Do bom uso erótico da cólera 8571103631

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Do bom uso erótico da cólera
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DO BOM USO EROTICO ,, DACOLERA e algumas de suas conseqüências ... Gérard Pommier

:ahar Editor

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Transmissão da Psicanálise

DO BOM USO ERÓTICO DA CÓLERA

facebook.com/lacanempdf

Transmissão da Psicanálise diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

Gérard Pommier

DO BOM USO ERÓTICO DA CÓLERA e algumas de suas conseqüências ... Tradução: VERA RIBEIRO.

psicanalista

Revisão técnica: MARCOS COMARU

mestre em teoria psicanalítica, UFRJ

Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

Título original: Du bon usage érotique de la colere et quelques unes de ses conséquences ... Tradução autorizada da primeira edição francesa, publicada em 1994 por Editions Aubier, de Paris, França, na coleção La psychanalyse prise au mot. Copyright © 1994, Aubier Copyright© 1996 da edição para o Brasil: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (021) 240-0226 / Fax: (021) 262-5123 Todos os direitos reseivados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988) CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

P848d

Pommier, Gérard Do bom uso erótico da cólera e algumas de suas conseqüências ... / Gérard Pommier; tradução Vera Ribeiro; Revisão técnica Marcos Comaru. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. - (Transmissão da psicanálise) Tradução de: Du bon usage érotique de la colere ISBN 85-7110-363-1 1. Sexo (Psicologia). 2. Erotismo - Aspectos psicológicos. 3. Ira - Aspectos psicológicos. 4. Psicanálise. 1. Título. 11. Série.

96-0865

CDD 155.3 CDU 159.964.2

SUMÁRIO

Prólogo, 7 Sob o trópico de Capricórnio, 9

O

EROTISMO DA CÓLERA MASCULINA, 21

Erotismo do traço paterno, 23 Impessoalidade do objeto do desejo, 28 O simulacro resolve o problema, 34 A agressão do feminino corresponde à castração paterna, 38 Articulação do "complexo" de castração com a violência masculina, 42

A DEMANDA IMPOSSÍVEL DA SEDUÇÃO FEMININA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS, 51 O erotismo da provocação, 52 Do embaraço da sexualidade feminina em suas próprias condições de efetivação, 57 Desejo do pai e impasse pulsional do erotismo, 61 A duplicidade paterna e sua "solução" exogâmica, 67 O sintoma, erótico apesar do sofrimento, 72 O sintoma, índice da duplicidade paterna, 80 Apanhado sobre a evolução respectiva do erotismo feminino e do mito paterno, 94

ÜBSERV AÇÕES SOBRE AS PRELIMINARES DA EXCITAÇÃO SEXUAL, 100 Da excitação pulsional ao auto-erotismo, l 02 Violência pulsional e corpo erógeno, 106

O SINTOMA DA EJACULAÇÃO PRECOCE, 110 A quem se dirige a agressão na ejaculação precoce?, 118 A linha demarcatória da duplicidade paterna, 128 Mitologia da referência paterna adequada, 130 Simplicidade de princípio, complexidade de execução, 133

O DESEJO DE TER UM FILHO OFERECE UMA SOLUÇÃO PACÍFICA?, 138 Divergência de princípio entre o amor e a reprodução, 140 A idealização do amor como conseqüência do recalcamento, 143 Por que ter um filho nessas condições, senão em razão direta do recalcado?, 150 Só provirá a exogarnia do recalcamento? (Algum dia nos livramos da família?), 155 O desejo do filho corno filho esperado "do pai" ... , 158 Ter um filho "para a mãe", 165 Esperar um filho "do pai" ... para a mãe, 173

A CÓLERA ERÓTICA, FICÇÃO EXEMPLAR DA TRANSGRESSÃO, 179

Prólogo

Existe uma dificuldade específica em comunicar os resultados da experiência psicanalítica. Com efeito, o inconsciente é regido por regras diferentes das da lógica clássica, e o raciocínio só explica seus efeitos aproximativamente. De modo que o praticante corre o risco de ficar desencorajado no momento em que tem que se explicar sobre os resultados de uma ação que, apesar disso, não é inefável. Ele pode então utilizar os instrumentos das lógicas para-consistentes ou os da topologia, mas, nesse caso, suas formulações serão largamente incompreensíveis para o leigo. Por conseguinte, ele pode preferir reservar seu uso aos iniciados. Para contornar esse obstáculo, existem outros procedimentos discursivos, dentre os quais podemos incluir o equívoco, o chiste e os sonhos: em suma, a apresentação das formações do inconsciente. Tal é o método adotado nesta obra, que privilegia amplamente o relato clínico. Os diferentes fragmentos de análise que leremos comportam, todos eles, uma mesma característica: estão centrados num sintoma ou numa formação do inconsciente. Todavia, inúmeros detalhes secundários desses breves relatos foram modificados, para que ninguém possa identificar os analisandos assim convocados a testemunhar em favor de algumas proposições. Com efeito, apesar de essencialmente clínica, esta obra não deixa de comportar teses, que esperamos que os diferentes fragmentos expostos possam tomar evidentes, a ponto de dispensar uma demonstração muito enfadonha. Por fim, o leitor há de compreender que o tom irônico escolhido em muitas passagens concerne à relação do autor com a psicanálise, que convém considerar com a necessária irreverência, sob pena de vê-la recair na pesada categoria das religiões. De que adiantaria a descoberta 7

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do bom uso erótico da cólera

freudiana corroer os ideais e os dogmas, sempre tão alienantes, se, ao mesmo tempo, os teorizadores do inconsciente tirassem do chapéu um novo Ideal? Um tom trágico não convém. A ironia socrática cai melhor, ao menos na matéria aqui abordada.

Sob o trópico de Capricórnio

No verão do ano de 1991, uma das conferências que eu havia preparado para meus amigos brasileiros intitulava-se "Do bom uso erótico da cólera" (tradução para o português do título desta obra"). Não seria mais franco propor uma conversa sobre o assunto, já que a sexualidade está no cerne das preocupações dos que se interessam pela psicanálise? Admitimos que sim; de fato, nos dias atuais, a teoria freudiana constitui uni elegante tapa-sexo, apreciado em sua justa medida pelos entusiastas da coisa: eles podem, graças ao academicismo de uma disciplina que agora tem direito de cidadania no liceu e na universidade, deixar infiltrar-se como um contrabando cultural seu interesse pelo que Breton chamava de "indestroçável núcleo da noite". No ano anterior, eu tinha sido mais clássico, abordando sucessivamente "a lógica do inconsciente" e me interrogando com prudência sobre" a científicidade da psicanálise". Essas conferências, proferidas diante de um público atento, embora às vezes sonolento, valeram-me um certo sucesso de estima. Havendo-se transcrito o registro dessas alocuções demonstrativas e bastante austeras num português menos aproximativo que o meu, elas foram impressas e colocadas à venda nos meses subseqüentes, e delas recebi um exemplar. Belíssima apresentação, aliás, mas - surpresa! - a capa representava a foto de corpo inteiro de uma jovem bastante apetitosa, mostrada em sua completa nudez e lançando ao futuro leitor um olhar tórrido, que era a conta certa de fazê-lo comprar imediatamente o opúsculo. Sem desmerecer

• Em português no original. (N.T.)

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do bom uso erótico da câlera

minimamente o interesse dessa pessoa encantadora, não me pareceu evidente, no entanto, a relação que poderia existir entre sua anatomia e os áridos temas que eu havia abordado. Sem que eu as solicitasse, foram-me fornecidas explicações bastante confusas. Para serem compreendidas, elas pressupunham um bom conhecimento da situação geopolítica do Brasil, bem como um domínio dos dados conjuntos do brusco aumento da hiperinflação e do inopinado retomo da democracia, que ninguém esperava que se instalasse por mais de alguns meses naquelas paragens. Daí resultava que o Brasil, apesar de sua reputação de ser -um dos principais produtores mundiais de madeira, tinha que importar papel ao preço estipulado na bolsa de Nova York, e o custo dos livros tomava-se proibitivo. Em suma, a fabricação daquela coletânea de conferências tivera de ser confiada a um mosteiro de beneditinos, cujas tabelas de preços derrubavam toda a concorrência. Não havendo o prior do mosteiro, ao que parece, recebido nenhuma instrução a esse respeito, e tendo percebido que se tratava de psicanálise, matéria das mais sulfurosas e diabólicas que há, ele se encarregara de colocar na capa a encantadora criatura já evocada, que h~via julgado decorativa e apropriada ao assunto. Eu fora desmascarado. Mas fiquei impressionado com as explicações que me foram dadas. Que o prior do mosteiro, à simples menção da palavra psicanálise, tivesse querido apontar sem rodeios o objeto de minhas afirmações, a despeito de minhas sábias contorsões, dava no que pensar, ainda que a veracidade desse complexo circuito pudesse ser posta em dúvida em mais de um aspecto. Se aquilo era apenas uma invenção, assim apresentada a mim por interlocutores carentes de desculpas, nem por isso deixava de ter valor de verdade: sublinhava essa dimensão do sagrado que só veio à tona, em nossa época, graças à coisa sexual, em sua relação com o inconsciente. Verdade ou mentira, esse ato incongruente do monge, digno de um país onde a religião continua viva, e portanto, erótica, evocou-me certos personagens de Eponina, de Georges Bataille, em especial a passagem em que um abade, no momento mais patético de sua oração, descobre-se diante do que lhe revela uma saia, intempestivamente levantada pelo vento: "O abade ajoelhou-se mansamente ( ... ) cantou de um modo consternado, lentamente, como diante de uma morte: Miserere mei Deus, secundum misericordiam magnam tuam. Aquele gemido de uma melodia voluptuosa era muito suspeito. Confessava bizarramente a angústia ante as delícias da nudez ... No momento em que viu o abade,

sob o trópico de Capricórnio

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visivelmente saindo do sonho em que continuava aturdida, Eponina pôs-se a rir( ... ) e o abade, que interrompera um cacarejo mal abafado, só levantou a cabeça, com os braços erguidos, diante de um último nu: o vento tinha levantado o casaco, que, no momento em que o riso a desarmara, ela não havia conseguido manter fechado." O monge impressor decerto não se dera ao trabalho de ler a conferência, onde, depois de haver interrogado a científicidade da psicanálise, e uma vez passados os rapapés e maneirismos destinados a ganhar a simpatia dos doutores presentes na sala, eu havia concluído francamente que não era esse o caso (o caso de quê? eu não dera maiores esclarecimentos). Ele devia ter pressentido que, tal como o da religião, meu discurso relacionava-se diretamente com a coisa sexual, que é tudo menos científica. Mas como, ao contrário da religião, a psicanálise não renegava suas origens, ele me prestara fraternalmente o serviço daquela capa magnífica, que a posteriori reconheci ter tido para mim, graças a esse retomo do recalcado tropical, um valor de interpretação. As fórmulas matemáticas, a lógica, os arcanos do significante, o transfinito de Cantor e a banda topológica de Moebius haviam-me permitido, assim como a meus colegas de lacanismo, falar da libido e, ao mesmo tempo, conservar um tom de bom gosto. Tanto assim que o erotismo, no momento em que era introduzido quase que nos bancos escolares como uma disciplina entre outras, beirava a auto-emasculação pela profusão descritiva, até mesmo para aqueles alunos sempre dispostos a ler os livros com apenas uma das mãos (segundo a maliciosa fórmula de Rousseau). Mas, decididamente, não era mesmo espantoso esse Freud, por poder ser utilizado para abafar o que suas elucubrações, em princípio, deveriam ter permitido liberar (sem excessivo proselitismo de sua-parte, convém admitir)? Acaso ele não permite ao sábio professor que pensa nesse assunto falar dele sem falar, embora continue pensando? Mas, esqueçamos esse professor fictício e voltemos ao episódio do beneditino brasileiro, tão rico em ensinamentos! Antes que eu compreendesse a importância daquela capa magnífica, esse acontecimento obscuro e divertido chamara minha atenção e me levara a abordar mais diretamente meu tema estival, escolhendo este título," Do bom uso erótico da cólera". Com isso, eu pensava dar mostras de franqueza e desfazer um equívoco inútil. Mas, infelizmente, muitas vezes é esse o destino dos mal-entendidos! Justamente quando acreditamos desfazê-los, eles só fazem aumentar: ouvindo esse título, o ouvinte sul-americano dessa conferência poderia pensar no _livro de

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Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera, por causa da homofonia da palavra cólera, que permite uma confusão com a temível epidemia que até hoje continua a ser ameaçadora naquelas paragens. Segundo as leis da epidemiologia, o mal-entendido alastrou-se e a relação com o desconhecido se ampliou, de modo que a conferência sobre "o bom uso erótico da cólera" teve um certo sucesso nos meios de comunicação brasileiros. Em meio ao noticiário de diversos assaltos com a captura de reféns e à crônica política de uma direita triunfante, embora desarvorada pela ausência da esquerda, diversos jornais locais apoderaram-se do assunto. Sem dúvida, era previsível que a violência amorosa despertasse mais interesse do que a lógica abstrata do inconsciente. Mas eu ainda não avaliara muito bem, na época, a generalidade dessa observação, que - haverá alguma surpresa nisso? - era válida para muitos outros lugares além do Brasil. Numa época de crescente ocultação do sagrado e de recuo das ideologias, atestando sua laicização, acaso a questão do erotismo não vinha em primeiro plano, fazendo da figura feminina, por exemplo, um passe-partout universal? Quando tive a oportunidade de comunicar a amigos o título destas conferências sobre o amor colérico, essa denominação, em geral, teve o dom de lhes desencadear a hilaridade. O riso é uma reação muito natural, mas, toda vez que eu lhes perguntava, depois de eles se recomporem, que é que os divertia tanto, as conjecturas se acumulavam, em si pouco risíveis. O erotismo da cólera, no entanto, tem um lado cômico. Que há de mais desopilante que a briga de dois amantes, quando se encerra num desencadeamento de paixão? Quanto mais violenta a discussão, mais sensual parece seu epílogo. Mesmo quando dois amantes observam que se entregam descontroladamente. a seus pendores belicosos, que se concluem dessa maneira tão libidinal, nada é capaz de fazê-los largar esse divertido hábito! É só verem essas cenas incendiarem alguns de seus casais de amigos, ou observá-las na literatura ou no teatro, e nada os diverte mais. No entanto, é sem o menor distanciamento que eles explodem amorosamente quando, por sua vez, o demônio da cólera os incita. Que há de tão engraçado nessas situações, ao menos quando dizem respeito aos outros? Sem dúvida, sua conclusão, contrária a suas premissas: um desfecho que justifica, no caso, o termo bifronte tragicomédia, podendo o primeiro ato às vezes beirar a catástrofe. Porventura o móbil hilariante da situação (quando tudo acaba bem) não é

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idêntico ao do teatro de máscaras? Nele, de fato, cada protagonista tem o poder de se desdobrar, e sua fala tanto se dirige a um ausente quanto ao personagem que ele tem diante de si. Assim, o desenrolar da trama resume-se no esforço que cada ator empenha para que caiam as máscaras, no momento do happy end. "Não era ela, não era ele!" "Não era ele, então, era você!" Não é próprio do amor exacerbar violentamente o desejo, graças a um subterfúgio? E não convém render graças àquilo que pode enganar-nos dessa maneira, mesmo que seja por um instante? A iminência da catástrofe terá sido necessária, não por ela mesma, mas para que enfim as máscaras sejam arrancadas e a paixão se realize. No resultado da pesquisa que conduzi com eles, os amigos consultados foram quase unânimes: acharam a idéia realmente interessante, embora protestassem que ela, de modo algum, lhes dissesse respeito. Nada, em suas lembranças pessoais, evocava-lhes esse tema, porque, como pessoas civilizadas, a cólera nunca tivera para eles a menor função erótica. Nunca lhes acontecera quase sair aos tapas com um representante do outro sexo, para se descobrir na cama com a mesma pessoa, no instante seguinte, com a mais fogosa disposição. Deus os livrasse de serem grosseiros e descorteses a ponto de cobrir de injúrias uma criatura encantadora, para depois fornicá-la deliciosamente, em meio a suas lágrimas! E eles também não guardavam nenhuma lembrança de haver desferido esses golpes mais suaves que consistem no não comparecimento aos encontros, nas mentiras gratuitas, nas rivalizações inúteis e nos ditos indelicados - procedimentos, todos eles, destinados a deixar fora de si um amante tímido ou uma companheira muito paciente, e a tirar de sua ira um proveito requintadamente polimorfo e embriagador. É claro que eles tinham ouvido falar desses incidentes, mas isso quase não acontecia em nossos meios civilizados, ou só ocorria a título de uma experiência intelectual de sado-masoquismo, sempre interessante. Amor é amor! E, quando não apenas se fizera um curso superior, mas, ainda por cima, terminava-se uma análise, deslizava-se naturalmente da afeição cúmplice para temos divertimentos carnais, inteiramente impregnados de calma lascívia e de referências literárias. Em suma, o mais saliente nessa história evidenciou-se sem a menor sombra de dúvida: minhas colocações descreviam um comportamento dos mais generalizados, que talvez até concernisse à humanidade inteira - menos a meu interlocutor do momento. Um pouco depois, no mesmo verão de 1991, eu tinha que fazer a mesma conferência, em Buenos Aires, na faculdade de arquitetura.

