraídos das ciências da natureza a esse suposto velho conhecido. Antes, são o desdobramento de um acontecimento 398.  Não é o objetivo deste capítulo esboçar um resumo ou desenvolver uma resenha acerca do livro de Michel Foucault. Não obstante, para situar o problema que anima esse capítulo, a saber, as relações entre as ciências humanas e as representações, com todas as consequências atinentes ao problema da diferença e do acontecimento, faz-se necessário acompanhar de perto as reflexões contidas n’As Palavras e as Coisas. Para um comentário mais geral e menos localizado da obra de Foucault ver Machado, 2009.

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inerente ao esgotamento do saber clássico e do surgimento da episteme moderna, que consistiu em colocar no centro do quadro do saber essa figura frágil, porquanto finita, chamada homem. Isso significa dizer que até o fim do século XVIII o homem não existia. Ou seja, as ciências humanas não poderiam sequer vislumbrar a sua possibilidade de emergência, antes do fim do século XVIII, visto que não existia, enquanto objeto de saber, essa figura chamada homem. Para defender essa tese um tanto desconcertante, Foucault acredita ser necessário deslindar toda a trama da formação dos saberes na cultura ocidental, numa história em que a arqueologia identifica três períodos: a episteme do renascimento, a episteme clássica e a episteme da modernidade. O objetivo fundamental desse percurso não é outro senão provar que o homem só se faz presente na modernidade, estando, portanto, excluído das demais formações epistêmicas. Para Foucault, a episteme do renascimento seria caracterizada pela relação de similitude. Conhecer é conhecer a semelhança e aquilo a que a semelhança se assemelha. E tudo se assemelha a tudo, segundo os quatro tipos de semelhança (conveniência, emulação, analogia, simpatia)399. Não obstante as coisas sejam semelhantes, para que delas possa se obter algum conhecimento, segundo a episteme do renascimento, seria necessário que essa semelhança pudesse ser notada. Para tanto, o renascimento dispunha da teoria das assinalações, ou seja, de um conjunto de marcas e signos, impressas nas coisas mesmas, que deslindavam todo o jogo de semelhanças dispostas sobre o mundo. No entanto, para que o signo pudesse desempenhar a sua função se fazia necessário que entre o signo e o significado houvesse uma instância que assegurasse a significação. Essa instância era desempenhada pela própria semelhança. Assim o círculo se fecha. Vê-se, porém, através de qual sistema de desdobramentos. As semelhanças exigem uma assinalação, pois nenhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada. Mas que são esses sinais? Como reconhecer, entre todos os 399.  Ver Foucault, 2002, p 23-34.

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aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecruzam, que há aqui um caráter no qual convém se deter, porque ele indica uma secreta e essencial semelhança? Que forma constitui o signo no seu singular valor de signo? — É a semelhança. Ele significa na medida em que tem semelhança com o que indica (isto é, com uma similitude). (FOUCAULT, 2002, p.39).

Com essa teoria das assinalações a episteme do renascimento descortina um mundo totalmente povoado de signos à espera da sua decifração. O mundo se apresenta como um enorme texto a espera do comentário que, pela dinâmica das semelhanças, possa conduzir todas as coisas a sua prolixidade mais legítima. Isto é, reportando as semelhanças às semelhanças através do desdobramento dos signos inscritos nas coisas, a episteme do renascimento acredita levar adiante o escrutínio infindo do mistério do mundo. Numa assimilação perfeita entre as palavras e as coisas, visto que o mundo mesmo é convertido em um imenso texto, a episteme do renascimento pôde dar prosseguimento ao seu jogo de semelhanças. Foi justamente esse terreno da linguagem, esse terreno que aproximava as palavras e as coisas através de uma escrita encravada no coração do mundo, que foi dissolvido na passagem para a episteme clássica. Para a episteme clássica, o mundo perde a sua espessura: entre as palavras e as coisas se interpõe uma representação. Talvez tematizar a representação como um interposto, espécie de biombo entre as palavras e as coisas, não faça muita justiça à episteme da época clássica. Nesse terreno, o melhor seria dizer que a distinção é operada entre representações claras e distintas e representações confusas. Afinal, tudo passa a ser dissolvido no elemento da representação. Nesse sentido, isto é, segundo a episteme clássica, conhecer não será outra coisa senão ordenar as representações num quadro de identidades e diferenças, que vai da representação mais simples à mais complexa. Será aí que a gramática geral, a história natural e a análise das riquezas repartirão as positividades abertas pela episteme clássica no quadro geral das representações. O fundamental, para os limites da reflexão esboçada aqui, é que por todo o período que a

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representação reinou soberana, nem o objeto representado nem o sujeito representante puderam gozar de uma existência extrínseca à representação. Tudo se passa como no célebre quadro de Velásquez, Las meninas, ao qual Foucault dedica as mais belas páginas da sua análise: Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação. (FOUCAULT, 2002, p.21).

Assim, a relação entre a representação e o ser é de pura homologia. Entre o “eu penso” e o “eu sou” a relação só pode ser de consequência, sem que aquele que pensa e aquele que é possam ser questionados em sua positividade. Foi justamente por isso que não pôde haver nem ter havido algo como uma ciência humana, durante o tempo que prevaleceu a episteme clássica. Dado que tudo se resolvia no terreno das representações e que essas, pela sua espessura própria, elidiam a figura do homem, tanto como sujeito representado quanto como senhor das representações, não seria sequer possível vislumbrar a possibilidade da constituição de um saber sobre o ser do humano No pensamento clássico, aquele para quem a representação existe, e que nela se representa a si mesmo, aí se reconhecendo por imagem ou reflexo, aquele que trama todos os fios entrecruzados da “representação em quadro” —, esse jamais se encontra lá presente. Antes do fim do século XVIII, o homem não existia. Não mais que a po-

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tência da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos: mas ele envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido (FOUCAULT, 2002, p.21).

Segundo Foucault, uma interrogação sobre o modo de ser do Cogito só pode ser colocada, desfazendo com isso o liame que unia o ser e a representação – o Eu penso e o Eu sou – quando, sob a pressão de uma reviravolta operada na textura da episteme clássica, evidenciada pela passagem da gramática geral para a filologia, da história natural para a biologia, e da análise das riquezas para a economia, acabou com o primado das representações. Somente quando o mundo voltou a ter uma espessura própria, irredutível à episteme do renascimento, fazendo com que as representações recuassem na sua tentativa de tornar o mundo transparente a si mesma, reconhecendo com isso uma opacidade inerente à vida, ao trabalho e à linguagem, no que se refere à sua relação com a representação, que o homem, pela primeira vez pôde vislumbrar as condições que, anos mais tarde, presidiriam o seu nascimento. Mas qual seria a relação entre a passagem da história natural para a biologia, da gramática geral para a filologia e da análise das riquezas para a economia com a emergência do homem enquanto figura do saber? Segundo Foucault, a passagem dessas disciplinas inaugura, em cada uma delas, um terreno inassimilável ao jogo das representações. Não tratar-se-á mais, como outrora, de compor o quadro das diferenças ordenáveis – de articular mathésis e taxonomia, aritmética e combinatória – muito antes, o saber passa a habitar um espaço opaco imune ao jogo das representações. A vida, como objeto da biologia, a produção, como objeto da economia e a língua, como objeto da filologia, passam, nesse movimento, a adquirir uma espessura própria, uma positividade que as desloca para além das representações e que, por isso mesmo tem o poder de suscitá-las. Isso significa que pela primeira vez na história –

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nessa história cuja arqueologia tem a incumbência de desenrolar – o homem pôde aparecer como, ao mesmo tempo, aquele que produz, vive e fala e; aquele cuja pressão da produção, da vida e da língua, exercendo o seu poder como que do exterior, o constrangem a uma existência finita e passível de determinação. É o início da analítica da finitude e a emergência do homem enquanto duplo empírico transcendental. Ou seja, “se o saber do homem é finito, é porque está preso, sem libertação possível, nos conteúdos positivos da linguagem, do trabalho e da vida; e inversamente, se a vida, o trabalho e a linguagem se dão em sua positividade, é porque o conhecimento tem formas finitas” (FOUCAULT, 2002, p. 436). Contudo, se o homem, em virtude das novas empiricidades inauguradas pela biologia, economia e filologia, descobre-se como radicalmente finito, a viravolta decisiva no terreno da finitude se passará quando, no nível propriamente filosófico, a finitude se arraigar como possibilidade do conhecimento. Será o momento da consagração do homem como duplo empírico transcendental. Isto é, ao mesmo homem que se descobre como submetido ao regime dessas positividades será erigido como fundamento do conhecimento desses condicionantes que definem o seu próprio estatuto.400 Isso implica dizer que, de forma coetânea ao movimento que inaugurou novas positividades no terreno das ciências empíricas, processou-se uma revolução na filosofia. Como não poderia deixar de ser, com a transformação da episteme clássica – dessa matriz de enunciados que articulava todo o saber em torno das representações – toda a trama do saber encontrou-se profundamente alterada. Se nas ciências essa transformação correspondeu ao remanejo das representações no interior da densidade profunda do mundo, isto é, da esfera do não representável; na filosofia essa transformação epistêmica foi responsável pela famigerada revolução copernicana operada por Kant. 400.  Habermas é preciso ao comentar essa passagem da obra de Foucault: “O eu assume simultaneamente a posição de um sujeito empírico que se encontra no mundo, como objeto em meio a outros objetos, e a posição de um sujeito transcendental diante do mundo em seu todo, que ele próprio constitui como a totalidade dos objetos da experiência possível” (Habermas, 2002, p. 368)

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Questionado o liame que unia o ser à representação – o Eu sou ao Eu penso – a partir da crítica humeana capaz de libertá-lo do sono dogmático, Kant passou a considerar o que deveria ser uma representação para que, assim, se pudesse falar de conhecimento. Ou seja, deslocando a análise das representações para a subjetividade transcendental, Kant não fez outra coisa senão perguntar pelas condições de possibilidade do Eu penso que deve poder acompanhar todas as minhas representações. Em suma, Kant deslocou a questão da representação para as possibilidades da representação. Contudo, não se pode, sem equívoco, acusar Kant de ser o responsável pelo construto empírico transcendental. Kant sabia muito bem o que era da ordem do empírico e o que era da ordem do transcendental, de modo que só à custa de muita distorção poderse-ia confundir a subjetividade transcendental com as subjetividades empíricas, submetidas a uma língua espessa, a um modo de produção e a uma vida que lhe atravessa. Em Kant, o positivo não vem para inaugurar o transcendental repetindo-se nele, muito antes, é o transcendental que vem para fundamentar toda e qualquer possibilidade das positividades empíricas. É justamente isso que será perdido, na aurora da modernidade, quando o pensamento doravante passar a habitar os confins do sono antropológico. Não interessa aqui saber se esse sono antropológico, com suas sucessivas sujeições, desempenha ou não o papel de grilhão que aprisiona o devir, suplantando, pelo sujeito, os vaticínios inerentes a morte de Deus. Não se trata de festejar o retorno da linguagem, no seu ser próprio, que viria vigorar com o último golpe das ondas sobre essa figura tênue, esboçada na areia, chamada homem. Deixo a querela acerca da morte do homem para os humanistas e anti-humanistas. Nos limites da reflexão esboçada aqui, o que importa, por enquanto, é o quanto esse jogo de reportes sucessivos entre o empírico e o transcendental, inaugurando toda a sorte de duplos – isto é, o próprio empírico transcendental, mas também o duplo Cogito impensado e a origem e o recuo – restabelece, em novas bases, irredutíveis ao saber clássico, a dinâmica das representações, fazendo dessas últimas, enquanto referidas ao homem, o objeto das ciências humanas.

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Pode parecer paradoxal definir as representações, na sua referência ao homem da finitude, como objeto das ciências humanas. Afinal, não havia sido exatamente a representação o elemento precípuo excluído do quadro do saber quando da sua transição da episteme clássica para a moderna? Não fora a representação o elemento elidido que permitiu que a biologia, a economia e a filologia se constituíssem tomando por base processos que se desenrolam na espessura opaca do mundo? Obviamente, não se pode responder senão de um modo afirmativo a todas essas questões, de modo que a questão das representações, enquanto objeto das ciências humanas, não pode ser colocado senão de uma forma mais matizada, diria até colateral. Por isso mesmo, a representação deixou de valer para os seres vivos, para as necessidades e para as palavras, como seu lugar de origem e a sede primitiva de sua verdade; em relação a eles, ela nada mais é, doravante, que um efeito, seu acompanhante mais ou menos confuso numa consciência que os apreende e os restitui. A representação que se faz das coisas não tem mais que desdobrar, num espaço soberano, o quadro de sua ordenação; ela é, do lado desse indivíduo empírico que é o homem, o fenômeno – menos ainda talvez, a aparência – de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior. Na representação, os seres não manifestam mais sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser humano. (FOUCAULT, 2002, p. 431)

Isso implica dizer duas coisas: a primeira delas é que mesmo a biologia, a economia e a filologia tendo um papel determinante na dinâmica da constituição da episteme moderna, inaugurando na cultura ocidental a questão da finitude, elas não podem ser consideradas, contudo, ciências humanas. Pois não basta a referência ao homem enquanto ser que vive, produz e fala para que se possa falar propriamente de ciência humana. Muito antes, é necessário que esse ser que vive, fala e produz, confira-se representações a si mesmo enquanto ser que vive, fala e produz. É no espaço inaugurado entre as positividades empíricas das ciências da vida, da linguagem e da produção,

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e a representação que delas fazem os homens enquanto seres que vivem, produzem e falam que as ciências humanas podem liberar todo o seu volume. É justamente esse homem, duplo empírico transcendental, que, a partir dos deslizes entre o positivo e o fundamental, possibilita o conjunto de discursos das ciências humanas. Já a segunda implicação do estatuto das representações na episteme moderna refere-se ao fato de que é justamente pela dinâmica das representações que o sono antropológico liberará todos os seus duplos. É pela dinâmica das representações, na sua relação com o homem, que veremos o transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado e a origem repetir o recuo, o que traz consequências significativas para as fundações arqueológicas que marcam a episteme das ciências humanas. Isso implicaria dizer, em última instância, que a sociologia seria um saber condenado a cerrar fileiras eternamente com um saber do Mesmo. Isto é, um saber que aboliria a questão das diferenças no berço. Talvez seja interessante introduzir um sociólogo nessa discussão para sondar em que medida os praticantes da disciplina reconhecem as matrizes discursivas apontadas por Foucault como constitutivas da sociologia. Pierre Bourdieu401 constitui certamente um interlocutor privilegiado. Não somente pelo seu conhecimento provado e comprovado da história da disciplina, mas, sobretudo, na qualidade de porta-voz hiperlegitimado no que tange às possibilidades de delimitar o que é, afinal, sociologia. Segundo Bourdieu, é exatamente nesse interstício aberto entre o empírico e o transcendental que a 401.  Não só a teoria do próprio Bourdieu parece reportar a essas oscilações do tipo empírico transcendental, como nas reflexões epistemológicas endossadas pelo sociólogo francês o tema reaparece na sua pureza manifesta: “Se, para citar Husserl, as ciências do homem são necessariamente ciências que têm uma temática de dupla orientação conseqüente, uma temática que liga de maneira conseqüente a teoria do campo científico à teoria do conhecimento dessa teoria e se, em outros termos, a reflexão epistemológica sobre as condições de possibilidade da ciência antropológica faz parte integrante da ciência antropológica, é porque, primeiramente, uma ciência que tem por objeto aquilo que a toma possível, como língua e cultura, não pode constituir-se sem constituir suas próprias condições de possibilidade; mas é também porque o conhecimento completo das condições da ciência, isto é, das operações pelas quais a ciência se dá o domínio simbólico de uma língua, de um mito ou de um rito, implica o conhecimento da compreensão primeira enquanto execução das mesmas operações, mas de modo inteiramente outro: na inconsciência absoluta das condições gerais e particulares que lhe conferem sua particularidade.” (BOURDIEU, 1983, p.47).

