Do For Love

Do For Love: o que Acontece Quando Você Une Sua Paixão Por Viajar Com Sua Vontade de Ajudar? Nascido da ânsia da autora

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Do For Love

Table of contents :
OdinRights
1. Veja o invisível, acredite no inacreditável, conquiste o impossível
2. Optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo
3. Segue seu coração
4. Moreno, esse terreno é perigoso
5. Você não é todo mundo
6. Se você não está disposto a arriscar, esteja disposto a uma vida comum (Jim Rohn)
7. O meu desejo de partir se completa muito bem com o meu medo de amar
8. Eu tinha vindo de muito longe para viver exatamente isso: o desconhecido
9. A professora nova que parecia vinda de outro planeta
10. No good
11. Que mais consciência seja dada às pessoas que habitam esse planeta.
12. Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo (Jostein Gaarden)
13. Teacher Lê
14. Eu era livre
15. Você vive ou sobrevive?
16. Progresso em sala de aula
17. Agricultores e Policiais
18. Vivendo como uma local
19. O ocidente encontra o oriente
20. Atravessei o mundo para estar aqui
21. Toda noite de festa na Tailândia termina em Karaokê
22. Eu tinha vontade de chorar toda vez que ele sorria para mim
23. As minhas despedidas são a celebração de tudo o que vivi
24. A falta de dinheiro me leva a viver aventuras que o dinheiro não compra
25. Cada viagem deveria ser uma experiência ímpar
26. De novo, não!
27. Meu mundo de certezas dE ponta-cabeça
28. Mais amigos que eu deixaria para trás, com a incerteza de um futuro reencontro
29. Bangkok, uma relação de amor ou ódio
30. Praticamente tudo na fronteira era falso, incluindo os próprios policiais…
31. Realizando o sonho de conhecer uma terra que parecia tão distante
32. Você conhece a lei do viajante?
33. Um paraíso na terra
34. Eu queria uma causa que realmente tocasse em mim
35. A minha conexão com a dor e a alegria do povo cambojano
36. O que eu estava fazendo ali?
37. "Eu sou uma criança diferente das outras"
38. Vamos construir uma casa
39. O plano é não ter plano
40. A Casa da Esperança
41. Os cenários reais que foram palco dessa tragédia cambojana
42. Cruzando o Vietnã do Sul ao Norte
43. O tufão Nari havia chegado
44. Eu sabia que ela estava orgulhosa de mim
45. Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar aprendendo muito mais do que ensinando
46. Toque de recolher na capital comunista
47. Meu coração me pedia para ficar
48. A vida é feita de lugares e pessoas
49. Um dia eu voltaria
50. Para cada tristeza uma alegria
51. A minha imagem refletida no espelho
52. O que vivemos aqui, poucas pessoas viverão em uma vida inteira
53. O meu projeto de vida
SIM, É POSSÍVEL…
Notas

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Sumário 1. Veja o invisível, acredite no inacreditável, conquiste o impossível 2. Optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo 3. Segue seu coração 4. Moreno, esse terreno é perigoso 5. Você não é todo mundo 6. Se você não está disposto a arriscar, esteja disposto a uma vida comum (Jim Rohn) 7. O meu desejo de partir se completa muito bem com o meu medo de amar 8. Eu tinha vindo de muito longe para viver exatamente isso: o desconhecido 9. A professora nova que parecia vinda de outro planeta 10. No good 11. Que mais consciência seja dada às pessoas que habitam esse planeta. 12. Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo (Jostein Gaarden) 13. Teacher Lê

14. Eu era livre 15. Você vive ou sobrevive? 16. Progresso em sala de aula 17. Agricultores e Policiais 18. Vivendo como uma local 19. O ocidente encontra o oriente 20. Atravessei o mundo para estar aqui 21. Toda noite de festa na Tailândia termina em Karaokê 22. Eu tinha vontade de chorar toda vez que ele sorria para mim 23. As minhas despedidas são a celebração de tudo o que vivi 24. A falta de dinheiro me leva a viver aventuras que o dinheiro não compra 25. Cada viagem deveria ser uma experiência ímpar 26. De novo, não! 27. Meu mundo de certezas dE ponta-cabeça 28. Mais amigos que eu deixaria para trás, com a incerteza de um futuro reencontro 29. Bangkok, uma relação de amor ou ódio 30. Praticamente tudo na fronteira era falso, incluindo os próprios policiais…

31. Realizando o sonho de conhecer uma terra que parecia tão distante 32. Você conhece a lei do viajante? 33. Um paraíso na terra 34. Eu queria uma causa que realmente tocasse em mim 35. A minha conexão com a dor e a alegria do povo cambojano 36. O que eu estava fazendo ali? 37. "Eu sou uma criança diferente das outras" 38. Vamos construir uma casa 39. O plano é não ter plano 40. A Casa da Esperança 41. Os cenários reais que foram palco dessa tragédia cambojana 42. Cruzando o Vietnã do Sul ao Norte 43. O tufão Nari havia chegado 44. Eu sabia que ela estava orgulhosa de mim 45. Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar aprendendo muito mais do que ensinando 46. Toque de recolher na capital comunista

47. Meu coração me pedia para ficar 48. A vida é feita de lugares e pessoas 49. Um dia eu voltaria 50. Para cada tristeza uma alegria 51. A minha imagem refletida no espelho 52. O que vivemos aqui, poucas pessoas viverão em uma vida inteira 53. O meu projeto de vida SIM, É POSSÍVEL… Notas

“A minha eterna gratidão a todas as pessoas que acreditaram nesse projeto junto comigo, desde o princípio, quando tudo ainda era um mero sonho! Ele é feito de pessoas incríveis e de muito amor.”

1. Veja o invisível, acredite no inacreditável, conquiste o impossível Em menos de 24 horas da minha chegada a Bangkok, eu já estava na delegacia tailandesa, aos prantos. Eu nunca havia sido furtada, mas nunca imaginei que a primeira vez ocorreria no primeiro dia de uma viagem de um ano, sozinha, pelo Sudeste Asiático. Sem passaporte, dinheiro ou cartão de crédito, eu estava mais próxima de me autodeportar do que de continuar qualquer plano de voluntariado como professora de inglês por terras carentes. Eu vim até aqui com as melhores intenções e não estava achando nada justa essa recepção tailandesa. Afinal, alguém vir pelas suas costas enquanto você caminha pela área mais turística da cidade e cortar a sua bolsa silenciosamente para retirar a sua carteira lá de dentro, estava longe de qualquer expectativa para o meu primeiro dia. Talvez todas aquelas pessoas que me disseram (ou pensaram) que uma garota sozinha, loirinha, de 24 anos – mas com jeito de 19 – não deveria se achar capaz de fazer uma viagem dessas, estivessem certas. O melhor que eu poderia fazer era resolver a situação o mais breve possível. Então, respirei fundo, enxuguei as lágrimas e me lembrei de que tudo acontece por alguma razão e comecei os procedimentos. Fiz o boletim de

ocorrência com direito a uma foto parecida com aquela que os criminosos tiram antes de serem presos, segurando uma placa com meu nome, dados e motivo da ocorrência. Confesso que, nessa hora, meu estado de humor mudou, afinal, essa seria uma foto que poucos turistas tirariam em Bangkok. Cancelei os meus cartões de crédito e descobri que só poderia ir a Embaixada Brasileira no próximo dia, já que hoje era domingo. Cogitei a hipótese de dormir na delegacia, uma vez que seria bem difícil sair dali sem nada de dinheiro. Mas, mexendo no meu bolso, eu achei 300 baths e me lembrei que, quando estava desesperada e chorando no meio daquela muvuca tailandesa com pessoas do mundo inteiro tentando encontrar seu caminho em meio a barracas de comida a céu aberto, cachorros famintos, cheiro de frutas exóticas misturado a frituras, alguns dos tailandeses que estavam trabalhando naquelas barracas de rua juntaram um pouco de dinheiro cada um e me deram. Meus pais sempre me ensinaram a negar e agradecer esse tipo de gentileza. Naquele momento eu não pude fazê-lo, pois eu realmente precisava de ajuda, e ver que aquelas pessoas simples, que trabalham duro para dar sustento as suas famílias, foram os que me ajudaram, me deu força para acreditar que tudo ficaria bem. Agradeci da melhor maneira que eu pude e pedi aos céus que abençoasse essas pessoas. Então agora eu tinha 300 baths, o que equivalia a aproximadamente 9 dólares que deveriam ser gastos com cautela. Era final de junho de 2013, época de muita chuva na cidade, mas fazia um sol quente que, agregado à

umidade super alta, tornava impossível fazer matemática do lado de fora. Sentei em um banco na delegacia mesmo e fiquei fazendo cálculos. Enquanto isso, vi um menino loiro que deveria ter mais ou menos a minha idade passando pelo mesmo procedimento que eu acabara de passar. Olhei para ele e perguntei em tom de empatia: “Oi! E aí, qual a sua história?”. “Estava em um bar ontem à noite e não me lembro de mais nada. Acordei hoje deitado em um banco sujo, na frente de um hospital, sem meu celular e o dinheiro que eu tinha”. “Já verificou se está tudo bem com você? Sabe que tem muito lady boy[1] por aqui, né?”. Ele riu, meio descrente do que havia acabado de escutar. “Já verifiquei tudo. Intocável.”. – respondeu ele, em tom de deboche, à minha piadinha infame. Foi assim, na delegacia, que fiz a primeira amizade da minha viagem. Doug era um cara muito tranquilo, de sorriso doce e sincero, um alemão que já havia sido obeso e hoje tinha um porte de atleta. Essa transformação fez com que ele acreditasse que tudo o que ele quisesse seria possível. Por isso, viajava por terras desconhecidas, para realizar um sonho antigo que antes o menino gordinho se encarregava de afundar junto com cada guloseima que devorava. Era uma pessoa serena, mas determinada e isso nos uniu em uma irmandade de três dias. Saímos da delegacia amigos até no Facebook das pessoas que trabalhavam lá! Pegamos carona com o carro da polícia que nos levou aos nossos respectivos hostels para buscarmos nossas malas e, com calma, eu consegui achar

um cartão de crédito que estava escondido na outra mochila. Adorei passear por Bangkok no carro da polícia! Dividimos um quarto xexelento com duas camas horríveis em um hotel indiano na Khao San Road, a meca dos mochileiros em Bangkok. A opção de saque estava indisponível no meu cartão e levou algum tempo até eu conseguir que o meu banco no Brasil a liberasse. Enquanto isso, eu pagava o que era possível com o cartão de crédito e o Doug me dava a parte dele em dinheiro. Assim, eu conseguia juntar os baths que eu precisava para sobreviver e ele conseguia economizar para reverter o que havia perdido. Naquela mesma noite, sentamos em um restaurante lindo na beira do rio, comemos fried rice — arroz frito com legumes —, que veio cuidadosamente servido em um abacaxi cortado pela metade, e bebemos Chang, uma das cervejas locais, para comemorar a vida e suas reviravoltas. Mal sabia que essa seria uma das poucas vezes, nos próximos meses, na qual comeria em um restaurante como esse. Eu e o Doug tínhamos tudo para fazer um miojo no hotel e beber água, mas resolvemos nos conectar com a abundância e festejar o que tínhamos ao invés de chorar as perdas. Conversamos de tudo, mas o assunto principal era a troca de experiências sobre nossas viagens. A conversa ficou ainda mais interessante quando descobri que ele havia passado um ano e meio na Austrália, o meu país de coração, onde também já morei por algum tempo. Estávamos muito felizes de ter encontrado um ao outro no meio a um momento tão delicado. A chance de você se

tornar melhor amigo de alguém enquanto mochila por algum país é maior do que com qualquer pessoa que more no seu quarteirão. Existe uma conexão quase que imediata de quem está na estrada, ainda mais de quem se encontra em uma delegacia. No dia seguinte, consegui ir até a embaixada para entrar com o pedido de um novo passaporte. Eu não esperava que teria de pagar pelas fotos e, como meu dinheiro estava contado, eu percebi que não teria dinheiro suficiente para voltar para o hotel. Contei cada moeda com a esperança de achar uma a mais, mas somei 80 baths e o táxi na vinda tinha me custado 120. Normalmente, eu já teria pego um ônibus cheio de locais e me aventurado pela cidade, mas acho que ainda estava um pouco em choque e preferi pegar o táxi mesmo. Vou de táxi até o taxímetro dar 80, depois eu desço e vou andando. Quando o taxímetro mostrou 70 baths, eu pedi para que o motorista parasse. Ele não falava nada de inglês e não entendia o que eu falava: afinal, eu havia mostrado o endereço de onde eu precisava ir e ele, como um bom taxista, tinha a missão de me deixar lá. Fui ficando apreensiva, visto que, em breve, o taxímetro marcaria 80. Comecei a fazer gestos. Peguei a minha bolsa, coloquei a mão dentro e demonstrei que alguém tinha pego minha carteira. Fiz um não seguido daquele roçar de dedos do dedão e do indicador, mas eu acho que em tailandês isso não significa dinheiro, porque ele continuava com cara de desconfiado olhando para mim. Tive uma ideia. Peguei

todas as moedas que eu tinha, mostrei para ele e fiz gestos como quem diz “isso é tudo que eu tenho”. O taxímetro já marcava 90. Ele ignorou aquela branquela esquisita que não parava de fazer sinais inteligíveis e continuou viagem. Eu desisti e pensei que com sorte eu poderia pedir emprestado na recepção do hotel ou algo do tipo, já que eu sabia que o Doug não estaria lá. Chegando próximo ao hotel, ele parou o táxi, o taxímetro mostrava 130 e eu, muito sem jeito, mostrei novamente todas as moedas, com vergonha em não ter o valor total da corrida e meio desanimada com as minhas tentativas de mímica frustradas. Para a minha surpresa, ele pegou todas as moedas e me devolveu uma de 25, sorrindo, fazendo um gesto de que estava tudo resolvido. Eu estava incrédula. Diferentemente daquela primeira vez em que os comerciantes me ajudaram, agora eu já sabia falar “Obrigada” em tailandês e repeti umas dez vezes “Kokunka” (o que está longe de ser a pronúncia correta), e me despedi do meu taxista sorridente. Eu estava em êxtase pelo que tinha acabado de acontecer e muito agradecida por todas as coisas positivas que tinham se sucedido do que, inicialmente, parecia uma tragédia. Naquele mesmo dia, eu reparei na tatuagem do Doug que dizia “See the invisible, believe the incredible, achieve the impossible”. A sensação era de que eu havia chegado em Bangkok há muito mais tempo do que somente esses dois dias e era inacreditável tudo o que já havia acontecido. Por um momento, me lembrei daquela garota cheia de sonhos e medos que, apenas quatro meses antes do início dessa viagem, se sentia perdida no meio no qual

estava inserida e eu seria sempre grata a ela, pela coragem de partir e de se permitir viver a sua (nossa) verdade.

2. Optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo Era metade de fevereiro de 2013, o Carnaval tinha chegado ao fim, o que anunciava o final da temporada de verão em Balneário Camboriú, conhecida por muitos como um pequeno paraíso na terra e rodeada de praias belíssimas, festas de qualidade e pessoas bonitas. Essa pequena cidade litorânea no estado de Santa Catarina tem espaço para todos: é possível surfar pela manhã e ir ao hip hop descontraído à noite ou, para os mais vaidosos, sair de lancha durante o dia para, depois, gastar rios de dinheiro em alguma balada. Além do mais, é uma cidade universitária, motivo pelo qual eu havia morado ali por cinco anos com o objetivo de me divertir muito, ao mesmo tempo em que me formava em Turismo e Hotelaria. Eu estava constantemente indo e voltando, o que tornava a minha localização geográfica sempre uma incógnita. No ano anterior eu havia me arriscado em um novo emprego na cidade de Maringá, onde trabalhei como apresentadora de um pequeno programa de TV sobre viagens, fiz viagens únicas pelo Brasil e pelo mundo, mas a minha incapacidade em fingir ser algo que eu não sou me fez desistir do falso glamour daquele emprego e me demiti. A temporada do verão 2012/2013 estava prestes a começar, então embarquei com todos os meus pertences em um

ônibus que me traria de volta a Balneário Camboriú onde poderia trabalhar com eventos e divulgação de marcas. Assim que cheguei na cidade, consegui fechar um contrato muito bom com uma marca de champagne e passei a temporada toda frequentando lugares super badalados, com a única missão de conhecer pessoas, sorrir e divulgar a marca. Eu precisava juntar uma grana e nem eu sabia para quê. Trabalhei a temporada toda com a Juliana, que, em pouco tempo, se tornou minha parceira para todas as horas. A Ju parece uma sereia, com a pele branquinha, o cabelo perfeitamente ondulado e o olho azul claro. Por onde ela passava, chamava a atenção, ainda mais quando íamos trabalhar de Fusca prateado – um fusca turbinado que meu pai tinha modificado, mas que estava parado em Curitiba. Como eu não tinha carro, ele desapegou dele e deixou que o usássemos durante a temporada. Com muitas risadas e música alta, eu e a Ju enfrentamos os dias quentes de verão nos locomovendo de um evento para o outro no querido Fuscão. Outros trabalhos de divulgação foram surgindo e eu acabava emendando um no outro para poder fazer uma grana extra. Como sempre, eu acabei trabalhando muito e, ao final da temporada, eu estava exausta. Nesse momento, eu me encontrava cansada fisicamente e psicologicamente. Por mais divertido que fosse, eu me sentia perdida naquele meio e, mais do que isso, eu estava me cansando das pessoas que eu encontrava, porque elas geralmente vinham acompanhadas de conversas previsíveis e vidas com roteiros pré-definidos. Eu não as julgava, mas tinha medo de me tornar uma delas. Foi em Balneário

Camboriú que eu tive a oportunidade de ter acesso a muitas coisas que a maioria das pessoas passariam uma vida toda tentando alcançar. E foi ali também que rapidamente eu percebi que aquela “felicidade comprada” não significava nada. Eu já havia cortado meus laços com a cidade alguns anos antes, quando meu pai estava precisando de dinheiro e concordamos que ele podia vender o apartamento onde eu morava e o meu carro, o Monstrinho, assim apelidado por ser uma 4x4 antiga que aguentava tudo. O que eu fiz? Fui pra Austrália com o desejo de fazer um Master em jornalismo e nunca mais voltar. Nunca diga nunca. Acabei voltando por causa do tal trabalho de apresentadora em Maringá. E, entre idas e vindas, ali estava eu novamente. Agora que meu contrato havia acabado, eu não queria recomeçar nenhum projeto naquela cidade. Não me entenda mal: o problema não era a cidade em si, mas o fato de que eu, optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo. Eu não me via mais ali. O meu ciclo naquele lugar tinha chegado ao fim. Esvaziei a kitnet que dividia com meu primo, coloquei o pouco que eu tinha no carro e parti. Eu teria tempo para refletir melhor enquanto dirigia.

3. Segue seu coração Eu nunca gostei dessa necessidade que as pessoas têm de definir tudo. Você precisa ter uma resposta específica para sua profissão, religião, de onde veio, aonde mora, status de relacionamento e por aí vai. Isso tudo porque existe a necessidade de se colocar cada pessoa em uma caixinha identificada, tornando o processo de autoconhecimento ainda mais intrincado. No entanto estamos falando de pessoas e não de objetos inanimados nos quais colam e descolam etiquetas de identificação como os convém. Estamos todos em constante transformação (ou, pelo menos, deveríamos). Todos querem respostas, certezas e conceitos que, no fundo, são inúteis e rasos. Nesse momento, eu sentia essa cobrança, que, na verdade, não vinha especificamente de ninguém que eu pudesse nomear: vinha do todo, da sociedade, da televisão, do Instagram, da revista, do vizinho, do ex-colega de escola que, sem querer, você acaba trombando na rua. Mas ela vinha ainda mais forte de mim mesma. Eu me cobrava pelo fato de não ter resposta a praticamente nenhuma dessas perguntas. Não, eu não tinha uma profissão. A minha religião? Eu acredito no bem. Nem me pergunte onde eu moro, porque isso é relativo. A minha casa é onde eu estou agora. Status de relacionamento? Recebendo mensagens no celular de um moreno lindo que conheci no carnaval e que mora a milhas de distância.

Por que eu tinha que ser tão complicada? Durante a minha vida inteira, eu vi adultos bem vestidos se encontrando e educadamente trocando essas perguntas e respostas de forma concisa. Falando da carreira, dos bens materiais adquiridos, dos filhos e da decoração da casa de praia. E, agora que tinha chegado a minha vez, eu estava assustada por não ter nem sequer a vontade de ter essas respostas. Eu nasci no interior do Rio Grande do Sul no dia 4 de novembro de 1988. As minhas maiores lembranças de infância envolvem uma bola de futebol, um rio na casa da minha avó materna e uma energia incalculável para fazer bagunça. Meus pais dizem que eu parecia um menino e, desconfio que depois que eu nasci, resolveram que apenas uma criança já daria trabalho o suficiente. Foi assim que eu me tornei filha única. Eles eram recém-casados e meu pai, engenheiro eletricista recém-formado. Esses fatores fizeram com que nos mudássemos com muita frequência toda vez que surgia uma oportunidade melhor de trabalho. Lembrome de ajudar minha mãe a encaixotar o pouco de pertences que tínhamos e entrar no carro, sedenta por mais uma aventura. Eu sabia como ninguém embrulhar copos com jornal e identificar caixas escrevendo frágil com um canetão. Aos 10 anos, eu já havia morado em dez casas e em seis cidades diferentes no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Ao todo, estudaria em mais de oito escolas, muitas vezes começando o ano letivo em uma e terminando em outra. Aos 12 anos, fizemos a maior mudança de todas. Meu pai havia conseguido um trabalho muito bom em Curitiba,

capital do Paraná, e foi para lá que nos mudamos. Quanto mais longa a viagem de carro, mais eu gostava, pois lia meus gibis, escutava música e ficava olhando pela janela. Até hoje, as longas viagens me alegram. Lembro-me do meu deslumbramento ao chegar naquela cidade tão diferente daquele interior que eu estava acostumada. Como a viagem era longa e seria muito custoso fazer uma mudança, levamos apenas o que coube no carro. Por isso, passamos alguns dias muito divertidos dormindo em um colchão no chão e usando a tábua de passar roupa como a nossa mesa de café da manhã, até que, aos poucos, fomos comprando o que era necessário. Quanto mais tínhamos, menor era a diversão e o uso da nossa criatividade. Apesar de gostar mesmo de pescar no rio e me sujar no banhado, eu me acostumei facilmente com a piscina que tinha no prédio. Era a primeira a chegar e a última a sair. Eu sempre tive paixão pela água, especialmente pelo mar. Nas férias, quando não íamos para a casa da minha avó materna no interior, íamos para a casa de praia dos meus avós paternos em Tramandaí. O mar me fascinava. Gostava quando meu pai me colocava na garupa dele e me levava até o fundo. Eu ficava de pé nos seus ombros, ele me impulsionava e eu voava lá de cima, naquela água salgada. Repetia isso inúmeras vezes até ele cansar e me convencer a pegar a prancha de isopor quebrada ao meio. Então, eu ia brincar no raso. Meus pais sempre me incentivaram a fazer o que eu gostava e o maior conselho que eu recebi era “Segue seu coração”. Me criaram de forma muito independente e

sempre falaram que filhos são criados para o mundo. Só não imaginavam que eu levaria a expressão tão ao pé da letra. Para resumir a minha vida cigana, já no primeiro ano da faculdade, eu fui trabalhar de salva-vidas, camareira e recolhedora de pratos nos EUA, porque queria melhorar o meu “to be”. Cheguei a trabalhar 90 horas por semana e contrariei a minha família com a decisão de trancar o meu curso na faculdade, para ficar sete meses ao todo. Fiz isso para realizar o sonho do meu primeiro mochilão sozinha no Hawaii e na Califórnia e, também, para pagar os custos da viagem de volta para o meu pai. Sobrevoar sozinha o Hawaii aos 18 anos foi um dos momentos que definiriam a minha vida como viajante. Da janela, eu via um tom de azul que até então só existia nas revistas e nos meus sonhos. Jamais imaginei que realizaria esse sonho tão cedo na minha vida. E foi ali, enquanto via as ilhas do Hawaii, que eu entendi que tudo o que eu quisesse realizar na vida seria possível. Movida por esse sentimento, algum tempo depois, eu morei com uma família no Peru, fiz meu estágio final da faculdade na Nova Zelândia e morei na Austrália. Vira e mexe, quando alguém me pergunta de onde eu sou, eu respondo com um sorriso no rosto: “De lugar nenhum. E você?”. Os mais bem-humorados levam na brincadeira, mesmo que sem entender. Outros, acham até ofensivo. Eu não falo isso para ofender ninguém. Na verdade, essa é a resposta mais sincera que eu posso dar, porque é exatamente assim que eu me sinto. Eu não criei raízes geográficas em lugar nenhum, as minhas raízes estão apenas naquela garota baixinha, loirinha e magrela que,

quando minha mãe brigava porque estava suja ou porque deveria ir para dentro de casa, pedia do fundo do coração: “Mãe, deixa eu ser feliz”. Essa garotinha sempre precisou de muito pouco para ser feliz e é ela que eu carrego comigo como referência de quem eu sou e de onde eu vim. ... Eu acabara de estacionar o carro na garagem do prédio dos meus pais em Curitiba. Havia percorrido os 230 km de viagem em pouco mais de 2 horas. A estrada estava vazia e poder pisar no fundo do acelerador enquanto dirigia anestesiava os meus pensamentos. Eu pensava muito e me questionava ainda mais. Atualmente, meus pais moram em Brasília e, para a minha sorte, o apartamento deles estava desocupado e eu tinha as chaves. O carro estava abarrotado com a minha mudança. Não que eu tivesse muita coisa, mas porque eu tomei essa decisão de forma precipitada. No calor do momento, enfiei tudo como eu pude no carro, que pedi emprestado para o meu primo, já que eu não arriscaria colocar o Fuscão na estrada. Respirei fundo, analisei a situação e concluí que era positiva. Afinal, toda a minha parafernália cabia em um carro pequeno e eu desfrutava da liberdade de ir para onde eu bem entendesse. E se tinha uma coisa que eu valorizava era a liberdade. Subi com toda a minha tralha pelas escadas até o quarto e último andar. Por ser um prédio antigo, não tem elevador. Larguei tudo na sala, retomei o fôlego e andei lentamente pelo apartamento, curtindo a sensação de me

sentir em harmonia ali, naquele lugar em que morei por tantos anos com meus pais. Ali, eu estava segura para ser quem eu era, sem os olhos do mundo a me questionar.

4. Moreno, esse terreno é perigoso Eu estava com uma viagem marcada para visitar uma amiga no Rio de Janeiro. Essa amiga era a Thati, eu a conheci quando morei na Austrália e o seu jeito descolada e de espírito viajante fez com que nossa amizade perdurasse. Combinamos que, assim que o meu trabalho de temporada acabasse, eu voaria para conhecer a tal da Cidade Maravilhosa. Sim, apesar de já ter viajado para diversos lugares, vergonhosamente eu ainda não conhecia o Rio. Bom, lembra do meu status de relacionamento? O tal moreno das mensagens era do Rio também e achei que seria uma boa deixa para encontrá-lo, aproveitando que a paixão da nossa semana juntos em Balneário ainda estava acesa. Eu sabia que as chances desse romance subir a serra eram baixíssimas e foi justamente por isso que eu apostei nele. Se tinha uma coisa na qual eu era boa, era isto: me envolver com muita intensidade, mas sem me apegar. Gostava de histórias intensas e curtas. Se alguém fosse visivelmente um candidato perfeito a futuro marido, adivinha? Eu corria fora. Caso contrário, eu ficava só para brincar com o fogo e ver ele apagar. Pode soar um pouco malvado da minha parte, e talvez até fosse, mas esse lance de se envolver não era compatível com meus sonhos de viagens.

“Oi, Lele. Quando vou te ver de novo?”. – As letras brilharam em forma de uma pergunta despretensiosa na tela do meu celular velho. “Sexta-feira, às 8 horas da noite, estou desembarcando no Rio” – Confesso que eu gostava de causar impacto. Eu, que era acostumada a chegar sozinha nos lugares para os quais eu viajava, bem que gostei de ver um moreno alto, de barba malfeita, bem-vestido e com um sorriso lindo no rosto me aguardando assim que eu cheguei no meio fio da área de desembarque. Ele me beijou, colocou minha mala no porta-malas e entramos no carro. Me deu um alivio quando vi que o carro dele era como o de qualquer ser humano normal. Eu não me sentia confortável em carros luxuosos: primeiro, porque sempre tem botões demais e eu não sei o que fazer com eles, e segundo, sei lá, pra que um ser humano necessita de algo tão luxuoso para se locomover dentro de uma cidade caótica? Confesso que estava um pouco nervosa, afinal, eu tinha conhecido ele em uma das festas de Balneário Camboriú três semanas atrás e, agora, estava sentada no carro dele, em outra cidade completamente diferente, que, diga-se de passagem, não era muito conhecida pela sua segurança. Eu e essa minha mania de confiar nas pessoas. Mas deixa eu explicar porque eu resolvi confiar no moreno. Naquele dia em que nos conhecemos, eu estava trabalhando na organização da entrada VIP da balada. Meu turno acabava às 3 horas da manhã, quando, supostamente, todos já deveriam ter entrado. Eu tenho uma grande amiga que se chama Thata (que, assim como a Thati, eu conheci na Austrália) e ela tinha vindo de São

Paulo para passar o carnaval comigo. Na hora combinada, ela apareceu para eu liberar a entrada dela e para curtirmos o que restava da festa. Estávamos conversando com um grupo de garotos que eu conhecia, quando, de repente, eu vejo uma pessoa mais ao fundo fazendo gestos estranhos. Olhei para os lados, desconfiando de que não era comigo. Ele fazia gestos como quem diz: “Para de falar com ele e vem aqui”. No mínimo, intrigante. Analisei aquela cena estranha já com uma risada de canto e perguntei pra Thata: “Ele tá falando comigo?” E minha companheira de festas, que já estava alguns copos de vodca mais animada que eu, concluiu rapidamente: “Claro, sua boba! E ele é um gato”. Concluí que ele deveria ser mudo e segui a festa. A conversa continuou até que resolvemos dar uma volta. Numa dessas voltas, a minha amiga e companheira descolou um gringo engraçadíssimo para treinar o inglês dela: ela, interessada no inglês, e ele, nela. Estávamos caminhando juntos e o gringo tentava puxar a Thata pra longe e, nesse empurra-empurra, eu dou de cara com o moreno gato dos sinais. Comecei a rir imediatamente. Vendo uma loirinha rir para ele, o moreno veio reto em minha direção. Para completar a cena, minha amiga diz: “Beija, ele é gatinho”, e o gringo a levou para longe. Eu fiquei ali, sozinha, olhando para o moreno e muito, mas muito sem graça. “Oi, quer tomar um drink comigo no bar?”. – Foi assim que eu descobri que ele não era mudo. Assim nos conhecemos. Ele me pagou uma Smirnoff Ice e conversamos por quase duas horas no bar. Ele me contou

que havia voltado recentemente de um período de três anos morando em Nova York. “Eu era treinador de futebol de meninas de 9 a 12 anos. Adoro trabalhar com crianças, foi uma experiência muito boa”. Boom!! Percebi que ele estava querendo me conquistar com esse papo mole de eu adoro criancinhas. “Na verdade, eu tenho planos de voltar pra Nova York. Já que você gosta de viajar, você poderia ir comigo pra lá, né?” Isso já era golpe baixo demais. Ele era do tipo jogador nato, daquele que não se importa de conquistar. Sabendo disso, resolvi entrar no jogo. “Claro, eu não conheço Nova York. Quando vamos?”. Para minha surpresa, ele se aproximou, olhando no fundo do meu olho e me beijou. Eu odeio alguém que joga esse jogo de romance melhor do que eu. E vi, ali, um competidor a minha altura. Ele era de fora e estava na cidade para curtir. Podia ver na maneira como os amigos dele olharam para mim, como quem analisa se eu valia 1 ou 2 pontos na contagem daquela noite. Eu nunca fui muito menininha e por isso sempre convivi muito bem com o sexo masculino. Acho eles mais práticos e menos dramáticos. Eu havia passado vários anos da minha faculdade curtindo e sabia muito bem como era bom estar com minhas amigas sem se importar com mais nada. Mas agora eu estava em um outro momento e resolvi respeitar o momento dele. Mas, para minha surpresa, recebi mensagem do moreno todos os dias. Não que eu ache que tenha sido a única, mas

pelo menos deveria estar tendo uma prioridade alta na lista. Ele só tinha mais uma semana na cidade e acabamos nos encontrando todos os dias. Passamos o nosso último dia juntos e, à noite, ele me chamou para uma festa com os amigos dele, que seria a festa de despedida, pois, no outro dia, eles embarcariam de volta para o Rio. Eu agradeci o convite, dei uma carona pra ele e o deixei na entrada da festa. “Aproveita com seus amigos. É a última noite de vocês.” E foi assim que deveria ter acabado essa história de carnaval. Mas, agora, eu estava dentro do carro dele no Rio de Janeiro. Falando nisso, já fazia quase uma hora que havíamos deixado o aeroporto e o caminho estava começando a ficar suspeito. Parecia que estávamos no interior: era escuro, as ruas esburacadas e estreitas. “Você se perdeu?”. – Perguntei, com cara de desentendida. “Na verdade, não. Mas resolvi te trazer em um lugar que eu sempre quis conhecer, mas nunca tinha tido a companhia que me fizesse sentir que valia a pena vir até aqui”. Sorri como quem acha fofo, enquanto pensava: “Não cai na dele, isso tudo é papo furado pra te conquistar.”. “Eu só sei chegar até aqui. Agora preciso ligar pro meu primo”. Eu não sou uma pessoa muito medrosa, mas confesso que fiquei um pouco desconfiada. Ele falou ao telefone com quem eu esperava ser realmente o primo dele e não o porteiro do cativeiro. Quando ele desligou, repetiu em voz alta:

“Conta seis lombadas e vira à esquerda. É uma entrada estreita entre dois muros”. Meu espírito aventureiro gostou da descrição e eu acabei relaxando. Contamos juntos as lombadas de terra e realmente havia uma entradinha quase imperceptível depois da lombada de número seis. O caminho era minúsculo, estava escuro e parecia que daria em uma rua sem saída, mas quando fizemos a curva havia uma rampa de pedras e uma placa com o nome de um restaurante. Sentados em um sofá confortável, em meio à floresta, e com uma linda decoração – luzes penduradas nas árvores e um fogão a lenha – eu e o moreno comemoramos esse reencontro tão inesperado. Entre conversas e risadas, eu o observava, sempre encantada com a beleza do seu sorriso, e pensava comigo que, talvez, eu deveria avisá-lo dos riscos de se envolver com uma pessoa como eu. Moreno, esse terreno é perigoso. Quem me olha sorrindo e com esse jeito meigo se engana, não imagina a imensidão e a intensidade da minha alma. Moreno, você não faz ideia da encrenca em que está se metendo.

5. Você não é todo mundo Eu perdi as contas de quantas vezes fui para o aeroporto durante esses dois meses que se passaram da minha mudança temporária para Curitiba, seja para embarcar para o Rio ou para buscar o moreno na área de desembarque. Rio e Curitiba já estavam pequenos demais para nós e ampliamos as nossas rotas. Ele me levou para Búzios. Eu o levei para a Praia do Rosa. E, assim, tínhamos planos de ir apresentando lugares diferentes um para o outro. No meio disso tudo, cheguei a cogitar a hipótese de ir morar no Rio de Janeiro, uma vontade antiga que tinha tudo para acontecer agora, uma vez que eu tinha amigos e um affair na cidade. Pesquisei tudo: aluguel, um mestrado e até fui a uma entrevista de emprego para uma vaga de Secretária Trilíngue. O plano parecia excelente, até o dia em que eu estava andando sozinha por Ipanema, quando a mulher da agência de empregos me ligou para dizer que eu tinha sido escolhida para a vaga e que eu deveria comparecer no próximo dia para um treinamento. Ela especificou a roupa que eu deveria usar, os documentos para trazer e me explicou o melhor ônibus para chegar lá. Meu organismo foi entrando em curto circuito enquanto eu tentava visualizar tudo o que ela estava me falando.

Me vi em roupas sociais que eu tenho pavor e pânico de vestir, usando um salto alto que eu ainda busco uma razão sensata para a sua existência, suando dentro de um ônibus ou endividada com as parcelas de um carro, como se o mundo precisasse de mais carros na rua e mais poluição no ar. E tudo isso para quê? Para eu fazer dinheiro para poder pagar as roupas, o sapato e o carro, tudo o que eu não fazia questão nenhuma em ter. Uma vozinha muito malvada sussurrou no meu ouvido: “Mas todo mundo faz isso! Bemvinda à vida real.”. Eu titubeei. Lembrei da minha mãe, que passou metade da minha adolescência dizendo: “Mas você não é todo mundo!”. Sábias palavras. “Alô? Desculpa, não sei se a ligação está boa. Você está me escutando? Preciso estar confirmando um horário que seja melhor para você.”. “Desculpa, a ligação ficou ruim, mas agora estou te ouvindo sim. É que o mestrado que eu estou aplicando aqui no Rio me pediu uns documentos e preciso viajar para o Sul amanhã. Infelizmente, eu não posso comparecer ao treinamento” “Mas a sua ausência fará com que você esteja perdendo a vaga” “É uma pena, mas eu realmente não posso comparecer. Te agradeço pela atenção, mas quando eu voltar de viagem, eu entro em contato com você novamente” Desliguei o telefone ainda sem entender nada. Quem inventou essa história toda? Quem falou aquilo para a mulher? Não tinha sido eu. Juro. Tinha sido alguma coisa falante e muito mais forte do que eu mesma que resolveu

me calar e soltar o verbo. Respirei fundo e senti um alívio imenso. Bom, quem quer que tenha dito aquilo, mandou muito bem, me salvou de uma furada. E aos poucos fui me dando conta de que aquele ser mais forte do que eu mesma era a minha essência me salvando do meu eu, digamos, “burro”. “Burro”, porque, se eu parasse para pensar por um momento, eu me daria conta de que essa vida que eu estava planejando não tinha nada a ver comigo. Eu precisava de uma razão maior. Entre essas viagens, eu já vinha passando mais tempo em Brasília com meus pais do que em Curitiba. Eu saí de casa com 17 anos e, desde então, não tinha mais passado períodos longos com eles. Eu estava com os níveis de cortisol altíssimos, havia ganho peso e estava totalmente perdida do que eu faria da minha vida, principalmente agora que a minha suposta ida para o Rio de Janeiro não aconteceria. Eu já havia me sentido assim antes em todas as vezes que eu voltei de uma viagem para o Brasil: o meu corpo sempre respondia de forma negativa. Era como se meu corpo não aceitasse que eu parasse. Às vezes, eu sentia uma vontade imensa de nunca ter viajado. Eu amaldiçoava as estradas que havia trilhado e as pessoas que encontrara. Queria me sentir satisfeita com roupas de marca, com homens ricos que pagam tudo, com maquiagem, com sapatos altos, com uma casa, com um trabalho. Seria tudo tão simples. Talvez ser feliz fosse ser ignorante. O mundo era um lugar injusto. O que você faz quando tudo o que acontece a sua volta não representa quem você

é? Quando o que a sociedade tem pra te oferecer não é o que você precisa? Malditas respostas que eu nunca encontraria. A vida era uma vadia. Eu me permitia entrar de corpo inteiro, profundamente, em todos esses pensamentos penosos e, então, me reerguia pouco a pouco, sabendo que eu tinha me tornado a soma de tudo o que eu tinha visto e vivido. Não havia um caminho de volta. Eu precisava trilhar um novo caminho. Conviver com os meus pais novamente me trouxe reflexões importantes para aquele momento. Olhando para o meu pai, eu via ali o meu exemplo de coragem, generosidade e inteligência. Um homem à frente de todos do seu tempo, simples, de espírito jovem e inovador, que gostava de viajar de moto. Até convenceu a minha mãe uma vez e a colocou na garupa para uma viagem de 15 dias até à Argentina. Não, meu pai não é um cara que acumulou riquezas materiais na vida, mas era, com certeza, um homem rico que sempre criou as próprias oportunidades e que ajudou muitas pessoas por onde passou. Até hoje, quando visito a minha avó materna no interior, encontro alguém que diz que foi meu pai que trouxe a eletricidade para o pequeno vilarejo. E não fico surpresa quando ele me conta que pegou um mendigo para ser ajudante na empresa. Ele também é muito exigente: sempre me cobrou nota 10 na escola. Quando eu pedia ajuda com as tarefas de matemática, ele me ensinava tudo em casa antes da professora, me fazendo chegar em sala de aula sabendo tudo de antemão. Enquanto os outros alunos faziam continhas simples, eu sabia fazer divisão que não era exata.

E eu cresci assim, acreditando que não havia limites de onde eu podia chegar. Já a minha mãe é meu exemplo de fé, força e humildade. É a pessoa mais calma e doce que você pode imaginar. Tem uma qualidade que poucos têm: a de saber ouvir os outros. Com sua tranquilidade, sempre tem uma palavra de sabedoria para proferir. Não é tão aventureira como meu pai, dando o equilíbrio necessário ao relacionamento. Com seus conselhos me ensinou a questionar as ordens do meu pai e a ver o mundo sob um olhar singelo. Eu era um reflexo dos meus pais e sabia que eles tinham me dado muitas ferramentas importantíssimas para a vida, aquelas que eu precisaria de sabedoria para usá-las da forma correta. Seria uma tremenda perda para o mundo se eu me contentasse em ser somente mais uma pessoa consumindo o que a televisão me vendia. Por isso, eu sentia essa inquietação dentro de mim que fervilhava meus pensamentos, não me deixando optar por uma vida banal. Se eu tinha tantas ferramentas em minhas mãos, precisava aprender a usá-las e, com isso, abrir novos caminhos. O que você faz quando tem muito? Você compartilha, você cria ainda mais. De alguma forma, eu sentia que uma estrela muito forte dentro de mim brilhava e a resposta para as minhas dúvidas e medos era simples: bastava acreditar.

6. Se você não está disposto a arriscar, esteja disposto a uma vida comum (Jim Rohn) Me deparei com essa frase enquanto lia a revista de bordo dentro do avião que, em poucos minutos, aterrissaria em Curitiba. Fiquei pensando nela durante todo o caminho no ônibus do aeroporto até em casa. Era necessário arriscar. Mas arriscar o quê? Nessas horas eu desejava do fundo do meu coração que, ao descer do ônibus, eu desse de cara com um monge careca, vestindo umas roupas largas e que colocasse a mão na minha cabeça e, em um tom de paz interior, me dissesse o que eu deveria fazer. Eu juro que eu seguiria o que fosse que ele dissesse. Desci do ônibus, andei em círculos só para ter certeza de que não havia nenhum monge na área. Uns mendigos aqui e outros ali, mais nada. Desisti da ideia e fui andando calmamente para o apartamento com a minha mochila nas costas. Meu celular vibrou no bolso, apareceu na tela: “Lele, espero que tenha feito boa viagem. Você é linda. Saudades.”. Por que ele não sumia do mapa? Ele já tinha conseguido tudo o que queria comigo. Não precisava mais ser fofo e atencioso. Ele era do tipo perigoso, que sabe que é bonito e

que usa o seu charme para conquistar. Eu já estava confusa o suficiente para ter que lidar com questões do coração. Chegando no apartamento, aproveitei para tomar um banho quente, comer e deitar para dormir. Eu estava cansada de tanto matutar coisas na minha cabeça e definitivamente eu necessitava de uma boa noite de sono para acalmar meus pensamentos. Acordei, na manhã seguinte, mais calma e optei por fazer coisas das quais eu gostava. Fui à padaria em frente ao prédio e pedi um misto quente com um suco de laranja natural. Depois, voltei para trocar de roupa e saí para dar uma corrida. Eu tinha pegado esse hábito de correr quando morei na Austrália e, desde então, se tornou uma das minhas atividades favoritas. Sem contar que, com o cortisol alto, eu precisava manter um ritmo de exercícios constantes. Enquanto corria, sentia meus pensamentos mais calmos. Na volta, eu parei no mercado e comprei ingredientes para o meu almoço, sem esquecer de uma garrafa de vinho tinto para acompanhar. Sentia um prazer imenso em estar sozinha em casa, ouvir música, cozinhar só para mim e tomar vinho. Isso me dava um prazer imenso. Gostava de usar produtos frescos, recém comprados, e cozinhar o suficiente para um prato apenas. Era o meu restaurante exclusivo. Achei uma agenda em branco, peguei uma caneta e comecei a escrever. Eu tinha passado esses últimos meses cercada de pessoas e sabia que esse era um dos motivos pelos quais eu me sentia tão perdida. Eu sempre precisei ficar comigo mesma para resolver meus problemas. Afinal,

não seria em meio ao barulho de uma sociedade doentia que eu encontraria as respostas para as minhas dúvidas, somente eu mesma (com a ajuda do vinho) teria essas respostas tão secretas. Escrevi na folha de papel: imagem1 Essa pergunta é fácil: eu estaria viajando. Mas para onde, eu não sei. Nas minhas últimas viagens, eu estava sentindo falta de um propósito maior. Não me satisfazia mais tirar fotos em lugares turísticos e seguir o roteiro clássico. Eu me atraía muito mais pelas culturas diferentes e pelas pessoas. Eu poderia fazer um mochilão de vários meses pela Ásia, aproveitando que é um destino barato. Mas precisava de um propósito. Ahhh! Já sei. Faria aquele voluntariado para ajudar crianças carentes na África do Sul. Mas era muito caro. Eu não teria dinheiro para pagar por isso. Estava complicado. Preferi pular para a próxima pergunta. Escrevi: imagem2 Fácil também. Eu me arrependeria de não ter saído pelo mundo afora com uma mochila nas costas e um pouco de dinheiro no bolso. Eu queria viver com a minha mochila desbravando lugares novos, conhecendo pessoas de outras culturas e colecionando histórias que ficariam para sempre.

No entanto, isso era uma resposta superficial. Se eu fosse um pouco mais fundo, a resposta seria outra. Eu me arrependeria de não ter deixado um legado, de não ter feito algo maior do que a minha existência. De alguma maneira, eu queria contribuir para uma mudança no mundo. Mas quando você diz isso para as pessoas, elas riem de você. Lembrei de um teste vocacional que eu tinha feito com uma psicóloga uma vez. O teste dizia que eu precisava de constantes mudanças na minha vida e que traços fortes da minha personalidade indicavam que eu precisava trabalhar na área da comunicação, dado que eu tinha um sentimento muito forte de ajudar outras pessoas. Nem tudo foram flores: o teste também me dedou ao dizer que sou desorganizada, confirmando a teoria da minha mãe. Durante minha vida toda, vi meus pais ajudando amigos, familiares e até desconhecidos. Mas não era somente isso: eles tinham me criado uma pessoa muito ciente de que uma grande parcela do mundo não tinha os mesmos privilégios que os meus. Quando eu tinha uns oito anos de idade, comecei a falar que não queria comer isso ou aquilo. Meus pais tinham pavor de criança mimada e me colocaram no carro junto com meu primo, nos levando para dentro de um acampamento de sem-terras. “Vocês acham que essas crianças escolhem o que comem? Tudo o que elas mais queriam era ter um prato de comida quentinha na mesa todos os dias.” – Falavam enquanto dirigiam vagarosamente entre crianças, animais e barracas de lona desprovidas de qualquer infraestrutura básica.

Foi um tratamento de choque. Desde então, eu resolvi que a nata no leite era saudável e que brócolis era uma delícia. Só não consegui fazer as pazes com a couve, mas meu pai entendeu que era questão de gosto, e não de frescura, depois que ele me obrigou a comer e eu vomitei tudo nele. Então, eu fui crescendo e aprendendo a olhar ao meu redor, sabendo que eu fazia parte do todo e não de um mundinho cor de rosa blindado. E acho que esse era um dos meus problemas com a tal da “profissão”. Eu não queria ter um trabalho simplesmente para gerar lucros absurdos para uma terceira pessoa, enquanto eu recebia o mínimo para sustentar o meu mundo de mentira. Eu buscava mais significado nessa troca. Acreditava que havia mais do que apenas isso. Esse pensamento me fez voltar à essa vontade antiga de fazer um voluntariado. Ainda na minha primeira viagem aos EUA, eu vi um programa para a África do Sul, mas desisti assim que vi os preços: era algo absurdo. Peguei o computador e procurei alguns e-mails antigos que eu tinha enviado para essa organização, a fim de achar o website. Confirmado: 600 dólares por semana. Os valores estavam ainda mais absurdos para o meu orçamento. Eu precisava achar soluções para os meus problemas. Se o voluntariado na África do Sul era muito caro, eu precisava encontrar um outro lugar para voluntariar que fosse barato. Bom, se o meu sonho era viajar pela Ásia, que era um destino barato, era só eu encontrar lugares para voluntariar lá!!! Por que eu reclamei tanto se a resposta era tão fácil?

Passei cinco dias enfiada no apartamento pesquisando. Às vezes, as coisas levam algum tempo para ficar claras, mas, quando elas ficam, eu ativo a minha teimosia e não desisto tão fácil. Pesquisando no Google, consegui encontrar um lugar na Tailândia que precisava de professores de inglês para as crianças carentes de um pequeno vilarejo ao oeste do país. Preenchi um formulário online e aguardei ansiosa pela resposta, que chegou rapidamente, dizendo que eles tinham vagas para o período que eu gostaria e que não tinha problema algum eu não ter experiência como professora, pois o inglês era básico e o mais importante era a interação diária das crianças com outra cultura e com a língua inglesa. Isso traria a oportunidade dessas crianças trabalharem com o Turismo, ao invés de trabalharem com agricultura ou, até mesmo, com a prostituição. Meus olhos se encheram de lágrimas e meu coração bateu mais forte. Era exatamente esse tipo de experiência que eu queria fazer parte. Não havia dúvida nenhuma: eu estava em completo estado de êxtase simplesmente pelo fato de me imaginar lá. Respondi agradecendo e falei que eu entraria em contato em breve, informando a data do meu voo. Eu nunca tinha voado do Brasil para aquela região e não fazia ideia dos valores, mas os voos para o mês de junho estavam muito caros. Eu tinha um mês e meio para planejar tudo e partir. Precisava de uma solução criativa. Passei mais três dias pesquisando quantas milhas seriam necessárias para esse trecho de viagem, liguei nas companhias aéreas, enchi o saco dos atendentes, fiz simulações nos sites e cheguei a opção mais barata: 35 mil milhas para o trecho

Brasil – Europa e 30 mil milhas para o segundo trecho Europa – Ásia. No entanto, eu tinha apenas 30 mil milhas na minha conta. Então, tive que recorrer ao meu banco de milhas: meu pai. Fiz um empréstimo daqueles de pai para filha, mais conhecido como “sem volta”, e comprei as passagens, que me custaram R$120 de taxas de embarque. Eu preferi fazer uma viagem mais longa e com menos dinheiro, por isso calculei uma média de 500 a 600 dólares de gastos por mês que seriam suficientes para alguns meses de viagem. Pensava em ficar até um ano. Resolvi dar um nome ao meu projeto. Chamei-o de Do For Love Project e criei uma página no Facebook, decidindo que compartilharia minhas histórias. Não só as histórias, mas também as informações, uma vez que elas tinham sido tão difíceis de ser encontradas. Esperava, assim, ajudar mais pessoas a realizarem o sonho de se voluntariar de forma barata. Era incrível como no espaço de tempo de uma semana de foco, determinação e silêncio eu tinha mudado o rumo da minha vida completamente. Finalmente, eu estava aceitando o fato de que eu não precisava daquelas respostas. A maioria das pessoas as teria ou passaria a vida correndo atrás delas. Não eu. Eu gostava de não tê-las e assumir isso me trazia a alegria de saber que eu teria que percorrer caminhos pouco trilhados. Eu tinha a sorte de não ter a minha vida engessada em nenhuma resposta. Eu era jovem, saudável e livre para criar as minhas próprias possibilidades.

7. O meu desejo de partir se completa muito bem com o meu medo de amar Mais uma vez, eu me despedia de alguém que eu gostava, mas, é claro, sem deixar a outra pessoa saber dos meus sentimentos. Eu fazia questão de vestir a máscara de quem não está nem aí pra nada. Me disseram que as meninas aventureiras são assim e eu, obediente, sempre soube seguir essa regra, até mesmo porque o meu desejo de partir se completava muito bem com o meu medo de amar. Ele dirigia pelas ruas do Rio de Janeiro com aquele mesmo charme e serenidade de quatro meses atrás, quando me buscou no aeroporto pela primeira vez. Desde então, eu perdi as contas de quantas vezes embarquei em um avião ansiosa para encontrá-lo e também me acostumei com as inúmeras despedidas. Mas agora era diferente: a minha passagem era só de ida e eu sabia que o destino de quem viaja pode ser um tanto fatal para amores que nunca desabrocharam. Essa foi a despedida mais estranha de todas as dezenas que já acumulávamos. Eu havia passado 3 dias com ele, curtindo ao extremo o que, na verdade, tinha gosto de fim. Fiz ele matar a aula do Mestrado pra pular de Asa Delta, numa tentativa de deixar bem claro que certas coisas ele só viveria comigo. Por mais que eu soubesse que as chances de nunca mais nos encontrarmos fossem altíssimas, eu queria deixar minha

marca. Arrumamos nossas malas na casa onde ele morava com os pais e seguimos para o carro. Ele tinha como destino Florianópolis – ia para algum desses weekends que eu detestava – e, antes de ir para o aeroporto, ele me deixaria em um Hostel em Copacabana para eu encontrar meus amigos, que vinham de São Paulo, para mais uma despedida antes de eu embarcar. No carro, seguimos um roteiro já conhecido, no qual verbalizamos um resumo dos nossos dias, sempre chegando à conclusão de terem sido incríveis e ríamos muito, lembrando das maluquices que fazíamos juntos. “Caramba, você vai embarcar para a Ásia. O seu projeto é demais! Sorte das criancinhas que vão poder ter você por perto”. – Ele disse isso me olhando docemente. Eu não ficava mais desconfiando de tudo o que ele me dizia e realmente acreditava que ele era carinhoso nas palavras. “E você vai embarcar para Nova York, vai validar o seu diploma lá e vai ser o melhor fisioterapeuta dos Estados Unidos. Nada mal para um carioca da Tijuca, hein?”. – Falei rindo. “Tem muito chão até isso tudo acontecer. Sabe como você morre de vontade de conhecer o Butão? Eu tenho a mesma vontade de conhecer o Hawaii. Penso em passar um período estudando para a prova de validação do meu diploma.”. “O Hawaii é lindo”. – Disse isso com a cabeça longe, lembrando dos lugares incríveis que eu visitei lá. “Você conhece esse ditado: Passarinho que anda com morcego amanhece de cabeça pra baixo?”

Olhei para ele sem entender nada e respondi rindo: “Vocês, cariocas, são um tanto estranhos. Acho que lá no Sul não tem esse ditado não.”. “Pois deveria. Ele se encaixa muito bem com você, no caso, o morcego. Acho que quando as pessoas andam muito com você, elas começam a acreditar que tudo é possível. Você faz o mundo parecer tão pequeno.”. “E ele não é?”. Ele ficou pensativo, me olhou e sorriu. Eu aproveitei a deixa: “Fica à vontade para me visitar lá na Ásia quando você quiser. Posso te garantir que as crianças adorariam ter aulas de futebol.”. Ele não era muito de falar dele e eu nunca fiz questão de indagar. Acho que era por isso que dávamos certo: não tínhamos a permissão de interferir muito na vida um do outro, seja no passado, no presente ou no futuro. Os meus sentimentos eram muito mais baseados em como ele fazia me sentir do que em quem ele era. Enquanto conversávamos, ele fazia questão de manter a mão na minha perna, só tirando para trocar a marcha, retornando assim que possível. E eu aproveitava para discretamente olhá-lo. Ele continuava com aquele mesmo sorriso lindo de sempre. Definitivamente, eu estava bem acompanhada e isso explicava o motivo de eu estar partindo. Eu não queria me envolver e correr o risco de nunca realizar o meu Projeto. Eu precisava fugir desse moreno sorridente antes que fosse tarde demais. Ele parou o carro em frente ao hostel e nos despedimos de forma desajeitada. “Lele, você vai fazer muita falta aqui.

