A ideia do teatro

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Coleção ELOS Dlrlgidu por J. Guinsburg

I i| im| xj ilc realização - Tradução: J. Guinsburg; Revisão de provas: José Bonilii. Io ( 'aldas e Vera Lúcia B. Bolognani; Programação visual: A. Lizárraga; 1'roilui'fin: Ricardo W. N evese SylviaChamis.

Jo sé O r te g a y G a s s e t

A Idéia do Teatro

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Título do original espanhol Id v a d e i te a tro

Copyright ©

by Revista de O ccidente, S. A., Madri, 1966.

Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA S.A. Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 - S 8 o Paulo - SP - Brasil Telefones: 885-8388/885-6878 1991

SU M ÁR IO

N ota prelim in ar

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ID É IA D O T E A T R O U m a abrev iatu ra

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ANEXOS I. M áscaras

....................................................................... 5 9

II. (O Século)

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NOTA PRELIMINAR

N o texto o autor declara as circunstâncias que o le­ varam a pronunciar esta conferência em Lisboa e em M adri a 13 de abril e a 4 de m aio de 19461. O rtega pen­ sou publicá-la agregando-lhe alguns anexos que começou a escrever seguidam ente. O I está m anuscrito com o o transcrevem os. O II procede de um a digressão, elimi­ nada pelo auto r do com eço da conferência, que julgamos oportuno acolher neste lugar. Os III e IV , a que se alu­ de, apareceram só em notas soltas, que se publicarão/ ulteriorm ente. f E sta Idéia do Teatro e o im p o rtan te texto do A n e x o I, assim com o o utros estudos do au to r — p o r exemplo,, a biografia de V elázques, a análise d a caça — , servem acentuadam ente de exem plo do m étodo d a razão vivente e histórica, d outrina essencial de seu pensam ento filo­ sófico.

Os C om piladores

1. Na Revista Nacional de Educacíón, num. 62, M adri, 1946, publicou-se uma versão deficientíssima desta últim a.

IDÉIA DO TEATRO

U M A ABREVIATURA

j

N ão há p a ra que ter espaventos excepcionais. O A teneo de M adri, que voltou a seu antigo nom e, com o ao punho volve o fálcão, quis in au g u rar esta sua nova etapa falando-lhes de algo. F az m uitos, m uitos anos, talvez um quarto de século, que eu n ão falava nesta casa onde falei, ou m elhor dito, balbuciei p o r p rim eira vez, e faz tam bém dem asiados anos que ando vagando fo ra de E spanha, tan ­ tos anos que, quando parti, podia com certo viso de ver­ dade crer que ainda conservava um a com o que retaguarda de juventude, e agora, quando reto m o , volto já velho. T oda um a geração de m oços nem me viu nem me ouviu e este encontro com ela é p ara mim tão problem ático que só posso aspirar a que, depois de me ver e me ouvir, sin­ tam o desejo de repetir, salvando as distâncias, os versos do velho rom ance que relatam o que o povo cantava do C id — por isso reclam ava eu um a am pla salvação de dis­ tâncias — , o que cantava p a ra o Cid quando este, após longos anos de expatriação em V alência, te rra de m ouros naquele tem po, voltou a en trar em Castela, e que com e­ çam assim: V iejo que venís el Cid, viejo venís y flo r id o . . . * * Velho que vindes o Cid/velho vindes e florido.

(N. do T .)

I sic único em parelham ento sem idiscreto que cabe entre a belicoaíi pessoa do Cid e a m inha tão pacífica — notem que isto significa fazedora de paz — em parelham ento c|iic consiste cm um a inquestionável velhice e em um a eventual reflorescência, é um a audácia deliberada que me perm ite, é claro, e, com o dizemos em taurom aquia, a porta gaiola — que é um a sorte portuguesa — , a fim de que seu vigor de caricatura simbolize veem entem ente o im perativo de continuidade, de continuação que a todos devia unir-nos. [C o n tin u ar não é ficar no passado nem sequer enquistar-se no presente, m as m obilizar-se, ir mais além, inovar, porém renunciando ao pulo e ao salto e a partir do nada; m uitò ao contrário, é ficar os calcanha­ res no passado, despegar-se do presente, e pari passu, um pé após o u tro à frente, pôr-se em m archa, cam inhar, avançar. A continuidade é o fecundo contubérnio ou, se se quer, a coabitação do passado com o futuro, e é a única m aneira eficaz de n ão ser reacionário?] O hom em é continuidade, e quando descontinua e na 'medida em que descontinua é que deixa transitoriam ente de ser h o ­ mem, renuncia a ser ele m esm o e se to rn a outro — alter — , é que está alterado, que no país houve alterações. Convém , pois, pôr term o nestas radicalm ente e que o honem volte a ser ele m esm o, ou com o costum o dizer, com um estupendo vocábulo que som ente nosso idiom a* pos­ sui, que deixe de alterar-se e consiga jensim esm ar-se.i P o r um a vez, após enorm es angústias e infortúnios, a E span h a tem sorte. A p esar de certas m iúdas aparên ­ cias, de breves nuvens pesadas que n ão passam de ane­ dotas m etereológicas, o horizo n te histórico da E spanha está desanuviado. B em enten d id o : esse horizonte histó* O português também o possui. (N . do T .)

rico que é hoje m ais do que nu n ca o horizonte universal, é superlativam ente problem ático — m as isto significa apenas que está cheio de tarefas, de coisas que é preciso fazer e que é preciso saber fazer. É que, enquanto os de­ mais povos, além destas tarefas universais que definem a época à vista, se acham enferm os — poderíam os m uito bem diagnosticar a enferm idade de cada um — o nosso, cheio, sem dúvida, de defeitos e péssim os hábitos, por casualidade saiu desta etap a tu rv a e turbulenta com um a surpreendente, quase indecente saúde. A s causas disso, se se quer evitar os néscios lugares-com uns e enunciar a verdade nua, poderiam ser precisadas com todo o rigor, mas não são p a ra ser ditas agora. Pois bem , essa inespe­ rada saúde histórica — digo histórica, n ão pública — , essa inesperada saúde com que nos encontram os, perdê-la-em os novam ente se n ão cuidarm os dela — e p a ra isso é m ister que estejam os alerta e que todos, notem a gene­ ralidade do vocábulo, notem o vocábulo generalíssim o, todos tenham os a alegria e a v o n tad e e a justiça, tanto legal com o social, de criar um a nova figura da E spanha, apta a internar-se saudável nas contingências do mais im previsto porvir. P a ra isso é m ister que todos dem os tra ­ tos um pouco à cabeça, agucem os o sentido p a ra inventar novas form as de vida onde o p assad o desem boque no f u - ' turo, que enfrentem os os enorm es, novíssim os, inauditos problem as que o hom em tem hoje diante de si, com agili­ dade, com perspicácia, com originalidade, com graça — em suma, com aquilo sem o qual n ão se p ode to u re a r nem se pode fazer v erdadeiram ente história, a saber: com |garbo.| M as não vim aqui d issertar sobre tão graves tem as, mas sim plesm ente satisfazer o desejo que este A teneo tem