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sociologia pode ancorar os seus postulados. Comentando a respeito da fundação da sociologia como uma resposta positiva, isto é, empírica para o problema do conhecimento formulado por Kant, Bourdieu não deixa dúvidas acerca da repetição do positivo no fundamental como condição de possibilidade da sociologia. Durkheim inscreve-se explicitamente na tradição kantiana. Todavia, porque quer dar uma resposta positiva e empírica ao problema do conhecimento evitando a alternativa do apriorismo e do empirismo, lança os fundamentos de uma sociologia das formas simbólicas. (Cassirer dirá explicitamente que ele utiliza o conceito de forma simbólica como equivalente a forma de classificação). Com Durkheim, as formas de classificação deixam de ser universais (transcendentais) para se tornarem (como implicitamente em Panofsky) em formas sociais, quer dizer arbitrárias (relativas a um grupo particular) e socialmente determinadas. (BOURDIEU, 1989, p.8)

No que consiste oferecer uma saída empírica para o problema do conhecimento? Não seria exatamente esse o esforço teórico responsável pelos deslizes entre o empírico e o transcendental? Ao deslocar a questão kantiana para o terreno da sociologia Durkheim não faria, assim, outra coisa que não fazer valer, para o conceito de sociedade, a mesma ambivalência que caracterizava o homem na episteme da modernidade. Assim, o social, vertente ontológica da sociedade, passaria a vigorar, por um lado, como objeto que funda as análises sociológicas e, por outro lado, como horizonte transcendental que descortina as próprias condições de possibilidade da sociologia como campo do saber. Mas não devemos reduzir a uma espécie de refluxo durkheimiano esse movimento aparentemente constitutivo da sociologia. Comentando, a respeito de Marx, como os conflitos oriundos da economia podem ser trabalhados em terreno sociológico, Bourdieu não deixa dúvidas acerca do caráter representacional, ou mesmo simbólico, que faz com que a sociologia seja irredutível a toda sorte de economicismos: “as diferentes classes e frações de classe estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo so-

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cial mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais” (BOURDIEU, 1989, p.11). É justamente essa aparição transfigurada do positivo no transcendental, ou melhor, do empírico no simbólico que faz com que, abrindo a dimensão onde os homens e mulheres representam os conflitos econômicos, transmutando-os em conflitos simbólicos, conflitos de visão de mundo, etc. a sociologia encontre, no terreno das representações, o seu elemento irredutível à economia. Mas já que estamos no terreno das representações, uma ressalva precisa ser feita. Falar de representação não significa, de maneira nenhuma, falar de consciência. O domínio da representação não é homólogo ao da consciência. Quando a representação estava amarrada ao funcionamento do Cogito, no quadro instaurado pelo saber clássico, talvez, ainda se pudesse vincular a representação à consciência. No entanto, com a emergência dessas novas positividades – vida, produção e língua – as representações, orquestradas por tais positividades, passam a desempenhar um papel cada vez mais subterrâneo, até mesmo inconsciente. Inconsciente esse, que as ciências humanas tomam a tarefa de fazer falar. Talvez seja justamente por isso que a discussão na teoria sociológica veja-se cada vez mais saturada por debates, já inférteis, entre o binômio agência-estrutura. A meu ver, esse debate não é outra coisa senão a oscilação perpétua entre o cogito e o impensado. Mostrando sempre o fundo não pensado de todo pensamento, aqueles que favorecem a estrutura sempre lembrarão, ao ser do cogito, a sua dependência fundamental com relação a uma estrutura oculta; enquanto aqueles que favorecem a agência402, embora sem nunca desconsiderar esse fundo impensado, procurarão, sempre que possível, reportar esse fundo impensado a alguma atividade do cogito, como se pode ler nas teorias giddensianas da estruturação. 402.  Hoje sabemos o quão falsa é a descrição bourdieusiana da fenomenologia (PETERS, 2011). Nesse sentido, acreditamos não ser possível falar de uma sociologia da ação que ignore por completo o papel dos condicionantes. Nesse sentido, parece absurdo falar de uma sociologia da criação individual ex nihilo.

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Nesse sentido, as oscilações do tipo empírico transcendental e cogito impensado parecem constitutivas do tipo de abordagem sociológico que consiste em abordar o ser do homem justamente no fosso aberto entre o ser e a representação. É assim que podemos ver a mais madura de todas as teorias sociológicas, a mais sintética, no sentido de condensar os principais aportes da sociologia clássica, reportar constantemente o positivo ao fundamental, fazendo com que o devir da sociologia possa ser descrito como um longo e prolixo monólogo do sempre mesmo. Pierre Bourdieu, com a sua teoria das práticas, sua praxiologia, acreditou ter solucionado, de uma vez por todas, os impasses inerentes ao problema do cobertor curto. Mostrando a insuficiência das teorias objetivistas e fenomenológicas, Bourdieu acreditou ter conseguido aparar as arestas de ambas as abordagens com recurso ao seu conceito de prática. Segundo Bourdieu, a teoria fenomenológica seria insuficiente por, ao enfatizar a experiência primordial da vida cotidiana, não dar conta justamente das condições de possibilidade estrutural dessas mesmas experiências. Já a teoria objetivista, leia-se estruturalista, não padecia dos mesmos males. Furtando-se ao domínio da doxa, e justamente tematizando as possibilidades de todo elemento doxicológico, as teorias objetivistas se faziam capazes de deslindar os componentes estruturais responsáveis por fazer da experiência uma experiência. Mas isso não as tornava imunes à crítica. Segundo Bourdieu, visto não possuírem um conceito de prática, descolado de uma teoria da execução, os objetivistas não encontravam outra saída que não reificar a estrutura, fazendo dos agentes meros suportes de uma objetividade quase transcendente. Para corrigir mutuamente as duas teorias, Bourdieu desenvolve a sua praxiologia. A meu ver, muito antes de resolver o problema que se propõem, a teoria das práticas apenas toma consciência e explicita os impasses que a constituem. Longe de reportar o empírico ao empírico e o transcendental ao transcendental – numa espécie de paráfrase cristóica que pede que se dê ao pai o que é do pai e a César o que é de César – Bourdieu apenas coloca aos olhos nus a antinomia constitutiva das ciências humanas. É assim que vemos a teoria do Habitus reportar o

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empírico ao transcendental e o Cogito ao impensado. Acredito que não seja exagerado afirmar que essa palavra, ou melhor, esse conceito, assim como toda a teoria das práticas absorvidas nele, condense e explicite todas essas oscilações constitutivas da sociologia. Ou seja, quando censura os objetivistas por não terem encontrado um princípio gerador de estruturas, Bourdieu desloca o empírico para o transcendental e faz dessas mesmas estruturas, enquanto interiorizadas, as condições da suas próprias configurações. Afinal, dizer que as “estruturas estruturadas estão dispostas como estruturas estruturantes” não é outra coisa senão dizer que o empírico é a condição do transcendental: As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente. (BOURDIEU, 1983, p. 61)

Nesse sentido, a dialética das práticas – muito mais circular do que dialética – que rege a relação entre interiorização e exteriorização, longe de ser a síntese teórica do dilema agência/estrutura, parece vigorar como a conscientização explícita dos deslizes antropológicos que constituem a sociologia como ciência humana. O mesmo aspecto abordado do lado da estrutura estruturada – aspecto empírico – é reportado, pelos sistemas de disposição contraído, às estruturas estruturantes, isso é ao aparelho transcendental. Longe de resolver o problema, a circularidade do habitus o torna infinito. É justamente nessa injunção entre o empírico e o transcendental

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que, inaugurando o espaço das representações na episteme moderna, a sociologia fecha as portas, quase de uma vez por todas, para a questão da diferença. Visto que a partir dos seus deslizes de sujeição antropológica o pensamento moderno repete sempre o positivo no fundamental, o recuo na origem e o cogito no impensado, a reflexão sobre o homem só pode ser dada como um lento progresso do pensamento do Mesmo. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade – exposição da representação, com sua realização em quadro, tal como o ordenava o saber clássico. É nesse espaço estreito e imenso, aberto pela repetição do positivo no fundamental, que toda essa analítica da finitude — tão ligada ao destino do pensamento moderno — vai desdobrar-se: é aí que se verá sucessivamente o transcendental repetir o empírico, o cogito repetir o impensado, o retorno da origem repetir seu recuo; é aí que se afirmará, a partir dele próprio, um pensamento do Mesmo irredutível à filosofia clássica (FOUCAULT, 2002, p.434)

Esse pensamento do Mesmo, que conduz as diferenças, pela via da repetição nua, à identidade é, ao mesmo tempo, tributário da analítica da finitude – essa dimensão que faz o homem valer, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto do conhecimento – e consequência do jogo das representações. Ou melhor, esse pensamento do Mesmo assume as suas feições próprias à sociologia na medida em que conjuga a representação à analítica da finitude. Numa palavra, ao reportar às representações ao homem – a esse homem dos duplos – a sociologia, como ciência humana, acabou por encerrar os seus discursos nas estreitas fileiras da identidade. Isso tudo segundo duas dimensões: uma dimensão sincrônica que faz a diferença valer como desvio, crime ou loucura ou uma dimensão diacrônica que impede a sociologia de pensar o devir senão como reprodução. Ambas as dimensões são coordenadas pelo jogo da interiorização da exteriorização, e vice-versa, como sucedâneo da

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repetição do empírico no transcendental. Assim, visto que entre o empírico e o transcendental reina a repetição nua, isto é a repetição apartada da diferença, estaremos sempre diante de um modelo onde o fato403 vale como norma e como sanção. Pelo fato de que as disposições duravelmente inculcadas pelas condições objetivas (que a ciência apreende através das regularidades estatísticas como probabilidades objetivamente ligadas a um grupo ou a uma classe) engendram aspirações e práticas objetivamente compatíveis com as condições objetivas e, de uma certa maneira, pré-adaptadas às suas exigências objetivas, os acontecimentos mais improváveis se encontram excluídos, antes de qualquer exame, a título do impensável, ou pelo preço de uma dupla negação que leva a fazer da necessidade virtude, isto é, a recusar o recusado e a amar o inevitável (BOURDIEU, 1983, p.63)

Assim, a sociologia quedaria inevitavelmente enredada nas tramas da identidade. Não haveria sociologia do conhecimento suficientemente versátil para fazer implodir o contínuo da representação. Por mais que se possa “multiplicar os pontos de vista e organizá-los em séries; nem por isso estas séries seriam menos submetidas à condição de convergir sobre um mesmo objeto, sobre um mesmo mundo”. Variando as representações segundo os pontos de vista, ou às “situações existencialmente determinadas”, para falar com Mannheim, nem por isso, a sociologia seria capaz de romper a força centrípeta da identidade que faz com que ideologia e utopia convirjam sempre para um mesmo mundo. Em suma, enquanto a sociologia encontrar nas representações as suas condições de possibilidade jamais algo como um outro mundo seria possível. 403.  Vale lembrar que os fatos aqui são representações. A sociologia, como bem mostrou Parsons, é irredutível a toda sorte de materialismos vulgares – do qual o behaviorismo é só uma modalidade. Nesse sentido, os fatos que valem como sanção são os fatos sociais – híbridos que misturam regularidade empírica e poder de coerção. Não é à toa que na teoria da determinação do fato moral Durkheim se esmere em superar o dualismo kantiano numa teoria onde os fatos morais operam a síntese entre o sensível e o inteligível - entre a apetência coisal da “boa ação” e a dimensão racional normativa do dever. Cf. (1970 [1906b])

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Contudo, por mais que, assim, os pontos pareçam todos interligados numa rede de necessidades que aponta e delimita o horizonte de toda argumentação possível, e por mais que as arestas estejam todas aparadas, acredito que esse esforço de redução do saber sociológico a uma episteme404 – no caso, a episteme moderna que libera o seu volume à luz do homem da finitude – tem por consequência o aborto precoce da potência das multiplicidades epistêmicas que cruzam um determinado campo do saber, alongando sempre os seus limites enquanto baralha suas fronteiras. Da mesma forma que a máquina de guerra é sempre exterior e irredutível ao Estado e seus aparelhos de captura405, não seria possível, também, que houvesse uma ciência nômade, menor, alheia às capturas da identidade e da representação? É exatamente essa a possibilidade vislumbrada por Deleuze e Guattari quando transpõem a questão da Máquina de Guerra e suas linhas de mutação para o terreno da epistemologia. Afirmando a irredutibilidade das Máquinas de Guerra aos aparelhos de Estado, os autores acreditam encontrar ressonâncias dessa diferença no campo mesmo do saber. Assim, segundo eles, transposta a questão, haveria uma ciência menor, ou nômade, que contraporse-ia a uma ciência do Estado, ou ciência régia. Enquanto nas últimas o ímpeto seria consagrado a delimitação de parâmetros de identidades, isto é, codificações e metrificações a partir do estabelecimento cuidadoso de formas bem ordenadas que se consagram à ordem; nas ciências menores o modelo hidráulico dos fluxos suplanta o modelo métrico dos sólidos. Articulando um pouco melhor os termos da questão, poder-seia dizer que a ciência menor pode ser delimitada a partir de quatro variáveis: 1) Irredutibilidade dos fluxos às formas – primazia do hidráulico com relação à teoria dos sólidos; 2) Abandono do estável, do eterno, do idêntico e do constante em proveito da heterogeneidade e do devir – Lucrécio e teoria do clinamen, enquanto desvio infini404.  “Numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que define as condições de possibilidade de todo saber. Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele que é silenciosamente investido numa prática” (FOUCAULT, 2002, p.230) 405.  Ver Deleuze e Guattari, 1997.