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do bom uso erótico da cólera

Fiquei sabendo, por acaso, que o reitor do lugar, ao tomar conhecimento do título de minha palestra, fora tomado de violenta cólera, porque, a seu juízo, tal tema não poderia interessar a arquitetos em formação, nem mesmo a pretexto de que conviesse construir apartamentos condizentes com isso. Por ocasião de um encontro protocolar, como esse homem esplêndido me pedisse algumas explicações sucintas e mais confidenciais sobre esse tema intrigante, chamei-lhe a atenção, em primeiro lugar, para uma característica suficientemente difundida para ser considerada um clássico da psicopatologia da vida cotidiana: então não se observa que, às vezes, os casais que brigam permanecem unidos por muito tempo, enquanto outros, exibindo todas as aparências de uma felicidade que prospera numa calma inabalável, são bruscamente vítimas de um súbito naufrágio, que ninguém em seu círculo tinha como prever? É como se, freqüentemente, a desunião favorecesse a união, e como se a discórdia possuísse alguma virtude atraente no confronto cotidiano entre um homem e uma mulher. Os acenos de cabeça de meu interlocutor mostraram-me que ele compreendia a que situações eu estava aludindo. Não houve nenhum recurso aos arcanos da clínica nessa exposição decerto aproximativa, mas ainda assim convincente. Com isso, fiquei dispensado de invocar a prática psicanalítica e o testemunho dos numerosos analisandos que nunca têm tão bom desempenho sexual quanto na discórdia, ou mesmo na iminência da separação. E o da quantidade não menos apreciável de analisandas às quais a proximidade do drama é camalmente propícia, menos, aliás, n~ expressão da cólera do que na arte, às vezes consumada, de deixar o parceiro num estado explosivo, mas luxuriosamente 'resolutório. Menos ainda me foi preciso, tamanha a convicção trazida pela primeira alusão concreta, recorrer aos méritos de Freud, que soube demonstrar a generalidade da interdição que pesa sobre a sexualidade humana, cujo funcionamento se afasta sensivelmente de qualquer referência à natureza. Seja em que civilização for, estritas são as regras que regem a exogamia e os fluxos do desejo. Não existe nenhuma que autorize a exibição do corpo humano em sua nudez, e o sonho ocidental de um paraíso sexual oculto sob os trópicos teria deparado, por toda parte, com a muralha do pudor. Longe de estar em nosso passado, num paraíso perdido de onde nós teríamos caído, a livre natureza do sexo, refreada por nossa humanidade, continua a ser o último continente por descobrir. Doloroso exílio, na verdade, é o que nos bane de um território cuja existência apenas pressentimos vagamente! Não será essa busca

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infrutífera que explica a violência do erotismo humano, numit veemência semelhante à do surdo ou do cego que não desconhecem que o som e a luz existem, embora não possam ter nenhuma percepção deles? Se não tivesse havido seu entusiástico aceno de cabeça, mesmo assim eu teria tido bastante facilidade de mostrar ao reitor que a cólera permite superar essa interdição. Se a cólera é erótica, ela não o deve, em absoluto, a alguma virtude intrínseca em função da qual o esquentar dos humores provoque uma descarga satisfatória do sistema glandular perineal. A cólera tampouco é um traço psicológico causal - Video meliora proboque, deteriora sequor: Vejo o bem e o aprovo, mas sigo o mal - , uma vez que ela· mesma resulta da interdição que estrutura a sexualidade humana. Essa interdição pode ter conseqüências múltiplas - inibição, ternura, frustração, sublimação, recalcamento - , e é entre essas conseqüências que a cólera merece ser especialmente distinguida, como o procedimento transgressor a que a humanidade recorre mais amplamente, introduzindo no amor uma selvageria que, longe de ser primitiva, é proporcional à civilização e ao refinamento. E, se ainda fosse preciso convencer, bastaria eu ter tocado na corda moral! - acaso a discórdia não nos oferece um meio de retomarmos a situação, teria eu dito ao douto universitário, em meio às facilidades de nossa época permissiva, onde os valores que fizeram de nós o que somos vão-se perdendo? Não vem a cólera dar testemunho de que, ao contrário dos bichos, temos de ultrapassar algumas dificuldades próprias do ser humano para podermos entregar-nos à luxúria? Tudo era mais prático quando a religião tinha mais peso, porque, com a ajuda de Deus e de seus esbirros, sabíamos a quem nos dirigir e contra quem pecar! Mas como, com o declínio de nossos valores monoteístas e patriarcais, nada mais permite nomear essa dificuldade, e uma vez que é exasperante não poder dizer justamente o que está no centro de uma confusão extenuante, explode uma cólera cuja irracionalidade resiste à compreensão comum. Perde a paciência quem não consegue realizar a coisa, e - oh! milagre! - justamente essa virtude irritativa lhe permite consegui-lo, sem que por isso ele tenha, aliás, a menor idéia da origem do cólera, da peste de que acaba de ser vítima. No momento dessa explosão colérica, cujo sentido permanece obscuro a quem a experimenta, é como se tivesse sido preciso transpor um obstáculo, embora, justamente, não exista nenhum (ou não exista mais, infelizmente). É essa a dificuldade, em suma. Como conseguir isso, quando tudo é autorizado?

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A essa altura do raciocínio, eu teria baixado minha última carta: considere, por exemplo, sua mulher, senhor reitor, com quem tudo é permitido e até recomendado - não há um problema nisso, sob vários aspectos? Como fazer quando nada se opõe à coisa? Quando a licença cria obstáculos à licenciosidade, a que santo havemos de nos apegar? A medicina prescreveria, nesse caso, pequenas doses de cólera, sentimento sempre fácil de atiçar através de algum detalhe imperfeito e fácil de censurar, desde o piso mal encerado até uma roupa excêntrica demais. O efeito libidinal é garantido, podendo a receita prever, nos casos rebeldes, as ameaças, os insultos ou até a aplicação de algumas palmadas nas partes mais carnudas de madame. Como superar o "mal-estar na civilização"? Aí é que está o problema! O senhor está em boas condições de compreender isso, eu teria dito a meu interlocutor, com a vida de labuta que tem levado até aqui. Não se pode, ao mesmo tempo, correr atrás dos rabos de saia e elaborar projetos úteis para o futuro de nossa sociedade. À força de trabalhar e sublimar, que é que se simboliza, afinal, senão uma potência sexual que corre o risco de minguar proporcionalmente? Como considerou Freud num trecho bastante pessimista do Mal-estar, ao fazer o bem a nossa volta dessa maneira, arriscamo-nos a nada menos que a extinção da espécie, sem falar da privação dos prazeres que acompanham o cumprimento de nosso dever para com as gerações futuras! Com senso de responsabilidade, portanto, devemos fazer um levantamento conveniente do terreno, para prevenir o desastre que nos espreita. É que, havendo nossos valores caído no estado deplorável em que podemos vê-los, é fácil compreender que, se um piso mal encerado não tiver mais a menor importância, se uma roupa excêntrica não merecer nenhuma reprimenda, numa época em que se pode andar pela rua quase totalmente nu sem chamar atenção, onde haveremos de encontrar motivos para nos excitar e, por conseguinte, garantir a reprodução da espécie? Em destratar os fumantes? Isso é piada! Em impor o porte obrigatório de preservativos, mesmo sem ereção? Essa medida exigiria uma enorme equipe de fiscalização! (E quem fiscalizaria os fiscais? Nem vocês nem eu, é claro!) A questão da perversidade, de sua reabilitação e seu exercício em condições de inocuidade iguais às das vacinas - requer, portanto, um estudo urgente e criterioso, para que se possa estabelecer em que medida o sadismo mínimo exigido pela ereção poderá produzir-se sem ocasionar estragos exagerados, que, afinal, contrariariam a dimensão ecológica de nosso propósito.

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Mas, talvez não lhes seja claramente visível que o "mal-estar na civilização" possa acarretar um retomo ordeiro com uma pitada de perversidade colérica. Não foi essa a violência que Sade evidenciou em toda a sua obra? Mas, caberia então buscarmos o denominador comum da cólera no sonho da sexualidade humana que sente saudade da época em que era perversamente polimorfa, e na qual, do alto de sua impotência, apelava para todos os recursos sádicos para se satisfazer? Exibição, xixi, cocô, palmada, choro, tudo era bom para ela! E, ao se contentar tão modestamente, apesar da triste realidade, porventura ela não se acreditava mais forte, constituindo assim o sonhado recurso do indigente? Por mim, imagino que o senhor teria protestado, senhor reitor, pois entendo perfeitamente que estou atingindo os limites do tolerável. Não! diria o senhor, que não se toque em Sade, herói da Revolução Francesa, sem o qual seu Freud teria sido uma figura bem insignificante! Sem o divino marquês, que nos restaria? Não ouviríamos racharem-se os muros da Sorbonne e não veríamos fenderem-se as colunas do Vaticano? Que restaria da delicada mas sangrenta crucificação de Cristo e do canibalismo do santo sacramento? Enquanto houver Sade, teremos esperança! Não apenas a de sermos republicanos amanhã, mas também a de colocarmos do nosso lado (o mais obscuro) o deus da cólera, o Ser supremo em maldade que invocamos à noite, na hora do coito! Sade, verdade seja dita, para o amante das belas-letras, está mais para o lado divertido. Mas - horresco referens - toma-se muito menos engraçado quando seus zelotes, aliás em sua maioria iletrados, valem-se dele num tom que é concentracionário para vocês, ou quando um de seus epígonos passa a só encontrar excitação num recorte em rodelas, nada fantasístico, de seus objetos sexuais, que nem por isso deixam de ser seres humanos. Respeito a Sorbonne e o Vaticano, estejam certos disso, mas, por quanto tempo essas gloriosas instituições continuarão a ignorar que, sob muitos aspectos, são ainda tributárias do retomo sadeano? Com isso, portanto, volto ao ponto em que estava no momento de sua ,;omoção bastante compreensível, senhor reitor. É o ímpeto sexual que pleiteia um retomo àquele verde paraíso em que o menino ainda podia ignorar o "mal-estar na civilização", vaticinante e sorbonista. E, já que o senhor saiu em defesa da Igreja e de sua filha primogênita, a Universidade, como poderia eu evitar, agora, dar-lhe o argumento, a réplica e a remissão que, segundo regras inalteradas desde S. Tomás, devem encerrar esta honrosa disputatio?

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Que aconteceu quando, recém-chegados ao mundo, tivemos que enfrentar o abismo de nosso próprio amor por quem nos assistia em nossa impotência total? Abismo, porque éramos devedores de tudo, e podíamos ter medo de permanecer como eternos devedores de uma dívida igualmente imprescritível. Que podia haver de mais reconfortante, nessas condições perigosas, que o fato de que aquela que cuidava de nós, longe de reclamar em troca o que lhe era devido, e que não poderíamos pagar, preocupava-se, com maior freqüência do que desejaríamos, com seu desejo por um outro que não nós? Certamente, o rival que foi nosso pai retirou de nós parte da atenção que reivindicávamos, mas, apesar disso, o medo de sermos tragados pelo monstro primário de nossa dívida metamorfoseou-se, desse modo, em gratidão ao herói viril, estoicamente enfrentado no amor. Havendo escapado de um perigo, sem dúvida deparávamos com outro, e desse momento dependeu nossa preferência sexual: ou éramos tomados pelo amor por esse salvador e, conseqüentemente, feminilizados (castrados), ou travávamos um combate contra esse rival, apesar de salvador. Mulher ou homem: tudo proveio desse instante decisivo. Se escolhêssemos o campo das mulheres, nosso amor nos ligaria à figura de um pai que imaginaríamos violento, fossem quais fossem suas inclinações efetivas. Em contrapartida, alinhando-nos no clã dos homens, a angústia de sermos feminilizados perduraria, deixando-nos um fundo rixento, senão persecutório. Quer estivéssemos, ora prontos para a vindita, ora dispostos à submissão, e, na maioria das vezes, inclinados para as duas, como poderíamos prescindir desse rival incômodo, que, como quer que fosse, nos estava salvando? É por isso que, dessa data em diante, foi-nos tão difícil prescindir de Mestres, os quais, tão logo encontrados, procurávamos derrubar. Infelizmente, porém, esses sentimentos ambíguos e relaxantes não permitem, de modo algum, obter uma potência idêntica à que imputamos a um Pai maiúsculo, a de um violador sodomita cuja lei parece universal. Quantos truques teve que inventar a virilidade ameaçada para imitar o jeito dele! Ele era repulsivo? O cocô e o xixi que expulsávamos de nosso corpo tornaram-se sinais de nossa execração amorosa, de modo que, ao menos para alguns, a repugnância foi e continua a ser o móbil da excitação sexual - enquanto outros, menos diretos, não deixam de encontrar no obsceno o ponto de apoio privilegiado de seu erotismo! Nós o supúnhamos violento? Pois nós mesmos o fomos, administrando à raça feminina, na primeira oportunidade, gracejos, beliscões e trompaços - misérias diversas que impunham a nossas companheiras as

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desagradáveis demonstrações de nossa diferença! Não era a castração que havíamos arriscado, e que, aliás, continuávamos a arriscar todas as vezes que pedíamos proteção? E, se esses métodos masculinos não eram suficientes, víamos muito bem que nossa mãe, que sofrera a castração por causa do monstro, recompensava-se acumulando sapatos, luvas, chapéus e outras bugigangas estranhas, para, graças a esses fetiches bizarros, transformar em sedução os sinais de sua submissão e de sua falta. E alguns de nós também puderam usá-los ... Graças às ligas e às luvas, graças aos sapatos de salto alto ou às peles, os fetiches dão testemunho do momento em que a masculinidade obteve a preferência deles. Mas, infelizmente, todos esses artifícios têm o inconveniente de deixar o indivíduo numa impessoalidade deplorável, e mal permitem que ele se arregimente sadicamente, mergulhando aqueles que os empregam no lastimável estado de presa do pai - permanecendo ainda na casa dele, perversamente excitados e cheios de vícios, provocadores tão constantes quanto impenitentes. Pois, sem Ele, de que valem esses estratagemas, que, para continuar excitantes, pedem que sejam sempre brandidas Sua vara, Suas prisões, Suas normas e Suas sanções? Restaria, por último, um outro procedimento, menos divertido sem dúvida, mas que permite açambarcar a potência sem perder a identidade, executando pálidas imitações. Basta agir, assinando o ato com um nome que é também o Dele! Assim, podemos, de um lado, reivindicar um traço do pai e, de outro, uma ação que nos terá sido própria, assinada por nós - Non, nisi parendo, vincitur: Só se pode vencê-la(o) obedecendo-lhe. Esse método, muito espirituosamente neurótico, é filialmente respeitador, de um lado, e traiçoeiramente assassino, de outro vindo sua primeira qualidade, filial, recalcar por completo a segunda, mortífera ... Infelizmente, a sublimação, o trabalho, os feitos notáveis, todos esses esforços permitem muitas satisfações, honradez e, às vezes, a riqueza, mas exaurem a libido. Por isso, quando cai a noite, é para o primeiro pai, o violento, que temos de nos voltar, como nos velhos tempos em que aprendemos o que queria dizer ser um homem. Eis aí um poderoso motivo a explicar porque, sem qualquer intencionalidade, a cólera ou o detalhe irritante podem tão facilmente ajudar os arroubos amorosos! Nesse sentido, a violência de um homem em relação a uma mulher situa-se no campo do amor que ele lhe dedica, e esse sentimento, por conseguinte, difere do sadismo. Exprime o próprio erotismo, é brutal

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sem que ele tenha que elevar a voz ou levantar a mão. Não haverá, nesse sentido, um "bom" uso da cólera? Uso que podemos qualificar de "bom" por ser adaptado a sua causa (e não por satisfazer a uma exigência moral). Na medida em que a cólera corresponde ao exílio do gozo, não está ela em seu lugar, em seu território eletivo, quando se aplica à sexualidade?