Você é incrível, mas agora é a vez da Ásia saber disso também”. E me beijou pela última vez. “Te vejo no Camboja!”. – Essa frase foi o melhor jeito que eu encontrei de dizer “Eu preciso realizar meu sonho. Preciso partir, mas quero te ver de novo”. Fica fácil perceber que eu sou um desastre em assuntos amorosos. ... Entrar em um aeroporto sabendo que eu vou pegar um voo é uma das melhores sensações desse mundo. Sou fascinada pela possibilidade de ir para um lugar desconhecido. Já havia viajado várias vezes, mas nenhuma com a chance ficar um ano viajando e voluntariando. Era um grande sonho sendo realizado. Eu sentia um misto de alegria, ansiedade e orgulho. Sim, eu estava muito orgulhosa de mim mesma, pois sabia que tinha tomado uma decisão muito importante e que essa Letícia que estava embarcando jamais seria a mesma que retornaria. Era exatamente essa a sensação, de no fundo, estar me despedindo de mim mesma. Me dirigi para o check-in do voo com destino a Amsterdam, onde passaria 4 dias antes de embarcar para 15 dias na Indonésia. De lá, voaria para Bangkok. A atendente da companhia aérea pesou o meu mochilão querido, de alguma marca desconhecida, que me custou 70 dólares e que me acompanha há sete anos, desde aquela minha primeira viagem aos Estados Unidos. Vi na balança: 17kg. Uma vida resumida em 17kg que eu podia levar para

onde eu bem entendesse. Eu tinha feito um bom trabalho na minha arte de desapego a coisas inúteis. Sorri, peguei meu cartão e segui para o embarque. Liguei para os meus pais para dizer que estava tudo bem. Meu pai parecia mais animado do que eu com a viagem e queria saber detalhes, pedindo para que eu enviasse fotos assim que possível. Minha mãe escondia bem a preocupação e se mostrava animada também, mas sempre me pedindo cautela. Acredito que eles já estavam acostumados com a ideia de eu desbravar o mundo sozinha e sabiam que eu estava feliz o fazendo. Acabei a conversa com eles e me dirigi para o portão de embarque. O telefone toca. Era o moreno. Depois da mensagem que eu mandei sob o efeito de alguns drinks durante a minha festa de despedida na última noite, eu não sabia nem se deveria atender. Era muito gentil da parte dele estar me ligando, porque se fosse eu, aproveitaria a oportunidade para me esquecer. Eu nem lembrava direito o que eu tinha mandado, resolvi não atender e checar meu telefone: 1:25 am “Eu juro que tentei, mas está sendo difícil. Não quero ficar criando expectativas. Eu sou acostumada a deixar pessoas para trás no meu caminho e dessa vez não será diferente. Melhor você me esquecer e curtir a sua vida. Aproveita muito. Boa viagem e se der, um dia nos vemos. Bjos” 1:35 am “Você me confunde com suas mensagens. O que você tentou, mas é difícil? É simples, fica pra vc um amigo verdadeiro no Rio. Agora, uma coisa que eu ainda não te falei. Te acho uma menina linda por dentro e por fora, vou fazer força para te reencontrar. Em outras circunstâncias eu te quero para namorar. Te ligo amanhã para desejar boa viagem. Bjos gata”

Certo ou errado, era assim que tinha que ser. Eu não queria embarcar para a viagem da minha vida pensando em algúem. É preciso estar livre de coração e alma para absorver tudo que uma experiência dessas está prestes a te dar. Era a hora de jogar para o universo e acreditar. Eu disse que estava acostumada a deixar pessoas para trás, isso era verdade, mas tinha esquecido de complementar dizendo que mesmo deixando pessoas para trás, o que era verdadeiro sempre tinha prevalecido, independentemente do tempo e da distância. O amor não é posse. Deixar livre é verdadeiramente amar.

8. Eu tinha vindo de muito longe para viver exatamente isso: o desconhecido De olhos fechados, sentada na carroceria de uma caminhonete que eu nem sequer sei para onde me leva, sinto o vento soprando no meu rosto e parece que cada célula do meu corpo vibra com a sensação de liberdade, com a certeza de que estou na estrada e de que essa será minha casa pelos próximos meses. Viajar me faz sentir mais viva do que nunca. Eu abro os olhos e vejo a noite, as estrelas e isso tudo se torna real demais. Então, fecho os olhos novamente. Inspiro. Não posso deixar de sentir essa alegria me corroendo por dentro e, de olhos fechados, eu consigo degustá-la lentamente. Dessa vez, eu não estou sozinha e isso me alegra. Escuto sotaques chinês, polonês e alemão e me sinto grata por poder agregar ao meu mundinho estes outros mundos que antes eram tão distantes. Eu dou uma risada baixinha. A felicidade me invade. Em seguida, meus olhos se enchem de lágrimas. Agradeço a mim mesma por ter decidido partir e por me permitir viver esse momento. Foi assim, na carroceria de uma caminhonete, que eu cheguei em frente à escola Watputthisan, depois de 40 minutos de estrada de chão. Foram cinco horas desde

Bangkok em uma pequena van que chacoalhava rumo a leste até chegar na principal cidade da província de Sakaeo, que se chama Watthana Nakhon. Eu tinha anotado em um papel onde eu deveria ficar e o motorista me fez a gentileza de avisar quando chegamos, depois de eu ter passado a última hora perguntando a cada 10 minutos para ele se já havíamos chegado. Desci da van curiosa e animada, mas minha animação desapareceu rapidamente assim que percebi que não havia absolutamente nada ao meu redor. Uma avenida deserta, sem casas ou pessoas, onde a única coisa que se via por perto era um ponto de ônibus. Temi que tivesse descido no lugar errado. Antes que pudesse pegar o celular para ligar para o Jason, o diretor do programa, eu vi uma caminhonete estacionar e pessoas pularem da carroceria gritando alguma coisa parecida com o meu nome. Me abraçaram, me deram boas vindas, perguntaram como tinha sido a viagem e se eu estava com fome. Isso tudo ao mesmo tempo, enquanto pegavam minha mochila, me davam comida e faziam perguntas. Eu definitivamente me senti muito bem-vinda! Elas eram três voluntárias que haviam chegado há poucos dias e fizeram questão de vir junto com o Jason me receber. Apesar de estarmos na frente da escola, Jason gritou da janela do carro que me levaria até a minha nova casa, pois já estava muito tarde, e que ele me apresentaria à escola no outro dia. Confirmei que tinha entendido e fiquei aliviada, pois tinha tido um dia cheio. Acordei cedo para pegar meu passaporte na embaixada e, de última hora, descobri que tinha que ir à Imigração Tailandesa para pegar uma segunda

cópia do meu visto, senão eu teria problemas para continuar viagem. Isso tudo me rendeu muitas horas em filas e burocracia desnecessária, o que me fez sentir como se estivesse no Brasil. Assim que terminei tudo, corri para a rodoviária e, com sorte, consegui pegar o último ônibus que viria para cá. Em menos de um minuto, ele parou o carro e desceu. “Você vai ficar nessa casa, morando com duas professoras tailandesas que trabalham na escola. Tem um quarto para você! Elas já estão dormindo, mas amanhã vão te mostrar tudo. Todas estão muito ansiosas para te conhecer. Eu sei que está muito escuro e não dá para ver muita coisa, mas estamos do lado da escola. De bicicleta, leva menos de 5 minutos.”. – Disse ele, com um sotaque forte, mas com uma empatia maior ainda. Desci da carroceria, me despedi das voluntárias que continuariam para outra escola. Apesar delas terem me explicado para onde iriam, eu estava confusa com tantos nomes complicados e só concordei. O Jason me ajudou com a minha mochila e fomos em direção à casa. Estava curiosa para conhecer onde moraria. Ele abriu silenciosamente a porta e gentilmente indicou para que eu entrasse. No momento em que entrei, cometi a minha primeira gafe tailandesa. Jason deu uma risadinha e me indicou que deveria tirar os sapatos. Fiquei sem jeito e me desculpei. Quando tirei meu tênis, vi que, do lado de fora, tinham dois pares de calçados, que deveriam ser das professoras. A casa era simples, mas muito espaçosa. Acho que a falta de móveis dava essa impressão de ser maior do que

realmente era. Apesar de tentar fazer silêncio, a escada de madeira estalou todinha enquanto subimos para o segundo andar. Ele me indicou o meu quarto e se despediu. Eu abri a porta que estava entreaberta e me deparei com um quarto praticamente vazio. Ele era todo de madeira, inclusive o chão, com exceção de uma parte que era de azulejo, exatamente onde tinha um colchonete rosa, protegido por uma tela contra insetos em formato de barraca. Tudo era muito limpo e bem cuidado. Do lado de fora da tela, apontando em direção ao colchonete, se encontrava o objeto mais valioso do ambiente: um ventilador. Que felicidade em vê-lo! Mesmo sendo noite, fazia um calor tremendo! Não queria acordar ninguém, portanto, troquei de roupa e me deitei. Rapidamente, caí no sono, com a esperança de que assim chegaria logo o dia seguinte, o meu tão esperado primeiro dia de voluntariado. ... Acordei assustada. Acho que tinha dormido muito profundamente e acordei sem saber onde estava. Quando sentei na cama e vi tudo quadriculado ao meu redor, percebi que estava envolvida por uma cabana à prova de mosquitos e retomei consciência de onde estava. Olhei para a janela: o dia já estava claro. Fiquei com medo de ter dormido até tarde e procurei o meu telefone, que marcava 7:30. Ufa, na hora! Tinha me esquecido de colocar o alarme para despertar. Ao mesmo tempo em que estava ansiosa, sentia vergonha porque não fazia a mínima ideia do que eu

precisava fazer, ou onde tinha que ir. Escutei barulho no andar de baixo e concluí que o melhor seria descer para me apresentar e me inteirar de como seria o primeiro dia. Percebi que tinha um espelho na parede, o único ornamento do quarto, e tentei me ajeitar um pouco. Somente então desci rumo às vozes que vinham lá de baixo. Do alto da escada, eu pude ver uma das professoras na cozinha e, enquanto descia, fiz barulho para que ela percebesse a minha presença. Ela me viu e começou a gritar alguma coisa em Thai, rindo e demonstrando estar muito feliz em me ver. Em segundos, a segunda professora apareceu correndo com a mesma empolgação. Eu esperava duas senhoras, mas, para minha surpresa, eram duas moças muito jovens. A que se apresentou como Katy era a mais nova, com um cabelo liso e bem preto, comprido até a cintura. Tinha um ar de adolescente e um sorriso constante. A outra professora era a Kob, um pouco mais velha, com um ar mais responsável, mas era muito amorosa na maneira como me olhava. A Katy falava um pouco mais de inglês, enquanto a Kob não falava praticamente nada. Então, Katy tomou a frente e foi me mostrando o primeiro piso da casa: cozinha, sala e banheiro. A Kob tinha a mesma cama que a minha montada na sala. Eu desconfiei que antes ela devia ter o quarto que agora era meu e estava dormindo na sala para me dar privacidade. Era engraçado não poder entrar em uma daquelas conversas banais onde você diz que não é necessário que ela fizesse isso e que eu poderia dormir ali sem problemas, mesmo sabendo que nada do que eu

dissesse mudaria a opinião dela. Ao mesmo tempo, era desnecessário agradecer a ela com palavras. Eu conseguia ter essa conversa toda com ela apenas a olhando e sorrindo. As duas sorriam e se divertiam enquanto me direcionavam pelos cômodos, aproveitavam para tocar no meu cabelo e na minha pele dizendo “beautiful”, que quer dizer "linda" em inglês. Tudo parecia normal até elas me mostrarem o banheiro. Tinha uma caixa de concreto que batia na minha cintura e estava cheia de água, ocupando metade do banheiro, ao lado de uma privada sem descarga e, no lado oposto, uma pia. Katy se antecipou e se posicionou ao lado da caixa de água, mostrou uma caneca e, enquanto fingia que enchia ela de água e jogava em cima da cabeça, ela falava repetidamente com um sorriso largo no rosto: “Shower! Shower!”. Não tinha como não achar engraçada aquela cena. Mas, ao mesmo tempo, fiquei preocupada. Eu tinha um sério problema com banho frio: mesmo em um dia que fizesse 40° C do lado de fora, eu tomava banho quente. Quando era criança, ia visitar a minha avó no interior e não tinha chuveiro. Por muitas vezes, minha mãe me levava para tomar banho no rio, até mesmo no inverno gaúcho. Pensa em uma água gelada. Eu só lembro de enfrentar uma água mais gelada que essa quando ia surfar na Nova Zelândia. Provavelmente, assim como eu, você já achou ou ainda acha que a Nova Zelândia e a Austrália são mais ou menos a mesma coisa. Errado. É como comparar Cancun com a Antártica. Para surfar, era necessária uma roupa de borracha tão grossa que ela impedia os seus movimentos. Lembro-me de

um dia entrar em pânico porque o sol havia baixado e, subitamente, ficou muito frio. Eu saí da água chorando, o fundo de pedra parecia cortar o meu pé e entrei em pânico. Segui em direção ao banheiro público, onde sentei no vestiário. Não conseguia fazer nada, somente chorar de frio. Definitivamente, o banho de água fria seria um trauma a ser superado durante essa viagem. Katy indicou para que eu me arrumasse e viesse tomar café da manhã com elas. Depois, sairíamos juntas para a escola. Eu não cabia em mim de tanta empolgação com tanta coisa nova. Agradeci e subi correndo para o meu quarto, pois não tinha muito tempo e não queria atrasá-las. Então, rapidamente escolhi uma roupa, peguei minha toalha e desci para experimentar o meu primeiro banho Thai. Encarei a caixa de concreto cheia de água gelada, tirei a roupa e, calmamente, fui jogando canecadas de água em mim, enquanto pulava de um lado pro outro e me arrepiava inteira. Ao invés de ficar irritada, eu ria sozinha da cena na qual eu havia me metido. Eu podia estar no conforto da minha casa tomando um banho quentinho gostoso, mas eu gostava mesmo era de me colocar no limite. Não dava. Era muito gelada. Peguei o sabonete e logo percebi que, naquele estilo de banho, não seria necessária muita água. Me ensaboei rapidinho e, sem pensar muito, joguei mais umas canecadas doídas de água em mim. Confesso que não tirei toda a espuma: o restante ficaria por conta da toalha mesmo. Estava ótimo para uma primeira tentativa. Mas sabia que o desafio maior ainda estava por vir e que ele não ocorreria

tão cedo: lavar o cabelo. Fazer dreads nunca me pareceu tão sensato. A dúvida maior ainda foi descobrir como dar a descarga. Olhei de um lado para o outro inúmeras vezes, tentando encontrar uma resposta, mas não a encontrei. Nem fazer xixi estava sendo uma missão fácil. Coloquei uma legging preta e uma camiseta velha que era mais comprida na bunda. Esperando que essa roupa fosse respeitosa o suficiente para uma professora em uma escola Thai, apesar de estar sofrendo com antecedência pelo calor que eu sentiria usando calça. Desejei que shorts fossem aceitos, mas no e-mail que eu recebi com a minha confirmação dizia bem claro que as meninas deveriam evitar mostrar os ombros e não usar roupas acima do joelho. Me olhei no espelho para uma última análise e tudo o que eu via era um grande sorriso. Era nítida a minha felicidade. Eu tinha vindo de muito longe para viver exatamente isso: o desconhecido. Saí do banheiro e, muito sem jeito, perguntei como dar a descarga. Elas riam sem parar, não de forma ofensiva, mas como quem se diverte com as pequenas coisas da vida. Lá veio Katy, novamente com seu sorriso e com gestos teatrais para me mostrar como dava a descarga. Era igual a tomar banho. Tinha que pegar uma outra caneca que estava dentro de um balde com água e ficar jogando água no vaso. Basicamente, uma descarga manual. Elas perguntaram se eu estava pronta para tomar o café da manhã e eu afirmei que sim. Procurei uma mesa, mas me dei por conta de que não havia nenhuma. Nem mesa e

nem cadeiras. Kob estendeu uma esteira no chão, enquanto Katy trazia três pratos com arroz. Kob rapidamente foi para a cozinha ajudar a trazer o restante: um prato com folhas verdes variadas que eu nunca tinha visto antes e uma panela com alguma coisa frita, com muita pimenta. Elas se sentaram na esteira e eu avisei que já voltava. Lembrei-me de que, na minha bolsa, eu tinha um todinho e um pão que tinha sobrado da viagem do dia anterior. Desci com o meu café da manhã e sentei na esteira ao lado delas com cara de quem tinha tido uma brilhante ideia. Novamente, elas riam sem parar. Kob me olhava e oferecia o prato dela para mim rindo. Eu agradecia dizendo que era muito apimentado. Era uma comunicação meio às avessas, que funcionava mais nas risadas do que nas palavras. Enquanto comia, fiquei observando as duas tailandesas na minha frente que tinham gentilmente aberto a casa delas para me receber. Eu tinha tudo para me sentir uma estranha ali, mas eu me sentia mais em casa do que nunca.

9. A professora nova que parecia vinda de outro planeta Cheguei na escola de carona com as minhas duas roommates tailandesas. Fomos as três na frente da caminhonete de cabine simples rindo uma das outras. Eu disse que iria de bicicleta, mas elas apontavam para o sol e para a minha pele e diziam que não, com cara de preocupação. Não entendi porque ir de carro se estávamos ao lado da escola, mas fui mesmo assim. Os alunos estavam todos posicionados em uma quadra bem simples em frente à escola, todos uniformizados e em fila. Quando me viram sair do carro, percebi que começou um murmurinho. Todos me olharam e disseram alguma coisa no ouvido do colega. Eles riam e me olhavam de forma curiosa, como se eu fosse uma alienígena saindo da minha aeronave espacial diretamente no pátio da escola deles. O Jason se aproximou juntamente com o diretor da escola e com Vimos, um chinês alto e magro, muito simpático, que também seria voluntário junto comigo. Ele estava dormindo em um quarto ali na escola mesmo. O diretor não falava inglês, mas, novamente, eu conseguia me comunicar com ele através do olhar e do sorriso. Existia uma transparência muito evidente no sorriso daqueles tailandeses.

O diretor se aproximou e me reverenciou com as duas mãos juntas próximas ao peito e a cabeça levemente abaixada. Eu retribuí que me acompanharia por toda a viagem. Ele me olhava com olhar de gratidão por estar ajudando a escola e eu retribuía o mesmo olhar de agradecimento por ele estar me recebendo. Eu estava descobrindo a inutilidade das palavras, que achamos tão necessárias. Nos posicionamos todos em frente às crianças e nos apresentamos, com o Jason fazendo a tradução. Era difícil dizer quem estava mais fascinado: eu, as crianças ou as professoras. Assim que terminamos as devidas apresentações, as professoras vieram falar comigo. Aquelas que tinham o inglês um pouco melhor, queriam praticar, e as outras que não falavam, me abraçavam, tocavam no meu cabelo, no meu braço. Parecia que queriam ter certeza de que eu era real. Me olhavam e falavam uma para as outras algo parecido com “suai”, que em breve eu descobri que significa “bonita” em tailandês. Eu me divertia no que, para mim, era uma situação inusitada. O Jason me explicou que, para muitas daquelas pessoas, era a primeira vez que elas viam uma pessoa branca e loira, pois era um vilarejo muito afastado, nenhum turista visitava a região. O projeto dele havia começado naquele mesmo ano e a maioria dos voluntários eram chineses até então. Realmente, era como ver um alienígena. Jason era uma das pessoas mais genuínas que eu havia conhecido. Seus pais eram cambojanos que fugiram de seu país durante a guerra, atravessando a fronteira para

encontrar paz no país vizinho, a Tailândia. Jason por ser o mais novo dos quatro irmãos foi o único que teve acesso à educação e ser professor foi uma escolha muito natural para ele, pois via na profissão o futuro da nação. Teve a oportunidade de morar nos Estados Unidos por cinco anos, em uma rotina de dois trabalhos, estudos e voluntariado nos finais de semana. Foi um período de muito aprendizado, mas ele encontrava muita dificuldade em se adaptar à vida capitalista, sentindo falta da vida simples e feliz que levava no interior tailandês. E foi assim que decidiu voltar para a Tailândia e começar esse projeto de voluntariado, no qual as crianças têm a chance de aprender inglês diretamente com estrangeiros e, assim, transformar esse conhecimento em oportunidades melhores. O resultado desse trabalho era visível nos olhos e nos sorrisos das crianças. E Jason mostra muita gratidão por todos os voluntários que se propõem a deixar o conforto do seu lar para doar um pouco de conhecimento e atenção às crianças. Jason demonstrava preocupação comigo e queria saber se eu tinha dormido bem ou se faltava alguma coisa. Ele disse que sabia que as instalações são simples e um pouco precárias, principalmente para uma menina ocidental. Eu o tranquilizei, dizendo que estava muito bem instalada e que ele não precisava se preocupar. Disse também que adorei as meninas que moram na casa e que fui muito bem recebida. Ele pareceu feliz com as minhas palavras e me indicou que, após o almoço, me levaria na cidade para que eu pudesse fazer compras em um mercado

grande, já que ali no vilarejo eu não encontraria muitas coisas. Eu teria acesso fácil a frutas e verduras, mas somente a isso. Jason fez questão de me deixar a vontade para avisá-lo que, toda vez que eu precisasse ir a cidade, ele me levaria até lá sem problema algum. Passei o resto da manhã jogando bola com as crianças. Agora, era a vez delas analisarem a professora nova que parecia vinda de outro planeta. Brincamos, rimos e elas me apresentaram a escola até o Jason me chamar para irmos à cidade. Aproveitei para pedir que ele me levasse ao médico.

10. No good Minha mãe conta que, quando eu era pequena, meu pai gostava de me irritar dizendo que eu não era filha dele e sim do Mozo, um homem muito simples que morava próximo da minha avó no interior. Eu tinha medo dele e diziam que ele era apaixonado pela minha mãe. Meu pai aumentava a história contando que o Mozo tinha sido namorado dela. Assim, ele conseguia deixar nós duas irritadas. Ele achava graça, mas a ideia de não ser filha do meu pai foi me preocupando. Meu pai era cheio de sardinhas na pele e eu, com os meus sete anos de idade, ainda tinha a pele lisinha e morria de medo que isso fosse um sinal de que eu não fosse filha dele. Lembro-me de que a minha primeira mancha foi no dedo e eu saí correndo ao encontro da minha mãe para mostrar com muito orgulho que aquela era a prova de que eu era sim filha do meu pai. Minha mãe diz que a minha vontade era tanta de ser parecida com ele que eu comecei a ter todas as manchas iguais. Em pouco tempo, eu já tinha muitas pintinhas, verrugas e manchas na pele e minha mãe passou a me levar na médica para acompanhar a evolução delas. O legal é que isso se tornou um programa de família. Por muitas vezes, eu e meu pai íamos juntos ao médico para fazer o check-up das pintinhas e acabávamos os dois no hospital tirando algumas delas que poderiam ser malignas. Nunca eram. Mas era divertido voltar para casa cheios de

curativos e esperando que a mãe fizesse tudo para nós. O meu pai tinha muitas no rosto e ele voltava para casa parecendo o Frankenstein. Antes de embarcar nessa viagem, minha mãe me lembrou que havia muito tempo que eu não passava por uma revisão com a dermatologista e que deveria marcar uma consulta. Eu não via tanta importância nisso e fui deixando para depois na esperança de que ela esquecesse. Mas memória de mãe não falha, principalmente a da minha. Ela mesma se encarregou de ligar e me avisar a data, só que já estava em cima da hora. Uma semana antes de embarcar eu estava na cama de cirurgia retirando uma pinta nas costas que a dermatologista considerava de risco. Levei três pontos e o médico me aconselhou a não fazer nenhum esforço físico pelo próximo mês, quando eu deveria voltar para retirar os pontos. Eu sorri falsamente e fui embora. Três pontos não pareciam muita coisa. Uma semana depois, eu estava com 17kg nas costas me aventurando por Amsterdam. Duas semanas depois, eu estava em Bali surfando. Três semanas depois, eu estaria deitada de bruços em uma maca de uma clínica tailandesa com uma médica que não falava inglês mexendo no buraco que estava aberto nas minhas costas. A minha intenção era tirar os pontos, mas, apenas com um algodão que ela passou no ferimento, ela me mostrava o que havia restado deles e me dizia com o pouco de inglês que sabia: “No good”. Uma das voluntárias chinesas foi comigo e filmou o procedimento. Quando vi a filmagem eu entendi o quanto “no good” estava. Mas confesso que a

minha preocupação maior era com a conta desse atendimento. Enquanto aguardava a atendente anunciar o rombo no meu orçamento, ela o aumentava somando medicações, pomadas e esparadrapos. Foi quando ouvi o valor final: quinhentos baths! Antes que eu pudesse entrar em desespero, peguei a calculadora e fiz o cálculo, que, para meu alívio, me mostrou que esse valor era equivalente a 15 dólares. Me senti até melhor e mais disposta depois da conversão. Saí de lá com o curativo mais amador já visto em minha vida e todo o arsenal que eu deveria usar para refazer o curativo duas vezes ao dia.

11. Que mais consciência seja dada às pessoas que habitam esse planeta. Acordei no outro dia me sentindo indisposta. Parecia que tinha pego uma gripe: estava com dor de cabeça e dor no corpo. Achei melhor me animar e ir para a escola. Era uma semana meio atípica essa, pois os alunos não estavam tendo aulas, mas palestras e apresentações. Eu sabia que eles queriam que estivéssemos lá para assistí-los. Assim que eu cheguei na escola, de carona com as minhas roommates, elas me levaram para um espaço grande nos fundos da escola, semelhante a uma quadra onde acontecem eventos: um espaço amplo e com o chão todo de azulejo. Eu não pude deixar de reparar que havia, do lado de fora da porta, uma fila de pelo menos uns 50 pares de sapatos e chinelos perfeitamente enfileirados. Reparei que mesmo as crianças que estavam atrasadas e chegavam com pressa tinham o cuidado de deixar o sapato ajeitadinho na fila. Eu fiz o mesmo: deixei o meu chinelo do lado de fora e fui acompanhar as apresentações. Os alunos eram muito bons. Com o pouco que tinham, criaram fantasias bastante criativas e não tinham vergonha de dançar e exibir seus talentos. Mas, em meio a tantas crianças, um dos meninos me chamou a atenção: ele estava vestido de mulher.

Não era só isso. Ele realmente parecia uma menina na maneira de andar: estava de vestido, com duas bolas acentuando o que seriam os seios, salto alto, peruca e, para a minha surpresa, maquiagem. Os outros meninos estavam vestidos de piratas, homem das cavernas, rappers e outras coisas que eu não sabia identificar. Alguns até usavam maquiagem, mas para compor a fantasia, como deixar a sobrancelha mais acentuada. Em uma conversa que tive com uma das professoras, eu descobri que aquele aluno tinha um irmão gêmeo e que eram órfãos. A avó cuidava deles e sempre os incentivou a se tornarem “lady boys”, pois essa era uma das maneiras mais fáceis para um garoto pobre ganhar a vida na Tailândia. Quando atingissem uma idade maior, eles largariam a vida no vilarejo para se tornarem “lady boys” em algum centro turístico. A avó provavelmente tinha medo de morrer e os deixar sem um futuro. E, em um país onde essa cultura é muito forte, ela via essa solução para que os netos sobrevivessem. Não existe certo e errado em uma situação dessas. Lembrei de todos os “lady boys” que eu vi em Bangkok e do meu olhar de julgamento para eles. Eu sim era uma pobre coitada, que cresceu rodeada de privilégios e achava que podia olhar para uma pessoa e concluir o que eu bem entendesse. Eu tinha viajado até o outro lado do mundo somente para ver aqueles olhinhos brilharem. Não via ali crianças pobres coitadas que precisavam de ajuda. Bem pelo contrário: eu tinha pena era de mim que cresci achando que precisava de muito para ser feliz e que me ensinaram que quanto maior

fosse a minha casa, maior seria a minha alegria. Esqueceram de falar que casa grande tem muito espaço pro vazio se instalar. Para mim, aquelas crianças tinham mais a me ensinar do que eu a elas. Estava chegando a hora do almoço, que aconteceria nesse mesmo espaço em que as apresentações estavam acontecendo. Uma movimentação diferente começou a acontecer: as crianças menores foram pegar suas próprias vasilhas, que tinham trazido de casa, para entrar na fila do arroz. Depois do arroz, um professor serviria o prato do dia. As crianças sentavam no chão e comiam. Para a minha surpresa, tinha uma mesa imensa onde os professores comem: cabia ali em torno de 20 pessoas. Me pediram para sentar e não me deixaram ajudar em nada. Então, fiquei observando. Os alunos mais velhos ajudavam a distribuir um prato de arroz para cada professor. Esse prato seria a base para a refeição que cada professor montaria, a partir dos acompanhamentos distribuídos na mesa a cada grupo de 4 ou 5 pessoas. Eu gostava da ideia de ser um almoço coletivo, no qual todos comiam um pouco de tudo. Em pouco tempo, todos estavam prontos para comer, mas não sem antes fazer uma oração. Infelizmente, eu não entendia o que diziam. Curiosamente, perguntei para uma das professoras que estava sentada ao meu lado e que falava inglês. Ela me disse que a oração era mais ou menos assim: “Estamos agradecendo pela refeição e pedindo que os agricultores sejam abençoados, pois é graças ao árduo trabalho deles que a comida está posta em nossa mesa.”. –

Ela disse isso como quem explica uma coisa muito óbvia, enquanto eu fingia não estar surpresa. Esse era um nível de consciência ao qual eu não estava acostumada. Não conseguia deixar de ficar maravilhada em ver aquelas crianças todas orando pelos agricultores. Fiquei feliz ao ver que eles não cresceriam achando que os alimentos vêm diretamente da prateleira do supermercado. Aproveitei e finalizei com a minha própria oração: “Que mais consciência seja dada às pessoas que habitam esse planeta.”.

12. Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo (Jostein Gaarden) Os sintomas se alternavam entre frio, calor, dor de cabeça e tontura. Por mais que desejasse ficar na escola, eu não conseguia mais. Sentia-me fraca. Avisei o Jason e ele fez questão de me levar embora, dizendo que eu estava pálida. Eu ainda não tinha ficado na casa durante o dia, mas descobri da pior forma possível que fazia um calor insuportável. O calor, junto com a febre, me fez cair em um sono profundo. Acordei era quase noite, com a ligação do Jason para saber como eu estava. Ele disse que as meninas tinham deixado uma bacia com água para que eu passasse no meu corpo, para ajudar com a febre, e um prato de comida, porque aconteceria uma festinha na escola e todos jantariam lá. Assim que desliguei, percebi que estava tudo arrumadinho conforme ele falou, ao lado da minha cama, no chão. Mesmo sem ter muito apetite, comi o máximo que pude e voltei a dormir até a manhã seguinte na esperança de acordar melhor. No outro dia, o Jason acabou me levando novamente para a cidade, em um postinho de saúde. Eu não havia melhorado e a febre tinha aumentado. Tirei sangue e fiquei aguardando o resultado. Eu não conseguia nem me mexer. O que me distraiu foi o curativo que a enfermeira fez: um

tufo de algodão e um pedaço de durex grosseiramente atravessado no meu braço. Esse curativo tinha superado o que a médica tailandesa tinha feito nas minhas costas no dia anterior. Eu não tinha como não achar engraçado, mesmo estando no estado deplorável em que me encontrava. Eu olhava para meu braço e ria da minha situação: um curativo desses era inédito em minhas viagens. Eu definitivamente não estava com muita sorte, tudo vinha acontecendo comigo. Em Bali, eu precisei fazer exame de fezes para descobrir que tinha pego um parasita no meu estômago e fiquei três dias revezando entre o banheiro e a cama. Só tinha sobrevivido porque estava ficando em uma pousadinha familiar e o dono percebeu que eu não estava bem. Ele me trouxe comida todos os dias no quarto, porque eu não tinha condições de sair da cama nem para comprar comida. Pelo menos, dessa vez eu não tinha dor de barriga. Os resultados saíram e descobrimos que eu tinha pego uma infecção, provavelmente decorrente do buraco que eu tinha aberto nas minhas costas às custas da minha falta de cuidado com os pontos que tinha levado. A tailandesa tinha feito um diagnóstico realmente preciso no dia anterior, quando definiu a situação como “no good”. Saí do postinho com mais uma leva de remédios e voltamos para o vilarejo. Sentia-me tão indisposta que Jason me ajudou a entrar em casa, onde Katy já me aguardava com todo seu carinho e boa vontade. Era ela quem vinha trocando o meu curativo nas costas, uma vez que eu não tinha como fazer sozinha. Não queria atrapalhá-la, mas mais uma vez eu estava na posição de não poder negar ajuda.

Nunca foi preciso pedir nada às minhas roommates: elas antecipavam as minhas necessidades e faziam tudo para me auxiliar. Tinham sempre um sorriso no rosto e zelo genuíno. Elas cuidavam de mim melhor do que eu mesma. Estava extremamente grata por todo o suporte que vinha recebendo, mas isso não me impediu de chorar como um bebê quando deitei na cama aquela noite. Fazia apenas uma semana da minha chegada à Tailândia e eu já tinha sido furtada, visitado a delegacia e agora pego uma infecção que me deixou de cama, sem forças nem para andar. Entre lágrimas e um mal-estar que tomava conta do meu corpo, eu me questionava o que tinha feito de errado ou se eu tinha tomado a decisão certa de viajar. Fazia muito calor na casa, eu dormia no chão, meu corpo doía de febre, não conseguia me comunicar direito com quase ninguém e o banho era difícil. Tudo o que eu queria era uma cama confortável, um banho de chuveiro e um chocolate quente: coisas simples que ganharam rapidamente um novo significado. Eu estava ardendo em febre e o suor escorria pelo meu rosto junto com as lágrimas. Eu sabia que isso passaria e que tudo ficaria bem. Contudo, sabia também que muitas vezes para continuar sendo forte, é preciso sentir a fraqueza. É preciso aceitá-la. ... Foi necessário mais um dia de cama até que eu finalmente melhorasse. Eu sempre digo que a melhor maneira de conhecer um país é utilizando o sistema de saúde local. Sendo assim, posso afirmar que conheço

relativamente bem a maioria dos países pelos quais passei. Ainda bem que situações mais sérias aconteceram em países nos quais existiam recursos médicos adequados, como quando quebrei o meu ombro andando de skate na Austrália. Pensando assim, um parasita no estômago em Bali e uma infecção na Tailândia ainda não eram de todo mal. Esses dias que passei enferma me aproximaram ainda mais de Katy e Kob, minhas roommates. Descobri que Katy canta em uma banda e que Kob é uma professora extremamente dedicada. A família da Kob veio nos visitar um dia e fizeram um jantar delicioso: sentamos todos na esteira de bambu na varanda do lado de fora da casa. Me lambuzei toda comendo com a mão os frutos do mar, que eram grelhados à medida que íamos comendo. Eles faziam com que eu me sentisse parte da família. Acabei ficando amiga também da nossa vizinha, a Lari, que é a única cabelereira do vilarejo. Ela não tem curso nenhum, mas leva jeito pra coisa e, na própria sala da casa dela, colocou uns espelhos e cadeiras, denominando o local como “Salão de Beleza”. Era engraçado tê-la como amiga porque ela vive uma vida totalmente fora da realidade do vilarejo, o que a tornava uma figura única: ela é uma tailandesa muito vaidosa, gosta de sair com as amigas, de fazer compras e tem um namorado que tem um carro cheio de luz neon azul por dentro. Lari me tratava como uma boneca: me dava roupas que ela não usava mais de presente, me levava em seu salão para lavar meu cabelo – evitando que eu adotasse o estilo de dreads – e, com frequência, me levava para a cidade,

para passearmos em alguma feira de rua, e até para jantar em algum restaurante. Ela gostava de me mostrar fotos dos tailandeses famosos e dos que ela achava bonitos. Era como voltar a ser adolescente, só que na Tailândia. Ela não falava inglês, logo, quando queria me ver, me ligava e dizia “home”. Dessa forma, eu sabia que estava me chamando para ir em sua casa. Quando eu não podia, respondia “school”. Então ela sabia que eu não poderia ir porque estava ocupada na escola. E assim se desenrolava a nossa amizade. O final de semana se passou e tudo o que eu sentia era gratidão pela febre e todo aquele mal-estar causado pela infecção terem passado. Como era bom ter saúde! Depois que melhorei, a minha vontade de viver e sentir tudo de forma intensa aumentou ainda mais. Era simplesmente incrível estar bem fisicamente para fazer tudo o que eu quisesse. Lembrei-me de uma frase do livro O mundo de Sofia, que eu li quando tinha 15 anos. Na época, quando li o livro, essa frase tinha me deixado muito intrigada, tanto que a lembrava até hoje e agora ela parecia realmente fazer sentido: “Se nunca ficássemos doentes, não saberíamos o que significa a saúde. Se nunca tivéssemos fome, não experimentaríamos a agradável sensação de saciá-la depois de uma refeição. Se nunca houvesse guerras, não saberíamos o valor da paz, e se nunca houvesse inverno, não poderíamos assistir a chegada da primavera. Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo.”[2]

13. Teacher Lê Como uma brasileira ensinaria inglês para crianças tailandesas? Essa era uma pergunta que vinha me perseguindo desde o momento que eu soube que daria aulas. Eu não tenho formação e nem experiência como professora. Ainda no Brasil, eu fiz algumas pesquisas e também pedi ajuda à Sandra, minha querida dinda. Para quem não sabe, “dinda”, no Sul, é como chamamos a nossa madrinha. No meu caso, como eu fui batizada mais velha, eu tive o privilégio de escolhê-la: Ela é professora de inglês, tem o dom para lidar com alunos e fez questão de me dar uns livros e dicas preciosas. Com isso, deduzi que seria necessário utilizar todos os elementos que fossem comuns entre nós. Precisaria escolher ferramentas que não precisassem de palavras para explicar. Na prática, seria bem diferente. Mas sabia que a minha boa vontade e as razões pelas quais eu estava ali seriam mais fortes do que minhas dúvidas e medos. Gostaria muito de dizer que eu me preparei para o meu primeiro dia, mas eu não sabia nem por onde começar. Concluí que teria que dar a cara a tapas para iniciar. A essa altura, éramos um grupo de cinco voluntários: eu, o chinês do primeiro dia, um menino de Cingapura e duas chinesas, que haviam chegado recentemente e estavam morando na creche que havia em frente à escola. O Jason entregou um papel para cada um, contendo nosso

cronograma do dia. A escola atendia o equivalente a alunos da pré-escola até a oitava série (o que, hoje em dia, chamam de nono ano). Jason complementou dizendo que havia outras escolas na região que também tinham interesse em receber voluntários e que, se tivéssemos interesse, poderíamos dar aula em outros lugares. Eu fui a primeira a me manifestar, dizendo que não me importava em me locomover para outras escolas e que ficaria feliz em conhecer novos lugares. Os outros voluntários não expressaram muita vontade, logo, acho que o Jason contou comigo para essa missão e eu fiquei empolgada. Estava tão empolgada que me perdi logo de cara: não conseguia achar a minha sala. A escola não era grande, mas tinha dois andares e eu não fazia a menor ideia de onde ficava o quê. Sorte que tinha escrito a sala no papel e os alunos me levaram. Os professores não precisavam tirar os sapatos para dar aula, mas, como para os alunos era obrigatório, eu preferia ficar descalça também. A única diferença é que os alunos tiravam os sapatos na entrada pra escola e eu tirava apenas antes de entrar na sala. Assim que tirei meu chinelo e entrei, o silêncio se instaurou na sala de aula e rapidamente os alunos ficaram de pé, enquanto um dava um tapa na orelha do outro que ainda não tinha notado a minha presença. Fiquei de frente para eles e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, eles gritaram em uníssono: “Good Morning, teacher. How are you today?”. A frase tinha um ritmo engraçado: era tão bem decorada que saia como se fosse cantada. Eu sorri, demonstrando

satisfação com o que estava vendo. Respondi: “Good Morning. I’m good. How are you today?”. A resposta veio logo em seguida: “I’m fine. Thank you”. Parecia um bom começo. Rapidamente me virei para o quadro para escrever algumas coisas que me ajudariam na minha apresentação: meu nome, idade, país. Eles continuavam em um silêncio absoluto, então, me virei e percebi que todos continuavam de pé. Me dei conta de que eles estavam aguardando o meu comando para que se sentassem. Ri sozinha. Jamais esperaria isso dos alunos. Disse que podiam se sentar e comecei a me apresentar. A dificuldade já começou logo de cara: eles não conseguiam falar meu nome! Assim sendo, eu disse que podiam me chamar de Lê. Logo, meu nome se tornou alguma coisa entre Teacher Li, Lé e Lê. Comecei a ensinar perguntas básicas de conversação: “como você está”, “qual a sua idade”, “de onde você é”. Só tinha um problema. Quando eu fazia uma pergunta, como, por exemplo, “Where are you from?”, eles não entendiam que precisavam responder e apenas repetiam “Where are you from?”. Faziam assim com absolutamente tudo o que eu dizia. Era como conversar com um papagaio. Eles falavam “Where are you from?” e eu apontava para mim e dizia “Teacher Le”, “I’m from Brazil”. Adivinha o que acontecia? Um monte de tailandezinho repetindo “I’m from Brazil”. Eu levei algum tempo entre mímicas e exemplos para fazê-los entender o que era a pergunta e o que era a resposta. Quando eles entenderam, eles mesmos riam do que tinha acontecido.

Não tinha sido um mau começo. Terminei a aula e fui para a próxima turma. Quando cheguei na porta, percebi que eles eram mais novos do que a turma anterior. Antes de entrar, corri na sala dos professores e dei sorte de encontrar a Pony, uma das professoras que falava inglês muito bem. Peguei meu celular para anotar e pedi para ela me ensinar algumas palavras em Thai, incluindo “pergunta”, “resposta”, “muito bom” e “vocês entenderam?”. Nunca quatro palavrinhas tinham me ajudado tanto na vida. A segunda aula já foi bem mais fácil, mesmo que o inglês deles não fosse tão bom quanto o da primeira turma. Mas o que mais me surpreendia era o respeito que tinham comigo. Quando passavam na minha frente, eu percebia que eles se abaixavam em sinal de respeito. E, uma vez que eu estivesse falando, o silêncio tomava conta da sala. Nós, os voluntários, não tínhamos um cronograma muito cheio, então, acabávamos nos encontrando na sala dos professores entre os intervalos. Assim, fui conhecendo melhor os meus companheiros: O Vimos, a Victoria, a Summer e o Sum, de Cingapura. Fui conhecendo mundos totalmente diferentes. O Sum contava coisas incríveis sobre como Cingapura era um país superdesenvolvido. O Vimos e a Victoria me surpreendiam contando sobre a vida na China. Vimos dizia que a maior preocupação dos jovens chineses era ter o seu próprio imóvel, sendo esse um passo importante para conseguir uma namorada. Victoria relatava a rotina incesssante de estudos pela qual passavam. A Summer era uma chinesa à parte: ela tinha se mudado para a Inglaterra para fazer faculdade. Mas o que me deixou

mais curiosa eram os nomes deles, que não pareciam nada chineses. Descobri que eram nomes que eles mesmos inventavam quando saíam da China, visto que seria impossível para as pessoas lerem, falarem ou escreverem os seus nomes originais. A mesma coisa acontecia com os nomes tailandeses: nunca soube ao certo se eles eram inventados ou uma tentativa de transliteração, porque também usam outro alfabeto. A hora do almoço se tornou uma das minhas favoritas. A escola tinha uma cozinheira que preparava diariamente as refeições para a escola toda. A comida era absurdamente saborosa. Os tailandeses têm muito orgulho da sua culinária, então, ficam muito felizes quando você aprecia a comida. Posso dizer que eles estavam muito felizes em me ver comendo. Eu estava viciada no arroz branco, totalmente diferente do nosso arroz bem temperado e soltinho: ele é meio grudento e sem tempero nenhum. Mas o segredo é comê-lo junto com os pratos super bem temperados e, muitas vezes, apimentados. Comia com garfo e colher: a colher fazia a vez do garfo e o garfo a vez da faca. Meio confuso, né? Bom, você usa o garfo para ajudar a colocar a comida na colher e come com a colher mesmo. Para mim, era perfeito, porque com a colher dava pra comer todo o caldinho da comida com o arroz. Eu não sei explicar os pratos. Alguns tinham uma cara horrível, mas eram muito saborosos e metade do que eu via, eu não sabia o que era. E foi confundindo pimenta com pimentões que me acostumei com o sabor apimentado da culinária tailandesa.

14. Eu era livre O Jason começou a me dar um cronograma variado. Alguns dias professores de outras escolas me buscavam para que eu fosse dar aula em suas escolas. Eles apareciam para me buscar mais animados e ansiosos do que eu. Eu gostava dessa rotina, porque assim conhecia pessoas e lugares diferentes. Foi bom também porque comecei a usar a bicicleta que tinha na escola para me locomover, uma vez que o meu horário não era mais o mesmo do que o das minhas roommates. Finalmente entendi porque elas não me deixavam sair sozinha e porque sempre me faziam ir de carro para os lugares. A razão era porque não queriam que eu pegasse sol. Um dia, decidi que ia andando. Mal havia saído de casa e uma das professoras correu atrás de mim com um guardachuva. Fazia um sol de rachar e não havia sinal nenhum de que choveria. Eu ria sem entender nada, mas como não conseguíamos nos comunicar, eu acabei pegando o guardachuva. Aos poucos, fui descobrindo que, para eles, o bonito é ter a pele clara, pois quem tem a pele mais escura são as pessoas que trabalham pesado debaixo de sol por não terem tido oportunidades melhores. Eu cheguei a reparar que eles vendem na farmácia cremes que prometem clarear a pele. Sem contar que meus alunos aparecem de manhã com a cara branca, cheinha de

talco, simplesmente porque é bonito ser branco. Quando eu descobri isso, achei uma maluquice sem tamanho. Mas, logo em seguida, percebi que era exatamente assim que funcionava de onde eu vinha, só que ao contrário. O bonito é estar bronzeado e existem vários recursos que garantem esse resultado. O ser humano quer o que não pode ter. A televisão nos vende o oposto do que temos, tornando isso uma busca irracional. Eu acabava, na maioria dos dias, dando alguma aula na escola do lado de casa. Como os alunos iam de bicicleta, eu e a Victoria começamos a acompanhar as crianças até suas casas. A Summer não estava se dando muito bem com a vida no interior: outro dia, ela chegou na escola aos gritos, porque disse que tinha visto uma cobra atravessar na frente dela enquanto andava de bicicleta. E ela vivia reclamando das formigas e dos insetos. Logo, ela negava os nossos convites que envolviam um alto risco de encontro com a vida selvagem e gostava mesmo quando Jason nos levava para a cidade de carro. O vilarejo tinha um centrinho bem pequeno, onde aconteciam as feiras e onde ficava o templo budista. Era onde tinha também uma concentração maior de casas: todas de madeira e muito pequenas para a quantidade de pessoas que viviam nelas. Depois, o vilarejo continuava um pouco espalhado, com casas na beira da estrada de chão. Parecíamos uma gang. A brasileira, a chinesa e, pelo menos, mais uns 10 alunos tailandeses nos acompanhando. Alguns dos alunos nos convidavam pra conhecer as suas casas, outros gritavam em inglês o nome dos animais que

encontrávamos no caminho, como uma maneira de mostrar o que haviam aprendido em sala. Quando encontrávamos com os pais de alguns dos alunos, eles orgulhosamente explicavam que éramos as professoras de inglês. Os pais sempre faziam uma reverência de respeito e agradecimento. Eu ficava sem graça, porque sei que na cultura tailandesa o jovem é aquele que deve prestar respeito aos mais velhos, mas os professores são tão respeitados como alguém de idade. Pedalando pelo vilarejo de volta para casa, eu sentia uma alegria tomando conta de mim. Eu pedalava muito rápido e depois soltava os pés dos pedais, para sentir o vento batendo no meu corpo. Eu era livre. Eu não tinha contas para me preocupar, me vestia com uma roupa qualquer, meu meio de locomoção era uma bicicleta velha, eu recebia sorrisos o tempo todo e me sentia grata a todo o momento pelo que estava vivendo. Às vezes, era até estranho ser tão livre. Parecia que eu precisava de um compromisso ou de um problema para resolver. Mas eu não tinha. Era muito recompensador trabalhar sem a troca de dinheiro. Se eu estivesse ali trabalhando por um salário, eu não estaria tendo o mesmo prazer. Quanto mais eu vivia essa experiência, mais eu acreditava no nome do meu projeto: Do For Love. É muito genuíno trabalhar em troca do que a outra pessoa tem a te oferecer. E eles sempre me ofereceram o melhor que tinham. Por essa razão, eu dava o meu melhor em retorno. Guardei esse momento na minha memória para que esse fosse o meu parâmetro de felicidade e prometi que não aceitaria menos do que isso para a minha vida.

Viajar transforma a alma e os sentidos. A cada dia, tenho mais vida dentro de mim e isso me transborda. Essa viagem, que apenas começou, tem me transformado dia a dia. Eu tenho medo dessa pessoa que estou me tornando. Eu vi muita coisa, conheci muita gente, perdi os hábitos e costumes, virei camaleão, como de tudo, aceito as pessoas como elas são e vi muitas paisagens. Aceitei o que eu achava impossível e neguei o que por tanto tempo desejei. Tenho medo de ter que voltar a viver do óbvio. Eu prometo a mim mesma agüentar a estrada mais cansativa, a mochila mais pesada e o destino mais incerto, mas peço que a vida não me deixe pousar no ninho do conformismo. As minhas asas querem voar e, desde que pisei na Ásia para dar início a este projeto, eu acredito que já não existem mais limites de onde elas podem me levar.

15. Você vive ou sobrevive? Constantemente eu sentia a necessidade de escrever e compartilhar meus textos na página do Do For Love que eu havia criado no Facebook. Algumas vezes, por solidão. Outras, pela necessidade de compartilhar tantos sentimentos novos que transbordavam em mim. Eu queria contar para mais pessoas tudo o que eu estava vendo e aprendendo. Escrever começou a fazer parte do meu dia a dia e várias pessoas foram viajando junto comigo por meio dos meus textos. Quanto mais eu ia me expondo no mundo virtual, mais companhia eu tinha durante o meu percurso. 20 de julho “Aqui eu ando de pé descalço dentro de casa e da escola o dia todo. As condições de higiene não são as melhores possíveis. Vejo aquelas carnes expostas ao tempo nas feiras e provavelmente eu como em lugares que as tem como fornecedores. Tomo banho de caneca. Durmo no chão. Abraço crianças o dia inteiro. Tenho dois sapos de estimação no banheiro, algumas aranhas no quarto e mil insetos por tudo quanto é lado. Como arroz branco todos os dias pelo menos em duas refeições. Frituras fazem parte do cardápio também. Me sinto disposta. Sobre o banheiro? Eu prefiro não comentar. Lavamos as roupas à mão. Compartilhamos a comida. Mas é aqui também que na primeira semana eu melhorei de uma gripe que durou mais de dois meses. Aqui, eu dou pelo menos uma boa gargalhada todos os dias. Aprendi a sorrir ainda mais. Não existe nenhum programa de televisão te dizendo o que comer e a que horas. As crianças não acham que os alimentos vêm da prateleira do mercado e todos os dias antes das refeições pedem para que os agricultores sejam abençoados. O horário é flexível, mas o trabalho é árduo. Tenho pessoas ao meu lado que pensam tanto em mim que, às vezes, esqueço-me de pensar em mim mesma. Eles cuidam uns aos outros. Sem interesses. Sem recompensas. É natural. Não preciso de

roupas lindas e caras para me dizerem que estou bonita. Escuto isso todos os dias. E aprendi a dizer isso a eles também. Porque são lindos em todos os sentidos. Não que a vida aqui seja perfeita, longe disso, mas é um bom parâmetro de comparação com a vida idiota que levamos. Pare e pense em tudo. Vivemos para cumprir obrigações, obedecer a regras, preencher protocolos e pagar pelo que não precisamos ter. Faça. Pague. Declare. Limpe. Coma. Desista. Preencha. Envie. Pague de novo. Nós nos achamos tão modernos com nossa tecnologia, mas não enxergamos que vivemos mesmo em meio a pão e jogos circenses. Nos entopem de informações que não precisamos para não procurarmos no silêncio os nossos verdadeiros desejos e vontades. Enchem nossa cabeça com inutilidades. Nos fazem acreditar em resultados comprados. Até quando você reclama, você está sendo manipulado. Te chamarão de arruaceiro, rebelde, marginal, hippie ou quem sabe, maluco. Eu diria que você é uma pessoa consciente em meio à loucura. Ninguém precisa dessa lona para viver. Vamos repensar. Vamos procurar o nosso verdadeiro caminho. Vamos procurar respostas e parar com as desculpas. Afinal, quem é você? Você precisa do que para ser feliz? Você vive ou sobrevive?”.

16. Progresso em sala de aula Dentre tantas crianças e pessoas que eu havia encontrado no vilarejo, os meus olhos brilhavam por uma em especial. E esse ser de luz era o Tea: ele estava na turma dos pequenos, na faixa dos 5 aos 7 anos. Durante as atividades em sala, comecei a perceber que ele não falava direito e que estava o tempo todo salivando: suas roupas chegavam a ser manchadas pela saliva excessiva e constante. Por ter dificuldades em aprender, passei a ajudá-lo individualmente com os exercícios. Ele não conseguia escrever o alfabeto, então, eu me deitava no chão com ele (nessa classe, não havia mesas e nem cadeiras), segurava na sua mão e ia ajudando com o desenho das letras. Mas ele babava a folha toda e virava uma bagunça, porque a folha rasgava e não conseguíamos fazer toda a atividade. Mesmo assim, eu ficava feliz porque via ele feliz. Não sei se por conseguir escrever, ou se por ter alguém ali que lhe dava atenção. Tirando ele, a maioria das crianças aprendia com facilidade e eu considerava que estava tendo muita sorte pelo fato dos alunos serem extremamente respeitosos e educados, o que facilitava em muito a minha vida de professora estreante. Com isso, eu fui adaptando o plano das minhas aulas porque achava aquele jogo de perguntas

e respostas um tanto tedioso. Pelo menos, eu, como aluna, o acharia. O próximo passo foi pedir para que os alunos viessem até o quadro e desenhassem. Eu via as figuras do livro e não entendia a utilidade de ensinar para eles coisas como primavera e cinema. Pedindo para que eles desenhassem, eu conseguia trazer o que era importante e útil para a vida deles, até mesmo porque eu já tinha tido provas suficientes de que eu não sou tão boa com mímica e seria impossível eu descrever o que era a primavera para crianças que vivem em um país em que existe, basicamente, a estação da seca e a da chuva. A partir dos desenhos, eu ia ensinando um vocabulário novo e útil para eles, sem ser muito massacrante. Funcionava bem e fui incluindo brincadeiras com cores e animais. Eu estava feliz com o progresso que estava tendo em sala de aula, mesmo sabendo que estava longe de ser o ideal. Mal sabia que minha felicidade estava prestes a acabar no dia em que fui dar aula em uma outra escola junto com o Vimos. Falando nele, hoje descobri que o Vimos não conhece Bob Marley e que não sabe o que é tequila. Eu, como boa amiga, falei para ele não se preocupar, porque ele tinha encontrado a pessoa certa que o ajudaria com esses problemas em um futuro breve. Mas, voltando à escola, tudo começou bem até entrarmos em uma sala de aula com crianças de sete anos, que vestiam um uniforme rosa. Eles simplesmente ignoraram a nossa presença, o que, até então, era inédito. Mas se já não bastasse isso, alguns estavam correndo

enquanto empurravam as cadeiras pela sala, enquanto outros, sentados sobre as mesas, empurravam o coleguinha na mesa ao lado. Eles não entendiam nada de inglês, mas se assustaram com uns berros que eu dei e pararam. Resolveram continuar a aula do jeito que estavam, alguns sentados no chão, outros na cadeira virada ao contrário, outros de pé junto ao quadro e, até mesmo, sobre a mesa. Quando aceitamos que não teria como organizar aquela bagunça, acho que eles ficaram satisfeitos. Conseguimos ensinar o alfabeto escrito pelos próximos 20 minutos. Depois, parecia que eles tinham resolvido tirar o intervalo ali dentro da sala mesmo. Eu e o Vimos desistimos, sentamos e ficamos observando. Eles eram rápidos e, em poucos minutos, já estavam tirando selfies com o meu celular e empurrando a cadeira com o Vimos sentado nela. Apesar de rir e de me divertir com a cena, eu sabia que a nossa aula tinha sido um desastre. Enquanto estava observando a bagunça toda, reparei que, apesar da escola ter uma infra-estrutura bem simples e carecer de material escolar, eles tinham uma televisão. Lembrei-me de que eu tinha trazido o meu computador e tive a ideia que mudaria as minhas aulas a partir de então. Enquanto o Vimos pedia ajuda para uma professora para instalar o computador na televisão, eu pesquisei alguns vídeos, todos eles muito coloridos, com música e cheio de desenhos que ensinavam o alfabeto. Quando apertamos o play, foi como mágica. Eu tinha achado o ponto fraco deles. Eles prestaram atenção absoluta na aula, cantando e dançando junto com a gente.