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tesimal; 3) Abandono do espaço estriado, onde o sistema métrico fornece as coordenadas da ocupação do espaço pelos sólidos, em prol de um espaço liso, no qual o espaço mesmo é projetado no devir das “coisas-fluxos”; 4) Abandono do modelo teoremático, em prol do modelo problemático – não se vai mais de uma essência estável às suas consequências, mas de um problema aos seus acidentes que lhe condicionam e resolvem. Todavia, tão interessante quanto possa ser esse esboço formal do que seria uma ciência menor, onde o devir é afirmado contra o primado do desenvolvimento de identidades desdobradas e diferenças subjugadas e domadas, para que a sociologia possa vislumbrar o seu devir minoritário, um tratamento mais rigoroso das possibilidades sociológicas precisa ser efetuado – ou contra-efetuado. Não basta perfilar um conjunto de precedentes, é preciso mostrar com rigor e com a paciência do conceito o quanto a sociologia, sempre, suportou devires heterogêneos e que, por mais que oficialmente se atrele às identidades, às representações, à estabilidade e à coerência, não obstante, ela talvez jamais tenha esconjurado a possibilidade do “monstro” do “disforme” e do “diferente não desviado” que habitaria, então, o seu coração. É exatamente o que procurarei tematizar, nas seções subsequentes, congraçados às sociologias de Émile Durkheim. A escolha da sociologia durkheimiana como palco onde as diferenças possam dançar no seu ritmo próprio não é nada fortuito. Diria mais, é estratégico. Quando se fala em sociologia menor, em devir, em fluxos e desvios infinitesimais, logo vem à cabeça a imagem de Gabriel Tarde que com sua monadologia anárquica – isto é, sem harmonia preestabelecida – contrapor-se-ia à sociologia régia, estatal – quase porta-voz da Terceira República406 – desenvolvida por Durkheim. No entanto, como procurarei avançar mais adiante, essa diferença precisa ser matizada. Acredito que por mais interessante que possa ser mostrar que a sociologia também tem os seus autores 406.  Sobre a relação entre o projeto de uma ciência social e a Terceira República, ver infra capítulo de Magnelli.

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malditos, penso ser necessário frisar que mesmo os sacrossantos não se furtaram a fazer sociologia menor. Ainda que herética, visto que desafia os poderes constituídos – epistêmicos, ou não –, a sociologia menor, como veremos, sempre foi uma (im)possibilidade. Trata-se apenas de efetuá-la. 2. A Sociologia Maior de Émile Durkheim Na seção anterior, por mais que a reflexão fosse desenvolvida no contato estreito com os textos e, ainda que a presença de Bourdieu fizesse o papel de folha de parreira apta a esconder a genitália do filósofo, a impressão que se poderia ter era de uma espécie de análise transcendente da sociologia. Ou seja, quedaria sempre em aberto a possibilidade de acusação de que a reflexão pudesse haver tangenciado a questão – chamando um filósofo, erigido na qualidade de juiz epistemológico para normatizar os devires sociológicos. Assim, a sociologia ver-se-ia, novamente, na dependência mais espúria da filosofia, disposta, então, a julgar os acertos e revezes da disciplina. Mas não é nada disso que se trata. Além da arqueologia foucaultiana desvencilhar-se de início de toda e qualquer função de crítica epistemológica – no sentido de procurar um critério de demarcação entre ciência e pseudo ciência – colocando-se diretamente no campo mais abrangente do saber, pode-se dizer que o objetivo da investigação realizada por Michel Foucault não era outro senão o de deslindar o a priori histórico que possibilitou o surgimento das ciências humanas. O objetivo não era, como vimos, julgar a sociologia enquanto ciência, mas, muito antes, desvelar quais foram as estratégias e as matrizes discursivas que alçaram o conhecimento sobre a sociedade ao campo do saber. Mas isso ainda não resolve o nosso problema. Pois afastar o filósofo da postura judicante em nada ajuda quando se trata de saber se a sociologia se reconhece no seu próprio a priori. É justamente essa tarefa, isto é, saber se a sociologia se reconhece ou não no terreno das representações, com seus respectivos deslizes entre o empírico e o transcendental, que se incumbe a presente seção. Para tanto, não fará mais do que sondar, a respeito da sociologia

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de Émile Durkheim, o aspecto constitutivo que a representação desempenha na dinâmica do saber sociológico. Assim, o que segue abaixo está estruturado em duas partes principais. Na primeira delas, procura demonstrar como através do jogo das representações coletivas a sociologia encontra um objeto próprio – isto é, irredutível ao fisicalismo, à biologia e à psicologia; para, na segunda parte, mostrar como a dinâmica – ou melhor, a estática – das representações sugerem, mesmo em terreno sociológico, a sujeição das diferenças a um princípio identitário. Procurando avançar o argumento de que, enquanto enredada na trama das representações, a sociologia recoloca a questão dos duplos, onde o empírico repete-se no fundamental – fazendo do saber sociológico um provável monólogo sobre o Mesmo – concluirei o capítulo afirmando a vinculação dessa sociologia ao projeto de uma ciência maior – centrada na questão da identidade, da permanência e da coerência – com todas as suas implicações para a questão das diferenças. Talhando o Devir da Sociologia à Moda das Representações Até agora, avancei o argumento de que a sociologia constituirse-ia no prolongamento, no terreno das representações, das ciências da vida, da linguagem e da produção. Afirmando que é no espaço aberto pela economia, biologia e filologia, e preenchido com as representações que as ciências humanas encontram o seu lugar no terreno do saber, procurei mostrar como a sociologia depende, para consolidar as suas condições de emergência, dessas ciências, ao mesmo tempo em que delas se desvencilha para construir um objeto próprio. Seguindo Foucault de perto, pude afirmar que, enquanto vigorou a primazia do saber clássico, com o seu quadro translúcido do ordenamento representativo, na medida em que o homem encontrava-se ausente do horizonte epistêmico, não poderia haver algo como uma ciência do homem e, por corolário, da sociedade. No entanto, procurei mostrar também que a medida em que esse quadro viu-se substituído – na qualidade de referente da representação – pelo homem enquanto ser que vive, produz e fala, as ciências

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humanas puderam liberar todo o seu volume, fazendo com que as representações passassem a ser referidas a essa nova figura. Contudo, dado que nem a economia, nem a filologia e muito menos a biologia – embora sejam ciências, de uma forma ou de outra, consagradas ao homem – possam ser consideradas, estritamente, ciências humanas, foi necessário que essas últimas encontrassem um objeto próprio, irredutível à vida, à língua e à produção. É justamente aí que as representações – no caso da sociologia as representações coletivas – são chamadas a desempenhar o seu papel. Esse é o tema que ocupa boa parte dos principais escritos de Émile Durkheim. Procurando desvencilhar a sociologia nascente de todo e qualquer fisicalismo – tolhendo no berço toda sorte de behaviorismo – para com isso mostrar a irredutibilidade das representações coletivas a toda sorte de estímulo sensório ou neuromotor, ao mesmo tempo em que afirmava a irredutibilidade das representações coletivas às representações vinculadas às disposições individuais – separando a sociologia da psicologia – Durkheim foi talhando, a fortiori, o devir da sociologia à moda das representações. Segundo ele, é na análise do elemento representativo, isto é, das representações coletivas que a sociologia encontra objeto que lhe seja próprio. Afinal, “uma vez que a observação revela a existência de fenômenos chamados representações, que se distinguem por características particulares dos demais fenômenos da natureza, contraria qualquer método tratá-los como se não existissem.”.407 O fundamental, para a sociologia nascente, é mostrar que ela desdobra os seus enunciados nessa região mesma onde as positividades inauguradas pela episteme moderna cessam, ou melhor, encerram o seu funcionamento. É exatamente aí, nesse fosso aberto pelo espaço onde as coordenadas psicofísicas deixam de fazer valer o jogo das suas determinações que a sociologia pôde encontrar um lugar ao sol. Para evitar qualquer sorte de colonização pela biologia, pareceu necessário, quando do surgimento da disciplina, inaugurar essa espécie de esfera relativamente autônoma, situada entre o estímulo e o reflexo, 407. 

[1898b] Représentations individuelles et collectives, p. 5.

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onde as determinações propriamente sociais pudessem se apresentar na sua regularidade própria. É justamente nessa esfera que se constitui o “próprio da sociologia”. Procurando desvencilhar o funcionamento das representações de todo e qualquer ranço fisicalista, Durkheim é enfático: Tão real quanto possa ser a ligação entre as ideias e os movimentos, ela nada tem de muito preciso. O mesmo sistema de movimentos pode servir para objetivar ideias muito diferentes, sem que se modifique na mesma proporção; assim também as impressões que ele desperta são sempre muito gerais. Dando-se aos membros uma posição conveniente, pode-se sugerir a um indivíduo a ideia de prece, não de uma determinada prece. Além disso, se é certo que todo estado de consciência é cercado de movimentos, é preciso acrescentar que quanto mais a representação se afasta da sensação pura, tanto mais o elemento motor perde em importância e significado positivo. As funções intelectuais superiores pressupõem, sobretudo, inibições de movimentos, como o provam não só o papel capital que para tanto desempenha a atenção quanto a própria natureza da atenção, que consiste especialmente numa suspensão, tão completa quanto possível, da atividade física.408

Todavia o objetivo maior do texto citado seja tão somente o de delimitar o campo da sociologia, demarcando o terreno e fechando as portas diante de possíveis invasões – bárbaras ou não – poderse-ia adiantar que nesse texto mesmo, Representações Individuais e Representações Coletivas, onde Durkheim define o campo das representações como objeto próprio da sociologia, pode-se notar a operação de sujeição das diferenças. No entanto, tão interessante quanto possa ser esse esforço de mostrar o quanto a sociologia aborta a questão das diferenças pelo simples fato de encaminhar os seus devires pela senda da representação, parar por aqui deixaria de lado aquilo que o enfoque sociológico 408. 

Ibid., p. 23-24.

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tem de mais peculiar, principalmente no que tange ao sacrifício das diferenças no altar do sempre mesmo. Pois, se ao tematizar a representação, enquanto representação, a sociologia compartilha de todos os vícios identitários inerentes a esse tipo de estratégia conceitual, contudo, a maneira como o faz é completamente singular. Como vimos, a sociologia não remete a representação ao quadro translúcido e ordenado do saber clássico. Muito antes, é na referência ao ser do homem – esse ser finito e, ao mesmo tempo, senhor de toda finitude – que a sociologia libera o jogo das representações. À primeira vista, poder-se-ia acreditar que nessa referência ao homem, as representações poderiam ver-se desencapsuladas da condenação identitária. Assim, tudo levaria a crer que o problema estaria nesse quadro prévio, herdeiro do saber clássico, onde as representações como que dispostas num plano de desenvolvimento pré-ordenado encontrariam seus respectivos lugares num sistema de identidades e diferenças justapostas. Numa palavra, o problema seria o espaço – esquadrinhado e pré-determinado – que as diferenças viriam ocupar. Contudo, “o que se censura à representação é permanecer na forma da identidade sob a dupla relação da coisa vista e do sujeito que vê. A identidade é conservada tanto em cada representação componente quanto no todo da representação infinita como tal” (DELEUZE, 1988, p.75). Isso significa que não é simplesmente pela elisão do sujeito409 que o jogo das representações fez valer as suas sujeições identitárias. Mesmo deslocando a representação do quadro e referindo-a ao ser do homem enquanto duplo empírico transcendental, a sociologia acaba produzindo deslocamentos entre o sujeito e o objeto fazendo 409.  Elisão abordada por Foucault a respeito da ausência do sujeito no saber clássico: “Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo — que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação” (FOUCAULT, 2002, p.21).

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com que entre esses deslizes não só o mundo seja convertido numa espécie de sucedâneo residual das nossas categorias, mas, também, que o sujeito se veja mais e mais talhado à imagem e semelhança do mundo constituído. Numa palavra, ao enveredar pela via das representações na sua referência ao ser do homem, a sociologia ver-se-ia enredada nessa lenta trama do mesmo, onde o empírico e o transcendental se repetem ad infinitum, fechando as portas para as diferenças e dissonâncias. Todavia, encerrar por aqui o cotejo argumentativo seria mais uma vez ceder à descrição superficial e render a sociologia ao assalto do filósofo judicante. Para evitar esses riscos passo agora a comentar mais de perto o texto durkheimiano. Se nas Representações Individuais e Representações Coletivas Durkheim se esforça em delimitar o campo das representações coletivas como o objeto irredutível da sociologia, nas Formas Elementares da Vida Religiosa, o sociólogo francês deslinda todos os pressupostos inerentes ao tema das representações: sua gênese, seu estatuto e suas implicações para a questão da diferença. Se acreditarmos em Bourdieu e com isso seguirmos afirmando a filiação kantiana do projeto de Durkheim, seria então nas Formas Elementares que poderíamos ver o quanto essa “resposta empírica e positiva para o problema do conhecimento” reporta-se, de ponta a ponta, ao deslize entre o empírico e o transcendental. Muito embora As Formas Elementares seja muito mais do que uma obra dedicada à sociologia da religião, apresentando-se, sobretudo, como uma resposta sociológica para o problema e para origem do conhecimento, no entanto, a própria forma pela qual Durkheim inicia as suas incursões pelo tema já denota o pendor sociológico em direção à temática das representações. É assim que o fenômeno religioso, tão rico e prolixo quanto possa ser, passa a ser abordado, para não dizer reduzido, a um conjunto de representações fundamentais e atitudes rituais que estabelecem o alicerce da vida social. Como todas as religiões são comparáveis, e como todas são espécies de um mesmo gênero, há necessariamente elementos essenciais que lhes são comuns. Com isso, não nos referimos simplesmente aos ca-

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racteres exteriores e visíveis que todas apresentam igualmente e que lhes permitem dar, desde o início da pesquisa, uma definição provisória; a descoberta desses signos aparentes é relativamente fácil, pois a observação que exige não precisa ir além da superfície das coisas. Mas as semelhanças exteriores pressupõe outras que são profundas. Na base de todos os sistemas de crença e de todos os cultos, deve necessariamente haver um certo número de representações fundamentais e de atitudes rituais que, apesar da diversidade de formas que tanto umas como outras puderam revestir, têm sempre a mesma significação objetiva e desempenham por toda parte as mesmas funções.410

Poder-se-ia dizer que Durkheim interessa-se, em especial, pela religião na medida em que através do estudo da vida religiosa, sobretudo nos seus aspectos mais elementares, seria possível deslindar as principais características que fazem da sociedade uma sociedade. Em resumo, seria possível fazer ver, através da análise da religião, a espinha dorsal da sociedade como um conjunto de representações e de atitudes rituais capazes de estabelecer tanto, por um lado, uma espécie de conformismo lógico onde se fundamentam as possibilidades de consenso, quanto, por outro lado, de fazer com que os corações se aproximem e passando a vibrar quase que em uníssono. Numa palavra, tornava-se possível tematizar a sociedade – na qualidade de totalidade dos fatos sociais – como um conjunto de modos de pensar e de modos de agir, socialmente estabelecidos – como definia, outrora, as Regras do Método Sociológico. Mas a questão é mais complexa do que parece. Pois se a sociedade é formada por esse conjunto de representações e atitudes, na medida em que é sempre um algo mais do que a mera soma desses componentes, ela parece vigorar, também, como a fonte de onde emanam essas representações e essas atitudes. É assim que a sociologia parece retomar no seu ritmo próprio, e mais peculiar, as aporias do tipo duplo empírico transcendental. Essas questões, acerca do duplo empírico transcendental, com todas as suas implicações inerentes à repetição do positivo 410. 