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Na vida amorosa corriqueira, será que a agressividade é de uso muito constante? Se parece confirmado que, em todas as sociedades, monoteístas ou totêmicas, os maus-tratos infligidos às mulheres sempre foram tão comuns que puderam passar despercebidos, persiste o fato de que não supomos esses comportamentos no amante tímido. Nada indica com evidência que o erotismo em si reivindique sua parcela de violência para merecer seu nome. Eros, bebê rosado, bochechudo e sorridente, faz esquecer um pouco, graças a suas feições [traits] simpáticas, outros dardos [traits] que não o são tanto assim, e que Tanatos, longe de ser seu irmão inimigo, é seu servo. Na flecha atirada por Cupido, tendemos a ver um símbolo reservado ao amor infeliz, sem perceber que sua ponta não se volta apenas para o pretendente rechaçado, mas voa em direção a quem quer que caia sob sua lei. E quem pode vangloriar-se de escapar a ela? Acaso a violência do amor não conhece um campo de extensão infinita, já que todo o mundo reclama o olhar de um semelhante, quando quer apropriar-se de seu corpo e gozar com ele? A própria consistência da carne parece desfazer-se sem o olhar do outro: com efeito, graças à atenção dele, constituímos um conjunto que assegura nossa presença no mundo. Quantos seres humanos poderiam enfrentar uma total solidão por mais de alguns dias? Bem poucos, sem dúvida. Dependentes do outro, sofremos, assim, uma alienação de que teríamos extrema dificuldade em nos libertar, se tivéssemos vontade de fazê-lo. Ao buscar violentamente a posse do(a) amado(a), é nosso próprio corpo que queremos apreender, e nossa eventual cólera para com o semelhante manifesta-se 21

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proporcionalmente a nossa dependência, a nossa impotência para rompê-Ia. Essa violência insidiosa da relação com o semelhante significa uma alienação que, na maioria das vezes, é consentida, quando não buscada. Assim, existe uma generalidade da imantação pelo próximo. O Nebenmensch nos atrai, e é contra um fundo propício ao conflito entre os senhores e à revolta dos escravos que se perfila a atração sexual. Entretanto, o amor não é sintomático enquanto escapa ao sexual. O amor à beleza de uma mulher, ou das mulheres, o amor pelos filhos, pelos animais domésticos, por uma obra de arte, em geral não parece sê-lo. É somente quando o erotismo lhe impõe sua coerção bifronte que ele se toma sintomático, conferindo ao(à) amado(a) sua dupla face. O amor sintomatiza-se a partir do instante em que, deixando de ser o vago impulso que busca dar consistência ao corpo, sexualiza-se e escolhe o objeto específico que é solicitado a remediar, não tanto sua falta-a-ser, mas sua castração. À generalidade do amor, cabe ainda acrescentar a particularidade do erotismo. Como se pode especificá-la? A espécie humana supera a mortalidade graças a seu modo de reprodução e, em contrapartida, a pulsão de morte trama sua sexualidade. Todavia, sexo e morte conjugam-se menos porque o ato sexual signifique o futuro desaparecimento daqueles que se reproduzem por essa via do que pelo fato de que a transmissão da potência fálica pressupõe um assassinato fantasístico. Com efeito, como pode um menino, no que lhe concerne, conquistar as insígnias de uma potência equivalente à de seu pai, quando este primeiramente o castra? Essa transmissão se revelaria impossível se ele não pudesse simbolizar por conta própria um dos traços paternos. Como já dissemos, açambarcando seu nome próprio ou um dos fetiches que expressam sua virilidade, ele pode aspirar a uma potência igual à dele, embora, assim fazendo, tome seu lugar e, portanto, fantasisticamente, o suprima. Nesse sentido, o simbólico comanda a sexualidade humana, e a pulsão de morte, longe de resultar do destino animal de corpos fadados a desaparecer, é tramada pela agressão e tensionada pela destruição, em função dessas imposições da transmissão. Por conseguinte, o desejo masculino pelas mulheres depende de um traço que as ultrapassa, traço este cujas características aparecem tão logo interrogamos o complexo paterno. Na medida em que uma mulher ponha em movimento esse traço paterno, ela se toma adequada à conquista e excitante para o filho, obcecado como este continua por

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seus primeiros amores. Não é essa a característica que a análise do sonho abaixo, previamente recolocado em seu contexto, revela?

Erotismo do traço paterno Na flor da idade, M.B. casou-se, mas seu casamento logo chegou ao fim. Alguns defeifos da companheira, que a princípio ele não havia percebido, logo assumiram tamanha importância a seus olhos que, em poucos meses, seu interesse sexual transformou-se em dever conjugal, praticado furtivamente, com todas as luzes apagadas e com a cabeça em outro lugar. Sua mulher bebia exageradamente, e t11lvez mais ainda depois que ele se afastou, cada vez mais enojado com o cheiro do álcool. Ele havia reparado nesse hálito antes das núpcias, mas pensara, com um otimismo bem masculino, que, com a ajuda de seu amor, a esposa se curaria do vício. Nada disso. Finalmente, em poucos meses, foi em repugnância que acabou se transformando um dever conjugal do qual, aliás, as numerosas viagens profissionais de M.B. ·lhe permitiam eximir-se durante grande parte do ano. Todavia, o laço oficial do casamento e um semblante de vida em comum ainda foram mantidos por alguns anos, tanto porque as conveniências e o respeito por um meio familiar coercitivo o levavam a protelar qualquer separação, quanto porque dois acidentes, tão estúpidos quanto extraordinários, deixaram sua mulher com uma ligeira deficiência. De modo que, em meio à coerção moral em que costumava mortificar-se, M.B. sentiu-se impedido de se separar dela com grande desenvoltura. Enfim, sem que o clima jamais se houvesse realmente envenenado, a separação tornou-se oficial. Para M.B., seguiram-se longos anos de um celibato precavidamente organizado, onde as únicas práticas heterossexuais desse tecnocrata de alto nível eram as que podiam ser pagas. No entanto, o recurso às prostitutas, tão fácil e tão bem integrado nos costumes dos europeus que grassam no Terceiro Mundo, revelou-se um recurso mais complicado quando, subindo de posição, suas temporadas na metrópole se alongaram. A princípio, ele tinha que refletir por noites a fio antes de se decidir, depois de muitas dúvidas, a se dirigir a um dos locais onde as prostitutas abundavam, e mesmo assim, no último instante, hesitava quanto ao bairro que escolheria. Quando finalmente se decidia e tomava a direção certa, sem mudar de programa

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ou de rumo, era capaz de ficar horas no carro, sendo-lhe fonte de extrema excitação o espetáculo das moças suscetíveis de aliviar sua libido aflita. M.B. ainda tinha que rodar muito tempo, olhar, dar voltas no quarteirão e localizar várias vezes o objeto de sua cobiça, na esperança secreta de que este houvesse desaparecido enquanto ele estacionava seu veículo. Em suma, ele acumulava a tal ponto providências prévias e contraditórias, que podiam passar-se várias semanas antes que ficasse pronto para entrar em ação. E, como também era preciso discutir o preço e esfalfar-se numa escada quase sempre sórdida, mal ele tinha tempo de subir até o quarto e já ejaculava precocemente, sendo em seguida sufocado por tamanha vergonha que, na maioria das vezes, pagava o dobro do que fora combinado, para prevenir eventuais gozações, e se sentia obrigado a mudar de área e de parceira a cada uma dessas aventuras. Pois ele se declarou muito satisfeito com sua vida sexual quando veio me ver pela primeira vez, considerando esses arranjos como o que podia fazer de mais econômico em sua idade, já que a perspectiva de estabelecer relações estáveis ou mesmo sexuais com uma das mulheres de seu círculo parecia-lhe uma solução de extremo mau gosto para um homem de sua posição. Segundo ele, sua visita a um psicanalista não tinha outra razão senão os aborrecimentos que lhe causavam seus superiores hierárquicos, chateações estas que acarretavam enxaquecas intensas, nas quais, como homem culto e letrado, ele havia reconhecido um sintoma. A princípio, portanto, o sexo foi apenas acessoriamente objeto de seus ditos, predominantemente centrados em suas recriminações contra os tiranos minúsculos que pululam em todos os escalões das multinacionais. Mas, no final das contas, foi-lhe preciso dizer um pouco mais e, pouco a pouco, a organização cotidiana de sua libido pareceu-lhe merecer uma atenção menos distraída. Seria vergonha o que ele experimentava ao relatar suas intermináveis escapadas noturnas, embora, como se possa suspeitar, eu me abstivesse de exprimir não só a mínima surpresa reprobatória, mas até de questioná-lo a respeito delas? Ou seria, antes, o poder que ele atribuía àquele terceiro aureolado de freudismo que eu era, e que supostamente o curaria de uma doença, ainda que mal formulada? A verdade é que, depois de alguns meses de análise, sua vida amorosa havia retomado um curso menos fiduciário, e ele deveria não apenas abrir os olhos para as mulheres de seu círculo, como também casar-se

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com uma delas a toque de caixa, para satisfação geral. Sua nova mulher era perfeita, realmente irrepreensível, embora, pensando bem, apresentasse um pequeno defeito: um mau hálito, cuja origem, graças a Deus, não era o excesso de bebida. Todavia, ele suportava, dessa vez sem a menor repugnância, essa ligeira imperfeição. Ao me anunciar essa falha nesses termos, logo foi obrigado a comentar que a havia encadeado com o vício de sua primeira mulher. E também não lhe escapou que ele era incapaz de fazer a menor observação a esse respeito à esposa. A coisa não seria simples, é verdade, mas, com um pouco de tato, e a pretexto de algumas generalidades odontológicas, sem dúvida não seria impossível chamar a atenção dela para um detalhe provavelmente remediável. No entanto, parecia-lhe absolutamente impossível abordar essa questão, como se sua significação fosse muito além dos fatos, e ele julgou útil me apontar isso e se interrogar sobre essa sua incapacidade. M.B. acabara de fazer essa constatação quando a noite lhe trouxe a luminosidade de um sonho, que haveria de esclarecer-lhe o lugar de seu pai em sua relação com as mulheres, quer se tratasse de uma ligação legítima ou clandestina. Aqui está o sonho, tal como ele me confiou: "Eu ia andando por uma calçada, sem dúvida em Paris, como fiz tantas vezes na época em que ficava espreitando as prostitutas. Na rua, ninguém. De repente, apareceu na calçada em frente uma negra esplêndida, negra como a noite que nos cercava, com a sombra destacando ainda mais o branco de seus olhos e dos dentes, que brilhavam conforme a intermitência de seu sorriso, indubitavelmente dirigido a mim. Estranhamente, apesar da penumbra, sua boca me parecia deformada. Não era monstruosa, essa boca, mas comportava uma anomalia de uma natureza difícil de precisar. Eu não saberia descrevê-la. Talvez, aliás, essa imperfeição não existisse, a não ser em meu pensamento, naquela pessoa agradável, que exibia muitos atributos avantajados que não lhe estou detalhando, trunfos valorizados por uma roupa das mais eróticas, que deixava adivinhar, mas apenas isso, o benefício que um homem de bem podia esperar tirar deles. "Era incontestável: ela estava longe de ser insensível ao interesse admirativo que eu lhe dirigia, e me preparava para atravessar a rua sob seu olhar encorajador ... quando ·a atenção dela foi captada por uma terceira pessoa, parece ... é, isso mesmo, um homem, por azar ... que coisa curiosa ... meu pai. Pelo menos, tenho certeza de que era ele, embora eu não o tenha realmente reconhecido naqueles traços viris e

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conquistadores. Indiscutivelmente, ele logo levou a melhor, à medida que, na calçada oposta, aproximou-se num só passo da beldade, num deslizar abrupto. Quanto a mim, fui diminuindo de tamanho, enquanto a largura da rua que me separava da cena começou a ficar mais intransponível que um rio. "Em mais um instante, lá estava ele bem junto da criatura, com a qual, sem dizer uma palavra, começou incontinenti a copular. Fiquei petrificado diante daquele espetáculo, não só porque aquela de quem eu esperava gozar escapou-me no último instante, mas também porque meu pai procedeu de um modo bastante estranho. Parecia claro que os dois estavam copulando, não como se costuma fazer, mas pela cabeça, talvez graças à boca esquisita de que falei, que sem dúvida comportava um dispositivo especial para a copulação. Não era um beijo que apresentasse uma certa sofisticação, era uma cópula completa. Não canso Je me espantar com os sonhos, porque, no momento em que tive a idéia de que meus dois torturadores procediam como certos tipos de insetos, eu os vi levantar vôo, graciosamente, para seu balé nupcial. Não há nada mais estranho do que ver o próprio pai voar desse jeito, ainda mais copulando pela boca, voando ... é, sim, estou pensando nisso, voando - não me chateie com seus pigarros - , voando para o filho, chego a admitir isto ... para a esplêndida criatura que ele cobiçava. Isso me levaria facilmente a fazer uma associação com a expressão 'contrair matrimônio',* mas é claro que eu não teria idéias tão desrespeitosas a respeito do meu ... eu ia dizendo 'augusto pai', mas também não faria isso, porque ninguém desconhece que 'Augusto' é o apelido habitual de palhaço.•• Bom, mas, sejamos sérios, e vamos retomar outra vez, um por um, os elos mais curiosos desse sainete, muito instrutivo sob vários aspectos. "Antes de ter esse sonho, eu só fazia uma ligação obscura entre o cheiro de álcool macerado que exalava da minha primeira mulher e o mau hálito da segunda, provavelmente ocasionado por algum problema dentário. A boca deformada da negra, acrescentando um termo suple-

• A expressão francesa é canvaler en justes noces (também "casar em segundas núpcias"), que, pela proximidade com o verbo valer e com um possível neologismo can-valer (= valer avec), dada uma outra acepção de noce (farra, pândega), também admitiria o sentido de "voando juntos numa bela farra". (N.T.) •• Assim se denominam na França, por antífrase, os palhaços de maquiagem extremamente exagerada e caricata, diferentes dos bufões. (N.T.)

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mentar em relação a essa parte do corpo feminino, formou agora uma série ... e até, se você me permite esse humor barato, uma série negra.* Não é tanto à cor dessa beldade que estou aludindo. É que, de repente, estou associando os insetos que copulam desse jeito com uma cena da minha primeira infância, quando, numa tardinha de primavera, dezenas de libélulas estavam voando, ligadas duas a duas pela cabeça. Depois, ao pôr-do-sol, elas vieram se despedaçar nos faróis do carro, mal eles foram acesos. Meu pai estava dirigindo, esbravejando [en pestant] contra a sujeira provocada por aqueles arquípteros, os rodopios daqueles insetos graciosos, de cores muito vivamente destacadas pela luz, pouco antes de eles morrerem, num acasalamento que eu não compreendia... eis uma porção de lembranças que me deixaram uma impressão inesquecível. " 'Série negra' constitui pois uma alusão suplementar a minhas intenções homicidas, no momento do vôo daquele casal alçado por um gozo indevido. Não estou explicando, já estou a par dessa dimensão meio desagradável de meus pensamentos secretos. Em contrapartida, o que me chama a atenção é essa expressão que acabei de usar, 'meu pai esbravejando ... [pestant]'. Parece mesmo que eu disse esbravejando [en pestant], não é? .. Meu pai esbravejava muito, de fato; essencialmente contra minha mãe, que, para ele, parecia ser responsável pela maioria das disfunções do universo. Seu rosto colérico me dava medo, de tão deformado que ficava por uma violência contida, e sem dúvida um pouco mais a boca, aquela boca vociferante, mesmo. Mas talvez eu esteja sendo levado por associações que me induzem a fazer analogias rápidas. "Mas, agora está me ocorrendo o seguinte: minha mãe, ele a devorava, ele a possuía com sua cólera, do mesmo jeito que não se pode saber, olhando para aqueles insetos fascinantes, se eles estão se devorando ou copulando ... embora, na idade em que os observei pela primeira vez, só a primeira eventualidade deva ter-me parecido clara. "Enfim, o estranho é o seguinte, para concluir a dissecação desse sonho: não duvido que a negra possa representar, facilmente, uma

• Série noire (por alusão ao nome de uma coleção famosa), sucessão ou clima de catástrofes, de acontecimentos sombrios. (N.T.) •• A forma gerúndia do verbo pester (praguejar, vociferar, xingar etc.), necessariamente precedida pela partícula en, é homófona do verbo empester (empestar, exalar mau cheiro etc.), que voltará a aparecer logo adiante. (N.T.)