E, como que por um milagre, conseguimos mantê-los assim até o final da aula. Voltamos para o vilarejo super animados com o nosso dia de aula e até aproveitei o wi-fi na sala dos professores para baixar mais vídeos com outras temáticas. Passei a trabalhar a maioria das minhas aulas assim, mesmo quando não tínhamos televisão. Nesse caso, usava o próprio computador com as crianças maravilhadas ao redor dele. Quando cheguei de volta em casa e entrei no meu quarto, reparei que todas as minhas roupas sujas, que eu tinha deixado separadas para lavar, estavam limpas e penduradas organizadamente em cabides ao longo de um varal improvisado no meu quarto. Se a minha mãe não estava ali, quem teria feito isso? Depois de investigar o caso, descobri que tinha sido a Kob, que resolveu me ajudar com as roupas e lavou todas elas a mão. E sem o inglês para eu explicar que ela não precisava ter feito aquilo, me restou abraçá-la como um sinal universal de que eu estava grata pela gentileza.

17. Agricultores e Policiais Eu gostava da maneira como o Jason era inquieto e estava sempre procurando jeitos de fazer com que o projeto dele atingisse mais pessoas. Quanto mais eu o conhecia, mais o admirava. Passei a ajudar também na administração do projeto, respondendo e-mails, organizando os textos do site e resolvendo alguns problemas que surgiam. Era um prazer trabalhar ao lado de pessoas com objetivos bonitos, que buscavam o crescimento coletivo e não somente o seu próprio. Quando eu já estava me acostumando a dar aula de inglês para as crianças, recebo duas propostas surpreendentes do Jason: ele me convidou para dar aulas para os agricultores e para os policiais do vilarejo. O aulão que fizemos reuniu um número muito grande de agricultores da região, surpreendendo as nossas expectativas. Quando fiquei em frente a eles para iniciar a aula, meus olhos ficaram marejados. Era uma cena única que eu estava presenciando: dezenas de trabalhadores rurais, já com uma certa idade, unidos ali pela chance rara de estar em contato com o conhecimento. Eu não sou ingênua de achar que eles facilmente aprenderiam a língua inglesa e que sairiam falando por aí, mas em todo lugar que tivermos pessoas reunidas em busca de conhecimento, há a certeza de que estamos na direção certa.

Eles me olhavam de forma curiosa e estavam ávidos por aprender algo novo, nem que fosse uma palavra. Alguns estavam ali para poder incentivar os filhos, pois tinham esperança que a língua inglesa poderia lhes dar oportunidades melhores no futuro. Outros estavam curiosos com a possibilidade de entrar em contato com uma ocidental e, no final da aula, pediam para tirar foto e me abraçavam fortemente. E esse motivo era muito válido também, porque isso nos deixava mais próximos como seres humanos: uma loira branca não seria mais coisa da televisão e eles poderiam contar para as outras pessoas que conheceram uma e que tiveram uma experiência positiva. Assim como para mim, que tinha a oportunidade de contar ao mundo sobre eles. O ser humano é naturalmente curioso e entrar em contato com o desconhecido diminui as barreiras, agregando valor às relações humanas. Uma das coisas mais bonitas que tem acontecido nessa viagem é olhar para um desconhecido que, aparentemente, é tão diferente de mim e sentir empatia, quebrando meus preconceitos e me fazendo perceber que há muito mais semelhanças do que diferenças entre nós. A nossa cor, religião, roupa ou profissão não diz nada a respeito de quem somos, a partir do momento em que estou consciente de que, assim como eu, esse ser humano tem as mesmas necessidades que as minhas. Nossos deuses podem ter nomes diferentes, mas ambos buscamos o amor e a paz. Eu via muita pureza naquelas pessoas, coisa que eu não via com muita frequência na minha vida ocidental. Sempre que eu chegava em algum lugar, eu percebia que, mesmo

que eles tivessem muito pouco, o que eles tinham de melhor era oferecido a mim. Eu percebia que uma das principais diferenças entre nós era o fato de que eles não tinham acesso fácil ao básico e dependiam de um trabalho em comunidade para que suas necessidades fossem atendidas. Uma família plantava verduras e a outra, arroz. Não existia a competitividade para ver qual a plantação seria mais produtiva, porque eles dependiam da produção do todo. Esse senso de comunidade vem se perdendo, infelizmente, em nossas vidas. A experiência no posto da polícia foi tão enriquecedora quanto a com os agricultores. Assim que me apresentei, notei a importância que eles estavam dando para aquele momento. Havia até um banner exposto na parede, na frente da sala, que dizia: Programa de Treinamento da língua inglesa para policiais. Preparação para o AEC. No momento em que vi a sigla AEC no banner, lembrei que havia lido em algum lugar, provavelmente em algum jornal, sobre o AEC. Era a Comunidade Econômica ASEAN (abreviação em inglês para Associação de Nações do Sudeste Asiático), uma integração regional que prometia a criação de uma área de livre comércio, visando à circulação de mercadorias e de trabalhadores como uma forma de atrair investimentos na região. Mas, mesmo com essa informação, eu não conseguia entender porque a minha

aula de inglês estava ligada à AEC e tirei a minha dúvida com o Jason, que me explicou que com a materialização da AEC haveria um fluxo muito maior de pessoas e de produtos, o que exigiria dos tailandeses que fizessem contato com estrangeiros. Tanto o inglês como outras línguas regionais seriam de grande valia para o futuro dos profissionais de todas as áreas. Eu gostava do fato de estar participando ativamente de algo que eu tinha lido no jornal. Era curioso ter tantos policiais fardados prestando atenção minuciosa a tudo que eu dizia. Ensinei direções e nomes de lugares, pois eles diziam que queriam ajudar os estrangeiros com informações. Lembrei que, quando fui furtada em Bangkok, encontrei um policial que falava inglês e me ajudou. Olhando para a turma, eu desejava que o que eu estava ensinando se transformasse, um dia, em informação para algum outro viajante em apuros.

18. Vivendo como uma local Entre dias cheios de novidades e dias de solidão, eu ia vivendo minha experiência como voluntária no vilarejo e nem eu fazia ideia do quanto eu estava aprendendo. Não somente sobre o lugar, mas, principalmente, sobre mim mesma. Nas primeiras semanas, eu costumava escrever com frequência para o moreno. Mas, aos poucos, comecei a me observar e percebi que, o que inicialmente parecia saudades, era na verdade, solidão. Nossas mensagens foram ficando cada vez mais esporádicas e, naturalmente, nos afastamos. O que nos unia agora eram alguns likes no Instagram. O Instagram me mostrava um mundo completamente diferente do meu e chegava até mesmo a questionar a minha sanidade. Enquanto via garotas parecendo bonecas saindo para lugares badalados, eu estava com os pés descalços, pulando corda em um vilarejo isolado na Tailândia. Elas tinham 200 likes, eu tinha 30. Alguma coisa estava errada. Independentemente dos likes, eu me sentia cada vez mais parte da realidade que estava vivendo no pequeno vilarejo. Passei a perceber como a imagem do rei da Tailândia era venerada como se fosse um Deus. Ela estava presente em todos os lugares que eu ia. Descobri que ele é o monarca que está há mais tempo no trono no mundo:

desde 1946. Isso, de acordo com o nosso calendário, porque aqui estou vivendo no ano de 2.556, conforme o calendário budista. Aprendi a pedir comida sem pimenta e café sem açúcar em tailandês e sabia que, mesmo assim, minha comida viria apimentada e meu café, doce. Acostumei-me com a forma direta com que os tailandeses sempre me pergutavam minha idade e se era casada. Gostava de como eles davam risada de tudo, inclusive deles mesmos, independentemente se fosse uma situação difícil ou séria, e já estava acostumada a ver as tailandesas comendo insetos fritos no café da manhã em casa. Eu até já tinha experimentado um grilo frito! Cada um com seu paladar, mas eu preferia um escorpião bem torradinho do que o grilo com o miolo meio mole. Gostava de inseto sem a sensação de ele ser recheado. Eu não era a única que estava aprendendo coisas novas. Em um final de semana, finalmente pude apresentar uns shots de tequila para meu amigo Vimos, enquanto escutávamos Bob Marley, em um bar de baixo nível em Pattaya. Nas ruas da cidade, víamos prostitutas e velhos gringos. Em alguns momentos, tinha a sensação de estar em Amsterdam, vendo prostitutas nas vitrines, com luz vermelha ao fundo. Os preços baixos e o turismo sexual são os atrativos para a maioria dos turistas dessa cidade litorânea, que fica apenas uma hora de carro de Bangkok. Nós só queríamos um final de semana divertido em uma praia.

Depois de cumprir minha promessa com o Vimos, seguimos de volta ao hotel onde estávamos. Victoria estava abismada com tudo o que tinha visto e explicou que, na China, ela raramente saía, pois tinha que estudar a maior parte do tempo e o máximo que lhe era permitido era um karaokê com os amigos. Eu não era fã de lugares como esse, mas também não estava chocada com o que via. Isso me fez ficar próxima da quarta integrante do nosso grupo nessa viagem: Lucy, da Alemanha. Ela era uma das voluntárias que tinha ido me buscar no meu primeiro dia e voluntariava em uma outra cidade, próxima à minha. Como também era voluntária do projeto do Jason, acabamos nos esbarrando e a convidei para a viagem. Era um alívio encontrar alguém com inglês fluente! Sentia falta de conversar com quem tinha interesses e conversas mais parecidos com os meus. E tê-la conhecido foi a melhor parte da nossa viagem! Lucy me contou do voluntariado que fez com animais no Equador e das festas eletrônicas que gostava de ir na Europa. Ela era alto-astral e muito divertida. Descobri que as outras meninas que tinham ido com o Jason me buscar no meu primeiro dia estavam na mesma escola que ela. Ela ainda me disse que a família tailandesa com a qual ela morava as levava para passear em todos os finais de semana. Logo, ela me convidou para me juntar a eles no outro final de semana, que seria um feriado. Eu adorei a ideia, pois vinha evitando ao máximo os finais de semana no vilarejo: sem ter aulas para dar, eu acabava ficando sem ter

muito o que fazer e, até agora, tinha tido sorte de sempre ter alguém para me levar para algum passeio pelas redondezas. Depois de um final de semana bem atípico em Pattaya, pegamos o ônibus de volta ao vilarejo no domingo à tarde, evitando chegar muito tarde. Sabíamos que o próximo dia seria de celebrações, devido a um grande feriado budista. Nem imaginava que, na manhã seguinte, descobriria que eu seria a atração principal da festividade. ... Nessa segunda-feira, primeira lua cheia de julho, os tailandeses comemoram o primeiro sermão dado por Buda. Esse dia é conhecido como dia de Dharma, sendo Dharma a verdade por ele ensinada. É uma das celebrações mais importantes no budismo Theravada, que é a vertente mais tradicional e antiga da religião. Essa data também é importante porque marca o início do Vassa, que são os três meses chuvosos nos quais os monges devem dormir no mesmo templo e se dedicar totalmente à meditação e aos estudos. Aprendi que essa é uma época em que muitos homens se tornam monges, motivo para muita comemoração por todo o país. Segundo a tradição, os tailandeses devem levar velas, água e comida para os monges nos templos. Como eu moro no interior, aqui as tradições são muito fortes. Para essa, em específico, eles escolhem uma mulher – a qual deve se orgulhar por ser a escolhida, já que é uma posição que todas as tailandesas gostariam de estar – e um homem para

se vestirem com roupas tradicionais da Tailândia e fazerem a entrega das doações aos monges. Assim que cheguei na escola pela manhã, descobri que meus alunos e professores haviam me escolhido para cumprir esse papel e pude sentir na pele o quanto esse dia é importante para eles. Reparei que todas as garotas estavam com tranças no cabelo, maquiagem feita e ensaiando coreografias. Alguns meninos também se maquiaram e se vestiam com roupas tradicionais. Cercada pelas crianças e professoras, fiquei sentada em uma cadeira, enquanto elas faziam minha maquiagem. Depois, complementaram arrumando meu cabelo com um coque falso, preso com muitos grampos no topo da minha cabeça. Cuidavam de todos os detalhes e riram quando perceberam que o coque que fazia parte da vestimenta era escuro, contrastando com meu cabelo loiro! Uma roupa tradicional rosa, com detalhes em amarelo-ouro, concluiu a produção. Os olhares sobre mim eram de uma admiração que eu nunca senti antes na pele. Crianças, adultos, professores, policiais e agricultores não cansavam de repetir em Thai que eu estava linda. Eu me olhava no espelho e ria. Meu visual era composto por uma sobrancelha preta bem definida, um coque preto que se destacava e uma roupa que não se comparava a nada que eu já tivesse vestido antes na minha vida. Para os padrões ocidentais, eu estaria totalmente fora de moda. Assim que fiquei pronta, eles me colocaram sentada em uma cadeira na carroceria de uma caminhonete. O carro foi detalhadamente enfeitado com papel crepom colorido,

fazendo lembrar um pequeno carro alegórico. Alguém segurava um guarda-chuva para me proteger do sol. Ao meu lado, estava Jason, devidamente produzido. Os alunos se dividiram, alguns andando em frente ao carro, que se locomovia em baixa velocidade, e outros atrás, dançando e cantando até o templo que ficava relativamente próximo. As pessoas do vilarejo aguardavam a nossa passagem na beira da estrada. Elas me olhavam, acenavam e tiravam fotos. Eu via em seus olhos que estavam deslumbrados e pensava se eles viam deslumbre nos meus. O trajeto durou uns 20 minutos, até chegarmos ao templo. Eu não saberia explicar com palavras o que senti naquele momento. Entramos no templo sob o olhar de admiração dos moradores, fizemos a entrega dos alimentos e participamos da cerimônia. Eu não entendia o que oravam, mas não me apaguei ao significado e, sim, à energia boa que emanava daquelas pessoas. Estava fascinada. Eu vim até aqui para um simples voluntariado e me pego vestida como uma tailandesa, na carroceria de uma caminhonete, rodeada por crianças que me admiram. Enquanto observava o monge que parecia ter saído de algum quadro que eu já tinha visto, eu agradeci dentro de mim por poder viver esse momento. Seria normal eu ter me sentido uma estranha no ninho, com o cabelo metade de cada cor, uma sobrancelha artificialmente preta e uma roupa para lá de diferente. Mas eu me senti especial por fazer parte dessa data tão importante. Um professor que falava inglês me explicou muito contente que, para eles, eu sou uma ocidental muito diferente, não na minha aparência,

mas no meu jeito de ser. E esse era o melhor elogio que eu poderia receber.

19. O ocidente encontra o oriente Comecei o dia com ótimas notícias vindas do Jason: “O meu amigo monge entrou em contato comigo, dizendo que você será muito bem-vinda como professora voluntária na escola. Inclusive, tem um feriado se aproximando e acho que é uma boa oportunidade para você passar uns dias lá. O que você acha?” – Indagou o Jason, sem nem saber o quanto eu estava esperando por essa notícia. “Claro! Confirma com ele para todos os dias do feriado! Você não imagina como estou feliz de poder passar uns dias na escola para monges. Obrigada por fazer o contato.”. – Falei isso quase que saltitando na frente dele. Eu mal podia acreditar. Eu queria muito ter a oportunidade de me voluntariar em uma escola para monges, para conhecer um pouco mais sobre o budismo e vivenciar o dia a dia deles. O Jason já havia me avisado que eles jejuam depois do almoço, mas que eu teria algumas opções de comida. Eles me dariam um lugar para dormir e aulas de meditação, o que seria um super desafio para a minha mente inquieta. A semana passou devagar devido à minha ansiedade para que chegasse logo o sábado. Acordei enquanto ainda era escuro e podia escutar os sapos do lado de fora. Coloquei umas roupas compridas na mala e esperei pelo

Jason. Ele me levaria até o ponto de ônibus, de onde eu iria seguir de van até a próxima cidade. Ali, Pim, a tailandesa com que Lucy estava ficando me buscaria. Chegando no protótipo de rodoviária da cidade, vi uma caminhonete com a Lucy e as demais voluntárias de pé na carroceria, todas acenando e sorrindo. Logo em seguida, Pim e o marido saíram do carro e se apresentaram primeiro, seguido da sua filha de 12 anos. Falaram que tinham programado alguns passeios durante a manhã, mas que me deixariam na escola para monges até o final da tarde. A escola ficava em uma área isolada, a umas duas horas de carro. Agradeci por eles se oferecerem a me levarem até lá. O marido de Pim pegou minha bolsa e eu pulei na carroceria, animada em conhecer melhor as outras voluntárias. Eram duas chinesas, a Pepi e a Bai, e uma polonesa, a Joana. Ficamos amigas logo de cara. A Pim e família eram pessoas maravilhosas. Eles queriam garantir a diversão do nosso dia nos levando para inúmeros lugares, sempre contando histórias e servindo de tradutores. Nos levaram para conhecer um lugar muito curioso: uma escola de treinamento com búfalos fundada por uma das filhas do rei. O objetivo da escola é instruir agricultores a usar os búfalos para preparar a terra, onde será plantado o arroz. Os búfalos trabalham poucas horas por dia e apenas nos horários em que o sol está mais baixo. Como chegamos próximo ao meio-dia, eles estavam descansando. Enquanto observava um dos animais de perto, um dos tailandeses me ofereceu para fazer algo inusitado: montar um búfalo. Com muito medo de levar uma chifrada e com o

apoio dos locais que se divertiam com minha cara apavorada, montei no búfalo com sucesso. Enquanto os búfalos descansavam, os agricultores continuavam a todo o vapor, plantando o arroz na terra já preparada. Pim me contou que a escola receberia a visita da família real em breve e que, por isso, estavam plantando toda a área para recebê-los. Brinquei, falando que também queria plantar arroz para o rei. Pim traduziu o que eu disse aos agricultores, eles levaram minha proposta a sério e trouxeram galochas para eu entrar na plantação. E lá fui eu aprender a plantar arroz com os locais. Eles me ensinaram a quantidade certa e a distância entre cada uma das mudas. Eu me atolava a cada passo que dava e quase perdia a galocha, mas fui acompanhando e aprendendo enquanto a Pim ria de mim, tirava fotos e traduzia o que eles diziam. A brincadeira durou uns 10 minutos, tempo suficiente para sentir dor nas minhas costas e me incomodar com o sol rachando na minha cabeça. Eles ficariam ali até o final do dia e tinham todo o meu respeito. Depois do passeio, fomos para o restaurante e comemos muito. Dessa vez, o meu prato favorito foi um peixe assado inteiro, com muitas especiarias, pimenta e arroz para acompanhar, é claro. Rapidamente, fiquei amiga das meninas. Conversamos muito sobre as curiosidades da vida tailandesa. Elas estavam tendo uma experiência muito diferente da minha, já que moravam na cidade e tinham acesso a muitas coisas, ainda mais com a Pim e a família as levando para todos os lugares. Mas mesmo com a experiência mais isolada, eu não trocava a pureza do meu vilarejo por nada.

Como prometido, na metade da tarde, eles me levaram para a escola para monges e partiram. Mais uma vez, eu estava sozinha em um lugar que era totalmente desconhecido para mim. Mas o desejo pelo desconhecido sempre foi o meu combustível. Meu medo maior era o de não ver o mundo. Esse era o motivo por eu estar ali, parada em frente a uma escola para monges, observando com olhar de criança, enquanto imaginava tudo o que eu estava prestes a viver ali. ... Sentada em uma minivan que balança sem parar, em meio a buracos de uma estrada de chão, eu vejo a escola de monges ficando para trás. Um lugar que, há dez anos, era apenas mato e que, hoje, parece mais com uma floresta, plantada pelas mãos de muitos dos monges que vivem lá até hoje. Trago comigo recompensas intangíveis e do que é físico: dois livros que acabei de receber dos monges como uma forma de agradecimento pela minha ajuda. Isso soa tão engraçado. Eu era a pessoa que deveria ter comprado uma biblioteca de agradecimento a eles. Gostaria de poder dizer que os recebi das mãos dos monges, mas isso jamais aconteceria porque os costumes budistas não os permitem tocar em uma mulher. Havia um pano de crochê laranja nos separando e nesse momento eu li na capa do primeiro livro “O ocidente encontra o oriente”. Não haveria outro título que resumisse melhor essa experiência. Antes de chegar na escola de monges, nem eu mesma sabia para onde exatamente eu estava indo. Mas cheguei

preparada com muito respeito, curiosidade, com a cabeça aberta e disposta a não julgar, mas a aprender. E é com esse mesmo propósito que convido vocês a viverem um pouco dessa experiência comigo. Esse lugar é uma escola onde crianças e adolescentes estudam, moram e vivem de acordo com os preceitos budistas, que são muito rígidos. Muitos dos professores são monges que moram na escola, havendo também funcionários leigos que têm a opção de morar lá ou não. Os noviços estudarão na escola até terminar o que seria equivalente ao nosso Ensino Médio e, aos 20 anos, finalmente realizam o sonho de se tornarem monges e seguirão para a universidade. Essa escola é gratuita – mantida por doações – e posso dizer que a infra-estrutura deles deixaria para trás muitas escolas particulares no Brasil. A minha sorte foi poder ter um quarto com ar condicionado e um chuveiro com água quente. Luxo. No Budismo, as pessoas comuns devem seguir cinco preceitos, semelhante à ideia dos mandamentos na religião católica. Os budistas que praticam a meditação com mais intensidade seguem oito, os monges noviços, dez, e os monges, 227 no total. Isso quer dizer que estas crianças aceitam viver suas vidas até os 20 anos de idade obedecendo as seguintes regras: não matar nenhum ser vivo (incluindo formigas e insetos), não roubar, ser casto, utilizar linguagem adequada, não ingerir bebidas alcoólicas, não comer depois do meio-dia, não participar de atividades de entretenimento, não embelezar o corpo, não dormir em leitos elevados ou luxuosos, e não aceitar ouro ou dinheiro.

Durante esses quatro dias, eu não ensinei o inglês propriamente dito, como se espera de uma professora. Estávamos todos muito curiosos quanto às nossas diferenças para nos preocuparmos com regras e explicações gramaticais. E isso não era problema nenhum, se percebermos que é na curiosidade que mora o verdadeiro aprendizado. Respondi perguntas sobre a Floresta Amazônica, piranhas e tucanos, coisas que eles leram nos livros. Expliquei sobre como conseguimos comer arroz com garfo e que a nossa língua é o português. Não poderia deixar de falar sobre futebol, samba e Rio de Janeiro! Eles queriam saber se eu já tinha escalado uma montanha ou se eu já tinha visto um dragão-de-Komodo. Eu fui como uma janela para o mundo. Estava curiosa para saber o motivo que os levaram a escolher serem monges tão cedo. A resposta era óbvia para eles. Eu escutei crianças de 12 anos me explicando que eles gostariam de ser felizes, meditar, dando esse orgulho a seus pais e carregando consigo o mérito de ser monge. Eles buscam, acima de tudo, a felicidade que a vida como monge traz. Essa foi uma escolha própria de mais da metade dos noviços que eu questionei e o restante disse que os pais propuseram tal opção. Nesse momento, eu fervia por dentro: queria saber se eles estavam felizes com a escolha ou se era difícil para eles se adaptarem. As tradições não me permitiram, mas, mesmo assim, saí dali impressionada com a sobriedade destas crianças. Eu sabia que as aulas de meditação não seriam fáceis e, de fato, eu estava certa. A primeira foi uma meditação

caminhando. O monge me explicou que a meditação pode ser feita a qualquer momento, inclusive andando ou realizando atividades cotidianas. Ele me pediu para tomar consciência da floresta, dos pássaros, do perfume das flores e ia me guiando pela meditação. Mas eu ainda estava muito curiosa e me distraia fácil com detalhes, além de encontrar dificuldades para caminhar com a saia longa branca que haviam me dado, tropeçando passo sim, passo não. A segunda foi uma meditação sentada em uma cadeira. O mais óbvio aconteceu: eu caí no sono e não me lembro de nada. A terceira foi sentada com as pernas cruzadas em uma sala ampla, com o monge em um degrau mais elevado, à minha frente. Durante os primeiros minutos, ele me guiou, pedindo que eu imaginasse uma bola de cristal dentro de mim. É difícil explicar isso para um monge, mas, da melhor maneira, eu disse que não consigo criar imagens em minha mente. Sei que soa estranho, mas é a mais pura realidade. Se alguém me pedir para fechar os olhos e imaginar a minha mãe, nada me virá a cabeça. A única coisa que me vem é o sentimento que aquela pessoa ou objeto me traz. O monge achou que ia facilitar me pedindo para imaginar uma praia. Não queria ficar argumentando com o monge e me esforcei, já que eu amo praia. Simples, imagine uma praia. Aquela praia que eu fui no Hawaii era incrível. Acho que peguei uma carona para chegar até lá. Sim, foi isso mesmo, um havaiano me levou, gente finíssima. Ops, era pra pensar na praia. Foca e pensa na praia. Calma. Água azul, areia. Mas com tanta praia, em

qual devo pensar? Hummm… Cerveja e camarão combinam muito com praia. Estou com fome, será que o monge está com fome também? Coitado, faz jejum todo dia. Mas todos tem smartphone e até vi um monge tomando whey protein outro dia. Monge pode tomar whey protein? Esquece os monges, pensa na praia. Água azul, areia… E assim se seguiu a minha briga interna pelos primeiros cinco minutos, até eu começar a ter câimbras e ficar com uma vontade de sair correndo da sala. Espiei o monge e pude perceber que ele estava em outra dimensão. Senti uma pontinha de inveja. Sem fazer barulho, estiquei uma perna, a outra, retomei a posição, mas eu não aguentava mais. Parecia que cada segundo era um minuto. E assim se passaram os 20 minutos mais difíceis da minha estada na Tailândia. O problema não era a meditação, mas eu que não estava pronta para ela. Além de dar as aulas e fingir que meditava, pude participar como convidada de uma cerimônia relacionada ao Dia do Dharma. Por causa da barreira da linguagem, muitas vezes eu tinha dificuldade em entender algumas nuances, mas não deixava que a minha falta de compreensão impedisse o meu envolvimento. Foi algo bem diferente do que eu tinha participado anteriormente lá na escola, mas que fazia parte da mesma celebração. Ao final de uma bonita prece, fomos todos para o ponto mais alto da escola e lançamos ao céu mais de 30 balões iluminados por uma vela, em forma de agradecimento a Buda. Foi uma das imagens mais bonitas que eu já vi. Monges. Noviços. Lua Cheia. Velas. Balões. Um céu iluminado por eles.

Nesse momento percebi que a nossa busca é a mesma e, na essência, somos todos iguais, com os mesmos medos, esperanças e desejos. Não importa se você é monge, noviço, criança, adulto ou idoso. Queremos todos encontrar a felicidade, orgulhar nossos pais e ter consigo o mérito de ter feito alguma coisa boa nessa vida. O que nos diferencia são os caminhos que escolhemos para alcançar esses objetivos. E não existe caminho único ou uma fórmula secreta. Temos limites diferentes e cada um sabe do que abriria mão para ser feliz. Cada um dá um valor diferente a sua busca. Estes jovens abrem mão de tudo o que para nós é sinônimo de felicidade e dizem encontrá-la justamente na sua ausência e na simplicidade.

20. Atravessei o mundo para estar aqui De volta à minha rotina de aulas no vilarejo, eu me aproximava cada vez mais do meu aluno Tea. Não sei exatamente como explicar, mas existia uma conexão muito forte entre nós, como se ele confiasse mais em mim do que em todo mundo que o rodeava. Eu sentia muito amor toda vez que via seu sorriso meio babado e quando meus olhos encontravam os dele. Nesse dia, eu tinha acabado de sair de uma reunião com a mãe dele, na qual o Jason serviu de intérprete para que pudéssemos conversar. Eu tinha tido uma ideia, mas ainda não tinha entrado em contato com ninguém. Então, sentei na sala dos professores e, cheia de esperança, redigi um email que seria enviado para 20 amigos, cada um cuidadosamente selecionado: “Oláááá, meus amigos!!! Como vocês sabem, escrevo diretamente de terras tailandesas esse e-mail e tenho uma história para compartilhar com vocês. E tenho certeza que ela irá mudar um pouquinho a vida de todos nós!!! Tem um menino que estuda aqui na escola, o nome dele é Tea, ele tem 6 anos e estuda no jardim. Ele tem um

problema na língua que não o permite falar, nem engolir a saliva. Ele está sempre com as roupas molhadas por conta desse problema e molha até mesmo os livros. Várias vezes enquanto o ajudo com as tarefas, ele rasga a folha na hora de pintar, pois ela está toda babada. É claro que, como ele não consegue falar, isso se reflete em sérios problemas de aprendizado e de socialização. Ninguém presta muita atenção nele, uma vez que ele nunca tem muito a dizer além de uns grunhidos. E não é pouca coisa: eu nunca consegui entender uma palavra do que ele fala. E adivinha? De todas as crianças, ele é o que mais me apeguei e tem o sorriso mais gostoso de todos. A maneira como os alunos encontram de ficarem próximos a mim é me mostrando que aprenderam inglês, usando as palavras para me impressionar. Ele usa de todas as outras armas: o sorriso, os gestos, o carinho e até senta no meu colo quando as outras crianças vêm me pedir para corrigir as tarefas. É um gesto como quem diz: elas podem falar, eu vou ficar aqui no seu colo, pois é o jeito que eu tenho de me aproximar de você. Quando senti que precisava ajudá-lo, pensei que deveria ser um problema sério e que precisava de muitos recursos financeiros. Para a minha alegria e surpresa, o caso é muito mais simples do que eu esperava. A mãe do garoto não é tailandesa, veio para cá em busca de emprego e melhores condições de vida e ela não tem documentação para viver aqui, ou seja, ela está ilegal. Ela tem um marido que não é o pai do garoto e, por isso, nunca se interessou muito por ele e diz não ter tempo para levá-lo ao hospital. Quanto à cirurgia, ela é GRATUITA.

O que os impede de realizar a cirurgia é a falta de alguém que possa levá-lo ao hospital e assinar os papéis – uma vez que a mãe dele não o pode fazer. Eu já consegui uma pessoa tailandesa para me acompanhar, já que teremos que dormir uma noite no hospital. Essa semana, eu conheci a mãe dele e, com a ajuda de professores que falam um pouco de inglês, consegui dizer para ela que eu queria ajudar e pedi que levassem o menino no médico aqui do vilarejo para conseguirmos a autorização da cirurgia e uma descrição de possíveis gastos. Mais uma surpresa, não existe gasto nenhum com médico, hospital ou medicamentos. Mas a mãe dele me disse que eles não têm condições de arcar com as despesas da locomoção daqui até as outras cidades – ele terá que passar por mais um ou dois médicos – e dos gastos com comida durante esses dias. Lembrem-se de que essa história se passa em um vilarejo no interior da Tailândia e, para eles, locomoção é um bicho de sete cabeças. Eles são agricultores e não gastam dinheiro com alimentação. Para eles, ir até a cidade grande e enfrentar isso tudo é um desafio que nem eles sabem se conseguem enfrentar. Eu atravessei o mundo para estar aqui e já me dispus a ser essa pessoa a ajudá-los. Cheguei à conclusão que precisamos de 400 dólares para que o menino possa fazer a cirurgia e voltar a falar. É claro que isso ainda vai levar um tempo, pois ele terá que aprender a falar novamente e, quanto antes esse processo acontecer, mais chances ele tem de ficar como as outras crianças. Nesse valor, eu incluí gastos com locomoção, alimentação, possíveis remédios e, com o que sobrar gostaria de comprar camisetas novas para ele, já que as

que ele tem estão todas encardidas devido ao fato de ele estar constantemente babando nelas. Na sexta-feira, quando ele e a mãe chegaram aqui na escola, depois da visita ao médico e de terem explicado para ele a situação, todos o encorajaram a me agradecer. Depois de três tentativas, esse foi o primeiro dia que eu entendi o que ele disse para mim: Thank you!! Ele estava meio tímido atrás da mãe, mas eu estendi meus braços e ele veio correndo me abraçar. Eu tive que ser forte para não desabar. Um dos professores olhou para mim e disse: “Você entende que você e os seus amigos vão mudar a vida dessa família??” Parece cena ensaiada de filme, mas foi exatamente assim que aconteceu. E agora gostaria de explicar o porquê de estar encaminhando esse e-mail para vocês. Eu sei que o valor é baixo, não preciso nem fazer comparações com o nosso estilo de vida para dizer que isso é muito pouco. Quem sabe eu poderia conseguir esse valor total diretamente de apenas uma pessoa que tem condições financeiras de ajudar. Mas para essa história, eu queria um desfecho diferente. Eu selecionei cada um de vocês que estão nesta lista porque foram as pessoas que mais me apoiaram quando eu decidi fazer essa viagem maluca e que sei que, de alguma forma, ou gostariam de estar fazendo um trabalho como esse que eu estou fazendo, ou gostariam de ajudar. Querer nem sempre significa que podemos, principalmente falando de ajuda financeira, mas gostaria muito que vocês fossem as pessoas a participar dessa mudança na vida do Tea. Seremos todos padrinhos e madrinhas dessa criança que

jamais irá esquecer do que fizemos por ele. Então os convido a ajudarem com um valor de, no máximo, R$100,00 para que todos possam ajudar com um pouco e participar. O mínimo não existe e qualquer ajuda é bem-vinda! Quem sabe se você não puder ajudar agora, você pode conseguir alguém que gostaria de ajudar: às vezes alguém da família ou um amigo mais próximo. E é claro, fiquem à vontade para simplesmente não ajudar. É totalmente compreensível caso você não possa e isto é apenas um convite. A logística dessa ajuda será a seguinte: quem quiser ajudar, peço que me mande um e-mail com o valor que gostaria de depositar e eu vou encaminhar um e-mail com os dados da minha conta no Brasil. Dessa forma, eu posso controlar certinho quando chegarmos ao valor total e ter a certeza de que não receberei dinheiro além do valor estipulado. O meu pai tem acesso à minha conta e ele pegará esse dinheiro e enviará para o meu cartão de viagem internacional, pois é o jeito mais rápido e fácil que eu tenho de receber dinheiro aqui e somente familiares podem depositar. Quanto à data da cirurgia, será essa semana, pois eu tenho apenas duas semanas restantes aqui no voluntariado e quero acompanhar o processo todo. Vou encaminhar em um outro e-mail algumas fotos que eu tenho do Tea para que vocês possam conhecê-lo e, assim que conseguirmos realizar a cirurgia, eu faço questão de mandar uma surpresinha de agradecimento para vocês. Quero dar todo o feedback para que vocês participem passo-a-passo deste momento.

Não é sempre que temos a real chance de mudar a vida de alguém, ainda mais se tratando de uma criança. E fico ainda mais feliz por poder compartilhar isso com vocês, que são pessoas muito importantes na minha vida. Às vezes a distância dói e é preciso ser forte, então, essa é uma maneira de atarmos nós ainda mais fortes entre nós. Adoro cada um de vocês!!! Espero que estejam todos bem e me mandem notícias sempre!!! Beijão, Teacher Le ;)” Depois de atualizar o meu e-mail 30 vezes no minuto seguinte em que o havia enviado e não receber nada, decidi ir para casa e aguardar. Fazendo as contas do fuso horário, eu deveria começar a receber respostas na madrugada. Eu não fazia a menor ideia de como a minha atitude seria recebida no Brasil. Eu corria o risco de ser mal interpretada ou das pessoas simplesmente ignorarem, muito ocupadas para se importarem com o que estava se passando em um vilarejo na Tailândia. Se isso acontecesse, eu não teria como cumprir com a minha palavra de ajudá-lo. Eu estava extremamente ansiosa e como consequência, tive uma péssima noite de sono. Durante o dia seguinte fui recebendo respostas e a cada uma delas o meu coração vibrava:

“Eu nem vou hesitar e dizer nada. Simplesmente digo que SIM…”. “Tô chorando igual boba porque é muito bom saber que tem pessoas como você no mundo! Tenho muita fé de que a sua generosidade vai contagiar sempre todos a sua volta! Você está fazendo um mundo melhor! Claro que tô dentro! Manda sua conta!!!” “Amiga você é incrível. Que gesto lindo. Me manda a conta para fazer a transferência.”. “Eu ajudarei com R$ 50,00, tudo bem?”. “Eu dou R$100”. E assim se seguiu uma sequência de e-mails com respostas positivas. Me senti muito idiota por ter duvidado de que isso daria certo. Como eu mesma disse, escolhi a dedo cada pessoa para quem enviei esse e-mail. A vida sempre me presenteou com amigos abençoados. Eu tinha muita sorte, e agora, o Tea compartilharia dela comigo.

21. Toda noite de festa na Tailândia termina em Karaokê Enquanto eu aguardava os depósitos do Brasil, a vida no vilarejo continuava. A Lucy estava indo embora e, por isso, fui visitá-la no final de semana para um jantar de despedida que reuniu, em um restaurante vietnamita, as voluntárias, a Pim e sua família, e mais alguns professores da escola onde ela voluntariava. A comida era excepcionalmente deliciosa, ainda mais acompanhada por cerveja, bebida que havia se tornado rara na minha vida no vilarejo, pois beber é coisa para os homens. Nos divertimos e conversamos muito. Em uma dessas conversas, a Lucy me contou um pouco sobre seus planos de viagem e me convidou para viajar com ela para as famosas Ilhas ao Sul. Ela disse que ia fazer um voluntariado com animais e que, se eu quisesse, podia voluntariar junto com ela, dividindo o quarto que era oferecido em troca do trabalho. Em breve, eu teria que continuar viagem, mas não tinha feito nenhum plano concreto a respeito disso. Eu sempre viajava sozinha e ter companhia era tentador e inédito. E, de qualquer maneira, eu teria que, em algum momento, conhecer algumas das Ilhas e eu também queria muito ir na Full Moon Party, a festa da lua cheia na ilha de Koh Phangan. A única dúvida era quanto ao dinheiro. Nesse primeiro mês gastei pouco mais de 300 dólares, o que me deixava com

um bônus de 200 dólares para poder viajar. Com muito planejamento, eu conseguiria passar em torno de 10 dias viajando com essa grana. Confirmei com ela que iria e que a avisaria assim que soubesse a data da minha partida. Toda noite de festa na Tailândia termina em Karaokê. Nessa noite, não seria diferente. Pedimos mais umas cervejas e, com uma mistura de sotaques chinês, alemão, polonês, tailandês e brasileiro, cantamos desde “Whenever will you go” até “Yo no soy marinero, soy capitan”. Mais uma vez, eu observava a cena onde eu estava inserida e me sentia grata por poder vivenciar momentos como esse, nos quais não existia nenhum limite cultural ou preconceito. Éramos todos iguais, mesmo sendo tão diferentes.

22. Eu tinha vontade de chorar toda vez que ele sorria para mim Facilmente chegamos ao valor total que precisávamos para a cirurgia do Tea. Enquanto ia recebendo os depósitos, já fui antecipando as nossas idas ao hospital. Realmente não era fácil se locomover para fora do vilarejo. Como demoraríamos um tempo indeterminado no hospital, o Jason não poderia nos levar devido aos seus compromissos na escola. Com muito custo, ele conseguiu achar um vizinho que tinha carro e que serviria como nosso motorista pelo dia. Fiquei aliviada ao ver o Tea, sua mãe e a vizinha me aguardando na escola, pois, durante a semana, ela já havia mencionado em uma conversa que ela pensava em desistir da cirurgia. O pior é que eu dependo do Jason para traduzir as nossas conversas e nem sempre consigo me expressar como gostaria. Ou pelo menos, entender o que dizem. Porque quando a mãe pensa em desistir, a primeira coisa que me vem à cabeça é que ela não está entendendo o que está acontecendo, porque desistir não faria sentido nenhum. Seguimos todos juntos para a cidade em um silêncio que só era interrompido pelas minhas risadas e as do Tea, enquanto brincávamos um com o outro. Queria muito poder me comunicar diretamente com eles e isso me deixava um

pouco frustrada. Depois de uma hora de viagem, chegamos ao hospital. O motorista fez sinal de que nos aguardaria no estacionamento e eu os levei direto para almoçar em umas barraquinhas de comida de rua. Tentei interagir brincando com as poucas palavras que sabia. Eles riram quando pedi o meu prato “mai pet”, ou seja, sem pimenta. Mas a interação maior acontecia entre mim e o Tea, que andou de mãos dadas comigo o tempo todo. Ele pediu para comer um sorvete e, antes que eu pudesse pegar o dinheiro, fui interrompida pela mãe que disse que não, fazendo sinal que ele sujaria a roupa toda. Seguimos para o hospital público onde ficamos aguardando quase duas horas para o atendimento, que não aconteceu. Eu não estava entendendo nada, só sabia que a atendente tinha nos dispensado. Encontramos o nosso motorista dormindo no carro. Acordamos ele e seguimos de volta para o vilarejo. Estava ávida para chegar à escola e entender o que havia acontecido. Assim que encontramos Jason, pedi para que ele conversasse com a mãe para me explicar porque o Tea não havia sido atendido. Ao que parece, o médico responsável não estava atendendo e teríamos que retornar na segunda-feira. A vizinha reclamou dizendo que não poderia ir, pois perderia o dia de trabalho como costureira. Por meio do Jason, perguntei quanto ela ganhava ao dia. Ela respondeu que era algo em torno de 10 dólares. Eu garanti que pagaria o seu dia de serviço para que nos acompanhasse. Ela pareceu satisfeita com a oferta e ficou combinado que nos

encontraríamos as 6h da manhã na escola, o mesmo motorista nos levaria novamente. ... Eu me arrumava para dormir mais cedo no domingo à noite, quando recebi a ligação do Jason. “Letícia, a mãe do Tea pediu para te avisar que ela não vai levá-lo ao hospital, mas que se encontrará com você amanhã na escola para conversar”. – Eu estava incrédula do outro lado da linha. Indaguei o Jason, porém, ele não soube me explicar muito mais do que isso. Eu não queria acreditar. Como uma mãe deixa uma oportunidade dessas escapar? Como eu explicaria isso para meus amigos que já haviam depositado o dinheiro? O que seria do futuro dessa criança sem poder se comunicar e aprender? No outro dia pela manhã, a mãe apareceu na escola e pediu desculpas para mim, alegando que não queria fazer a cirurgia no garoto agora e que achava melhor esperar mais alguns anos. Alguns anos? Eu não acreditava naquilo. Os professores que estavam próximos caíram em cima dela falando que isso era um absurdo, que ela estava tirando a oportunidade do próprio filho de ter um futuro, de ser e aprender como as outras crianças. Eu pedi explicações. A cada hora ela dizia uma coisa. Alegava que a vizinha não poderia ajudar, que a cirurgia era muito complicada, que o médico talvez não atenderia, que era melhor esperar. Terminamos essa conversa com o Jason olhando nos olhos dela e dizendo que ela não deveria pedir

desculpas a mim e aos meus amigos, mas sim ao filho dela, pois ele era a única vítima dessa decisão que ela estava tomando. Por coincidência, logo na sequência eu fui dar aula na turma do Tea. Eu tinha vontade de chorar toda vez que ele sorria para mim e babava na roupa ou quando um amiguinho desconsiderava sua presença. Era muito injusto o que a própria mãe dele estava fazendo e eu me sentia de mãos atadas, o que aumentava ainda mais a angústia que sentia no peito. No intervalo, eu tentei mais uma vez conversar com os professores para entender a situação. Eles disseram que a mãe aparece com frequência com cheiro de bebida alcoólica na escola para buscar o filho, e o padrasto nunca mostrou interesse no garoto. Infelizmente, eu não consigo ajudar alguém que não quer ser ajudada. Eu preciso que a mãe dele concorde. Não posso pegar o Tea pela mão e sair por aí para realizar uma cirurgia. E infelizmente, ela como mãe, tem o poder da palavra. Eu não sou de me dar por vencida facilmente, mas, dessa vez, eu teria que recuar. Com lágrimas nos olhos e muito desapontada, eu escrevi mais um e-mail para os meus amigos, no qual eu expliquei o acontecido. Quanto ao dinheiro, disse que poderia devolver os depósitos ou utilizálo para ajudar alguma outra pessoa que eu encontrasse no meu caminho. Para minha surpresa, essa foi a escolha de todos eles, alegando que esse era apenas o começo da minha viagem e que em breve eu encontraria outra pessoa que necessitava. O meu corpo estava amortecido e eu sentia a urgência de chorar.

23. As minhas despedidas são a celebração de tudo o que vivi Acordei com os olhos inchados, culpa do meu choro noturno que demorou para cessar. Rolei de um lado para o outro no meu colchão coberto pela rede contra mosquitos. Às vezes, é inevitável querer entender um pouco da nossa existência e do porquê as coisas acontecerem como acontecem, mesmo que eu saiba que esses questionamentos não caibam a mim. Não consigo parar de achar que essa tenha sido uma atitude muito injusta da mãe do Tea. Ela está tirando desse garoto o direito de ter uma vida como a de todas as outras crianças. Ele poderia falar com as pessoas, expressando seus desejos e ideais, comendo sorvete sem se sujar e colorindo os livros sem babar nas folhas. E ele não faz a menor idéia de como essa decisão é um divisor de águas em sua vida. Eu tentei de todas as formas, mas precisei dar um passo atrás com a consciência de que eu fiz o que pude. Com o triste desfecho da história do Tea, eu sentia que o meu ciclo havia fechado e que precisava partir para uma nova aventura. Além disso, há mais de duas semanas, eu sou a única voluntária aqui no interior. Os meus amigos chineses já haviam deixado o projeto. As minhas amigas voluntárias estavam na escola da cidade e, apesar de terem

acabado de passar um final de semana muito divertido comigo, durante a semana toda eu ficava sozinha. É claro que tinha a companhia das crianças e dos professores, mas as semanas estavam passando bem devagar. Estava feliz por ter sido a voluntária que tinha ficado mais tempo no projeto e também por ter sido a primeira e única voluntária brasileira até então. Conversei com o Jason sobre a minha decisão. Ele percebeu que ela estava muito mais ligada ao Tea do que com qualquer outra coisa. Alguns voluntários novos estavam chegando e a minha saída não traria problemas ao projeto, já que haveria pessoas para me substituir. Percebi que ele tinha algo mais a me dizer e, sem jeito, ele contou que as professoras já vinham falando em fazer uma grande festa de despedida para mim e que seria bom se eu já pudesse dar uma data para ele organizar tudo. Combinamos que a festa seria em dois dias e, na manhã seguinte à festa, ele me deixaria na cidade para pegar o ônibus para Bangkok. Isso significava que faltava muito pouco para eu deixar a escola, o vilarejo, meus amigos, minha casa tailandesa, minha bicicleta e minhas crianças para trás. Com todos sabendo da minha partida, os dois últimos dias foram bem movimentados. As crianças que já escreviam e desenhavam bilhetinhos lindos para a teacher Lê, agora me enchiam ainda mais deles. Fui até a casa de uma das professoras de outra escola para me despedir, a Nani. Ela era mais velha e adorava dizer que era minha mãe tailandesa, sempre me presenteava com frutas ou com um café gelado. Nani tinha um jeito espontâneo de ser que me

conquistou, estava sempre bem-vestida e cheia de energia. Morava em uma residência na área militar, onde eu vi pela primeira vez muitos tanques de guerra que são usados para proteger a fronteira da Tailândia com o Camboja. As alunas faziam tranças no meu cabelo antes de iniciar as aulas e se despediam dizendo “Teacher Lê, go home”, seguida de uma cara de choro. Eu confesso que sempre adorei despedidas e já perdi as contas de quantas já fiz. Me lembro de cada uma delas com muito carinho. Poderia dizer que as três coisas que eu mais gosto de comemorar são o ano novo, meu aniversário e minhas despedidas. Elas são a celebração de tudo o que eu vivi em cada lugar que eu passei e são também a preparação para as aventuras e experiências que me aguardam num futuro desconhecido. É o momento de abraçar as pessoas que não sei se um dia reencontrarei e de me sentir grata por ter tido a sorte de ter cada uma delas no meu caminho. As minhas roommates fizeram questão de me ajudar a me arrumar para a minha festa. A Katy me emprestou uma saia longa preta que eu vestiria com uma blusinha vermelha e a Kob fez uma trança linda no meu cabelo. Quando chegamos na escola, na sala dos professores, fiquei surpresa com a grandiosidade da festa. Até a Pim e a família vieram da cidade e trouxeram as minhas amigas, a Bai e a Pepi. Estava faltando a Joana, com quem me encontraria no outro dia em Bangkok e a Lucy, com a qual eu encontraria nas ilhas. Ao todo, éramos mais de vinte pessoas, com uma quantidade de comida que dava para alimentar o dobro

disso. Como sempre, comemos muito bem. Mas a minha surpresa maior ficou por conta da presença ilustre do Diretor da escola, que até então só tinha visto no primeiro dia, e a sua esposa. Eles fizeram questão de fazer um pequeno discurso de agradecimento e a entrega de um certificado de reconhecimento pelo meu trabalho como voluntária, que foi cuidadosamente entregue a mim em um quadro com uma linda moldura dourada. Para completar, ganhei também um Buda e uma garrafa de Black Label. Isso mesmo, a esposa do diretor me deu uma garrafa de whisky e, o melhor de tudo, foi a cara do Jason quando viu essa cena acontecendo. Segundo ele, eu estava quebrando paradigmas. E, de igual para igual, em um lugar onde beber é coisa de homem, eu tomei um copo de whisky com o diretor da escola para finalizar a minha experiência no vilarejo.

24. A falta de dinheiro me leva a viver aventuras que o dinheiro não compra A minha parada em Bangkok foi estratégica para encontrar a Joana e, já no dia seguinte, seguir viagem para as Ilhas. Eu gostava muito da minha amiga polonesa e era visível a evolução da nossa amizade: no princípio, ela tinha uma expressão bastante fechada e eu a achava mal-humorada. Conforme fomos nos aproximando e a confiança crescendo, ela foi se abrindo e se mostrando cada vez mais uma pessoa muito doce. Nos despedimos em um longo abraço em meio a confusão das ruas da cidade, com a certeza de que nos encontraríamos novamente em algum lugar do mundo. Deixei Bangkok para seguir a longa jornada até Koh Tao, o que incluiria trem, ônibus e barco. Vi algumas pessoas reclamando da simplicidade do trem, mas eu estava achando tudo um luxo: tinha até uma cama para dormir. A cama e a minha playlist no iPhone fizeram a viagem de sete horas passar muito rápido. Depois, um ônibus me levou da estação de trem até o pier e, de lá, segui de barco em uma viagem de menos de duas horas até o meu destino final, onde minha amiga alemã estaria me aguardando. Koh Tao é incrível. Eu e a Lucy alugamos um bungalow por nove dólares a diária para as duas. Por dentro, ele era péssimo, mas, pelo menos, era pé na areia e isso era o mais

importante no momento. Não ter muito dinheiro numa viagem como essa é a chave para conhecer pessoas e se divertir muito mais. Andamos excessivamente, pegamos caronas, fizemos amizades, mergulhamos de snorkel e curtimos muito as festas à beira da praia. Mas eu confesso que fiquei um pouco desapontada com a maneira com a qual o turismo está sendo desenvolvido. O número de turistas era muito acima do recomendável para uma ilha. No dia em que cheguei no Pier, eu me senti praticamente entrando em um shopping center: havia centenas de pessoas desembarcando e outros tantos barcos ainda por chegar, todos abarrotados de turistas em busca dos cursos de mergulho, conhecidos por serem um dos mais baratos do mundo. Essa superlotação gera muito lixo e um turismo de massa que não tem comprometimento nenhum com a natureza. Percebi que muitos ali estão pensando somente no presente, fazendo o máximo de dinheiro sem se preocupar com o futuro da ilha. Essa minha observação foi o que eu precisava para tirar a minha dúvida. Estava decidida a abrir mão de conhecer Koh Phi Phi e companhia, as ilhas mais famosas do outro lado da península. Eu não me importava em deixar de ver a ilha onde foi gravado “A Praia”, afinal de contas, Leonardo de Caprio não estaria mais lá. Eu queria ir para uma ilha paradisíaca para relaxar e não me estressar com uma centena de turistas sem noção. Essa coisa de lutar pelo melhor ângulo para aquela foto famosa já não fazia mais a minha cabeça. Koh Tao fica a leste da península, no Golfo da Tailândia. O mais sensato seria conhecer as ilhas próximas dali: Koh

Samui e Koh Phangan. É em Koh Phangan que rola a Full Moon Party e a data para a festa estava próxima. Decidi que acabaria conhecendo esse lado da península e abriria mão das ilhas queridinhas do outro lado. Depois de experimentar o gostinho da superlotação de Koh Tao e sentir os dólares voando da minha mão, essa seria a decisão mais sábia. Ficamos somente dois dias na ilha, o que pode parecer pouco, mas já era muito para o nosso orçamento apertado. Tínhamos planos de ir para Koh Samui. A Lucy já tinha entrado em contato com uma mulher que é dona do tal abrigo de cães e gatos: ela precisava de ajuda com o administrativo da instituição e em troca poderíamos dormir lá. Estava feliz com a notícia, viajar essa parte turística da Tailândia estava afundando o meu orçamento. Saímos de Koh Tao com destino a Koh Samui às 10 horas da manhã. Pegamos carona na carroceria de caminhonetes, mais quatro horas de barco, uma hora de táxi e uma hora esperando a chuva passar para chegar ao tal abrigo. Isso sem contar a mochila de 17kg nas costas e o calor absurdo! Chegar no abrigo tinha tudo para ser o momento perfeito: largar o mochilão, tomar um banho, comer e dormir. Pena que, em breve, eu descobriria que estava enganada. Eu não sabia muito sobre a mulher que nos apresentava o funcionamento do abrigo para animais, apenas que era uma alemã. Não precisou muito para perceber que ela já vivia há tempo demais com os animais. Assim que pisei porta a dentro, me deparei com uns 30 cachorros e gatos andando livremente dentro da casa e fazendo xixi por todo lado, inclusive no meio do quarto em que ficaríamos.