[1912a] As Formas Elementares, p. X.

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no fundamental, aparece na sua clareza mais meridiana quando Durkheim dedicava-se em solucionar as antinomias referentes ao problema do conhecimento. Pois, se num primeiro lance de olhos, as Formas Elementares aparece como um tratado sobre religião, numa dimensão mais profunda a obra se mostra como aquilo que pretende ser: uma resposta sociológica para o problema do conhecimento. Mas no que consiste propriamente tal problema? Qual o seu estatuto, seus impasses, aporias e antinomias? Como foi formulado pela tradição e retomado em bases estritamente sociológicas? É com vistas ao debate de Kant com Hume que Durkheim estabelece suas conjecturas acerca das condições de possibilidade do conhecimento. Como já foi afirmado anteriormente neste mesmo volume, em especial por Amaro no capítulo II, Durkheim contrapôs, nas Formas Elementares, o argumento empirista, muito próximo de Hume, ao argumento espiritualista, muito próximo ao de Kant. E como mostrou Gomes Neto no capítulo III, Durkheim estabeleceu em seguida uma via própria muito próxima do kantismo. Como dito mais acima, Durkheim não se contentou em delimitar, através das representações coletivas, o objeto da sociologia. Mais do que isso, encontrou no social o ancoradouro sintético capaz de restabelecer a unidade do cogito e, por conseguinte, a unidade de todas as representações, situando-se na tradição kantiana para, dentro dela, resolver os impasses do conhecimento. Situando duas correntes de teoria do conhecimento, a inatista e a empirista, ele confronta e mostra a insuficiência de ambas e, a partir daí, desenvolve a sua própria. Censurando os empiristas por sua ingenuidade que, em última instância, os impede de conceitualizar aquilo que constitui uma experiência possível, e censurando os intelectualistas por não fornecerem uma teoria para as origens das categorias do entendimento, ele desenvolve uma tese própria, onde o social, ou melhor, a sociedade, restabelece a unidade do cogito e fornece, por assim dizer, a gênese e a estrutura das categorias do entendimento. Numa palavra, como o mostrou minuciosamente Gomes Neto no capítulo anterior, a sociedade destitui a subjetividade transcendental. A princípio, num primeiro olhar, essa destituição vem para super-

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ar possíveis antinomias. Segundo Durkheim, dizer que a subjetividade transcendental realiza a síntese do múltiplo sensível, produzindo um enquadramento conceitual e consequentemente tornando o conhecimento possível, não é outra coisa senão pressupor aquilo mesmo que se pretende explicar. Da mesma forma que o médico de Molière, tantas vezes citado por Nietzsche, para quem o ópio causava sonolência devido às suas faculdades dormitivas, a hipótese, ao que tudo indica ad hoc, de uma subjetividade transcendental não faria outra coisa senão recolocar o problema num outro patamar, sem, contudo, solucioná-lo. É exatamente essa a tarefa que Durkheim toma para si. Isto é, o sociólogo pretende, com as “armas do seu ofício” estabelecer em bases seguras as famigeradas categorias do entendimento. Se com Kant era justamente em virtude do espaço e do tempo que as representações poderiam ser ordenados num juízo, não seria de se estranhar que Durkheim começasse por atacá-las, depurando-as do seu caráter etéreo, referindo-as, com isso, ao devir das sociedades. Ou seja, se a garantia das condições de possibilidade dos juízos sintéticos a priori era tributária da constituição apriorística das categorias de espaço e de tempo, que possibilitavam o enquadramento transcendental do múltiplo sensível, em Durkheim, essas mesmas categorias sofrem uma destrancendentalização, abrindo-se, por isso mesmo, para um enfoque capaz de fazê-las variar conforme varia a constituição da sociedade. Passando da metafísica para a sociologia, abandonaríamos, assim, um espaço puro e liso e passaríamos para um espaço estriado e facetado; da mesma forma, abandonaríamos um tempo homogêneo e linear e passaríamos a cogitar temporalidades múltiplas e cruzadas. Em última instância, faríamos as representações coletivas e as categorias do entendimento variarem conforme varia a morfologia social. Com isso, já se pode notar o quanto a solução empírica para o problema do conhecimento é toda ela vazada nas estratégias que consistem em repetir o positivo no fundamental. É assim, que a sociedade, ao mesmo tempo aberta para a representação coordena, por conta própria, a dinâmica mesma dessas representações. Assim,

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aquilo que é empírico e, portanto dado à representação é, ao mesmo tempo, aquilo que vigora como condição de possibilidade da própria representação. Com isso, pode-se notar as estratégias conceituais que envolvem o homem, enquanto duplo empírico transcendental, na sua pureza mais cristalina. Pois se a sociedade, ou melhor, a sociologia vem para “abrir um novo caminho à ciência do homem”, esse caminho não parece ser outro senão aquele das sendas abertas pela duplicidade inerente ao momento em que o homem descobriu-se, por conta própria, como ser finito. Assim, a sociologia parece chamada a abrir um novo caminho à ciência do homem. Até agora, colocávamo-nos diante da seguinte alternativa: ou explicar as faculdades superiores e específicas do homem, reduzindo-as às formas inferiores do ser – a razão aos sentidos, o espírito à matéria –, o que significava negar sua especificidade; ou relacioná-las a alguma realidade supra-experimental postulada, mas cuja existência nenhuma observação é capaz de estabelecer.[...] Mas a partir do momento em que se reconhece que acima do indivíduo existe a sociedade e que esta não é um ser nominal e de razão, mas um sistema de forças atuantes, uma nova maneira de explicar o homem se torna possível. Para conservar-lhe seus atributos distintivos, não é mais necessário colocá-los fora da experiência. Pelo menos, antes de chegar a esse extremo, convém saber se aquilo que, no indivíduo, ultrapassa o indivíduo não viria dessa realidade supra-individual, mas dada na experiência, que é a sociedade.411

Se com isso já se pode notar que a sociologia, ao menos essa sociologia durkheimiana, se reconhece de fato e de direito no seu próprio a priori histórico, situando-se de bom grado no elemento representativo para, uma vez lá, fazer transcorrer todo o jogo entre o empírico e o transcendental, através das suas repetições nuas, contudo, Durkheim consegue ser ainda mais explícito. Prenunciando, avant la lettre, os vaticínios foucaultianos, o sociólogo francês parece deveras cônscio das 411. 

Ibid., p.498.

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estratégias conceituais, com seus duplos, enveredadas pela sociologia. Falando sobre as categorias do entendimento, para os propósitos da discussão levantada aqui, ele não poderia ser mais direto: Mas, no que diz respeito a elas [as categorias do entendimento], o problema é mais complexo, pois elas são sociais num outro sentido e como que em segundo grau. Elas não apenas vêm da sociedade, como as próprias coisas que exprimem são sociais. Não apenas foi a sociedade que as instituiu, como são aspectos diferentes do ser social que lhes serve de conteúdo: a categoria de gênero começou por ser indistinta do conceito de grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da categoria de tempo; o espaço ocupado pela sociedade é que forneceu a matéria da categoria de espaço; a força coletiva é que foi o protótipo do conceito de força eficaz, elemento essencial da categoria de causalidade.412

Com isso, parece não restar dúvidas da filiação sociológica aos duplos e às suas repetições. Mas isso ainda não é o mais interessante, para não dizer complicado. Pois se ao reconhecer-se no seu a priori a sociologia faz valer toda sorte de deslizes entre o empírico e o transcendental, esses impasses não adquirem apenas o estatuto de aporias lógicas – como aquelas inerentes ao trilema de Münchhausen413. Muito antes, acabam por instaurar um regime discursivo no qual a repetição do empírico no fundamental acaba implicando numa espécie de sanção pelo fático, onde o passado regula o devir. Assim, tudo se passaria como se os mortos ainda governassem os vivos e as identidades faticamente afirmadas viessem tolher do horizonte transcendental toda possibilidade de diferenças dissonantes. 412.  Ibid., p.489. 413.  O trilema de Münchhausen, também conhecido como trilema de Agripa, foi formulado por Hans Albert, discípulo de Karl Popper, no seu famoso Tratado da Razão Crítica e refere-se aos impasses inerentes a toda sorte de fundacionismos. Segundo Albert, toda tentativa de fundamentação última implicaria em três aporias: dogmatismo, círculo vicioso ou regressão ao infinito.

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Como se aquilo que se deu determinasse aquilo que se dará, na medida em que delimita o horizonte de experiências possíveis – isto é, o horizonte transcendental – a sociologia, ao enveredar por esse caminho, encontraria dificuldades quase intransponíveis quando se trata de tematizar o diferente. Mas isso ainda não é tudo. Pois se ao que tudo indica as diferenças passam a ser tolhidas nesse enfoque onde as repetições afastam a criatividade e a imaginação do horizonte transcendental, o caráter de sociologia régia, ou maior, parece liberar todo o seu volume quando se trata de tematizar o estatuto mesmo da atividade cognitiva. Pois se ao abraçar a representação, como objeto próprio, essa sociologia já realiza, por conta própria, a sujeição das diferenças; e se, ao se reportar à gênese das representações, realiza a repetição nua do empírico no transcendental, quando se trata de tematizar a atividade cognitiva enquanto tal, Durkheim, enquanto sociólogo maior, parece literalmente enfiar a árvore de porfírio na cabeça dos sujeitos cognoscentes. Afinal, “pensar conceitualmente não é simplesmente isolar e agrupar juntos as categorias comuns a certo número de objetos, é subsumir o variável no permanente, o individual no social”.414 Ou seja, não bastou definir a representação e “sua dupla exclusão”, nem, muito menos realizar a todo vapor as sucessivas repetições do empírico no fundamental, muito antes, pareceu necessário, para não conceder espaço as diferenças anárquicas e dissonantes, conceber a própria atividade cognitiva como a subsunção do diferente no idêntico. Em outras palavras, pareceu candente a necessidade de subsumir a sociologia menor, ou as suas possibilidades, nesse enfoque maior, quase régio. Se, de fato, os conceitos são na maioria das vezes ideias gerais, se exprimem categorias e classes em vez de objetos particulares, é que as categorias singulares e variáveis dos seres só raramente interessam a sociedade; em razão mesmo de sua extensão, ela praticamente 414. 

[1912a] As Formas Elementares, p.488.

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só pode ser afetada pelas propriedades gerais e permanentes desses seres. Assim, é para aí que se volta a sua atenção: faz parte de sua natureza ver as coisas por grandes massas e sob o aspecto que elas têm mais geralmente.415

Na subsunção do variável no permanente e das pequenas singularidades nos grandes gêneros, essa sociologia vai demonstrando todo o seu vigor enquanto captura dos devires infinitesimais e das variações singulares. O mesmo vale para a forma através da qual as representações são repartidas no espaço e distribuídas no tempo. Se, como vimos anteriormente, Durkheim, retomando Kant, postula a anterioridade de um espaço e de um tempo com relação às representações – lhes servindo, antes, de condições de possibilidade – isso não implica apenas a abertura para pensar as repetições do empírico no transcendental. Se é o tempo calendarizado da sociedade, assim como o espaço aberto pela morfologia do grupo que determinam os a prioris das representações possíveis, isso não significa apenas a redução do horizonte transcendental aos elementos fáticos. Significa, também, que toda sorte de acontecimentos (espaciais e temporais) encontram-se submetidos a uma métrica não somente hierarquizada e estabelecida de maneira heterogenética, mas que realiza, sobretudo, uma função de captura da pluralidade. Nesse sentido, tudo aquilo que pudesse ser dado numa representação, somente o seria com a ressalva de obedecer a um espaço e a um tempo prévios – com suas coordenadas próprias – responsáveis por delimitar o escoamento das representações. Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que a sociologia maior, com seu enfoque representativo, seus a prioris empíricos e seu esforço de subsumir o singular no genérico, seria tributária de um modelo que, para utilizar uma expressão extraída da arquitetura, produziria os seus enunciados indo da cifra ao traço. Isto é, concebendo um conjunto de coordenadas que, uma vez estabelecidos, determinariam, de antemão, o curso dos devires. Tudo se passaria como se ao invés 415. 

Ibid., p.483.