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espécie de ligação pedagógica entre meu pai e eu: em minhas primeiras viagens africanas, as prostitutas autóctones me fizeram perder muito da minha inocência, já que o exotismo da situação e a escassez de clientes endinheirados as levava a dar mostras de imaginação, além dos sinais de apego que elas freqüentemente aparentavam. Na época, devo até ter pensado, conscientemente, que meu pai sem dúvida fizera a mesma coisa, porque ele também foi apaixonado pelas viagens para além-mar. "Mas, o que esse sonho me convida a considerar é um problema completamente diferente: essa relação africana suspeita me obriga a constatar que três mulheres sucessivas (entre elas a do sonho) possuem uma característica paterna, aquela boca encolerizada esbravejando [empestando, (em)pestant]. Ora, é por essa boca que eu fico sabendo que o objeto de minha cobiça me é roubado! Então, será que estou tão fascinado assim por aquilo que me priva, e por que é que vou procurar o sinal disso, que no entanto não deixa de me enojar, na mulher com quem posso gozar?" A característica paterna apresenta um atrativo poderoso, e esse exemplo tem o interesse de revelar sua articulação com a repugnância. Não será uma particularidade idêntica que, noutros casos, explicita o desencadeamento do ódio amoroso contra a mulher? Em se tratando de M.B., o selo paterno que ele encontrava numa mulher era também aquilo que o excitava, segundo o conhecido esquematismo do complexo de Édipo (a referência mais fácil para compreendermos, nesse exemplo, o erotismo da cólera). Será que é preciso tão pouco, senão para provocar, ao menos para fixar o desejo por uma mulher? Isso é amplamente suficiente, de fato, uma vez que a parte, o detalhe que parece tão insignificante, equivale à totalidade da situação edipiana. Aliás, nem é preciso tanto, já que a situação edipiana, por si só, basta para provocar o desejo, quase que independentemente da pessoa a quem ele se dirige. Não terá sido assim no exemplo que se segue?

Impessoalidade do objeto do desejo Pierre levava a vida a toque de caixa. Cartunista de sucesso, também apresentava, não sem virtuosismo, os programas culturais de uma estação de rádio FM que, apesar de periférica, não deixava de tirar de sua posição marginal uma aura corrosiva. Fazia muito tempo que a

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cumplicidade intelectual que o ligava a sua mulher dava pouca margem a arroubos mais carnais, que, aliás, só os haviam habitado por pouquíssimo tempo no passado. Ainda lhes sucedia serem ocasionalmente animados por lampejos libidinais, com a ajuda do champanhe e da noite, mas, falando francamente, o hábito, os amigos comuns e toda sorte de interesses que eles partilhavam eram muito mais o que os unia. Com a amante, em contrapartida, ele transbordava um erotismo dos mais criativos, inexplicavelmente atraído por ela, embora a feiúra da moça impedisse esse homem de bom gosto de se exibir em sua companhia em público. Não chegou ele a comentar que, se a encontrasse inopinadamente numa festa, fingiria ignorá-la, com mais facilidade ainda na medida em que lhe seria simples argumentar com a discrição exigida pela situação? Dividindo-se habilmente entre essas duas mulheres, e sem dúvida sendo propício à sua excitação o interdito que uma fazia pesar sobre a outra, nem por isso ele deixava de se queixar da pobreza de sua vida amorosa, e se declarava disposto a abandonar tudo, se ao menos se anunciasse uma paixão verdadeira. Considerava-se, pois, um homem livre. E, como pululassem criaturas adoráveis nos círculos por onde gravitava, ele perseguia descaradamente toda moça bonita e bem-feita que estivesse a seu alcance, não sem obter, aliás, um certo sucesso. De fato, apesar de sua baixa estatura e suas feições comuns, a pessoa dele exalava um ardor e uma sinceridade que lhe abriam o coração das mulheres, sempre sensíveis às declarações de certos homens, sobretudo quando parece que, sem elas, eles não conseguiriam viver nem mais um segundo ... "Conhecer-te e morrer!", como ele escreveu, em vários exemplares, a três daquelas a quem cortejava ao mesmo tempo - e não equivalia isso a anunciar seus sentimentos num estilo propício a suscitar simpatia? Infelizmente, porém, as conquistas se acumulavam sem que nenhuma conseguisse retê-lo e, depois de se inflamar por alguns dias, a tristeza tornava a se abater sobre ele, novamente imprensado entre as longas conversas ao pé da lareira com a mulher e suas escapadas repentinas, por exemplo, a pretexto de uma compra urgente, para ir à casa da amante, que o esperava com impaciência. Até o momento em que, mais uma vez, o encontro com uma nova beldade o deixava fora de si e o fazia sonhar com um amor perfeito. Mas não foi um idílio dessa ordem que ele imaginou ao se atirar para os lados de uma mensageira da editora em que trabalhava, mulher particularmente bela, é verdade, atraente como o diabo, mas um tantinho

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vulgar, bruta nos gestos e na fala. Estava claro que ela só se interessava por suas funções pelas voltas de moto que elas lhe proporcionavam. Sempre meio ausente, era provável que lamentasse a vida marginal que devia ter levado antes, uma vida sem dúvida precária e, quem sabe, feita de furtos ou diversos outros expedientes. Em todo caso, seu passado era deixado na penumbra por essa sombria amazona, que silenciava quando era questionada a esse respeito. Em suma, Pierre viu nela uma espécie de jóia exótica, num estojo de couro negro, que seria agradável acrescentar a sua coleção. Foi por isso que, uma vez tendo conquistado a beldade - graças ao entusiasmo que o tornara irresistível até mesmo perto desse ser rebelde - , ele esperava ver sua paixão declinar rapidamente. A diferença de estilos de vida e de cultura os tornava quase totalmente estranhos um ao outro. Ele não tinha realmente nada a lhe dizer e, depois de algumas horas passadas em sua companhia, era sem pesar, em suma, que a deixava - ou até com alívio, ou mesmo com uma pontinha de desprezo, quando ela lhe enaltecia por muito tempo os méritos de uma nova estrela do rock. Assim, Pierre estava decidido a se deixar amar por mais algum tempo, como sua fama e talento lhe permitiam esperar, até o momento em que, com elegância, viesse a se distanciar. Sim, porque, em todas as ocasiões, era preciso saber demonstrar tato e evitar dramas, sobretudo com um ser ainda muito jovem, de reações imprevisíveis, a quem provavelmente nenhum escândalo deteria. A história, no entanto, não se desenrolou segundo o roteiro previsto. Com a fama, a moça intratável não tinha realmente o que fazer, e o talento do amante pretensioso antes a importunava. Seria possível ao desenhista de sucesso buscar o rompimento, sem antes ter-se assegurado de que um amor inextinguível lhe era dedicado? Isso lhe era impossível, evidentemente! De modo que o romance ainda teria perdurado, sem que se apresentasse o momento oportuno para ele desaparecer, não fosse a ocorrência de um incidente desagradável. Sucede que, em meio a protestos de afeição por ele, a traidora uma noite ·o pôs porta afora, com os sapatos na mão e mal tendo acabado de vestir as calças, desculpando-se precariamente por ter-se esquecido de avisar que seu homem, de quem, aliás, não havia falado com ele, iria chegar dentro em pouco. Essa cena, digna de um vaudeville, fora das mais desagradáveis e, noutras circunstâncias, teria provocado um rompimento imediato. Virar a página sobre aquele incidente inglório talvez fosse mais fácil se ele não houvesse convivido com ela em um de seus locais de

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trabalho, mas essa proximidade cotidiana lhe exigia que salvasse as aparências. Restaurar sua dignidade ferida era o mínimo. Por isso, já no dia seguinte, ele procurou recuperar a vantagem, graças a um galanteio rebuscado e lesto. Qual não foi sua surpresa, porém, ao receber uma resposta torta. Suando muito e parando imediatamente de gracejar, ele propôs um encontro para mais tarde, naquele dia. Mas o que recebeu foi uma resposta dilatória da beldade, que, com uma gargalhada, montou prontamente em sua moto e desapareceu no estrépito de seus quatro cilindros. Assim, em poucas horas, lá estava ele loucamente enamorado. E perdendo um pouco mais do apetite e do sono a cada dia, à medida que ia vendo opor-se a todos os seus pedidos uma recusa cada vez mais grosseira, a pretexto da presença de um rival que decididamente lhe era preferido. Ele perdia a cabeça diante da amada e já não sabia o que inventar para tornar a cair em suas graças. Não chegou até, contrariando todos os seus princípios, a lhe suplicar que fosse morar com ele? Pierre já não entendia nada de seu estado, com os olhos cheios de lágrimas assim que falava com ela, e tremendo como um adolescente à espera de suas respostas. No entanto, a despeito do desvario desse amor, ele continuava intimamente convencido de que bastaria a moça ceder a suas solicitações para que, em poucos dias, ou até em algumas horas, ele tornasse a desprezar aquela criatura rude e grosseira, em quem somente a violência animal, continuava pensando, devia tê-lo cativado. O fato de ela o rejeitar em favor de um marido que Pierre em certa ocasião havia visto de longe, indivíduo grotesco e, provavelmente, tão inculto quanto ela, deveria ter aumentado seu desprezo latente e tê-lo libertado. Muito pelo contrário, contrariando toda a razão, esse amor incompreensível e doloroso o subjugava, reduzia-o à escravidão. A dor física que ele sentia, a ponto de lhe tirar o fôlego, resultava do cara-a-cara que ele sustentava tão-somente com seu desejo, já que, se aquela que era seu objeto desse seu consentimento, o desejo desapareceria quase que de imediato. Enquanto estivera apenas preso entre duas mulheres, uma conferindo à outra seu valor erótico, ele havia continuado a navegar nos arcanos da família, como um bebezão incapaz de desejar outro objeto senão o que lhe é interditado. Mas aquelas delícias haviam acabado! Doravante, ele parecia tão confrontado com uma exogamia extenuante que, pela primeira vez na vida, e em condições impossíveis, colocava para si mesmo a questão de ter um filho. Pois então não acabara, num novo acesso de loucura, de escrever a sua bem-amada dizendo-lhe que esse era o seu sonho?

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Que ensinamento podemos tirar de uma situação cujo móbil é tão caricato? Ela faz pensar que não há nenhuma necessidade de parceiros(as) estimados(as) ou rivais valorosos para motivar o enamoramento. Basta a situação triangular, e, a partir do momento em que ela se instala - nesse exemplo, quase acidentalmente - , a mecânica de seu simbolismo ternário segue seu próprio caminho. Sua lógica implacável desenrola-se segundo sua engrenagem própria, como se pouco importassem os méritos do personagem apto a assumir os traços do pai, e sem que ele seja sequer informado da importância que lhe é atribuída, pois a ignorância não impede sua lei de ser eficaz. Não é, então, a própria Lei a verdadeira paixão do sujeito, a lei que ele reconhece como aquilo com que deveria finalmente deparar, amarga delícia de um limite dando sentido a sua existência? Todo o percurso que vai da endogamia à exogamia foi trilhado, como que a chicotadas, no exemplo que acabamos de citar. Existe, nesse sentido, um amor pelo amor, quase sem objeto e relativamente indefinido, que, em certas circunstâncias, elege uma pessoa cuja particularidade exaltante consiste em ela ser inacessível. O sofrimento, nesse caso, é menos um sinal das impossibilidades da situação que do amor pela Lei. Não é nesse sentido que o amor sexual parece sintomático? Esse fato parece patente para uma parcela notável da humanidade, que, obcecada pela coisa sexual, com a qual não sabe muito bem como se arranjar, concordaria irrestritamente com ele, se a interrogássemos a esse respeito sob o selo do sigilo. Porém, uma parcela muito maior de nossos contemporâneos decerto não o reconheceria, jurando que o himeneu não lhe causa nenhuma inquietação. E seria preciso uma pesquisa suplementar para perceber que eles só conseguem se ajeitar com isso graças à ajuda da religião ou seus equivalentes, e graças à obediência a seus ritos complexos. Por último, uma parcela afortunada de nossos concidadãos se espantaria com a pergunta, não conseguindo ver o que haveria de sintomático no entusiasmo de um homem por uma mulher que dá seu consentimento. Para falar legitimamente em sintoma, objetariam esses felizes eleitos, não é preciso que haja dor, ou, pelo menos, um certo mal-estar? Ora, não é nada disso que sentimos! A generalidade dessa hipótese, de que o amor se sintomatiza ao se sexualizar, só aparece realmente quando não se postula uma equivalêf!cia entre dor e sintoma, pois um sintoma nem sempre é sinônimo de sofrimento, mesmo que resulte de uma contradição. Algumas formas de sucesso, por exemplo, são sintomáticas (e reclamariam a ajuda da

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análise), mas ninguém se queixa delas. O sintoma resulta de uma situação e, de fato, como freqüentemente acontece, pode atar-se de uma tal maneira que seja não apenas indolor, mas também agradável para os protagonistas de um casal. Além disso, a felicidade de uma dada relação amorosa não implica que essa feliz união não provoque a dor de pelo menos um terceiro. No caso de Pierre, por exemplo, é provável que, no momento em que ele estava sofrendo, a moça por quem se apaixonara estivesse trocando juras de amor com o marido, a quem, aliás, talvez tenha julgado útil informar sucintamente sobre as facetas mais brilhantes da situação. Para avaliar em que medida o amor sexual produz sintoma, convém ainda acrescentar que sua formação não se limita aos parceiros do casal: assim, quem sofre sintomaticamente com uma ligação amorosa às vezes lhe é externo. E, quando examinamos mais de perto como começaram muitas uniões, é raro não observarmos, à beira do caminho que elas seguiram, algum protagonista acidentado. Assim é, que encontramos um rival, um amigo ou um parente a quem foi preciso fazer oposição, e que padeceu desagradavelmente com a situação, ou alguém que os parceiros do casal julgaram que poderia padecer com ela (crença suficiente para esse funcionamento), a ponto, sobretudo, de ele não ser oficialmente informado do idílio. Desse modo, por exemplo, sucede a uma união durar muito tempo enquanto os pais dos interessados não são informados, e enquanto eles se abstêm, aliás, de se inquietar com isso. No que concerne a Pierre, o sofrimento sintomáticó foi mais desencadeado pela situação do que pelo objeto amado. Em inúmeros casos, somente o quadro situacional gera a fixação amorosa. É o que acontece quando um amor monogâmico estável só dura graças à inconstância de um dos parceiros, ou melhor, graças a uma infidelidade apenas verbal. Quando, por exemplo, um homem que vive em estado conjugal mostra-se prolixo em grandes discursos sobre sua liberdade, sobre a inconstância de seu desejo, sobre seu temperamento volúvel, e quando tece diversas considerações filosóficas sobre a efemeridade da existência e a urgência de gozar o dia-a-dia, esses ditos podem levar a conjecturar a iminência de sua partida para outros amores, quando, justamente, ele não faz nada disso. O falastrão revela-se incapaz de se separar da mulher a quem não pára de proclamar sua independência indomável e a quem, dessa maneira, mantém no temor de uma solidão iminente. Nesse sentido, a mulher assim posta à prova é o sintoma desse homem, embora não seja ele quem sofre com a situação, e sim

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ela, por menos que o leve ao pé da letra e que não tenha ainda adquirido a filosofia necessária para deixá-lo tagarelar. Mas, por que deveria uma mulher mostrar-se filosófica se os sentimentos violentos que ela provoca comportam, no final das contas, o insubstituível benefício do gozo? De modo que ela pode interessar-se por provocar esses sentimentos, ou até - de maneira bem mais hábil - agir como se eles existissem. Graças a tal encenação, ela obtém as mesmas vantagens substanciais! É o caso do exemplo seguinte.