de que eu inaugure o reto rn o à sua habitualidade. H avia para isso dificuldades. E stou m etido em longos e intensos trabalhos que reclam am to d a a m inha atenção. Vim p re­ cisam ente descansar uns dias da dura faina em que ando enredado. N esta situação, a única coisa que posso fazer é insistir, dando-lhe ou tra form a, no tem a que, p o r acaso, tive de to car recentem ente num a conferência dada em L isboa — onde me propuseram responder à pergunta: “ Que é o teatro ?” Isso ofereço a vocês. É um tem a quanto ao m ais m uito ao viés, costum eiro na m elhor tra ­ dição desta casa, que sem pre pro cu ro u ocupar-se de as­ suntos aparentem ente supérfluos — a tal p onto que, in­ clusive, quando se falava aqui de política, o que acontecia com esm agadora freqüência, o espírito da casa, o genius loci, conseguia fazer dela o que a política devia ser mas desgraçadam ente não pode ser, ou seja: a grande superfluidade. M as sobre isto, sobre o que é a política, p o rtan to , não só o que é a b o a política frente à m á ou a m á frente à boa, m as em absoluto, o que, b o a ou m á, a política é e p o r que existe no universo coisa tão estranha com o ela — questão que, em bora pareça m entira, nenhum pensador até agora enfrentou a fundo, a sério e de fren ­ te — , tem os que falar, jovens, e muito! N ão agora — mais adiante — , não sei bem quando — um dia entre os dias. M as tem os de falar, jovens, larga e energicam en­ te, porque tem os que ver nossas caras — nem há que dizer — , a m inha, velha, com as vossas, m oças. M as agora vam os fa la r do teatro, tem a que nos p er­ mite da m aneira m ais n atu ral e, com o disse no com eço, podada de espantos reco b rar a continuidade. C ontinue­ mos. Q ue coisa é o teatro ?1 1.

(Até aqui a introdução em M adri. A seguir, a conferência de Lisboa.)

Senhoras, senhores: O Século, a cujo diretor, Se­ nhor Pereira da R o sa, e ao S enhor E d u ard o Schw albach, nosso presidente, agradeço a generosa am abilidade de sua saudação — O Século quis que inaugurasse esta série de conferências dedicadas à H istória do T e a tro com um a em que tento aclarar o que é o teatro . M as, ao encontrar-m e falando p ela prim eira vez na casa de O Século, brota-m e na alm a um veem ente apetite de falar sobre ou­ tro tem a m uito diverso e ainda m ais suculento. Q ual? Se eu pudesse fa la r hoje sobre ele, com eçaria m inha con­ ferência assim : Sabem os senhores de O Século o que significa o século? N ão é que pedantem ente m e converta cu num m agister exam inador que se p ro p o n h a a exam i­ nar aos senhores de O Século sobre o título de seu perió­ dico. O tom de p ergunta que dei a m inhas palavras não pretende m ais que excitar-lhes a curiosidade, porque, com efeito, se tra ta de um a das idéias m ais estupendas, de uma das idéias m ais profundas que o hom em teve acerca de sua pró p ria condição, m as que hoje é insuficientem ente conhecida1. P orém , repito, não posso hoje falar desse te­ ma, porq u e h oje não sou livre, p orque hoje sou escravo na galera fretad a p o r este querido e terrível Senhor A cúrcio Pereira e n ão tenho outro rem édio senão em p u nhar o remo e vogar a p ro a p a ra a ro ta p o r ele m arcada. D ócil, pois, a meu com prom isso, entro sem m ais a cum pri-lo. 1.

(V er o Anexo II, «O Século»),

ü que é essa coisa cham ada T eatro? A coisa cham ada 'Centro, com o a coisa cham ada hom em, são m uitas, inu­ meráveis coisas diferentes entre si que nascem e m orrem , que variam , que se transform am a ponto de, à prim eira vista, um a form a não parecer-se em n ad a com a outra. H om ens eram aquelas criaturas reais que serviam de m o­ delo aos anões de V elázques e hom em e ra A lexandre M agno, que foi o m agno pessegão2 de to d a a H istória. Pelo fâto m esm o de que um a coisa é sem pre m uitas e divergentes coisas, nos interessa averiguar se por entre e em toda essa variedade de form as não subsiste, mais ou menos latente, um a estru tu ra que nos perm ite ch am ar a inum eráveis e diferentes indivíduos de “hom em ” , a muitas e divergentes m anifestações de “te atro ” . E s­ sa estrutura que debaixo de suas m odificações con­ cretas e visíveis perm anece idêntica é o ser da coi­ sa. P ortanto, o ser de um a coisa está sem pre den­ tro da coisa concreta e singular, está coberto por esta, oculto, latente. D aí necessitarm os des-ocultá-lo, descobri-lo e to rn ar patente o latente. E m grego estar co­ berto, oculto, diz-se lathein, com a m esm a raiz de nosso latente e latir. Dizem os do coração que ele late não por­ que pulse e se mova, mas porque é um a víscera, porque é o oculto ou latente dentro do corpo. Q uando logram os trazer claram ente à luz o ser oculto da coisa dizemos que averiguam os sua verdade. Pelo visto, averiguar significa certificar, to rn ar m anifesto algo oculto, e o vocábulo com que os gregos diziam “verdade” — altheia — vem a significar o m esm o: a eqüivale a des; portanto, aletheia. é des-ocultar, des-cobrir, des-latentizar. Perguntarm o-nos pelo ser do T eatro eqüivale, em conseqüência, a pergun2. pagão.

Expressão coloquial com que as m ulheres portuguesas designam o ra-

tarm o-nos p o r sua verdade. A noção que nos entrega o ser, a verdade de um a coisa é sua Idéia. V am os te n ta r fazer um a Idéia do T eatro , a Idéia do T eatro . C om o a brevi­ dade do tem po com que conto é extrem a, isso me obriga a reduzir ao extrem o a exposição d a Idéia, a oferecer-lhes .ipenas um a abreviatura da Id éia d o Teatro. E aqui têm vocês aclarad o o título desta conferência: Idéia do Teatro — Um a abreviatura. E stam os de acordo? Q ue lhes p a­ rece se falarm os sobre este tem a p o r um m om ento, nada mais do que p o r um m om ento? N a d a m ais do que p o r um m om ento, m as. . . a sério, co m pletam ente a sério. V a­ mos, pois, a isso. Suponham que a ú nica vez que viram e falaram a um hom em coincida com u m a h o ra em que este hom em sofria um a cólica de estôm ago ou estava com um ataque de nervos ou q u aren ta graus de tem p eratu ra. Se alguém depois lhes perguntasse que opinião tinham vocês sobre o que aquele hom em é, considerar-se-iam com direito de definir seu c a rá te r e dotes? E v identem ente não. V ocês o haviam conhecido quando aquele hom em n ão era p ro ­ priam ente aquele hom em , m as apenas a ruína daquele homem. condição de toda realidade p assar p o r estes dois aspectos de si m esm a: aquilo que é q u ando é com plenitude ou em perfeição e aquilo que é quando é ruína. Para u sar um esplêndido term o do esporte atual, que teiia entusiasm ado P latão — claro, pois se vem dele! — ; para usar, digo, um term o esportivo, ao ser com plenitude c em perfeição cham arem os “ser em fo rm a” *. E assim oporem os o “ser em fo rm a ” ao “ ser ru ín a ” .'\ Pois assim com o vocês fariam m al em definir um homem segundo a sua aparência q u ando o viram enfer* Em português: “estar em form a”, expressão que não pode ser usada no ronlexto acima sem prejuízo para o sentido do discurso. (N. do T.)