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do fluxo das águas determinarem o leito dos rios, uma arquitetura prévia, ou melhor, uma espécie de engenharia civil, delimitasse, com diques e barragens, o espaço através do qual as águas e os seus fluxos pudessem evoluir. Ou, para falar de um tema mais próximo dos objetos tipicamente sociológicos, seria como se a sociedade civil, nos momentos de efervescência que lhes são típicos, se visse confinada a um arranjo institucional – que delimita o espaço e arregimenta o tempo – através dos quais ela pudesse plasmar as suas demandas. Em suma, uma defesa do controle do espaço e do tempo que, por corolário, estende-se a totalidade da vida social, por parte de uma instância de captura disposta a “neutralizar”, isto é, normalizar e centralizar as instâncias da vida social que, por conta própria, gravitariam ao sabor da sua diferença mais peculiar. Fazendo a transposição – no interior da sociologia maior, ou régia – da metafísica da representação à “física da canalização”, Durkheim não poderia ser mais claro no que se refere ao sacrifício dos fluxos menores ao turbilhão centrípeto dos aparelhos de captura. Afinal, é preciso que ele [o Estado] desenvolva energias proporcionais àquelas a que deve fazer contrapeso. É preciso até que ele penetre todos aqueles grupos secundários – família, corporação, igreja, distritos territoriais, etc. - que tendem, como vimos, a absorver a personalidade de seus membros, e isso a fim de prevenir essa absorção, a fim de libertar esses indivíduos, a fim de lembrar essas sociedades parciais que elas não estão sozinhas e que há um direito acima dos direitos delas. É preciso, portanto, que o Estado se imiscua em sua vida, vigie e controle a maneira pela qual elas funcionam, e, para isso, que estenda suas ramificações em todos os sentidos. Para cumprir essa tarefa, ele não pode fechar-se nos pretórios dos tribunais, é preciso que esteja presente em todas as esferas da vida social, fazendo sentir a sua ação. Por toda a parte em que se encontram essas forças coletivas particulares, que se ficassem sozinhas e abandonadas a si mesmas arrastariam o indivíduo a depender exclusivamente delas, é preciso que o Estado esteja presente para neutralizá-las. Ora, as sociedades tornam-se cada vez mais consideráveis e complexas, são

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feitas de círculos cada vez mais diversos, de órgãos múltiplos que por si sós já são de um valor considerável. Para cumprir sua função, é preciso que o Estado também se amplie e se desenvolva nas mesmas proporções.416

Assim, ao que parece, quanto mais próximo o sociólogo foi chegando dos fluxos singulares e dos devires diferençados, mais apto se tornou a reputá-los a uma instância de controle central. Seja através do espaço e do tempo prévios que orquestram de antemão o jogo das representações; seja através da repetição do empírico no transcendental que faz com que quanto mais as coisas mudem mais elas permaneças as mesmas – num movimento de sanção pelo fático onde tudo aquilo que se desvia da norma, entendida como padrão médio regulador, é apresentado como suicídio, loucura, crime e etc. –; seja através desse reporte das segmentaridades singulares à centralidade do Estado, tudo se passa como se a sociologia trabalhasse em surdina – ainda que com todos os seus ruídos – para sacrificar as diferenças no altar sacrossanto das identidades. Mas dizer tudo isso não implicaria numa espécie de contradição performativa? Afinal não implicaria numa espécie de redução da sociologia à identidade de uma ciência maior? Ou, antes, a sociologia, inclusive a sociologia durkheimiana, não conhece ela mesma os seus devires minoritários? 3. Sociologia Menor de Émile Durkheim Argumentei sobre as vicissitudes identitárias da sociologia durkheimiana através de um aporte baseado nos escritos arqueológicos de Foucault. No que segue, procurarei acertar as contas com esse tipo de aporte, avançando, paralelamente, um conjunto de reflexões sobre a ciência menor de Durkheim. Questionando se, em alguma medida, o argumento arqueológico, centrado como é na questão do Mesmo, não acabaria por performar aquilo mesmo que critica, procurarei salientar que não se pode, sem riscos para a questão da dife416. 

[1950a]. Lições de Sociologia, p.92.

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rença, reduzir a proliferação de discursos veiculados no interior de uma disciplina – e, mais no que isso, em uma dada cultura – a uma única episteme. Nesse sentido, procurarei mostrar que, além da sociologia ser irredutível a um único a priori histórico – que no caso do argumento foucaultiano seria o homem e seus duplos –, a própria sociologia durkheimiana seria, ela mesma, uma multiplicidade. Mesmo que o propósito não seja o de fazer proliferar os “múltiplos Durkheim(s)”417, procurarei mostrar que no subterrâneo da “sociologia dos grandes conjuntos” opera uma sociologia menor, responsável pela vitalidade do social. Mais do que isso, afirmarei que é justamente através dessa sociologia menor – articulada em torno dos conceitos de associação e segmentaridade – que Durkheim consegue avançar o argumento ontológico que permite definir o social como realidade sui generis, para além das aporias inerentes às sujeições antropológicas – o homem e seus duplos – e do dogmatismo. Até agora a estratégia discursiva desenvolvida por Foucault foi de grande serventia. Através das noções de episteme e de a priori histórico foi possível identificar e isolar as matrizes discursivas que, a princípio, estruturavam e estruturam a proliferação dos discursos, sobretudo no que se refere à sociologia como ciência humana. No entanto, no conjunto argumentativo das seções anteriores, diante das fundações arqueológicas descobertas acerca da sociologia, antecipando o seu desfecho, uma questão parecia se nuançar: ou bem recusávamos as possibilidades de uma ciência menor, ou então deveríamos abraçar as diferenças e recusar, de antemão, o ofício de sociólogo. Contudo, como todo nó górdio pressupõe a “espada alexandrina”, uma colocação assim tão calcada no contraste “preto e branco” – incorporando o jogo dos contrários inconciliáveis, ou/ou – não 417.  Bastaria para isso afirmar com Lukes: “há o Durkheim dos sociólogos (fortemente colorido pela interpretação Parsoniana), o Durkheim dos antropólogos sociais (originalmente esboçado por Radcliffe-Brown, mas progressivamente redesenhado desde então), o Durkheim da teoria da anomia (derivado de Merton e dos estudos sobre suicídio), o Durkheim dos criminologistas e o Durkheim dos psicólogos sociais, o Durkheim dos sociólogos da educação e o Durkheim dos ecologistas humanos, Durkheim o sociólogo do conhecimento e, mais recentemente, o pré-estruturalista Durkheim.” (LUKES, 1973, p.3)

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poderia deixar de suscitar uma resposta arbitrária. Conquanto a sociologia fosse uma ciência maior, a diferença quedaria crucificada pela identidade, assim como as formas amarrariam o devir dos fluxos antes mesmo da sua proliferação. Não obstante, ainda assim, quedaria aberta a possibilidade do seguinte questionamento: a estratégia discursiva que procura delimitar a episteme a partir da qual os saberes puderam ser construídos não padece dos mesmos vícios que critica? Ou melhor, não seria a arqueologia um procedimento tão tributário à história do Mesmo, tal qual a episteme da modernidade criticada por Foucault, a partir das sujeições antropológicas? O primeiro indício de que estaríamos diante de mais um avatar identitário, que reduz a proliferação dos discursos a uma matriz anterior – espécie de princípio gerador – nos é oferecida por Foucault quando diz: “Numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que define as condições de possibilidade de todo saber. Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele que é silenciosamente investido numa prática” (FOUCAULT, 2002, p.230). Assim, Foucault, à moda dos estruturalistas, não faria outra coisa senão isolar uma espécie de estrutura oculta – ainda que nunca dada, isto é, sempre deduzida – disposta a funcionar como um dispositivo gerador de práticas, ainda que se tratem de práticas discursivas. Quando Foucault define determinações tais como a morte, o desejo, o trabalho, o jogo, não as considera como dimensões da existência humana empírica, mas antes como a qualificação de locais ou de posições que tornarão mortais e “morrentes”, ou desejantes, ou trabalhadores, ou jogadores aqueles que virão ocupá-los; mas que só virão ocupá-los secundariamente, desempenhando seus papéis segundo uma ordem de vizinhança que é a da própria estrutura. É por isso que Foucault pode propor uma nova repartição do empírico e do transcendental, sendo este último definido por uma ordem de locais independentemente daqueles que os ocupam empiricamente. O estruturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova, em que os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche. Pai, mãe etc. são antes lugares numa estrutura; e, se somos mortais,

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é entrando na fila, vindo a tal lugar, marcado na estrutura segundo esta ordem topológica das vizinhanças (mesmo quando antecipamos nossa vez). (DELEUZE, 1974).

Seguindo o mesmo modelo através do qual a cifra precede o traço e o dique determina o fluxo, Foucault, com os óculos da ciência maior, jamais poderia vislumbrar as possibilidades da sociologia como ciência menor. Preocupado com a estrutura oculta que, mesmo variando historicamente, uma vez consolidada torna-se absoluta para o período, o autor da História da Loucura, enquanto vinculado aos procedimentos da arqueologia, não poderia ter as condições para tematizar a proliferação nomádica – isto é, desvencilhada de uma episteme constitutiva das possibilidades através das quais os discursos poderiam ser veiculados – inerente a um conjunto de práticas e discursos, através dos quais um campo do saber pôde, mais do que se consolidar, delinear-se. Mas ao dizer isso não estaríamos sendo duros e injustos com o filósofo francês? Não seria exagerado imputar a um filósofo, gestado no seio da epistemologia de Bachelard e Canguilhem, tão afeito às noções de ruptura e corte epistemológico, o epíteto de “continuador do lento monólogo do mesmo”? Nada seria mais equivocado do que ver no procedimento arqueológico uma história identitária onde a mesma forma se desdobraria a partir da complexificação das figuras. Não poderíamos estar mais longe do modelo hegeliano. Como vimos, Foucault é extremamente crítico à epistemologia continuísta – recorrendo a nada mais do que duas rupturas epistemológicas para demarcar o que seria o “próprio da modernidade”. Nesse sentido, estaríamos longe desse monólogo do mesmo onde a Ideia desdobra-se na história – seja na sua versão angélica, na qual vai-se da bela totalidade ao espírito reconciliado, seja na sua versão infernal que vai da atiradeira à bomba de mil megatons. Muito antes, estaríamos no terreno descontinuado onde a episteme da modernidade coloca-se radicalmente como deveniente de uma ruptura diante da episteme clássica que, por sua vez, mostrava-se

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completamente irredutível à episteme do Renascimento. Chamando Foucault para advogar em causa própria poder-se-ia dizer que: A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas. (FOUCAULT, 2008, p.214).

Em que sentido poder-se-ia dizer então que o procedimento arqueológico – que não se caracteriza pela ficção de origem, pela crônica dos acontecimentos, ou pela celebração dos founding fathers – se resolve no elemento identitário? Como visto, por mais que o Foucault da arqueologia dedique os seus esforços ao abandono da filosofia da consciência – substituindo o “eu penso”, por algo pensa em mim, no sentindo de estabelecer, numa esfera irredutível ao cogito, as matrizes discursivas que possibilitam toda e qualquer forma de saber – ao seguir a senda do estruturalismo, ele acabou por não fazer outra coisa senão instaurar uma espécie de “kantismo sem sujeito”, na qualidade de uma nova “filosofia transcendental”, para falar com Deleuze. Ou seja, colocando a episteme como matriz discursiva que arregimenta a proliferação dos discursos no campo do saber, Foucault apenas modificou o estatuto do transcendental legado por Kant, instaurando, dessa maneira, um novo aparelho de captura. Essa tendência, ou melhor, esse esforço de capturar a proliferação dos discursos possíveis através da sua referência a uma episteme específica é justamente aquilo que acabou fazendo do projeto arqueológico, a despeito de si mesmo, um infortunado discurso sobre o Mesmo. Assim, mesmo que liberado de uma racionalidade trans histórica, ou mesmo de uma filosofia da consciência, o procedimento arqueológico, por fiar-se no enfoque estrutural, acabou por relegar os “saberes sujeitados” – esses saberes que passam ao largo dos a prioris descobertos pela arqueologia – ao esquecimento. É nesse sentido que uma possível “sociologia menor”, se olhada a partir dos investimentos arqueológicos, pareceria, mais e mais, um esforço extemporâneo.

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Dando-se conta das aporias inerentes ao enfoque arqueológico418, Michel Foucault remaneja seus investimentos que passam então a centrar-se no procedimento genealógico419. É justamente visando fazer jus a esses “saberes sujeitados” – isto é, os saberes que, diante da consolidação de uma determinada episteme, são considerados menores, ao ponto de não lhes serem concedidos qualquer estatuto de relevância – que a genealogia definir-se-á como uma espécie de “história política da verdade”. Não mais recorrer-se-á ao discurso englobante da episteme e, cada vez mais, far-seá a história do saber como um desdobramento inerente às relações de poder. É nesse terreno que Foucault procurará, cada vez mais, focalizar os seus investimentos para mostrar que a verdade não é o oposto do poder, mas um elemento da sua trama. Procurando enfatizar que “a genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações” (FOUCAULT, 1979, p.23), o filósofo de Poitiers procurará, doravante, romper a cristalização dos regimes de verdade para mostrar que esses regimes, longe da paz sancionada oferecida pelo englobamento da episteme, não são outra coisa senão a codificação do resultado da batalha. Trata-se de redescobrir o sangue que secou nos códigos, e, por conseguinte, não, sob a fugacidade da historia, o absoluto do direito: não reportar a relatividade da historia ao absoluto da lei ou da verdade, mas, sob a estabilidade do direito, redescobrir o infinito da historia, sob a fórmula da lei, os gritos de guerra, sob o equilíbrio da justiça, a dissimetria das forças. Num campo histórico, que nem sequer se 418.  Segundo Dreyfus e Rabinow, a arqueologia viu-se enredada numa trama aporética, sendo suplantada, por isso, pelo procedimento genealógico, não somente em virtude dos nuances apontados aqui, mas, também, pelo fato de endossar uma espécie de hipótese do discurso autorreferente, o que implicaria num fechamento da linguagem sobre si mesma. Cf. DREYFUS; RABINOW, 1995, em especial o capítulo IV. 419.  Embora Foucault, em um curso do Collège de France, aqui citado, aproxime o procedimento genealógico da arqueologia, creio que a diferença entre os dois procedimentos não seja objeto de polêmica. Sobretudo se vinculada à discussão que aqui se propõe, a diferença entre a arqueologia e a genealogia não poderia ser maior.

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pode dizer um campo relativo, pois ele não se relaciona com nenhum absoluto, e um infinito da história que é de certo modo “irrelativizado”, o da eterna dissolução em mecanismos e acontecimentos que são os da força, do poder e da guerra. (FOUCAULT, 2005, p.66).

Longe do simples gosto pela beligerância, pelo conflito e pelo poder, o enfoque genealógico poderia, com efeito, ser lido a partir de um deslocamento incessante entre a ética e política. Não que se deva ver nisso a vontade de estabelecer um novo critério normativo para o tratamento da questão, fazendo da ética um baluarte para o esquecimento da dimensão política de toda episteme; trata-se, muito antes, do reconhecimento do compromisso genealógico com os saberes sujeitados. Em poucas palavras, poder-se-ia definir o aspecto ético da genealogia como o procedimento que visa resgatar a “ciência menor” do esquecimento ao qual foi relegada através da delimitação da episteme das ciências humanas como um campo somente habitável por investimentos maiores. A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais – “menores”, talvez dissesse Deleuze – contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. (FOUCAULT, 2005, p.15).