O simulacro resolve o problema M.P., de temperamento bastante trabalhador, viu suas responsabilidades profissionais aumentarem com o correr dos anos. Suas tarefas o solicitavam cada vez mais e, se quisesse mostrar-se à altura do que a profissão inteira esperava dele nesse momento, não eram suas oito horas de escritório que lhe permitiriam fazê-lo. Por isso, todos os fins de tarde, inclusive às sextas-feiras, quando duplicava a dose, os dossiês se acumulavam na traseira de seu carro, dispondo-se ele a examiná-los até tarde da noite. Até pouco tempo antes, quando ainda tinha um cargo um pouco menos elevado na hierarquia (e era também mais moço), ele não sabia muito bem o que fazer quando chegava em casa. Andava de um lado para outro e engolia o jantar em companhia da mulher. Geralmente mal-humorado, esbravejava por um momento contra os deploráveis programas de televisão, mudava de aposento e esbarrava mais uma vez com a mulher, visivelmente muito ocupada. Que fazer? Em desespero de causa e desafiando o perigo, não deixava de buscar intimidades com ela. Quando conseguia superar os primeiros rechaças, que às vezes o desencorajavam, é verdade, ainda tinha que arrastar essa amável pessoa até a cama, a despeito de seus protestos, e ali, com todas as luzes apagadas, em geral conseguia fazê-la mudar de tom. É de se supor que seu apetite sexual fosse sólido, já que a mesma cena se repetia quase todas as noites e que, apesar do cansaço gerado por essas relações contrariadas, ele nunca havia tomado a menor providência para procurar em outro lugar uma acolhida um pouco menos desagradável. Agora que ele tinha uma disposição completamente diferente, pois o dever o chamava, ele poderia imaginar que a tranqüilidade do lar fosse propícia a seus trabalhos. Estando sua calorosa esposa enfim livre de seus apetites monstruosos, ela poderia dedicar-se em paz às múltiplas

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ocupações domésticas. Mas, infelizmente, produziu-se um estranho fenômeno depois que ele assumiu essas felizes inclinações, cujo anseio, aliás, renovava todos os dias, não deixando de levar para casa, por conseguinte, algo com que trabalhar até tarde da noite. Ao chegar em casa, inteiramente voltado para suas resoluções, precipitava-se para a cozinha, onde, sem esperar que a mesa fosse posta, ingeria alguns sanduíches. Isso lhe dava tempo de contar, por delicadeza e de boca cheia, as peripécias das lutas encarniçadas que se travavam entre os diferentes diretores a propósito de seus projetos ambiciosos, obrigado como ele era a enfrentar as maquinações de alguns intrigantes. Depois, era o tempo de engolir um café bem quente, abrir uma pasta em que tentava absorver-se no menor prazo possível, e o mesmo curioso roteiro se reproduzia. Dia após dia, sua esposa, que até então ficara em silêncio, começava a resmungar, queixando-se deste ou daquele problema doméstico a propósito do qual descobria alguma responsabilidade do marido. Depois, ela elevava o tom, não hesitando em insultá-lo, afirmando que havia percebido muito bem suas tramóias, mas não tinha importância. E, embora ele não houvesse movido um dedo, e nem sequer erguido os olhos, a não ser, talvez, apenas por ocasião de algum contato ligeiro, ou de alguma outra manobra, ela começava a se recusar com veemência, soltando os cachorros como se estivesse às voltas com um ataque fogoso e como se suas roupas estivessem prestes a ser arrancadas, revelando sua nudez ofegante. Sucedia a M.P. resistir a essa defesa passiva antecipada, mas sem objeto, já que ele não se mexia. No entanto, quando soava uma certa frase de múltiplas variações, era demais. Era qualquer coisa como um "Não quero que me toquem ... ", ou então " Vocês são todos iguais ... ", ou ainda "Que porcos vocês são ... ". Era só ele ouvir essas frases e o mal estava feito. Mais uma vez, a monstruosidade ocupava o primeiro plano e, protestando contra suas boas resoluções, suas ambições e seu futuro profissional, e evitando com muita dificuldade virar a mesa, ele tinha que submeter a mulher, imediatamente, ao que ela havia declarado temer, dando mostras, em circunstâncias tão desfavoráveis, de uma virilidade que surpreendia a ele mesmo, antes que, um momento depois de encerrado o incidente, o remorso pela tarefa deixada de lado se apoderasse dele até o dia seguinte. Eram essas frasezinhas tão excitantes que o espantavam, a tal ponto que ele quis procurar compreender suas motivações inconscientes. Nada mais fácil, já que havia recorrido a meus serviços em tempos

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menos prósperos, coisa de que, profissionalmente falando, só tivera por que se felicitar, embora, do ponto de vista sexual, os resultados da análise ainda deixassem a desejar. As recriminações defensivas de sua mulher e suas recusas antecipadas, por si só, tinham um valor erótico que lhe tirava o fôlego e o surpreendia. Mas essa atração nunca era tão poderosa, apercebeu-se M.P. ao destacar os fatos detalhadamente, como quando ele ouvia aquelas frasezinhas de efeito explosivo. No momento em que as ouvia, era uma ereção imediata. Não era ele "impessoalizado" nesses momentos, e incluído no conjunto dos homens, simples unidade atrás de um plural, anônimo por trás de um "vocês" múltiplo, do qual não era mais que um exemplar potencial? Um entre outros na coorte dos porcos, dos violadores patenteados, dos amantes das menininhas - então, era isso que o excitava, a ele, cuja moral austera, juntamente com sua perseverança, lhe permitira aceder às responsabilidades que agora assumia? Como quer que fosse, ele se tornara tão sensível àquelas malditas locuçõezinhas, que sua mulher, embora não tivesse nenhuma indicação a esse respeito, parecia esmerar-se em procurá-las e encontrá-las, às cegas, como se o relativo desentendimento cotidiano dos dois lhe tivesse dado um conhecimento intuitivo desse móbil íntimo. Portanto, ele não entendia nada, até o dia em que uma lembrança infantil veio enfim colocá-lo numa pista séria. M.P. lembrou-se de uma conversa a que havia assistido. Sua mãe estava falando com uma de suas amigas, queixando-se da brutalidade dos homens e da impossibilidade de ir sozinha aonde quer que fosse, sem logo ser importunada por uma chusma de sedutores libidinosos. Ele julgou lembrar-se de que a conversa das duas comadres desviara-se, em seguida, para assuntos mais íntimos, dos quais, aliás, não conseguiu se lembrar, embora achasse que o tema abordado devia ter relação com o da brutalidade masculina. Restava a certeza de que o nome de seu pai fora pronunciado em meio a esses ditos. Teria ele imaginado que este também merecia ser incluído na categoria dos violadores, tanto potenciais quanto anônimos, e que, por conseguinte, nada poderia excitá-lo mais do que ser repertoriado na companhia dele, num conjunto desses? Essa construção pareceu-lhe de uma banalidade bastante desoladora, embora se lhe afigurasse conforme à descrição do complexo de Édipo, estudado por sua iniciativa num manual ad hoc. Também achei a explicação interessante, embora um pouco simplista, e, como o encorajasse a prosseguir de qualquer modo em sua inclinação, eis que ele me relatou o mal-estar que havia experimentado ao escutar aquelas

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conversas maternas. Então, seria o conteúdo do que ele tinha ouvido? Sim, sem dúvida, mas certamente menos do que o fato de sua mãe ter falado como se ele não estivesse presente, como se o sentido de suas frases devesse escapar a seus ouvidos infantis. Assim introduzido na intimidade da confidência feminina, como se não fizesse parte da totalidade dos homens, entre os quais figuravam seu pai e os outros sedutores, não era unicamente graças à rejeição feminina que ele podia ter esperança de se unir à coorte deles? Por isso ele nunca ficava tão excitado como quando sua mulher o repelia, mesmo ficticiamente, marcando a distância violenta que o situava no campo dos homens. No fundo, era isso que ele obtinha e de que se beneficiava todos os dias, a despeito de suas recriminações, para satisfação geral. Esse exemplo tem o interesse de mostrar que, numa situação de feminilização implícita, somente a rejeição violenta de que era objeto por parte de uma mulher permitia a esse homem aceder à virilidade. Aí encontramos exposto um motivo banal da cólera erótica. Entretanto, a pertença ao campo das mulheres, nesse caso, é considerada como o risco corrido. E cometeríamos um erro se víssemos nisso alguma tendência homossexual, e não aquilo graças ao qual ele havia finalmente acedido à masculinidade. Portanto, é a função da feminilização que permanece obscura aqui e que merece, mais uma vez, ser examinada à luz da função paterna. Seja qual for seu sexo anatômico, todo sujeito depara com a sedução paterna. Mais do que isso, ele a requer, reivindica que o pai seja sedutor, nem que seja para agradar à mãe, para afastar dele, criança indefesa, o canto da sereia materna. Entretanto, depois de havê-la desejado, a criança também teme essa sedução, pois se, no que lhe diz respeito, ela trouxesse alguma conseqüência sexual, o pai já não seria digno desse nome. Não é esse o requisito ambíguo que funda o erotismo humano, negando aquilo que o provoca, provocando aquilo que o nega? Mas, se esse processo é empregado nos. dois sexos, ambos os quais precisam moderar o amor matemo, ele leva a conseqüências mais drásticas no sexo masculino, ao qual contraria. Transposto o obstáculo de uma feminilização obrigatória, ilustrada em todos os ritos iniciáticos, a virilidade traz as marcas do combate que teve de travar para escapar dela. E guarda os vestígios disso, nem que seja sob a forma de um ódio pelo outro sexo, franco e aberto nos casos mais toscos, e mais insidioso, porém eficaz, quando o iniciado descobre, por sua vez, graças à máscara do sedutor, o expediente que lhe permite enfrentar o amor do heteros,

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sua morte mística. Assim, o ódio e a irascibilidade afirmam a masculinidade no ponto gemelar em que ela é ameaçada.

A agressão do feminino corresponde à castração paterna O duplo do que todo homem foi revela-se, muitas vezes, sob adereços femininos, não por causa de uma regressão acidental, mas porque é desde esse ponto de partida que se constrói a virilidade. A conseqüência feminilizante da relação com um pai sedutor aparece, por exemplo, no sonho abaixo, em que o sujeito põe em cena um irmão graças a quem figura uma contradição, aparentemente tão insolúvel quanto a dos sexos: "Não é um sonho engraçado? Uma verdadeira mascarada em que não falta nada: nem a pitada de exotismo, com a evocação de terras distantes, propícias aos sonhos, nem as fantasias vistosas que eu tanto apreciav::i em minha infância! Não me lembro bem do começo do sonho, e .,;ua localização permanece incerta. Lembro-me de um clima de viagem, de embarque próximo, de uma costa varrida por um vento carregado do odor oceânico, mais evocador, para mim, do que o nome particular de um porto de além-mar. A primeira cena emerge de um nevoeiro, sobe como uma aurora rápida e se desenrola numa luminosidade parecida com a da Bretanha, região onde compreendi profundamente, desde a primeira infância, o que eram o alto-mar e os homens que o enfrentavam. "Visivelmente, havia um cruzeiro sendo organizado, e diversos personagens, parecidos com os que eu imaginava em minhas leituras juvenis, agitavam-se em preparativos que tiravam suas características das viagens do capitão Cook, assim como de um prospecto publicitário de um clube de lazer moderno, especializado em viagens marítimas com escalas festivas. Mas, pai~ que região distante estávamos embarcando, naquela excitação da partida qu~ acompanha o barulho surdo da corrente da âncora sendo içada casco acima, arranhando seu metal sonoro? Ainda não havia nada que deixasse isso claro, e o destino continuava incerto. Talvez fosse a ilha de Ré, ou então Cuba, como corria o boato na massa imprecisa dos viajantes. "Embarque imediato! O navio singrou para alto-mar e contornou o quebra-mar e seu farol. Eu me mantinha junto à amurada, percebendo perto de mim aquele que sempre foi meu irmão, Henri, o amigo mais próximo, outra vez meu companheiro nessa viagem. Pois ele não esteve

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a meu lado desde nossos anos de adolescência, me dando a mão de bom grado nos momentos difíceis, mesmo depois de longas separações? Fazia vários meses, no entanto, talvez até um ano, que eu não o revia. Mas foi sem espanto que o encontrei na ponte desse navio, como se nos houvéssemos preparado para aquela travessia, cada qual por seu lado, sem combinar nada, e estivéssemos nos encontrando por um acordo tácito, naturalmente juntos na luz simples daquela manhã. E, ao constatar essa presença alegre a meu lado, eu soube então, com certeza, em que direção rumávamos: sem mais nenhuma hesitação, estávamos navegando para Cuba! Henri, filho de um exilado cubano, sempre tivera saudade dessa ilha caribenha, apesar de mal conhecê-Ia, e planejava um retorno para Já, assim que o ditador atual caísse em desgraça. Violentamente anticastrista, era assim que ele sempre se havia definido, e a alegria que brilhava em seu rosto só era explicável pelo fato de que o prazer da partida era duplicado pelo de um retorno enfim possível... A caminho de Cuba! ... " Para um ouvido analítico, também não faltou à evocação desse retorno anticastrista, porém a uma terra paterna, um exotismo sempre renovado. Mas, ao apurar o ouvido à evocação desses significantes, não estaria o analista freudiano abusando de sua bússola e seu compasso? Não mesmo! Pois a estrela polar da paternidade, bem como da castração, logo iria brilhar sobre a associação seguinte, destacada por um breve silêncio meditativo: " ... Na realidade, bem longe de me evocar um exotismo anódino, ligado apenas às origens de meu amigo, essa ilha me lembra uma frase que meu pai tinha o hábito de pronunciar. Esse bom homem gostava de aforismos e, longe de se contentar com os já forjados pela sabedoria das nações, esforçava-se por fabricar alguns de sua própria lavra, que proferia sentenciosamente a quem quisesse ouvi-los, na primeira oportunidade. Para dizer a verdade, antes de abusar dessas máximas, que às vezes repisava durante semanas ou meses, ele se atinha a elas com mais circunspecção: começava testando-as com a família, mais ou menos petrificada, no momento em que a fuga era impossível a quem quer que fosse, ou seja, na hora das refeições. Depois, feita essa experiência, ele soltava seu ditado num horário nobre, na frente dos convidados, não sem desencadear minha vergonha, quando o aforismo era de extremo mau gosto. "Desde a minha mais tenra infância, de fato, tenho imensa sensibilidade a tudo o que possa me implicar em qualquer situação ricícula. Foi assim que ele me fez corar, em várias ocasiões, ao enunciar uma

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espécie de provérbio com que parecia muito contente. Para poder utilizá-lo, tenho certeza, inclusive, de que chegava até a sugerir a minha mãe, em várias ocasiões, que servisse sobremesas achocolatadas, no intuito inconfesso de experimentar sua descoberta com uma platéia que ele tinha o cuidado de fazer com que fosse renovada. Quando chegava a hora da sobremesa, eu tentava desaparecer sob algum pretexto, mas, na maioria das vezes, pego de surpresa e numa profunda derrota moral, tinha que sofrer com resignação tanto a sentença quanto os risinhos mais ou menos constrangidos dos ouvintes. Mal me atrevo a dizer, de tão embaraçoso que é: 'A Cuba, onfait le cacao', * ele declarava, assim que tinha uma oportunidade - por exemplo, quando um conviva, na falta de cumprimentos, perguntava pela receita da sobremesa maravilhosa. Era assim, desculpe-me outra vez. Desolador, não é? Sei que você é pago para me escutar, mas não é difícil eu imaginar que, nesse ponto, estou atingindo o limite do suportável. Como me parece humana e compreensível a sua técnica das sessões curtas! Estou abusando ... Não há uma certa sodomia em aproveitar assim de uma escuta atenta? E, desta vez, não compreendo porque você ainda não suspendeu a sessão, de tão incomodado que estou por ter proferido essas palavras que, eu lhe asseguro, repito sem o menor prazer, unicamente no intuito de fazer um relato verídico. Será que eu ousaria dizer isso mais uma vez, mesmo em voz baixa? ... 'A Cuba, on fait le cacao ... ' Que consternação, e que prejuízo moral isso foi para mim! "Isso me faz pensar que, se minha vergonha de meu pai era constantemente difusa, na maioria das vezes ela se prendia à escatologia das expressões dele, e, se até hoje me esforço, em minha vida cotidiana, por empregar uma linguagem castiça, isso com certeza está ligado a essas experiências penosas. Você algum dia me ouviu dizer 'merda' ou 'cu', por exemplo? Nem uma vez, não é? Meu pai, ao contrário, não parava de pontuar seus discursos com alusões aos excrementos. Suas indisposições intestinais lhe permitiam fazer isso publicamente, a pretexto da medicina, podendo sua família - no dizer dele inquietar-se legitimamente com o estado de suas fezes, cuja consistência era anunciada dia após dia. Que suplício a minha infância!. .. No entanto, a desproporção entre o sentimento penoso que eu experimen-

• Fazendo um trocadilho com à cul bas, on fait le caca, ô, a frase tem o duplo sentido de "Em Cuba se produz cacau" e "Pelo cu [ou pela bunda], a gente faz cocô, ora". (N.T.)