mo, o T e a tro e toda a realid ad e devem ser definidos se­ gundo seu “ser em fo rm a” e n ão em seus m odos deficien­ tes e ruinosos. A quele explica e aclara estes, m as não ao revés. Q uem não viu senão m ás corridas de touros — e quase todas o são — n ã o sabe o que é um a corrida de touros ;/q u em não teve a sorte de en co n trar em sua vida um a m ulher genialm ente fem inina n ão sabe o que é um a m u lh e r./' Ruína!. — de ruere — , o que veio abaixo, caiu, ca­ dente ou decadente. JÉ lam entável, senhores, que tudo quanto existe no U niverso n ão exista com plenitude e em perfeição, m as que, pelo contrário, à graça e à virtude mais perfeitas lhes sobrevenha inexoravelm ente a hora da ruína. N ão há n ad a m ais m elancólico, e p o r isso os rom ânticos, já desde P oussin e C laude L o rrain , que fo ­ ram os p roto-rom ânticos, buscam as ruínas, se estabele­ cem em m eio delas com delícia e entregam os olhos à voluptuosidade do p ran to . P o rq u e os rom ânticos se em ­ briagam de m elancolia e bebem com deleite o P o rto ou o M ad eira de suas lágrim as. G ostam de ter à vista essas paisagens onde se levanta, com o em um últim o esforço, o arco rom pido que m ostra ao céu o coto de suas aduelas; onde os ervados abraçam e afogam os pobres silhares de­ caídos; onde se vêem to rres m oribundas, colunas decapi­ tadas, aquedutos desvertebrados. Isto é o que já no século X V II pin taram P oussin e C laude L o rrain . Os ro ­ m ânticos descobriram a graça das ruínas. D izia E m erson que, com o cada p lan ta tem seu parasita, cad a coisa no m undo tem seu am ante e seu poeta. H á, com efeito, o apaixonado pelas ruínas, e é bom que eles existam . E eles tam bém têm razão. P o rq u e o ruinoso, com o já dis­ se, é um dos dois m odos de ser da realidade. A quele h o ­

mem, há anos atrás tão podero so , com seus m ilhares e m ilhares de contos, hoje o vem os arruinado. Sendo jo ­ vens fom os àquela cidade e descobrim os um a m ulher m a­ ravilhosa que parecia feita de p u ra luz e p u ra vibração, com suas m açãs de pele tesa e b rilh an te, cheias de refle­ xos com o um a jóia cerâm ica. A o cabo de m uitos anos voltam os a p assar p o r aquela cid ad e e perguntam os p o r aquela m ulher, e o amigo nos responde: “Conchita! Se você a visse! Ê um a ru ín a!” O que não quer dizer que essa ruín a ch am ad a C onchita n ão continue, talvez, sendo um a delícia, só que um a delícia outra. A m ulher que já não é jovem é, quiçá, a que possui a alm a m ais saborosa. L em bro hav er escrito em m inha prim eira juventude — refiro-m e, p o rtan to , a rem otas cronologias; o p arágrafo deve encontrar-se em um de m eus prim eiros livros — que preferia na m ulher essa h o ra vindim al do outono, quando a uva, precisam ente p o rq u e p assaram p o r ela todos os sóis do estio, conseguiu fazer com eles sua sublim e d o ­ çura. E lem bro tam bém a im pressão que me causou, sen­ do eu adolescente, v er a fam osa atriz E leo n o rá D use, um a m ulher alta, em aciada, que já não era jovem e n unca foi bela, m as em cujo rosto se achava sem pre presente um a alm a estrem ecida — estrem ecida e delicada — , de m odo que em seus olhos e em seus lábios trem ulava sem pre um gesto de ave ferid a com um chum bo n a asa, um gesto que só se poderia descrever dizendo que era com o ci­ catriz de cem feridas causadas pelo tem po e pelos pesarcs. E com o aquela m ulher era encantadora! N ós, os rapazes da época, saíam os do teatro com o coração coniraído e sobre ele um com o que breve ard o r e u m a com o que fátua cham a, que é o fogo de santelm o do am or ado­ lescente.

T o d o um lado da realidade, senhores, e mui espe­ cialm ente todo um lado das coisas hum anas consiste em ser ruína. A o com eço d e suas geniais L içõ es sobre Filo­ sofia da História Universal nos diz H egel: Q uando lançam os o olhar para trás e contem plam os a his­ tória do passado hum ano, a primeira coisa que vem os são apenas “ruínas”. A história é m udança e esta m udança tem, à primeira vista, um aspecto negativo que nos produz pena. O que nele nos deprime é ver com o a mais rica criação, a vida mais bela en­ contra na História sempre o seu ocaso. A H istória é um a viagem entre as ruínas do egrégio. Ela nos arrebata aquelas coisas e seres os mais nobres, os mais belos pèlos quais nos havíam os interessa­ do; as paixões e os sofrim entos os destruíram: eram transitórios. Tudo parece ser transitório, nada perm anece. Q ue viajor não sen­ tiu esta m elancolia? Q uem ante as ruínas de Cartago, de Palmira, de Persépolis, e de Roma, não m editou sobre a caducidade dos impérios e dos hom ens, quem não se contristou sobre tal destino do que foi um dia a mais intensa e plenária vida?

A ssim diz Hegel, que, com o vocês vêem , não era nada m au escritor e o era rom ântico. M as a m udança tem outro aspecto, encarada por seu reverso, a ruína: o fato de que algum as coisas aca­ bem é condição p a ra que outras nasçam . Se os edifícios não caíssem em ruínas, se se conservassem im perecedouros não restaria sobre a face do planeta, a estas horas, espaço p a ra nós viverm os, p a ra nós construirm os. N ão podem os, pois, co n tentar-nos em ch o rar sobre ruínas; estas são necessárias. O hom em , que é o grande constru­ tor, é o grande destrutor e seu destino seria im possível se não fosse tam bém um fam oso fabricante de ruínas. E stá bem que, de quando em quando, sejam os ro ­ m ânticos e que nos dediquem os ao esporte sentim ental de chorar sobre as ruínas das coisas. M as se as ruínas das

coisas podem servir-nos de gás lacrim ogêneo, não podem servir-nos — e é a isto que eu ia — p ara definir o ser destas coisas. P a ra isto necessitam os, repito, contem plar seu “ser em fo rm a ” . A advertência, senhores, im p o rta m uito p orque hoje, no O cidente ao m enos, quase n ad a h á que não seja ruína e o que tem os à vista nesta h o ra negativa, nesta h o ra de cólica de estôm ago, pode desorientar-nos sobre o que as coisas são. Q uase tudo é hoje no O cidente ruínas, mas, bem entendido, não devido à guerra. A ruína preexistia, já estava aí. A s últim as -g uerras se produziram precisa­ m ente porque o O cidente já se achava arruinado, com o pudem os diagnosticar com todo detalhe faz um quarto de século3. Q uase tudo está em ruínas, desde as institui­ ções políticas até o T eatro , p assando p o r todos os dem ais gêneros literários e todas as dem ais artes. E stá em ruínas a p in tu ra — seus escom bros são o cubism o — ; p o r isso, os quadros de Picasso têm um aspecto de casa em der­ ru bada ou de rincão do R a stro 4. E stá em ruína a m úsica — o Stravinski dos últim os anos é um exem plo de detritus musical. E stá em ruína a econom ia — a das nações e a teórica. E nfim , está em ruína, em grave ruína, até a fem inilidade. A h, claro que o está! E em grau superla­ tivo! O que acontece é que o tem a a tra ta r pelo qual me com prom eti hoje é outro m uito diverso; se n ão teríam os conversa p a ra um a tem porada. P o rtan to , quan d o falarm os agora d o T eatro procu­ rarem os m an ter ao fundo e à vista suas grandes épocas: o século V de A tenas com seus m ilhares de tragédias e 3. V er La rebelión de las masas, publicado em forma de artigos desde 1927, e Espana invertebrada, 1921.