Esse esforço de “liberar” os saberes menores das amarras do saber régio, já foi tentado – e com muito sucesso – no terreno da sociologia. Procurando encontrar uma saída diante da sociologia dos grandes conjuntos – isto é, da sociologia durkheimiana abordada nos seus aspectos de ciência maior –, Eduardo Viana Vargas (2000), através de uma argumentação rigorosa e preocupada com o problema das diferenças e dos detalhes infinitesimais, encontrou na sociologia de

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Gabriel Tarde o remédio necessário para desvincular a sociologia de um enfoque estritamente régio, ou maior. Nesse sentido, enquanto a sociologia de Durkheim representava o enfoque maior, articulado com os valores políticos do Estado, isto é, dos ímpetos pedagógicos atinentes ao esforço da Terceira República em estabelecer uma moral laica como sustentáculo da vida social, num contexto em que a teologia perdeu a sua força vinculante; poderíamos ver em Tarde todo um esforço “menor” de captar os detalhes e as diferenças infinitesimais que compõem a vida social. Se, como se diz, a sociologia ganhou o estatuto de disciplina cientifica principalmente em razão das ações politico-acadêmicas e do pensamento de Durkheim, cabe agora investigarmos o que Durkheim manteve impensado, investigando, ainda que minimamente, o que se perdeu no caminho da sociologia em direção à ciência e à modernidade. Entre outras paisagens abandonadas pelo caminho, isso nos leva a Gabriel Tarde e à sua microssociologia. (VARGAS, 2000, p.161)

É fácil notar a verve genealógica derramando-se nas entrelinhas da primeira parte do trabalho de Vargas. Teríamos assim o reconhecimento do sucesso da “sociologia maior” de Durkheim – suplantando, através da sua institucionalização enquanto ciência, toda sorte de devires minoritários, doravante defenestrados do campo da sociologia – como uma espécie de signo da “hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos”; assim como a dos saberes menores, propalados, então, como uma saída diante do enfoque régio. Nesse sentido, por que não seguir a senda aberta por Vargas e mostrar que, ao lado, ou abaixo, da sociologia maior de Émile Durkheim habita um gigante dos fluxos menores chamado Gabriel Tarde? Ou antes, dado que Vargas já realizou tal investimento, por que não sondar as “outras paisagens abandonadas pelo caminho”? Por que não sondar, a respeito de Simmel e sua dialética das formas, a possibilidade de um conflito entre sociologias maiores e menores? Em suma, por que seguir com Durkheim, mesmo quando a tarefa parece nos encaminhar para longe ou mesmo na direção oposta de Durkheim?

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A resposta é, ao mesmo tempo, simples e estratégica. Acredito que seguir a senda de uma sociologia menor num autor majoritariamente conceitualizado como maior implica em duas apostas interessantes: em primeiro lugar, penso que mostrar que no próprio conjunto teórico durkheimiano existe uma sociologia menor implica, por um lado, no reconhecimento da abertura inerente ao enfoque maior, para dinâmicas menores – enfatizando que o vampiro não existe sem o sangue fresco –; e, em segundo lugar, implica na tentativa de evitar os investimentos epistêmicos que desconsideram a tensão inerente e constituinte da proliferação dos discursos no interior de uma mesma problemática. Mas isso ainda não toca no cerne do problema. O maior interesse em seguir com Durkheim, ao invés de voltar os olhos para “outras paisagens”, consiste em evitar a proliferação de dualismos indesejáveis. Dizendo diretamente, o que aqui se pretende é lançar luz sobre os devires menores que compõem a sociologia de Durkheim, sem, com isso, cair na dicotomia “macro” vs. “micro”. Por mais que tais proliferações dicotômicas tenham a vantagem de apontar para os pontos cegos de um ou de outro enfoque, em última ratio, esse tipo de procedimento acaba inviabilizando a tematização da unicidade da vida social. Assim, qualquer linha de argumentação que seguisse o viés dicotômico, por mais que conseguisse articular, de um lado, as grandes representações, a identidade, a ação centrípeta da norma e, de outro, as riquezas infinitesimais da proliferação de detalhes, os fluxos, a variação, a diferença, etc., só o faria enquanto perdesse de vista a unidade ontológica do social. É tudo o que se procura evitar aqui. Afinal, se as diferenças devem se fazer presentes, não devem contudo, ser relegadas a um segmento especial da vida social – espécie de área para fumantes – onde seriam “toleradas”. Muito antes, devem ser consideradas como um aspecto constitutivo do devir da sociedade enquanto tal. Dito isso, cabe a pergunta: haveria, ao fim e ao cabo, uma sociologia menor em Durkheim? Antes de responder a essa questão, peço licença ao leitor para inserir um pequeno excurso sobre diferença e sociologia menor.

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Pequeno Excurso: Do Traço à Cifra – Diferença e Sociologia Menor Pode-se dizer, sem risco de exagero, que o desenvolvimento de uma filosofia da diferença resume boa parte dos esforços e dos investimentos teóricos de Gilles Deleuze e, na medida em que ajudam a colocar a questão que aqui esta sendo trabalhada, os seus investimentos teóricos serão de grande serventia. Longe de perder-se na discussão ou no comentário de sua obra dois conceitos serão elencados de maneira privilegiada. Plano de Imanência e Plano de Desenvolvimento, ou transcendência. É justamente na questão dos planos e sua articulação com a diferença, na qualidade da proliferação das multiplicidades, que a filosofia deleuzeana oferece todo o aporte para o devir de uma sociologia da diferença. Deleuze desenvolve a noção de plano em contato estreito com a filosofia de Baruch de Spinoza. Para ele, Spinoza teria sido o único filósofo a desenvolver uma verdadeira ontologia. Evitando que a discussão ontológica descambasse para a teologia, devindo, então, em onto-teo-logia, para usar os termos de Heidegger, Spinoza teria se desvencilhado de toda a sorte de elementos emanacionistas. Todavia seja praxe associá-lo à máxima, proferida por ele mesmo, Deus Sive Natura420, contudo, para uma boa compreensão da questão da imanência em Spinoza421, não se pode fazer, como certa vez Goethe o quis, desse Deus uma substância da qual emergem os modos. Ainda que Spinoza comece, na Ética, a desenvolver sua ontologia a partir de Deus, enquanto substância, entendendo por substância aquilo que existe e é concebido por si mesmo422, não se pode, sem equívoco, confundir aquilo que constitui uma primazia lógica com uma suposta primazia ontológica. Para Spinoza, Deus não existiria à maneira de uma idealidade, como o Bem, por exemplo, em situação 420  Deus, isto é, a Natureza. 421.  Elemento imprescindível para a colocação da questão dos planos. 422.  “Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado. […] Por Deus compreendo um ente absolutamente infitino, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita” (SPINOZA, 2011, p.12)

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de anterioridade com relação às coisas por ele instaurada. Embora Deus exista enquanto natureza naturante – isto é, instância produtora de realidade – e natureza naturada – isto é, constituição constituída da objetalidade, enquanto mundo – é um único e mesmo Deus que se desdobra em duas facetas. Isso implica dizer que Deus, para Spinoza, embora seja a instância última, ens realissimus, e deva ser concebido por si mesmo, não pode ser entendido como uma realidade apartada do mundo, espécie de essência pessoal e volitiva responsável pela criação. É justamente por essa imbricação inelidível entre Deus e o mundo, onde Deus ao produzir a realidade produzir-se-ia a si mesmo, que a essência de Deus pode ser equiparada, ou melhor, assimilada a sua potência. “A potência de Deus é a sua própria essência” (SPINOZA, 2010, p. 40).423 Para melhor compreender no que consiste essa filosofia da imanência, talvez, não seja sem proveito uma contraposição com o modelo emanacionista. No modelo emanacionista, ocorre efetivamente a subordinação dos entes a uma realidade suprema. Para além da temporalidade, haveria a simples presença. Mais importante do que isso, haveria uma essência, no caso, o Bem, disposta a ensejar os entes, a partir da emanação. Nesse modelo, a relação do ser, do Bem, com os entes é pensada a partir de duas ordens: a distribuição e a participação. Numa dialética descendente, o Bem, distribui realidade aos entes; numa dialética ascendente, os entes participam do Bem. Entre distribuição e participação o modelo emanacionista vai desenvolvendo uma ontologia hierarquizada. Assim como há uma subordinação dos entes ao Bem – respondendo pela questão da distribuição – há, de outro lado, uma hierarquia entre os próprios entes – hierarquia que responde aos graus de participação no ser, maior ou 423.  Com efeito, como bem demonstrou Macherey, essa proposição conclui o duplo movimento da primeira parte da Ética, o primeiro sendo consagrado até a proposição 15 à essência de Deus (in Deo), o segundo ao estudo de sua potência (a Deo): existe nessa articulação “primazia racional da consideração do in se sobre a do a se, mas sem que essa prioridade deva ser projetada à maneira de uma relação de anterioridade na ordem de uma sucessão temporal, como se Deus existisse antes das coisas que dependem dele, e, portanto, também sem elas, estas constituindo no mesmo ato a emanação ulterior, como supõe as teorias criacionistas (MIQUEU, 2009, p.134 n. 65)

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menor perfeição. Não estamos, aqui, diante de outra coisa que não de um mundo onde as diferenças são hierarquizadas424.] A emanação, em geral, se apresentará sob a forma de uma tríade: o doador, aquilo que é doado e aquilo que recebe. Participar é sempre participar de acordo com aquilo que é dado. Logo, não devemos apenas falar de uma gênese do participante, mas de uma gênese do próprio participado, que dá conta do fato de que ele é participado. Gênese dupla, daquilo que é dado e daquilo que recebe: o efeito que recebe determina sua existência quando possui plenamente aquilo que lhe é dado; mas só o possui plenamente ao se voltar para o doador. O doador é superior a seus dons, assim como a seus produtos, participável segundo aquilo que dá, imparticipável nele mesmo, ou segundo ele mesmo; e é através disso que funda a participação. (DELEUZE, 1968, p.117).

Vê-se, portanto, que o princípio da participação e o da distribuição, ou doação, impede o desenvolvimento de uma verdadeira ontologia. O plano do ser é segmentado de uma forma bastante específica de modo a instaurar uma espécie de cesura entre o Uno e o múltiplo, dando ensejo à formação de um princípio de organização talhado na exterioridade daquilo a que viria organizar. Em suma, instaurar-se-ia um “plano de transcendência ou de desenvolvimento”. Há duas concepções bem opostas da palavra “plano”, ou da idéia de plano, mesmo quando essas duas concepções se misturam e quando nós passamos insensivelmente de uma para a outra. Chamamos plano teológico toda organização que vem de cima e diz respeito a uma transcendência, mesmo oculta: desígnio no espírito de um deus, mas também evolução nas profundezas supostas da Natureza, ou ainda organização de poder de uma sociedade. Tal plano pode 424.  “A emanação serve portanto de princípio para um universo hierarquizado; a diferença dos seres é, em geral, concebida aí como diferença hierárquica; é como se cada termo fosse aí a imagem do termo superior que o precede, e se definisse pelo grau de distanciamento que o separa da causa primeira do primeiro princípio.” (DELEUZE, 1968, p. 118).

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ser estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo; ele se refere sempre a formas e a seus desenvolvimentos, a sujeitos e a suas formações. Desenvolvimento de formas e formação de sujeitos: é o caráter essencial dessa primeira espécie de plano. É, pois, um plano de organização e de desenvolvimento. Desde logo, será sempre, independentemente do que se diga, um plano de transcendência que dirige tanto as formas quanto os sujeitos, e permanece oculto, que nunca é dado, que deve apenas ser adivinhado, induzido, inferido a partir do que ele oferece. Ele dispõe, de fato, de uma dimensão a mais, implicando sempre uma dimensão suplementar às dimensões daquilo que é dado. (DELEUZE, 2002, 133).

É justamente contra esse plano teológico de realidades transcendentes que Spinoza ergue o seu plano de imanência. Ao contrário, um plano de imanência não dispõe de uma dimensão suplementar: o processo de composição deve ser captado por si mesmo, mediante aquilo que ele dá, naquilo que ele dá. É um plano de composição, e não de organização nem de desenvolvimento. Talvez as cores ilustrem o primeiro plano, enquanto a música, os silêncios e os sons pertençam a este último. Não há mais formas, mas apenas relações de velocidade entre partículas ínfimas de uma matéria não formada. Não há mais sujeito, mas apenas estados afetivos individuantes da força anônima. Aqui, o plano só retém movimentos e repousos, cargas dinâmicas afetivas: o plano será percebido como aquilo que ele nos faz perceber, passo a passo. Não vivemos, não pensamos, não escrevemos da mesma maneira num e noutro plano. Por exemplo, Goethe, e mesmo Hegel sob certos aspectos, puderam passar por espinosistas. Mas não o são verdadeiramente, visto que nunca deixaram de vincular o plano à organização de uma Forma e à formação de um Sujeito. (DELEUZE, 2002, 133).

O plano de imanência traçaria, assim, um diagrama onde as relações de velocidade e lentidão dos fluxos e as composições de potência não cumpririam desígnios de uma ordem superior. Longe de se

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vincular a um modelo onde o devir é agenciado por uma espécie de plano de desenvolvimento, onde as formações sucessivas não seriam outra coisa senão a reiteração, ainda que complexificante, do sempre mesmo, o plano da imanência comporta-se como uma espécie de composição musical. Ou seja, relações de velocidade e lentidão, tensões e distensões, onde a harmonia não pode ser preestabelecida de antemão. Retomando um modelo já usado nesse texto, poder-se-ia dizer que, enquanto no plano de desenvolvimento vamos da cifra ao traço, no plano da imanência vamos do traço à cifra. Com isso, a questão da diferença é reafirmada pela ontologia imanente. Ou seja, é no plano da imanência que os agenciamentos rizomáticos, de desejo e enunciação, liberam todo o seu volume, num devir “difereçante” onde identidades efêmeras só encontram lugar enquanto decalque dos fluxos. Como veremos, é justamente aí, na passagem incessante de um plano para outro – da imanência, para a transcendência, do rizoma para árvore e do mapa para o decalque – que enraizar-se-ia todo o projeto de uma sociologia articulada com a questão das diferenças. Contudo, antes de passar para o platô propriamente sociológico, seria interessante refletir um pouco mais sobre essa questão dos planos em Deleuze. Se com Spinoza Deleuze encontra uma ontologia capaz de repor a questão das diferenças, nos Mil Platôs, sobretudo no capítulo sobre micropolítica e segmentaridade, o filósofo realizaria junto a Félix Guattari, um tipo de torção que aproximaria essa questão eminentemente filosófica de um aporte sociológico. Em suma, é nesse momento da obra que os autores delineiam os elementos para uma “cartografia de uma sociologia menor”. No capítulo sobre Micropolítica e Segmentaridade dos Mil Platôs, Deleuze & Guattari não só apresentam argumentos que aproximam seu enfoque filosófico da sociologia, inclusive citando Durkheim425 e Gabriel Tarde, como avançam na questão dos dois planos (imanência e desenvolvimento) abordando-os nas suas relações mútuas. 425.  Deleuze e Guattari fazem uma leitura muito pobre da obra de Durkheim. Curiosamente, não enxergaram as “linhas de fuga” presentes na obra do sociólogo francês.