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tava e as pontuações nojentas que eu tinha de suportar me leva a me perguntar, hoje em dia, se eu não via nisso, por parte do meu pai, uma violência mais profunda, analmente falando, para retomar um desses termos que vocês nunca empregam, mas em que pensam tanto. "Mas, voltemos ao sonho, do qual essas considerações não me afastam tanto quanto parece. Eu estava no pedaço em que deixávamos a costa. O mar estava bonito e o oceano se abria diante de nós, quando Henri, na frente dos amigos reunidos, propôs organizar imediatamente um baile à fantasia. Sua proposta foi aceita com entusiasmo geral. Adoro festas e fantasias, você sabe, e não precisei de mais nada para começar a me travestir. Hesitei por um instante, mas, logo, logo, minha escolha foi feita: era de marquesa, branca, pintalgada, bem à vontade na sua corola, que me veriam naquela noite. No entanto, mal comêcei a juntar meus adereços e a ajustá-los, fui tomado de ... meu Deus! a palavra me escapa ... de vergonha - é isso - , porque avistei Henri, elegante como de costume, que, novamente sem nenhuma consulta prévia, estava fantasiado de marquês ... Decididamente, estou me repetindo! Tomei a empregar esse termo, 'vergonha'. A vergonha está na ordem do dia, hoje! Vamos passar depressa, porque, eu o conheço, você aguça o ouvido toda vez que escuta uma palavra se repetir ... Eu realmente o proíbo de fazer qualquer paralelo que seja entre meu desarvoramento diante da escatologia paterna e a perturbação em que Henri me atirou ao se fantasiar de marquês, involuntariamente fazendo de mim, que sou apenas seu amigo, sua marquesa. "Aliás, observe, o sonho não deixa pairar nenhuma dúvida quanto a isso. Por si só, ele trouxe a solução do problema, porque, assim que vi Henri abotoar sua veste, saí correndo para me trocar. .. Aliás, nesse momento do sonho, houve uma montagem muito confusa de cenas, que fez o brilhante cruzeiro recreativo virar um triste desastre. De fato, nesse momento eu percebi que tinha esquecido de levar meu passaporte, assim como qualquer outro documento de identidade, e que, em suma, com minha roupa feminina, eu não era mais ninguém reconhecível pelo registro civil. A partir daí, fiquei reduzido à condição de apátrida, condenado a vagar pelo oceano de porto em porto, rejeitado por toda parte, talvez navegando indefinidamente de Cuba à ilha de Ré ... você está lembrado de que eu me perguntei, há pouco, se não era para lá que estávamos indo ... Essa ilha, aliás, tem um nome bem musical, estou pensando nisso agora. Será que ele não evoca minha vocação artística, que escolhi muito cedo, contrariando as preferências paternas, música esta que acabou por me proteger de todos os dissabores ... ?

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"Talvez, afinal, você não estivesse errado, embora não tenha dito nada, em pensar que o sentimento de vergonha que evoquei hoje, em múltiplas ocasiões, só tinha um único motivo ... É que estou me lembrando agora de um baile de máscaras de minha infância, por ocasião do qual meu irmão se fantasiou de mago, enquanto eu tinha optado por uma roupa de feiticeira. Eu não podia me fantasiar de feiticeiro, porque um feiticeiro não tem nenhum traje especial no leque das fantasias, não é?, ao passo que a feiticeira tem, e suas características principais são codificadas, sendo a vassoura a peça principal. Então, era normal que eu fizesse essa escolha, e a feminilização de minha pessoa que isso implicava nem sequer me veio à cabeça! Será que alguém acha que uma médica é um homem? Não, não é? E no entanto, todo mundo diz "le docteur". • Em suma, não vi malícia naquilo, e foi meu pai, sempre tão delicado, que não conseguiu deixar de dizer que eu formava com meu irmão um casalzinho encantador. Por quanto tempo essa frase assassina ficou na minha memória? Para ter uma idéia, basta considerar a perda de identidade do sonho, lembrança daquele baile de máscaras da infância, que transcorreu para mim como um pesadelo doloroso, numa espécie de despersonalização, como se minha presença naquele local festivo ficasse reduzida à de um autômato, não mais espesso do que sua máscara e seus ouropéis ... "

Articulação do "complexo" de castração com a violência masculina A partir dos exemplos que acabam de ser expostos, poderíamos examinar diferentes articulações da agressividade com o traço paterno que estrutura o Édipo, e por fim, como conseqüência, com o erotismo. Mas o esquematismo dessas diferentes vinhetas peca por sua simplicidade. Ele mostra precariamente a complexidade do encadeamento da violência com o amor sexual. O exemplo que virá a seguir, mais difícil de desmontar, expõe essas dificuldades. Na vida atual de M.L., a função erótica da cólera está em primeiro plano. Para avaliar o quanto sua excitação sexual depende disso, basta

* No masculino; médica ou doutora, em francês, diz-se femme docteur, como vários outros substantivos de gênero masculino que têm de ser precedidos de femme para compor sua forma feminina. (N.T.)

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constatar a apatia distante em que ele se afunda quando nenhuma nuvem se acumula no horizonte. É como se sua atração por uma mulher não pudesse prescindir de um momento dramático, seja ele acompanhado de compaixão, provocado pela violência de suas ações ou por algum acontecimento fortuito. Sua vida amorosa transcorre como se a união só pudesse durar graças a um momento de desunião, e como se ele precisasse da ameaça de uma tempestade para desejar. A articulação do desejo sexual com a violência é suficientemente explícita no âmbito da sessão cuja narrativa virá a seguir. O contexto imediato da análise acabara de levar M.L. a evocar sua mais antiga lembrança infantil. Nessa rememoração, ele se via nu em sua banheira, enquanto seus pais se aprontavam para sair: ele protestava e chorava, porque a água estava quente demais, pedindo à babá que o tirasse do banho. Como ele já havia comentado, tratava-se da lembrança encobridora de sua questão edipiana: estaria ele queimando por ver os pais saírem juntos para alguma distração agradável, e estaria pedindo a uma outra mulher que lhe aliviasse essa queimadura? Ele ainda continuava indeciso quanto a saber se essa conjectura não era unicamente uma construção induzida pela psicanálise, fazendo da temperatura do banho a configuração de uma cena primária. Foi por ocasião dessa sessão que as associações se encaminharam nesse sentido. A idéia de "sair à noite" havia evocado, primeiro, uma outra lembrança muito penosa, de uma noite de Natal em que sua mãe, furiosa com seu pai, havia gritado a este: "Não vou jantar com você, vou sair!"; depois, no momento de relatar essa segunda lembrança, em vez de dizer "Será que foi a noite de Natal de 34 ?", ele deixou escapar este lapso: " ... Hotel de 34". Esse deslizamento dos termos, entre Natal [Noel] e Hotel [Hôtel], mostrou que a água do banho tinha queimado tanto quanto parecia; na verdade, no exato momento em que ele cometeu o lapso do hotel, apresentou-se em sua memória a imagem de um outro hotel - aquele em que, numa viagem rápida durante a infância, ele fora a testemunha involuntária de uma atividade de seus pais, ocupação insólita e meio assustadora que, mais tarde, ele compreendera ter-se tratado de uma relação sexual. Como acontece quando um acontecimento crucial, revelador do desejo, acaba de ser evocado, outras lembranças relativas ao ano de 1934 se apresentaram, a maioria delas concernente a fatos já relatados antes. Um deles, porém, parecia novo, e foi nesse que ele insistiu:

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M.L. recordou-se do que considerava ter sido o primeiro grande momento cinematográfico de sua vida. Tratava-se do filme Fogo de palha, que ele acreditava ter visto em 1934. Não era engraçado lembrar que esse filme contava a história de um rapazinho que alcançara a glória precoce e a riqueza, enquanto seu pai havia estragado sua vida e mofava na miséria? Na realidade, M.L. verificaria, mais tarde, ter cometido um erro de data, e haver antedatado o filme em cinco anos, como se tivesse querido fazê-lo corresponder ao momento mais agudo de sua fantasia edipiana. Nesse caso, ficou claro que seu erro apontava para a verdade de seu desejo. Entrementes, a figura paterna fora degradada por essa associação e a lembrança encobridora relativa ao casal parental logo se engatou na de uma agressão contra o pai. O fio dessas associações deveria ter-lhe permitido examinar sua história de maneira mais compreensível, mas o que ele experimentou foi um sentimento contrário, o de só ter conseguido formular questões que ainda eram as que tinha hoje, e que continuavam a deixá-lo em suspenso por algum tempo. Tornou a pensar no que precedera imediatamente seu lapso, isto é, na lembrança da cólera de sua mãe contra seu pai. A violência de sua mãe, súbita e excessiva, sempre lhe provocara uma impressão de estupor idêntico, mesmo quando não era a ele que suas explosões se dirigiam. Principalmente quando isso acontecia num lugar públioo - nesse caso, a vergonha o atormentava como se ele tivesse uma parcela de responsabilidade nas demonstrações brutais da mãe, voltadas, em sua maioria, como M.L. se lembrou então, contra seu pai, que ela insultava e repreendia a propósito de qualquer coisa. Era como se ele se sentisse culpado por essas agressões ruidosas. Porém, nenhuma outra associação lhe ocorreu nesse momento, e lhe pareceu mais interessante falar de sua vida sentimental: no caso, de seus problemas com a atual companheira, tão facilmente propensa a se queixar e tão constantemente enferma. A infelicidade alheia o fazia apiedar-se com facilidade e, se fos5e preciso sublinhar o traço mais marcante de sua vida amorosa, seria forçoso assinalar seu apego pelas mulheres que não se contentam em sofrer em silêncio, mas choram quando o destino lhes é desfavorável, ou não hesitam em mostrar sinais de seu sofrimento em suas diversas formas. Ele havia notado que essa dor feminina o instigava, não apenas quando tinha uma causa afetiva, mas também quando aparecia sob a forma de sintomas físicos - os quais, no entanto, não parecem interpelar ninguém em particular.

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Enquanto o escutava, notei que ele acabara de associar esses diferentes pensamentos na seguinte ordem: primeiro, a cena primária, depois, a agressão contra o pai, enfim transposta para a agressão da mãe contra o pai, e por último, seu sentimento de piedade ambivalente em relação a uma mulher. Por várias vezes, de fato, eu já havia destacado esta particularidade de sua vida amorosa: quando se estabelecia uma relação com uma mulher, geralmente era por uma entusiástica e decidida iniciativa dele, cujo ardor permitia augurar que uma vida em comum não tardaria a começar. Mas nada disso acontecia, e a franqueza de sentimentos dos primeiros dias transmudava-se em dúvidas e hesitações. Em virtude de sua atitude ambígua, a companheira exibia seu sofrimento e, por fim, a ligação se prolongava por muito tempo tal como estava, porque, segundo ele, não convinha arriscar, através de um rompimento deliberado, aumentar o sofrimento daquela que,já então, não era mais que meio companheira dele. Lembrando-me dessas características, fiquei surpreso ao ver com que rapidez seus pensamentos tinham acabado de se encadear do passado para o presente, e pareceu-me ainda mais provável que a situação passada, descrita pouco antes, devesse reencontrar-se em sua vida amorosa atual. Segundo dizia, ele continuava preso a mulheres que exibiam seu sofrimento por não querer que elas sofressem. Sua lógica não era evidente, de modo que lhe pedi para esclarecê-la. Ele sentia apenas pena delas, e estava querendo dizer que não as amava mais? Não, não era absolutamente isso o que ele pensava, e reconheceu ter certa dificuldade em exprimir seu sentimento. O que queria dizer é que, quando estava a ponto de romper, mas percebia que a companheira ainda o amava, nada lhe era mais importante do que evitar que ela sofresse. Aliás, para mostrar sua boa fé, ele se apressava em dizer-lhe que continuava com ela para lhe evitar qualquer sofrimento. Não era impressionante constatar que M.L., useiro e vezeiro nisso, e tão requintado em suas introspecções, não houvesse avaliado com exatidão que, ao confessar a uma companheira que estava mantendo sua ligação com ela unicamente para não fazê-la sofrer, aumentava-lhe seguramente o sofrimento? Que há de mais humilhante do que conservar um homem graças a sua piedade? Amor e culpa, portanto, estavam tão inextricavelmente ligados, para ele, que bastava aumentar a segunda para estabilizar o primeiro. E sua própria culpa aumentava por causa de sua piedade, de modo que ele era culpado por fazer sofrer e fazia sofrer com sua culpa. Do sofrimento à culpa e vice-versa, o mesmo

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processo se auto-reinstaurava e, assim, seus amores navegavam no desconhecimento do sadismo que lhes inflava as velas. Outro problema apresentou-se então: como é que se associavam a lembrança da violência da mãe e a piedade pela companheira? Que relação poderia existir entre aquela que agredia e a que ele fazia sofrer? Entre os dois pólos, havia uma ligação explícita, cujo rastro era fácil de seguir. Primeiro tinha havido seu sentimento de vergonha, o de uma falha materna de que ele participava e pela qual devia pagar, e por último, o extremo exogâmico da cadeia era sua pena de uma mulher a quem ele fazia sofrer com sua própria culpa. Entre esses dois extremos aparecia, fugidiamente, a imagem do "Papai Noel" cinematográfico que ele suplantava e de quem era preciso ter pena, menos em virtude de preceitos generosos que lhe tivessem sido inculcados do que a título da culpa proveniente de suas fantasias. Essa rememoração, por mais fugaz que tivesse sido, era útil nas associações, pois permitia estabelecer um vínculo de causalidade com o primeiro pólo do pensamento, que ela fazia pender para o segundo. Imprevisível à primeira vista, a lembrança do filme adquiriu sentido no contexto: não seria em relação ao pai a culpa que sentia? E não foi ele obrigado a acrescentar, nesse momento, que os golpes dirigidos contra o pai tinham sido desferidos por sua mãe como ele desejava, já que sua vergonha e sua culpa indicavam que ele realmente devia participar, de algum modo, dessa violência materna? Depois disso vinha a mulher a quem ele fazia chorar. E por que se dava ao trabalho de fazer sofrer, a ponto de ficar ligado a sua vítima, senão para fazê-la pagar por seu próprio erro? Justiceiro em nome do pai, ele o vingava por um erro que ele mesmo teria cometido, se tivesse ousado fazê-lo, responsabilizando uma mulher parecida com a que havia realizado seu desejo. Sim, era exatamente isso: ele mesmo, sem dúvida, devia ter desejado eliminar o pai. Vira a mãe fazê-lo, realizando seu próprio desejo. E por fim, vingava-se numa mulher por seu próprio desejo, tão empenhado na administração do sofrimento que encontrava nisso sua ratio erótica. Portanto, o que aparecia era uma configuração particular, embora banal, do complexo de Édipo, explicitando um mecanismo comum da agressividade e de suas conseqüências eróticas. Quantos homens, de fato, nunca desejam tanto quanto ao se vingar de seu próprio desejo na mulher que amam? O circuito que comandava a identificação masculina abarcava o termo que permitia uma renovação indefinida do desejo sexual. Renovação ainda mais eficaz na medida em que não era apenas o sofrimento que ele mesmo infligia a fonte de sua com-

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pa1xao libidinal, porém, em termos mais gerais, a dor feminina, tal como pode aparecer, por exemplo, na eclosão de um sintoma orgânico. A mulher doente era o objeto de sua atenção e ele protegia nela aquilo que, afinal, o excitava. Na realidade, era-lhe raro infligir maus-tratos e, antes de sua análise, ele teria ficado surpreso se o interpelassem quanto ao sadismo de seu comportamento ( que, aliás, continuava a só lhe aparecer confusamente). Uma violência em ato era-lhe ainda menos necessária, na medida em que, na vida cotidiana, a dor do sintoma era suficiente para cativá-lo. É que a mulher suscetível de atraí-lo já estava sofrendo, antes e além dele, com a luta extenuante, sempre já travada e ainda por travar, contra o semblante paterno. A cólera de uma mulher, ou seu sofrimento, evocava uma figura paterna, uma vez que, tal como sua mãe, a mulher enfrentava essa figura, do mesmo modo que, por isso, ele a fazia pagar. Daí resultava, no entanto, um desejo heterossexual, pois o erotismo encontrava seu impulso no ato secretamente sádico que, vingando o pai, integrava-o no clã dos homens, graças a esse desvio agressivo. Será que essa mecânica do desejo merece ser considerada como um aspecto geral da masculinidade? A questão se coloca na medida em que a gentileza, a galanteria e a compaixão pelas mulheres são a contrapartida de uma agressão latente. (De modo que esses comportamentos civilizados deixam pairar uma dúvida sobre as segundas intenções que podem encobrir.) Se a compaixão lhe arrancava lágrimas, fosse quando ele dava dinheiro a mendigos, quando se mostrava gentil com alguém, ou, a bem da verdade, em qualquer ocasião - por exemplo, à evocação do destino trágico de um homem ilustre-, o contexto mostrava em nome de quê essas lágrimas eram derramadas. Não residia todo o enigma na vontade secreta de fazer uma mulher chorar, para em seguida consolá-Ia? De fazê-Ia sofrer, para depois comungar com ela, debulhar-se em lágrimas por ocasião da dor que ele mesmo provocava, trocando de máscara no meio de um percurso, metade realizado como justiceiro e, metade, como irmão? Em parte, M.L. procurava purgar o ato cometido contra o pai, embora ele mesmo pudesse ter cometido esse ato, se se atrevesse a tanto, mas, por outro lado, também chorava, já que a mulher de quem se compadecia representava um outro elemesmo, feminilizado por um pai castrador. Ele chorava, em suma, o risco de sua própria castração.