seus m ilhares de com édias, com É squilo, Sófocles e A ristófanes; os fins do século X V I e inícios do X V II com o teatro inglês e o espanhol, com B en Jo h n so n e Shakespeare, com L ope de V ega e C alderón, e logo, em seu ter­ mo, com a tragédia francesa, com C orneille, com R acine e a com édia de M arivaux; com o teatro alem ão de G oethe e Schiller, com o teatro veneziano de G oldoni e a C om m edia d eli’A r i e nap o litan a; enfim , tenham os à vista to d o o século X IX , que foi um a das grandes centúrias teatrais. Dissem os que necessitam os m an ter à vista, com o um fundo, tudo isto p o rq u e isso foi o T e a tro em form a, mas, adem ais, porque é precisam ente do que não vam os falar. T u d o isso são as form as particulares concretas e divergentes do m elhor T e a tro ; m elhor, n ão p orque nós, p o r exem plo eu, m e sinta com prom etido a estim ular m ui­ to tudo isso; m as, qualq u er que seja m inha ou nossa apreciação pessoal, tudo isso foi n a realidade da H istória hum an a a realidade m ais eficiente do T eatro . C laro que, sobre esse fundo ilustre e objetivam ente exem plar, n ão devem os esquecer todas as outras form as m enos ilustres do T eatro , m enós consagradas, de algum as das quais ta l­ vez ren asça am anhã o T eatro sobre suas presentes ruínas. M as, repito, falar de tudo isso é o tem a dos conferencistas que virão depois e co n tarão a vocês a H istória do T eatro . U m a últim a advertência prelim inar: quando disse­ mos que devem os ter à vista o T eatro de É squilo, de Shakespeare, de C alderón, etc., n ão pensem vocês nem por um m om ento que com esse título m e refiro só exclusiva­ m ente à o bra poética de É squilo, de S hakespeare, de C al­ derón, às o bras dram áticas que estes poetas com puseram . N ão faltava mais nada! Isso seria um a injustiça que, co­ mo com um ente acontece com a injustiça, serve p a ra que

nela se esconda um a estupidez. A tolice, p a ra fazer-se respeitar, inventou a injustiça. P o rq u e ser injusto não é, sequer, ser algo. N ão foram aqueles gênios poéticos que sozinhos e p o r si — ao m enos n a m edida em que foram exclusivam ente poetas — puseram ou m antiveram em form a o T eatro . Isso seria um a torp e abstração. Pelo T eatro de É squilo, de Shakespeare, de C alderón entenda-se, adem ais e inseparavelm ente, ju n to com suas obras poéticas, os atores que as represen taram , o palco em que foram executadas e o público que as presenciou. N ão es­ tou disposto a ren u n ciar a nad a disso, porque eu vim aqui cham ado pelo S enhor A cúrcio P ereira, p a ra esclarecer a vocês o que é o T eatro e, se m aterialm ente n ad a m o im ­ pede, não vou sair daqui sem havê-lo conseguido. Pois bem, p ara tal finalidade necessito de todos esses ingre­ dientes. T eatro! N ão h á talvez um a só p alav ra na língua que n ão te­ n ha várias significações; quase sem pre tem m uitas. E n ­ tre essas significações m últiplas os lingüistas costum am distinguir um a que cham am de significação ou sentido forte da palavra. E ste sentido fo rte é sem pre o m ais p re­ ciso, o mais concreto, diríam os o m ais tangível. V am os falar do T eatro . Pois bem , p artam o s do sentido forte desta palavra, segundo o qual o T eatro é antes de tudo, nem mais .nem m enos, um edifício — um edifício de es­ tru tu ra determ inada, p o r exem plo, vosso belíssim o T ea ­ tro de São C arlos que o bairro A lto de L isboa parece le­ var debaixo do braço. N o entanto, a destinação atual desse teatro , onde se d ão concertos e são cantadas óperas, descaracteriza a Idéia p u ra do T eatro. O grego

Plano de um Teatro

tinha p ara um edifício desta destinação outro nom e: cham ava-o odeion, odéon, auditório. E m troca, se eu estivesse agora falando a vocês frente ao cenário do T eatro de D ona M aria, poderia plenam en­ te e sem reservas com eçar um a resp o sta à p ergunta: Q ue é o T eatro?, apenas levantando o braço e estendendo o indicador — o que eqüivale a dizer: “Senhores, isto que vêem é o T e a tro ” . M as com o não èstam os lá, p ro cu ­ rei que o desenhista S enhor Segurado m e delineasse esse esquem a do in terio r do T eatro de D o n a M aria p a ra que eu possa dizer-lhes, sem m ais reservas exceto a de que se trata de um esquem a: A í têm vocês o que é o T eatro . P o r um a coincidência tão feliz com o involuntária aconte­ ce celebrar-se hoje o centenário deste T eatro de D ona M aria, o m ais tradicional e em inente de L isboa. N ão saltem os desdenhosam ente este sentido, o m ais hum ilde da palav ra, o m ais usado no fa la r das gentes e o m ais efetivo na vida de cad a um de nós. Se soltássem os esta prim eira significação de T eatro — repito, a m ais simples, a m ais trivial, a que está m ais à m ão, a saber: que o Teatro é um edifício — , correríam os o risco de saltar to d a a restante realidade teatral, a m ais sublim e, a m ais profunda, a m ais substantiva. P artindo , pois, deste esquem a arquitetônico do T e a ­ tro de D ona M aria, vam os ver se fazem os nosso p en sa­ m ento m arch ar em rigoroso itinerário dialético. “P en sar dialeticam ente” q u er dizer que cada passo m ental que dam os nos obriga a d a r novo passo; não um qualquer, não assim ao capricho do acaso, m as outro passo d eter­ m inado, porq u e o que foi visto p o r nós no prim eiro passo da realidade que nos ocupa — e agora é a realidade

“T e a tro ” — nos descobre, queiram os ou não, outro e n o ­ vo lado ou com ponente dela que antes não havíam os p er­ cebido. É , pois, a coisa m esm a, a realidade m esm a T e a­ tro que vai guiar nossos passos m entais, que vai ser nos­ so lazarilh o * 5. A p roveitando este tem a, que não parece filosófico, quero d a r um exem plo do m ais rigoroso m éto­ do dialético — e ao m esm o tem po fenom enológico — aos jovens intelectuais de L isboa, se p o r acaso alguns se encontram aqui e não estão todos na Brasileira6. O T eatro é um edifício. U m edifício é um espaço dem arcado, isto é, separado do resto do espaço que p e r­ m anece fora. A m issão da arq u itetu ra é construir, frente ao “fo ra ” do grande espaço plan etário , um “d e n tro ” . A o dem arcar o espaço se dá a este um a form a in terio r e esta form a espacial interio r que inform a, que organiza os m a­ teriais do edifício, num a finalidade. P o rtan to , n a form a interio r do edifício descobrim os qual é em cada caso a sua finalidade. P o r isso a fo rm a interior de u m a catedral é diferente da form a in terio r de um a estação ferroviária e am bas d a form a in terio r de u m a m orada. E m cada caso os com ponentes da fo rm a são assim e não de outro m odo, porque servem a essa determ in ad a finalidade. São m eios para isto ou aquilo. Os elem entos da form a especial sig* Pouco usado mas cujo sentido de menino-guia de lázaro não tem outro correspondente em português. (N. do T .) 5. A famosa «dialética» original de Hegel é, em verdade, miserável. Nela o «movimento do conceito» procede m ecanicam ente de contradição em contra­ dição, isto é, o pensar é movido por um cego formalismo lógico. O «pensar dialético» que emprego como modo intelectual e ao qual o texto se refere é movimentado por um a dialética real, em que a coisa mesma é que vai em pur­ rando o pensam ento e obrigando-o a coincidir com ela. Em que consiste, como é possível e por que é necessário este novo «método» são m atérias que o leitor encontrará expostas em meu livro próxim o a ser publicado: El origen de la Filosofia e plenam ente desenvolvidas em outra obra, E p ílo g o ..., que es­ pero que veja a luz em fins deste ano. (Veja-se Obras Completas, tomo IX , Origen y epílogo de la filosofia). 6. Café de tertúlias literárias em Lisboa.