Aguardei por alguma reação dela que fizesse referência a limpar o líquido amarelo que se espalhava pelo chão. Aguardei em vão. Enquanto isso outro cachorro já passava por cima, aumentando a bagunça. Fomos avisadas de que aquele era o quarto do gato mimado da casa. Isso mesmo, compartilharíamos o quarto com o astro principal, com direito a um pedido de que respeitássemos o espaço dele. Fiquei observando o felino que andava com maestria sobre os móveis e que rapidamente pulou para a cozinha, em cima da pia, ao lado dos pães, que pouco antes havíamos sido avisadas que eram para o nosso café-damanhã. O cheiro era insuportável. Eu amo animais, mas acho que existe um limite entre o espaço deles e o nosso. O sonho da minha vida é poder ter um cachorro, mas, por causa das inúmeras mudanças que sempre fizemos, meus pais nunca me deixaram ter um. E olha que eu pentelhava muito eles. Cheguei a ganhar um em um sorteio de uma revista – devo ter sido a única a enviar o cupom pelo correio. Inicialmente, minha mãe alegou que ele era muito grande e que não era ideal para o apartamento. Fiz algumas ligações secretas para a revista e estava negociando a troca por um cachorro menor quando minha mãe descobriu e pediu para eles darem o cachorro a outra pessoa. Fora a vez que eu consegui comprar um com seis reais que eu tinha economizado, achando que minha mãe não teria coragem de dizer “não” ao novo amiguinho, mas, logo na entrada, ele fez suas fezes no tapete da vizinha e vomitou. Ele não conseguiu conquistar minha mãe e tive que devolvê-lo: pedi pro meu primo devolver e pedir meu

dinheiro de volta, enquanto esperava na esquina. E, quando finalmente os convenci a pegar um cachorro para cuidar da empresa, eu saí de casa para fazer faculdade e entendi de uma vez por todas que meu estilo de vida não me permite ter um bichinho. E mesmo com todo o meu amor pelos animais, era insuportável estar naquele lugar. Infelizmente, não dava para mim. A Lucy me pediu desculpas, já que ela não sabia que as condições higiênicas eram tão precárias. Mas optou por ficar, já que tinha combinado com a mulher e o trabalho era no escritório e não na casa. Do céu ao inferno em apenas alguns minutos. Lucy me acompanhou até o centrinho de Koh Samui e sentamos em um café para eu usar o wi-fi e tentar achar um lugar para dormir. Todos os hostels estavam cheios e os valores estavam absurdos. Liguei em muitos lugares até encontrar uma desistência de uma cama em um hostel meio afastado, onde, pelo menos, eu poderia descansar para pensar em alguma solução no outro dia. Mesmo que tivesse vaga, eu não teria dinheiro para pagar. Peguei uma moto-táxi com o meu mochilão e o motorista não conseguia achar o hostel. Rodamos, rodamos e nada dele encontrar. Começou a garoar. Já estava começando a achar que ele estava me dando um golpe, então pedi a ele que parasse a moto e liguei no hostel. Passei para o motorista, que falou com a recepcionista. Não estávamos muito longe, mas a rua realmente era complicada de achar. Negociamos o valor da corrida e fui fazer o meu check-in. Eu estava com fome, dor nas costas, cansada e de saco cheio. Cheguei no quarto e um grupo de gringos me

ofereceu uma cerveja. Neguei com tanto mal humor que eles nem insistiram. Eu, negando uma cerveja e uma possibilidade de festa! O meu estado era grave. Mas naquele momento só existia uma coisa que eu queria: uma bela noite de sono. ... Acordei me sentindo outra pessoa. O dia anterior realmente tinha sido muito cansativo e tinha acabado com o meu humor. Fui direto para a área comum do hostel para usar o wi-fi e procurar um lugar para ficar. Nada melhor do que o CouchSurfing em um momento como esse. O website funciona como uma rede social que conecta pessoas que gostariam de receber gratuitamente viajantes em sua casa a esses viajantes que estão em busca de um cantinho para dormir. A minha primeira experiência foi para hospedar o Paul, um americano, no meu sofá em Balneário Camboriú. Ele estava viajando o mundo fazia um ano e aquela era uma das suas últimas paradas. Pedi para as minhas amigas dormirem em casa, pois não queria ficar sozinha com um estranho. Paul tinha planos de ficar três dias e acabou ficando uma semana. Lembro-me de que o levamos para todas as praias e todas as festas possíveis. Ensinamos a ele que uma gíria para garota bonita no Brasil era “biscatinha” e nos divertíamos com a confusão causada. Ele nos acordava com o almoço pronto e marcou de forma muito positiva o meu primeiro contato com essa maneira de viajar. Comecei atualizando todas as informações do meu perfil, tentando parecer o mais legal possível. Enviei cinco pedidos

e cruzei os dedos. Alguém teria que responder. Em menos de meia hora, recebi uma resposta positiva um tanto inusitada. O meu potencial anfitrião, o polonês Mariusz, estava em observação no hospital e me pediu para passar no quarto 112 para pegar as chaves da casa. Não sei se estava mais surpresa por ele me responder diretamente do hospital ou por ele simplesmente entregar para uma desconhecida as chaves de sua casa. De qualquer maneira, eu não podia deixar a oferta passar e, com a maior animação, fui rapidamente arrumar a minha mala e fazer o check-out rumo ao Thai International Hospital. O prédio parecia mais um hotel do que um hospital. Eu me dirigi a recepção com meu documento e falei que estava ali para fazer uma visita ao quarto 112. “Você é da família?”. – Me perguntou a recepcionista, enquanto colocava meus dados no sistema. “Não, sou uma amiga”. – Uma amiga virtual. Não deixava de ser verdade. “Tudo bem, se dirija por aqui que alguém vai te acompanhar” – E me apontou em direção a um longo corredor. Foi só o tempo de tirar a mochila das costas e um homem alto e muito forte se aproximou, apontou para a mochila e antes que eu pudesse falar alguma coisa, a arrastou pela alça enquanto caminhava pelo corredor. Parou em frente ao quarto de número 112 e abriu a porta, me dando a preferência para entrar. Havia duas camas, uma mais próxima da porta e outra da janela, onde estava meu mais novo amigo. Ele devia ter uns trinta e poucos anos, parecia ser descolado e com um

jeito de maluco-beleza. Ele se mostrou feliz em me ver e eu logo perguntei o que havia acontecido, como se já nos conhecêssemos a tempo. Me contou que é mergulhador e que havia levado um soco de um nativo que não gostou da presença dele e de seus alunos na praia e partiu para a porrada. Como o soco tinha sido na cabeça, o levaram para o hospital para ficar em observação. “Não se preocupe, está tudo bem comigo. Na verdade só estou preocupado com uma coisa. Estou sem o meu passaporte aqui e eles precisam dele para dar a entrada correta no sistema do hospital. Podemos ir juntos lá em casa, assim, eu já te mostro como funciona tudo. E é bom porque você já vai de carona e economiza com o transporte” Para quem até pouco tempo estava sem ter onde dormir, eu estava achando toda e qualquer oferta excelente, ainda mais se incluía carona. No entanto, eu não imaginava que a carona seria na ambulância do hospital! Essa história ficava cada vez mais hilária. O enfermeiro que nos acompanhava colocou o meu mochilão com todo o cuidado na parte de trás da ambulância, como se ela fosse o paciente e foi a acompanhando. Eu e o Mariusz fomos na frente conversando juntamente com o motorista. O Mariusz morava em uma casa muito simples e pequena, mas muito próxima da praia. Eram basicamente três cômodos sem muita mobília: cozinha, quarto e sala. A sala estava completamente vazia até ele me alcançar um tapete de yoga, onde eu dormiria.

O tapete parecia muito fino para que uma pessoa pudesse dormir confortavelmente, mas era melhor do que dormir com os gatos e cachorros. Estava achando tudo ótimo. Mariusz pegou o passaporte e voltou para o hospital, dizendo que tentaria voltar ainda hoje. Para minha surpresa, ele me enviou mensagem antes do escurecer, dizendo que assinou um termo no hospital se responsabilizando por qualquer coisa que viesse acontecer com ele. Combinamos de nos encontrar em uma feira de rua para que me apresentasse a culinária local. Tomamos uma cerveja. Mas a história ainda ficaria mais inusitada. Mariusz me explicou que tinha um curso de mergulho para dar em Koh Tao e que partiria no dia seguinte, ficando os próximos dias por lá. Então, deixou as chaves da casa e da sua moto comigo, para que eu pudesse aproveitar melhor a ilha. Ele também me pediu para anotar o telefone de amigos para que eu tivesse com quem sair e disse para que eu ficasse em seu quarto, pois seria mais confortável. Não sei se o defino como corajoso ou maluco. Nessa noite, quando deitei para dormir, tive a sensação de que tudo o que tinha acontecido nas últimas 24 horas era apenas um sonho maluco. Em pouco tempo, eu estava desabrigada e agora tinha uma casa e uma moto em uma ilha paradisíaca da Tailândia, além de um amigo que me levava para andar de ambulância. E quando eu digo que a falta de dinheiro me leva a viver aventuras que o dinheiro não compra, algumas pessoas ainda duvidam.

25. Cada viagem deveria ser uma experiência ímpar Uma das minhas maiores paixões? Explorar uma ilha asiática de moto. Sem exagero nenhum, essa era uma das combinações que mais alegrava o meu eu viajante desde a primeira vez que senti o gostinho dessa aventura em Bali. Primeiro, pelas ruas caóticas de Kuta e, depois, pelas estradas de chão da paradisíaca ilha de Nusa Lembongan. A primeira peripécia do dia foi pegar a moto e um mapa e sair rodando a ilha de Koh Samui, deixando que meu instinto e minha curiosidade me guiassem. É recomendável também uma pitada de coordenação e atenção para dirigir na mão inglesa, já que a Tailândia optou pela mão contrária, mesmo não sendo uma colônia britânica. A minha primeira experiência dirigindo assim tinha sido na Nova Zelândia. Tinha a sensação de que alguém havia feito uma pegadinha e invertido tudo de lugar, principalmente quando dirigia por uma avenida e precisava virar em alguma rua à direita ou à esquerda, confundindo sempre qual era a minha pista e precisando estar ciente de que o certo era invadir a pista contrária. Porém, o trânsito em uma ilha na Tailândia é simples e funciona meio sem lei – um lugar onde nem o capacete é de uso obrigatório – tornando a brincadeira mais fácil.

Koh Samui é uma ilha bem desenvolvida e relativamente grande, levando em torno de duas horas para dar a volta de moto na ilha toda. As praias são conhecidas pelo contraste da faixa de areia branca com o azul cristalino em degradé. Com a moto, eu pude explorar praias paradisíacas, trilhas, lugares isolados, restaurantes perdidos e mercados locais. Sentia a falta da comida do vilarejo e achava os restaurantes muito turísticos, com menus totalmente adaptados para nós, farangs, a palavra tailandesa para gringos. Eu não queria comer spaguetti ou hamburguer e o meu orçamento não dava para frutos do mar grelhados. Ficava chateada quando pedia a minha comida “mai pet” e ela realmente vinha sem pimenta nenhuma. Por isso, aproveitava quando dava a sorte de encontrar um local fazendo um prato de comida na beira da estrada que, além de ser saboroso, custava apenas 60 baths (1,50 dólares). Quero deixar claro que existem muitas maneiras de fazer turismo em Koh Samui, lugar que vive quase que exclusivamente do turismo. As ilhas são realmente baratas e você pode ficar em um hotel cinco estrelas, com piscina de frente pra praia por apenas 30 dólares e comer frutos do mar em um restaurante fino por 20. Existem também inúmeras opções de massagens, spas, lojas de decoração e Starbucks. Existem passeios de barco e até um aeroporto caso você opte por voar diretamente de Bangkok para cá. Mas eu não estava aqui com esse objetivo: eu realmente estava em busca de experiências únicas, queria conhecer a vida local, fazer amigos e explorar sabores e lugares. Estava ali para me colocar no limite e me autoconhecer e não me contentaria com uma desculpa esfarrapada de que eu não

tinha dinheiro para viajar. Não existe maneira certa ou errada de viajar, mas eu incentivo sim as pessoas a não viajarem somente em busca desse conforto e luxo. Acaba sendo uma experiência similar em lugares que tem muito mais a te oferecer do que uma piscina e um café da manhã requintado. Outro ponto é que cada viagem deveria ser uma experiência ímpar. Desconfie se você foi para algum lugar e sempre que encontra outras pessoas que também foram para lá, eles relatam a mesma experiência que você teve. A partir do momento em que você, um ser humano único, se desloca para outro país, você deve viver a sua experiência e não aquela do guia de viagens. Nada contra o guia de viagens. Eu também o uso de vez em quando. O problema aqui é o extremismo ou o muito do mesmo. Eu não me denomino uma mochileira roots e que, por isso, repudio o luxo e os pontos turísticos. Bem pelo contrário, eu prezo pela diversidade de experiências e pela ausência de definições. A Letícia que dorme no colchonete de yoga de um desconhecido é a mesma que dorme em um hotel cinco estrelas e passeia de veleiro. E quando eu digo isso, eu nem sequer penso no valor dessas coisas, porque eu acredito que quando você está aberto a deixar as coisas acontecerem, elas simplesmente acontecem. Eu vivi durante a minha vida inteira experiências que somente pessoas muito ricas têm a oportunidade de viver, mesmo sem ter nem um puto na carteira. E já vivi experiências das mais simples quando eu tinha dinheiro sobrando no bolso.

Por que não fazer alguma coisa inusitada na sua próxima viagem e fazer disso um hábito?

26. De novo, não! Além do Mariusz, outro membro do Couchsurfing respondeu à minha solicitação, o Anthony. Como eu já tinha um lugar para ficar, ele ofereceu o que tinha de melhor: a sua amizade, dicas sobre a ilha e uns drinks em um bar onde ele trabalhava de fotógrafo. Era tudo o que eu precisava. Passei o dia todo rodando com a minha motoca, já me sentindo local, e, na metade da tarde, combinei de encontrar o Tony na região Nordeste da ilha, próximo da sua casa, onde havia alguns pontos turísticos interessantes que ele gostaria de me mostrar. Além de ser um ótimo lugar para assistir ao pôr-do-sol. Adoro conhecer pessoas, mas é claro que eu sempre ficava um pouco desconfiada antes de me encontrar com desconhecidos. Contudo, o bom senso e o meu instinto poucas vezes haviam falhado. Durante essa viagem, já havia se tornado rotineiro eu me encontrar com pessoas desconhecidas e criar uma conexão quase que instantânea. Tony é um australiano que já mora há dois anos em Koh Samui, está próximo dos 40 anos muito bem vividos e refletidos no bronzeado na pele e no jeito charmosão de ser. Ele veio acompanhado pela Soda, sua grande companheira de quatro patas, além do Black, que tinha ficado em casa. A Soda e o Tony me levaram primeiro no Wat Plai Laem, o templo budista mais colorido que eu já tinha visitado. Depois de algum tempo na Tailândia, eu passei a perder o

interesse pelos templos (Wat em tailandês). Existem milhares deles e, muitas vezes, eles são muito parecidos. Porém esse era muito especial: ele foi construído numa plataforma sobre a água com muitos detalhes e desenhos. Duas grandes estátuas se destacam: uma do Buda Sorridente e a outra da Guanyin, a deusa da compaixão e misericórdia, que se torna a atração principal com seus 18 braços. O melhor de tudo é que o templo é frequentado mais por locais do que por turistas, tornando-se um ambiente de paz e tranquilidade. Entre estátuas e cafunés na Soda, fui conhecendo mais sobre o Tony. Ele me contou que o trabalho no bar era mais por diversão e que trabalhava em um negócio próprio online, desenvolvendo aplicativos para telefone. Ele gostava da vida que levava na Tailândia e não tinha planos de voltar para a Austrália. Contei sobre a minha viagem e dos planos que tinha para ela. Tony queria me ajudar dando dicas de como utilizar a internet para monetizar minhas viagens. Claro que isso era um sonho, o famoso “ganhar dinheiro para viajar”, mas eu não me via fazendo isso propositalmente. Essa história de "vou fazer isso para vender aquilo” não combinava muito comigo. Eu sentia que, de alguma maneira, eu estava no caminho certo. Acreditava que fazendo por amor eu chegaria lá. Seguimos andando para outro templo, o Wat Phra Yai, mais conhecido como Big Buddah, uma estátua dourada de Buda com aproximadamente 12 metros que fica em um ponto mais elevado, onde uma escadaria dá acesso. Depois de um breve passeio e muita conversa fomos para a praia.

Para mim, assistir ao pôr-do-sol era como ir a uma cerimônia religiosa. Eu observava com o coração o espetáculo do poder da natureza. Era o meu momento sagrado de agradecer diante de tanta grandeza. Agradecia repetidamente, como se não importasse quantas vezes o fizesse, já que meus agradecimentos jamais seriam suficientes. A natureza como um todo tinha um status divino para mim, principalmente o sol, a lua e o mar. Começamos a noite com uma Chang bem gelada no barzinho da praia e seguimos para o bar do Tony, onde encontraríamos Lucy, que estava trabalhando bastante no abrigo, fazendo planilhas e ajudando em diversas tarefas administrativas. Assim que chegamos no Ark Bar, descobri que era um dos mais famosos da ilha e de bar não tinha nada. Parecia mais uma balada frenética de frente para a praia, com direito a piscina, iluminação neon e malabares dançando com fogo na areia. Tinha uma festa na piscina todas as tardes. Uma galera jovem, muito bonita, do mundo todo tomava conta da areia, se aglomerando perto do DJ e na fila do bar. Tinha também um resort, com suas villas supermodernas e bem decoradas. Estávamos em Chaweng, a praia mais popular da ilha. Balneário Camboriú ficaria com inveja desse lugar. Eu adoro fazer festa e gosto de estar com meus amigos me divertindo. Mas, quando estou viajando e tenho poucos dias em algum lugar, a primeira coisa da qual eu abro mão facilmente são as festas. Acordar tarde e de ressaca numa ilha paradisíaca me causava um remorso gigantesco. Por

isso, eu e a Lucy nos limitamos a um drink cada, dançamos algumas músicas, nos divertimos fingindo ser assistentes do Tony e partimos. Fazia uma noite de céu estrelado e batia uma brisa leve. Em menos de 20 minutos na moto, eu já estava em casa. Achei a entrada um pouco escura e percebi que os vizinhos eram todos tailandeses. Depois de tantas histórias que ouvi de furtos e roubos, me bateu um medo de que alguém pudesse ter entrado na casa. Estacionei a moto e abri a porta com precaução, mas lá estava o meu mochilão intocado. Senti um alívio. Dei uma segunda olhada para confirmar se meus documentos e dinheiro estavam lá. Tudo certo! Passei reto pelo tapete de yoga e, sorrindo, fui dormir na cama. A vida era boa. ... Acordei, tomei uma ducha e coloquei meu uniforme favorito: biquíni, shorts e havaianas. Fiz o checklist: água, mapa, celular, carregador portátil, protetor e livro na bolsa. Era tanta coisa que acabei levando a bolsa toda. E era melhor estar com meus documentos e dinheiro do que deixar na casa. Lá eu ia novamente com minha motoca desbravar a ilha. Sempre fui de dizer que odiava rotina, mas estou começando a mudar de ideia. Algumas rotinas valem muito a pena. Parei no 7-Eleven, logo na esquina da rua da casa com a avenida principal. Essa é uma rede internacional de loja de conveniência que parece brotar da terra em cada esquina da Tailândia. Muitas vezes chega a ter um na frente do

outro. Confesso aqui o meu ponto fraco: o misto quente do 7-Eleven. Queijo, presunto e pão de forma era uma raridade de ser encontrada e o meu café da manhã favorito. O melhor é que, enquanto você paga os 30 baths (1 dólar), a menina do caixa tira o pão da embalagem e o coloca em uma sanduicheira. Em dois minutos, ela o entrega quentinho, com o queijo derretido. Uns mochileiros americanos me relataram com tristeza que o 7-Eleven não comercializa esse misto quente nos Estados Unidos. Me arrisco a dizer então, que ele faz parte da culinária tailandesa. Dois mistos quentes e um chocolate gelado depois, eu estava pronta para mais um dia de aventuras. Estava sozinha novamente, já que Lucy estava trabalhando no abrigo. Viajar sozinha nunca foi um problema para mim: na verdade, eu gostava até mais do que viajar acompanhada. Viajar sozinha é ter a liberdade de ir a qualquer lugar, na hora que te dá vontade e ainda conhecer pessoas pelo caminho. Mas, mais do que isso, é a oportunidade de se autoconhecer. Eu sempre gostei da solidão para refletir. E sozinha mesmo rodei muitos quilômetros com a minha motoca. Mais praias paradisíacas, mais visuais inesquecíveis. Céu azul, muito calor e coqueiros. Fiquei curiosa para conhecer um desses Beach Resorts que até então eu só tinha visto na TV. Escolhi o que parecia mais caro, estacionei na frente, ajeitei o cabelo, a roupa e, com ar de quem estava hospedada ali, tentei passar pela recepção fingindo não estar encantada com a piscina de frente pra praia e a decoração. Molambenta do jeito que eu estava, é claro que

o recepcionista me barrou. Mas eu não me daria por vencida. “Olá! A senhora é hóspede?”. “Olá! Não, desculpe. Deixa eu me apresentar, eu escrevo para um site brasileiro de viagens e estava entrando para conhecer o resort de vocês e de repente escrever uma matéria. Como devo proceder?”. “Seja bem-vinda. Eu vou te transferir para o setor comercial e você pode falar diretamente com o responsável. Você se importa de aguardar no bar da piscina?” Claro que não, já estava ótimo só de ir até lá! Estudei tanto sobre hotelaria e hospitalidade na faculdade que não perderia essa pesquisa in loco. Sentei no bar, com cara de blogueira que está achando tudo normal, enquanto observava. Tinha um DJ tocando em um quiosque na beira da piscina, que era da mesma cor que o mar à sua frente, e havia guarda-sóis brancos e pessoas elegantes tomando sol. Concluí que quanto mais chique a mulher fosse, mais recortado era o maiô que vestia. O lugar era deslumbrante, mas faltava vida. O bartender interrompeu minha análise: “Está servida?”. – Perguntou o sorridente tailandês. “Estou só aguardando alguém. Muito obrigada!”. – Educadamente dei aquela resposta padrão de quem está morrendo de vontade de pedir uma água, mas com medo que fosse custar o valor das três refeições do dia. Logo em seguida, um homem de camisa se aproximou. Com a educação e sorriso dignos de alguém da área de hospitalidade, ele se apresentou como gerente e foi muito gentil diante das abobrinhas que eu contava. Para uma matéria oficial, eu teria que enviar um e-mail para a pessoa

responsável e ela me daria uma autorização. Mas me deixou à vontade para conhecer as áreas comuns do resort e até fazer uso da piscina. Já satisfeita e com minha curiosidade saciada, agradeci e fui embora. Rodei mais algumas praias, tirei fotos e encontrei um restaurante com comida local. Mais do que os lugares em si, eu gostava das pessoas. Os tailandeses das ilhas eram bem diferentes dos meus amigos do vilarejo: era notável que eles tinham uma ligação muito mais de compra e venda com os turistas. Isso diz muito da habilidade do ser humano se adaptar. Mas eu sempre conseguia a simpatia deles quando falava que tinha morado na província de Sakeo, que em tailandês tem uma pronúncia dificílima devido à língua ter cinco tons fonêmicos: médio, baixo, alto, ascendente e descendente. Essa diferenciação é muito difícil para nós e, às vezes, levava muito tempo até eles entenderem o que a farang estava tentando dizer. Um exemplo corriqueiro é que ovo é Khai e frango é Kai, isso usando uma transcrição para o nosso alfabeto. Ovo se pronuncia mais como se escreve mesmo e frango fica algo como Gaai, com a letra "a" levemente prolongada. Assim que cheguei, por várias vezes eu pedia um prato com frango e ao invés do frango, vinha um ovo frito em cima. Demorei até entender a diferença e parar de culpar a garçonete pelo erro. Fiz questão de pedir um dos meus pratos favoritos em Thai, que soa algo como: Kra Pao Gai. Descrever esse prato como frango com manjericão seria uma ofensa: a variedade de especiarias, molhos e sabores que estão em cada prato tailandês é uma combinação explosiva de sabor. Mesmo

pedindo “Mai Pet”, comi chorando, literalmente. A essa altura da viagem, pedir sem pimenta e vir apimentado era um atestado de excelência. Já passava de metade da tarde e era hora de procurar um lugar para o pôr-do-sol para os agradecimentos do dia. Um restaurante aconchegante na beira da praia me chamou a atenção e parei. O lugar era muito charmoso, com sua decoração praiana e tendas na beira do mar azul cristalino. Resolvi mudar e hoje pedi uma Asahi, me lembrando que a última vez que eu havia tomado a cerveja japonesa foi na Austrália. Assisti ao pôr-do-sol em mais uma cerimônia de gratidão. Sentia que em breve me despediria da ilha, já pensando em ir para a festa da Full Moon em Koh Phangan. O restaurante era tão agradável que cogitei me fazer um agrado e jantar ali, mas fiz uns cálculos e achei que ainda não era hora de extravagâncias. Pedi mais uma cerveja e continuei admirando a pintura que tomava forma, agora com tons de um vermelho alaranjado, que chegava a parecer roxo em alguns pontos. O garçom chegou com a cerveja e pedi que tirasse uma foto minha, o que nos levou a puxar papo. Quando digo que sou brasileira a reação é sempre a mesma: “Ronaldinho, Pelé, Neymar”. Os tailandeses são apaixonados pelo esporte tanto quanto os brasileiros e inclusive muitos profissionais jogavam na Tailândia. Eu tinha até conhecido um deles, o Gustavo, um baiano que já mora há alguns anos em Bangkok. Já era noite e eu tinha combinado de encontrar a Lucy e o Tony em um barzinho mais tranquilo ao lado do Ark Bar, já que hoje era a noite de folga do nosso amigo. Como era

caminho, passei em casa para tomar uma ducha e trocar de roupa e segui ao encontro deles em Chaweng. O bar tocava reggae e tinha várias almofadas confortáveis para sentar na areia, com uma fogueira no centro. Foi uma noite divertida! Tony contou sobre seus casos amorosos, eu contei do meu não-romance com o moreno e Lucy também fez o seu relato. Ríamos das histórias uns dos outros. Falamos de sonhos, viagens e Tony nos contou mais da vida na Tailândia. Mas novamente a noite não se estenderia por muito tempo, pois eu tinha planos de acordar cedo para ver o sol nascer e queria conhecer o interior da ilha, ir em algumas cachoeiras e em outros lugares que tinha marcado no meu mapa. Tony deu uma carona para Lucy e eu segui com a minha motoca no caminho para casa. Enquanto dirigia e sentia o vento no meu rosto, lembrei de quando andava de bicicleta no vilarejo. A sensação era muito parecida e a mesma felicidade me invadia. Queria viver assim para o resto da minha vida. Pensava no que iria fazer no outro dia e qual seria a melhor data para seguir viagem a Koh Phangan. Hoje, a brisa batia mais fria ou, quem sabe, eu estava muito queimada do sol e sentia calafrios. Parei a moto, tirei a bolsa do meu ombro, que ardia do sol, vesti o meu casaquinho e joguei a bolsa na cestinha na frente da moto. Faltava pouco para chegar. Assim que retomei a velocidade na avenida deserta senti a presença de outra moto do meu lado direito, mas estava próxima demais. No mesmo momento em que olhei para entender o que estava acontecendo, vi dois tailandeses jovens na moto

e o que estava na garupa puxou a minha bolsa, que estava meio presa na cestinha. Com o solavanco, eu quase perdi o controle da moto. Continuamos lado a lado, quase encostando uma moto na outra. Assim que retomei o equilíbrio, ele deu mais uma puxada, conseguiu o que queria, e acelerou. Com a imagem nítida daquele homem segurando a minha bolsa de couro marrom, eu acelerei ainda mais e consegui alcançá-los. Ficamos lado a lado a uns 80km/h. No meu desespero, com a voz trêmula da adrenalina que corria no meu corpo, eu implorava: “Give me my passport! Please, my passport!”, pedindo repetidamente em inglês para que devolvessem meu passaporte. Era nítido, na expressão de pavor deles, que não esperavam a minha reação e, para se livrar de mim, o motorista freou bruscamente a moto para seguir no sentido contrário. Levei um susto e, em resposta, freei para continuar a perseguição – eu não deixaria dois vagabundos levarem tudo o que eu tinha – mas, assim que freei, me confundi com as marchas manuais e a moto apagou. Perdi o equilíbrio, ou as forças, não sei, e a moto foi ao chão. Um cheiro forte de gasolina que vazava completou a cena, enquanto eu via a moto se distanciando rapidamente, com os dois tailandeses e a minha bolsa na mão de um deles. De novo não. Por favor, de novo não.

27. Meu mundo de certezas dE ponta-cabeça Era exatamente assim que eu me sentia: confusa, incrédula, como se tivessem virado meu mundo de certezas de pontacabeça. Gritei com toda a força que me restava até esvaziar completamente meus pulmões. Com o ar, se foi toda a minha força e uma exaustão física e emocional tomou conta de mim. Eu estava sozinha no meio de uma avenida escura, com minha moto caída no chão e não havia ninguém por perto para me ajudar. A única coisa que havia me restado era a chave da moto e a chave de casa, que, por muita sorte, eu não deixei na bolsa. Mas o resto todo havia se ido. Meu iPhone, passaporte, cartões de crédito e dinheiro. Só pensava no meu celular e me lembrei de que poderia rastreá-lo. Levantei a moto do chão e retornei para Chaweng lentamente, observando a marginal da avenida e das ruas para ver se não encontrava a minha bolsa. Tinha esperanças de que eles a tivessem abandonado em algum canto, com os meus documentos. Segui até a polícia. A porta estava fechada, bati insistentemente na porta e nada. Gritei e bati novamente. Quando estava prestes a desistir um policial apareceu com cara de sono e mal-humorado.

“No speak English. Tomorrow”. (Não falar inglês. Amanhã). Em resposta ao inglês de índio, eu tentei me expressar com palavras simples, dizendo que tinha sido furtada e que precisava usar a internet. Ele não fazia questão de entender e repetiu irritado a informação: “Come back tomorrow”. (Volte amanhã). Nem o meu choro e o meu desespero mudaram a opinião dele. Quando alguma coisa assim acontece, a primeira segurança que temos é de encontrar um policial, mas aquele inútil não estava com boa vontade. Estava estampado na cara dele que o único interesse era de voltar a dormir. Larguei uns palavrões em português e fui para a rua. Lembrei da Lucy e dirigi até o abrigo. Chegando lá, os cachorros começaram a latir e a minha primeira reação foi pegar meu celular para mandar mensagem. Não tinha celular, fiquei ainda mais frustrada. Mesmo com medo de algum dos cachorros estar solto, arrisquei e pulei o muro para bater na janela dela. Parecia que Lucy tinha visto uma assombração quando me viu ali. Depois de contar brevemente o que aconteceu, ela veio junto comigo. O wi-fi do abrigo não estava funcionando. Tudo resolveu dar errado. Fomos para o centro e paramos em um hotel simples que tinha um tailandês trabalhando na recepção. Contei o que aconteceu e implorei que me deixasse usar o computador. Mesmo dizendo ser proibido o uso por terceiros, ele se solidarizou e me deixou usar. Entrei no iCloud. iPhone indisponível. Eles já haviam desativado o meu celular. A única esperança que eu tinha

havia morrido ali mesmo. A tragédia se materializou naquele momento: não tinha nada que pudesse ser feito. Respirei, retomei a calma e fiz o que tinha que ser feito: liguei para os meus cartões de crédito para cancelar. Isso tudo levou quase uma hora. Enquanto isso, Lucy me fazia companhia e tentava me acalmar. Me questionava quantas vezes mais eu seria assaltada na Tailândia e porque isso estava se repetindo. Uma vez, tudo bem. Mas duas vezes em menos de dois meses já era demais. Lucy me deu 300 baths pedindo desculpas por não poder me dar mais, já que o seu dinheiro estava contado. Agradeci o gesto dela, já que novamente não poderia recusar. O dia amanheceria em breve. Deixei Lucy no abrigo e fui para casa. Já deitada na cama me sentia agitada e exausta ao mesmo tempo: O que eu fiz de errado? Por que comigo, de novo? Isso é um sinal para eu desistir? Atordoada, entre perguntas sem respostas, caí no sono. ... Acordei ainda meio sonolenta com as imagens do pesadelo que tive naquela noite na minha cabeça: sonhara que minha bolsa tinha sido furtada por um tailandês enquanto dirigia minha motoca de volta pra casa. Que coisa louca, virei para o lado para pegar meu celular e ver as horas, quando percebi que o celular não estava ali. Foi

quando a realidade recaiu sobre mim e me dei conta de que era tudo real. Fechei os olhos e apertei meu rosto bem forte contra o travesseiro. Eu não queria acreditar, mas vários flashs da noite anterior começaram a me perturbar: lembrava em detalhes da expressão de pavor do tailandês que segurava a minha bolsa, enquanto estávamos lado a lado e ele viu que eu estava disposta a segui-los. E, agora, relembrando a cena, me dei conta de que estava próxima o suficiente para ter dado um chute na moto. Por mais que eu soubesse que não faria isso, senti raiva por essa não ter sido a minha reação. Lembrava da sensação de impotência enquanto via eles indo embora. Fui tentando me lembrar do que mais havia na bolsa. A minha carteira de motorista brasileira estava lá. Eu nunca fui de comprar ou de ter muitas coisas materiais e nem era muito apegada, mas os objetos que eu comprava durante as minhas viagens tinham um valor sentimental. A bolsa que eles tinham levado já me acompanhava há dois anos, desde que a escolhi lá na Austrália. Dentro da bolsa, estava a única pulseira de prata que eu tinha, comprada depois de muita pechincha em Bali. A minha tornozeleira de prata era minha paixão: a escolhi a dedo em uma feirinha em Pirenópolis. O meu relógio também estava na bolsa: o único relógio que eu havia comprado na vida inteira, quando ainda morava na Nova Zelândia, e que viajava comigo há mais de três anos. Mas, tudo bem, fiquei feliz em ver que a minha máquina a prova d’água tinha ficado sem querer na casa.

Abri o meu computador para tentar falar com alguém. Eu sempre me virava bem sozinha quando tragédias aconteciam nas minhas viagens, mas hoje eu me sentia mal. Sentia uma dor na alma e uma impotência. Parecia que a minha maré de azar não ia embora: o wi-fi não estava funcionando. Fiquei irritada e chorei. Estava cansada de ser a durona forte. Queria falar com meus pais, mas eu nunca fazia isso. Só falava com eles depois que estava calma e tudo resolvido. O que eu faço agora? A moto estava quase sem gasolina e sentia pânico só de pensar em dirigi-la. Sentia fome e me sentia perdida sem meu celular para pesquisar alguma coisa. Tinha 300 baths que a Lucy me deu. Teria que fazer cálculos para decidir como usá-los com sabedoria. Já tinha visto essa cena acontecer, na delegacia em Bangkok. Senti falta do Doug. Será que faria um amigo legal na delegacia dessa vez? Sem uma bolsa para usar, coloquei o computador em uma sacola de plástico e saí em direção à avenida principal. Segurava a sacola bem forte debaixo do meu braço, com medo da minha maré de azar se perpetuar. Andei por um bom tempo debaixo do sol para achar uma cafeteria com wi-fi. Pedi um sanduíche e conectei. Assim que o abri, meu Facebook bipou com uma mensagem do Tony. Lucy já o tinha avisado do ocorrido e ele estava preocupado comigo. Aceitei o conforto de ter alguém para me ajudar. Em pouco tempo, Tony me encontrou e foi como um anjo na minha vida. Ele me levou na carona da sua moto até a polícia de turistas, que era diferente da que eu havia ido

durante a noite. Todos os policiais falavam inglês e foram muito gentis. Fiz um boletim de ocorrência que eu teria que enviar para o meu seguro de viagens, que cobriria todas as minhas perdas e gastos. Eu sempre viajei com seguro de viagem e ele nunca tinha sido útil, mas, dessa vez, ele valeu por todas as outras vezes que já tinha pago e não utilizado. Por sorte, eu tinha pago um valor adicional e meu iPhone também estava segurado. “Pronto, agora que você já tem o seu boletim de ocorrência, vamos ao Tesco comprar um telefone para você” – avisou Tony. “Mas Tony, eu não tenho dinheiro pra comprar um telefone. Vou deixar isso para depois, não se preocupa” “Você não pode ficar sem comunicação aqui. Vou comprar um telefone para você e depois acertamos.”. – Falou, enquanto colocava seu capacete e entregava o meu para mim. “Obrigada por me ajudar, Tony!”. – Eu realmente estava grata. Mas mesmo com a ajuda do Tony, eu me sentia perdida. Nós, seres humanos, pensamos que temos controle de alguma coisa, mas não controlamos nada. Eu acredito que existe um plano muito maior e que as coisas acontecem como tem que ser. Sabia que tudo isso tinha que acontecer para me preparar para algo ainda maior. Alguma coisa eu tinha que aprender. Provavelmente, alguma coisa que eu não aprendi quando fui furtada da primeira vez. Mesmo assim, eu achava injusto e me questionava. Estava cheia de planos e, em questão de segundos, todas as minhas

certezas viraram interrogações. Eu sentia um calafrio toda hora que uma moto passava do meu lado. Compramos um telefone bem simples e um chip novo, jantamos e o Tony me deixou em casa. Eu precisava falar com a minha família, mas o wi-fi continuava sem funcionar. Comecei a chorar, me sentia sozinha e não queria mais estar ali. Saí andando novamente pela avenida com o meu computador, me sentindo a pessoa mais sem esperança do mundo. Depois de andar umas quatro quadras, achei um bar, entrei e fui direto falar com quem parecia a dona do estabelecimento. Foi fácil identificá-la por ser a única farang entre as funcionárias tailandesas. “Olá, será que eu posso usar o seu wi-fi? Eu fui furtada hoje e não tenho dinheiro para consumir nada, mas preciso falar com a minha família.”. – Falei com os olhos cheios de lágrimas, mas sendo forte para não chorar. Muito gentilmente, ela me disse para ficar à vontade. Escolhi a mesa mais ao canto e isolada, apesar do bar estar praticamente vazio. Era um ambiente aconchegante, todo aberto e com vários quiosques. Sempre que viajo e algum imprevisto acontece, eu não aviso meus pais até que eu tenha resolvido tudo. Porque eu sei que ligar desesperada para eles só vai piorar a situação e deixá-los preocupados. Mas dessa vez foi diferente: eu sentia a necessidade de falar com meus pais para desabafar. Eu precisava de colo. Liguei pelo Skype para a minha mãe. “Alô”. – Como era bom ouvir a voz dela. “Oi, mãe, sou eu. Tudo bem?”.

“Oi, minha filha amada. Eu estou bem e você, como está?”. “Fui furtada de novo mãe” – E comecei um choro seguido de soluços e falta de ar. Não conseguia responder nenhuma pergunta dela e só a ouvia falar. “Calma, minha filha! Respira fundo e fica calma. Me diz se está tudo bem. Fizeram alguma coisa com você?”. – Enquanto ouvia sua voz de preocupação, senti arrependimento por ter ligado. Não queria que ela ficasse preocupada. Segurei o choro por alguns segundos, mas quando começava a falar novamente, a tristeza se transformava em choro e as palavras não saiam. “Não fizeram nada comigo, mãe. Eu estou bem. É só que eu não consigo entender porque isso aconteceu de novo.”. Uma das garçonetes se aproximou e largou um guardanapo e uma garrafa de água. Antes que eu pudesse negar, ela falou baixinho, enquanto piscava: “Por conta da casa”. Sorriu e continuou seu trabalho. Assoei o nariz e tomei um gole d’água, enquanto ouvia um pedido inédito vindo de minha mãe: “Filha, não tem problema você desistir e voltar pra casa. Vem pra casa se você acha que aí não é seguro pra você”. A minha resposta foi automática: “Eu não vou desistir de nada por causa de um filho da puta. Ele que leve o que quiser de mim, mas eu não vou desistir de um sonho por causa desse infeliz. Eu vou ser forte, mãe, e aguentar mais essa. Se acontecer mais uma vez, daí sim eu penso em voltar. Mas ainda não. Eu vou

continuar para o Camboja e fazer meu voluntariado lá.”. – Desabafei. “Filha, você que sabe. A única coisa que eu digo é para você seguir o seu coração. Faz o que você acha que é o certo. Mas agora, me conta o que aconteceu…”. E continuamos uma conversa de meia hora. Minha mãe pediu para eu agradecer o Tony por ela e ficou muito feliz em saber que tinha alguém para me auxiliar. Meu pai estava viajando e ela disse que contaria tudo para ele no dia seguinte. Depois de desligar com minha mãe, eu senti um alívio e já me sentia mais forte para retomar os planos e colocar meus pensamentos no lugar. Finalmente, prestei atenção à minha volta. Reparei que o bar tinha ganho um clima diferente. Os poucos clientes eram todos homens, farangs de mais idade, e achei as garçonetes muito próximas deles. Reparei melhor nelas e me dei conta de que eram prostitutas. Percebendo que eu tinha terminado o choro e a ligação, a dona do bar se aproximou e, antes que falasse comigo, percebi que ela era a cafetina das meninas. Muito gentilmente me perguntou se eu queria mais alguma coisa, que hoje eu era convidada da casa. Agradeci a gentileza. Conversamos sobre o que aconteceu e ela me acalmou com suas palavras. Me senti bem conversando com ela. Nunca imaginei que uma cafetina seria a pessoa que me confortaria naquela noite. A Tailândia não parava de me surpreender.

28. Mais amigos que eu deixaria para trás, com a incerteza de um futuro reencontro Já havia mandado mensagem para o Mariusz para atualizálo dos acontecimentos. Quando ele soube, se colocou totalmente à disposição para me ajudar com o que eu precisasse e pensou até em voltar para casa. Tranquilizei-o falando que não estava sozinha e tinha um amigo australiano já me ajudando. Mesmo assim, ele me mandava mensagem todos os dias para saber como eu estava. Cansada do stress emocional dos últimos dias e sem o celular para colocar para despertar, consegui finalmente ter uma noite de sono merecida. Primeira superação do dia foi pegar a moto e dirigir até o café onde eu estive no dia anterior, já que eu continuava sem wi-fi e o calor estava extremo para ir andando novamente. Continuava sentindo calafrios quando uma moto passava por mim, mas eu não deixaria todos os momentos bons que vivi com a minha motoca serem apagados por causa daqueles dois tailandeses. O meu dinheiro deu certinho para comer alguma coisa no café e assim pude usar o wi-fi. A primeira mensagem do dia foi para o moreno. Um dos únicos investimentos que eu havia feito para a viagem foi o iPhone, já que antes eu tinha um telefone velho que mal tirava fotos. O moreno pediu gentilmente para o irmão

comprar um iPhone para mim, em uma viagem que fez aos Estados Unidos com a esposa e os filhos, já que no Brasil era muito caro. E, agora, precisava enviar toda a documentação para o seguro de viagem, incluindo a nota fiscal do telefone e a data da compra, que eu preferi fingir que não fazia a menor ideia somente para puxar assunto com o moreno. Eu sabia que se olhasse as nossas conversas, eu descobriria a data. Percebi que a última mensagem havia sido minha um mês e meio atrás. Nós realmente nos afastamos. Escrevi a mensagem, dizendo que fui furtada e que precisava de um favor. Era sábado à noite no Brasil e estava certa de que ele não responderia. Para minha surpresa, ele respondeu na hora, dizendo que teria que olhar em casa. Assim que chegou em casa, ele me enviou foto da nota e me confirmou a data da compra olhando a conversa dele com o irmão. Agradeci e perguntei como ele estava, na intenção de puxar assunto. Não obtive resposta. Ele deixou claro que só estava disposto a conversar o essencial comigo. Como ele preferisse. Escrevi para o Doug, contando o que tinha acontecido e ele usou a empatia para me consolar, dizendo que também tinha sido furtado novamente no Vietnã. Rimos da nossa desgraça. Passei as próximas horas anexando papéis e preenchendo formulários para o seguro. Depois eu poderia acrescentar os valores que gastaria com a taxa do passaporte. Como já havia feito isso antes uma vez, já sabia tudo o que poderia ser incluso.

Eu estava a apenas quatro horas de barco da ilha de Koh Phangan e a Full Moon Party seria em três dias. Tão perto, mas, ao mesmo tempo, tão distante. Eu tinha razões suficientes para desistir dos meus planos de viagem e retornar a Bangkok. Todo e qualquer meio de hospedagem na Tailândia requer que você apresente um documento, pois o estabelecimento tem que fazer um relatório e enviar para a polícia local. Até mesmo lá no vilarejo esse procedimento era obrigatório. Isso significava que nenhum lugar me aceitaria como hóspede em Bangkok. Mas eu tinha um conhecido na cidade, o menino brasileiro que jogava futebol. Conheci ele da última vez que estive em Bangkok com a Joana e ele era uma pessoa muito humilde, se demonstrando muito aberto caso eu precisasse de ajuda. E eu definitivamente precisava agora. Além de um lugar para dormir, eu precisava de um endereço para receber os meus cartões de crédito. Então, entrei em contato com o Gustavo e ele foi super gentil: assim que chegasse em Bangkok, eu poderia ficar em sua casa até resolver tudo. Liguei para a operadora do cartão e pedi que enviassem os cartões para o endereço dele. Assim, até que eu chegasse lá, os cartões já estariam próximos de chegar também. A única coisa boa de passar o dia inteiro na frente do computador era ganhar um descanso do sol e do calor absurdo que fazia do lado de fora. Mas estava em uma ilha e, sabendo que em breve iria embora, eu queria aproveitar. Combinei de encontrar com o Tony para ver o pôr-do-sol no mesmo lugar da primeira vez que nos encontramos. Com

tudo o que tinha acontecido comigo nos últimos dias eu sentia que tinha mais a agradecer do que a reclamar. Jantamos com a Lucy, no qual seria o nosso jantar de despedida. O Tony me emprestou dinheiro para comprar a passagem de barco, ônibus e trem de volta a Bangkok. E também me deu uns baths extras para a viagem. Eu brincava dizendo que, a partir de agora, o chamaria de pai. A Lucy me deu de presente uma bolsa de pano pequena que era dela para eu usar na viagem. Eu podia ver em seu rosto que estava triste com a minha partida. Mais uma despedida, mais amigos que eu deixaria para trás com a incerteza de um futuro reencontro.

29. Bangkok, uma relação de amor ou ódio Sem passaporte, sem cartão de crédito e com pouco dinheiro no bolso, eu me aventurava sem medo pelas ruas de Bangkok. Não gosto de cidades caóticas, mas o caos de Bangkok tinha uma personalidade excêntrica. Eu adorava ver mais e mais do que ela tinha a me mostrar. Durante o dia, eu caminhava pelas ruas e observava tudo. Carros, motos e tuk-tuks em número excessivo tomam conta das ruas. As calçadas são tomadas por vendedores que comercializam os mais variados produtos, desde eletrônicos, a roupas, decoração, flores, frutas cortadas prontas para consumo, sucos naturais de frutas desconhecidas, doces, espetinhos exóticos, insetos fritos e até comidas que eu não fazia idéia do que eram. Pessoas com deformidades e doenças pediam esmola, enquanto asiáticos vestidos com roupas finas caminhavam apressados. Tailandeses, expatriados, mochileiros e turistas achavam seu caminho em meio ao caos. Propagandas com asiáticos brancos e sorridentes vendem produtos de beleza que garantem uma pele branca e bonita como a deles. Eu tinha a sensação de que todas as línguas estavam sendo faladas ao mesmo tempo, enquanto motos buzinavam ao fundo.

Andei vários quilômetros por dia, simplesmente observando e experimentando toda comida que fosse diferente e atrativa. Regra número um: sempre perguntar o preço antes de comprar qualquer produto ou serviço. Regra número dois: sempre pechinchar. Quanto mais eu conhecia a cidade, mais eu percebia que tinha muito ainda a ser visto. E quando a noite cai, uma Bangkok depravada se revela. Tailandeses segurando menus repetem em voz alta insistentemente “Ping Pong show”, fazendo referência a uma das atrações turísticas mais bizarras da cidade, onde mulheres arremessam bolinhas de pingue pongue sem usar as mãos. Se elas não usam as mãos, o que usam então? Isso mesmo, o órgão genital. Dei uma olhada no menu para matar a curiosidade e descobri que as bolinhas eram só uma parte do show que contava com dardos, cigarro, bananas, assovios, desenhos e até apagavam velinhas, caso fosse o seu aniversário. Foi um motorista de tuk-tuk que me apresentou a expressão em inglês mais usada na Tailândia. Ele era muito divertido e se sentia na necessidade de ir me apresentando a cidade. Passamos por uma mulher muito bonita parada em uma esquina, ele apontou para ela e depois para mim, como que comparando as duas e disse: “Same, same, but different”, que em português quer dizer “Igual, igual, mas diferente”. Na hora eu não entendi e olhei novamente para a mulher. Analisei o pomo de adão e percebi que era um Lady Boy. Comecei a rir incessantemente quando entendi o que

ele quis dizer com a frase. Éramos duas mulheres, só que não! Passei a ouvir essa expressão quase todos os dias em contextos diversos. Quando perguntava o porquê da diferença de preço entre duas rotas de ônibus com o mesmo destino final eu ouviria “Same, same, but different” seguido de um sorriso. Essa expressão explica muita coisa que muitas vezes a falta do inglês não conseguiria explicar e entendi porque tantas camisetas são vendidas com a expressão. Estava ficando na casa do Gustavo, que era a generosidade em pessoa. Ele tinha um estilo de vida muito peculiar, que só o mundo do futebol proporciona. Seus amigos, todos jogadores de futebol, adoravam fazer festa e até me colocaram na lista de uma balada famosa de Bangkok, um lugar que provavelmente nenhum mochileiro conheceria. Ambientes sofisticados e sem muita personalidade onde modelos e jogadores de futebol interagiam. Eu, com pouco mais de um metro e meio, vestindo minhas roupas de mochileira e sem salto alto, passava quase que imperceptível ao lado daquelas mulheres de quase dois metros de altura, que perdiam a elegância à medida que se entorpeciam. Eu gostava de estar ali para observar: era uma oportunidade de acessar um mundo a parte que muitas vezes é vendido como sinônimo de sucesso e requinte. Eu não tinha muita paciência para aquele ambiente e para as conversas sobre Rolex, mulheres e festas. Mas me divertia com a capacidade dos amigos do Gustavo de formular

piadas com absolutamente tudo que acontecia ao nosso redor. A Khao Sao Road era a antítese dessas baladas. Requinte não tinha vez ali. Mochileiros do mundo inteiro se aglomeravam nas ruas iluminadas por seus letreiros, enquanto tailandeses tentam vender tudo o que pode ser atraente a um turista: cerveja gelada, escorpião frito, camisetas, massagem, mais insetos fritos e passeios. Uma gama sem fim de opções. Documentos falsificados te tornam agente da CIA ou até te proporcionam um diploma em Harvard. Perguntei se eram verdadeiros e recebi a boa e velha explicação “Same, same, but different”. Chegando próximo ao começo ou ao final da rua, a oferta por tuk-tuks era interminável. Bangkok é uma relação de amor ou ódio. E eu definitivamente amava os contrastes daquele lugar. ... Depois de três dias andando como anônima em Bangkok, devido à falta de dinheiro para pagar a taxa do passaporte, finalmente fui à Embaixada do Brasil. Assim que apareci no guichê, o funcionário me perguntou sem nem ao menos me olhar: “Bom dia, como posso te ajudar?”. “Eu tive o meu passaporte furtado. Posso usar o computador para acessar o meu e-mail para te enviar a cópia do antigo passaporte e dos outros documentos que você precisa?”. – Perguntei demonstrando familiaridade com o processo.

O funcionário finalmente tirou os olhos da tela a sua frente e me olhou fixamente por uns 10 segundos enquanto eu aguardava uma reação. “Você por aqui de novo, garotinha?! Você precisa ficar mais atenta, não pode ficar perdendo o seu passaporte a cada mês. O que foi dessa vez?”. – Indagou ele, enquanto eu segurava uma risada de canto de boca por achar engraçado o fato dele me reconhecer. Ele tinha me atendido também da primeira vez. “Pois é, fui furtada novamente.”. – Concluí, sem acrescentar detalhes. “Você sabia que cada vez que perde o passaporte, você perde um ano de validade nele?”. Para de dizer que eu perdi o meu passaporte, porque eu não perdi. Eu fui FURTADA. “Não sabia. Então agora meu passaporte vai ser válido por apenas 3 anos?”. – Lembrei-me de que o meu atual já tinha validade reduzida, de apenas 4. “Exatamente. E se você continuar perdendo o passaporte, vamos te dar uma autorização de retorno ao Brasil. Por isso você deve ser mais cuidadosa.”. – Advertiu o rapaz, em tom de sermão. “Tudo bem, eu serei.”. – Concordei, sabendo que ele estava certo. Depois de perceber que o recado tinha sido dado, ele foi muito atencioso e me ajudou com todo o processo do novo passaporte. Peguei o boleto, fui no banco pagar com o dinheiro que o Gustavo tinha gentilmente me emprestado, retornei para entregar o comprovante de pagamento e retirar meu passaporte, que ficaria pronto na hora.

“Tudo certo então?”. – Perguntei feliz, já em posse do novo passaporte. “Tudo certo. E depois de hoje, não quero te ver mais aqui na embaixada, hein?”. – Ele falou isso com um sorriso afetuoso, de quem na verdade só quer o meu bem. “Se o atendimento da Embaixada não fosse tão bom, eu não retornaria tantas vezes” – Eu disse sorrindo. Como de costume, fui até a Imigração Tailandesa, que tinha um dos prédios modernos mais bonitos que eu já tinha visto em Bangkok: cercado por um lago. Depois de muita fila e burocracia consegui a cópia da cópia do meu visto de turista, que estreou uma página inteira do meu passaporte com carimbos com letras inteligíveis em tailandês. O sonho de ver o meu passaporte repleto de estampas estava mais longe a cada furto. Agora que eu tinha documento, cartões e dinheiro novamente, a vida tinha até perdido um pouco da graça. Sentia que tinham me devolvido a responsabilidade de ser alguém e de saber administrar a minha vida. Com isso, comprei uma carteira nova e um money belt, que é aquela pochete fininha para usar por dentro da roupa, ideal para carregar dinheiro e passaporte. Finalmente, eu estava fazendo o que era certo. Quitei todas as dívidas que precisei fazer nesses últimos dias. O Gustavo fez uma transferência para o Tony do valor que estava devendo para ele. Mandei uma mensagem para o meu amigo australiano, agradecendo-o mais uma vez por toda a sua ajuda e também o tranquilizei, dizendo que já tinha resolvido tudo.

Comecei a fazer pesquisa de instituições para voluntariar no Camboja e também li um pouco sobre a Guerra Civil recente, me preparando para o que estava por vir. Estava ansiosa para voltar a voluntariar e pisar em território desconhecido novamente. Fiz contato com uma escola que fica em uma ilha e precisa de voluntários para ajudar em um programa de conservação ambiental e também para dar aulas de inglês para as crianças locais. Era tentadora a ideia de viver e me voluntariar em uma ilha Cambojana. Estava pronta para seguir viagem.

30. Praticamente tudo na fronteira era falso, incluindo os próprios policiais… Novamente, eu estava chacoalhando em uma minivan, mas que, dessa vez, me deixaria em uma das fronteiras mais perigosas do mundo. Rumo ao Camboja, um país corrupto e sem leis que, até então, era um total desconhecido e isso me fascinava. Começava a criar expectativas do que encontraria pela frente, desejando que os lances de azar fossem deixados para trás. Dessa vez, eu havia aprendido a lição: eu acreditava que as dificuldades tinham vindo para me fortalecer e não para me fazer desistir. Nunca fui muito cuidadosa com os meus pertences, não por não dar valor ao que tenho, mas por viver com a cabeça em um mundo paralelo, de questionamentos e sentimentos aguçados, esse mundo que relato agora em palavras. Seriam aproximadamente sete horas de viagem até a fronteira mais ao sul da Tailândia, Koh Kong, que eu atravessaria a pé. Já em solo cambojano, pegaria um ônibus que me deixaria na cidade de Sihanoukville em quatro horas. Estava sentindo falta do meu smartphone para acompanhar onde estávamos, garantindo assim que não perderia a minha parada. Começava a me arrepender de não ter feito uma pesquisa mais detalhada desse trajeto.