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Borrando desde o começo as supostas fronteiras que ensejariam um dualismo, os autores iniciam o capítulo sobre micropolítica, afirmando uma segmentaridade radical. “Somos segmentarizados426 por todos os lados e em todas as direções”. Com a colocação da questão da segmentaridade, torna-se possível trazer o aporte ontológico das reflexões anteriores para o terreno da sociologia. Nesse platô, é possível retomar toda a discussão sobre a questão da diferença observando como Deleuze e Guattari desenvolvem uma concepção da sociedade a partir da passagem incessante dos fluxos para os códigos, através de processos de codificações, descodificações e sobrecodificações e de territorializações, desterritorializações e reterritorializações. Com efeito, com a noção de segmentaridade esboroa-se a oposição entre o segmentário e o centralizado. Como já tínhamos visto, não se trata, tão somente, de afirmar a potência dos fluxos e dos devires moleculares contra o poder das cristalizações, digo, recodificações molares. Na medida em que não se trata apenas de um manifesto pela proliferação caótica das anarquias coroadas, mas, também, de uma teoria (social) engajada na compreensão da produção social, a tarefa de tematizar os fenômenos de descodificação e recodificação e, sobretudo, as suas mútuas relações, não pode ser elidida do horizonte teórico. 426.  A noção de segmentaridade foi tomada de empréstimo da etnologia e pode ser definida da seguinte maneira. “O fato é que a noção de segmentaridade foi construída pelos etnólogos (sobretudo, Meyer Fortes, sobre os Tallensi e Evans-Pritchard sobre os Nuers) para dar conta das sociedades ditas primitivas, sem aparelho central fixo, sem poder global nem instituições políticas especializadas. Os segmentos sociais têm neste caso uma certa flexibilidade, de acordo com as tarefas e as situações, entre os dois pólos extremos da fusão e da cisão; uma grande comunicabilidade entre heterogêneos, de modo que o ajustamento de um segmento a outro pode se fazer de múltiplas maneiras; uma construção local que impede que se possa determinar de antemão um domínio de base (econômico, político, jurídico, artístico); propriedades extrínsecas de situação ou de relações, irredutíveis às propriedades intrínsecas de estrutura; uma atividade contínua que faz com que a segmentaridade não seja captável independentemente de uma segmentação em ato que opera por impulsos, desprendimentos, junções. A segmentaridade primitiva é, ao mesmo tempo um código polívoco, fundado nas linhagens, suas situações e suas relações variáveis e a de uma territorialidade itinerante, fundada em divisões locais emaranhadas. Os códigos e os territórios, as linhagens de clãs e as territorialidades tribais organizam um tecido de segmentaridade relativamente flexível.

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É nesse sentido, o da ruptura com a dicotomia segmentário x centralizado, que a noção, mesma, de segmentaridade é chamada a desempenhar o seu papel. Ao contrário de qualquer dualismo, o objetivo do investimento operado através dessa noção é mostrar que não existem sociedades, por mais cristalizadas e institucionalizadas que sejam, que não se apresentem no seu caráter segmentário. Assim, a tarefa de explicar a sobrecodificação dos fluxos passa, então, a ser articulada em torno de distinções mais sutis. Não se poderia mais opor uma sociedade de fluxos segmentários a uma sociedade de cristalizações centralizadas.427 Muito antes, trata-se de pensar a codificação, descodificação e sobrecodificação dos fluxos a partir mesmo da segmentaridade. “Em suma, tem-se a impressão de que a vida moderna não destituiu a segmentaridade, mas que ao contrário a endureceu singularmente” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.79). A segmentaridade torna-se dura, na medida em que todos os centros ressoam, todos os buracos negros caem num ponto de acumulação — como um ponto de cruzamento em algum lugar atrás de todos os olhos. O rosto do pai, do professor primário, do coronel, do patrão se põe a redundar, remetendo a um centro de significância que percorre os diversos círculos e repassa por todos os segmentos. As microcabeças flexíveis, as rostificações animais são substituídas por um macro-rosto cujo centro está por toda parte e a circunferência em parte alguma. Não se tem mais n olhos no céu ou nos devires vegetais e animais, mas sim um olho central computador que varre todos os raios. O Estado central não se constituiu pela abolição de uma segmentaridade circular, mas por concentricidade dos círculos distintos ou por uma ressonância dos centros. Existem já nas sociedades primitivas tantos centros de poder quanto nas sociedades com Estado; ou, se preferimos, existem ainda nas sociedades com Estado tantos centros de poder quanto nas primitivas. Mas as sociedades com Esta427.  Portanto, “mais do que opor o segmentário e o centralizado, seria preciso então distinguir dois tipos de segmentaridade: uma “primitiva” e flexível, a outra “moderna” e dura” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.79).

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do se comportam como aparelhos de ressonância, elas organizam a ressonância, enquanto que as primitivas as inibem. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.80).

No lugar de opor o segmentário e o centralizado, Deleuze e Guattari passam a tematizar o endurecimento da segmentaridade como resposta ao problema da sobrecodificação e reterritorialização. Haveria, por assim dizer, a emergência de um ponto de acumulação, uma instância de captura que, partindo da segmentaridade mesma, instauraria uma relação de forças, tipicamente centrífuga, fazendo convergir para si, como centro ou caixa de ressonância, a totalidade dos segmentos. Os autores chegam até a desenvolver uma história universal do ponto de vista da contingência baseado nessas noções. Tudo se passa como se das conexões já desgastadas dos códigos de segmentaridade primitivos – códigos esses que inibem a ressonância – emergisse uma sobrecodificação dura que, operando por conjunção, erigiria uma espécie de instância central em torno da qual passariam a gravitar as demais segmentaridades. Poder-se-ia dizer que da descodificação e desterritorialização dos códigos e territorialidades tribais emergir-se-ia, a partir da constituição por conjugação, um ponto de acumulação responsável pelo bloqueio e captura das linhas de fuga, respondendo, assim, ao problema do endurecimento das segmentaridades. No entanto, tão interessante quanto possa ser, essa suposta história universal do ponto de vista das contingências é, para os limites da reflexão desenvolvida aqui, de somenos importância. O importante é a articulação entre o problema da ordem e da transformação, da estática e da dinâmica, da sincronia e da diacronia, da captura e do devir diferençante, do fluxo e das representações em um único e mesmo “plano de n dimensões”. O importante é frisar que não haveria uma ruptura com as segmentaridades, numa espécie de passagem por corte do estado de natureza para a sociedade civil. Mesmo cristalizadas ou endurecidas pela submissão ao buraco negro da caixa de ressonância, as segmentari-

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dades nem por isso deixariam de compor e oferecer a matéria e as condições de possibilidade do seu próprio endurecimento. Mais do que isso, mesmo distinguindo segmentaridades endurecidas e segmentaridades flexíveis, os autores não cessariam de afirmar o seu baralhamento. Da mesma forma que do seio dos códigos desgastados das segmentaridades primitivas emergiriam, por conjunção, as segmentaridades duras; no seio mesmo das cristalizações das segmentaridades endurecidas, sucessivas linhas de fuga descodificantes não cessariam de produzir, por conexões, indomáveis dissonâncias428. Não basta pois opor o centralizado e o segmentário. Mas tampouco basta opor duas segmentaridades, uma flexível e primitiva, a outra moderna e endurecida, pois as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embaralhadas uma com a outra, uma na outra. As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não vingariam. Não se pode atribuir a segmentaridade flexível aos primitivos. Ela não é nem mesmo a sobrevivência de um selvagem em nós; é uma função perfeitamente atual e inseparável da outra. Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 82)

A partir de então, torna-se possível tematizar o social como um locus animado por uma sucessão de movimentos de descodificação e de desterritorialização que não param de alterar os códigos e territórios endurecidos. Assim, se de um lado teríamos uma máquina abstrata de sobrecodificação, verdadeira caixa de ressonância, apta a al428.  “Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se define por suas contradições. Mas isso só é verdade em grande escala. Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução dos costumes”, os jovens, as mulheres, os loucos, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 85)

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terar a gravitação de forças fazendo com que emerja um ponto centrípeto disposto a centralizar, por conjunção, as demais segmentaridades; de outro lado e num mesmo plano, teríamos uma máquina de mutação, articulada com uma verdadeira máquina de guerra, disposta a ensejar, por conexão, a produção de linhas de fuga aptas a produzir transformações no interior desses códigos. De um lado, há uma máquina abstrata de sobrecodificação: é ela que define uma segmentaridade dura, uma macro-segmentaridade, porque ela produz, ou melhor, reproduz os segmentos, opondo-os de dois em dois, fazendo ressoar todos os seus centros, e estendendo um espaço homogêneo, divisível, estriado em todos os sentidos. […] Por outro lado, no outro polo, há uma máquina abstrata de mutação que opera por descodificação e desterritorialização. E ela que traça as linhas de fuga: pilota os fluxos de quanta, assegura a criação-conexão dos fluxos, emite novos quanta. Ela própria está em estado de fuga e erige máquinas de guerra sobre suas linhas. Se a máquina abstrata de mutação constitui um outro pólo, é porque os segmentos duros ou molares não param de vedar, de obstruir, de barrar as linhas de fuga, enquanto ela não para de fazê-las escoar “entre” os segmentos duros e numa outra direção, submolecular.(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 92, grifo meu)

O social, nesse sentido, poderia ser definido, ou melhor, problematizado a partir da luta sempiterna entre essas máquinas de sobrecodificação, de guerra e de mutação429. Aqui teríamos a passagem de uma definição pela essência para uma composição pela potência. O social portanto deixaria de ser pensado a partir de formas (simbólicas) que se desdobram e se desenvolvem, para ser pensado a partir da composição dos encontros das segmentaridades que ora se conjugam, ora se conectam. 429.  À primeira vista, a máquina de guerra se confunde com a máquina de mutação. Mas, a distinção é mais sutil, pois a máquina de guerra pode se desvincular da máquina de mutação e ou tornar-se aparelhada pelo Estado – trabalhando, a despeito de si mesma, para a sobrecodificação – ou desvincular-se da mutação e decair numa espécie da máquina de aniquilação – como bem expressa o modelo do “militante niilista”.

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Na verdade, o modelo da luta não é o único apropriado, visto que haveria, o tempo todo, negociações, traduções, transduções e traições dispostas a baralhar o simplismo beligerante. Não obstante, o importante é que o social é constituído e reconstituído pelo cruzamento incessante de três linhas, articuladas, respectivamente, com as máquinas referidas mais acima: 1) linha de endurecimento das segmentaridades – linha dura que opera no nível molar, engendrada pela máquina de sobrecodificação; 2) linha flexível das segmentaridades itinerantes – espécie de linha mambembe que opera no nível molecular, engendrada pela máquina de mutação; 3) linhas de fuga que transitam entre os dois planos dispostas a embotar quaisquer esquematizações, engendrada pela máquina de guerra430. Com isso, acredito ser possível afirmar uma ontologia social capaz de articular a sociologia com a questão da diferença. Pois se não basta gritar Viva o Múltiplo! – numa espécie de infantilismo normativo – para fazer teoria social, contudo, a partir desse enfoque centrado na imbricação entre as duas máquinas (máquina de sobrecodificação e máquina de mutação) através da articulação da máquina de guerra – torna-se possível desenvolver um enfoque que, mesmo dando conta das cristalizações, endurecimentos e formações de centros de ressonância (em suma, oferecendo uma resposta para o problema da ordem), não se furta a tematizar o devir molecular diferençante, onde as multiplicidades conectadas instauram, o tempo todo, linhas de fuga capazes de fazer com que o social e o seu devir não sejam nem a redução a uma estrutura oculta, nem o vir a ser de uma formação preestabelecida. Em suma, poder-se-ia dizer que, com o aporte oriundo do plano de imanência e do social pensado a partir da segmentaridade – e 430.  “Entre os dois pólos há todo um domínio de negociação, de tradução, de transdução propriamente molecular, onde ora as linhas molares já estão trabalhadas por fissuras e fendas, ora as linhas de fuga já atraídas em direção a buracos negros, as conexões de fluxos já substituídas por conjunções limitativas, as emissões de quanta convertidas em pontos-centro. E é tudo ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo as linhas de fuga conectam e continuam suas intensidades, fazem jorrar signos-partículas fora dos buracos negros; mas elas se aplicam sobre buracos negros, onde rodopiam sobre conjunções moleculares que as interrompem; e ainda entram em segmentos estáveis, binarizados, concentrizados, voltados para um buraco negro central, sobrecodificados.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 92).