nificam, pois, instrum entos, órgãos feitos p a ra funcionar em vista daquele fim , e sua função nos in terp reta a form a do edifício. C om o diziam os antigos biólogos, a função faz o órgão. D everiam dizer que tam bém o explica. In ­ versam ente, a idéia do edifício, que os construtores, p o r­ tanto, o E stad o ou os p articulares, juntos com o arquite­ to, tiveram , atua com o um a alm a sobre os m ateriais iner­ tes e am orfos — p edra, cim ento, ferro — e faz com que estes se organizem em d eterm inada figura arquitetônica. N a idéia do T e a tro — edifício — vocês têm um bom exem plo do que A ristóteles cham ava alm a ou entelequia. Pois bem , b asta con tem p lar um instante este esque­ m a do T eatro de D o n a M aria p a ra que salte à vista, com o o mais característico de sua fo rm a interior, que o espaço dem arcado, o “d en tro ” que é um teatro, está, p o r sua vez, dividido em dois espaços: a sala, onde vai estar o público, e o cenário, onde vão estar os atores. O espaço teatral é, pois, um a dualidade, é um corpo orgânico com ­ posto de dois órgãos que funcionam um em relação com o outro: a sala e a cena. A sala está cheia de assentos: as p oltronas e os ca­ m arotes. Isto indica que o espaço “sala” está disposto p a ra que alguns seres hum anos — os que integram o p ú ­ blico — estejam sentados e, p o rtan to , sem fazer m ais n a­ da senão ver. E m troca, a cena é um espaço vazio, ele­ vado a um nível m ais alto que a sala, a fim de que nela' se m ovam outros seres hum anos que não perm anecem quietos com o o público, m as sim ativos, tão ativos que p o r isso se cham am atores. P o rém o curioso é que tudo o que os atores fazem em cena o fazem diante do público e quando o público se vai eles tam bém se vão — quer dizer, tudo o que fazem o fazem para que o público o veja.

Com isso tem os um novo com ponente do T eatro. À p ri­ m eira dualidade, que a sim ples form a espacial do edifício nos revelava — sala e cenário — , agrega-se agora outra dualidade que não é espacial, m as h u m an a: na sala está o público; n a cena, os atores. A coisa com eça a com plicar-se um pouco e saboro­ sam ente quando, com o acabo de dizer, percebem os que esses hom ens e m ulheres que se m ovem e falam no palco não são criaturas quaisquer, m as são esses hom ens e m u­ lheres que cham am os atores e atrizes; isto é, que se ca­ racterizam p o r um a atividade especialm ente intensa. A o passo que os hom ens e m ulheres de que o público se com ­ põe, enquanto são público, caracterizam -se p o r um a espe­ cial íssima passividade. C om efeito, em co m paração com o que fazem os o resto do dia, quando estam os no teatro e nos convertem os em público n ão fazem os nad a ou p o u ­ co m ais; deixam os que os atores nos façam — p o r exem ­ plo, que nos façam chorar, que nos façam rir. A o que parece, o T eatro consiste num a com binação de hiperativos e hiperpassivos. Som os, com o público, hiperpassivos porque a única coisa que fazem os é o m ínim o fazer que cabe im aginar: ver e, p a ra com eçar, nad a mais. C erta­ m ente, no T eatro tam bém ouvim os, m as, segundo vam os em seguida perceber, o que ouvim os no T eatro o ouvim os com o que dito por aquilo que vemos. O ver é, pois, nosso prim ário e m ínim o fazer no T eatro . C om o que às duas dualidades anteriores — a espacial de sala e cena, a hu­ m ana de público e atores — tem os de acrescentar um a terceira: o público está n a sala para ver e os atores no palco p a ra serem vistos. Com essa terceira dualidade, chegam os a algo p uram ente funcional: o ver e o ser visto. A gora podem os d a r um a segunda definição do T eatro,

um a m igalha m ais com pleta que T eatro é um edifício que tem um a ca constituída p o r dois órgãos — postos p a ra servir a duas funções o ver e o fazer ver.

a prim eira e dizer: o form a in terior orgâni­ sala e cenário — dis­ opostas m as conexas:

Sem pre vocês ouviram dizer, desde a escola, que o T eatro é um gênero literário, um dos três grandes gêne­ ros literários que a Preceptiva* costum a distinguir: É pi­ ca, Lírica e D ram a ou D ram aturgia, a obra teatral. Se repararem um pouco, se se libertarem p o r um in stante do hábito m ental que essa fórm ula tão repetida produz em nós e, atendendo à realidade que contem plam diante de vocês quando pensam “T e a tro ” , essa inveterada noção de T eatro com o gênero literário, assim, sem m ais, não os deixa estupefatos? P orque o literário se com põe só de palavras — é p ro sa ou verso e n ad a mais. M as o T eatro n ão é apenas p rosa ou verso. P ro sa e verso há fo­ ra do T eatro — no livro, no discurso, na conversação, no recital de poesia — e nada disso é o T eatro . O T eatro não é um a realidade que, com o a p u ra palavra, chega a nós pela pu ra audição. N o T e a tro n ão só ouvim os, com o tam bém , m ais ainda e antes que ouvir, vem os. V em os os atores m overem -se, gesticularem , vemos seus disfarces, vemos as decorações que constituem a cena. D esse fundo de visões, em ergindo dele, nos chega a p alavra com o que dita com um determ inado gesto, com um preciso disfarce e a p a rtir de um lugar pintad o que p retende ser um salão do século X V II ou o F o ro de R o m a ou um beco da M ouraria7. * Designa a disciplina e os tratados normativos de poética e retórica. (N. do T .) 7. Ruelas sem saída do bairro mais popular de Lisboa, onde na verdade valeria a pena ouvir can tar um fado a genial e belíssima fadista Amália Ro­ drigues.