Era estranho não ter meu telefone para tirar minhas dúvidas. Viajando pela Ásia, é sempre necessário fazer pesquisas antes de ir a algum lugar, evitando assim golpes e furadas. A viagem começou a ficar fora do planejado quando, com menos de seis horas de viagem, o ônibus parou e todo mundo desceu no que parecia ser o ponto final. Tentei perguntar para alguém, mas ninguém falava inglês. Pela pesquisa rápida que eu havia feito, eu tinha que estar na fronteira, mas não existia nada ao meu redor que indicasse. Comecei a procurar por placas, mapas ou qualquer informação que fizesse referência sobre onde eu estava. Trat, eu estava em Trat. Mas onde seria Trat? Sem entender nada, vi uma mulher sentada em uma mesa improvisada e perguntei como chegaria até Koh Kong. “Koh Kong? 2.000 baths!”. – Repetia essa informação que para mim era absurda. Ela colocava pressão, tentando justificar o valor alto: “Último ônibus do dia para Koh Kong. Senão vai ter que dormir aqui” – Repetia com a mão estendida em minha direção, aguardando o meu pagamento, que jamais aconteceria. Ela estava me cobrando 60 dólares por uma viagem de uma hora, sendo que eu tinha pago o equivalente a seis dólares pela minha viagem de seis horas até ali. Saí andando e perguntando a todas as pessoas se havia um ônibus até Koh Kong. Parecia que ninguém além da mulher caloteira falava inglês. Eu nem sequer tinha esse valor: estava com um resto de dinheiro e aguardava o

depósito do Brasil entrar no dia seguinte, para sacar direto na moeda local do Camboja. Uma garota tailandesa, percebendo que eu estava perdida se aproximou. “Você, Koh Kong?”. – Ela disse, apontando para mim. “Sim. Eu, Koh Kong”. – Respondi na mesma gramática que ela havia usado, na esperança de nos entendermos. Ela me pegou pela mão e começou a andar comigo pela rua até encontrar um ônibus. Apontando para ele, disse “Koh Kong”. Agradeci a minha salvadora com um “kokunka” e muitos sorrisos enquanto o motorista me mandava entrar no ônibus. Paguei 120 baths e entrei rezando para que ele me levasse ao lugar certo. Uma hora depois, foi um alívio ver a placa indicando Koh Kong. Seria impossível continuar essa viagem sem um smartphone. Precisava de um urgente. Ao descer na fronteira, fui avisada que deveria correr, pois ela fecharia em meia hora. Saí correndo desviando barracas, pessoas, frutas e cachorros. Ao chegar na fila para a fronteira, o homem que estava a minha frente percebeu a minha agitação e interagiu. “Bem na hora! Primeira vez passando por essa fronteira?” – Ele me perguntou com um sotaque leve, mas que deduzi que era alemão. “Sim, minha primeira vez, como você pode ver. E, para piorar, estou sem telefone para checar as informações. Ainda bem que deu tempo. Pretendo pegar um ônibus para Sihanoukvile ainda hoje e você?”. – Perguntei com a certeza de que havia um ônibus até a cidade.

“A essa hora, não tem mais nenhum ônibus, mas eu também estou indo para lá. Se você quiser, podemos dividir um táxi. Porque eu não quero dormir nesse fim de mundo.”. Um táxi para uma viagem de 4 horas era a última opção para o meu orçamento. Me restava pouco mais do que eu precisava em baths para pagar a taxa do meu visto de 30 dias de turista que tiraria ali na fronteira mesmo. Eu poderia ter feito um visto eletrônico diretamente no site, mas como custava praticamente o mesmo valor, acabei deixando para fazer na hora. Levei até uma foto, para evitar taxas extras. “A propósito, meu nome é Billy. Eu sou alemão, mas moro no Camboja há muitos anos. Sou motociclista. Fique à vontade para passar junto comigo pela imigração. Eles são conhecidos pelos golpes e corrupção. Não pague nenhuma taxa a mais, mesmo que o policial esteja fardado e existam placas e panfletos explicativos. São todos falsos.”. – Enquanto ele falava, eu o analisava. Ele deveria ter quase uns 40 anos, mas o corpo enxuto, o cabelo comprido quase no ombro e a regata que usava fazia parecer que era mais novo. “Obrigada, vou aceitar a sua oferta.”. – Sorri, em agradecimento. Depois de receber o carimbo de saída na Tailândia, sigo para o lado Cambojano. Praticamente tudo na fronteira era falso, incluindo os próprios policiais, que tinham vários golpes que te levavam a pagar alguma taxa adicional. O clima era um pouco tenso, já que você não sabe em quem pode ou não acreditar. Um policial se ofereceu a preencher o meu formulário e, antes que eu pudesse reagir, o meu amigo alemão disse

que não era preciso. Havia também uma mesa com uma placa indicando “quarentena”, onde eles tiram a sua temperatura com um termômetro e cobram uma taxa pelo formulário que não será preciso em momento nenhum. Outro policial estava me cobrando um valor mais alto pelo meu visto, sem nenhuma razão. Queria 300 baths a mais. Falei que não pagaria e ele me mandou esperar debaixo de uma árvore. Eu sabia que a fronteira estava fechando e duvidei que ele levaria muito tempo com aquele teatro sem escrúpulos. O Billy finalizou o visto dele e voltou para me ajudar. Depois de negociar por algum tempo com o policial alterado, pagamos a taxa, que correspondia a tudo o que eu tinha, e fomos liberados junto com o pôr-do-sol. Finalmente estava em solo Cambojano, novamente sem dinheiro e com um amigo alemão para me acompanhar. Parecia um dejà vu.

31. Realizando o sonho de conhecer uma terra que parecia tão distante Essa era a primeira vez que eu atravessava uma fronteira a pé e minhas expectativas para ver o que me aguardava do outro lado eram grandes. Aguardava uma mudança de paisagem, uma cidade diferente ou qualquer indício de que estava “do outro lado”. Uma placa, quem sabe? Para minha decepção, tudo o que via era campo, táxis e tuk-tuks. E foi então que descobri que a cidade de Koh Kong estava a 15km de distância. Ainda tinha esperança de achar um ônibus até Sihanoukville, mas a informação era única: somente no dia seguinte, já que o último ônibus sai às 13 horas todos os dias. Eu não queria acreditar e cheguei a desconfiar de que os motoristas estivessem me dando a informação errada, visto que eles se tornariam a nossa única opção. Essa desconfiança era resultado da minha recém-experiência com os policiais na fronteira e eu tinha a impressão que os cambojanos não viam turistas, mas sim notas verdinhas. Billy perguntou para um taxista quanto sairia a corrida e ele foi categórico: 100 dólares. O desespero ficou maior em mim: mesmo dividindo entre dois, eu não tinha essa grana toda para pagar um táxi. Com o meu orçamento apertado, eu não podia me dar o luxo de andar de táxi por quatro horas, sendo que havia um ônibus para fazer o trajeto.

Eu não esperava que o lado cambojano da fronteira fosse esse deserto onde o primeiro caixa eletrônico estaria a quilômetros de distância. Cogitei a hipótese de dormir na cidade, mas, assim que o motorista do tuk-tuk me disse o valor da corrida, eu percebi que ficar na cidade, naquela situação, era um prato cheio para os locais se aproveitarem e cobrarem o quanto quisessem, já que as opções eram limitadas. Enquanto o Billy aguardava uma decisão minha, eu perguntei a todos os taxistas da rua o valor da corrida até o nosso destino final e consegui fazer um deles baixar o preço para 60 dólares. Tentei 50, mas ele até achou desrespeitosa a minha oferta e disse que era muito pouco. E usou as palavras “longe” e “perigoso” para descrever o trecho. Olhei para o Billy, já me dando por vencida. Teria que ir de táxi: “Quer uma carona até Sihanoukville?”. – Brinquei. Aceitei a ajuda do motorista para colocar o meu mochilão no porta malas e o Billy colocou junto sua mochila pequena preta, revelando que tinha ficado pouco tempo no país vizinho. Nos acomodamos no banco de trás do carro enquanto eu constatava que essa era a primeira vez que fazia uma viagem longa de táxi, esperando ser uma das viagens mais cômodas que faria no continente Asiático. Escutei as muitas histórias que Billy tinha para contar, todas envolvendo sua moto, uma Royal Enfield que ele comprou na Índia, onde a moto é fabricada. Quando afirmei que não conhecia a marca, ele fez questão de explicar como ela era especial e rara.

Enquanto ele falava, não conseguia deixar de pensar no quanto ele e meu pai teriam o que conversar. Eu também tinha vontade de pegar uma moto de verdade para viajar, mas eu nunca tinha pilotado uma. Quando tirei a carteira de motorista, meu pai não deixou que eu tirasse para moto. Ele disse que seria perigoso demais. E talvez fosse. Eu nunca tive muita noção de perigo e gostava de velocidade e vento no rosto. Enquanto conversava com o Billy, eu prestava atenção na estrada. Quanto mais o taxista dirigia, mais tinha a sensação de que estávamos cada vez mais próximos do fim do mundo. Não havia iluminação nenhuma e muito menos sinalização. Quando olhava pela janela, não via nada: era difícil definir os limites da estrada de chão. Mas a situação ficou pior quando as estradas viraram buracos imensos cheios de água. “Estamos no ápice da estação das monções. A chuva destruiu as estradas. É por isso que não vim de moto”. – Explicou o meu amigo motociclista. Já tinha aprendido com o meu pai que a maior ofensa é chamar um motociclista de motoqueiro. Os buracos foram ficando cada vez maiores, ao ponto de serem do tamanho do carro. Quando o motorista parou diante de um deles, eu tive a certeza que aquele era o fim da nossa viagem. Precisaríamos retornar. “E agora, Ary?”. – Perguntei ao nosso motorista. “Não se preocupe. Vamos conseguir passar.”. – Falou Ary enquanto analisava o buraco, quase ficando em pé dentro do carro.

Nunca duvide de um local. Desconfio que eles têm superpoderes. Devagar e com muita habilidade, Ary conseguiu desviar de todos os buracos, mesmo que muitas vezes tivesse de entrar neles. Fiquei até com remorso de ter pedido tanto desconto na corrida, porque ele ainda teria que voltar por esse mesmo caminho. O nosso motorista disse que morava com sua esposa e duas filhas próximo a Kong e que uma corrida até Sihanoukville era muito boa. Parecia feliz com o dinheiro que faria hoje. Ele disse que gosta de trabalhar como taxista porque encontra pessoas do mundo todo e mal pôde acreditar quando eu disse que era do Brasil. Aparentemente, eu era a primeira cliente brasileira. Ele contou que perdeu um irmão para as minas terrestres e aprendeu inglês com sua irmã, que teve a oportunidade de estudar em uma escola na qual voluntários ensinavam inglês. Além disso, o constante contato com os Barangs (a palavra em cambojano para Farang) o ajudava a melhorar cada dia mais. Encontrar pessoas como o Ary na minha viagem dava mais sentido a ela. Resolvemos fazer uma parada rápida para os homens usarem o banheiro natural. Enquanto aguardava, coloquei a cabeça pra fora do carro e olhei para o céu. O que faltava de luz na estrada, sobrava lá em cima. Que presente de boas-vindas! Agradeci à natureza por tamanha perfeição. Eu nunca tinha visto antes um céu tão estrelado e iluminado como aquele. Era um sinal de que tudo daria certo. ...

Acordei e fiquei observando o teto: mais um que entraria para a minha coleção, o primeiro do Camboja. Tomei banho e me dirigi rumo às conversas e risadas que vinham da sala para dar bom dia aos meus novos amigos. Lá estavam eles, todos na mesma faixa de idade: Billy, vestindo outra regata e o cabelo longo desarrumado; George, vestindo uma roupa que parecia de escoteiro, era alto, tinha um sorriso doce e um cavanhaque que contrastava ainda mais com sua careca brilhante; e Louis, moreno e magro, vestia uma sambacanção e fumava seu cigarro. Três pessoas totalmente diferentes que em comum tinham o amor pelas aventuras de moto, a nacionalidade e o gosto por pintar as unhas dos pés. Na verdade, elas não eram pintadas, mas sim decoradas. A de Louis era perfeitamente desenhada com os pássaros do Angry Birds. Quando reparei nesse detalhe, não pude evitar de fazer perguntas e uma longa conversa se iniciou. Eles me deram uma xícara de café e uns biscoitos e conversamos por algum tempo. Gostavam da falta de leis e de policiais no Camboja e diziam estar ficando velhos para continuar vivendo sob a opinião das pessoas: queriam fazer o que tivessem vontade, inclusive pintar as unhas dos pés. Vindos de um país tão regrado, queriam viver o oposto do que lhes ensinaram como padrão. Mas reclamavam da corrupção quando tinham de receber as peças de moto pelo correio, que sempre cobrava taxas altíssimas para a retirada. Enquanto conversávamos, a esposa cambojana de Louis telefonou e eu acompanhei o que conseguia ouvir desse lado:

“Sim, meu amor, Billy está aqui. Fez uma boa viagem e trouxe junto com ele uma menina. Ela dormiu aqui em casa. Quando você volta?”. A explicação dele deixava espaço para perguntas. “Não, não é dessa vez que ele consegue uma namorada. Ela está viajando e dando aula de inglês para crianças carentes. Ele dividiu o táxi com essa menina e chegaram muito tarde por conta dos buracos na estrada. Acredita que levaram oito horas para percorrer os 230 km? Cada dia fica pior. O Billy a convidou para dormir aqui, sem nem me avisar. Levei um susto quando ele chegou com a garota.”. Mais perguntas. “Sim, amor. Eu troquei o lençol para ela e deixei uma toalha limpa no quarto.”. “Sim, já comemos os biscoitos também. Mas, me diz: quando você volta?”. Eles continuaram a conversa, enquanto Billy e George faziam planos para o dia. Avisaram que me levariam até o centro de Sihanoukville, onde eu poderia achar um hostel para me hospedar. Eu já tinha feito uma breve pesquisa com algumas opções de hostel em uma praia mais isolada, mas não queria abusar da boa vontade deles e uma carona até lá já seria um ótimo começo. Quando Louis desligou com a esposa, pedi para tirar uma foto com os alemães-motociclistas-malucos na frente da casa, para comprovar a veracidade da minha história. Não resisti e também pedi para tirar uma foto das unhas decoradas, que eles exibiram com orgulho. Considerando que George era alto e grande, me surpreendi quando vi que o carro dele parecia o do Mr.

Bean: um quadrado pequeno no qual ele mal cabia. Louis não nos acompanharia. Era a primeira vez que via o Camboja sob a luz do dia. Tudo parecia abandonado e sujo, mas mesmo assim continuava atraente. Fazia muito calor, mas pelo menos não chovia. Pedi para que parassem em um caixa eletrônico, pois ainda estava devendo para o Billy o dinheiro da corrida do táxi. Para a minha surpresa, os saques no Camboja eram realizados em dólar e não em riel cambojano, que, no momento, era cotado em torno de 4000 para cada dólar. Escolhi o valor máximo, uma vez que é cobrada uma taxa a cada saque. Aguardava o dinheiro quando reparei na mensagem da tela: Dinheiro insuficiente. Momento de pânico. Tentei mais uma vez e a mensagem foi a mesma. O dinheiro enviado do Brasil ainda não estava disponível. Eu tinha certeza que tinha pelo menos uns 40 dólares naquele cartão, sobra do mês anterior, então tentei um saque no valor de 30. Saque realizado com sucesso. Estava oficialmente sem dinheiro, pois esse era o valor que estava devendo ao meu amigo. Entreguei os dólares para o Billy e continuamos rumo à área turística da cidade. Foi fácil perceber que havíamos chegado, porque o ambiente era outro: cheio de mochileiros, hotéis, scooters e tuk-tuks. Agradeci de todo coração por me receberem tão bem! O Billy anotou o seu número em um papel e me entregou, garantindo que agora eu tinha amigos na cidade. Nos despedimos e lá se foram Billy e George no pequeno carro. Comecei a caminhar e observar.

Estava extasiada! Eu finalmente estava no Camboja, realizando o sonho de conhecer uma terra que parecia tão distante! Comecei a andar pela rua e foi fácil perceber que havia muito mais ali do que turistas e produtos à venda. Existiam vítimas também. Muitos homens que tiveram braços e pernas amputadas pelas minas terrestres pediam esmolas nas ruas. Eles eram os personagens reais de histórias que até então eu só havia lido nos livros de História. E, agora, eles me pediam ajuda. Fazia muito calor e estava com sede, então, pensei imediatamente em parar para comprar uma água. Antes que pudesse abrir a bolsa, me lembrei de que não tinha dinheiro. Mais uma vez sem dinheiro! Já começava até a me acostumar. É uma situação à qual dificilmente nos expomos em nosso dia a dia. Ter algum dinheiro na carteira dá a sensação de segurança, pois sabemos que ele compra as nossas necessidades básicas. Se temos fome ou sede, a saciamos instantaneamente, sem percebermos como somos felizardos. Mas e se não pudermos pagar por isso? O básico e o mínimo não são mais uma garantia nesse momento e eu aprendia muito com isso. Inclusive, aprendendo a me deixar levar.

32. Você conhece a lei do viajante? Com jeitinho, consegui dar check-in em um hostel sem pagar o depósito da chave. Escolhi um quarto compartilhado com 12 pessoas que me custaria 6 dólares a noite, a serem pagos no check-out. Gastei os meus últimos 10 dólares que sobraram no cartão de crédito com um kit de sobrevivência que incluía água, biscoito, miojo e banana. Não era o melhor hostel e nem a melhor praia, mas eu estava somente de passagem, uma vez que aquele era o ponto de partida para a ilha de Koh Rong, onde eu iniciaria o meu voluntariado. Passei boa parte do dia no hostel, fazendo amigos de vários cantos do mundo. A cada novo encontro, uma sucessão de perguntas e respostas, que incluía obrigatoriamente “De que país você é?”, “De onde você veio?” e “Para onde você vai?”. Em pouco tempo, já tinha conhecido um pouco das histórias de viajantes de Israel, Inglaterra e França. Já à noite, enquanto eu usava o meu computador na área comum do hostel, um garoto se aproximou. Vendo que eu estava sozinha, ele me chamou para jantar com o seu grupo de amigos. Eu disse que já havia jantado e agradeci, mentindo, já que meu miojo ainda me aguardava no quarto.

Continuei mexendo no computador. O garoto retornou em menos de dois minutos. “Ouvi dizer que você foi furtada na Tailândia. Janta conosco! Eu pago e você me dá o dinheiro quando puder”. – Ofereceu gentilmente. Olhei para a mesa em que ele estava e percebi que já havia conversado com alguns de seus amigos. A essa altura, eu não negaria uma oferta como essa. “Obrigada pela gentileza. Te pago assim que tiver o dinheiro. Fechado?”. – Falei, enquanto ele levantou a mão aberta e bateu na minha. Depois de uma noite divertida, um prato de comida delicioso e algumas cervejas, fui agradecer a gentileza do menino, que me disse estar indo embora no dia seguinte. “Você vai embora a que horas amanhã? Como vou fazer para te pagar?”. – Indaguei-o, preocupada. “Você conhece a lei do viajante?”. – Ele me perguntou. “Lei do viajante? Não.”. – Eu estava curiosa para saber do que se tratava. “Somos todos viajantes e precisamos ajudar uns aos outros. Hoje, eu ajudei você e, ao invés de me pagar de volta, use esse dinheiro para ajudar outro viajante no seu caminho. Com certeza você vai encontrar pessoas que precisam, assim como hoje você precisou.”. Essa atitude altruísta do garoto desconhecido me fez refletir, pensando em todas as vezes que fui ajudada ou que ajudei pensando na retribuição do favor. Quando pensamos assim, a generosidade de ajudar alguém acaba ficando limitada a apenas aquelas duas pessoas envolvidas, fechando um círculo, que não envolve mais ninguém. Mas,

nesse caso, além de não estar em busca de benefício próprio, ele estava fazendo com que mais pessoas fossem tocadas pela sua generosidade. Se cada pessoa ajudada retribuísse a uma terceira pessoa, criaríamos um processo infinito de boas ações e de empatia. Não via a hora de dar continuidade à “Lei do Viajante”.

33. Um paraíso na terra Na ilha de Koh Rong, não existem caixas eletrônicos e nem estradas. Poucas são as trilhas que te levam para algum lugar e o mar azul cristalino é a melhor maneira de se locomover. A eletricidade é cortada durante a noite e a escuridão é tanta que torna possível a observação de plânctons, tornando o banho de mar noturno uma das principais atrações da ilha. A praia principal é muito pequena, sendo a areia a principal via de acesso para qualquer lugar, dado que todos os hotéis e restaurantes são à beira-mar. Um pouco mais ao fundo, entre as construções, é possível observar casas de locais, onde a realidade é outra. Entre mochileiros em busca de diversão, estão crianças cambojanas que brincam, nuas, com pedaços de madeira ou qualquer objeto que conseguem transformar em brinquedo. Elas têm o sorriso doce e aceitam facilmente a interação dos Barangs. Eu passava a maior parte do meu tempo com o Luke, o britânico que conheci no hostel, ainda em Sihanoukville. Juntos desbravamos as praias mais isoladas da cidade e andamos muitos quilômetros pelas areias, jogando muita conversa fora. Eu adorava o sotaque britânico dele e a maneira como sempre me chamava de “buddy”, uma palavra carinhosa para chamar alguém de camarada.

Viemos juntos para a ilha em uma viagem de três horas de barco e estávamos no hostel mais barato que encontramos: ele custava três dólares a noite, por uma cama em um quarto compartilhado com seis pessoas. A qualidade era duvidosa, mas o valor era tentador para o nosso orçamento. O americano Daniel e o holandês Rob também se juntaram a nós. Passamos o dia todo conhecendo as praias, jogando vôlei e tomando a cerveja local, Ankgor, por 50 centavos. Conheci pessoas do mundo inteiro com as mais diferentes histórias. Entre eles, um homem que já estava viajando o mundo há cinco anos e tinha um discurso cativante de como ele via a vida. Entre as amizades que fizemos, conhecemos o Chan, um local dono de um barco que nos levou para um passeio incrível pela ilha e assim pudemos conhecer as praias realmente paradisíacas. Paramos em alguns pontos de snorkel e também para pescar, mas não tivemos sorte naquele dia e não conseguimos pegar o nosso almoço. Na ausência de peixe, o nosso amigo cambojano parou em um vilarejo onde todas as casas são flutuantes na beira de um píer. Como a maré estava um pouco baixa, dava para ver os pedaços de madeira que elevam as casas, garantindo assim a localização exclusiva de suas residências. Nós éramos os únicos mochileiros no pequeno vilarejo e andávamos observando as casas e o modo de vida local em troca de sorrisos e olhares curiosos. Em uma das casas, havia um restaurante improvisado e, por meio de um buraco no chão que dava direto no mar, a família mantinha

alguns peixes em uma espécie de cesta de arame, sendo possível comer peixe fresco a qualquer instante. Acompanhamos todo o processo de preparação do nosso peixe, que foi servido grelhado, com arroz. O prato era simples e saboroso. Esse era o tipo de experiência que me alegrava como viajante, pois me permitia participar da vida local e, de alguma maneira, ajudá-los ao consumir seu produto. Eles vivem da pesca e são os principais fornecedores dos restaurantes da praia onde estávamos hospedados. Quando pensamos que o passeio havia acabado, o nosso guia nos levou por uma trilha morro acima. Ao chegarmos no topo, avistamos o que parecia um paraíso perdido. A água tinha um tom de azul esverdeado e tudo o que podíamos ver para o interior da ilha era floresta nativa. Na beira da praia, havia areia branca e coqueiros. “Essa é Coconut Beach, muito bonita. Vocês seguem até a praia e eu volto sozinho para buscar o barco no píer. Nos encontramos na praia, eu vou lá buscar vocês.”. – Explicou Chan para nós quatro. Olhamos uns para os outros sabendo do risco que corríamos de o local desaparecer com as nossas coisas no barco. Eu, que agora já estava preparada, tinha o meu passaporte e dinheiro no meu money belt. Então, não estava muito preocupada. “Vamos lá. Se o Chan não voltar para buscar a gente, pelo menos estamos no paraíso.”. – Disse Daniel, com a sua animação e espírito aventureiro de quem está sempre viajando o mundo. Chan riu e afirmou que voltaria.

Fizemos a trilha até a praia e cada vez mais ficamos mais encantados. A primeira coisa a fazer foi dar um mergulho na água que, agora, de perto, parecia verde e era extremamente límpida. Olhando do mar para a praia, não se via nenhuma construção e nenhuma pessoa além de nós quatro. Boiei na água enquanto observava o azul do céu. Eu finalmente estava realizando o sonho de conhecer um paraíso na terra e me alegrava por existirem lugares onde o turismo ainda não havia chegado. Pensava em todas as outras ilhas da região e no que poderia ser visto nelas, sendo que a que estávamos era a mais turística de todas. São mais de 12 ilhas. Se não fosse o meu orçamento curto, eu faria um investimento e exploraria todas elas. Algumas não possuem sequer estrutura de hospedagem, sendo acessíveis por barco durante o dia, enquanto outras foram tomadas por redes milionárias de resorts. Pensava no porquê das ilhas da Tailândia levarem toda a fama: eu jamais soube que havia ilhas paradisíacas no Camboja. Perdemos a noção do tempo enquanto exploramos a praia e jogamos partidas de vôlei dentro do mar, para aliviar o calor. Chan retornou em seguida com o barco, mas ficamos até quase escurecer e retornamos para a nossa praia, que já tinha o clima de curtição. Mochileiros sentados em bares e restaurantes na beira da praia escutavam música ao vivo, enquanto perdiam as contas de quantas Ankgor já haviam tomado. Eles aproveitavam para beber cerveja gelada até que o estoque diário de gelo dos restaurantes acabasse ou a eletricidade fosse cortada, dando o sinal de que era hora de pular no mar e nadar com os plânctons sob o céu estrelado.

Já era a minha segunda noite na ilha e eu ainda levava um susto quando, por volta da meia noite, a luz acabava e o silêncio se instaurava. Retornar para o hostel só era possível com a ajuda da lanterna do celular, mas a volta só aconteceria depois de eu dar um mergulho no mar e ficar mexendo as mãos e os pés para ver os pontos verdes luminosos florescendo do mar. Não havia pressa. O continente estava há 23 km de distância e existia uma imensidão azul que me protegia de tudo o que estava acontecendo lá. Tudo o que eu sentia era a temperatura agradável da água batendo no meu corpo e os constantes pontos verdes que perseguiam meus movimentos. O céu era o mesmo que tinha me recebido no primeiro dia e estrelas cadentes rasgavam o céu. Na pressa de cair na água, entrei de roupa mesmo. Não havia tempo para protocolos e ninguém para me julgar. Eu mesma já não me julgava e aceitava as minhas vontades e desejos como únicos, não permitindo interferências externas. A liberdade daquele momento pertencia a mim e cada vez mais não daria o direito de ela ser limitada pelos anseios de outras pessoas.

34. Eu queria uma causa que realmente tocasse em mim Depois de um final de semana incrível explorando as belezas da ilha, era hora de começar o meu voluntariado. Estava em êxtase por ter achado um lugar tão único para voluntariar! Eu me encontrei com as duas garotas responsáveis pelo programa, uma canadense e uma australiana, que chegaram na ilha sem a intenção de ficar e acabaram criando a primeira e única organização não governamental do local, chamada Friends of Koh Rong. Elas me explicaram que o principal objetivo é educar e qualificar tanto as crianças como os adultos para trabalharem em comunidade e de forma sustentável. Os locais podem se beneficiar do turismo, que é uma atividade recente na ilha, para mudar as suas vidas. E um dos primeiros passos era o ensino da língua inglesa. Por enquanto, tudo estava sendo improvisado e as aulas aconteciam com poucos recursos em uma casa de madeira no píer. Kelly e Fran estavam bastante ocupadas com as atuais mudanças que estavam prestes a acontecer: a comunidade local queria juntar esforços e trabalhar junto com a ONG numa união que resultaria na reforma da antiga escola, um incentivo para que seus filhos fossem estudar, e em uma participação mais ativa da comunidade. Esse

pequeno passo prometia um novo futuro para os moradores da ilha. A aula estava prestes a começar e o fluxo de crianças aumentava em direção à escola improvisada. As garotas haviam feito uma forte divulgação na praia sobre as aulas de inglês e, por isso, muitos voluntários estavam presentes. Dessa forma, elas selecionaram um voluntário para cada duas crianças para ajudá-las a ler um livro e depois fazer algumas atividades. Mali e Dara foram selecionadas para serem minhas alunas. Ambas tinham oito anos. Peguei um livro para lermos juntas e percebi que Dara tinha mais dificuldades, enquanto Mali nem precisava prestar atenção para entender tudo. Mudei de ideia e peguei um segundo livro, alternando a minha atenção entre as duas. Mali era extremamente esperta e foi a primeira da turma a terminar a leitura. Ela me fazia perguntas sobre o Brasil, sobre a minha viagem, de onde eu vinha e para onde eu iria. Me contou sobre seu irmão, sua família e sobre como gostava de ver muitos turistas na ilha. Dara era tímida e não consegui arrancar muitas palavras dela, apenas risadas quando fazia cócegas. No final da aula, uma das garotas falou para os voluntários sobre a importância da consciência da comunidade local. Os pais deveriam ser os primeiros a serem conscientizados da importância da educação a longo prazo, pois são eles que têm o papel fundamental de incentivar os filhos a irem para a escola, ao invés de vender braceletes para os turistas na praia, uma renda provisória que comprometia o futuro das crianças. Ela também se

mostrou preocupada ao falar para nós sobre os boatos que estavam correndo, de que a ilha teria sido vendida para um grupo de investidores com planos de criar um resort ecológico e um aeroporto. Eu via nos olhos dela a tristeza e o medo do futuro incerto, de alguém que acredita e que está colocando todos os seus esforços para o desenvolvimento de um turismo mais sustentável e consciente. Isso porquê grandes investidores se preocupam somente com os dólares, sem planejar de maneira responsável o futuro da comunidade local. No próximo dia, eu estava no píer novamente, para mais uma aula que aconteceria todos os dias da semana, sempre no mesmo horário. De novo, um grande número de voluntários se apresentou e a aula aconteceu. Kelly e Fran estavam agitadas com as reuniões que estavam sendo marcadas com os líderes da comunidade e não conseguiam atender a todo mundo. Contudo, elas rapidamente explicaram algumas regras para os voluntários que decidissem ficar, deixaram claro que nenhuma ajuda com acomodação ou alimentação seria providenciada e elas pediam um comprometimento mínimo de dois meses, que não parecia ser obrigatório, mas era o ideal. Fiquei pensativa enquanto ela falava e, ao final, saí da escola para uma caminhada solitária molhando os pés na beira da água. Aquela vozinha interior estava falando comigo e eu precisava de silêncio para escutá-la. Observei como eu me sentia agora. Depois tentei entender por que não estava satisfeita e o que me faltava.

Fui para o meu voluntariado em Koh Rong com a ambição de viver uma experiência mais local e conhecer o Camboja de verdade, que eram os propósitos do meu projeto e do que eu tinha ido fazer naqueles países. Eu não estava satisfeita porque eu não queria voluntariar apenas uma hora do meu dia em um lugar onde as crianças têm a chance de estar em contato direto com os turistas a todo momento. A ilha era incrível, mas ela não me colocava nos meus limites. Eu queria mais. Decidi então que seguiria meus instintos, mesmo que sem saber ao certo para onde ir. Eu deixaria a ilha rumo a Siem Riep, onde procuraria alguma escola em uma região afastada. Não ficaria em Koh Rong, mas levaria comigo todo o ensinamento e o exemplo do que as garotas estavam fazendo pelo desenvolvimento da ilha e da comunidade. ... Dessa forma, foram quase três horas de barco para retornar a Sihanouville e 12 horas de ônibus noturno por estradas precárias para sair do sul do país e ir em direção norte para chegar em Siem Reap, uma das principais cidades turísticas por ser a base para quem quer conhecer o Angkor Wat, um complexo de templos considerado um dos principais sítios arqueológicos do Sudeste Asiático e símbolo do país. A viagem ficou mais agradável com a companhia do livro que acabara de adquirir, “First they killed my father”, que em tradução literal em português seria “Primeiro, eles mataram meu pai”. Estava fascinada pela história real da menina Loung Ung, que, antes do Khmer Vermelho, vivia

uma vida privilegiada no Camboja e que, de repente, foi forçada a se separar de sua família e ser treinada como soldado no campo. E sob a perspectiva da personagem, eu comecei a compreender os horrores do genocídio cambojano, enquanto chacoalhava no ônibus em direção a Siem Reap. Durante o dia, Siem Reap é uma cidade tranquila, enquanto os turistas se dispersam para conhecer os inúmeros templos, museus, fazer compras e massagens. Mas, à noite, é uma cidade cheia de vida, onde tudo parece acontecer simultaneamente no aglomerado de turistas, crianças e tuk-tuks. E fica ainda mais intensa quando todos se reúnem na Pub Street, o ponto de referência no centrinho da cidade com diversas lojas, restaurantes, baladas e bares, famosos pela cerveja vendida a 50 centavos. Os cambojanos tinham uma abordagem insistente que era cansativa e vinha sempre acompanhada de preços inflacionados. Andava a todo momento dizendo “não”: não aos tuk-tuks, às massagens, aos passeios e às drogas. No entanto, o que mais me chamava a atenção era o número excessivo de crianças nas ruas: algumas vendendo rosas ou braceletes, outras simplesmente pedindo dinheiro. Crianças lindas e inteligentes. Com certeza, os vendedores mais persuasivos que eu já tinha visto na minha vida. Falavam inglês melhor do que eu, tinham piadinhas prontas, expressões engraçadas, passos de dança ensaiados e tudo o mais que atraísse os turistas e alguns dólares. A moeda oficial é o riel cambojano, mas, na prática, o dólar é largamente utilizado, inclusive em saques, e o riel serve como assistente, sendo ótimo para o troco. Por

exemplo, se alguma coisa custasse quatro dólares e eu pagasse com uma nota de cinco, eu receberia 4000 rieis cambojanos que são equivalentes ao meu troco de 1 dólar. Um tanto confuso, mas na prática funcionava. A língua do Camboja é o Khmer, que tinha pouco em comum com o tailandês. Mesmo não sendo uma língua tonal, eu encontrava dificuldade em aprender, me limitando a dar “oi” e agradecer. Ficava surpresa com o nível de inglês não somente das crianças, mas da população como um todo. Além do inglês, muitas vezes dominavam outras línguas também, como o francês, pelo fato do país ser uma ex-colônia francesa. Eu estava gostando da comida, apesar de sentir falta de uma gastronomia cambojana mais presente. As pessoas nascidas no Camboja também são chamadas de Khmer. Eu aguardava na recepção de mais um hostel barato o meu primeiro contato próximo com um Khmer, que contaria mais sobre o seu projeto de aulas de inglês para as crianças de um vilarejo. Quando ele apareceu na recepção, foi fácil distingui-lo: no lugar da perna direita, uma prótese de plástico. Esse era Moe, de 27 anos, que se sentou ao meu lado para contar sua história. “As plantações de arroz sempre foram o meu lugar favorito quando era criança. Gostava de ir lá com os meus irmãos. Meus pais sempre nos levaram para brincar e jamais imaginariam o que estava prestes a acontecer naquele dia. Eu tinha 10 anos e estava com meu irmão e minha irmã. Meus pais nos observavam quando a explosão repentina matou os meus irmãos. Eu tenho muita sorte de ter perdido apenas uma perna.”. – Contou ele, com um

inglês quase perfeito, uma das muitas tragédias causadas pelas minas terrestres. Ele me explicou que, devido ao preconceito das pessoas, ele não consegue um emprego na cidade, mesmo tendo um inglês muito bom, que, segundo ele, é fruto de seu estudo autodidata. Com as dificuldades que enfrentava, começou um projeto em seu vilarejo para acomodar voluntários e me convidou para que fosse até lá conhecer o lugar. No estilo “vida louca cambojano de ser”, subi na garupa da moto sem capacete para uma viagem de uma hora até o vilarejo. Moe dirigia devagar por causa da perna de plástico e a ausência do capacete nos permitiu conversar durante todo o trajeto. Ele respondeu às minhas inúmeras perguntas, agora focadas na vida local. Ele disse que as famílias ganham em torno de dois dólares ao dia, renda proveniente da pesca e da plantação de arroz. Levam uma vida muito simples, com uma dieta a base dos próprios produtos que produzem e confessou que a maioria das pessoas bebem bastante porque conseguem produzir um vinho de arroz caseiro extremamente barato. Segundo ele, essa era a realidade não somente do vilarejo, mas de praticamente todas as famílias que vivem na zona rural. Saímos da estrada principal e entramos em uma rua de terra. Aos poucos, algumas casas foram aparecendo. Elas eram elevadas com pedaços de madeira, evitando que a água entrasse nas casas na estação das chuvas, necessitando de uma escada improvisada para entrar. Paramos em frente à casa de Moe e de sua família, que seria a minha hospedagem.

Fomos logo entrando para conhecê-la. Havia somente um cômodo, com um retângulo separado por cortinas, que, por coincidência, seria meu quarto. Não havia muito mais do que colchonetes no chão, onde dormiam. Descemos a escada e agora estávamos debaixo da casa, que era elevada. A mãe de Moe tecia uma linha e sorriu quando me viu. Puxei assunto, mas só recebi um sorriso em troca. Ela não falava inglês, assim como todas as pessoas que encontrei. Moe me deixou sentada na sombra enquanto ia avisar as crianças que hoje elas teriam aula. Não podia deixar de observar as condições precárias. Crianças brincavam em meio às galinhas, gatos e cachorros. Todos tinham acesso livre à casa. Quando Moe retornou, me avisando de que a aula começaria em duas horas, a sua mãe tratou de servir o almoço. Finalmente eu comi uma comida extremamente deliciosa, que não tinha nada a ver com o que vinha comendo nos restaurantes. Seguimos para a escola, que era uma simples casa de um só cômodo, construída de alvenaria, com três fileiras de mesas de cadeiras duplas e um quadro branco à frente. Estava surpresa pela quantidade de crianças que chegavam mesmo com o aviso de última hora. Pelo que via, tínhamos em torno de 40 crianças na sala que traziam na mão um caderno, lápis e caneta. Estavam ávidos pelo que eu tinha para ensinar e assim se seguiu quase duas horas de aula. Retornamos à casa de Moe e aproveitei a conversa para tirar algumas dúvidas. Ele me disse que faziam mais de seis meses que a escola não recebia nenhum voluntário e isso me preocupou. Um período longo sem voluntários é

prejudicial para o aprendizado das crianças e sem consistência. Nada do que eu ensinasse seria benéfico. No site no qual encontrei as informações anteriormente, nada constava sobre valores a serem pagos. Mas, assim que retornamos da escola, ele pegou uma folha e começou a me explicar como funcionaria. Seria cobrado cinco dólares ao dia pela acomodação e mais seis dólares pelas refeições. Corridas de moto até a cidade sairiam por 10 dólares. Reagi de forma negativa as novas informações, porque faltava transparência. Não estava esperando nada disso. Os valores que ele cobrava eram os mesmos que eu gastava na cidade. Não havia nada por perto, ninguém falava inglês, havia muito tempo ocioso e nenhum voluntário para dividir essa experiência. Faltava dedicação e achava estranha a ausência de voluntários por um período tão longo. Alguma coisa parecia errada. O Camboja é um dos países com o maior número de ONGs per capita no mundo e muitas delas se aproveitam da situação para gerar lucro para o próprio bolso. Não sei se era o caso, mas a falta de comprometimento era nítida. Não me sentia ficando ali por muito mais tempo, mas me culpava por saber que eles precisavam de ajuda. O Camboja não estava tornando essa busca fácil, então comecei a ser dura também. Precisava fazer escolhas conscientes. São tantas as pessoas vivendo na miséria que, infelizmente, eu não poderia abraçar todas as causas. Eu queria uma causa que realmente tocasse em mim e essa ainda não era a escolhida, mas com certeza já era a experiência mais marcante que vivi em terras cambojanas. Pelo menos, até agora.

35. A minha conexão com a dor e a alegria do povo cambojano A Guerra Civil no Camboja teve início em 1967 e terminou em 1975, marcando o início do regime sangrento do Khmer Vermelho liderado por Pol Pot, o responsável pelo genocídio de mais de 2 milhões de cambojanos, valor correspondente a quase 1/3 da população na época. O ditador queria tornar o Camboja um país agrícola e comunista, acreditando que a sociedade urbana estava contaminada pelo capitalismo e que toda forma de inteligência deveria ser exterminada. E foi assim que todos que possuíam algum nível de instrução e educação foram mortos, incluindo professores, advogados, engenheiros, estrangeiros, médicos, pessoas ligadas ao antigo governo, artistas, monges, jornalistas e até mesmo pessoas que sabiam outra língua ou que usavam óculos. Seguiu-se então um êxodo urbano. Pol Pot queria que as crianças fossem a base do novo país. Destruiu livros e escolas para garantir que as crianças fossem doutrinadas nos princípios comunistas e elas se tornaram os novos soldados, aprendendo a manipular armas, matar pessoas e servir ao governo. Aqueles que sobreviveram trabalhavam no campo, sob regras restritas, por mais de 12 horas diárias e a comida era fracionada de forma desumana, o que foi a causa de muitas

mortes, juntamente com a proliferação de doenças, visto que hospitais tinham sido fechados e médicos mortos. O regime acabou em 1979, porém, as sequelas deixadas eram severas. Consequências que refletiriam ainda por muitas gerações. Filhos do caos, crianças que teriam que aprender a sobreviver nesse cenário de guerra. E, dentre essas vidas, estava Rady. Rady nasceu em um pequeno vilarejo próximo a Siem Reap no ano de 1981. Seus pais conseguiram sobreviver ao massacre porque trabalhavam para o exército e, quando Rady fez 6 anos, seus pais o abandonaram, forçados a continuar servindo o Khmer Vermelho, que, apesar de não estar mais no poder, ainda era muito forte. Rady e o seu irmão um ano mais velho foram obrigados a trabalhar no vilarejo e passaram a morar no meio do mato, dormindo embaixo de tendas ou junto com as vacas, para se aquecer do frio. Os dois juntos aprenderam a cuidar de si mesmos e um do outro, já que muitos dos vizinhos pertenciam ao Khmer Vermelho e eram horrendamente cruéis. Rady chegou a comer fezes dessas pessoas, simplesmente por medo das ameaças de que seria jogado no lago com centenas de sanguessugas. Rady tinha nove anos quando ouviu boatos de que sua mãe havia retornado e estaria vivendo em outro vilarejo. Ele e seu irmão não tinham nada a perder e caminharam por dois dias os 60 quilômetros do trajeto. Chegando lá não encontraram a mãe, mas a avó. Por meio dela, souberam que sua mãe já tinha um outro homem e que o pai havia se tornado um alcoólatra.

No novo vilarejo, as crianças iam para a escola e Rady resolveu segui-las. A professora impediu que ele entrasse na sala, mas um buraco na parede de madeira permitia que Rady assistisse as aulas do lado de fora. Essa situação durou um mês, até que um dos diretores o liberasse para fazer parte da turma. Seu irmão não estudava e passava o dia todo caminhando pelos arrozais para coletar o arroz que ficava no chão, garantindo assim que não morreriam de fome. Pequeno e ágil, Rady descobriu ser muito bom em escalar coqueiros. E essa se tornou a maneira de conseguir alguns trocados para pagar suas despesas e também a escola. A sua vida mudaria novamente aos 15 anos, com a morte da sua avó e o fim do ensino fundamental. Rady teria que fazer o Ensino Médio em outra escola, mas, novamente, não tinha uma casa para morar. Seu irmão conseguiu encontrar a mãe e o padrasto e decidiu ficar com eles. Rady também teria ficado se não fosse o padrinho, que, influenciado pela mentalidade do Khmer Vermelho, não o permitia ir à escola. Ele tem até hoje a cicatriz dessa proibição na canela, quando seu padrinho quebrou a sua perna com um pedaço de bambu no dia em que Rady o enfrentou e saiu andando em direção à escola. Ir para a escola era o seu único desejo. Gostava dos colegas, dos conselhos dos professores e do amor que recebia. Tinha o sonho de se tornar um político: queria melhorar o país. E foi com seus desejos e ambições que Rady foi morar com sua tia. Ele sentia falta da avó, já que a tia o fazia alimentar 40 porcos antes de ir para a escola. Se

terminasse, poderia comer, caso contrário ia para a escola de estômago vazio. Enquanto caminhava os sete quilômetros até a escola, Rady chegou próximo de morrer de fome. A sorte de Rady mudou quando encontrou um dos poucos objetos que sobreviveram à crueldade do Khmer Vermelho: um livro de inglês. Passou a estudar sozinho o livro, aprendeu o novo alfabeto, conseguiu soletrar, escrever e falar algumas palavras. Ninguém mais detinha tal conhecimento. Aos 17 anos, passou a dar aulas de inglês. A escola lhe dava um pouco de dinheiro e os colegas, comida. Depois de dois anos morando com sua tia, pôde finalmente morar sozinho, estudar e se alimentar. Com tanta mudança em sua vida, seus sonhos também mudaram. Já não queria ser político, consciente de que a corrupção não o deixaria fazer muito pelo seu país. Sonhava em estudar em uma universidade e trabalhar como guia de turismo na cidade. No ano de 2002, Rady fez 21 anos e morava na cidade de Siem Reap, estudando turismo na universidade local e trabalhando como motorista de tuk-tuk para os turistas. A sua fama como um dos melhores motoristas da cidade fez com que cursasse somente dois dos quatro anos do seu curso e passasse o dia inteiro atendendo turistas, falando inglês e guardando dinheiro. Reencontrou seu pai, que, assim como a maioria das pessoas, já tinha uma nova esposa e uma nova vida. Ele e muitas outras pessoas se forçaram a reiniciar, tentando deixar o passado doloroso para trás.

Enquanto dirigia pelas ruas da cidade, vestindo uma roupa social em seu tuk-tuk, falando inglês e ganhando em dólares, Rady via as crianças nas ruas sem escola ou perspectivas. Isso o remetia ao seu passado não muito distante e que ele estava disposto a não esquecer. Ele queria trazer esperança ao seu povo. Um novo sonho nascia em seu coração. Hoje, Rady é diretor da CESHE, que quer dizer Escola de Inglês de Ensino Superior do Camboja. A escola foi estabelecida em 2010, quando Rady era o único professor e dava aulas no meio de um terreno sem estrutura alguma. Está localizada num vilarejo a menos de 10 km do centro de Siem Reap e atende quase 300 alunos, com idade entre 6 e 20 anos, que têm acesso a aulas gratuitas de inglês todos os dias. E assim eu encontrei não somente o meu voluntariado, mas também a minha conexão com a dor e a alegria do povo cambojano.

36. O que eu estava fazendo ali? Assim como na Tailândia, eu era a primeira voluntária brasileira que o projeto recebia. Eu e os demais voluntários do mundo inteiro dormíamos no segundo andar da casa de Rady. É um cômodo único, com colchonetes espalhados pelo chão e redes contra mosquitos pendendo sobre eles, redes que são amarradas às pilastras de concreto que sustentam a estrutura da casa. Ao lado de cada colchonete, um mochilão, livros e um ventilador, indicando que alguém havia largado o conforto do seu lar. Em cada pilastra, frases escritas pelos voluntários que já passaram por ali. No primeiro andar, os cômodos onde Rady mora com sua esposa e seu filho. Havia duas portas na lateral da casa que eram de uso comunitário. Comparando com o modelo ocidental, uma porta seria o lavabo e a outra o chuveiro, mas para explicar o modelo cambojano, preciso ser mais específica. O lavabo era todo de azulejo laranja escuro e muito pequeno. Metade dele era ocupado por aquela mesma caixa de concreto cheia de água que tinha no meu banheiro na Tailândia. Entre a caixa e a parede sobrava um vão para um buraco no chão onde parecia haver uma pia, mas era a privada. Pelo menos agora, eu já sabia como dar a descarga manual.

Na borda da caixa de concreto, estava a tigela de plástico a ser utilizada para tal função. Na outra porta que seria o chuveiro, uma versão simplificada do lavabo. Nada de azulejo, somente uma grande caixa de concreto cheia de água, com a tigela na borda. Havia também um banco bem baixinho que me deixava curiosa. Por via das dúvidas, nunca usei. Na varanda, em frente à casa, uma pequena mesa que era o ponto de encontro diário dos voluntários para as refeições servidas pela esposa de Rady, que, por sinal, cozinhava muito bem. Todos os dias, às 7 horas, era ali que nos encontrávamos para iniciar o dia e, juntos, pegarmos o tuk-tuk que nos levaria até a escola, que ficava a menos de cinco minutos dali. Havia uma taxa semanal de 60 dólares para cobrir os gastos com acomodação, manutenção da casa, água potável, três refeições ao dia e o transporte diário de ida e volta da escola. O tuk-tuk nos deixava na beira da estrada e seguíamos a pé uns 800 metros para dentro dos arrozais, passando pelas casas de alguns vizinhos até chegar na escola. A estrutura principal era um grande galpão construído de madeira, bambu e palha dividido em três classes, cada uma com os alunos de acordo com o nível de inglês: A, B e C. As letras foram pintadas nas paredes por voluntários e alunos, juntamente com nuvens, sol, corações e elefantes. Ao lado, existe uma biblioteca que serve também como base para os voluntários e como sala de aula, quando preciso. A estrutura mais recente é uma sala de informática, ainda em construção. A escola sobrevive de doações e teve

cada parte da sua estrutura construída por meio da generosidade de diversas pessoas de diversas partes do mundo inteiro. Muitos deles foram voluntários que passaram por ali e deixaram mais do que conhecimento. O projeto é muito bem estruturado e, por esse motivo, consegue manter uma rotação constante de voluntários, garantindo que os alunos sempre tenham professores. As aulas acontecem de segunda-feira a sexta-feira das 8h às 10h, das 14h às 16h e das 17h às 18h. Na prática, o sistema de educação pública no Camboja é praticamente inexistente, uma vez que os alunos precisam pagar taxas e não existe transporte público para levá-los até as escolas. As famílias lutam para alimentar suas crianças e pagar por estudo é um luxo ao qual poucos têm acesso. Para a maioria das crianças, a CESHE é a única fonte de educação que possuem. ... Foi uma semana intensa de voluntariado. As crianças tailandesas haviam me deixado mal-acostumada e finalmente eu estava pagando por todos os anos que eu infernizei a vida dos professores na escola. As aulas eram divididas em duas partes: na primeira, conteúdo e na segunda, jogos. Era a maneira que encontrávamos de lidar com tanta energia. Ensinava as partes do corpo, sentimentos, cores e palavras úteis para o turismo. Mas o que eles mais gostavam era dos jogos. Dividíamos a turma em dois grupos e a gritaria se iniciava em forma de competição saudável.

Eles tinham malícia: pegavam dicionário escondido para ajudar o seu time, falavam palavras em khmer e fingiam não entender quando brigávamos. Apesar do meu orçamento ter ficado muito apertado, eu decidi passar o final de semana na cidade, porque precisava atualizar a minha vida online. Encontrei um café com sofás confortáveis e o melhor do menu ocidental: Bolo, chocolate gelado e wi-fi. Já fazia três meses que estava na estrada e começava a sentir falta das regalias mundanas. Era estranho olhar as redes sociais. Era como se eu já tivesse visto tudo aquilo antes. As mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas, só que com roupas diferentes, apesar da maioria ser da mesma marca. Corpos, cabelos, pratos gourmet, praia e filtros. Aquilo nunca tinha sido motivo de questionamento para mim, mas eu olhava ao meu redor e não entendia se estávamos no mesmo mundo. Era confuso. E acredito que mais confuso ainda para aqueles que eu havia deixado para trás e acompanhavam o que eu estava fazendo naqueles países distantes. Imaginei o que pensavam de mim. Onde essa garota está? Por quê? Já não está na hora dela voltar para o mundo real? Nesse momento, foquei em uma foto de uma menina em uma piscina segurando uma taça de champagne e na legenda uma frase de Clarice Lispector. O questionamento veio automático e inevitável. Onde essa garota está? Por quê? Já não está na hora dela voltar para o mundo real? Tudo nessa vida é uma questão de ponto de vista. Eu gostava de andar pelas ruas de Siem Reap à noite para observar. Entendi um pouco mais da história daquele país tão sofrido e passei a ver aquelas crianças na rua com

outros olhos. Me lembrava dos trechos da história de Loung Ung que estava lendo. As crianças eram as maiores vítimas da história do Camboja, elas deveriam estar na escola e aqueles inofensivos dólares que os turistas lhes davam eram a fonte que alimentava um ciclo vicioso. Enquanto analisava as crianças, um grupo delas se aproximou e como reflexo eu rapidamente puxei minha bolsa para mais perto de mim. Aquele movimento partiu o meu coração. Eu não queria tratá-las como uma ameaça, mas, infelizmente, muitas vezes elas eram. Muitas foram ensinadas por adultos a furtar os turistas enquanto rodeiam eles de histórias e brincadeiras. Já tinha passado da meia-noite. Eu voltava para o hotel quando fui abordada. A cena era forte. Uma mulher muito jovem segurava um bebê envolvido em um pano e em uma das mãos uma mamadeira vazia, duas crianças na faixa dos 4 aos 5 anos a acompanhavam. A criança menor dizia que não queria dinheiro, apenas leite para matar sua fome. A mãe concordou mostrando o pequeno em seu colo. “Não queremos esmolas, apenas leite. Estamos famintos.”. – Repetia aquela criança com roupas sujas e pés descalços à minha frente. Me comovi na mesma hora. Estávamos na porta de uma conveniência. Rapidamente, a criança me atraiu para dentro da loja e foi direto ao produto que parecia já ter sido escolhido de antemão, uma grande lata de leite em pó que indicava o valor de 20 dólares. Eu não tinha dinheiro para tanto. Perguntei se não poderia ser algo menor. Ela insistiu, mas não com a urgência de quem tem fome, era uma insistência um tanto

arrogante. Reagi com estranheza. Ela insistia que eu comprasse enquanto a suposta mãe me lançava um olhar ameaçador do lado de fora da loja. Alguma coisa estava errada e desisti de ajudar, alegando que não tinha dinheiro. E, na sequência, a criança me deixou sem reação com a sua resposta. “Fuck you.”. – Ela disse isso olhando nos meus olhos e saiu bufando da loja. Uma criança de cinco anos tinha acabado de mandar que eu me fodesse. Estava atônita. “É um golpe” – Disse um jovem turista que comprava cigarros baratos na loja. “Como assim um golpe?”. – Eu definitivamente não estava entendendo nada. “Você não leu a Lonely Planet antes de vir para o Camboja?”. – Perguntou com ar de deboche e me indicou para sair da loja, quando me explicou o que havia acontecido. “A criança tem um acordo com o dono da loja. Eles atraem turistas usando o argumento de que não querem dinheiro, somente leite para matar a fome. Para os turistas, 20 dólares para ajudar uma criança faminta parece razoável, então compram o leite para a criança ou para a mãe. O que acontece depois é que a criança retorna o produto superfaturado e divide o dinheiro com o dono do estabelecimento. Os dois faturam e o turista vai embora com o sentimento de que salvou uma vida, quando, na verdade, está ajudando a manter esse ciclo que mantém as crianças longe da escola. Muitas mães cambojanas tem filhos para que eles sejam fonte de renda da família,

lembrando que nem eles mesmos tiveram acesso à educação e não entendem a importância da escola.” “Estou pasma com isso tudo. Como você sabe disso?”. – Indaguei. “Eu estou trabalhando em uma ONG na cidade e esse golpe é famoso. Se você procurar na internet, vai encontrar bastante informação a respeito. Esse é mais um dos muitos problemas que esse país enfrenta.”. O rapaz se despediu e seguiu sua vida fumando seu cigarro rumo à Pub Street. Segui meu caminho em direção ao hotel, contudo, eu não conseguia esquecer a imagem daquela criança de cinco anos mandando eu me foder. Sentia uma angústia no peito. Não conseguia esquecer do ódio estampado em seus olhos. Ele era apenas uma criança. Entrei no quarto de hotel que tinha me dado o luxo de ficar por uma noite, já que a presença de ratos no quarto dos voluntários estava tirando minhas noites de sono. Sentei na cama e comecei a chorar, pois não conseguia tirar a imagem daquela criança da minha cabeça. Eu também sentia ódio. Sentia ódio pela miséria que eu via e por me sentir incapaz de fazer alguma coisa. Sentia ódio de mim mesma cada vez que eu olhava com desconfiança para uma criança. Sentia ódio dos tuk-tuks que sempre cobravam o triplo do valor e de sempre ter que entrar em longas discussões para que me cobrassem um valor justo. Sentia ódio do Pol Pot. Sentia ódio do padrasto do Rady quando me lembrava da cicatriz em sua canela. Sentia ódio pelas crianças estarem nas ruas e não na escola. Eu derramava em lágrimas a dor que me consumia por dentro.