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agenciado pelas suas máquinas – torna-se possível pensar não só as possibilidades de uma sociologia menor, como também tornase possível compreender os mecanismos pelos quais foi possível a emergência de algo como uma grande identidade, na qualidade de centralização das segmentaridades, ensejando a sociologia enquanto ciência maior. Numa palavra, a partir desse enfoque não só o menor e o maior não ensejam qualquer tipo de dualismo – sendo um a condição do outro – como a questão da diferença, passando à qualidade de fundamento ontológico, deixa de ser uma questão de perspectiva, ou então de privilégio dos autores malditos. * Como adiantado mais acima, no subterrâneo da sociologia maior de Émile Durkheim haveria uma “sociologia menor” responsável não só pela vitalidade do social – seu aspecto mais voltado à produção do que à reprodução – e pela questão das diferenças, como principalmente pelas ferramentas que disponibilizam o desenvolvimento de uma ontologia social, imune às acusações de petição de princípio e de dogmatismo. Bastava apenas encontrarmos as lentes adequadas para uma leitura (impossível). Excurso realizado, podemos voltar ao nosso ofício. Assim, subtraindo-se da acusação de pressupor aquilo mesmo que visaria provar – isto é, a sociedade –, Durkheim desenvolveria, enquanto sociólogo menor, argumentos que lhe permitem tematizar explicitamente – e não só colateralmente como nas passagens onde, através de uma protofenomenologia do fato social, demonstra a exterioridade da sociedade face ao indivíduo como substituto científico das provas ontológicas – a constituição da sociedade. É, portanto, na análise da constituição mesma da sociedade que a questão das diferenças pode emergir em terreno sociológico. Embora seja possível, como se procurou mostrar, reduzir o argumento durkheimiano aos deslizes do tipo “duplo empíricotranscendental”, onde o “sono sociológico” seria um sucedâneo das sujeições antropológicas, fazendo com que a sociedade seja, ao

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mesmo tempo, aquilo que deve ser explicado e aquilo que permite a explicação, acredito que não seja nem um pouco disparatado afirmar que Durkheim oferece um argumento bastante fecundo para a tematização da constituição ontológica da sociedade. Trata-se do argumento baseado nos conceitos de associação e de segmentaridade. Todavia Durkheim recuse o argumento contratualista, visto que considera impossível abordar a sociedade como consequência artificial da intencionalidade de sujeitos livres e autônomos, o que, em última instância, reduziria a sociologia a uma espécie de corolário da psicologia individual, nem por isso ele se furtaria a problematizar a constituição da sociedade. Com efeito, tudo se passaria como se a “sociologia maior” – isto é, a sociologia dos grandes conjuntos, com sua ênfase nas representações coletivas, assim como sua predileção pelos pontos de captura – fosse uma espécie de decalque diante do mapa fornecido pelos elementos da “sociologia menor”. Longe de apenas pressupor aquilo que viria possibilitar o decalque, Durkheim é consequente o bastante para esboçar uma “ontologia dos mapas”, através da qual o centro de ressonância só pode emergir enquanto paralisação e captura. Negando na raiz a acusação de tomar a sociedade como dado (taken for granted) – numa espécie de ingenuidade de segunda ordem – Durkheim é judicioso o suficiente para desenvolver uma espécie de teoria da constituição ontológica da sociedade. Mais do que isso, tematizando a emergência da sociedade a partir da associação e da segmentaridade, o sóciologo francês abre uma frente, ainda que não a explore, capaz de arvorar a questão das diferenças. De forma não muito diferente da via spinozana/deleuzeana, abordada através do plano da imanência, Durkheim desenvolve um argumento onde a sociedade é composta por segmentaridades que se associam, se penetram e se conjugam. Com efeito, se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste, como mostramos, no fato mesmo da associação, eles devem variar com as formas dessa associação, isto é, conforme as maneiras como são agrupadas as partes constituintes da sociedade. Por outro lado, já que o conjunto determinado, que os elementos de toda natureza que

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entram na composição de uma sociedade formam por sua reunião, constitui o meio interno dessa sociedade, assim como, o conjunto dos elementos anatômicos, pela maneira como estão dispostos no espaço, constitui o meio interno dos organismos, poderemos dizer: A origem primeira de todo processo social de alguma importância deve ser buscada na constituição do meio social interno.431

Nada poderia ser mais distante do argumento estruturalfuncionalista. Longe de pensar a sociedade como uma espécie de macro-sujeito, dotado de uma estrutura prévia que deveria, portanto, ser atualizada constantemente, num esquema onde o particular vigora como reposição do universal, Durkheim pensa a sociedade como um verdadeiro plano de composição. Para ele, mesmo que o social, ou melhor, a sociedade não seja um artifício industrioso, não obstante, ela só pode ser pensada como produto das associações entre segmentaridades que ora se aproximam e ora se afastam. Mais do que isso, como um verdadeiro spinozano432, ele recusa-se a tematizar a emergência do social como algo deveniente de uma necessidade anterior, recusando de início a ideia de um plano de desenvolvimento. Nesse sentido, se existem funções sociais, elas não constituem o a priori a partir do qual as regularidades fenomênicas deveriam ser explicadas. Muito antes, as próprias funções parecem constituir fenômenos tardios que não fazem outra coisa senão repôr o ser engendrado pelas associações. “Então, em lugar de a causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação mental da função a que são chamados a desempenhar, esta função consiste, ao contrário, em manter a causa preexistente de que derivam.433 Essa causa preexistente não é outra coisa senão o fenômeno das associações. 431.  [1901c] As Regras, p.98. 432.  Que Durkheim leu e assimilou elementos spinozanos em sua obra é mais do que evidente: “A Psicologia contemporânea atenta cada vez mais para a idéia de Spinoza, segundo a qual as coisas são boas porque nós as amamos, e não que nós as amamos porque elas sejam boas. O que vem primeiro é a tendência, a inclinação, o prazer e a dor são apenas fatos derivados. É o mesmo na vida social. Um ato é socialmente ruim porque é rejeitados pela sociedade.” ([1902b] Da Divisão, p. 82). 433.  [1902b] Da Divisão, p.84.

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Em virtude desse princípio, a sociedade não é simples soma de indivíduos, e sim sistema formado pela sua associação, que representa uma realidade específica com seus caracteres próprios. Certamente, nada de coletivo pode se produzir se consciências particulares não são dadas; mas essa condição necessária não é suficiente. É preciso também que essas consciências estejam associadas, combinadas, e combinadas de certa maneira; dessa combinação que resulta a vida social e, por conseguinte, é essa combinação que a explica. Ao se agregarem, ao se penetrarem, ao se fundirem, as almas individuais dão origem a um ser, psíquico se quiserem, mas que constitui uma individualidade psíquica de um gênero novo.434

Mostrando que é do fenômeno da associação que emerge essa realidade sui generis, ou esse ser psíquico de tipo diferenciado, Durkheim avança um argumento muito semelhante àquele do plano de imanência ou plano de composição. Assim, não haveria a prioris anteriores à constituição da associação. Muito antes, seria justamente pela maneira – ou melhor, pela diversas maneiras – através das quais a composição se faz que o sociólogo encontraria recursos para explicar as sucessivas regularidades fenomênicas que têm lugar na vida social. Além disso, para Durkheim, a associação não é um fenômeno estanque. Isto é, não é a justaposição de elementos mais ou menos semelhantes que fariam da composição associativa uma reiteração de semelhanças já dadas. Muito antes, para o sociólogo francês, o fenômeno da associação seria o elemento precípuo capaz de dar conta da emergência do novo, avançando um enfoque capaz de liberar todas as diferenças. Tematizando o binômio associação/novidade, Durkheim avançaria uma espécie de ontologia capaz de vigorar, inclusive, como princípio explicativo para a emergência do novo em terrenos extra sociológicos: A associação não é, como se acreditou algumas vezes, um fenômeno por si mesmo estéril, que consiste simplesmente em colocar em relações exteriores fatos realizados e propriedades constituídas. Não 434. 

Ibid., p.90.

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é ela, ao contrário, a fonte de todas as novidades que se produziram sucessivamente no curso da evolução geral das coisas? Que diferenças existem entre os organismos inferiores e os demais, entre o ser vivo organizado e o simples plastídio, entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem, senão diferenças de associação? Todos esses seres, em última análise, decompõem-se em elementos da mesma natureza; mas esses elementos são, aqui, justapostos, ali, associados; aqui, associados de uma maneira, ali, de outra. É lícito inclusive perguntar se essa lei não penetra até o mundo mineral, e se as diferenças que separam os corpos inorganizados não têm a mesma origem.435

Com o fenômeno da associação é possível vislumbrar a articulação da questão da diferença com um enfoque propriamente sociológico, visto que o social passa a vigorar como composição, mais ou menos cristalizada, que varia de forma diretamente proporcional à variação das formas de associação. Com isso, estamos muito próximos da noção de segmentaridade, tematizadas na seção anterior. Ou seja, longe de explicar a sociedade pela consolidação de formas apriorísticas que se desdobrariam no curso da história, teríamos um modelo capaz de pensar as diferentes configurações sociais como codificações e territorializações, mais ou menos cristalizadas, que variam conforme os diferentes tipos de composição entre segmentaridades que se deslocam num plano de imanência. Se no plano da imanência Spinoza definia os desdobramentos do real a partir de um enfoque bipartido – isto é, a partir das relações de velocidade e lentidão que compõem os corpos e da capacidade de afetar e ser afetado desses mesmos corpos – Durkheim parece fazer o mesmo. Assim, as variações do social seriam tematizadas a partir de duas dimensões. Se o importante é pensar de forma compósita, isto é, negando os apriorismos que fariam com que quanto mais as coisas mudem mais elas permaneçam as mesmas, num plano de desenvolvimento onde o real não é outra coisa senão o desenvolvimento de formas já dadas (sejam elas substâncias, ou 435. 

Ibid., p. 90.

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estruturas), não restaria outra saída senão abordar as variações sociais a partir das variações nos tipos de composição. Para tanto, Durkheim postula, como elemento determinante, a sondagem de duas variáveis: densidade material e densidade dinâmica. O esforço principal do sociólogo será portanto procurar descobrir as diferentes propriedades desse meio suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos sociais. Até o presente, encontramos duas séries de caracteres que correspondem de uma maneira eminente a essa condição: o número das unidades sociais ou, como dissemos também, o volume da sociedade, e o grau de concentração da massa, ou o que denominamos a densidade dinâmica. Por esta última palavra, convém entender não o estreitamento puramente material do agregado que não pode ter efeito se os indivíduos, ou melhor, os grupos de indivíduos, permanecem separados por vazios morais, mas o estreitamento moral do qual o precedente não é senão o auxiliar e de maneira gritante geral, a consequência. A densidade dinâmica pode ser definida, para um volume igual, em função do número de indivíduos que estão efetivamente em relações não apenas comerciais, mas morais; ou seja, que não apenas trocam serviços ou se fazem concorrência, mas que vivem uma vida comum. Pois, como as relações puramente econômicas deixam os homens exteriores uns aos outros, essas relações podem ser muito freqüentes sem com isso participarem da mesma existência coletiva. Os negócios contratados por cima das fronteiras que separam os povos não fazem com que essas fronteiras não existam. Ora, a vida comum só pode ser afetada pelo número dos que nela colaboram eficazmente. Por isso, o que exprime melhor a densidade dinâmica de um povo é o grau de coalescência dos segmentos sociais. Pois, se cada agregado parcial forma um todo, uma individualidade distinta, separada das outras por uma barreira, é porque a ação de seus membros, em geral, permanece aí localizada; se, ao contrário, essas sociedades parciais se confundem todas no

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seio da sociedade total ou tendem a nela se confundir, é porque, na mesma medida, o círculo da vida social se ampliou.436

Com efeito, nessa seara e, a partir da leitura aqui proposta, estaríamos muito próximos do modelo deleuzeano onde a sociedade é pensada como uma composição, mais ou menos cristalizada, de segmentaridades que se associam, ora por conexão, ora por conjugação. Mais explicitamente, Durkheim aborda a noção de segmentaridade como princípio elementar da vida social. Uma vez estabelecida essa noção de horda ou sociedade de segmento único - seja ela concebida como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência -, tem-se o ponto de apoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais. Iremos distinguir tantos tipos fundamentais quantas maneiras houver, para a horda, de se combinar consigo mesma dando origem a sociedades novas, e, para estas, de se combinarem entre si. Encontraremos primeiramente agregados formados por uma simples repetição de hordas ou de clãs (para dar lhes seu novo nome), sem que esses clãs estejam associados entre si de maneira a formar grupos intermediários entre o grupo total que compreende a todos e cada um deles. Eles estão simplesmente justapostos como os indivíduos da horda. Encontram-se exemplos dessas sociedades, que poderiam ser chamadas polissegmentares simples, em certas tribos iroquesas e australianas. O arch, ou tribo da Cabília, tem o mesmo caráter; trata-se de uma reunião de clãs fixados em forma de aldeias. Muito provavelmente, houve um momento na história em que a cúria romana e a fratria ateniense eram sociedades desse gênero. Acima viriam as sociedades formadas por uma reunião de sociedades da espécie precedente, isto é, as sociedades polissegmentares simplesmente compostas. Tal é o caráter da confederação iroquesa, daquela formada pela reunião das tribos cabilas; o mesmo aconteceu, na origem, com cada uma das três tribos primitivas cuja associação 436. 

Ibid., p.99.

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deu origem, mais tarde, à cidade romana. Encontraríamos a seguir as sociedades polissegmentares duplamente compostas, que resultam da justaposição ou da fusão de várias sociedades polissegmentares simplesmente compostas. É o caso da cidade, agregado de tribos, que são elas próprias agregados de cúrias, que, por sua vez, se decompõem em gentes ou clãs, e da tribo germânica, com seus condados, que se subdividem em centenas, os quais, por sua vez, têm por unidade última o clã transformado em aldeia.437

Avançando no argumento que tematiza o social como realidade compósita derivada do fenômeno da associação, ele chega a construir uma tipologia do social onde as diferentes formas de associação de segmentaridades plurais e distintas se associam ora mantendo a individualidade – num modelo próximo da conexão – ora se diluem numa vida comum – ensejando um modelo de composição por conjugação – de onde emerge um centro de ressonância capaz de unificar todas as segmentaridades, aniquilando as diferenças. Mas, uma vez constituídos esses tipos, será preciso distinguir em cada um deles variedades diferentes, conforme as sociedades segmentares, que servem para formar a sociedade resultante, conservem uma certa individualidade, ou então, ao contrário, sejam absorvidas na massa total. Compreende-se, com efeito, que os fenômenos sociais devem variar, não apenas segundo a natureza dos elementos componentes, mas segundo seu modo de composição; eles devem sobretudo ser muito diferentes, conforme cada um dos grupos parciais conserve sua vida local ou sejam todos arrastados na vida geral, isto é, conforme estejam mais ou menos estreitamente concentrados. Devemos portanto investigar se, num momento qualquer, se produz uma coalescência completa desses segmentos. Reconheceremos que ela ocorre se a composição original da sociedade não mais afetar sua organização administrativa e política. Desse ponto de vista, a cidade distingue-se nitidamente das tribos germânicas.438 437.  438. 

Ibid., p. 73. Ibid., p. 74.

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Assim, sem apriorismo de nenhum tipo, tem-se um enfoque capaz de dar conta da identidade e da diferença apenas lançando mão das noções de segmentaridade e de associação. Entre a identidade do Império e as anarquias coroadas, a diferença libera todo o seu volume a partir da associação. De um lado, conflagração das diferenças, de outro cooptação identitária. Sem abrir mão do plano da imanência, Durkheim é capaz de desenvolver um enfoque onde o social, longe de ser a identidade sempiterna que, como um espectro, ronda o devir da vida social, pode ser pensado como uma combinação de segmentaridades que associando-se das mais diversas maneiras, abre-se para a questão das diferenças – ainda que essas diferenças, no mais das vezes, acabem sendo reconduzidas à identidade. Mas, ao fim e ao cabo, mesmo essa recondução à identidade, não trairia a articulação da sociologia com a questão da diferença. Muito antes, viria para coroar o esforço teórico que se pretende, para além do normativismo, apto para tematizar os fenômenos de produção e reprodução social. Assim, tomando a diferença como o que vem antes, na qualidade de elemento ontológico inelidível, esboçado através da noção de segmentaridade, Durkheim não deixaria de abordar a emergência dos centros de ressonância capazes de dessingularizar as segmentaridades. Com efeito, a diferença estaria na origem das associações. Nesse sentido, a diferença, longe de ser o contraponto simétrico da identidade, devindo então em contradição, passaria a ser tematizada como o fundo inelidível do qual emergiriam as identidades tardias.

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