A palav ra tem no teatro um a função constituinte, m as m uito d eterm inada; quero dizer que é secundária à “ represen tação ” ou ao espetáculo. T e a tro é p o r essência presença e potência de visão — espetáculo — , e enquan­ to público, som os antes de tu d o espectadores, e a palavra grega ôeaxpov, teatro , não significa senão isso: m iradouro, m irador. T ínham os, pois, razão quando, ao refletir um ins­ tante sobre o inveterado dito segundo o qual o T ea tro é um gênero literário, ficávam os estupefatos. A estup-tíação é o efeito que pro d u z o es/wp-efaciente e o estup-efaciente m ais grave e, p o r desgraça, o m ais habitual é a estup-idez. A D ram atu rgia é apenas secundária e parcialm ente um gênero literário e, p o rtan to , m esm o isso que, em ver­ dade, ela tem de literatu ra n ão pode ser contem plado de form a isolada daquilo que a o b ra teatral tèm de espe­ táculo. O T e a tro — literatu ra — podem os lê-lo em nossa casa, à noite, de chinelas, ju n to à lareira8. Pois bem , po­ de ocorrer que, olhando bem sua realidade, nos pareça, com o o mais essencial do T eatro , ser preciso sair de casa e ir a ele. Se o prim eiro sentido forte e vulgar, fecundissim am ente ingênuo da palavra T eatro , é significar um edi­ fício, o segundo sentido, tam bém forte e vulgar, seria este: T e a tro é um local aonde se vai. E nos perguntam os com freqüência uns aos outros: “ Irá esta noite vossa ex­ celência ao teatro?” O T e a tro é, com efeito, o contrário de nossa casa: é um local aonde é preciso ir. E este ir a, que im plica um sair de nossa casa. é, com o vam os em se­ guida averiguar, a própria raiz dinâm ica dessa magnífica realidade hum ana que cham am os T eatro. 0.

V er o Anexo III, Teatro, gênero literário. (V er a «Nota Prelim inar».)

O T eatro , p o r conseguinte, m ais que um gênero li­ terário é um gênero visionário ou espetacular. Logo des­ cobrirem os em que enérgico e superlativo sentido o é. O T eatro não acontece dentro de nós, com o sucede com outros gêneros literários — poem a, rom ance, ensaio — , mas sucede fo ra de nós, tem os que sair de nós e de nossa casa e ir vê-lo. T am bém o C irco, tam bém a co rrida de touros são espetáculos, são coisas que se tem de ir ver. N ão obstante, vam os apren d er m uito depressa no que estes dois o utros espetáculos se diferenciam do espetáculo teatral. C ertam ente, o Circo e a Tourada, a título de espetáculo, pertencem à m esm a e divertida fam ília do T eatro. O C irco e os T ouros, digam os, são prim os do T eatro : o Circo seria seu prim o vesgo, a Tourada seu prim o atroz, seu prim o torto. M as o que é que vem os no palco? P o r exem plo, ve­ mos a sala de um castelo — palácio m edieval no norte da E u rop a, que se abre largam ente sobre um p arque, p re­ cisam ente o parq u e de E lsinor; vem os a m argem de um rio que desliza em fluxo lento e triste, árvores que sobre suas águas se inclinam com vago p esar — , bétulas, álam os e um salgueiro chorão que deixa cair seus ram os. N ão é certo, senhores, que o salgueiro é um a árvore que parece estar cansada de ser árvore? V em os um a m oça trêm ula que traz flores e ervas nos cabelos, no traje, nas m ãos e avança vacilante, pálida, o o lh ar fixo em um p onto da grande distância, com o que o lhando sobre o horizonte, onde não há nenhum a estrela; não obstante, há um a es­ trela, a m ais linda estrela, a estrela nenhum a. É Ofélia — Ofélia dem ente, coitada!, que vai baixar ao rio. “B ai­ xar ao rio ” é um eufem ism o com que na língua chinesa se diz que alguém m orre. Isto é, senhores, o que vemos.

Mas não, não vemos isso! Será que p o r um instan­ te padecemos de um a ilusão de óptica? P o rq u e o que de fato vemos são som ente telas ou cartões pintad os; o rio não é rio, é p in tu ra; as árvores não são árvores, são m an ­ c h a de cor. O félia não é O félia; é . . . M arian inha Rey Colaço9. No que ficam os? V em os um ou outro? O que é que própria e verdadeiram ente acham os aí, no cenário, diarte de nós? N ão h á dúvida: aí diante de nós acham os as düas coisas: M arian in h a e Ofélia. M as não as acha­ mos — isto é o curioso! — , não as acham os com o se fossem duas coisas, m as com o sendo um a só. “A p resen ta”-se-nos M arianinha, que “ re-p resen ta” Ofélia. Q uer dizer, as coisas e as pessoas no palco se nos apresentam sob o aspecto ou com a virtude de representar outras que não são elas. Isto é form idável, senhores. E ste fato trivialíssim o que acontece cotidianam ente em todos os teatros do m un­ do é talvez a m ais estranha, a m ais ex trao rd in ária aventu­ ra que acontece ao hom em . N ão é estranho, não é ex­ traordinário, não é literalm ente m ágico que o hom em e a niulher lisboetas possam estar hoje, em 1946, sentados em suas poltronas e cam arotes do T eatro de D ona M aria e ao Mesmo tem po estejam seis ou sete séculos atrás, na briimosa D inam arca, ju n to ao rio do parq u e que rodeia o palácio do rei e vendo cam in h ar com seu passo sem peso esta fiam m etta lívida que é O félia? Se isto não é ex trao r­ dinário e m ágico, eu não sei que o u tra coisa no m undo está mais próxim o de sê-lo. 9' Filha da ilustre prim eira atriz do T eatro de Dona M aria, Senhora Amé­ lia K£V Colaço de Robles M onteiro. M arianinha vai estrear na cena poucos dias depíii* da data em que esta conferência foi pronunciada.

Precisem os um pouco m ais: aí está M arian in h a cru­ zando às cegas o palco; m as o supreendente é que está sem estar — está p a ra desap arecer a cada instante, com o se escam oteasse a si m esm a, e p a ra conseguir que no va­ zio de sua prim orosa co rp o reid ad e se aloje O félia. A realidade de um a atriz, enquanto atriz, consiste em negar a sua pró p ria realidade e substituí-la pela personagem que representa. Isto é re-p resen tar: que a presença do ator sirva n ão p a ra ele presentar-se* a si m esm o, mas para presen tar o u tro ser distinto dele. M arian in h a desa­ parece com o certa M arian in h a p orque fica coberta, ta p a ­ da p o r O félia. E do m esm o m odo as decorações ficam tapadas, cobertas p o r um p arq u e e um rio. D e sorte que o que não é real, o irreal — O félia, o p arque do palácio — , tem a força, a virtude m ágica de fazer d esap arecer o que é real. Se em um a ocasião destas refletirem sobre o que lhes acontece e tentarem descrevê-lo p a ra responder à pergunta an terior sobre o que se nos depara no palco, terão de dizer-se assim : deparam o-nos prim eiro e à frente com Ofélia e um parque; atrás e com o em segundo plano, M arianinha e um as telas pinturiladas. D ir-se-ia que a rea­ lidade se retirou para o fundo a fim de deixar passar a tra ­ vés de si, com o a contraluz de si, o irreal. N o palco encon­ tramos, pois, coisas — as decorações — e pessoas — os atores — que têm o dom da transparência. A través deIas, com o através do cristal, transparecem outras coisas. A gora podem os generalizar o percebido e dizer: há noi m undo realidades que têm a condição de apresentar* l’ara dar o sentido pleno de ação do ato r, nos termos do original, rei..iri a esta forma pouco usada, mas existente em português, em lugar de «apre9«ntnr». (N. do T . )