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Essa evocação implícita de uma sevícia paterna (a castração), incluída na queixa feminina (quer resultasse da agressão de M.L. ou da dor de um sintoma), encontrava sua melhor ilustração numa circunstância particular: quando o desespero de uma mulher o instigava, o protesto dela contra o dolo ou as exações C:e um personagem malévolo, ou, a bem dizer, de qualquer um, fascinava-o especificamente. Ele escutava a evocação das sevícias de um torturador como se sua solicitude fosse um dever que cabia a um fiel escudeiro cumprir. Não era com deleite que colhia lágrimas e recriminações? " ... Ela busca em mim um eco para sua queixa", chegou a dizer. "Nós comungamos na queixa em relação ao carrasco." Uma comunhão que, da mesma maneira que quando ele próprio era responsável pela dor, possuía a virtude de excitá-lo - e, por conseguinte, de se concluir eroticamente. Acaso o opressor não aparecia, desse modo, como um personagem realme:1te necessário à expansão de sua libido? Assim, M.L. punha em ato, por um lado, sua compaixão pelas mulheres - que era uma forma de crueldade - , e por outro, uma crueldade que, em contrapartida, o comovia até as lágrimas. Tinha lugar, por conseguinte, uma tirania cuja causa paradoxal era a culpa, e da qual provinha uma surpreendente comunhão com a vítima. A comunhão amorosa, sádica e violentamente erótica de um sujeito que confessa, num mesmo elã, sua submissão a um pai e sua feminilização virilmente renegada. 1 Não terá o trabalho associativo, efetuado a partir do "amor ao Pai", permitido esclarecer retroativamente a relação da crueldade com a piedade nos hábitos amorosos de M.L.? A relação entre a compaixão e a crueldade seria fácil de compreender se esses dois sentimentos se opusessem, mas não era esse o caso, já que, no exemplo estudado, eles se geravam mutuamente. Claro, essa relação de disjunção não pode ser generalizada, pois nem todo sentimento de repulsa encontra sua origem em seu contrário. O ódio está longe de ser sempre o avesso do amor. Todavia, assim como podemos observar em muitos casos uma implicação mútua entre compaixão e crueldade, também a passagem de certos sentimentos da positividade à negatividade é de observação suficientemente constante para que procuremos explicar sua motivação. O pretexto desse reviramento varia, mas nunca é mais patente do que quando um neurótico censura o pai por amar outra mulher. Uma outra mulher que não sua mãe, pensa ele, embora o recrimine por amar outra mulher que não ele mesmo. É isso que ele ignora, na maioria

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das vezes, do mesmo modo que, no curso de sua análise, é quase impossível assinalar-lhe esse fato muito depressa, porque ele não deixará de pensar, imediatamente, que seu desejo foi homossexual e talvez ainda o seja. Em certo sentido, é isso mesmo. Mas, como foi apenas a partir desse desejo homossexual que ele pôde aceder à heterossexualidade, nada é mais delicado do que sublinhar uma particularidade que gera seu contrário. Retomemos pela última vez o exemplo de M.L. Foi vários meses depois que, havendo o trabalho analítico feito sua obra de redução, o ódio amoroso teve que se exprimir segundo sua forma mais depurada. O interesse da formação do inconsciente que virá a seguir está em mostrar tanto a condensação, numa única figura, do erotismo contraditório da cólera, quanto sua necessidade para a transmissão até mesmo da potência fálica. M.L. sonhou que se encontrava com a mãe e que esta lhe perguntava se, afinal, ele havia conseguido vender umas ações bancárias que ela lhe dera. O pensamento do sonho era que realmente existia um capital, mas que este só poderia adquirir valor depois de um ato concretizado por uma venda. Na realidade, ocorre que essas ações existiam: eram as do marido riquíssimo com quem ela se casara em segundas núpcias. No sonho, a mãe dava ao filho uma triste notícia: esse marido acabara de falecer, e era nessas circunstâncias que vinha a pergunta materna: que acontecera com as ações? Ele conseguira vendê-las, afinal? Que pena!, ele ainda não havia conseguido levar a termo essa operação financeira e, portanto, continuava a ter nas mãos aquele capital de que não conseguia tirar proveito ... Sem dizer uma palavra, mas como se estivesse claro que, desse modo, ele disporia da solução do problema, a mãe pôs-lhe então nas mãos uma tampinha parecida com as das garrafas de cerveja ou água mineral. Examinando mais de perto, esse objeto banal, mas, nessas circunstâncias, misterioso, trazia gravada na face externa uma inscrição, uma espécie de marca hispânica da felicidade - FELIZ• - , enquanto, na borda, destacava-se nitidamente, em inglês, a palavra SQUABBLE (squabble, termo menos fácil de compreender para o leitor latino, significa querela, altercação). Entre a face e a borda, portanto, Feliz disputa, enunciava a tampa, dando a senha destinada a operar a mágica transmutação das ações da bolsa. FELIZ-SQUABBLE: graças a essa escrita translingüistíca, não estava o inconsciente indicando, de

• No original, FELIZ, como em espanhol -

ou em português. (N.T.)

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frente e de perfil, o modo de utilização da potência, que, como se sabe, é paterna antes de ser viril? Esse processo, bastante corriqueiro na normopatia da vida cotidiana, constitui uma apresentação particular de uma estrutura mais geral do desejo humano. É clássico observar que o desejo nunca é tão violento como quando fica insatisfeito. Mas, quão mais pertinente é assinalar que ele se apóia constantemente naquilo que o contraria! Não se trata de tirar filosoficamente a poeira de uma figura tão velha quanto o mito de Tântalo, mas de sublinhar a especificidade do desejo sexual em relação à angústia de castração. Podemos então compreender através de que processo contrariado a maioria dos homens torna-se heterossexual, apesar e graças ao amor do pai. A castração é sempre ameaçadora para todo homem, pois continua "à frente" dele, como um risco potencial (específico da fúria viril). Assim, toda vez que tem essa oportunidade, o homem enfrenta o rival a quem imputa a responsabilidade por essa angústia e com o mesmo elã aborda o outro feminino, com uma excitação que lhe é proporcional, renegada à maneira perversa que é própria da masculinidade - ou seja, mais freqüentemente do que em sua feição colérica.

NOTA 1. Nesse sentido, a violência requerida pelo erotismo é de tal ordem, às vezes, que não tem freio, e extrai seu quinhão de gozo das situações mais extremas (por exemplo, quando um homem é excitado por uma mulher quando ela está à beira do suicídio).

A demanda impossível da sedução feminina e suas conseqüências

O erotismo masculino reclama um roteiro em que o confronto com um pai tem graus variáveis de importância e, às vezes, até ocupa a boca de cena, já que um triunfo obtido sobre um lugar-tenente da lei pode ter o mesmo valor psíquico de uma conquista sexual. Daí o alto valor libidinal de todo ato colérico. A modalidade feminina da relação com a castração não é sensivelmente diferente? De fato, a acreditarmos em Freud, os estragos psíquicos da ausência de pênis já teriam sido irremediavelmente feitos, no que concerne a nossas esposas, nossas amigas e nossas irmãs (persistindo uma dúvida quanto a nossas mães). Essa crença seria sustentada, como se sabe, pelas constatações anatômicas que os garotos traquinas não deixam de fazer quando de suas brincadeiras inocentes com as coleguinhas. Portanto, a angústia de castração concerniria, para elas (com exceção de nossas mães), menos a um risco futuro do que à busca de meios para mitigar a situação existente, segundo um objetivo pouco poeticamente designado pelo mesmo Freud com o termo" inveja do pênis". Como se apropriar de um objeto que falta tão cruelmente, eis aí o projeto que as mulheres procurariam realizar e, se necessário, senão com perversidade, ao menos com determinação. Utilizar o termo "perversidade" para designar os artifícios e malignidades de um sexo que não hesita em se fazer passar por fraco, para remediar esse dano irremediável, poderia valorizar indevidamente uma dimensão distorcida de vingança. E já não se vê, em absoluto, o que haveria de erótico nessas operações de represália. Do mesmo modo, se fosse apenas isso, por que se preocupar com projetos de reparação, 51

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quando não são os equivalentes satisfatórios do falo que faltam ao devaneio feminino, a começar pelo pênis masculino, sucedâneo divertido sob muitos aspectos? No entanto, existe um erotismo que só começa a partir do momento em que uma reparação dÓ que foi imaginariamente amputado é esperada daquele que foi seu adorável agente, isto é, de um pai (ou um indivíduo que se pareça com ele). De modo que, se os contrários que são o ódio vingativo e o amor reparador misturam-se no erotismo feminino, isso se dá segundo o circuito sinalizado em que é preciso, primeiro, ressuscitar o responsável pelo dano intcial, depois, exercer sobre ele as diversas represálias da sedução e, por último, obter enfim a reparação esperada. Portanto, compreendamos que se sucede a algumas mulheres serem más, quando elas são quase todas muito gentis (a ponto de isso ser inquietante), é para obter um prazer final em que o nosso está incluído! Elas só se dão ao trabalho de nos provocar para maior benefício de um gozo do qual podemos tirar proveito.

O erotismo da p:rovocação Para nossa edificação, vejamos por um instante como age essa jovem que, em todas as circunstâncias, assim que tem a sorte de estabelecer laços de afeição ou amizade com um novo conhecido, não consegue impedir-se, imediatamente, de procurar e descobrir, se assim podemos dizer, o ponto onde o calo dói. Ela cultiva o comentário desagradável em todos os momentos e todos os lugares, no âmbito do trabalho, das amizades, dos amores e até dos sonhos, reservando-o, de preferência, àqueles que a agradam. É com assiduidade que busca, em particular em seu interlocutor do momento, o detalhe que claudica, a oportunidade para o comentário desagradável, que acerta sistematicamente na mosca. De modo que, :10 longo da conversa, de observações inoportunas a respostas mais ou menos mordazes, de subentendidos perniciosos a afirmações peremptórias, uma situação que nada parecia ameaçar azeda-se subitamente, transforma-se numa tempestade, e aqueles que se tornariam amigos para sempre separam-se numa inimizade igualmente definitiva. Com deleite e com um sorriso nos lábios, ela manobra seguidamente até o rompimento, tendo a felicidade de descobrir, sem que consiga contê-Ia, a palavra ofensiva que afastará o mais bem disposto dos sujeitos, lamentando, se isso acontecer, que ele se retire sem combater. Pois é no confronto e nas explicações que ela excele, tanto sabendo protestar sua inocência e sua afeição quanto agravar, de

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passagem, a perfídia de suas afrontas, envenenando irremediavelmente uma situação para a qual, até o fim, declarará desejar um desenlace feliz. Se esse traço caracteriza quase todo o conjunto de sua vida social, cujo círculo ela amplia tanto quanto lhe é possível, levando o incêndio tão longe quanto o exige a rapidez da desertificação que executa no mesmo elã, é à família e aos parentes que ela reserva, de preferência, seu venenoso pendor. Na verdade, pode exercer seus talentos com eles de maneira mais sutil e duradoura, graças à fixidez do estado civil e das relações que ele implica. Assim, os protestos de afeição, aliados aos juízos corrosivos, fazem de sua vida um inferno do qual o tédio é banido. Foi assim, pelo menos, e não sem um certo humor, que essa moça me descreveu sua vida afetiva quando veio me procurar. Desejava emendar-se, pois os resultados desastrosos de sua inclinação deplorável davam bons motivos para angustiá-la, e ela parecia obcecada com a preocupação de reparar o efeito de seus ditos desagradáveis, principalmente junto àqueles a quem era mais apegada. Isso lhe era difícil, porque ela sabia que, mais forte que tudo, um demônio tornaria a empurrá-la mais uma vez, sem a menor diplomacia, para a catástrofe. Havendo eu mesmo experimentado alguns de seus comentários agradáveis, em geral bastante oportunos, e mesmo não duvidando de sua incomensurável boa vontade para magoar, perguntei-lhe um dia, não sem prudência, o que a impelia para esse comportamento. Uma pergunta desconcertante, na verdade. A resposta era quase óbvia: ela ignorava por completo o que a impelia a agir assim. Não obstante, podia precisar. .. que uma espécie de insatisfação acerca de sua situação do momento a levava a buscar assiduamente um transtorno, qualquer um, a rigor, porém da dimensão mais importante possível, dentro dos limites do suportável. Era essa a resposta que lhe parecia mais pertinente: tinha que acontecer alguma coisa que fizesse" aquilo parar". Era difícil continuar a investigação a partir de indícios tão escassos, já que essa idéia não permitia esclarecer o que tinha que acabar, nem porquê, mas apenas como. Entretanto, com essas palavras, ela deixou de lado· minha interessante pergunta para voltar à exposição de seu amor desesperador pela discórdia. Para avaliar o quanto esse estado furioso de precipitação a atazanava, bastava ver com que tenacidade ela atormentava o marido para que eles mudassem de apartamento! Fazia vários meses que tudo se reduzira a essa idéia fixa, e a reivindicação da mudança havia-se

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tornado o leitmotiv de uma querela rasteira, matizada por novos imprevistos e falsas calmarias. Não tinha ela uma boa razão para estar farta? "Naquele apartamento", dizia, "ele viveu com a ex-mulher, e sinto a presença dessa criatura por toda parte. Dentro destas paredes, não estou em minha casa, mas na dela. Por mais que eu mude um móvel de lugar quase todos os dias, estou sempre com medo de recair na antiga arrumação, da qual, aliás, esqueci, o que torna toda modificação obsedante. Mandei repintar as paredes, derrubar uma delas, trocar a banheira, mudar as luminárias, lavar, tingir e depois trocar o carpete, não adiantou nada. Aliás, na verdade, acho que esta casa simplesmente não me agrada nem um pouco. Não gosto dela, a realidade é essa. Mas, como a realidade não lhe interessa, estou marcando passo ... " Essas descrições movimentadas, no entanto, tiveram a vantagem de me mostrar que seu marido era de temperamento bastante plácido, ou talvez tirasse proveito desse incrível desassossego cotidiano. Pelo menos, portava-se como se nada estivesse acontecendo. Chegava do trabalho à noite e se movia distraidamente por um labirinto cujos itinerários tinham sido modificados durante o dia. E não parecia muito impressionado com os montes de entulho que tinha de transpor à noite, com a tinta fresca com que era preciso ter cuidado, ou com os fios elétricos pendentes do teto como laços perigosos, sem falar das entregas dos móveis que a mulher encomendava sem avisá-lo. Esse cataclismo cotidiano, ela o perpetuava com constância, com o sorriso ansioso de uma espera: a de uma explosão de cólera que, segundo almejava, precederia a tão esperada mudança. A cólera, de fato, acabou explodindo, coroando seus meritórios esforços. Mas, ao contrário daquilo com que ela havia contado, essa explosão veio acompanhada da ameaça de uma separação iminente. E ela logo se acalmou. Não que tivesse levado a sério essa advertência, vinda de um homem pouco inclinado às reviravoltas afetivas e, a seu ver, incapaz de imaginá-la, sem que já tivesse instalado em outro lugar um outro par de chinelos. Foi em termos muito mais profundos que a cólera do marido lhe trouxe um alívio - mais significativo ainda na medida em que, nos dias subseqüentes, a calma estendeu seus benefícios inclusive às pessoas de seu círculo, estarrecidas. Tampouco lhe escapou que, para sua grande surpresa, essa calmaria foi acompanhada por uma certa renovação erótica, embora essa atividade se houvesse mantido sofrivelmente caseira nos meses recém-transcorridos. Subitamente liberta de sua furiosa comichão de mudança, ela se teria disposto de bom grado a reconhecer todos os seus erros - o que,

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aliás, absteve-se de fazer-, se seu marido o exigisse. Mas este parecia muito mais interessado nas repercussões amorosas de sua explosão do que em desculpas. Já no passado ela havia reparado nesse processo, no qual, de exagero em exagero, procurava desencadear a cólera do marido, ira esta que a acalmava tão logo ela a obtinha. Com certeza, ele devia amá-la mais nesses felizes momentos em que quase chegava a espancá-la ... E era verdade que, nos últimos tempos, ela já não vinha conseguindo colocá-lo naquele estado delicioso em que, fora de si, o marido ameaçava atirá-la pela janela, antes de fornicá-la furiosamente. Ali estava novamente a felicidade, sempre tão difícil de obter! Sem consideração por essas contingências, a análise foi seguindo seu caminho. Totalmente entregue a sua precária felicidade, a moça se espantava com esse alívio, que nunca fora tão claro nem tão intenso. E, deixando entrarem as idéias adventícias, segundo o método que havia aprendido em meu divã, ocorreu-lhe por várias vezes o pensamento bizarro de que ela fora obrigada a agir assim porque esse homem, seu marido, tinha que deixar de ser criança ... Era uma idéia curiosa, porque o marido, francamente mais velho do que ela e já pai de família antes de conhecê-la, não apresentava nenhuma das características do eterno adolescente. De onde lhe podia vir esse pensamento? Se ele tinha que deixar de ser criança, não era em relação aos sogros dela que esse pensamento se impusera? Com efeito, sua inimizade pela sogra pareceu-lhe, de repente, de suma importância. Como era, aliás, em menor grau, a que ela reservava ao sogro. Pelo menos, era seu dever comentar: sua aversão pelos sogros tinha-se declarado desde o primeiro dia em que ela os encontrara. Esse pensamento concernente à puerilidade do marido, portanto, devia ser menos uma agressão a ele do que a sua mãe. Era isso! A analisanda achou ter encontrado a resposta para a questão que se fizera pouco antes: de que estado a cólera deveria servir para marcar o fim? ... Ora, da infância, evidentemente! E que reviravolta suas provocações incessantes procuravam obter? ... Elas tinham como ambição impor ao marido que deixasse de ser criança (filho), estava perfeitamente claro! Que essa constatação, apesar de luminosa, pareceu-lhe insuficiente após uma ampla reflexão, foi do que ela se convenceu ao rememorar as relações perfeitamente convencionais do marido com a mãe. Como filho respeitador, ele lhe fazia raras visitas algumas vezes por ano, por ocasião das festas destinadas a esse fim, e vez por outra se preocupava com a saúde dela, telefonando-lhe. Nada além disso, nunca. Quanto à mãe dele, ela parecia pouco preocupada