A minha tristeza e descrença no ser humano cresciam, mesmo que eu não quisesse que isso acontecesse. Não tinha esquecido das duas vezes que tinha sido furtada. Segui misturando lembranças e sentimentos. Olhei no espelho e analisei o que via. Estava com as pálpebras inchadas e o rosto vermelho. Meu rosto estava redondo e era visível que tinha ganhado alguns quilos. Vestia calças largas e as mesmas blusas de sempre. Estava de chinelos e os pés sujos. Meu cabelo estava oleoso do calor e o mantinha sempre preso, devido ao número de lavagens reduzidas pelo fato de não haver chuveiro. Continuei olhando fixamente para minha imagem refletida e o aperto dentro de mim ficava cada vez maior e eu chorava ainda mais. O que eu estava fazendo ali? Como eu poderia ajudar aquelas pessoas? Eu queria ser útil, mas me sentia impotente. Uma realidade que até pouco tempo era tão distante havia tomado conta de mim. O meu mundo de fantasias estava se evaporando e eu finalmente acordava para um mundo de verdade. Sentia a urgência de fazer alguma coisa, porém, não tinha ninguém para me dizer como fazer. Onde estariam todas aquelas pessoas que passaram a vida inteira me dizendo o que fazer? Cadê eles nessas horas? Como se eles soubessem de alguma coisa. Agora, era eu comigo mesma. Tudo tem o seu tempo para acontecer, mas a resposta sempre vem…

37. "Eu sou uma criança diferente das outras" Nada como uma noite de sono em uma cama com lençóis e travesseiros, seguido de uma boa chuveirada. Tomei um bom café da manhã com pão francês e ovos mexidos. Precisava organizar a minha vida que, desde o assalto, estava de cabeça pra baixo. Deixei minhas roupas sujas na lavanderia, comprei uma carteira nova, um vestido longo, repelente e uma toalha de banho. Me tornei consciente de um dos meus maiores problemas: eu não podia trazer a dor das outras pessoas para mim. Eu jamais conseguiria abraçar o mundo e teria que aprender a separar a dor do outro da minha. Passei a tentar entender aquelas pessoas. É difícil de explicar, mas eles tinham uma razão para fazer o que faziam. Não era uma justificativa, contudo, eles tinham motivações mais fortes que eles mesmos. Tentei parar de julgá-los por tentar me enganar ou por me cobrar a mais. Eu não podia mudar a atitude das outras pessoas comigo, mas poderia mudar a minha em relação às pessoas. Quando o tuk-tuk tentava me cobrar a mais eu mostrava uma nota de um dólar e perguntava se ele queria fazer a corrida ou não. Geralmente eles aceitavam, porque esse era o preço regular. As crianças continuariam nas ruas pedindo dinheiro, mas comecei a ficar ciente de que minha parte eu

já estava fazendo dando aulas como voluntária na escola. Parecia pouco, mas se cada pessoa fizesse o mesmo pouco, todas as crianças do Camboja estariam na escola. Em uma dessas minhas caminhadas perdidas pela cidade, eu conheci Linda, uma menina de 12 anos que me abordou vendendo braceletes. Ela tinha uma maturidade diferente das outras crianças, como se estivesse consciente do porquê estava ali. Além do mais, era extremamente inteligente e educada. Não me deixei entregar a seus encantos de primeira, sabendo que havia a possibilidade de tudo aquilo ser um enorme teatro que só acabaria bem se eu lhe desse alguns dólares. Elogiei os braceletes, que eram muito bonitos. Todos os mochileiros tinham o pulso repleto deles e eu mesma já tinha dois que adquiri na Tailândia. Fazia parte do ritual de encontro dos viajantes contar as histórias de cada bracelete e dos países por onde passou. Resolvi aprofundar a nossa conversa. “Você quem faz os braceletes?”. – Perguntei, apontando para a cesta de plástico que ela apoiava em sua cintura. “Não, a minha mãe quem faz e eu os vendo, já que ela não fala inglês.”. – Ela justificou. “E onde está a sua mãe? Ela te acompanha durante as vendas?”. – Eu tentava entender melhor a realidade de Linda. “Não, ela tem uma loja de souvenires e trabalha lá. Às vezes, eu ajudo ela na loja, mas geralmente eu saio para vender os braceletes, porque consigo vender muitos.” “Me conta uma coisa, Linda. Você vai pra escola?”.

“Sim. Eu tenho aula em duas escolas diferentes. Trabalho na loja da minha mãe e vendo os braceletes para os turistas para poder estudar.”. Fiquei surpresa com a resposta, mas ainda tinha dúvidas se aquela não era uma conversa ensaiada. “E as outras crianças? Elas também trabalham e vão à escola?”. – Insisti no assunto. “A maioria, não. Eu sou uma criança diferente das outras” – Ela falou, em tom de compaixão. “Por que você é diferente, Linda?” “Eu sou diferente porque tenho família. A maioria das crianças não tem tempo para pensar nelas mesmas. Eu posso pensar nos meus sonhos e estudar.” “E qual é o seu sonho?”. “Eu quero ser uma mulher de negócios. Ter um hotel talvez. Quero conectar pessoas, vê-las felizes.” – Ela disse, com um sorriso em seu rosto tão jovem. “Quanto custa o seu bracelete?”. – Ela me ganhou. “Para você, eu faço bem barato. Me diz de qual você gosta que acertamos um valor. O vermelho vai ficar bonito em você, ou esse aqui escrito “Camboja”, já que você tem um escrito “Tailândia”. Escolhe quantos você quiser.”. – Ela dizia, demonstrando a sua habilidade com vendas que não tinha aprendido na escola, mas nas ruas da cidade. Histórias que somente as ruas de países distantes poderiam proporcionar. Eu falo muito e acabei começando a escutar mais para compreender. Compreender mais o mundo, a mim e ao mesmo tempo aceitar que eu compreenderia sempre o mínimo, pois a força maior viria

simplesmente da minha fé na vida e não na compreensão e definição. Quanto mais eu conhecia países, pessoas e religiões, mais eu percebia que sabia muito pouco e maior era o meu desejo de conhecer mais. Eu não me sentia intelectualmente mais elevada, até mesmo porque eu nunca fui muito de teorias, política e história. O meu conhecimento não era intelectual, complexo, com números ou palavras difíceis. Ele era simples. Ele acontecia dentro de mim. Estamos acostumados à nossa cultura, achamos que a nossa verdade é universal e, quando pensamos em uma cama, em uma escola, em um banho, todos nós temos uma imagem muito similar em nossas mentes. Porque vivemos isso, a televisão nos mostra isso, nos ensinaram que é assim e ponto final. Não fomos ensinados a questionar. Aí, você viaja para um país diferente e descobre que nem todo banho é de chuveiro, nem toda escola tem livros, nem toda cama tem lençol. Quando isso acontece você para de achar que para ser feliz precisa de uma cama king-size, que o seu lençol precisa ter a maciez do algodão egípcio ou que os livros usados não prestam. E começa a perceber que o importante é a tranquilidade do seu sono, a maciez das suas palavras e a qualidade da sua leitura. Quanto mais eu conhecia o Camboja, mais ele me surpreendia. Esqueci do garotinho da noite anterior e substituí aquela lembrança dolorosa pelo sorriso de Linda.

38. Vamos construir uma casa Assim que acordei na segunda-feira, desci para o café-damanhã sempre na expectativa do que seria. Pão com ovo, sopa ou arroz frito? Eu e os voluntários sempre torcíamos para ser pão. Sentada na mesa ao lado de Celine, a voluntária da França que era minha amiga mais próxima, reparei que Don, o filho de Rady de 2 anos, brincava com mais uma criança no terreno da casa. Tinha chovido muito naquela noite e muitas poças de água se formaram. Os dois, pelados, pulavam incontáveis vezes de bunda, na poça de água cheia de lama, e riam sem parar. Estavam sujos dos pés à cabeça na mesma proporção que pareciam felizes. Celine e eu assistíamos juntas aquela cena hilária e sincera enquanto os outros voluntários se juntavam a nós. Rady chegou para o café-da-manhã com uma criança de 7 anos e pediu para que o levássemos junto conosco para a escola todos os dias. O pequeno sorria e parecia feliz com o anúncio de Rady. Fiquei curiosa com a presença das duas crianças e perguntei quem eram. “Eu os adotei. Uma mulher veio até a nossa casa chorando e pediu se eu não poderia alimentar e cuidar dos seus filhos. Ela não conseguia mais alimentá-los e não queria que passassem fome. Eu aceitei ficar com eles por tempo indeterminado. O maior irá para a escola com vocês

e o pequeno pode ficar brincando com o Don. Ele tem apenas três anos e pode esperar para começar.”. Eu não sabia o quanto os outros voluntários sabiam da história de Rady, mas para mim, aquele gesto fazia todo o sentido. “E onde está a mãe das crianças agora?”. – Eu estava intrigada com a situação. “Ela deve estar morando nas ruas, tentando sobreviver de alguma forma. Sozinha será mais fácil. Mas me disse que passaria aqui em casa ou na escola durante a semana.”. – Dizia Rady, com naturalidade. As crianças acabaram ficando muito próximas dos voluntários. Sem pai e sem mãe, acabávamos sendo as pessoas que davam atenção a eles e ajudávamos com pequenas tarefas cotidianas. O maior era um pestinha e dava trabalho cuidar dele todos os dias na escola. O pequeno era o nosso mascote, sempre fazendo alguma coisa para alegrar o nosso dia. Ele e Don se tornaram bons amigos e viviam pelados aprontando alguma coisa pelos arredores da casa. Os nossos dias eram cheios: saíamos cedo e passávamos a manhã toda dando aulas. Voltávamos para o almoço em casa e depois retornávamos para mais uma jornada até o fim do dia. Algumas vezes eu passava mal, o calor baixava a minha pressão e me sentia fraca e tonta, precisando sentar e colocar um gelo na nuca para melhorar. As chuvas começaram a ficar mais constantes, o que era um alívio para mim, porque a brisa fresca me fazia sentir mais disposta. No entanto, o caminho até a escola ficava todo enlameado, ao ponto de não termos como andar o

pequeno trecho até a escola. Íamos de moto por uma pequena estrada, que nos deixava ao lado da escola, até o dia em que Celine teve um acidente e caiu da moto, queimando a perna no cano de escape. O nosso esforço só não era maior do que o das crianças: muitos andavam quilômetros em meio ao barro e chegavam cheios de lama para a aula. Cancelar a aula era a nossa última alternativa. Voltávamos no final do dia sempre pensando no jantar. Enquanto no café-da-manhã torcíamos pelo pão, no almoço e no jantar comíamos absolutamente tudo. Eu, particularmente, adorava o amok que a esposa de Rady fazia. Amok é um prato típico e sempre mencionado como um dos preferidos da culinária khmer. São inúmeros os ingredientes que adicionam todo o sabor ao prato, mas, basicamente, ele é feito de peixe cozido, com leite de coco e curry, geralmente servido em uma folha de bananeira. De vez em quando, eu me arriscava a ajudar na cozinha para aprender um pouco mais. E não ficava mais surpresa quando via um pássaro ou um sapo sendo preparado para Rady, resquício da sua infância sobrevivendo na floresta. Um dia desses, eu aguardava o jantar sentada na calçada de casa, observando as crianças brincarem. Celine sentou-se ao meu lado para me fazer companhia. Compartilhei com ela meus pensamentos. “Eu fico olhando essas crianças e me lembro de um menininho que conheci no meu voluntariado na Tailândia, o Tea. Juntei um dinheiro para ajudá-lo a fazer uma cirurgia, mas a sua mãe desistiu. Eu ainda tenho esse dinheiro comigo, não é muito, mas queria ajudar alguém que

precisasse. Talvez pudesse ajudar essas crianças, mas não sei exatamente como” – Desabafei. “Por que você não fala com o Rady? Talvez ele saiba a melhor maneira de ajudá-los. Seria incrível se você pudesse fazer alguma coisa por eles.”. Realmente, a melhor coisa a fazer seria conversar com Rady e ver o que ele tinha a me dizer. No outro dia, aguardei o momento oportuno e chamei-o para conversarmos a sós, na escola. “Rady, eu tenho muita vontade de ajudar alguém que precise. Mas não queria que fosse um simples assistencialismo. Queria que fosse algo que pudesse impactar de verdade a vida das pessoas. Eu tenho um pouco de dinheiro comigo que amigos doaram para que eu ajudasse alguém na minha viagem.”. “Por que você não ajuda aquela mulher?”. “Qual mulher, Rady?” “A mãe das crianças que não tem como cuidar deles. Você pode reunir essa família novamente”. “Mas como eu vou fazer isso?”. “Vamos construir uma casa pra eles.”. “Não, Rady, eu não tenho tanto dinheiro assim. Eu tenho apenas 400 dólares.”. “Ótimo, é suficiente. Podemos construir uma casa simples de bambu, aqui, no terreno da escola, e ela também vai ser uma lojinha. Ela pode vender sucos, lanches e refrigerantes para os alunos e para os voluntários. Os filhos dela frequentarão a escola todos os dias e ela terá uma fonte de renda. Ela pode me ajudar também na limpeza da

escola. Você vai mudar a vida dessa família.”. – As palavras de Rady soavam como mágica para mim. “Que ótima ideia, Rady! Eu nunca imaginei que com tão pouco seria possível construir uma casa! Mas precisamos ter uma conversa com ela. Precisamos saber se ela quer ser ajudada”. “Com certeza. Eu vou tentar ligar pra ela e pedir que venha até a escola.”. No final do dia, a mulher apareceu. Eu, ela e Rady nos sentamos em cadeiras de plástico em uma sombra na escola para conversar. Eu queria saber mais sobre sua história e fazia muitas perguntas, enquanto Rady traduzia as perguntas e respostas. Ela se chama Li, tem 30 anos e foi abandonada por seus pais ainda criança, sendo criada por vizinhos até encontrar o seu marido, com quem teve dois filhos. Devido à dificuldade de conseguir emprego no Camboja, o marido dela passou ilegalmente a fronteira para a Tailândia para cortar árvores. No ano passado, ele foi morto pela polícia tailandesa. Desde então, ela anda pelas ruas, tentando encontrar uma maneira de alimentar seus filhos. Ela não consegue emprego, pois não fala inglês, tem um problema em uma das pernas que limita os seus movimentos e, por não se enquadrar nos padrões de beleza daqui, fica difícil de conseguir algum emprego como atendente ou garçonete de estabelecimentos locais. Li chegou ao ponto de ficar na porta de restaurantes esperando os clientes terminarem suas refeições para que ela pudesse dar os restos às crianças.

Ela chorou enquanto me contava a sua história. Mas chorou mais ainda quando falamos da possibilidade de construirmos uma casa para ela. Explicamos que, em troca, Li teria que ajudar na limpeza e manutenção da escola e que a lojinha seria a sua fonte de renda. Ela dizia não saber como agradecer o que estávamos fazendo por sua família. Rady permitiu que ela ficasse em sua casa com as crianças até que o novo lar ficasse pronto. Além de barato, era muito rápido construir uma casa no Camboja: em duas ou três semanas estaria pronta. Fizemos alguns cálculos e chegamos à conclusão de que precisaríamos de mais 300 dólares para fazer a casa com chão de cimento, que ficaria mais resistente e confortável. Eu fiz um pedido no meu Facebook e consegui arrecadar mais 400 dólares. Com isso, foi possível fazer o chão de cimento, comprar todos os utensílios para a cozinha e comprar todos os produtos para que Li já começasse a lucrar. Aos poucos, a casa ia tomando forma. No dia em que a primeira leva de material chegou, todos os voluntários e as crianças nos ajudaram a carregar os tijolos e a areia. Com esse material, seria construída a base da casa, feita de tijolos e cimento. Para a minha surpresa, o telhado é erguido antes das paredes, sendo sustentado por fortes pedaços de madeira. As paredes eram uma obra de arte a parte, um trabalho manual delicado resultado do entrelaçamento perfeito de folhas de palmeira e pedaços de bambu. Enquanto a casa era construída, eu tirava fotos e mantinha as pessoas no Brasil atualizadas das novidades. Com a sua bondade, eles

eram os responsáveis pelo que estava acontecendo ali. Eu era somente um meio de comunicação entre meu país e o Camboja. Um dia desses, quando cheguei da escola, vi que Li estava dando banho nas crianças, que estavam peladinhas no terreno de chão batido, do lado de fora da casa, enquanto a mãe os esfregava. Era visível a alegria dela de estar finalmente junto aos seus filhos e ainda maior a minha alegria por poder fazer parte disso.

39. O plano é não ter plano Enquanto a casa estava sendo construída, eu fiz uma breve viagem a Bangkok para sair do Camboja antes que o meu visto expirasse. Assim, daria uma nova entrada quando retornasse e teria mais um mês de visto. Também encontraria com Lucas, um amigo brasileiro que vinha da Austrália. Ele me fez o favor de comprar um iPhone novo, o que me salvaria de futuras roubadas e me traria de volta as postagens na página. Teria um celular novo de graça, já que o seguro havia reembolsado todas as minhas perdas. Estar em Bangkok era como estar em casa. Nessa viagem, conheci muitas pessoas que fizeram dessa simples parada em Bangkok uma incrível jornada. Jackie, uma tailandesa que cresceu na Nova Zelândia foi uma delas. A família kiwi a adotou ainda pequena e, depois de anos sem ver a sua família de sangue, agora retornava para ter um contato maior com as suas origens. Eu passava a maior parte dos meus dias com ela, enquanto aguardava Lucas chegar de viagem para voltarmos ao Camboja juntos. O Gustavo, o jogador de futebol que havia me ajudado na minha última estada em Bangkok, conseguiu convites para mim e para Jackie para uma festa na piscina, no topo de um hotel super badalado na cidade. Me sentia em Tokyo ou Londres, mesmo sem nunca ter estado em nenhuma dessas cidades.

O pôr-do-sol refletia nos prédios espelhados e me mostrava que há beleza no caos. Foi nessa festa que conheci Fran, uma brasileira incrível que se tornaria também uma das pessoas mais especiais de toda a minha viagem. Fran viaja o mundo trabalhando em diversas empresas de tecnologia e tinha um perfil super empreendedor. Ela falava mais línguas do que uma mão minha pode contar e tinha um namorado metade italiano, metade australiano com quem jantava pelo Skype nos sábados à noite. A conexão foi instantânea e me fez prometer que, quando voltasse à cidade, eu ficaria em sua casa. Uma promessa que para mim era muito fácil de ser cumprida. Teve também o Daniel, que conheci no hostel em que eu estava ficando, um britânico supersimpático com o qual eu dividia os mesmos gostos culinários. Começávamos o dia comendo misto quente no 7-Eleven e terminávamos explorando alguma barraquinha de rua. Quando Lucas chegou em Bangkok, aproveitamos para tomar drinks em lugares sujos e rodar Bangkok de tuk-tuk à noite, um dos meus passeios preferidos na cidade. Daniel ficou ainda mais próximo de nós, mudando seus planos de viagem e seguindo rumo ao Camboja conosco. Essa viagem de apenas cinco dias havia me conectado ainda mais a Bangkok. Eu me sentia em casa, conhecia muitos lugares, pegava ônibus somente com locais, sabia a melhor parada do metrô, tinha meus restaurantes baratos favoritos e, o mais importante, sempre tinha um amigo para encontrar.

Mas, por alguma razão, comecei a pensar no futuro da minha viagem. Cogitava ir para as Filipinas, ajudar na construção de casas, ou para o Nepal, ensinar inglês. Mas começava a perceber que esses destinos não se encaixavam no meu pequeno orçamento. Também sentia que existia um limite físico e emocional para uma aventura como essa. Três meses atrás, eu estava no meu país, cercada pelo conforto e pelo conhecido, preparando o meu mochilão para uma viagem que nem eu mesma sabia para onde me levaria e que eu nem sequer sabia se daria certo. Segui os meus instintos sabendo que muitas vezes é necessário simplesmente partir, sem esperar o momento perfeito. Eu sabia que, em meio a planejamentos, muitos sonhos são deixados para trás. E repetindo minha frase favorita “o plano é não ter plano”, de minha própria autoria, eu voei rumo ao desconhecido. E foi tudo muito mais intenso do que eu inicialmente imaginei, uma característica da minha personalidade que se refletia agora na minha viagem. Vivi experiências que estavam muito além do que eu imaginei ser possível realizar. Fui forte nos meus momentos mais fracos. Sorri da forma mais pura e sincera. Chorei sozinha à noite e sentia a dor de finalmente me aprofundar em meu próprio silêncio. Aprendi o que é não ter nada. Aprendi o que é ter tudo. Cheguei aos meus extremos. Aprendi na pele a importância do agora e do valorizar. E assim, como quem partiu sem destinos e certezas, decidi que estava chegando a hora de voltar. Mudanças de

plano fazem parte do fato de você não ter plano algum. Decidi que viajaria por mais três meses, completando assim seis meses de viagem. Com o orçamento curto, planejei fazer os países vizinhos: Vietnã e Laos. Se eu fosse teimosa em continuar, estaria correndo o risco de pôr tudo a perder. Essa decisão me fez ter ainda mais pressa para voltar ao Camboja. Estava ansiosa para voltar ao vilarejo para ver a casa pronta e para dar continuidade à minha viagem rumo ao Vietnã. Da última vez, eu havia atravessado a fronteira mais perigosa da Tailândia com o Camboja sozinha e sem telefone. Dessa vez, a travessia foi um luxo. Daniel e Lucas me faziam companhia, um smartphone com internet e a fronteira era uma das mais comuns entre os viajantes. Uma tentativa de suborno aqui e ali que já faziam parte do roteiro. Mais um carimbo no passaporte, mais estradas e mais histórias pela frente.

40. A Casa da Esperança Alguma coisa mudara em mim naquele momento. Eu sempre soube que com pouco era possível fazer muito, mas, nesse meu discurso, eu jamais imaginei que seria possível construir uma casa no Camboja. Cheguei de surpresa e de longe já vi Li sorrindo, fazendo salada de mamão verde, enquanto os vizinhos aguardavam para comprar a salada fresquinha. Pacotes de bolacha, salgadinhos e frutas estavam pendurados pela parede. Uma caixa de gelo fazia a função da geladeira. Em uma bacia, peixes que ela pegou no laguinho bem ao lado da casa. Em um balde, alguns caranguejos retirados das plantações de arroz. Seu filho mais novo dormia no chão, em um cantinho, enquanto o outro brincava em algum lugar. Reparei na placa que havia sido colocada em frente à casa e fiquei orgulhosa por ver estampada ali a bandeira do meu país. Comecei a ler o que a placa dizia: “A Casa da Esperança foi construída em setembro de 2013 para ajudar aqueles em necessidade extrema, para ajudar na sua luta e para darlhes uma nova chance na vida. A Casa da Esperança foi financiada pelo Brasil por meio da sua generosidade, bondade e auxílio para a nossa comunidade. Os esforços de angariação de fundos para construir a Casa da Esperança foram liderados por Letícia Mello.”

A casa foi construída em um espaço onde antes não existia nada. A generosidade de 25 pessoas somou R$1.930, que foram convertidos em aproximadamente 800 dólares, suficientes para mudar vidas. Estava muito grata pela generosidade e pela confiança de cada pessoa que doou, fazendo com que esse sonho se tornasse realidade. Me questionava sobre o papel do governo, que tem em suas mãos a capacidade de mudança e de renovação para mudar muitas vidas, mas que prefere o poder e a centralização de recursos para poucos. A minha viagem por si só já me provara que com pouco podemos fazer muito. Então, imagina com muito, o quanto não pode ser feito! O Camboja havia sido tão marcante nessa minha caminhada que me deu a possibilidade de deixar um pedacinho de mim e de meus amigos ali. Sentia um orgulho imenso ao ver aquela casa. Estava feliz por poder usar as minhas viagens para ser intermédio de histórias como essa. Além da casa em si, estava deixando também um pouco do conhecimento que tive o privilégio de adquirir durante a minha vida. Mesmo que o inglês não fosse a minha língua materna, eu me esforçava em ensinar o máximo que sabia. E é com um pouquinho do conhecimento de cada voluntário que passa por ali que o futuro dessas crianças toma outro rumo. A língua inglesa traz esperanças de um futuro melhor: eles não precisarão trabalhar na lavoura, ganhando um dólar ao dia. A maioria sonha em ir para a cidade que fica a 10 km do vilarejo e que nunca tiveram a oportunidade de conhecer.

O voluntariado vale a pena porque as pessoas têm sonhos. Eu sonhei em estar ali um dia e as crianças sonham com um futuro melhor. Sem sonhos, nada disso existiria. O Camboja foi, para mim, o meu grande mestre. Ele não me poupou da dor dos seus ensinamentos, mas me mostrou que o amor é a resposta universal para todas as dores. Me despedi de Li, de Rady, das crianças e dos voluntários com abraços e promessas de que um dia voltaria. Me despedi de Siem Reap vendo o sol nascer no Angkor Wat. Me despedi dos meus parceiros de viagem com um shot de vinho de arroz na Pub Street. Eu estava pronta para a próxima aventura. Entrei sozinha em um ônibus noturno que me levaria até a capital, a cidade de Phnom Penh, para depois seguir rumo ao meu próximo destino: Vietnã.

41. Os cenários reais que foram palco dessa tragédia cambojana Da janela de mais um ônibus velho, eu observava a paisagem, pensava na vida e ouvia música. Chovia muito, mas ainda assim conseguia observar as palmeiras típicas da paisagem cambojana. Tive sorte de uma jovem simpática deitar-se ao meu lado. Isso mesmo: deitar-se. A maioria dos ônibus que eu pegava no Camboja não tinham poltronas, mas sim camas sem divisória nenhuma entre os dois passageiros. As seis horas de viagem, que me custaram apenas 9 dólares, passaram rápido enquanto eu analisava tudo o que estava vivendo e começava também a pensar no meu retorno ao Brasil. Ainda tinha muita estrada pela frente, mas voltar sempre foi a parte mais difícil das minhas viagens. Era assustadora a ideia de retornar, cheia de bagagem recém-adquirida, para um lugar que estaria me esperando do mesmo velho jeito. Eu não voltaria a mesma e isso me assustava, pois voltaria sem dinheiro nenhum e precisaria recomeçar de novo até que eu tivesse condições financeiras de sair de lá novamente. Eu sempre voltava pensando em como sairia. Mas é claro que seria bom rever meus amigos, meus pais e ter um pouco de conforto, até porque dormir em uma cama e tomar banho quente de chuveiro passariam a ter um gosto

especial. No meio disso tudo, voltei a pensar no moreno e na possibilidade de um possível reencontro. Mandei uma mensagem avisando a data que eu voltaria. Não conseguia perceber se ainda estávamos conectados e nem sequer se ele ainda estaria no Brasil ou em Nova York até a minha data de retorno. Eu nunca sonhei em casar, ter uma casa e filhos. A minha ideia de relacionamento é muito mais ligada à capacidade de alguém respeitar a minha liberdade: jamais poderia ser feliz sem ser livre. Cada um com a sua felicidade, mas a minha, particularmente, não estava em um vestido de noiva ou na decoração de um apartamento novo. O que eu esperava de um relacionamento era tão singelo que chegava a ser complexo. Talvez nem eu mesma ainda soubesse o que eu queria e já não via mais nisso um problema. Eu me sentia leve quando assumia que não sabia e passei a desconfiar de pessoas muito cheias de certezas no amor e na vida. Recebi a resposta do moreno um pouco antes de chegar ao meu destino final: “Eeeeeee! Meus sonhos estão se tornando realidade!! Boa, Lele. Nos vemos em breve então. Aproveita o final da viagem! Se precisar de alguma coisa me fala. Bjss”. Sorri com a resposta. Eu estava feliz em saber que poderíamos nos reencontrar. Mas meu coração estava dividido entre a alegria e o medo de retornar para aquele território tão familiar. Existia a possibilidade de as pessoas não gostarem mais da Letícia que retornaria ou da Letícia já não se sentir parte do que havia deixado para trás. O ônibus chegou. Hora de voltar à realidade.

Phnom Penh seria uma parada estratégica e rápida, somente para conhecer os pontos turísticos e aplicar para o meu visto do Vietnã. A capital era muito diferente das outras cidades cambojanas pelas quais eu havia passado: ela era real. Nada de inúmeros turistas e clima de férias. Estava ali uma grande cidade com quase dois milhões de habitantes se esbarrando em suas motos e tuk-tuks em meio à poluição e a um trânsito muito intenso. Era uma cidade repleta de mazelas, mas de um povo trabalhador e sorridente. Ruas sujas e empoeiradas se misturavam a prédios de arquitetura colonial francesa. Dias quentes com pancadas de chuva que aliviavam um pouco o calor. Um grande calçadão de frente para o rio garante uma caminhada tranquila enquanto do outro lado da rua restaurantes e cafés lutam pela atenção dos turistas. Eu caminhava quilômetros todos os dias com um mapa na mão, no qual havia marcado os inúmeros locais que queria conhecer. Devido à grana curta e à curiosidade extrema, raras vezes pegava um tuk-tuk. Gostava de descobrir ruas, cafés, pessoas e prédios que jamais poderei nomear ou especificar sua localização. Lugares que somente longas caminhadas sem rumo em uma cidade intrigante podem oferecer. Havia muitos templos, palácios, praças, mercados locais e lojas. À noite fui conhecer o Night Market, um mercado bem famoso entre os turistas. Observei os produtos, roupas e bolsas enquanto caminhava em direção à seção de comida. Entre inúmeros pratos, achei um macarrão frito de um dólar,

que comi contente, sentada sobre uma canga no chão enquanto observava a rua. No meu terceiro dia na cidade, Lucas e Daniel chegaram. Eu tinha decidido seguir viagem sozinha porque estava com um cronograma mais apertado e ainda tinha um longo caminho pela frente até chegar em Hanói, onde seria o meu próximo voluntariado. Os meninos estavam em clima de curtição, enquanto eu queria aproveitar cada dia intensamente para conhecer um pouco das cidades pelas quais passaria. Com a chegada deles dividimos um tuk-tuk e partimos para os dois pontos turísticos mais importantes da cidade. Seguindo sugestões de outros viajantes do hostel, visitamos primeiro o Museu do Genocídio Tuol Sleng e depois o Killing Fields. Eu já tinha tido boas aulas sobre a história do Camboja por meio dos personagens da vida real que conheci até então, mas agora eu estava sendo colocada nos cenários reais que foram palco dessa tragédia. Começamos pelo museu, mais conhecido como prisão S21, uma antiga escola que, durante o regime do Khmer Vermelho, foi transformada em um centro de tortura, interrogatório e execução de opositores do regime. Ainda mais intrigante é saber que o líder dessa brutalidade, Pol Pot, foi professor durante alguns anos de sua vida. Entro no primeiro prédio sem saber o que esperar. Há salas de azulejo xadrez branco, encardido com amarelo, com paredes cruas em tom amarelado e uma janela por onde entra a luz do dia. A luz ilumina uma cama, que é uma

simples estrutura de ferro, posicionada bem ao centro da antiga sala de aula. Sobre ela, instrumentos de tortura. Por enquanto, o ambiente era repleto de silêncio e vazio, até eu me dar por conta do quadro na parede, bem em frente à cama, uma foto daquela exata sala no momento em que um fotógrafo descobriu a prisão, pouco depois da queda do regime, quando todos fugiram e abandonaram o prédio. No quadro, a foto de um corpo praticamente decomposto, torturado e ensanguentado pelo ódio do Khmer Vermelho deitado sobre aquela cama, naquela mesma sala em que eu estava. Começo a comparar a cena real com a foto e percebo manchas de sangue no chão, próximas de onde estou. O silêncio e o vazio se foram em minha mente. O ambiente ficou tomado por gritos e choros imaginários enquanto observava a foto. Havia mais salas como essa e o chão de azulejo xadrez se tornou uma característica do ambiente. Em algumas delas, havia também uma mesa e uma cadeira, típicas de uma sala de aula, que eram usadas pelo interrogador do Khmer Vermelho. Cada prisioneiro era inicialmente fotografado e depois enviado para a tortura: era acorrentado à cama de ferro e questionado até que confessasse os seus crimes, muitas vezes tendo que mentir ser um agente secreto da CIA para ser liberado da tortura. Essas fotos e confissões eram enviadas para as autoridades como uma prova de que os traidores estavam sendo executados. Do lado de fora, no pátio da antiga escola, há uma placa com as 10 regras de segurança da prisão. Todas pedem

obediência e ordem por parte dos prisioneiros e principalmente respeito ao regime do Khmer Vermelho. Mas a de número seis é a que mais me chama a atenção: enquanto leva chicotadas ou eletrificação, você não pode chorar de maneira nenhuma. Foram preservadas em torno de 6000 fotografias e 20.000 páginas de documentos encontrados na prisão. Muitos desses retratos e confissões estão expostos em algumas salas do museu. São crianças, mulheres e homens com um número de identificação no peito. Algumas mulheres seguravam um bebê no colo. Observando os retratos, é possível perceber que alguns tinham a expressão de pavor e medo, enquanto outros não faziam ideia do porquê estavam ali. Fotos de corpos executados, rostos retalhados e pinturas de torturas. Aproximadamente 14.000 pessoas foram torturadas no S21 e, dos poucos sobreviventes, apenas dois estão vivos: Bou Meng e Chum Mey. E é assim que a caminhada pelo museu acabou, com a presença dos dois sobreviventes vendendo o livro sobre sua história e tirando fotos. A minha reação foi a mais estranha possível ao ver na minha frente os dois únicos sobreviventes daquela carnificina. Observei-os com estranheza, sem saber o que deveria fazer. Estava perplexa e atônita: eles sim eram super-heróis e figuras que deveriam ser veneradas. A experiência como um todo teve uma grande carga emocional e simplesmente me dirigi para a saída, tentando me recuperar. Mais tarde, eu olharia na internet como eles sobreviveram: um era artista e foi escolhido para pintar

quadros com a imagem de Pol Pot e de outros líderes e o outro era mecânico e sabia consertar máquinas. As suas habilidades os salvaram e os tornaram memórias vivas de um momento histórico que não deve ser esquecido, mas sim ensinado e relembrado para as futuras gerações. Com frequência, caminhões paravam no pátio da prisão durante à noite e prisioneiros eram algemados em filas e jogados dentro dos caminhões. Sem saber para onde estavam sendo levados, seguiam para o seu destino final a pouco mais de 10 quilômetros dali: Choeung Ek Killing Fields. Foi aí que eu entendi porque me sugeriram conhecer primeiro a escola e depois os campos de extermínio. É como percorrer o mesmo caminho feito pelos prisioneiros. O passeio pelos Killing Fields durou pouco mais de uma hora em uma caminhada silenciosa, enquanto o áudio-guia explicava sobre o local e a sua história. O ambiente parece um imenso bosque, cheio de árvores, pássaros e flores. Achei incrível a maneira como a experiência acontece, incentivando que ali seja um local de silêncio e reflexão. Nada de pessoas falando alto e tirando fotos: todos andam silenciosamente a passos curtos, prestando atenção nas histórias que são contadas ao pé do ouvido. A paz do ambiente é quebrada quando fragmentos de ossos, dentes e pedaços de roupas são avistados. Junto com essas lembranças, a voz continua revelando todas as crueldades. Os prisioneiros eram levados à morte de maneiras cruéis, utilizando pá, machado e foice para economizar balas. Seus corpos eram arremessados em grandes sepulturas coletivas.

De tantos momentos brutais ali relatados, dois foram os mais dolorosos para mim. O primeiro, uma grande árvore centenária recebe o nome de Árvore Mágica e, assim que o áudio começou a relatar sua história, a sua beleza se esvaiu. Músicas tocadas no volume máximo saiam de caixas de som penduradas na árvore para silenciar a matança que ocorria ali todas as noites. No áudio, eles reproduzem o que seria o último som que os prisioneiros escutariam antes da sua morte. A música em khmer era um tanto perturbadora e era ela que tocava agora no meu ouvido: o som que abafou os choros e gritos de milhares de inocentes. O segundo, uma árvore que era usada para matar os bebês e as crianças que segurados pelas pernas eram golpeados contra o tronco até serem esmagados e mortos. Matavam as crianças para evitar uma possível vingança pela execução de seus pais. A parada final foi em um memorial que está repleto de ossos humanos e crânios das vítimas que serve como um tributo e como um lembrete das atrocidades que aconteceram nos Killing Fields. Um dia que poderia ter sido mais um dia qualquer de turismo, mas, ao invés disso, ele me marcaria para sempre. Eu me indagava: como uma história tão recente era pouco conhecida e quantas mais haviam pelo mundo e até mesmo dentro do meu próprio país? O que haviam me ensinado em tantos anos de escola? Por que muitos países eram esquecidos pela mídia internacional? Que Angelina Jolie tinha adotado um filho no Camboja, todos nós sabíamos. Eu me sentia rasa como ser

humano e isso só aumentava o meu desejo de desbravar o mundo, de entendê-lo com os meus próprios olhos e com o coração. O turismo que estudei por tantos anos na faculdade era muito mais do que os grandes autores e apostilas definem. O turismo deveria ser usado como uma ferramenta de conhecimento e de empatia com o mundo. Ele não deve ser banal, mas, sim, nobre. Obrigada, Camboja! Os teus ensinamentos estarão sempre comigo e os compartilharei para que mais pessoas estejam cientes da tua batalha.

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42. Cruzando o Vietnã do Sul ao Norte Assim que cheguei no Vietnã, fiz um saque no valor máximo que o caixa eletrônico me permitiu e coloquei os 5 milhões de dongs vietnamitas no money belt. Fui ficar milionária justamente em um país comunista. Brincadeiras à parte, os milhões eram uma mera ilusão, pois equivaliam a pouco mais de 200 dólares. Cruzei a fronteira do Camboja com o Vietnã em uma simples viagem de seis horas de ônibus e entrei não somente em um outro país, mas em outro mundo. A sensação de dormir em um país e acordar em outro era fascinante. Em um piscar de olhos, as pessoas estavam falando outra língua, a comida era diferente, a conversão da moeda era penosa e a cidade era ainda mais visceral com suas milhares de motos que tomavam conta de ruas e até de calçadas. Eu estava na cidade de Ho Chi Minh, também chamada de Saigon, uma alteração no nome que ocorreu com o fim da guerra. É impossível falar do Vietnã sem entender um pouco do que aconteceu no país. A vida inteira eu ouvi sobre a Guerra do Vietnã, que os vietnamitas chamam de Guerra Americana, uma maneira de alfinetar o envolvimento dos Estados Unidos na guerra. O país estava separado em Vietnã do Norte, com uma forte

ideologia comunista liderada por Ho Chi Minh, e Vietnã do Sul, que era pró capitalista. A guerra foi um conflito armado entre o Vietnã do Norte, com o apoio dos Vietcongues, um exército comunista localizado no Vietnã do Sul, e o Vietnã do Sul, que teve o apoio efetivo dos Estados Unidos e de alguns outros países. Os Estados Unidos entraram na guerra porque queriam impedir a expansão do comunismo naquela região. O forte armamento militar e o uso de armas químicas dos Estados Unidos não foram suficientes para combater os Vietcongues, porque esses usavam táticas de guerrilha nas selvas e tinham um conhecimento do território muito superior. Isso causou a retirada das tropas americanas e consequentemente o domínio do Norte sobre o Sul, reunificando o país em um só sob o regime comunista. Para celebrar a reunificação e o fim da Guerra do Vietnã, o nome da cidade de Saigon mudou para Ho Chi Minh, o nome do líder comunista que é visto como herói em grande parte do país. Usar Ho Chi Minh ou Saigon pode significar um posicionamento particular sobre o que aconteceu durante a guerra, mas como uma estrangeira no país, eu não sentia que os vietnamitas levavam muito em consideração como eu a chamava, apesar de achar que ela tinha uma essência muito mais Saigon capitalista do que Ho Chi Minh comunista. Eu jamais esperava encontrar um Vietnã tão desenvolvido, principalmente por causa da ligação que sempre fiz do país com a guerra e pelo fato de ser

comunista. Mas, para minha surpresa, a primeira impressão foi totalmente contrária. Ho Chi Minh é uma grande metrópole, com um ritmo de vida agitado e uma intensa vida noturna. A arquitetura tem muita influência da sua colonização francesa, mas, como uma boa metrópole, conta também com arranha-céus e com prédios velhos e super fininhos. Para mim, eles eram muito curiosos. No entanto, a sua característica mais marcante era o trânsito intenso. Nada de tuk-tuks, mas sim um mar de motocicletas no qual seus ocupantes usam máscaras para se proteger da poluição e, supreendentemente, a maioria usa até capacete. Com uma população de aproximadamente 8 milhões de pessoas, dizem que existe cerca de 4 milhões de motocicletas e eu não me surpreenderia se esse número fosse ainda maior. Esse cenário ficou ainda mais interessante quando comecei a reparar em cada uma delas. Uma das mais surpreendentes foi um pai, a mãe, três crianças e o cachorro todos empilhados tranquilamente em uma moto. Mulheres de saia sentavam de lado na garupa, sem segurança nenhuma. O fluxo intenso de motocicletas e de bizarrices é constante e se mistura a bicicletas, carros e ônibus por todos os lados. Sem esquecer de mencionar os “cyclos”, uma bicicleta adaptada com duas rodas na frente e um assento. Eu morria de pena de ver os vietnamitas magrelinhos pedalando pela cidade com os turistas sentadões. Tudo parece um caos, até você perceber a magia existente. Esse trânsito sem leis flui de uma forma natural,

como se existisse uma força maior que controlasse aquilo tudo. Das primeiras vezes, eu esperei muito tempo, aguardando que, em algum momento, eu poderia atravessar em segurança. Aguardei em vão, pois esse momento não existe em Ho Chi Minh. O que existe é técnica e ela é muito simples: tenha fé e caminhe tranquilamente. Como mágica, você vai atravessando e as motocicletas vão desviando naturalmente. Tudo acontece em constante movimento. O segredo é não correr e nem parar, só continuar em frente. Eu listaria “atravessar a rua” como uma das experiências mais interessantes da cidade. Eu também gostava de ficar analisando uma famosa rotatória que havia próximo ao meu hostel. Era como testemunhar um milagre na terra o fato de nenhum acidente acontecer. Tudo é permitido, andar na contramão, na calçada, mudar bruscamente de direção, não usar capacete, carregar animais, troncos, plantas e o que mais fosse necessário. Durante dois dias, conheci parques, museus, shoppings e mercados locais. Fugi do óbvio e matei a minha vontade de comer comida japonesa em uma barraquinha de rua e acabei repetindo, de tão deliciosa que era. Andava o dia todo, observando, e me maravilhava com os detalhes daquele novo país. E não pude deixar de fazer o passeio mais famoso da cidade, os túneis Cu Chi, um sistema muito complexo de túneis usados pelos Vietcongues durante a guerra que serviam não somente de esconderijo, mas principalmente como rotas de comunicação e transporte de suprimentos,

comida e armas. Havia ali diversas armadilhas muito bem engenhadas, tanques de guerra e bombas completavam o passeio muito bem guiado por um vietnamita sorridente e bem humorado. Somente com o que eu vi, ficou muito simples de entender como os Vietcongues derrotaram os americanos, mas foi quando entrei em um dos minúsculos túneis que a história ficou ainda mais real e fiquei perplexa. Como eles conseguiram viver naqueles túneis? Os túneis eram muito apertados e tive que praticamente engatinhar por um ambiente iluminado por poucas luzes improvisadas. Assim que comecei a me movimentar, um calor extremo tomou conta daquele buraco de terra. Em segundos, eu estava suando e me sentindo agoniada, com medo de me perder ou de que a saída estivesse muito longe. Ao meu redor, somente terra. Totalmente não recomendado para claustrofóbicos! No final, fiquei sabendo que aquela parte do túnel foi adaptada para os turistas, sendo o real ainda mais estreito que aquele ali. O passeio teria sido ainda melhor se não fossem as americanas tirando fotos sensuais nos tanques de guerra, demonstrando que não faziam ideia do que estavam fazendo ali. Mas o meu objetivo era chegar em Hanói, onde eu já tinha contatado uma instituição para participar de um programa chamado “Construindo Capacitação para Jovens Adultos”. Fiquei tentada a ensinar inglês para crianças em um vilarejo nas montanhas vietnamitas, mas, quando fiquei sabendo que fazia muito frio lá, eu acabei desistindo. Além do mais, queria fazer algo diferente do que eu já tinha feito

na Tailândia e no Camboja e achei que trabalhar com jovens em uma cidade como Hanói seria uma experiência enriquecedora. O Vietnã é um país estreito e comprido, tornando a viagem de Ho Chi Minh (Sul) a Hanói (Norte) um trajeto de aproximadamente 2 mil quilômetros. Inicialmente, pensei em fazer de trem até descobrir as maravilhosas passagens de ônibus chamadas de “Open Bus Tickets”. A última coisa que importa nessa passagem é a data da sua viagem, o que já deixa fascinados os mochileiros guiados pelo instinto. Elas são vendidas com a data em aberto e se escolhe quantas paradas você fará até o seu destino final. É um trecho litorâneo com as cidades pré-estabelecidas, basta escolher quantas delas você quer conhecer. A solução perfeita para longas viagens de ônibus, ainda mais para mim que já pretendia viajar à noite para economizar na hospedagem. Essa facilidade toda acabava tornando esse trecho o mais popular pelos mochileiros. Escolhi a minha passagem com três paradas no caminho para conhecer as cidades litorâneas de Nha Trang, Hoi An e Hue. A melhor parte é que todos os trechos me custaram pouco mais que 30 dólares, depois de muita pesquisa nas ruas e muita pechincha. Ainda estava me adaptando com os valores do país e fazia muita pesquisa online para ficar ciente dos golpes, que continuavam a existir na mesma frequência. A mulher que me vendeu a passagem dos sonhos também afirmou que as poltronas eram camas, mas não me iludi e me preparei para o pior, lembrando da vez que praticamente dormi com um cambojano desconhecido em um desses ônibus.

Daniel e Lucas chegaram em Ho Chi Minh a tempo de embarcarmos juntos até Hanói. Compraram o mesmo Open Bus Ticket e embarcamos no primeiro trecho da nossa viagem de ônibus até Nha Trang. Eu estava com o meu boleto de passagens em mãos, pronta para apresentar a primeira página e pular para dentro do ônibus, sedenta por mais aventuras, quando um vietnamita que estava parado na porta me pede, em tom um tanto irritado, que eu tire os meus sapatos e, na sequência, me entrega uma sacola de plástico. Ele ficou ainda mais irritado quando percebeu que eu não tinha entendido a razão da sacola. Juro que pensei que fosse um daqueles de emergência, para vomitar. “Seus sapatos na sacola” – Ele disse com pressa, em um inglês difícil de entender. Fiz o que ele me pediu. Foi quando reparei que era um procedimento padrão entrar de pés descalços no ônibus, o que para mim era uma novidade. Quando olho para dentro do ônibus, me deparo com algo totalmente fora do convencional. Três fileiras de beliches individuais, sob uma luz azul neon no teto e uma música vietnamita de fundo. Fui em direção à minha cama/poltrona que, por muita sorte, era a de cima, do lado da janela. Simplesmente por esse fato já achava que estava com sorte, mas, quando subi a pequena escadinha que dava acesso à minha cama, ficou ainda melhor: havia um travesseiro, um edredom e uma garrafinha de água. Cada pessoa no ônibus tinha uma reação diferente: o cara alto lá na frente estava indignado porque ele não cabia no espaço. Uma menina pegou o edredom na ponta dos

dedos e arremessou pro lado, alegando não saber a procedência. Outra questionava se a água era potável. Quanto a mim, tomei um gole da água, ajeitei o travesseiro, desdobrei o edredom, me encaixei na cama e me cobri. Olhei para o Daniel e o Lucas, que se sentaram próximos a mim, e os dois estavam tão surpresos quanto eu e logo começamos os comentários. Rapidamente, fizemos três novas amizades: Andrea, John e Johana. Andrea nasceu na Alemanha, mas cresceu no Canadá. John e Johana eram suecos: bons amigos e viajavam juntos. E assim se formou o grupo que viajaria unido até Hanói. Assim que partimos, o som ambiente ganhou mais um elemento: a buzina. Foram 12 horas de buzinadas intensas, fosse na curva, na reta e até mesmo com a estrada vazia. Ela só cessou quando chegamos em Nha Trang na manhã seguinte. Foi divertido estar em um grupo grande de pessoas e tivemos dificuldades para encontrar um hostel que tivesse vaga para todo mundo. O lado bom era que não dormíamos com estranhos, pois fechávamos o quarto todo. As praias eram bonitas, mas nada de espetacular: nesse ponto da viagem eu já estava com parâmetros bem rigorosos. Aproveitamos as festas, a bagunça no hostel e o clima descontraído. Mas quando eu falo festas, esqueça a típica festa brasileira que todo mundo sai arrumado, bebe, mas não alucina (geralmente), e está sempre de olho em quem vai beijar na noite. Eram pessoas de todas as partes do mundo, inclusive de lugares que eu não sabia que existiam. Havia uma variedade de roupas, comportamentos e gostos somada a bebida barata em um país desconhecido.

Essa combinação fica ainda mais perigosa quando você chega no bar mais conhecido e ele se chama Por que não? O lado bom disso tudo é que ninguém está nem aí para você. Ninguém espera que você seja o mais pegador ou a mais linda. O importante é você ser divertido e meio porra louca. O lado ruim é que alguns exageravam na dose. Ninguém ali sabe o seu nome, quem é sua família ou qual a sua profissão. Tanto faz qual é a sua opção sexual, o quanto você ganha ou que marca de roupa você usa. Percebi que você pode usar esse ambiente para se conhecer ou para se perder. No meu caso, aproveitei o clima para matar uma vontade que eu vinha tendo. Toda vez que via um daqueles “cyclos”, a tal da bicicleta adaptada onde os vietnamitas carregam os turistas de um lado para o outro, eu morria de pena deles pelo trabalho pesado. Tudo bem que alguém vai defender e dizer que é o trabalho deles ou que é bom para os idosos, não importa, eu não conseguia deixar de ter pena, principalmente porque eles são muito pequenos e magros. Então, saindo do Por que não?, um vietnamita em um cyclo me aborda oferecendo seu serviço e decidi não o ignorar. “Você já foi carregado por alguém no seu cyclo?” – Foi uma das minhas perguntas depois de perguntar nome, cidade e preparação física para o trabalho. Ele achou a minha pergunta estranha e, entre muitas risadas, disse que não. “Então, hoje vai ser a primeira vez. Vou te levar pra dar uma volta. Deixa eu sentar aí” – Falei séria, enquanto se formava uma platéia que gritava palavras de apoio.

O meu recém-amigo entrou no clima e sentou na cadeirinha, enquanto eu dei umas voltas com ele pela rua movimentada rindo e me divertindo tanto quanto ele. Tudo bem que não durou muito tempo: o excesso de arroz e o pouco exercício físico nesses últimos meses não me permitiram ir muito longe. Voltei ao ponto inicial ainda sob gritos e risadas da platéia. Meu amigo vietnamita desceu e eu o abordei. “50 dólares pela sua corrida, já que não perguntou o preço antes” – Ria, em meio à tentativa de parecer séria. Ele gargalhou muito quando ouviu isso. O vietnamita sabia do que eu estava falando e tinha se identificado. Somente no dia seguinte, comecei a questionar a procedência daquelas bebidas baratas que causaram uma dor de cabeça forte e fazia todos parecerem zumbis na praia. Havia muitos restaurantes com placas em russo e poucas opções de comida local. Mas um carrinho de comida me chamou atenção e foi ali que eu descobri um dos sanduíches mais saborosos de toda a minha viagem, o famoso Banh Mi. Os franceses deixaram de herança a melhor receita de cassetinho do mundo. Cassetinho para mim que sou gaúcha, dependendo da região do Brasil pode ser pão francês, pão de sal, pãozinho e por aí vai. Falar desse pão é igual falar bergamota e mandioca, é relativo e já sofri muito bullying quando criança por conta desses nomes que mudam de Estado para Estado. Não queria citar, mas Curitiba foi a grande culpada. A cidade onde estojo é penal e salsicha é vina deixou marcas.

Mas de volta ao Banh Mi. O segredo dele está no pão e no preço: custa menos de um dólar. Havia várias opções de carne, mas eu preferia o baratinho de ovo mesmo, que era divino! Tinha cenoura, nabo, pepino, coentro e algum tempero que deixava o simples pão maravilhoso. Era bom voltar a comer pão depois de tanto tempo sem. Pretendíamos ficar somente dois dias e continuar viagem, mas deixamos para fazer a reserva em cima da hora e o ônibus estava lotado, nos obrigando a ficar mais um dia em Nha Trang. Foi quando decidimos nos render a um “Booze Cruise”, um passeio de barco que custa menos de 10 dólares e promete te levar para conhecer várias ilhas, fazer snorkel, almoço em alto mar e o mais importante, muita diversão e bebidas inclusas. Novamente, nada de glamour, mas muita diversão. Os vietnamitas que cuidavam do passeio pareciam estar fazendo aquilo pela primeira vez, tamanha era a energia e disposição deles para dançar, rebolar, cantar e nos animar enquanto navegávamos em um mar cristalino, vendo paisagens lindas de coqueiros e areia branca. Mas o ponto alto do passeio acontece quando eles lançam uma hora de bebida liberada no bar. Parece comum, se não fosse o fato de que o bar é um vietnamita cercado de uma estrutura de bóias flutuando em alto mar com garrafas pet cheias de algum veneno alcóolico. Todos são convidados a pular do deck no mar e pegar uma câmara-de-ar para ficar flutuando ao redor do bar, enquanto o vietnamita enche os copos de cada um ou, dependendo da sede do cliente, vai servindo direto na boca

mesmo. Um dos passeios mais infames que fiz, mas confesso que foi um dos mais divertidos. Passou a ser muito comum reencontrar pessoas que já tinham passado por mim em algum momento da viagem. Encontrei alguns meninos que estavam no meu hostel em Koh Rong, no Camboja, e até outros que esbarrei em Bangkok. E foi com essas coincidências que passei a entender o quão popular essa rota era entre os mochileiros. Tão popular que passei a vê-la como batida. Encontrei uma menina que comprou uma moto e estava cortando o país em ziguezague e concluí que aquele sim era o melhor jeito de conhecer o verdadeiro Vietnã. Era divertido mochilar com várias pessoas e curtir um pouco, mas eu não me encaixava mais no estilo mochileira. Muitas daquelas pessoas estavam viajando há meses ou anos, fazendo exatamente as mesmas coisas todos os dias. As conversas eram limitadas às festas, aos restaurantes baratos e às histórias estúpidas. Eu sentia falta do meu voluntariado, das pessoas, da comida, de estar aprendendo algo novo todos os dias e, principalmente, da sinceridade que eu tinha aprendido a encontrar nesses lugares. Mais do que tudo, sentia falta das crianças, da força, da coragem, do amor, da pureza que emanam. Não me via viajando novamente só por viajar e não via a hora de chegar em Hanói. Foram 10 horas de viagem de ônibus para chegar em Hoi An que prometia ser uma das mais charmosas cidades vietnamitas com casinhas amarelas, lanternas coloridas, ruas decoradas e um lindo centro histórico. Estava animada para conhecer a cidade, mas não imaginava a surpresa que

nos aguardava: um aviso de que um tufão estava a caminho.

43. O tufão Nari havia chegado O barulho vindo do lado de fora era assustador. Eram 4 horas da manhã e ninguém conseguia dormir. O tufão Nari havia chegado. Ventos fortes e uma mistura de medo e curiosidade me levavam a olhar pela janela: via árvores caindo e telhados de casas simples sendo destruídos. Pensava nas pessoas que estavam lá dentro, agora sem proteção. No meio da madrugada, recebemos um aviso para deixar as nossas malas prontas, caso precisássemos evacuar o hostel. Dormi abraçada ao meu mochilão na cama de cima do beliche. Estávamos no terceiro andar e, mesmo assim, o chão estava inundado pela água que entrava pelas frestas das janelas e sacadas com a força do vento. Colocamos toalhas nas frestas das portas e não sabíamos ao certo o que fazer. A luz acabava e voltava constantemente. A noite foi longa. Não havia o que ser feito. Eu me assustava com o barulho de janelas se estilhaçando e ficava apreensiva sabendo que a nossa podia ser a próxima. Estávamos vulneráveis ao poder da natureza, o medo não era exatamente do que estava acontecendo, mas sim do que poderia vir a acontecer a qualquer momento. Desci para a recepção, onde quase um metro de água invadia o primeiro andar.

