Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821)

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CULTURA ESOCIEDADE NO RIO;DE JANEIRO (1808-1821) MARIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA

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CULTURA E SOCIEDADE NO RIO DE JANEIRO (1808-1821) A propósito da recente viagem do rei João Carlos I da Espanha à Colõml>la e à Venezuela, observou um comentarista contemporllneo que ela teve o defeito fundamental de estar atrasada de dois !Séculos. A vinda de um representa nte de dinastia européia ao Nov,> Mundo teria forçosamente dado novos rumos à evolucão americana. Ora, acontece que eR8c Impacto ocorreu no Brasil. A metrópole transferiu-se para a América Portuguesa, a admlnlstracllo comecem a criar •um novo Império", t;Xpressão um lauto amblgua, embebida na tradluco cuidado para as de perigo imediato; e com tal rapidez, que ela escapa aos médicos do país, a quem devem ser muito familiares: deve haver o mesmo cuidado a respeito das bexigas." (p. 19.) O jornal O Patriot-a publicou, em vários números, as respostas que alguns médicos do Rio de Janeiro tinham dado, no fim do século xv1n, aos seguintes quesitos elaborados pelo Senado ela Câmara: se o clima úmido e quente do Rio de Janeiro era uma das principais causas das moléstias endêmicas e do "mau sucesso" das epidêmicas; se eram causas as imundícies que se con::ervavam dentro da cidade e as águas estagnadas; quais eram as 130

causas "morais e dietéticas" das doenças. A respeito das "causas morais", um dos médicos respondeu: "A opulência desta respeitável cidade fez introduzir o luxo, e o luxo a depravação dos costumes, de maneira que dentro da cidade não faltam casas públicas, onde a mocidade vai estragar a saúde, e corromper os costumes de uma boa educação, contraindo novas enfermidades e dando causa para outras tantas. Acresce a vida sedentária e debochada dos habitantes do país: as mulheres vivem encarceradas dentro de casa e não fazem o mínimo exercício. Os homens, ainda os europeus, ficam preguiçosos, assim que se estabelecem nesta terra. Bem se vê logo que o vício céltico, os continuados deboches de comidas e bebidas, a que são muito entregues os habitantes do país, e a vida frouxa sem algum exercício, juntamente com as outras causas acima ponderadas, por certo hão de causar tantas enfermidades crônicas, que reinam nesta cidade." Do mesmo modo que o médico precisava de classificar as doenças internas, e vimos que se seguia no Rio de Janeiro a nosografia de Pinel, também o cirurgião necessitava de uma classificação das moléstias cirúrgicas, e neste caso foi adotada a nosografia de Richerand. Nomeado lente de uma das cadeiras médico-cirúrgicas estabelecidas no Hospital Real Militar, Joaquim da Rocha Mazarém publicou na Impressão Régia, em 1810, o Tratado de inflamação, feridas e úlceras, e.xtra,ído da nosografia cirúrgica de Anthelmo Richerand, justificando do seguinte modo o seu trabalho: "incumbido juntamente do tratamento das moléstias cirúrgicas dos enfermos das Reais Armadas no mesmo Hospital, aonde concorrem os alunos que se dedicam à arte de curar, vi a falta que há de autores e de livros desta ciência no nosso idioma, por onde eles se pudessem aplicar." Dado que os seus "limitados conhecimentos" não lhe permitiam "formar uma doutrina que lhes servisse de instrução", utilizou para esse fim a N osografia de Richerand. Joaquim da Rocha Mazarém limita-se, portanto, a traduzir e organizar os vários capítulos: começa por um intitulado "Do estado inflamatório e dos seus diversos modos", trata das "inflamações idiopáticas, simpáticas, específicas e gangrenosas", fala da gangrena e do cancro, descreve as "feridas em geral" para depois passar aos seus diversos gêneros ( feridas simples, feridas que supuram, picadas, contusões, feridas de armas de fogo, feridas venenosas), descreve em seguida as "úlceras em geral" e os 131

seus gêneros ( úlceras atônicas, escorbúticas, escrofulosas, sif ilíticas, herpéticas, carcinomatosas, tinhosas, psóricas, ou sarnosas). Apesar de jldotar uma "doutrina" estrangeira, isto é, um sistema de definições e de classificação das inflamações, feridas e úlceras, o tradutor, em várias notas, acrescenta algumas observações decorrentes da sua prática. A propósito, por exemplo, da amputação de um membro gangrenado, depois de expor as diferentes teorias dos cirurgiões franceses e dos de Lisboa, refere a prática seguida no Rio de Janeiro: na metrópole, "era uma regra geral o nunca fazer-se a mutilação de um membro caído em mortificação total, sem que se manifestasse o círculo inflamatório, que distingue as partes vivas das mortas". Esta regra era também seguida no Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro, conforme o autor verificara através de uma conferência com o cirurgião Luís da Santa Ana Gomes e outros facultativos. Este é um caso em que a experiência do tradutor, baseada nas observações feitas no Hospital de São José de Lisboa e no da Misericórdia do Rio de Janeiro, o leva, senão a corrigir o texto básico, pelo menos a colocar a viabilidade de outras práticas cirúrgicas (p. 17-8). O mesmo acontece a propósito da sutura, em que Richerand "recomenda que ao fim de três ou quatro dias, obtida a reunião, se devem tirar as linhas, para que estas não determinem, pela sua presença, o excitamento e a supuração das partes que tocam". E o tradutor numa nota contraria esta posição: "Tendo eu empregado o método dos alfinetes para reunir as feridas que resultaram da operação feita a um menino de doze anos em Lisboa,,do lábio leporino, lhos conservei por oito dias, sem que a inflamação excedesse ao grau da adesiva. Ultimamente, numa semelhante operação, um igual método empreguei para obter a reunião das feridas, no Hospital Real dos Exércitos e Armadas desta corte, no dia 17 de outubro de 1809, a Macário José Maria, oficial .