nos em lugar delas m esm as outras, distintas. R ealidades dessa condição são as que cham am os im agens. U m qua­ dro, p o r exem plo, é um a “realidade im agem ” . N ão che­ ga a um m etro de com prim ento e tem ainda m enos de altura. N ão obstante, nele vem os um a paisagem de vários quilôm etros. N ão é isto m ágico? A quele pedaço de ter­ ra com suas m ontanhas e seus rios e sua cidade está ali com o que enfeitiçado — em apenas um m etro deparam os vários quilôm etros e em vez de um a tela com m anchas de cor encontram os o T ejo e L isboa e M onsanto. A coisa “q u ad ro ” p en d u rad a na p ared e de nossa casa está cons­ tantem ente transform ando-se no rio T ejo, em L isboa e em suas alturas. O quadro é im agem p orque é perm anen­ te m etam orfose — e m etam orfose é o T eatro , prodigiosa transfiguração. Q uisera que vocês conseguissem m aravilhar-se, isto é, surpreender-se com este fato tão trivial que nos sucede todos os dias no T eatro. P latão faz co n star que o conhe­ cim ento nasce dessa capacidade p a ra nos surpreender­ mos, m aravilharm os, assom brarm os de que as coisas se­ jam com o são, precisam ente com o são. O que vem os aí, no palco cênico, são im agens no sentido estrito que acabo de definir: um m undo im aginá­ rio; e todo teatro, p o r hum ilde que seja, é sem pre um m onte T a b o r onde se cum prem transfigurações. O cenário do T eatro D o n a M aria é sem pre o m esm o. N ão tem m uitos m etros de com prim ento, de altura, de profundidade. Consiste em algum as tábuas, em algumas paredes quaisquer, m atéria trivialíssim a. N o entanto, lem brem vocês de todas as inum eráveis coisas que esse breve espaço e esse p o b re m aterial foram p a ra vocês. Foi m osteiro e cab an a de pastor, foi palácio, foi jardim , foi

rua de u rb e antiga e de cidade m oderna, foi salão. O mesmo acontece com o ator. E sse m esm o e único ator foi p ara nós incontáveis seres hum anos: foi rei e foi m en­ digo, foi H am let e foi D on Juan. O cenário e o ato r são a m etáfora universal corporificada, e isto é o T eatro : a m etáfo ra visível. M as re p a ra ram vocês no que é o m etafórico? T om e­ mos com o exem plo, p ara que fique m ais claro, a m etáfora mais simples, m ais antiga e m enos seleta, a que consiste em dizer que a face de um a m oça é com o um a rosa. G e­ ralm ente a p alav ra “ ser” significa a realidade. Se digo que a neve é b ra n c a dou a enten d er que a realidade neve possui realm ente essa cor real que cham am os b ranco. M as o que significa ser quando digo que a face de um a m ocinha é um a rosa? T alvez vocês recordem o delicioso conto de W ells que se intitula “ O hom em que podia fazer m ilagres” . De noite, num a tab ern a de L ondres, dois hom ens quaisquer, já afetados pelos pesados vapores da cerveja, discutem fastidiosam ente sobre se há ou n ão m ilagres. U m crê neles, o o u tro não. E em certo instante o incrédulo excla­ ma: “ Isso é com o se eu dissesse agora que esta luz se apague e a luz se apagasse!” ; e eis que um a vez p ro n u n ­ ciadas estas palavras, a luz, efetivam ente, se apaga. E desde aquele m om ento tudo o que aquele hom em diz ou sim plesm ente pensa, m esm o sem q uerer dizê-lo fo rm al­ mente, acontece, se realiza. A série de aventuras e conílitos que este poder, tão m ágico com o involuntário, lhe proporciona constitui a m atéria do conto. P o r fim um agente da Polícia o persegue tão de perto que o pobre liomem pensa: “P o r que n ão se vai ao diabo este polí­ cia!” . E, com efeito, o polícia se vai ao diabo.

M as suponham vocês que algo parecido acontecesse ao hum ilde apáixonado cuja im aginação n ão chega a mais do que a dizer da face da donzela am ada que é u m a rosa — p ortan to , que de p ro n to aquela face se convertesse real­ m ente num a rosa. Q ue espanto! N ão é certo? O infeliz se angustiaria, ele não havia querido dizer isso, era pura brincadeira — o ser rosa a face era apenas m etafórico; não era um ser no sentido de real, m as um ser no sentido de irreal. P o r isso, a expressão m ais u sada n a m etáfora em prega o com o e diz: a face é com o um a rosa. O ser com o não é o ser real, senão um com o-ser, um quase-ser: é a irrealidade com o tal. P erfeitam ente; m as então, o que é que sucede quan­ do sucede um a m etáfora? Pois sucede isto: há a face real e há a rosa real. A o m etaforizar ou m etam orfosear ou tran sfo rm ar a face em rosa é preciso que a face deixe de ser realm ente face e que^ a rosa deixe de ser realm ente rosa. As duas realidades, ao serem identificadas na m etá­ fora, chocam -se um a com a outra, se anulam reciproca­ m ente, se neutralizam , se desm aterializam . A m etáfora vem a ser a bom ba atôm ica m ental. O s resultados da aniquilação dessas duas realidades são precisam ente essa nova e m aravilhosa coisa que é a irrealidade. Fazendo chocarem -se e anularem -se realidades obtem os prodigio­ sam ente figuras que não existem em nenhum m undo. P o r exem plo, p ara com pensar a m iséria da velha m etá­ fora que m e serviu de exem plo recordarei esta o u tra b e­ líssima de um recente p o eta catalão. F alan d o de um cipreste direi que “ o cipreste é com o o espectro de um a cham a m o rta” 10. 10. (V er do autor Ensayo de Estética, a manera de prólogo, Cap. V «La M etáfora», Obras Completas:, tom o IV .)

O ser com o é a expressão da irrealidade. M as a lin­ guagem tardou m uito a conseguir en co n trar essa fórm ula. Max M üller fez n o tar que nos poem as religiosos da Ín ­ dia, nos V edas, que são, em p arte, os textos literários mais antigos d a H um anidade, a m etáfora não se expressa ainda dizendo que um a coisa é com o outra, m as precisa­ m ente p o r meio da negação; o que dem onstra a razão que tinha quando disse ser preciso que duas realidades m utuam ente se neguem , se destruam , para que nasça e se produza a irrealidade. Com efeito, M ax M üller adver­ te que quando o poeta védico quer dizer que um hom em é forte com o um leão diz: fortis non leo, é forte, m as não é um leão; ou então para expressar que um caráter é duro com o um a rocha, dirá: durus non rupes, é duro, m as não é um a rocha; é bom com o um pai, diz-se\bonus non pater, é bom , m as, bem entendido, não é um pai. Pois bem , o m esm o acontece no teatro, que é o “com o se” e a m etáfora corporificada — p o rtan to , um a realidade am bivalente que consiste em duas realidades — a do ato r e a da personagem do d ram a que m utuam ente se negam. É preciso que o ato r deixe d u ran te um m o­ m ento de ser o hom em real que conhecem os e é preciso tam bém que H am let não seja efetivam ente o hom em real que foi. É m ister que nem um nem outro sejam reais e que incessantem ente se estejam desrealizando, neutrali­ zando p a ra que só fique o irreal com o tal, o im aginário, a pura fantasm agoria. M as esta duplicidade — o ser, ao m esm o tem po, realidade e irrealidade — é um elem ento instável e sem ­ pre correm os o risco de ficar com um a só das duas coi­ sas. O m au a to r nos faz so frer porque não consegue convencer-nos de que é H am let, m as continuam os sem ­