E, para a minha surpresa, muitos dos mochileiros se divertiam, bêbados, com a situação. Alguns saíram de moto para uma festa, somente para sentir a adrenalina de enfrentar as forças de um tufão. Eu achava todos imbecis, pois não faziam ideia da seriedade do que estava acontecendo, que pessoas estavam morrendo e outras ficando sem suas casas. Colocavam suas vidas em risco somente para ter uma história inusitada para contar. Um dos funcionários do hostel me garantiu que o pior já tinha passado, então, resolvi voltar para o quarto. Consegui dormir, apesar de ter acordado seguidas vezes com o barulho do vento, que parecia ainda mais forte. Pela manhã, descobrimos que estávamos presos na cidade. Árvores bloqueavam as ruas, uma ponte foi destruída e o hotel estava sem água. Para acalmar os ânimos, a recepção avisou que poderíamos ficar hospedados sem pagar a diária até a situação melhorar. Sentia um aperto no peito pelas pessoas que sofreram sérios danos e pelos que perderam suas vidas. Por sorte, o tufão não atingiu a costa com toda a força esperada, mas passou antes pelas Filipinas, onde fez um estrago muito maior. Pensava na fragilidade da vida e das nossas certezas tão incertas, sempre acreditando que haverá um amanhã, desperdiçando nossa vida com desculpas, aguardando o momento perfeito que nunca existirá. No dia seguinte, saiu um ônibus que iria direto para Hanói, já que Hue havia sido seriamente afetada. Nos avisaram dos riscos da viagem, pois nem a companhia de ônibus sabia ao certo a situação das estradas, mas, mesmo

assim, resolvemos arriscar. Foram 24 horas de ônibus, com inúmeras paradas e árvores no caminho, vendo pela janela a destruição causada pelo tufão. Esperar não era problema. Eu só torcia para que a cada parada não chegasse a notícia de que não conseguiríamos prosseguir viagem. Chegamos em Hanói pela manhã, extremamente cansados. Assim que saímos do ônibus, nos dividimos em dois táxis que nos levariam até o hostel. Como estava muito cedo, resolvi esperar no hostel até que alguém do voluntariado fosse me buscar. Acompanhamos pelo GPS do celular o caminho que o motorista fazia, para ter certeza de que não estávamos dando voltas. O caminho estava certo, mas, surpreendentemente, o taxímetro dava saltos quânticos. Uma corrida que deveria dar no máximo 100 mil dongs acabou em absurdos 300 mil. Mais um golpe vietnamita: eles conseguem alterar o valor do taxímetro e geralmente pegam turistas que acabaram de chegar na cidade. Mas não estávamos dispostos a cair em mais um golpe, já colecionávamos muitos e, a essa altura da viagem, não nos permitíamos sermos enganados mais uma vez. Chegando na rua do hostel, começou uma discussão generalizada sobre a tarifa cobrada. Gustavo retirou os mochilões do porta-malas para garantir que o taxista não daria no pé com as nossas coisas. Entregamos 200 mil dongs para o taxista, o que seria um preço mais do que justo pelas duas corridas, ao invés dos 600 mil que ele estava cobrando. O taxista continuava pedindo por mais dinheiro e discutindo em um inglês difícil de entender.

Foi uma ação imediata e automática: olhamos uns para os outros e fizemos sinal para correr. Corremos com os mochilões nas costas uns 200 metros em direção ao hostel, que ficava em uma ruazinha estreita onde não entravam carros. Corríamos e ríamos perguntando uns aos outros se o vietnamita estava atrás de nós, mas como era de se esperar, ele ficou satisfeito com os 200 mil e não se incomodou em correr atrás de um grupo de mochileiros. E foi assim, correndo de um taxista golpista, que a minha aventura em Hanói começou!!!

44. Eu sabia que ela estava orgulhosa de mim Comparado a tudo o que fiz até agora, esse voluntariado é um luxo. Já vou começar contando vantagem: há um banheiro com direito à descarga e um chuveiro que tem até água quente. É um apartamento pequeno de dois quartos, onde a sala serve como base do projeto e também como sala de aula. Em um dos quartos, mora Duc, um vietnamita simpático e tímido que colabora com a organização do projeto em troca de morar ali. É ele quem cozinha, todos os dias, os melhores pratos vietnamitas para nós. O outro quarto é o dos voluntários, com duas camas de solteiro. Existem outras acomodações e, ao todo, éramos em torno de 6 voluntários espalhados por diferentes partes da cidade. As aulas também aconteciam em lugares distintos. Son é o idealizador do projeto “Construindo capacitação para jovens adultos”, um vietnamita de meia-idade muito engraçado e meio atrapalhado. Aparecia com pouca frequência no escritório, mas, quando aparecia, nos divertia com suas histórias. O meu horário de aula era das 15h às 20h e minha turma geralmente tinha apenas cinco ou seis alunos, todos na faixa etária de 20 a 30 anos. Aqui, eu não estou ensinando crianças carentes, mas jovens que estão na universidade ou

que já se formaram e estão em busca de um futuro, de um emprego. A história deles é parecida com a de muitos jovens no Brasil. Apesar de todas as dificuldades, eles saíram da casa dos pais, que moram em pequenos vilarejos, e dividem entre eles minúsculos apartamentos em subúrbios para dar continuidade aos estudos ou para conseguir um emprego. A maioria das minhas aulas era em um prédio no centro da cidade, então, todo dia depois do almoço, eu aguardava a minha carona, um vietnamita simpático que não falava nada de inglês mas que me acolhia sempre com um sorriso. E foi assim que fui apresentada a Hanói, na garupa da moto, enfrentando um trânsito tão caótico como o de Ho Chi Minh. Passei a usar máscara por causa da poluição e meus olhos não paravam quietos durante o caminho todo, de quase meia hora. Agora, eu fazia parte daquele labirinto de humanos motorizados e podia observar tudo de perto. Era como se em cada moto daquelas houvesse um mundo à parte e eu ficava fascinada quando olhava pelo retrovisor e via uma vietnamita de bicicleta, usando o famoso chapéu cônico. Eu sentia que eram personagens de lindos quadros que ganharam vida e que agora andavam em meio à desordem vietnamita. Com frequência, alguma moto esbarrava na minha perna, mesmo que eu fizesse toda a força possível para mantê-la grudada à moto. Ficava imaginando como seria essa imagem vista de cima: um formigueiro de motocicletas, ônibus, carros, bicicletas, chapéus cônicos e pessoas entrelaçadas em meio ao concreto.

Eu gostava do contraste de cores e luzes que a cidade tinha entre o dia, na minha ida, e a noite, na minha volta para casa, fazendo parecer dois caminhos diferentes. Eu adorava dar aulas, mas aquele momento na garupa da moto se tornou instantaneamente o meu favorito. Havia sempre alguma coisa a ver com o vento que batia no meu rosto, me dando a sensação de liberdade, a certeza de que eu estava em movimento. Pensava em mim, garotinha, brincando na casa da minha avó, subindo em alguma árvore, chutando bola com meus primos ou lendo algum dos meus livros favoritos de infância. Aquela garotinha era sonhadora e adorava aventuras, mas nunca imaginou que um dia a sua versão adulta estaria na garupa de um vietnamita em Hanói para dar aulas de inglês como voluntária. Eu sabia que ela estava orgulhosa de mim, realizando sonhos incalculavelmente maiores do que a imaginação dela pôde um dia sonhar. Nesses momentos, o meu coração se expandia, tamanha era a gratidão dentro de mim. Meus alunos me explicaram que o inglês está se tornando obrigatório para qualquer jovem que queira entrar no mercado de trabalho. Um deles ainda criticou, falando que até nas vagas de emprego nas quais você jamais precisará falar inglês estão cobrando fluência dos candidatos. Existe um esforço nacional para que o Vietnã continue crescendo economicamente. Assim que o país se reunificou em 1975 e se tornou comunista, viveu 10 anos totalmente fechado para o resto do mundo, um período marcado pela coletivização das terras e campos de reeducação forçada

que levaram o país à falência. Foi quando optou-se pela liberação da economia, que, desde então, apresenta um crescimento exponencial. E hoje combina o autoritarismo político do comunismo com o liberalismo econômico. Pelo fato dos alunos serem mais velhos e por já terem uma boa base da língua inglesa, eu achava muito mais desafiador ensiná-los, uma vez que eles têm dúvidas mais difíceis de responder e eu tenho que planejar cuidadosamente as aulas, organizar tópicos e pensar em atividades. Os alunos não são acostumados com atividades que incentivam um pensamento crítico e muitas vezes fui surpreendida com informações tendenciosas que aprendem na escola. Sentia que era um sistema de educação engessado no qual não foram ensinados a questionar. Apesar do acesso à internet ser liberado, o conteúdo ainda é censurado pelo governo. Quando comentei que eu tinha uma página no Facebook onde falava das minhas viagens, uma das alunas me advertiu para não criticar o governo ou o regime comunista como um todo, correndo o risco de ser presa por isso. Existia algo único entre os vietnamitas que eu estava conhecendo: eles tinham uma essência pura e virtuosa, independentemente da idade. Eu tinha a impressão de que mantinham muito da pureza de uma criança, me surpreendendo com gestos genuínos e sempre preocupados com o meu bem estar. Já no segundo dia do voluntariado, assim que me levantei, um lindo buquê de flores roxas e amarelas em um papel rosa me aguardava. Fiquei sem reação, pois não via

nenhum motivo para receber flores, mas logo me explicaram que era em comemoração ao dia da mulher e que todas as mulheres deveriam ser presenteadas, por todas serem especiais.

45. Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar aprendendo muito mais do que ensinando “Você pode falar em inglês comigo para eu praticar?”. Essa seria a frase que eu mais ouviria toda vez que um dos meus alunos me apresentava para alguém. Eles queriam ter a certeza de que não perderiam a oportunidade ímpar de praticar inglês com um estrangeiro. Admirava o desejo deles em aprender, mas confesso que sempre achava um pouco engraçado, porque a única maneira de falar comigo seria em inglês, então eles não precisavam necessariamente me perguntar. E eram nesses detalhes que eu percebia cada vez mais a pureza de seus gestos. Aproveitava para aprender algumas palavras em vietnamita também, apesar de ter me dedicado muito mais na Tailândia, me arriscava com algumas palavras básicas para a conversação. Todas as terças-feiras os alunos tinham que levar o seu professor para um passeio pela cidade: o primeiro foi ao Museu de Etimologia Vietnamita. Os alunos e alguns amigos deles cuidaram de todos os detalhes, um me buscou de moto, o outro antecipou a compra dos ingressos e Dang foi o guia oficial do nosso passeio.

Dang se tornou o meu melhor amigo vietnamita. Ele era tão generoso, que às vezes eu me questionava se não estava abusando da boa vontade dele. Ele fazia questão de me mostrar tudo o que Hanói tinha a oferecer e me levou até mesmo para conhecer sua casa. Eu aproveitava a oportunidade para mergulhar na cultura e estreitar meus laços com o meu mais novo amigo. Ele me levou de moto para conhecer o seu apartamento e me surpreendi o quão pequeno era. Basicamente, um quarto de 3m x 3m, com esteiras no chão, onde ele e mais duas primas dormiam. Nada de camas, somente esteiras. Assim que cheguei, ele e uma de suas primas me convidaram para sentar no chão, ao redor de um banquinho, no qual eles colocaram um prato repleto de frutas cortadas, para que as comêssemos juntos enquanto conversávamos. Eles carregam algo de muito especial na maneira como se relacionam e eu ficava admirada. Eu refletia sobre as minhas relações pessoais e como poderia melhorá-las, a começar pelo simples ato de demonstrar o quanto me importo. Fomos até lá para que eu pudesse pegar a bicicleta, que Dang prometeu não estar fazendo uso, e que eu poderia usar para pedalar em torno do grande lago que havia perto de casa: uma boa opção para começar a queimar todo o arroz consumido. Já fui preparada para voltar os 15 quilômetros pedalando sozinha, à noite, mas, para a minha surpresa, Dang optou por fazer a minha escolta, o que tornou o retorno engraçadíssimo. Ele me acompanhou na sua moto em baixa

velocidade durante o caminho todo, me protegendo de todo aquele trânsito maluco e me mostrando o caminho. Às vezes, eu chegava em algumas rotatórias e meu coração acelerava sem saber para onde ir, em meio a tantas motocicletas e buzinas constantes. Ria sozinha da situação que me metia. Dang se divertia mais ainda quando percebia que eu estava adorando a brincadeira de ser escoltada pelas ruas de Hanói. Pedalar os 17 quilômetros ao redor do lago todo dia de manhã se tornou um ritual para mim. Pela primeira vez na viagem, precisei tirar do fundo da mala o único moletom velho que trazia comigo. A temperatura caía um pouco pela manhã e ao anoitecer, tornando o clima muito agradável, principalmente depois de passar cinco meses suando debaixo de sol e calor extremo. Eu colocava a mesma playlist de sempre tocando no meu telefone e estava pronta para uma aventura diferente todo dia. Mudava a direção que tomava, andava em ziguezague pelas ruas, parava para observar as pessoas, ou para ler um livro sentada nos banquinhos de frente para o lago. A qualidade do ar não era das melhores, mas eu gostava de simplesmente deixar a minha mente vagar de acordo com os estímulos das novas paisagens. Prestava atenção em cada palavra das letras das músicas e gostava quando o Foo Fighters sussurrava no meu ouvido, como alguém que questiona as minhas decisões daqui para frente: “Were you born to resist or be abused? Is someone getting the best of you?”[3] Quando eu não estava refletindo sobre a vida andando de bicicleta, eu estava andando de moto na garupa de

Dang, que me levava a todos os lugares que ele achava que uma estrangeira deveria conhecer. Algumas vezes, eu gostava de inverter e colocar Dang na minha garupa, me arriscando a pilotar pela cidade. Os meus melhores passeios em Hanói foram com o meu amigo vietnamita. Às vezes, ganhávamos a companhia de Emílio, o voluntário que estava dividindo o quarto comigo, um australiano muito educado e gentil. Eu gostava quando ele ia com a gente para os lugares com muitos locais. Ele tinha uma barba grande e o cabelo meio bagunçado, o que fazia com que as vietnamitas ficassem loucas com ele. A cada cinco minutos, precisávamos parar para ele atender os pedidos de fotos com as meninas. Andar com Emílio era como andar com um rockstar desejado. Conheci muitos amigos de Dang e fui à casa de muitos deles, sempre sendo muito bem recebida com um prato de frutas frescas e com o desejo incansável de eles falarem inglês comigo, me apresentando o melhor de Hanói. Depois de um desses passeios, eles decidiram que me levariam para jantar em algum restaurante local e eu fiquei superanimada com a ideia. “Precisamos decidir onde te levar. O que você gosta de comer?”. – Uma das garotas me perguntou, preocupada em me agradar. “Não se preocupa comigo, eu como qualquer coisa.”. – Eu respondi educadamente, como minha mãe me ensinou. À minha resposta se seguiu uma comemoração animada. Continuei sorrindo, feliz que eles gostaram do que eu havia dito.

“Que ótimo. Então vamos te levar para comer cachorro, você vai gostar”. – Falou a garota, animadíssima. “Não, desculpa, mas cachorro eu não como. Eu não sei se vocês sabem, mas no país de onde eu venho os cachorros são bichinhos de estimação, amamos eles e eles são parte da família. Então é muito estranho para nós a ideia de comer cachorro.”. – Eu tentei contextualizar a minha explicação que deveria ser meio óbvia, mas aparentemente não era. Todos eles riram, como se eu tivesse confundido alguma informação. Fiquei aguardando o término das risadas e uma explicação. “Le, você não está entendendo. Aqui no Vietnã nós também temos cachorros como animais de estimação e também os amamos. Mas os cachorros que comemos são outros cachorros, não comemos o nosso de estimação. São cachorros de fazendas, cachorros estranhos que não conhecemos” – Eles me explicaram com tanta certeza do que estavam falando que eu desisti de me prolongar muito. “Mesmo assim, eu prefiro não comer cachorro. Vocês se importam?”. – E, por fim, decidimos comer pato. Eles me levaram em lugares únicos, onde geralmente eu era a única estrangeira. Um dos lugares que mais me surpreendeu foi a cafeteria onde se vende o café com gemada mais original de Hanói, com quase 100 anos de existência. Andei com Dang e seus amigos pela rua principal em uma área turística. Ali, eles me indicaram para entrar em uma lojinha que vende malas e mochilas falsificadas. Como nem sempre entendia o que eles me diziam, os segui loja adentro

achando que queriam comprar alguma coisa. Mas eles não pararam para ver nenhum produto, continuaram andando até um corredor estreito e escuro. Dang ria da minha cara de quem não estava entendendo nada. Subimos uma escada de madeira caindo aos pedaços e, surpreendentemente, no final da escada havia uma cafeteria. Mas não era uma cafeteria qualquer: tocava música vietnamita dos anos 80 e 90. Era a trilha sonora de estudantes e artistas locais que conversavam, fumavam, liam ou mexiam no celular. Os bancos eram pequenos e muito próximos uns dos outros, havendo uma pequena sacada com vista para o famoso lago Hoan Kiem. A cafeteria parecia um reduto de vietnamitas descolados e eu era a única estrangeira naquele esconderijo, tomando café com gemada em meio a eles. O Vietnã é o segundo maior produtor de café do mundo, perdendo somente para o Brasil. Os vietnamitas têm muito orgulho do seu café e agora podia dizer que já havia experimentado as duas formas mais vietnamitas de tomá-lo: com gemada e com leite condensado. A versão dele gelado com leite condensado era uma das minhas favoritas. Hanói me presenteava com uma sucessão de pratos deliciosos, desde coisas que eu provava nas ruas que eu nem sequer sabia o nome, até os tradicionais Pho e Bun Cha, sendo o segundo um dos meus favoritos. Pho é o prato nacional mais conhecido e amado. Mas por ser uma sopa, eu acabava comendo com pouca frequência. Os meus alunos me explicaram que o segredo do Pho está no caldo que demora muitas horas para ser preparado

e é obtido pelo cozimento de ossos bovinos e de diversas especiarias. Para complementar, macarrão de arroz, alguma opção de carne ou a versão vegetariana e guarnições com as mais diversas folhas verdes e broto de feijão. O que faz do Bun Cha o meu queridinho é a junção de cada ingrediente em uma mordida repleta de sabores. Tudo chega à mesa em pratos separados: carne de porco, macarrão de arroz e uma montanha de diversas folhas verdes e ervas, que não me arriscaria nomeá-las devido à diversidade. E, para complementar, um molhinho especial, pimenta e alho. O segredo é pegar um pedaço de cada ingrediente com o hashi e mergulhar no molho antes de devorar. Para tornar o roteiro culinário ainda mais interessante, tínhamos aulas de culinária com nossos alunos no apartamento. Sinceramente, mais comíamos do que aprendíamos alguma coisa, mas um dos pratos que me diverti montando junto com Emílio foram os rolinhos de primavera frescos. Mais uma vez, eu tinha a clara sensação de estar aprendendo muito mais do que ensinando. Estar ali, em meio a alunos mais velhos e em uma cidade grande, era uma experiência totalmente diferente das outras que eu havia vivido na Tailândia e no Camboja e ela me possibilitou conhecer um mundo muito diferente: aquele dos jovens que vivem em um dos poucos países sob regime comunista no mundo e que é fortemente marcado pela história da guerra. Dos jovens que abriram a porta das suas casas para me apresentar as suas vidas. Ser apresentada a um país por quem vive nele é uma experiência totalmente diferente,

uma outra perspectiva que eu jamais teria se não fosse pelo olhar que eles me ensinaram. Eles eram tão genuínos em seus gestos que, quando me ofereciam as frutas cortadas e sentávamos no chão para conversar e comer, eu pensava em todas as vezes que deixara de receber alguém por não ter o que oferecer, ou pela casa não estar em ordem. Eu não trocava nenhum banquete em uma grande casa por aquele gesto genuíno e era muito grata por me receberem e por me oferecerem o que tinham de melhor. Em troca de tudo o que os meus alunos faziam por mim, eu dividia experiências, falava sobre futebol, sobre países onde já estive, explicava milhares de vezes porque não sou casada e até tentava relatar como era um beijo, um dos tópicos favoritos de Dang que, apesar de ter quase a minha idade, me confidenciou nunca ter beijado uma menina. Eu servia como fonte de informações de muitas coisas que eles tinham curiosidade em conhecer. Às vezes, sentia vontade de levá-los em um avião junto comigo para apresentá-los a esse mundo tão desconhecido. Mas, infelizmente, isso não era possível, então eu fazia o que estava ao meu alcance, dando a ferramenta da língua inglesa para que, um dia, eles tenham a oportunidade de fazê-lo por conta própria.

46. Toque de recolher na capital comunista Quanto mais eu conhecia Hanói, maior era a sensação de viver em uma Ásia antiga que me encantava com os seus pequenos detalhes. Eu adorava quando saía de casa e me deparava com as bicicletas que vendem flores, repletas de cores e perfumes. Outra entre as minhas cenas favoritas, era aquela de ver os barbeiros que atendem nas calçadas das ruas, com um espelho pendurado no muro, uma cadeira para o cliente e muito cabelo no chão. Quando o barbeiro era bom, se formava uma fila de motos em cima da calçada que aguardavam a sua vez. Outro aspecto único da paisagem da cidade eram as vendedoras locais, que, vestindo o tradicional chapéu cônico, carregam as suas mercadorias em duas cestas equilibradas nas pontas de um pedaço de bambu apoiada em um dos ombros. Um dia, parei para comprar umas bananas com uma delas e pedi se podia tirar uma foto segurando o apetrecho. Mal pude acreditar como elas o carregam, de tão pesado que era! Aos poucos, fui conhecendo os outros voluntários e fomos nos unindo para fazer passeios e tomar cerveja, o que era claramente a atividade favorita de todos os voluntários pelo Sudeste Asiático. Conhecer pessoas de todo o mundo era fantástico! Aprendi que o inglês mais difícil de

entender era o escocês; que entre britânicos, irlandeses e australianos, é difícil dizer qual deles bebem mais; e que o inglês sul-africano tem características singulares. Éramos pessoas com origens e costumes totalmente diferentes, mas tínhamos como desejo comum voluntariar e, de alguma forma, esse desejo nos conectava. Estávamos ali para criarmos as melhores lembranças de uma viagem que era para todos a realização de um sonho e uma superação. A maioria dos voluntários eram casais, com exceção de mim e Oliver. Emílio foi embora e Oliver chegou para substituí-lo: o australiano mais educado foi substituído pelo inglês mais maluco. Ele tinha sido soldado no Afeganistão, estava viajando o mundo há anos e tinha o sonho de ser vaqueiro na Mongólia. Ainda assim, o mais incrível foi descobrir que ele tinha sido voluntário no projeto do Jason, lá na Tailândia, pouco depois que eu fui embora. Dividimos o quarto, damos aula na mesma escola e nos tornamos bons amigos. Os casais de voluntários eram muito parceiros e a diversão era garantida quando todos se juntavam para algum passeio. Laura e Alex eram da Escócia, Laura e Willie, americanos. Viajamos para vilarejos próximos, fizemos aula de cerâmica e visitamos museus e bares. O lugar que mais gostávamos era uma esquina muito movimentada, cheia de botecos no estilo pé-sujo, com banquinhos de plástico invadindo parte da rua e com estrangeiros com sede aglomerados. Era ali que diziam ser vendida a cerveja mais barata do mundo: Bia Hoi, a 20 centavos de dólar. Ela só é encontrada em botequins duvidosos e tem uma característica muito peculiar: não

contém aditivos ou conservantes e deve ser consumida no mesmo dia em que é produzida. Por esse motivo, não existe estoque da cerveja, que não vem em lata e nem em garrafa, mas, sim, servida diretamente das mais variadas fontes, desde barris de metais a garrafas de plástico, direto nos copos de vidro dos seus consumidores. Ambientalmente falando, era uma ideia genial. Higienicamente falando, era um processo discutível. Os botecos fazem uma previsão para comprar o suficiente que venderão no dia, recebendo diariamente um estoque fresquinho. É uma cerveja com baixo teor alcóolico, em torno de 3%, sendo um pouco aguada, mas é refrescante e vale à pena tanto pela cerveja como pela experiência em si. O ambiente acaba se tornando uma boa maneira de fazer amigos ou, pelo menos, companheiros de bar. Dizem que quanto mais cedo você beber Bia Hoi, mais saborosa ela será, e a outra razão para começar cedo é que em Hanói existe toque de recolher, o momento de maior adrenalina da noite. À meia-noite, a polícia faz uma ronda em carros e caminhões e forçam todos os bares a fechar. A maioria fecha muito antes do horário, mas os botecos que frequentamos garantiam os dólares dos turistas até o último momento. Na primeira noite em que bebemos nesses bares, perto das 23 horas, os atendentes vietnamitas começaram a fechar todas as contas dos seus clientes e a recolher todas as cadeiras. Contudo, a venda de Bia Hoi continuava no dinheiro à vista e o consumo dela, de pé, próximo ao boteco. Quando a polícia chegava, era uma correria e a brincadeira

geralmente acabava ali. Depois da meia-noite, Hanói ficava morta, o oposto da badalada Ho Chi Minh. Nas ruas, somente mochileiros perambulavam, tentando encontrar alguns dos bares que aceitam turistas escondidos. Uma vez, conseguimos ficar até uma hora da manhã escondidos, no segundo andar de um bar, quando a polícia nos descobriu. Mas uma noite se tornou lendária. Eu e os dois casais de voluntários vagávamos pelas ruas de Hanói, na esperança de achar um lugar aberto, e decidimos ir até um hostel famoso, onde cogitamos que poderia ter algum agito. Bar fechado, ninguém nas ruas. Mas um vietnamita que estava por ali nos aconselhou que havia um bar que ficava aberto 24 horas. Ficamos interessados e escutamos atentos as suas instruções. “Virem à direita nessa rua e vocês vão chegar a uma grande rodovia. Tenham cuidado ao atravessar porque não tem passarela e vocês precisam pular uma grade. Chegando do outro lado, continuem na pequena rua e depois virem à esquerda. Vai parecer que estarão perdidos. Continuem até o fim e vocês verão pessoas. Sempre há pessoas lá”. – Ele explicou detalhadamente, com tanta boa vontade, que desconfiamos. Agradecemos e continuamos caminhando. Quando tomamos uma distância segura do vietnamita, nos questionamos se deveríamos arriscar. O mais sensato seria pegar um táxi, mas queríamos um pouco de adrenalina na noite vietnamita. Decidimos ir pelo menos até uma parte do caminho. Atravessar a rodovia pareceu ser a parte mais insana do plano, até chegarmos nas ruelas vietnamitas que à noite

eram amedrontadoras. Cogitamos desistir, assustados com as casas velhas que, vez ou outra, revelavam uma pessoa suspeita parada no escuro fumando um cigarro. Em um ponto, a rua ficou extremamente escura e foi uma das poucas vezes que senti medo nessa viagem. Chegamos à conclusão que tínhamos entrado na rua errada, andamos sem direção e acabamos em um beco escuro. Parecia uma favela, com casas velhas e mal-acabadas. Vez ou outra, um local nos observava da janela. Não sei exatamente qual caminho tomamos, mas tentamos retornar para a rodovia quando, de repente, vimos um fluxo de mochileiros vindo por outra rua distante e corremos para alcançá-los. Eles também não sabiam para onde estavam indo e nos falaram que estavam seguindo as orientações de um vietnamita que encontraram na rua. Aos poucos, mais pessoas foram aparecendo e finalmente chegamos: um barracão com cara de abandonado na beira do rio. O que nos indicava que aquele era o local certo eram os vietnamitas vendendo espetinho em frente e a música que vinha de dentro. Decadente definiria bem aquele lugar. Tão decadente que o momento se tornou inusitado e nos divertimos a noite toda. Uma experiência única dos voluntários quebrando o toque de recolher na capital comunista.

47. Meu coração me pedia para ficar Faltavam menos de 10 dias para o meu visto vencer e eu ainda queria conhecer Sapa e Halong Bay, dois pontos turísticos imperdíveis. Chegava a hora de dar continuidade à minha viagem. Planejei três dias em Sapa e três em Halong Bay para, depois, seguir em direção à fronteira do Vietnã com o Laos, o que não seria uma travessia de fronteira fácil. Eu mantinha contato com outros viajantes que conheci no caminho e eles me atualizavam conforme atravessavam. Hong não era minha aluna, mas ela tinha aulas no apartamento onde eu morava e acabei ficando muito próxima dela. Uma vietnamita da minha idade que falava inglês muito bem, era inteligente e muito amorosa. Ela se ofereceu para me levar a algumas feiras locais, a fim de me ajudar a comprar roupas de inverno a um preço justo. Eu precisava me preparar para o frio das montanhas vietnamitas, já que Sapa fica ao norte, quase na fronteira do Vietnã com a China, e está a 1.500m de altitude. Durante o inverno, de dezembro a fevereiro, chega a nevar em algumas regiões. Estávamos no começo de novembro e as temperaturas prometiam ser baixas. Comprei uma lã muito quente, um cachecol, um gorro e luvas. Hong me emprestou uma mochila pequena, na qual

coloquei as poucas coisas de que precisaria para os próximos dias de passeio. Planejava ir para Sapa, retornar a Hanói, para refazer a mala com itens de verão, e ir direto para Halong Bay, que ficava no litoral. Meu aniversário se aproximava e meus pais me deram o melhor presente de todos os tempos: um passeio de barco de três dias em Halong Bay, a minha grande comemoração. Deixei meu mochilão no apartamento, peguei a minha mochilinha e parti mais uma vez. Comprei a passagem de trem mais barata disponível, mesmo com Dang me falando que eu viajaria junto com as galinhas e as mercadorias. Assim que escureceu, peguei um ônibus até a estação. Eu ainda não tinha me habituado com esse costume vietnamita do silêncio ser altamente respeitado no ônibus. Não dava para falar ao telefone e muito menos falar alto ou rir: a repressão vinha imediatamente, por meio de olhares fulminantes ou uma bronca do cobrador, que ameaçava alguma coisa muito ruim em vietnamita. O cobrador andava pelo ônibus, abordando cada pessoa e pedindo pela passagem ou recebendo dinheiro. E, assim como a minha mãe manda em casa, o cobrador era autoridade máxima dentro de um ônibus vietnamita. Cheguei à estação e, enquanto todos os turistas iam para o vagão com camas, eu segui junto com os locais para o vagão com poltronas simples, definidas na minha passagem como categoria “assento duro”. Eu nem sabia dizer se a minha opinião ainda era válida. Depois de cinco meses chacoalhando em transporte público de um país para outro no Sudeste Asiático, eu achei o trem bem confortável e as

poltronas não reclinavam muito, mas eram melhores do que a classe econômica de um avião. Foram 10 horas de viagem muito bem dormidas. Só acordei quando o dia amanheceu e, então, pude contemplar a linda paisagem desconhecida. Estava em Lao Cai, onde desembarcaria, e, depois, pegaria um ônibus montanha acima até chegar em Sapa. Eram 40 km feitos em uma hora por mais um motorista vietnamita descontrolado, com sua companheira inseparável, a buzina. Só a paisagem que eu via pela janela durante o percurso já valia a pena a minha ida até lá. Minha paixão por Sapa foi instantânea. E isso seria previsível se estivéssemos falando de uma pessoa que ama as montanhas, mas a minha grande paixão sempre foi o litoral. Confesso que estava muito mais empolgada em ir para Halong Bay, mas Sapa era encantadora e charmosa, com suas ruas estreitas e prédios baixos, com um constante fluxo de pessoas subindo e descendo suas ladeiras, que sempre guardam um visual deslumbrante das montanhas e dos arrozais. As ruas são tomadas pelas mulheres das diversas minorias étnicas que vivem nos vilarejos ao redor da cidade. Elas usam roupas típicas coloridas e passam o dia todo caminhando pelas ruas, vendendo o artesanato que produzem. Minoria étnica é um grupo que tem uma nacionalidade ou cultura diferente da maioria da população. No Brasil, podemos citar os índios como um exemplo claro. Em Sapa, existem diversos desses grupos, sendo o H’Mong, Red Dao e Tay os mais conhecidos: eles se diferenciam pelas roupas

que vestem, costumes, língua e até pelo método de cultivo da terra. Essas mulheres podem ser bem insistentes e simpáticas, tentando chamar sua atenção para vender algum dos seus produtos. Tem que ter jogo de cintura para saber interagir com elas sem ter que sempre comprar algo. Sapa é famosa por suas caminhadas e trilhas para conhecer os pequenos vilarejos, onde as tribos moram. Muitas agências de turismo oferecem diversas opções de pacotes e é comum ver grupos de turistas sendo guiados por uma das mulheres locais vestindo roupas coloridas. Me encontrei com Andrea assim que cheguei. A canadense fazia parte do grupo que atravessou o Vietnã de ônibus comigo. É difícil descrever essa sensação de encontrar pessoas em lugares diferentes a todo o momento e cada vez mais eu sentia que o mundo era a minha casa. Andrea estava com uma amiga e decidimos alugar duas motocas para desbravarmos os vilarejos mais distantes. Tivemos sorte de pegar dias ensolarados com o céu limpo, já que um dia com névoa ou de chuva pode atrapalhar o passeio para conhecer as belezas do lugar. Novembro é época da colheita e me encantava ver os locais trabalhando nos lindos terraços de plantações de arroz, uma sequência de degraus verdes no terreno íngreme das montanhas. Uma paisagem tão rica em todos os seus detalhes que parecia ser uma pintura, tamanha a perfeição. Andamos muitos quilômetros de moto nas estradinhas de terra estreitas. Dirigimos devagar, tanto por ser um caminho perigoso, como pelos obstáculos que a estrada nos revelava a todo momento.

Vaca, porco, galinha e bode frequentemente decidiam descansar no meio do caminho. Algumas motos com locais carregavam longos troncos de árvores atravessados na garupa da moto, bloqueando metade da pista. Todos eram detalhes únicos que faziam do nosso passeio ainda mais especial. Eu gostava dos contrastes das roupas das mulheres quando mudávamos de um vilarejo para outro e tirei algumas das melhores fotos da minha viagem durante esse passeio. Crianças fofas paradas na beira da estrada acenavam sorridentes para nós. Para entrar em alguns vilarejos, era necessário pagar entrada. Demos meia volta e dirigimos ainda mais longe, simplesmente para encontrar lugares remotos. Encontramos muitos viajantes que alugaram motos para atravessar o país. Eu estava fascinada com essa ideia e ficava ainda mais quando ouvia as histórias incríveis dessa jornada fantástica sobre duas rodas. No dia seguinte, resolvi sair para uma caminhada sozinha para conhecer um lindo lago. Eu me senti na Suíça: eu e minhas sensações de lugares que nem conheço. Havia casas lindas em torno do lago desenhadas pelas montanhas ao fundo. Enquanto caminhava em torno do lago, me deparei com uma dessas mulheres locais e estranhei por ela estar sozinha e longe do centrinho. Aproveitei a oportunidade para conversar. Ela se apresentou como Mamma Lilly e disse que era assim que os turistas a chamavam. Deixei claro que não compraria nada, mas, mesmo assim, ela continuou o papo. Ela me disse que mora com seus cinco netinhos em um vilarejo chamado Hau Thao.

Estava curiosa pela oportunidade de saber mais sobre a vida dela e continuei fazendo perguntas. Ela disse que, para chegar em sua casa, ela andava três horas pelas trilhas, mas que pegava uma moto quando as vendas eram boas. Enquanto conversávamos, uma das suas netinhas chegou, uma garotinha linda de nove anos, com traços asiáticos misturados aos indígenas. Puxei assunto, mas percebi que ela não falava inglês. Reparei que Mamma Lilly tinha um caderno na bolsa e perguntei o que era. Ela me mostrou com orgulho o caderninho que continha recados de pessoas do mundo inteiro agradecendo pelo passeio até a casa dela. “Eu também quero ir na sua casa. Você está livre para fazermos a trilha amanhã?”. – Eu não perderia essa oportunidade. “Sim, claro. Amanhã eu levo você. Qual o seu nome? Vou anotar o seu número.”. – Ela falou isso enquanto pegava um celular tijolinho, demonstrando pouca habilidade com o aparelho. “Pode anotar. Meu nome é Letícia.”. – Falei naturalmente, mas Mamma Lilly me olhava como se tivesse alguma coisa de errado. “Você não tem um apelido?”. – Mamma Lily não conseguia pronunciar meu nome. “Tenho. Pode me chamar de Lele.”. – Quanto mais informal, melhor. “Perfeito. Vou te chamar de Lucy. Você é Lucy pra Mamma Lilly, tudo bem?”. É claro que não tinha problema. Justo eu, que sou a pior pessoa com nomes, seria a última a me importar. Ficou

combinado que nos encontraríamos no outro dia. No dia seguinte, pontualmente às 8 horas da manhã, eu estava aguardando Mamma Lilly na igreja. Comigo estava Richard, um irlandês que conheci na noite anterior e que adorou a ideia de fazer a trilha sem ser com uma das agências. Mamma Lilly chegou um pouco depois, com a cestinha rígida de palha trançada em suas costas cheia de compras do mercadinho local. Ela disse que eram os ingredientes para o nosso almoço. Enquanto eu me preocupei com o frango fora da geladeira durante a trilha, Richard foi gentil e perguntou se ela precisava de ajuda. Foram três horas de paisagens arrebatadoras, encontrando casas isoladas no meio da montanha e algumas pessoas de outras minorias que sorriam ao nos ver. A trilha não era das mais difíceis e foi um passeio agradável enquanto Mamma Lilly nos explicava as diferenças entre as tribos, os vilarejos e os costumes. Descobri que ela perdeu seu marido e suas duas filhas ao longo da vida, sobrandolhe um único filho, que lhe deu 4 netas e um netinho recémnascido. Assim que chegamos em sua casa, fiquei admirada com a sua localização: isolada do mundo em um paraíso perdido. As crianças brincavam pelas plantações de arroz quando nos viram chegar e vieram correndo nos receber com ternura. Foi muito fácil perceber que elas eram a razão de viver de Mamma Lilly, pois, mesmo com tantas perdas trágicas em sua vida, encontrava em suas netinhas a razão para sorrir, trabalhar e acreditar. Depois de três horas de trilha, eu e Richard estávamos famintos e Mamma Lilly foi direto preparar o nosso almoço.

Foi um banquete, repleto de comida fresca que ela mesma planta em sua horta. Um dos meus favoritos foi o tofu com tomate, extremamente saboroso. Comemos dentro da sua casa simples feita de madeira, com chão de terra batido, uma mesa de madeira pequena com duas cadeiras de plástico, para mim e Richard. Na cozinha, tudo foi preparado em um fogareiro de ferro no próprio chão da cozinha, com o fogo aceso com pedaços de madeira. A pia da cozinha era oposta ao fogo, no chão também. Apesar de ser simples, era tudo limpo e organizado. O banheiro era uma casinha de madeira que ficava do lado de fora da casa e não tinha chuveiro. Depois do almoço, Mamma Lilly nos serviu um chazinho. Reparei que todas as pequenas xícaras de porcelana branca estavam com a alça quebrada, com a exceção de uma delas, que foi escolhida para ser servida a mim. As meninas ajudavam Mamma Lilly nas tarefas de casa, retirando os pratos e arrumando a cozinha. Reparei também em um mural na parede com as fotos de muitos dos turistas que passaram por ali. Todos estavam sorrindo ao lado de Mamma Lilly. Ela estava sempre vestindo as roupas típicas da sua tribo H’Mong com muitos acessórios: usava muitas das pulseiras de prata que fazia, galochas roxas, roupas coloridas, brincos de prata bonitos e uma bolsa artesanal atravessada em seu peito. Vista do lado de fora, a casa era extremamente simples e isolada. O visual das montanhas e dos arrozais era cinematográfico. Eu e Richard passamos o resto da tarde brincando com as crianças: elas se enfiavam em sacos

plásticos e rolavam ladeira abaixo. Os pedaços de madeira se tornavam brinquedos improvisados. Elas falavam muito pouco inglês, mas, a todo momento, repetiam o que eu falava. A mais velha, que eu já tinha conhecido no dia anterior, era Sí, de 9 anos. Depois vinha Zô, com 8, Gá, com 7, Tí, com 3 anos, e o bebezinho, de alguns meses. As meninas revezavam o irmão pequeno amarrado a panos coloridos em suas costas. Elas brincavam e pulavam com o irmãozinho balançando e ele parecia já estar acostumado. Apesar de serem muito brincalhonas, elas tinham muita responsabilidade e cuidavam do irmão pequeno e delas mesmas com muita cautela. Antes de irmos embora, elas fizeram buquês com plantas e flores e nos entregaram. Eu estava apaixonada pelas crianças, pelo lugar, pela oportunidade de conhecer mais de perto uma minoria étnica e pela forma de amor que eu havia encontrado ali. “Mamma Lilly, por que as crianças não falam inglês? Elas não aprendem na escola?”. – Eu sabia da importância do inglês em uma área turística como Sapa. “Não, elas vão aprender igual a mim. Falando com os turistas e estudando nos livros. Eu aprendi sozinha, por isso não falo muito bem. Seria muito bom se tivessem aulas, mas não existem professores de inglês nessa região isolada” – Ela falou desanimada. “Mamma Lilly, e se eu viesse passar uma semana aqui na sua casa para ensinar as crianças? Posso fazer um caderno de inglês para elas continuarem estudando depois. O que você acha?”. – Eu perguntei meio sem jeito, sem saber como ela reagiria.

“Você? Lucy? Você vai ensinar inglês para meus bebês? Você é igual uma filha para mim!! Seria muito bom. Você vai morar comigo? Mora aqui e ensina. Mamma Lilly muito feliz com isso” – falou em palavras emocionadas. Ela carinhosamente chamava suas netas de bebês ou de macaquinhas, que no dialeto deles era algo parecido com “Milá”. Ela as chamava assim por nunca pararem quietas. “Sim. Eu te ajudo com as despesas e fico aqui. Mas eu preciso refazer meus planos de viagem. Vou voltar para Hanói e te ligo quando estiver pronta para vir. O que você acha?”. – O inglês de Mamma Lilly era básico para uma conversação, então eu sabia que não adiantava dar muitos detalhes. “Ok, Lucy! Você me liga e eu te encontro na igreja. Você igual uma filha para mim. Mamma Lilly muito feliz. Você bem-vinda em minha casa” – Ela repetia com tanta emoção que meus olhos se encheram de lágrimas em ver que ela recebeu com tanta euforia a minha sugestão. As três horas de trilha para chegar até ali tinham sido suficientes para o dia. Voltaríamos de carona na moto de alguns vizinhos que faziam esse serviço. Depois de uma trilha de 20 minutos, chegamos na beira da estrada, onde duas motos nos aguardavam. Richard estava tão encantado pelo nosso passeio quanto eu. Voltando de carona na moto, eu me sentia em êxtase. Laos ficaria para uma próxima viagem, me dando mais uma razão para um dia retornar e explorar mais as riquezas asiáticas. Meu coração me pedia para ficar e eu estava orgulhosa de mim por deixar que ele falasse mais alto. Me sentia conectada comigo mesma mais do que nunca,

sentindo que estava fazendo as pazes com o meu coração e me desculpando por todas as vezes que eu o havia reprimido. Eu sentia uma força vinda de dentro de mim que gritava para eu acreditar. Eu não sentia a necessidade de que as minhas decisões fossem aceitas ou bem vistas. Agora era comigo mesma, trilhando o caminho que eu desejasse. Pensava também em tudo o que eu teria que replanejar. O principal era aplicar para uma renovação do meu visto assim que chegasse em Hanói, já que em Sapa não havia ninguém que fizesse esse serviço. Entre um pensamento e outro, eu me lembrava da alegria de Mamma Lilly e da mágica que havia encontrado naquelas crianças. Como eu imaginaria que essa viagem me daria essa linda oportunidade? Eu ficaria isolada em uma casinha de madeira com chão de terra batida no alto das montanhas vietnamitas, vivendo e compartilhando o estilo de vida com uma família de uma minoria étnica, dormiria em um colchão no chão, não teria acesso à internet ou telefone. Me isolaria de um mundo para mergulhar em outro tão distante, aumentando ainda mais o meu desejo de me deixar surpreender.

48. A vida é feita de lugares e pessoas Durante a viagem de volta no trem, comecei a sentir, repentinamente, muita ardência no meu olho. Assim que cheguei em Hanói, a dor e o incômodo aumentaram. Entrei em um banheiro e me assustei quando vi a imagem refletida no espelho: meu olho estava vermelho e inchado. Substituí as lentes de contato pelos óculos, o que aliviou um pouco a dor. Mantinha a mão sobre o olho, fechado, para aliviar a irritação que sentia. Tudo parecia acontecer comigo nessa viagem. Mas justo na véspera do meu aniversário? Peguei um ônibus direto para o apartamento dos voluntários e mandei uma mensagem para Hong, pedindo para ela me encontrar lá. Eu evitava ao máximo atrapalhar as outras pessoas, mas a agonia aumentava junto com a dor e sabia que precisava de ajuda para ir a um médico. Quando cheguei, Hong já estava me esperando. Ela chamou um táxi e me levou para uma clínica médica, contabilizando mais uma experiência minha com o sistema de saúde asiático. O incômodo que sentia era tanto que não consegui manter um diálogo com Hong no trajeto de táxi. Paramos em frente à clínica, muito bonita, com uma placa dizendo ser especializada em atendimento para estrangeiros. Fui colocada na lista de emergência e, em

menos de meia hora, fui atendida por um médico russo que não falava inglês. Aconteceu ali o telefone sem fio com o maior número de línguas estrangeiras faladas que eu já vi. Funcionava assim: o médico falava em russo, a sua assistente vietnamita traduzia para minha amiga Hong, que traduzia o que escutava em vietnamita para o inglês e eu traduzia na minha cabeça do inglês para a minha língua materna, o português. Isso tudo acontecia em meio a risadas e confesso que até me fez esquecer um pouco da dor, tamanha era a confusão de línguas faladas dentro da pequena sala. Com esperança de que as traduções foram feitas corretamente, fui diagnosticada com uma conjuntivite alérgica não-contagiosa e precisei de vários remédios: pomada, dois colírios e comprimidos. Dentro de uma semana, eu deveria melhorar. Hong falou com Son e todos fizeram questão que eu ficasse no apartamento até melhorar, ainda mais que a minha cama estava vaga e os voluntários que chegassem poderiam ser realocados em outras acomodações. Me ofereci para ajudar com as despesas, uma vez que não poderia dar aulas em troca das instalações, mas Son recusou a minha oferta, fazendo questão que eu ficasse e que contasse com toda a ajuda necessária até que eu melhorasse. Era véspera do meu aniversário e combinamos que faríamos um jantar no dia seguinte, se eu estivesse me sentindo melhor. Nunca segui tão corretamente ordens médicas como nesse dia. Eu queria muito melhorar para poder comemorar

o meu aniversário, que, para mim, era uma data muito importante. Nunca liguei para essa conversa fiada de ficar velha. Quanto mais velha eu ficava, mais sentia que evoluía e uma versão melhor de mim poderia celebrar mais um ano de vida, mais viagens e mais experiências. Eu adorava celebrar. E, para isso acontecer, fiquei de molho na cama, cheia de pomada no olho o resto do dia e até acordei de madrugada para reaplicar a pomada e os colírios. Meu olho acordou com tanta pomada que mal conseguia ler as mensagens de parabéns no meu celular. Continuei em repouso, tomando os medicamentos e, à tarde, comecei a me sentir melhor. Ao menos, a dor já havia aliviado. Talvez fosse o meu psicológico me forçando a melhorar, porque eu não me permitiria ficar de cama naquela noite. Pedi para Hong confirmar o jantar: uma despedida antecipada e a comemoração do meu aniversário. Chamei Andrea e Daniel para o jantar, que junto com os outros voluntários, já tinham planejado de transformá-lo em uma festa. Andrea havia retornado de Sapa com suspeita de malária e não poderia comparecer. Daniel estava apaixonado pelo Vietnã, namorando um garoto vietnamita e procurando emprego como professor em Hanói. Eu nem sequer sabia que Daniel era gay e fiquei muito feliz pelas decisões que estava tomando. Ele parecia mais feliz do que nunca com a vida nova. Liguei para Dang e juntos fomos em um mercado para comprar cerveja e bolo. Quando retornamos, perto das 19 horas, o apartamento já estava lotado. Fiquei feliz em rever tantos rostos conhecidos. As duas Lauras, Willie e Alex, que

sempre foram meus companheiros de aventuras pelas noites em Hanói, estavam lá. Outro casal recém-chegado, a Yvonne e o Andi, também se juntaram a nós, já no espírito de bagunça dos outros casais. Oliver não poderia faltar: eu o achava maluco e talvez fosse por isso mesmo que o adorava. Dang e Hong não só estavam presentes como organizaram tudo. Os alunos Chikarin, Phi e Mai fizeram questão de aparecer. Daniel também estava lá com o seu sorriso e bom humor de sempre. Fiquei tão feliz em revê-lo e mal podia acreditar que o havia conhecido em um hostel em Bangkok e que, hoje, ele estava em Hanói para comemorar o meu aniversário. Eu tinha uma afinidade com ele maior do que com muita gente que eu já conhecia há anos. O jantar foi um grande banquete com todos os meus pratos vietnamitas favoritos e muitas frutas. Os voluntários ficaram felizes quando viram que tinha cerveja, Hanoi Beer, para complementar o cardápio. De sobremesa, havia muito sorvete e um lindo bolo de surpresa. Acabamos ficando com dois bolos, já que eu tinha me antecipado e comprado um também. Cantamos parabéns em duas línguas e com dois bolos diferentes e eu aproveitei para fazer um pedido duplo de aniversário ao assoprar as velinhas. Desde que eu era criança e me ensinaram essa tradição, eu venho pedindo a mesma coisa. Não que o meu desejo não tenha se realizado até hoje, bem pelo contrário, eu peço sempre a mesma coisa para ter a certeza de que ele vai continuar se realizando para sempre, pois, desde criança, isso era tudo o que eu sempre desejei. Fechei os olhos e mentalizei em

forma de um pedido para o universo: “Eu quero ser feliz”. Continuar sendo feliz me bastaria. Teve guerra de cobertura de bolo e recebi presentes. Hong sabia que eu queria um chapéu cônico para levar para o Brasil como lembrança e foi esse o presente de aniversário e de agradecimento pelo meu trabalho voluntário que eu recebi. Um chapéu lindo que usei a noite toda. Ganhei flores, uma camiseta e cartões. Apesar do olho estar inchado e vermelho, nem me lembrava mais da infecção que tanto me incomodou na véspera. Acabamos com a cerveja e com a comida. Para os vietnamitas, a festa tinha acabado, mas para a aniversariante e os voluntários ainda era cedo. Seguimos rumo à rua principal até encontrar um karaokê. Parecia a entrada de uma casa noturna, mas a pompa toda era para alugar uma das diversas salas de karaokê como se cada uma fosse um espaço para eventos privados. E foi isso o que fizemos. Eu, Dong, Oliver e os três casais cantamos e bebemos noite adentro, a maneira mais vietnamita de se comemorar um aniversário. Quando voltei para o apartamento, já deitada na cama, pronta para dormir e cheia de pomada no olho, me sentia realizada. Estava feliz em comemorar meu aniversário no Vietnã. Fiz uma retrospectiva e constatei que tinha passado meus últimos aniversários praticamente em um país diferente a cada ano. Às vezes, parece muito para uma vida só. Eu me sentia feliz pelas escolhas que fiz e pela intensidade que vinha vivendo esses 25 anos. Prometia para mim mesma que

manteria esse ritmo, agregando cada vez mais propósito às minhas buscas. Hoje, eu tenho muito mais medo de não viver do que de morrer, já que a morte é inevitável e imprevisível, enquanto a vida é uma escolha diária. Pensando nisso tudo, de uma coisa eu tinha certeza: a vida é feita de lugares e pessoas. Os lugares abrem a nossa cabeça e as pessoas, o nosso coração. Viver é uma troca de sentimentos e me pego todos os dias tentando ser uma pessoa melhor, pois, sem evolução, a vida não faz sentido. Eu me sentia grata por tudo o que vivi até aqui. Muitas pessoas me perguntam se eu não sinto falta de casa. Eu sinto que tenho tantas casas por esse mundo que me sinto em casa quando estou em busca do desconhecido. Eu estava imensamente bem por ter desenvolvido a capacidade de estar em casa aonde quer que eu fosse e, principalmente, por ser muito abençoada por ter sempre pessoas especiais por perto. Eu estava constantemente somando pessoas à minha história e sentia como se meu caminho fosse guiado por anjos. Como diria a minha mãe: “Essa menina tem mais sorte que juízo”. Começava a acreditar que ela estava certa.

49. Um dia eu voltaria Depois de uma semana de repouso, finalmente o meu olho melhorou. Foi um alívio quando esse dia chegou, porque eu não aguentava mais ficar de repouso e estava apreensiva para continuar viagem. Liguei para a Mamma Lilly para confirmar que estava a caminho: pegaria o trem naquela noite e chegaria em Sapa no dia seguinte de manhã. Como demorei para ligar, percebi que ela achava que eu tinha desistido e ela ficou imensamente feliz com a ligação confirmando que eu iria. “Lucy, você como minha filha. Você bem-vinda na casa da Mamma Lilly.” – Ela sempre deixava o verbo auxiliar fora das suas frases, tornando ainda mais afetuosa a forma como se expressava. Me despedi dos meus amigos, organizei meu mochilão e parti para fazer novamente o trajeto de trem e ônibus que me levaria de volta à encantadora Sapa. Sentei na frente da igreja para aguardar Mamma Lilly. Era uma sensação estranha estar novamente no mesmo lugar, pois eu não costumo retornar a lugares onde já estive em minhas viagens. Vi Mamma Lilly de longe, com sua baixa estatura, vestindo as mesmas roupas típicas e o sorriso acolhedor. Quando chegou perto de mim, me abraçou sem parar, como que para ter certeza de que eu estava ali.

Passamos no mercado e eu acertei que a ajudaria com 60 dólares para as despesas, os quais ela aceitou satisfeita. Seguimos para a sua casa de carona na moto de um dos locais até o ponto mais próximo que a moto conseguia chegar. Eu adorava aqueles 20 minutos de trilha com paisagens arrebatadoras para chegar em sua casa. As crianças estavam me esperando e fizeram festa quando cheguei. Brincavam com um pedaço de barbante que já havia sido remendado pelo menos umas 20 vezes. O meu quarto era muito simples: havia uma escadinha que levava para uma espécie de mezanino e lá estava um colchão com uma rede contra mosquitos me esperando, com edredons, lençóis e travesseiro. Uma cena que já tinha sido desconhecida, mas que agora era muito familiar. Levei comigo um caderno, lápis e canetas. As aulas aconteciam durante toda a manhã, religiosamente, e, à tarde, fazíamos revisões ou saíamos para passear e treinar os nomes de animais e outros elementos da natureza. Estranhava o fato de não estarem indo para a escola. Mamma Lilly disse que elas haviam implorado para não irem essa semana, pois queriam ficar comigo. Aquilo estava muito errado, mas quando acordava de manhã e já as escutava lendo as palavras em inglês no caderno, eu esquecia do que era certo ou errado. Descia as escadas e elas estavam sempre prontas na pequena mesa de madeira, aguardando o meu comando para começar o mais rápido possível nossa aula. Elas eram muito maduras para a idade delas, tinham consciência de que aquela era uma grande oportunidade e queriam aproveitá-la ao máximo. As meninas foram as

minhas alunas mais dedicadas: por elas, estudaríamos o dia inteiro. Algumas crianças da vizinhança começaram a se juntar a nós para as aulas. Eu me sentava com elas e a comunicação acontecia naturalmente. Queria pedir para que desenhassem no caderno, mas não tinha como usar palavras, então pegava o caderno e desenhava uma flor e depois escrevia ao lado o nome em inglês. Sí era muito esperta e a mais velha, então geralmente a escolhia para ser a primeira. Entregava a caneta a ela e apontava para o caderno, como quem diz: “Agora é a sua vez”. Ela me olhava com estranheza e começava timidamente a desenhar. Eu mostrava sinais de aprovação e ela continuava. Sí me devolvia a caneta, eu escrevia em inglês o nome e as fazia repetir, depois perguntava como era na língua delas a palavra e toda vez que eu repetia o nome, elas riam muito de mim. Devia ser engraçado ver uma branquela tentando falar a língua delas. Mamma Lilly me ensinou algumas palavras básicas e eu gostava de usá-las para fazê-las se sentirem confortáveis. Eu não fazia ideia de como escrever as palavras, mas anotava no meu telefone a maneira como eu deveria pronunciar, tornando mais fácil na hora de falar. As chamava de milá (macaquinhas) e elas adoravam. Aprendi no dialeto local algumas frases básicas de conversação e os dias da semana, usando-as para ensinar as mesmas frases em inglês. Conseguimos montar uma conversação básica no caderno e treinávamos a pronúncia das palavras.

De noite, antes de servir o jantar, elas se sentavam ao redor do fogo no chão da cozinha e treinavam perguntas e respostas umas com as outras. Zô era tímida, falava as frases bem devagarinho, tentando se lembrar da forma correta da pronúncia e, quando completava a frase, me olhava rindo com as sobrancelhas erguidas, como quem diz “Você viu que eu consegui?”. Aquela cena fazia meu coração se desmanchar. Mamma Lilly não as permitia comer junto comigo e passei a perceber que a minha comida sempre tinha carne e outros ingredientes exclusivos. Elas comiam na cozinha e eu e Mamma Lilly na sala. Aquilo cortava o meu coração, mas se tinha uma coisa que Mamma Lilly era restrita era com essa ordem. A comida de Mamma Lilly era incrivelmente deliciosa: ela pegava aspargos frescos da sua horta para complementar os meus pratos. Quando Mamma Lilly se afastava, eu chamava as meninas escondido e dava parte da minha comida a elas. Depois, passei a dizer que estava satisfeita e dizia para Mamma Lilly que não tinha problema chamá-las para terminar de comer comigo. Elas adoravam e me olhavam com aquele olhar de quem sabia que éramos cúmplices do crime. Quando não estávamos estudando, elas me levavam para conhecer os arredores. Conheci a escola onde estudavam e os animais dos quais gostavam, sempre admirada com a paisagem única das montanhas e dos arrozais. Achava engraçado porque para elas aquela paisagem era a única que conheciam, cresceriam em meio àquela

natureza exuberante, cuidando umas das outras, como se não existisse mais nada no mundo. Eu me sentia assim ali. Era como se o mundo todo tivesse sido deixado para trás. Percebia que a rotina de Mamma Lilly era toda voltada para atender as necessidades básicas dela e de sua família: ela precisava buscar madeira para o fogo, plantar, colher alimentos da horta, cozinhar, deixar as folhas de ervas secar ao sol para virarem chá, lavar a roupa a mão e deixar o tempo secar. Sobrava tempo para dar atenção às crianças, escutá-las, brincar, rir, contar histórias e também dividir um pouco de silêncio. O oposto do que vivemos. Em que momento enlataram os nossos alimentos e roubaram o nosso tempo para o que realmente tem valor? A simplicidade e o amor que eu via constantemente naquela casa mexeram muito comigo. Às vezes, Mamma Lilly me deixava sozinha com as crianças e eu as observava. Brincavam por tudo, mas sempre cautelosas umas com as outras e com o irmãozinho bebê, que continuava sacudindo nas costas delas de um canto para o outro. Elas lembravam de lhe dar comida e bastava ele começar a chorar que elas o levavam para dentro de casa e brincavam com o pequeno. A menor delas era Tí e ela se tornou a minha modelo favorita. Eu ficava encantada com seu sorriso, fazia vídeos das primeiras palavras que estava falando em inglês e tirava fotos espontâneas dela sorrindo ou brincando. Um dia, ela enfiou a caneta que usávamos para estudar no dedão do pé de Gá, abrindo um buraco. Gá a repreendeu seriamente e

depois olhou para mim rindo. Com papel higiênico, improvisei um curativo. Fazia muito frio nas montanhas e eu adorava quando Mamma Lilly fazia o fogo no chão da cozinha. À noite, nós nos sentávamos todas juntas ao redor para nos esquentarmos. Não havia brinquedos, ou melhor, nunca houve brinquedos, então, não existia a necessidade deles. Então, ensinei para Sí uma dessas brincadeiras de cantar uma música e bater na palma da mão. As crianças formavam fila atrás de Sí para aprender. Elas liam o caderno de inglês e eu fazia correções na pronúncia. Mamma Lilly sorria à toa enquanto as ouvia e olhava para mim com cara de aprovação e surpresa com a facilidade com que aprendiam. Por causa do fogo que era feito dentro de casa, eu me tornei a minha versão defumada. Minhas roupas e meu cabelo estavam sempre com cheiro de fumaça. Eu tinha poucas mudas de roupa para o frio, então, colocava tudo o que tinha uma por cima da outra para me esquentar. Quanto ao cabelo, não tive coragem de lavar. O banho era na cozinha mesmo: Mamma Lilly colocava um edredom para impedir a passagem da cozinha para a sala e eu tomava banho ali. Ela esquentava uma chaleira de água e enchia um balde, esquentava mais uma e deixava ao lado de reserva. Eu tirava a roupa em um cantinho e jogava aquela água quente em mim enquanto me ensaboava. No meu primeiro banho, comecei a escutar risadas abafadas. Eram das meninas do lado de fora me espiando pelas frestas das madeiras da casa. Eu comecei a rir e falar que as estava escutando e Mamma Lilly percebeu, indo lá

fora brigar com elas. Elas saíram correndo para escapar de algum castigo. Eu ria sozinha daquela cena. Não tinha como brigar com elas, afinal, ver uma branquela pelada tomando banho na sua cozinha era uma cena inusitada. Eu adorava incomodar as meninas falando que eu as vi me espiando no banho. Elas riam até doer a barriga e faziam cara de que sabiam que tinham aprontado. Quando terminava o banho, Mamma Lilly guardava todas as coisas e eu me sentava à beira do fogo. Tirava o chinelo e apoiava meus pés próximos às chamas para que secassem, enquanto tomava um chá fresquinho. Toda vez que percebia que a minha xícara era sempre a única que tinha alça, meu coração se aquecia junto com o corpo. Gestos simples, mas generosos e sinceros. Mamma Lilly me agradecia a todo momento pelo que estava fazendo pelas crianças, mesmo que eu achasse que ainda fosse tão pouco. Ela passou a me presentear com seus artesanatos: uma bolsa, uma pulseira de prata e outras coloridas. Nem ela e nem as crianças faziam ideia de que eu havia ensinado muito pouco se comparado a tudo que aprendi convivendo com elas. ... Era hora de ir embora. Mamma Lilly e as crianças me aguardavam. Estranhei a falta de Sí e descobri que ela tinha acordado antes do sol nascer e foi andando os muitos quilômetros de terra para me encontrar na cidade. Ela disse para Mamma Lilly que queria ser a última a se despedir de mim.

Me despedi com beijos, abraços e algumas fotos. Escrevi uma recomendação no caderninho da Mamma Lilly para os futuros estrangeiros que a encontrariam, dizendo o quanto eles seriam sortudos de ter a oportunidade de conhecer aquela família encantadora. Subimos a trilha até a estrada principal onde um grupo de mulheres da mesma etnia H’Mong estavam reunidas. Todas conheciam Mamma Lilly. Eu disse “olá” no dialeto delas e todas ficaram surpresas, perguntando sobre mim. Mamma Lilly explicou quem eu era enquanto eu sorria. Elas sorriam de volta e pareceram felizes com o que ouviam. Somente uma moto havia chegado e aguardávamos a outra, quando as mulheres fizeram um sinal óbvio de que fossemos todos em uma moto apenas. Eu não achei que seria uma boa ideia, mas elas insistiram com frases que eu não entendia e gestos, como se fosse a coisa mais normal do mundo uma moto com uma branquela com um mochilão de 17kg nas costas no meio de um motorista vietnamita e uma mulher H’Mong com sua cestinha de palha. Nós nos equilibramos todos na moto sob os aplausos das mulheres com suas roupas coloridas, enquanto gotas de chuva começaram a cair. Eu pedi para ser a última, para que pudesse segurar no ferro atrás, mas acho que eles estavam com medo de me perder no caminho e insistiram que eu fosse no meio. Achei um pedaço de um suporte e segurei o objeto como quem segura a vida. Morro acima, morro abaixo e a estrada sumia em meio à névoa. Com o vento, um bafinho de álcool se revelou vindo do motorista, que acelerava em meio àquela névoa e desviava porcos e galinhas que apareciam na estrada.

Tinha esquecido de ajustar o meu capacete, que estava quase caindo e levava junto meus óculos. Fechei os olhos e rezei. Senti uma leve freada e, quando abri os olhos, vi um caminhão bloqueando a estrada. O vietnamita jogou para a estreita faixa de terra entre o caminhão e o morro e passou tirando fininho. Vi uma placa mostrando que Sapa estava a apenas 1,8km. Calma, falta pouco, falta pouco. Minha mão doía de segurar o ferro. Nunca foi tão bom chegar em algum lugar como chegar em Sapa nesse dia. Quando desci da moto, estava atordoada, o cabelo todo embaraçado e a chuva havia aumentado. Sentia alívio por ter chego inteira depois dessa aventura não planejada. Encontramos com Sí no mercado local. Ali, levei-as para um almoço de despedida e aproveitei para comprar botas de inverno para Sí, já que ela usava a sua única sandália de plástico rasgada, que com certeza não a protegia do frio. Queria comprar mais presentes para as outras meninas, mas não aceitavam cartão e o meu dinheiro não dava para mais nada. Fiquei chateada e tentei várias lojas em vão. Mamma Lilly me acalmou dizendo que não tinha problema, pois Sí era a mais velha de todas e assim ela poderia passar a bota para as mais novas quando não a servisse mais. Agradeci o carinho. Sí e Mamma Lilly esperaram junto comigo o ônibus, que dessa vez me levaria direto até Hanói. Apesar de ser uma viagem mais perigosa, era mais rápida do que o trem e eu precisava chegar bem cedo para embarcar direto no meu tour para Halong Bay.

O ônibus chegou e com ele a nossa despedida. Não haveria internet ou telefone para nos conectar. Perguntei se havia algum endereço para enviar presentes ou cartas, mas não havia. Aquela era uma despedida diferente. Assim que entrei no ônibus, Mamma Lilly me pediu para um dia voltar. Sí me olhava sorridente segurando sua bota nova contra o peito. Pela janela do ônibus, eu dava tchau para elas, que aguardaram ali até o ônibus partir. Quando o ônibus acelerou, Sí correu por alguns metros, me mandando beijos e se despedindo. A perdi de vista quando fizemos a curva, mas essa memória ficaria guardada comigo. Um dia eu voltaria. Um dia. imagem1

50. Para cada tristeza uma alegria Os três dias embarcada em Halong Bay foram inesquecíveis. Foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ter ganho e o único tour que eu fiz durante toda a minha viagem. Acertei na escolha e no momento. O tour incluía acomodação no barco, refeições, festas e passeios. Estava precisando descansar e de não me preocupar em pegar ônibus, aonde ia comer e os cálculos constantes de quanto dos meus 500 dólares mensais eu podia gastar. Dividi minha cabine com Simon, um francês da minha idade que falava espanhol, era apaixonado por Floripa e sabia cantar músicas de axé. Mais uma boa amizade e um lugar para dormir pelo mundo foi somada à minha extensa lista dessa viagem. Éramos um grupo de 15 pessoas no barco e, entre eles, três coroas australianos motociclistas que nos divertiam com suas histórias. A baía de Halong é um dos pontos turísticos mais conhecidos do Vietnã, uma obra de arte da natureza, perfeita nos seus detalhes e beleza. É um patrimônio mundial da UNESCO com milhares de ilhotas compridas de rocha calcária que emergem do mar repletas de vegetação, formando um labirinto de rochas e uma paisagem magnífica e única.

Navegamos pelas águas parando em alguns famosos pontos turísticos, algumas cavernas, mirantes e ilhas com praias. Apesar de serem lugares absurdamente lindos, o excesso de pessoas, de navios e de lixo é preocupante. Infelizmente, mais um exemplo de como o turismo vem sendo explorado sem um devido planejamento, comprometendo o futuro dessa beleza natural. O visual mudou drasticamente quando fomos levados para uma ilha privada, uma espécie de paraíso na terra. Água cristalina e uma faixa de areia de não mais que 500 metros protegida por um imenso paredão de pedra esculpido pela natureza. Mais pessoas de outros tours se juntaram a nós e fomos divididos em bangalôs. Caiaques estavam à nossa disposição a qualquer momento para desbravar os outros lados da ilha. Sol, praia, campeonato de vôlei, fogueira, festa, lua cheia e um buffet delicioso de comida marcaram bons momentos em Halong Bay. Foram três dias incríveis e o meu sentimento era de missão cumprida. Saí do Brasil com um desejo que parecia até impossível, o desejo de voluntariar em países distantes. O orçamento curto, os perrengues, os furtos e a falta de conforto agora se tornavam histórias e lembranças que nem eu mesma sabia como tinha superado. Eu tinha certeza de que as dificuldades tinham me fortalecido. Tailândia, Camboja e Vietnã agora eram parte de mim e da minha história, cada um me trazendo um aprendizado e me deixando lembranças das quais eu jamais me esqueceria.

De noite, no barco, eu gostava de sentar no deck e ver a lua cheia. Eu jamais imaginei que um dia estaria em Halong Bay e ainda tentava entender quem eu tinha me tornado. Cada dia naquela viagem me transformava um pouquinho. Em um desses dias, acordei com o despertador para ver o sol nascer do barco, levei meu edredom e, enrolada nele, observei o espetáculo. Quando voltei a Hanói, me encontrei com Daniel, que agora era praticamente um nativo da cidade. Ele tinha dicas únicas e preciosas, principalmente de restaurantes vietnamitas frequentados por locais. Ele e o namorado me ajudaram a comprar alguns presentes e depois nos despedimos em um jantar delicioso em um restaurante de rua, com um cardápio um tanto inusitado. Se estivesse na França, o prato se chamaria algo como sopa cremosa de scargot à base de leite de coco e custaria muitos euros. No Brasil, adicionariam a palavra gourmet e custaria tão caro quanto, mas como eu estava sentada em cadeiras de plástico no meio da rua em Hanói, eu diria que era uma sopa de caramujo com leite de coco e que me custou um valor irrisório. Aprendi a técnica certa de puxar na boca a lesminha de dentro da concha, precisando ser sugada com força de uma vez só. As primeiras eu engoli direto goela abaixo pela força excessiva que usei, mas aos poucos fui aprendendo. A melhor parte era molhar o pão francês fresquinho no leite de coco muito bem temperado. Surpreendentemente, foi um dos melhores pratos que experimentei na minha viagem. Quando estivesse comendo

arroz com feijão novamente, eu sentiria falta daqueles pratos raros. No dia seguinte, segui para o aeroporto, mais um luxo do final da minha viagem. Como tinha trocado o Laos pela Mamma Lilly, agora eu não tinha mais tempo para viajar por terra e por isso voaria até Bangkok. Chegando lá, usaria como base a casa da Fran, a brasileira que eu conheci da última vez que estive em Bangkok. O plano já estava todo armado: deixaria o meu mochilão e passaporte na casa dela e, com uma malinha pequena, iria para Koh Phangan. Mas, agora, com uma motivação diferente, já que não tinha mais interesse em ir na famosa festa da Full Moon Party. Me lembrava exatamente dos planos que fazia quando fui furtada em Koh Samui. Dirigindo a moto, eu me sentia feliz com o vento batendo em meu rosto e planejava entusiasmada a minha ida para Koh Phangan, quando os dois tailandeses levaram a minha bolsa e os meus planos junto com eles. Eu diria que, de forma até inconsciente, sentia que precisava fechar a minha viagem lá, como uma maneira de afirmar para mim mesma que jamais deixaria as dificuldades atrapalharem os meus sonhos. Também sabia que tudo acontece por alguma razão e acredito muito que a vida nos prepara para o que vamos viver. Existem nossos desejos e o tempo certo para que eles aconteçam. E, agora, eu estava pronta para finalizar a minha viagem lá. Depois da ilha, retornaria para Bangkok onde ficaria dois dias para comprar alguns presentes e pegar meu voo rumo

à Europa, fazendo ali uma parada rápida antes de retornar à terra verde e amarela. Em Paris, visitaria Celine, minha amiga francesa que conheci no voluntariado no Camboja, e depois seguiria de trem para Colônia, para visitar uma amiga brasileira que não via há anos e acabara de casar. O mundo realmente era a minha casa e era grata por estar cheia de amigos para me receber. Aguardei o horário do meu voo em uma lanchonete do aeroporto, enquanto comia e carregava o meu telefone. Aguardei o horário certinho do embarque e fui para o portão, mas chegando lá fui avisada que o embarque já estava encerrado e a aeronave já estava taxiando. “Como assim a aeronave já está partindo? Não estou atrasada, cheguei exatamente no horário de embarque do cartão. Por favor, eu preciso entrar nesse voo.” – Implorei para a vietnamita da companhia aérea. Ela me pediu para aguardar e fez uma ligação. De repente chega mais uma menina, tão tranquila e desavisada quanto eu. “É aqui o embarque para Bangkok?” – Ela perguntou, percebendo que alguma coisa estava errada. “Ela está falando que o embarque foi encerrado” – Falei desanimada, fazendo referência à mulher que estava ao telefone. A mulher retorna e nos pede para segui-la. Eu e a menina seguimos os passos apressados da vietnamita pelo aeroporto, descemos uma escada e ela pediu que esperássemos ali.

“Um ônibus está a caminho para buscá-las. Ele as levará até o avião, que está aguardando na pista” – Ela sorriu, sabendo que acabara de salvar o nosso dia. Olhei para a menina ao meu lado e comemoramos com muita animação. E foi assim que conheci Jana, da Finlândia, que tinha tantas histórias de viagens quanto eu. Quando entramos no voo, todos os passageiros nos olhavam de canto de olho, demonstrando reprovação pelo atraso causado. Eu estava feliz em ter Jana ali para dividir a atenção. O voo estava vazio e sentamos juntas para continuar conversando sobre nossas viagens. A empresa era uma dessas de voos baratérrimos que não incluem nada. Quando a aeromoça começou a circular com o carrinho de comida, Jana comentou: “Estou torcendo para ter alguma coisa de graça para comer. Foi um dia corrido, não comi nada, estou morrendo de fome. Para piorar, troquei todo o meu dinheiro para baths e esqueci totalmente de separar alguns dongs. Com sorte eles tem um amendoim, né?”. – Falou esperançosa, enquanto tentava ver o que tinha no carrinho de comida. Na hora eu me lembrei que não havia trocado todo o meu dinheiro vietnamita porque sempre deixo um pouco para guardar ou dar de lembrança de viagem. Abri a carteira e contei exatos 100.000 dongs, quantidade suficiente para um sanduíche. “Ei, Jana, pega esse dinheiro aqui para comer, eu não vou usar.”. – Eu falei enquanto estendia as notas em sua direção.

“Não, imagina, eu não quis dizer isso. Te agradeço pela gentileza”. – Ela falou sem jeito pela minha oferta inesperada. “Pega, Jana, eu não vou precisar.”. – E não precisaria mesmo. “Podemos fazer assim: eu te dou o equivalente em baths. O que você acha?”. – Ela sugeriu. “Jana, você nunca ouviu falar na lei do viajante?”. – Finalmente, o meu momento havia chegado. “Não”. – Ela falou com a mesma expressão que eu havia feito quando ouvi aquela pergunta pela primeira vez no Camboja. “Um garoto me pagou um prato de comida lá no Camboja quando eu fiquei totalmente sem dinheiro. E ele me falou disso, me pediu para ajudar outra pessoa quando eu pudesse. Eu já passei por tanto perrengue nessa viagem e tantas pessoas me ajudaram. Deixa eu te ajudar agora. Pega o meu dinheiro para comer e ao invés de me pagar de volta, usa esse dinheiro para ajudar outra pessoa. O que você acha?”. “Eu acho perfeito. Obrigada não só pelo empréstimo, mas por ter sido a escolhida. Ajudarei outras pessoas com certeza.”. – Afirmou ela, emocionada. “É um prazer poder dar continuidade pelo bem que tantas pessoas fizeram por mim. Você sabia que fui furtada duas vezes na Tailândia? Tenho tanta história pra contar.”. – Eu falei rindo enquanto ela me perguntava mais. Jana usava muitas peças de prata. Falamos sobre isso e comentei com tristeza que a minha pulseira de prata

favorita, que havia comprado em Bali, estava na bolsa furtada. Ela tirou um anel lindo de prata do seu dedo e estendeu em minha direção. “O que foi?”. – Perguntei, sem entender o que ela queria. “Fica pra você, um presente meu. Para lembrarmos que o que é material pode ser substituído, para cada tristeza uma alegria. Vou ficar feliz se você aceitar.”. – Ela falou em um tom sincero. Sem rodeios, coloquei o anel no dedo e agradeci com um sorriso. Nunca mais veria Jana, mas para sempre lembraria do seu gesto.

51. A minha imagem refletida no espelho Os meus dias em Koh Phangan foram decisivos para eu olhar para trás e compreender tudo o que eu tinha vivido durante essa viagem. Assim que cheguei no hostel e larguei minha mala, me olhei no espelho novamente e me observei. Eu já tinha feito isso outras vezes durante a viagem, mas acho que finalmente eu conseguia olhar e me ver com verdade. Até aquele momento, eu só conseguia ver o que era palpável: via minhas roupas ficando velhas e apertadas, meu cabelo ressecado e minha pele oleosa. Mas viver tudo o que eu vivi e continuar vendo somente aquilo seria muito previsível: essa seria a visão daquela Letícia que eu deixei meses atrás no aeroporto do Rio. Como eu fui sábia em me despedir dela, mesmo com a incerteza de quem ela se tornaria. Hoje, olhando no espelho, eu sentia uma luz refletindo, como se uma estrela forte brilhasse dentro de mim. Percebi que todas as minhas escolhas durante essa viagem foram para que eu abandonasse tudo o que eu pensava ser. Eu não era mais as roupas que eu vestia, o carro que eu dirigia ou o que me diziam ser. Eu havia assumido a versão nua de mim mesma. Eu olhava para a minha imagem e não me sentia atraída pelo que via, mas por quem eu era. Mesmo que colocasse a

roupa mais cara e a maquiagem mais bonita, agora eu entendia que eu não era nada daquilo. Eu poderia perfeitamente usá-las, porque o material deixou de me possuir. Eu era muito mais, eu era todas as experiências que havia sentido. Sentir. As experiências que senti com o coração, as dores, as pessoas, os sabores e tudo mais que eu tive a sensibilidade de sentir, é que fizeram a mudança dentro de mim. Eu me sentia atraída pelo que eu havia me tornado e grande parte do que eu havia me tornado se resumia em uma palavra comumente usada por nós como amor. Mas o amor do qual eu falo não é o amor como pensamos, baseado na posse, no apego e na necessidade de ser amado. Eu era uma garota de sorte, porque desde cedo fui apresentada a um amor verdadeiro, que veio dos meus pais. Eu tive a sorte dos meus pais me amarem em liberdade, em me mostrarem o caminho e saberem que, em algum momento, eles teriam de me deixar partir. Eles me criaram e me deram a base para sentir o mundo, para criar minhas próprias possibilidades e os meus próprios caminhos. Amor não tem nada a ver com superproteção. Os meus pais me amaram tanto, mas tanto, que me deixaram livre. Eles me ensinaram, educaram, deram carinho e entenderam o ponto da ruptura, mesmo que aquela ruptura causasse medo neles. Mas confiaram no amor que me deram, porque só por meio do amor é que nos tornamos fortes. Hoje, eu via toda a trajetória da minha viagem como uma busca pelo amor. Eu queria tirar as amarras que me foram dadas e finalmente amar a mim mesma. Comecei a me

questionar porque aquelas pessoas tão simples viviam em uma forma de amor tão genuína, na qual sempre havia mais para ser compartilhado. No meu mundo, isso era tão diferente: eu via pessoas isoladas preocupadas com sua própria existência e apesar de haver fartura material, não havia amor para ser doado. Não havia tempo para um sorriso de bom dia ou para um chá com bolo no meio da tarde. E observando esses dois mundos tão distintos, percebi que o que faltava no mundo de onde eu vinha era amor próprio. As pessoas não se amam mais pelo que são, essa essência foi perdida. Elas amam o carro do ano que dirigem, o brilho do sapato recém comprado e o valor da roupa que vestem. Elas amam números. Amam celebridades, marcas, deuses e religiões. Se apegam ao externo. Estão externalizando um amor que deveria ser a si mesmo. Durante minha viagem, por todos os países que passei, sempre sobrava amor para doar. Quando eu digo que voluntariei na Tailândia, Camboja e Vietnã, as pessoas me olham com admiração, quase que me santificando pelo que eu fiz. Não há nada disso. No fundo, eu fiz tudo isso por mim mesma, porque me coloquei no desafio de aprender a me amar e quando amamos a nós mesmos é que damos a possibilidade para que os outros nos amem e, ainda, entendemos a importância de amarmos e compartilharmos. Há um longo caminho de aprendizado pela frente e sempre haverá, mas, hoje, eu entendi que o amor não é uma troca. Você não ama ao outro, você primeiro ama e respeita a si mesmo para depois deixar que esse amor

naturalmente transborde para os que te rodeiam. O amor não espera nada em troca. Se você não ama a si mesmo, você não vê valor na vida do outro, você magoa, destrói, aprisiona e até mata. Amar a si mesmo é a resposta para as guerras. Muitas das guerras que estão acontecendo no mundo estão ligadas à religião, porque a religião pede que uma pessoa ame um Deus superior e oferece recompensas por isso. Isso é uma barbárie. Se as religiões nos ensinassem a amar a nós mesmos, não haveria guerras. Ninguém destrói a vida a partir do momento que aprende a amá-la. Quando eu vim para essa viagem, parti com o desejo de ensinar e ajudar. Ironicamente, o resultado foi que eu aprendi e fui ajudada. Não existe nada de extraordinário na minha viagem. Eu não sou Malala, eu sou uma garota comum. Eu sou você, homem ou mulher, cheio de medos, desejos e sonhos. Eu não sofri os horrores da guerra, eu não estudei em Harvard e não sou filha de pessoas influentes. A minha jornada poderia ser sua. Eu precisei largar as minhas vaidades para me encontrar, para me respeitar e escutar aquela vozinha interior. Eu acredito que o turismo tem esse poder: de nos ensinar por meio da experiência vivida. Mas para isso acontecer, ele deve ser vivenciado e explorado de outra forma. Ele tem de deixar de ser esse símbolo de vaidade. O turismo é uma das maiores ferramentas para nos libertamos: de nada adianta trabalhar um ano inteiro acorrentado às nossas vaidades e medos e simplesmente mudar o local das nossas correntes. Estar acorrentado em um resort nas Bahamas não vai afrouxá-las. As viagens

precisam ser usadas como uma ferramenta de autoconhecimento, de empatia e de amor. Elas podem nos levar a outros mundos, para que entendamos o nosso próprio. Elas podem nos ensinar a deixar de lado nossas vaidades, tão mesquinhas e prejudiciais. Hoje, eu sentia mais do que nunca a necessidade de encontrar o equilíbrio e de me desapegar das definições. As pessoas querem sempre colar uma etiqueta na sua testa que te identifique e nós fazemos isso o tempo todo. Eu quero muito me tornar uma pessoa melhor, me conhecer, me amar cada dia mais e compartilhar esse amor. Quero estar aberta ao conhecimento, às culturas e às pessoas. Quero encontrar um equilíbrio que não tem nada a ver com ser uma pessoa neutra. Bem pelo contrário, quero ter um equilíbrio no qual eu seja intensa para vivê-lo de forma plena. Não, eu não vou me tornar hippie, não me defina. Sim, eu vou continuar consumindo, mas vou me preocupar em ser uma consumidora racional e valorizar a produção local. Não, a minha busca não havia acabado e acho que ela nunca acaba de fato. Sim, eu tinha muito para aprender, quanto mais eu conhecia mais eu entendia que nada sabia. Continuarei dizendo não a tudo que me limita. Hoje mais do que nunca me sinto em constante evolução e quero continuar viajando, voluntariando e me conectando a pessoas, porque é somente fazendo por amor que eu posso impactar o mundo. Me sentia tão plena nessa reta final da viagem que eu atraí todas as certezas que eu precisava. Conheci três britânicas com as quais criei uma conexão instantânea.

Charlotte, Katy e Louise eram amigas de infância e viajavam o mundo juntas, sem data para voltar para a Inglaterra. Elas eram divertidas, aventureiras e me acolheram como parte do grupo. Por serem amigas há muito tempo, deram o nome da amizade delas de triângulo, uma referência pelo triângulo ter três lados que o completa. Conheci-as no hostel, no qual, por coincidência ou não, fui parar lá por um erro do motorista. Juntas, alugamos motocas e explorávamos a ilha toda juntas, parando em praias, cachoeiras e comendo em restaurantes beira de estrada. A ilha é conhecida pelas suas festas e juntos fomos na Half Moon, que era o oposto da outra famosa. Essa festa foi no meio de uma floresta. Pintadas de tinta neon, nos divertimos a noite toda e conhecemos ainda mais pessoas. Comemos misto quente do 7-Eleven de café da manhã, invadimos resorts para usar a piscina e víamos o pôr-do-sol da frente do nosso hostel, que apesar de não ser dos melhores, era pé na areia e custava cinco dólares. Elas me convenceram a ficar mais dias, já que o último dia delas coincidia em ser um dia antes do meu voo. Mudei meus planos e decidi que ficaria. Contei a elas sobre as minhas aventuras, os voluntariados e as pessoas que conheci. Elas gostaram tanto que decidiram se voluntariar no projeto do Jason durante a viagem delas. E falávamos também de amores. Amores passou a ser um dos nossos temas favoritos. Confidenciei a minha história com o moreno. Eu sabia que acabaríamos nos reencontrando, mas, mais do que nunca, eu estava aprendendo a viver um momento de cada

vez. Aprendendo a deixar de sofrer pelo que ainda estava por vir. Eu sempre achei que um amor desses de cinema era algo obrigatório na vida de qualquer garota que largasse tudo para viajar pelo mundo. E olha que eu não sou das mais românticas, mas todas as histórias de viagem que eu leio envolvem um encontro com o cara dos sonhos em alguma ilha paradisíaca, onde eles se apaixonam e vivem felizes para sempre. Até a Elizabeth Gilbert descolou um brasileiro dos sonhos em Bali. Nós passamos a vida inteira no Brasil e já é difícil, como ela conseguiu essa proeza? O segredo só podia ser viajar o mundo por aí e contar com a força do acaso. As meninas concordavam com a minha opinião e falaram que elas mesmas tinham essa sensação de que a qualquer momento um amor para a vida poderia aparecer. Analisando a minha situação, de quem em uma semana estaria pegando o voo de volta para casa, concluí que a minha relação com o arroz branco seria a coisa mais próxima de uma paixão que eu viveria na Ásia. Eu não conseguia nem imaginar a possibilidade de conhecer alguém que se interessasse por mim, afinal, o meu estilo largada há seis meses não era muito atraente: garotos não se interessavam por roupas rasgadas, quilos a mais, unhas mal cortadas e pé encardido. Sim, confesso que meu pé estava encardido de tanto andar de pés descalços. Mas, em meio a esse pensamento tão superficial, eu não imaginava que conheceria alguém que se apaixonaria por quem eu era, alguém que, assim como eu, conseguia ver minha estrela que brilhava.

52. O que vivemos aqui, poucas pessoas viverão em uma vida inteira “Alguém vai gostar de você pelo que você é”. Parece tão simples, mas estamos sempre nos enganando, usando fórmulas prontas para agradar. Em um mundo cheio de vaidades, com garotas lindas, com o cabelo perfeito e a pose impecável do Instagram, como alguém que não se encaixa nesse perfil entra nesse jogo desleal? Garotos que querem a gata dos sonhos e que tem como referência fotos alteradas no Photoshop. Se ninguém está querendo conhecer a fundo ninguém, parece muito difícil você ser quem você é. Para isso, precisamos partir do princípio de que sentimos medo, porque, mais do que tudo, queremos ser aceitos e amados. A mudança só será possível a partir do momento em que enfrentamos nossos medos e acreditamos em nós mesmos. Não há nada de errado com o medo, o problema é a falta de coragem para agirmos. Se tomarmos como referência o que há de ruim ao nosso redor, vamos nos tornar pessoas fúteis, previsíveis e indiferentes usando a desculpa de que são todos assim. Mas, a partir do momento em que mudamos e amamos a nós mesmos, atraímos amor. Passamos a ter luz própria. Passamos a ser fonte de ideias e inspirações, nos tornamos seres viscerais.

Eu tinha aprendido que a minha vaidade não me definia, que eu não dependia dela para ser quem eu era. Não precisava dela para me auto afirmar. O cabelo que eu fazia questão de pintar, as curvas do meu corpo e o esmalte da unha não diziam nada a meu respeito. Eu tinha aprendido a viver bem com ou sem esses elementos. Quando estivesse com eles, eu saberia que esses apetrechos não deveriam jamais alimentar o meu ego, porque eu não sou eles, eu sou as experiências que vivi, as ideias que acredito e o amor que sinto. E isso ninguém tira de mim. E foi em Koh Phangan que um britânico charmoso confirmou todas essas minhas teorias. Ele, ao contrário de mim, estava apenas começando a sua viagem pelo mundo e mantinha toda a sua vaidade. Estava sempre vestindo roupas bonitas em um corpo no qual eu via músculos que eu nem sequer sabia que existiam. Olhos azuis, cabelo loiro bem cortado, deixando os cachinhos caírem perfeitamente na altura dos olhos. Nos conhecemos a caminho de uma cachoeira em Koh Phangan e não, não foi amor à primeira vista. Ele me chamou a atenção pela sua beleza, digna de uma capa da Men’s Health, mas no mesmo momento eu o julguei pelo que vi. Considerei que alguém com tanta vaidade jamais seria interessante, que ele era mais um daqueles caras que comem frango com batata doce a cada três horas e procuram a versão humana da Barbie. Eu estava infinitamente enganada. Ele viajava com o irmão e os dois se juntaram ao nosso grupo, que era predominantemente britânico. Seguimos todos juntos para diversas praias, exploramos outras

cachoeiras e passamos o dia todo juntos andando de motoca pela ilha. Nos perdemos, comemos em lugares estranhos e não tínhamos pressa para nada. A sensação era de que nós seis já nos conhecíamos há anos tamanha a afinidade que existia entre nós. Por ser a única brasileira, em pouco tempo me familiarizei com as piadas e o sotaque. As meninas diziam que eu estava fazendo um intensivo de “como me tornar britânica” e que já poderia me considerar uma também. De forma muito natural, eu e o britânico nos aproximamos em conversas longas que duravam muitas horas. Ele me contou que havia deixado um emprego estável em um banco para viajar pelo mundo e estava investindo em um negócio online para que pudesse ter a flexibilidade de viajar e trabalhar de qualquer lugar. Eu falei das aventuras da minha viagem, do meu interesse em voluntariar e do meu sonho de escrever um livro. Falamos sobre os relacionamentos atuais, baseados na posse e dependência. Questionamos o medo das pessoas de viver um momento de cada vez. Na dificuldade que temos em acreditarmos em nós mesmos. Ele me incentivou a escrever o livro. Nenhuma conversa nossa terminava em menos de duas horas e gostávamos de reflexões profundas e de piadas inteligentes. Seu humor me atraía. Nem sempre concordávamos, mas sempre aprendia ou ensinava algo. Via nele o desapego com a opinião dos outros: ele sinceramente não se importava. Via nele tanta coisa que ainda precisava aprender.

Entre tantas conversas, nos aproximamos e fazíamos tudo juntos. Durante o dia, nos divertíamos explorando a ilha, fazíamos lutinhas dentro da água, jogávamos bola, tirávamos fotos engraçadas, tomávamos banho de chuva. Toda noite, tínhamos uma programação diferente. Ele e o irmão vinham até o nosso hostel ou nós íamos até a praia deles, que era a praia mais badalada. Me sentia à vontade na companhia do britânico: fazíamos coisas idiotas o tempo todo e ele me fazia rir com suas tiradas. Era como se tivéssemos nos tornado melhores amigos. À noite, saíamos para os bares e nos divertíamos pela praia. Corríamos pela praia enquanto brincávamos de carregar um ao outro nas costas. Quando paramos por um instante, percebi que estava toda suada e com calor. Lembrei-me de que aquela era a praia que tinha plânctons e que minha viagem chegava ao fim. Sem avisar, fiquei de calcinha e sutiã e corri em direção ao mar chutando a água e a sentindo gelar meu corpo. A garotinha dentro de mim vibrava com a sensação. Eu estava me permitindo viver e sentir: não queria me importar mais com o que os outros pensassem. Mergulhei. Mexia os braços e as pernas para ver os pontos verdes luminosos aparecerem. A natureza era perfeita. De repente, o britânico se juntou a mim. Pulamos ondas juntos, jogamos água um no outro, mostrei para ele os plânctons e continuamos as nossas conversas intermináveis. Saímos da água porque já estava tarde e as meninas estavam me esperando para irmos embora. Colocamos as

roupas escondidos, rindo sem parar, quando o vento levou a minha blusa embora em direção as pedras e um tailandês que andava pela redondeza me ajudou a achá-la com uma lanterna. O riso do britânico me fazia bem. Eu me sentia livre ao lado dele como poucas pessoas já haviam feito eu me sentir. Eu sempre vivi muitas aventuras sozinha, porque poucas vezes as pessoas têm coragem de pegar a minha mão e de vivê-las comigo. “Sinto como se eu não precisasse de mais nada na minha vida além disso” – Disse ele, enquanto analisava o horizonte. Olhei para ele e reparei como estava bonito com os cachinhos molhados. “Os últimos dias da minha viagem não poderiam estar sendo melhores.”. – Eu realmente me sentia feliz e realizada. Eu não imaginei que nos envolveríamos, até ele me olhar fixamente por alguns segundos e me beijar. ... Eu e o britânico passávamos mais tempo do que nunca juntos. Cada dia que se passava tornava os dias na ilha ainda mais intensos: íamos a mais praias, fazíamos mais festas e nos divertíamos cada vez mais. Ele gostava do meu jeito brasileiro de ser carinhosa e eu estranhava a sua pontualidade britânica quando ele me mandava mensagem dizendo que estava cinco minutos atrasado. Ríamos das nossas diferenças e tornamos aqueles dias inesquecíveis.

Fomos todos juntos em uma festa que ficava em um lugar isolado. Pretendíamos chegar de barco até descobrir que o mar estava muito agitado e o serviço foi cancelado. Como alternativa, enfrentamos mais de 30 minutos na carroceria de uma caminhonete: adrenalina pura. Éramos quase arremessados para fora da 4x4 a cada buraco imenso morro a cima. Macacos nos acompanhavam nas árvores. O excesso de lama nos fez ter que descer do carro para podermos continuar em alguns trajetos. Mas, como sempre, a recompensava nos esperava. Uma festa incrível em um lugar absolutamente bonito no alto de uma montanha. Muitas pessoas se divertiam ao som da música eletrônica, dançando livremente. Antes de amanhecer o dia descemos a trilha até a praia. Tudo naquela ilha era sinônimo de intensidade e beleza. Eu e o britânico deitamos nas pedras para ver o sol nascer e pela primeira vez o assunto das nossas conversas mudou, faltava apenas um dia para eu e as meninas deixarmos a ilha. “Você tem certeza que vai voltar para o Brasil?”. – Ele perguntou enquanto olhava para o céu. “Momentos como esse fazem a minha escolha mais difícil. Mas eu sinto que é hora de voltar, minha família me espera e eu quero trabalhar no meu projeto.”. “Vai pra Bali comigo?”. – Eu não conseguia decifrar se ele estava falando sério ou brincando. “Que pergunta injusta. Deixa eu te fazer uma pergunta também. Vai para o Brasil me visitar? Eu preciso de um final feliz para o meu livro”. – Inverti a situação.

“Justo você preocupada com o final, isso não combina com o seu jeito de viver a vida.”. – Ele finalmente me olhou e tive a sensação de me ver refletida em seus olhos azuis. Ele me beijou na testa e continuou. “O que vivemos aqui, nesses poucos dias, poucas pessoas viverão em uma vida inteira. Você é a garota mais incrível que eu já conheci.”. “Ser incrível de férias em uma ilha paradisíaca é fácil. Na vida real eu não sou tão incrível assim” – Ri da minha sinceridade. “Pode ser, mas eu continuo achando você incrível. Nem todo amor nasce para ser colocado à prova. E justamente por isso você vai ser sempre o meu amor mais bonito, que jamais se desgastará pelas brigas diárias, mas que vai viver em mim por meio das memórias que somente nós dois compartilhamos. Amor não é necessariamente aquele que tem um final feliz, amor é aquele que existe em plenitude, que sabe admirar e respeitar, que sabe deixar livre. Não somos o tipo de pessoa que vai aprisionar uma à outra. Talvez sejamos mais completos separados.”. – Ele continuava me olhando com uma delicadeza difícil de ser explicada. “Nos conhecemos no final da minha viagem e no começo da sua. Você ainda tem meses de estrada pela frente e muita coisa vai acontecer ainda. O mundo te espera. Será que é certo deixar que quatro dias marquem tanto uma vida? Qualquer pessoa sensata me diria que não.”. – Eu já sabia a resposta da minha pergunta. “Acho que já não temos mais essa opção, já está marcado. É difícil de explicar e talvez as pessoas jamais

entendam. Me apaixonei por quem você é, pelo seu jeito livre.”. “Do que vivemos, só nós sabemos. Vamos ficar em contato! Quero sempre ter pessoas como você por perto, mesmo que longe, essa é minha especialidade. Você me faz acreditar no impossível. Estou muito feliz por ter te conhecido.” “Eu também estou. Você é uma garota que não se contenta com pouco, você sabe do que você precisa para ser feliz e isso me dá a certeza de que você vai realizar todos os seus sonhos”. – Ele não tinha problemas em falar de sentimentos. “Por que as nossas conversas são sempre longas e profundas? Chega disso, vamos aproveitar o que nos resta. O sol nasceu, mas a festa ainda não acabou. Vamos voltar lá para cima.” – Já que tínhamos pouco tempo, deveríamos aproveitar. “Tá vendo, é disso que eu estou falando. Vamos lá.” – Ele me pegou pela mão e seguimos em direção à trilha que nos levaria de volta à festa. Subimos a trilha e nos encontramos com as meninas, que também estavam em clima de despedida. Todos nós sabíamos que em breve seguiríamos rumos diferentes. Aproveitamos até o último minuto para celebrarmos a sorte de termos nos conhecido.

53. O meu projeto de vida Eu não sabia dizer se o britânico realmente ficou doente no dia de eu partir ou se ele preferiu não se despedir. Nem todo mundo gosta tanto de despedidas como eu. Nós nos despedimos por mensagens e acho que foi melhor assim. A minha viagem tinha chegado ao fim. Eu ainda tentava encontrar espaço dentro de mim para acomodar tudo o que havia vivido. Parecia tanto para uma pessoa tão pequena. Procurava espaço para abrigar tantos sentimentos bons que me invadiam. Pela primeira vez na vida, eu sentia a necessidade de gravar na pele algo que me lembrasse para sempre o que tinha vivido nesses seis meses. Pouco antes de irmos embora da ilha, eu e as meninas dirigimos quase meia hora com nossas motocas até uma pequena casa de madeira, na beira da estrada. Deitada em uma maca, escutava o reggae que tocava ao fundo e reparava na decoração nada minimalista do ambiente, uma foto do Bob Marley, pôsters, o símbolo da paz e muitas fotos do meu tatuador. Ele era muito engraçado: parecia a reencarnação de alguma figura hippie dos anos 70. Ele era baixinho, magro, tinha o cabelo um pouco ondulado bem escuro e comprido, uma faixa grossa atravessada na testa, vestia uma camisa

floral que só começava a ser abotoada na metade do peito e calças vermelhas. Era ele quem sorria para mim enquanto preparava as agulhas que iriam presas em uma vara de bambu. Essa era uma técnica muito antiga e tradicionalmente asiática. Katy apoiava minha perna em seu colo, Louise segurava a minha mão e Charlotte ajudava o nosso amigo segurando minha boca. Quando o nosso amigo fez sinal, ela puxou o meu lábio inferior que já tinha uma prévia do desenho, transferida de um papel-manteiga para a minha pele. Eu senti muita dor. Era a primeira vez que o tatuador fazia uma tatuagem de bambu dentro da boca. Ele segurava com muita precisão o bambu e, de tempos em tempos, molhava a ponta das agulhas em um potinho com a tinta preta. Charlotte continuava firme e forte segurando o lábio. Inesperadamente, começou a tocar uma música do Natiruts, uma das minhas preferidas de quando era adolescente. Me trouxe calma escutar o verso que dizia “…quero ser feliz também…”. Qual era a probabilidade de tocar uma música do Natiruts bem no momento em que eu fazia uma tatuagem em uma ilha da Tailândia? Muito, mas muito baixa. Katy já tinha abandonado a minha perna e fazia vídeos daquele momento. Essa era a minha primeira tatuagem, então não sabia comparar com a dor de uma tatuagem tradicional. Mas doeu muito e eu não podia nem gritar. Meus pais iam me matar quando eu contasse. E foi assim que eu gravei a palavra LOVE em mim. Não conseguia imaginar nenhuma outra palavra que definisse

melhor essa minha jornada em terras asiáticas. Ela me lembraria para sempre de toda a experiência que eu vivi, por não estar visível a ninguém, era como um lembrete para mim mesma, de que o amor começa de dentro para fora. Para mim, ela representava uma busca, uma vitória, a conquista de um grande sonho. Ela me ajudaria a nunca mais esquecer de cada um dos sorrisos, pessoas, lugares, lágrimas, despedidas, dores e gargalhadas que fariam do Do For Love o meu projeto de vida.

SIM, É POSSÍVEL… Eu lembro de estar perambulando pelas ruas de São Francisco, vagando sem rumo, quando entrei aleatoriamente em uma loja que vendia objetos criativos. Como sempre, a sessão de livros me atraiu. Na verdade, um livro em especial. Eu não me lembro do título exatamente, mas era algo como “100 coisas para você fazer antes de morrer”. Sim, um clichê, mas eu tinha 18 anos e estava fascinada com a liberdade do meu primeiro mochilão. Folheei o livro e li grande parte das dicas. Fiquei feliz ao perceber que algumas coisas eu já tinha realizado, como aprender uma nova língua, enquanto outras pareciam impossíveis, pois nem todo mundo sonhava em ganhar o Oscar. Mas uma delas me chamou a atenção: a que dizia em letras garrafais ESCREVA UM LIVRO. Desde criança, fui apaixonada por livros. Mas pela primeira vez, estava questionando o meu hábito de leitura. Ao invés de passar o resto da vida lendo e comprando livros que contam histórias de outras pessoas, eu poderia escrever a minha própria história. Poderia ser a protagonista das minhas aventuras. Nunca ninguém havia me ensinado que eu poderia ir além da leitura daquelas páginas. Quando estava na segunda série, a professora entregou uma folha com três gravuras e pediu para escrevermos uma história. Eu escrevi frente e verso e ainda anexei uma folha

extra, criando uma imensa aventura para a garotinha das gravuras. Meus pais foram chamados na escola. Mas agora aquela mensagem no livro me trazia um novo mundo de possibilidades. Continuei minha viagem. Uma sementinha tinha sido plantada em mim. Já de volta ao Brasil, eu decidi que iria escrever um livro, mas que não contaria para ninguém. Se eu contasse para as pessoas que eu queria ser uma escritora, elas zombariam de mim. Ser escritor era coisa de gente sonhadora, era escolher ficar pobre para o resto da vida. Eu não queria escrever ficção, não queria me esconder por trás de personagens, eu queria escrever sobre as coisas que eu acreditava. Com 18 anos, eu me sentia diferente das outras pessoas. Queria escrever o que eu não conseguia falar com ninguém. Eu não fazia a menor ideia de qual seria a minha profissão, mas eu tinha comigo uma certeza de que algum dia alguém me descobriria. Eu não sabia bem ao certo, mas era como se, de surpresa, um olheiro me encontraria e minha vida se resolveria. Escrevi sobre mim, sobre o meu desejo incansável de querer viajar e de como era difícil me adaptar à maneira míope de como as pessoas viam a vida. Eu tinha uma urgência em mim que não via nas outras pessoas. Escrevi algumas poucas páginas, salvei em uma pasta que ninguém acharia e, com o tempo, eu mesma não a achei mais. Eu tinha vergonha de alguém descobrir que eu escrevia sobre mim: escrever era uma grande besteira e eu era somente mais uma pessoa que deveria seguir o modelo de vida imposto.

Tudo o que eu ouvia era que eu precisava me formar e conseguir um emprego, precisava achar uma maneira de me tornar financeiramente independente dos meus pais, precisava pagar as minhas próprias contas. Durante muitos anos, eu continuaria nessa briga interna: a minha verdade contra a verdade alheia. Eu não me encaixava nos moldes, mas também não era uma rebelde. Eu queria viver um equilíbrio que parecia não existir. Não conseguia encontrar aquela etiqueta que me definiria. Foi durante a viagem para o Sudeste Asiático que comecei timidamente a publicar meus textos. Não os publicava porque os achava excelentes, publicava porque eu tinha a necessidade de compartilhar o que eu sentia com o mundo, alguma coisa começava a transbordar em mim. Aos poucos, fui gostando de me expor, porque percebi que não estava sozinha naquela busca e mais pessoas me acompanhavam. Conforme escrevia mais relatos, comecei a receber algumas mensagens pedindo para que um livro fosse publicado. Eu tenho certeza que nenhuma daquelas pessoas que me fizeram esse pedido imaginavam o quanto ele mexeria comigo. Ele me levou de volta para aquela página do livro que eu vi em São Francisco que me dizia: ESCREVA UM LIVRO. A diferença é que agora essa frase se repetia nas palavras de outras pessoas, elas acreditavam que a minha história valia a pena ser contada, elas estavam acreditando em mim. Mas ainda haveria um longo caminho a ser percorrido. Eu precisava acreditar em mim mesma. Em algum momento eu entendi que aquele olheiro, aquela pessoa que eu esperava

me descobrir, aquela pessoa era, na verdade, eu mesma. A partir do momento em que eu me descobri, eu me amei e acreditei em mim. Eu me encontrei na soma da minha paixão por viajar com o meu desejo por ajudar, mas cada um percorre o seu próprio caminho e vai se transformando ao longo da jornada. Independentemente de qual caminho seja, o mais importante é que façamos por amor e que sejamos fiel a nossa essência, a quem somos. Sempre lembrando que o amor nasce dentro de cada um e só podemos doar aquilo que transborda em nós. Eu sempre tive muitos sonhos, mas não queria ser uma simples sonhadora. Eu queria ser uma sonhadora que realiza, eu queria poder falar com a prioridade de quem concretiza um sonho que é preciso acreditar com todo o coração, é preciso ter força para seguir em frente, é preciso confiar na grandiosidade da vida e lutar pelo que acreditamos, pelo que sonhamos. E nesse momento, este livro em suas mãos representa o meu sonho realizado. Ele começou pequeno, tímido, facilmente teria sido deixado de lado diante das “urgências” da vida. Mas esse sonho se tornou possível com a ajuda de quase 400 pessoas por meio de um financiamento coletivo que atingiu 130% da meta. Isso foi em 2016, quando a minha presença online era quase inexistente e eu trabalhava como garçonete em Nova York. Esse pequeno passo na direção do que eu acreditava me levou a dar outros passos que cada vez mais me guiam na direção do que eu realmente sonho para mim. Logo depois de lançar o livro, fui chamada para a segunda palestra da minha vida: um TEDx. O Ted Talk é uma

plataforma mundialmente conhecida e um sonho para muitas pessoas. A minha fala teve o tema “Pratique a lei do viajante” e foi emocionante ver como as pessoas se conectaram com o que eu tinha para compartilhar naquele momento. Poucos meses depois de lançar o livro, marcando 3 anos dessa viagem para a Ásia, eu retornei em todos os países e reencontrei os principais personagens que você acabou de ler nessas páginas e em parceria com um dos diretores mais talentosos da sua geração, Lucas Bogo, gravamos um documentário independente, sem nenhum apoio ou patrocínio. O documentário foi financiado pela venda de livros e camisetas, o que nos possibilitou dar vida a um filme inspirador e verdadeiro. Eu mesma organizei exibições do documentário em 14 cidades brasileiras seguido de sessões em Los Angeles, San Diego e um tour pela Europa que encheu salas de cinema em Londres, Lisboa, Barcelona, Berlin e Dublin. Por ser uma produção independente, tivemos que explorar cada janela de distribuição do filme antes de finalmente disponibilizá-lo na internet. Mas depois de rodar o Brasil, a Califórnia, a Europa e estrear no Canal Futura para todo o Brasil, finalmente ele estará disponível online. Ler o livro e assistir ao filme, independente da ordem, é uma experiência única, pois permite ao leitor conhecer os personagens reais dessa história. O livro ganha cores, vozes, música e as histórias se complementam. Te convido a procurar nas redes sociais informações atuais de como você pode assistir ao filme! E se você já assistiu ao filme e acaba

de ler o livro, fico feliz em saber que você viveu a experiência por completo. E foi assim que a ex-garçonete perdida pelo mundo foi aos poucos encontrando seu espaço. Hoje me vejo sendo escritora, documentarista, protagonista do documentário, produtora dos meus eventos, empreendedora, palestrante, viajante, roteirista e curiosa por todas as novas experiências, destinos e descobertas que estão por vir. Sigo desconstruindo muitos padrões do modelo tradicional que me foi apresentado, sigo me questionando e cada vez mais me aceitando como um ser múltiplo, errante, curioso e acima de tudo, apaixonada pelo desconhecido. E eu espero de todo meu coração que esse livro seja fonte de inspiração na sua vida, que ele te inspire a ser você mesmo, a viver o seu “Do For Love” e a ter certeza de que vale a pena lutar e acreditar. Saiba que todos os seus sonhos são possíveis!

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PUBLISHER Leticia Mello CAPA Arthur Brognoli FOTO DA CAPA Victoria Shao DIAGRAMAÇÃO Arthur Brognoli REVISÃO Claudio Mello Arthur Leite de Godoy

Notas [1]

Lady boy é uma gíria comumente utilizada na Tailândia que se refere aos transexuais asiáticos.[Voltar] [2]

GAARDEN, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo, Cia. das Letras, 4 ed., 1995. [Voltar] [3]

“Você nasceu para resistir ou para ser abusado? Tem alguém tirando o melhor de você?"[Voltar] [4]

Agora que você faz parte do meu mundo, te faço um convite super especial: traga essas experiências da leitura para sua vida. O capítulo de ponta-cabeça é um convite para te tirar do lugar comum, pensar fora do padrão e não se importar com o que os outros vão pensar; as fotos ao final do livro tem uma linha pontilhada para você cortar as fotos e usá-las, uma maneira divertida de colocar o desapego em prática. As mudanças que desejamos na nossa vida começam com desafios pequenos e gostaria que essa leitura te ajudasse de alguma forma. Esse livro tem vida própria e acredito muito que ele chega até cada pessoa na hora certa. Então fique a vontade: empreste o livro, passe-o adiante ou presenteie alguém especial com um exemplar. Precisamos de cada vez mais pessoas vivendo suas verdades e influenciando de forma positiva o mundo ao seu redor. Meu desejo é que essa leitura te faça refletir, questionar e realizar seus sonhos. Afinal, qual é o seu Do For Love? [Voltar]