pre vendo o infeliz Perez ou M artínez que lhe acontece ser. Inversam ente, a gente ingênua, p o p u lar n ão conse­ gue en tra r nesse m undo “ info rm al”, m etafórico e irreal. Todos nós nos recordam os quando nossa velha e ingênua criada, de origem cam ponesa, foi um a vez ao teatro e ao contar-nos suas im pressões averiguam os que to m a ra os acontecim entos da cena com o se fossem reais e que ela havia pretendido prevenir o a to r de que, se perm ane­ cesse ali, os inimigos iriam m atá-lo. A fantasm agoria solidifica-se, precipita em alu­ cinações por pouco instável que seja a alm a do espectador. Do mesmo modo que, para ver um objeto a certa dis­ tância, os músculos da vista têm que d ar ao globo ocular o que se cham a “acom odação” , nossa m ente tem de saber acom odar-se para que consigam os ver esse m undo im a­ ginário do T eatro que é um m undo virtual — que é ir­ realidade e fantasm agoria. H á quem por excessiva ca­ rência de educação, com o nossa velha criada, se m ostre incapazes disso: mas há tam bém muitas outras causas que podem produzir um a cegueira peculiar para com o fan­ tasm agórico. R ecordem os um caso ilustre. É cerca de 1600; E s­ panha e Portugal convivem reunidos sob o cetro de nosso senhor Filipe III. E sta reunião não significava que P o r­ tugal estivesse sob o dom ínio da E sp an h a nem a E spanha sob o dom ínio de P ortugal, m as que am bos os povos estavam em união m ística e sim bolicam ente juntos na pes­ soa de Filipe III e na varin h a m ágica que era o seu cetro. A união transitória e fugacíssim a de E sp an h a e Portugal

teve não pouco de m etáfora, com o não falta tam pouco m etáfora no atual bloco. E stam os em um a aldeia castelhana, lá pela terra da M ancha, e encontram o-nos n a am pla cozinha da estalagem. Ali se congregou quase to d a a povoação porque acaba de chegar o titereiro M estre P edro, que vai d a r um a representação com seu teatrin h o de fantoches. E m um tenebroso rincão do vasto recinto se entrevê, inverossí­ mil, a figura de D. Q uixote, esgrouvinhada, esquálida, desalinhada e, em seus olhos, um a febre p erpétua de h e­ roísmo inoportuno. As figuras do teatrinho representam com o o cava­ leiro francês D om G aifeiros, prim o de R o ld ão , vassalo de C arlos M agno, liberta a esposa M elisendra, prisionei­ ra dos m ouros em Saragoça há anos. Já conseguiu sua fuga, já a leva escarrap ach ad a na g arupa de seu bom cavalo, já galopam felizes p a ra a doce F ran ça. M as os m ouros o percebem e em g rande tropel saem em sua per­ seguição. E se aproxim am , e se aproxim am tan to que parece im possível que se salvem! E n tão , C ervantes nos diz: V endo e ouvindo, pois, tanta m ourism a e tanto estrondo, pareceu a D. Q uixote que seria azado prestar ajuda aos que fugiam e pondo-se de pé, disse em voz alta: — N ão posso permitir que em meus dias e em m inha presença se faça aleivosia a tão fam oso cavaleiro e a tão atrevido enam orado com o D. G aifeiros; detende-vos mal nascida canalha, não o sigais nem persigais; se não, com igo em batalha estais. — E assim dizendo e fazendo, desem bainhou a espada e de um pulo se colocou junto ao teatrinho e com acelerada e nunca vista fúria com eçou a lançar uma chuva de cutiladas sobre a titereira mourism a, derrubando uns, degolando outros, estropiando a este, destroçando àquele, e entre outras muitas outras, descarregou um a tal espadeirada altibaixa que, se M estre1 Pedro não se abaixa, se encolhe e acaçapa, cortava-lhe a cabeça ~erce com mais facilidade que se fosse feita de massa de maçapão.

Passado o m om ento de frenesi M estre P edro faz ver ao bom D. Q uixote o dano que sua intem pestiva heroicidade lhe causara e lhe m o stra espalhados pelo chão os pedaços e fragm entos que restam dos bonecos, vítim as da alucinação de sua espada. E então D. Q uixote diz com esse nob re sossego e hab itu al solenidade que sem pre em ­ pregaram em seu fa la r os hom ens im pelidos pelo D estino: Agora acabo de crer o que muitas outras vezes acreditei: que estes nigrom antes que me perseguem nada mais fazem senão me colocar as figuras com o elas são diante dos olhos, e logo as mudam e trocam pelas que eles querem. Real e verdadeiramente vos digo, senhores que me ouvis, que a mim pareceu que tudo que aqui se passou de fato se passava ao pés da letra: que M elisendra era M elisendra: D . G aifeiros, D. G aifeiros; M arsílio, M arsílio e Carlos M agno, Carlos M agno; por isso me subiu a cólera e para cumprir com m inha obrigação de cavaleiro andante, quis dar aju­ da e favor, e com este bom propósito fiz o que vistes; se tudo m e saiu às avessas não é culpa m inha, mas dos malvados que me perseguem; e com tudo isto deste meu erro, em bora não tenha procedido com m alícia, qyero eu mesm a condenar-m e nas custas: veja M estre Pedro quanto' quer pelos bonecos estragados, que me proponho a pagar-lhe logo em boa e corrente moeda castelhana.

A qui vem os, senhores, funcionando a p rim eira du a­ lidade de que partim os — sala e palco cênico, separados pela boca do cenário, que é fro n teira de dois m undos — o da sala onde conservam os, ao fim de tudo, a realidade que som os, e o m undo im aginário, fantasm agórico da cena. E ste am biente im aginário, m ágico do cenário onde se cria a irrealidade é um a atm osfera m ais tênue que a da sala. H á diferente densidade e pressão de realidade em um e outro espaço e, com o acontece n a atm osfera efetiva que respiram os, essa diferença de pressão produz um a corren te de ar que vai do lugar de m aior p a ra o de m enor pressão. A boca do palco aspira a realidade do

público, e a suga p ara sua irrealidade. À s vezes esta cor­ rente de ar é um vendaval. Na pobre cozinha da estalagem castelhana soprou aquela noite o vendaval da fantasm agoria, e o m undo im aginário do teatrinho do M estre Pedro, com seu poder de sucção, absorveu a alm a im ponderável, instável de D. Quixote, fê-la passar da sala ao cenário. Isto quer dizer que D. Q uixote deixou de ser espectador, público, e se transform ou ele mesmo em personagem da obra teatral, com o que, ao tom á-la com o realidade, destruiu sua fan­ tasm agoria. Pois notem vocês que, a seu juízo, a reali­ dade ali, no cenário, era que os m ouros seguiam , com efeito, o autêntico D. G aifeiros e a autêntica M elisendra, e foram os nigrom antes quem converteram esses seres reais em ridículos bonecos. E lá vai ele atrás da mágica cauda branca do cavalinho de papelão onde galopa M e­ lisendra — M elisendra é sonho; lá vai a alm a incan­ descente de D. Q uixote e atrás de sua alm a vai seu corpo, e com seu corpo seu braço, e com seu braço o heroísm o absurdo, mas autêntico e talhante, de sua espada11. Janet e outros psicopatologistas franceses pouco perspicazes, com o, salvas algum as exceções —- Bergson, por exem plo — o foram os pensadores franceses da se ­ gunda m etade do século X IX , e cuja influência pesou penosam ente sobre o infortúnio intelectual de nossos países, diziam desta loucura que consistia na perd a do sentido do real. O que m e parece um a perfeita tolice. É bem claro que a verdade é o inverso: essas carências ou anom alias m entais revelam u m a perd a do sentido do 11. Ver M editaciones dei Q uijote, 1914. M editação prim eira. C ap.