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com o destino cotidiano do filho crescido, e parecia ter-se livrado há muito tempo da inquietação com sua roupa de baixo e com o estado de suas meias, cujo controle não procurava disputar com a nora. Portanto, fora com certa precipitação que ela havia querido explicar suas próprias provocações pela busca de uma separação entre a mãe e o filho, como se, graças a esse estratagema, fosse parar " ... de lidar com um homem que seria apenas -um filho ... entre os outros ... Os homens, em sua maioria, não continuam a ser uns crianções? ... Não há quem encontre seu caminho, permitido essa multidão ... " Ora, não acabava ela de cometer um ligeiro lapso, que invertia por completo a situação? Pelo menos, foi assim que teve de considerar esse ligeiro deslizamento do permitido [permis] no lugar de em meio a [parmi]. Pois, como a analisanda associaria de imediato, na verdade não era a condição de homem que se opunha à de filho, mas a de pai. Bem menos do que uma separação entre o filho e a mãe, aparentemente já consumada, a cólera que ela se esforçava por fazer eclodir era a de um pai, que assim se distinguiria da multidão dos homens, aos quais a condição de filhos merece ser atribuída, com muita justiça, quando eles se reúnem em bandos. Existem multidões de filhos, mas apenas um pai para se afastar deles. Nenhuma criatura, a não ser ele, pode constituir uma exceção na multidão de filhos, e era ele que a jovem procurava distinguir, graças a suas manobras tão certeiras quanto complexas. Lidar apenas com um filho, comentou prontamente, a impediria de ser mulher. Com um pai, em contrapartida, isso lhe era permitido. Para essa moça, a função erótica da cólera parecia bem diferente, sob esse aspecto, daquela a que M.L., no capítulo anterior, aspirava desejantemente. Se um homem procura provocar a cólera de uma mulher, é na medida em que esse sentimento violento possa evocar a interdição paterna, sempre tão gozosa de transgredir. Em contrapartida, se uma mulher incita a de um homem, é para que ele mesmo encarne um pai por um instante. De um lado, invoca-se uma presença espiritual, basicamente desencarnada, num sentido religioso, ao passo que, de outro, em se tratando de uma encarnação, é um movimento inverso que está em jogo. Caberá ver nessa distinção o sinal de uma relação muito diferente com o corpo por parte do homem e da mulher? No exemplo que acaba de ser examinado, a incitação à cólera tinha por objetivo ressuscitar um pai terrível, segundo modalidades decerto espalhafatosas, mas que podiam revelar-se eroticamente resoluti\ras. Mas, nem sempre funciona assim, longe disso. A busca de um pai é

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feita às cegas e constantemente. Por conseguinte, é de um modo habitual e indiscriminado que mais de uma mulher apoquenta mais de um representa.nte do sexo masculino, que recebe uma espinafração sem compreender muito bem o que está acontecendo, e sobretudo sem extrair disso o menor benefício libidinal. Ele tem direito à provocação, seja ela sedutora ou menos delicada, sem se beneficiar do erotismo adjacente, que fica reservado a um único eleito (segundo a particularidade do pai de ser Um). Além disso, o epílogo sexual da operação está longe de ser evidente, pois, se é sempre fácil ressuscitar um pai em meio à miríade de pretendentes a esse título, é muito mais difícil ir com o afortunado eleito até a conclusão sexual, que se assemelhará muito a um incesto, mesclado de festim canibalesco. Daí o embaraço muito freqüente da sexualidade feminina, quando ela procura reunir exigências tão drásticas quanto contraditórias: primeiro, ressuscitar um personagem do passado, para depois reduzi-lo unicamente a seu valor espiritual, isto é, para matá-lo fantasisticamente, e isso, junto com a realização de um objetivo erótico.

Do embaraço da sexualidade feminina em suas próprias condições de efetivação No exemplo seguinte, o sintoma mais gritante da analisanda era uma espécie de cólera quase constante, que parecia universalmente dirigida contra os homens. Essa cólera manifestava-se de um modo explosivo em sua vida amorosa e profissional, tendo a primeira a particularidade de influenciar a segunda, conferindo-lhe sua tonalidade vingativa. Sendo levada, por sua atividade profissional, a fazer estatísticas em diferentes meios, essa jovem acabou passando uma temporada de alguns meses em diversas vilas militares do sul da França. Sua função era colher informações com militares profissionais, personagens que ela achava meio rudes e infantis, apesar do nível de competência técnica que se dispunham a demonstrar à menor oportunidade. Ela assistiu a alguns exercícios, freqüentou a cantina dos oficiais e a dos suboficiais e visitou algumas famílias. Talvez tenha sentido simpatia por aqueles soldados, que, pelo menos no tocante aos mais jovens, enveredavam por essa carreira sem ter a menor idéia da violência, nem mesmo a de uma briga de rua, sem ter jamais visto uma gota de sangue, praticamente, nem tampouco um ferido ou um morto, e, mais ainda, sem o menor ideal capaz de exaltar seus valores

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guerreiros, num país cercado por nações amigas, e numa época em que nenhuma querela pendente parecia passível de revelar, de uma hora para outra, um inimigo declarado. Entretanto, essas calmas perspectivas ensombreceram-se em poucas semanas, eclodiu a "guerra do Golfo" e, dando ouvidos apenas a suas simpatias pessoais, que iam de encontro a seus ideais, ela aceitou ser madrinha de guerra de alguns pára-quedistas que estavam de partida para o deserto. Aliás, tratar-se-ia apenas de simples simpatias, que ela teria experimentado por adolescentes crescidos, prontos para passar às vias de fato sem sequer saber com quem nem como? Não seria, mais intimamente, porque desde sempre o personagem do guerreiro fizera parte de suas fantasias mais secretas, aquelas em cujo momento ela se entregava às emoções sexuais? Quando criança, ela se lembrava de sua excitação ao ver a tropa desfilar marcialmente, e dos gritos estridentes de aprovação que soltava quando os passos cadenciados martelavam a rua na altura em que ela se achava, com os bravos mais discretos a seu redor mascarando o que suas manifestações tinham de exagerado. E que dizer dos momentos em que, encarrapitada nos ombros do pai, fascinada pela visão dos equipamentos mortíferos, ela se inebriava pelo ano inteiro, menos com o rufar dos tambores do que com a visão daqueles homens uniformizados e mecanizados, que, apesar de aclamados, nem por isso deixavam de estar de algum modo destinados à morte? Mas essas lembranças ainda eram apenas imagens bem-educadas, que ela podia partilhar com qualquer um. Para além delas, o homem portador da morte, ou, mais ainda, ameaçado de desaparecer, dizia-lhe respeito segundo as particularidades de sua fantasia sexual. A fantasia sexual apresenta uma característica que muitas vezes a torna difícil de analisar. É que, de um lado, conhecem-se de cor os meandros desses roteiros, utilizados com tanta freqüência quanto convém, enquanto, de outro, apesar dessa intimidade, seus motivos não são reconhecidos. Quem se serve delas para aceder ao gozo rejeita-as para fora do círculo de sua consciência habitual tão logo obtém o prazer, sem sequer se dar ao trabalho de valorizá-Ias ou reprová-las. É como se elas dissessem respeito a uma outra vida, ou a uma outra pessoa. Suas imagens estão tão imbricadas nos imperativos do gozo sexual, que parecem nunca poder ser pensadas fora do trajeto que leva até ele. Na análise, quando esses roteiros são evocados, primeiro o são quase que acidentalmente, por intermédio de algum acontecimento periférico - por exemplo, graças à narração de uma lembrança infantil, da

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brincadeira que acompanhou a primeira comoção sexual, ou da rememoração de um pavor que antecedeu um acesso inesperado de onanismo. Assim, só depois de muitos rodeios é que a recém-escolhida madrinha de guerra pôde reconhecer que o guerreiro sempre fizera parte de seu pensamento erótico. Não é que, para atingir o prazer, ela precisasse representar as cenas dos 14 de julho de sua infância, que evocasse algum filme de guerra em que fosse a heroína, ou que se imaginasse vítima de algum combatente enegrecido pela pólvora de canhão e coberto de medalhas tilintantes (embora fosse inútil negar que essas imagens eram absolutamente sem efeito). Pois, para atender aos requisitos, qualquer homem era susceptível de habitar suas fantasias sexuais, desde que, em sua vida cotidiana, corresse algum risco sério, capaz, senão de colocar sua vida em perigo, ao menos de ameaçar sua situação profissional, sua honra ou sua classe. Um homem desse tipo ocupava seus pensamentos mesmo sem que ela o conhecesse, e era ele que a acompanhava nos caminhos de seu gozo. Já havendo analisado esse processo, ela conseguira estabelecer um vínculo entre as lembranças infantis antes mencionadas, aquilo que sempre fora o móbil de seu sonho de amor e sua recente promoção a madrinha, numa guerra que, apesar de distante, não deixava de ser, para ela, um tema de constante preocupação. Com efeito, no entanto, uma vez estabelecido esse vínculo, apresentou-se um problema talvez apenas moral, se quisermos, mas ainda assim um problema - , já que, fosse por ocasião desse conflito de móbeis incertos, fosse por ocasião dos que o haviam precedido, ela sempre se declarara partidária da paz. Como se suas fantasias pertencessem a um domínio não relacionado com a realidade, suas simpatias sempre haviam recaído sobre os militantes pacifistas, por mais isolados que fossem. E agora, que a situação era tão complexa e que, ao contrário de outras vezes, muitos de seus amigos eram favoráveis à guerra, ela mantinha obstinadamente essa escolha. Uma contradição importante, portanto, deveria embaraçá-la: entre a exigência afirmada de fazer calarem-se as armas e sua atração secreta pelo guerreiro. No entanto, não só isso não acontecia, como, ainda por cima, essa contradição não lhe parecia evidente. Devia haver, portanto, um elo de continuidade entre esses dois pólos, aparentemente tão antagônicos quanto a noite e o dia. Seria cabível supor que seu pacifismo era tão mais militante quanto mais tinha por função ocultar a dimensão mortífera de sua fantasia do mesmo modo que convém ocultar os arroubos amorosos dos olhos

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de outrem, ou que convém que todo o mundo reprima ternamente suas pulsões sádicas? Nada seria mais simplista, porque, longe de fazer parte das idéias racionais que amadurecemos tranqüilamente e que depois defendemos, usando argumentos para apoiá-las, o próprio pacifismo era parte integrante de sua fantasia (acaso sabemos, realmente, de onde nos vêm nossas opções "políticas", que amiúde se mantêm inalteradas?). Quando ela declarava, por exemplo, de uma hora para outra, que "nada era menos excitante que um ecologista" - aforismo vigoroso, que no entanto concernia à ala militante de seu próprio pacifismo - , parecia não desconhecer nada da ligação existente entre essa máxima e o ardor de seu erotismo secreto. Se "nada era menos excitante que um ecologista", então era preciso, à noite, uma vez guardadas as bandeirol~s e os slogans, que seu irmão inimigo, muito mais poluente, viesse substituí-lo. Como apreciar o assédio de um ecologista, quando os pensamentos secretos estão voltados para o guerreiro? E como suportar sem horror a presença de um guerreiro, quando isso é confrontar-se imediatamente com um desejo tão insuportável quanto um voto de morte? Como articular esses gêmeos, que tinham, de certa maneira, que andar de mãos dadas, em vez de combater um ao outro? Não era pelo fato de o primeiro vir em socorro do segundo, quando o desejo se fazia violento demais, que ela não via nenhuma contradição em suas escolhas? Assim, convinha supor que o pacifismo declarado tinha uma função: a de assegurar uma proteção contra o que seu próprio desejo tinha de mortífero. Se o gozo sexual procedia de uma fantasia cuja encenação significava o desaparecimento violento do amante, ela reivindicava a paz contra seu próprio desejo (muito embora a guerra fosse a condição dele). Assim, seu desejo se arranjava, menos contra um entrave externo do que consigo mesmo: procurava pacificar aquilo que o incendiava. Extinguia precipitadamente o que acendia, o fogo pegando rapidamente mais adiante, numa extensão que concernia a todos os quadros nos quais se representava sua existência. O que era verdade sobre o erotismo do engajamento político repercutia da mesma maneira em suas atividades profissionais, onde, tão logo um homem se distinguia por suas qualidades combativas e sua coragem, isso dava ensejo a uma tal atitude contraditória que, em geral, ela se resolvia no conflito e na rejeição, pois, como pôr em ordem nesse terreno o que, já em sua vida amorosa, era motivo de imbróglios inextricáveis? Percebe-se, por esse mesmo motivo, o quanto algumas simetrias só ilustram aproximativamente a complexidade de um problema. A vio-

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lência que rege a sexualidade, amiúde não aparente, muitas vezes pode ser representada por metáforas tão batidas quanto clássicas: é o caso da luta que travariam Eros e Tanatos, figuras opostas que se combateriam e rolariam sobre elas mesmas, uma gerando a outra, para supremo benefício da sobrevivência da espécie. Bela imagem, graças à qual o pensamento dualista procura uma dessas explicações simples que dão a impressão de compreender, assim como oferecem esquemas adaptáveis às mais diversas situações! Contudo, se o desejo perturba os seres humanos a ponto de eles se apressarem a recalcá-lo e de não mais o reconhecerem senão em seus sonhos ou suas religiões, é porque ele traz em si uma força m01tífera, não como um contrário, como um de seus avatares ou como uma perversão contingente, mas como sua condição. Se o erotismo da cólera, do lado feminino, é comandado pela angústia de castração, segundo a "inveja do pênis" definida por Freud, esse termo meio frio não tem como fazer esquecer a violência da operação assim programada. Como mostrou o exemplo anterior, a conclusão sexual do processo não é dada de antemão, porquanto sempre corre o risco de ficar presa em exigências contrárias, delicadas de satisfazer, e mais difíceis ainda de harmonizar em sua desarmonia. Ainda mais que, se a "inveja do pênis" tem a vantagem de satisfazer, de quebra, a reprodução da espécie, ela conserva o inconveniente de nada estancar de uma vindita inesgotável (ou da demanda, de uma desconcertante gentileza, que é sua apresentação civilizada). Uma demanda inesgotável, ou a cólera que compõe seu duplo imediato, podem ter uma saída erótica, mas, além da dificuldade dialética que acaba de ser apontada, uma outra complicação pode inibir esse desfecho feliz. É que o falo é um símbolo, que possui outras representações além do pênis masculino, 1 e essa particularidade pode bastar para reduzir a libido a seu grau zero. É o caso do exemplo seguinte.

Desejo do pai e impasse pulsional do erotismo Complexos são os caminhos da transferência, e às ve.zes sucede a alguns analisandos virem de longe, de trem ou de avião, para iniciar ou, mais freqüentemente, prosseguir no esgarçamento de seu sintoma com um analista que, por motivos amiúde obscuros, lhes parece ser o único com quem podem fazê-lo, assim acrescentando o obstáculo da distância

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aos que são inerentes ao processo analítico. Convém, então, que haja uma adaptação a essas condições particulares do espaço e do tempo, que necessitam, por exemplo, agrupar diversas sessões num mesmo dia. O ritmo precipitado que se segue impõe uma pressão freqüentemente frutífera, como se essa condensação obrigasse a filtrar de uma só vez o depósito e o acúmulo de acontecimentos da vida cotidiana que nem sempre se tem tempo para relatar. Assim se deu com uma jovem mulher que, mal arriada sua mala e ainda ofegante, contou-me, como se se tratasse de anedotas, diversos aborrecimentos profissionais que tinham sido desagradáveis de vivenciar, descartou com um gesto da mão o relato de algumas inquietações em suas amizades, mal chegou a mencionar os problemas que encontrava na educação da filha, e passou ao relato de um sonho que, apesar de tê-la divertido um pouco, mesmo assim a deixara perplexa. "É a seguinte a história, sobre a qual não lhe escapará que se trata de um sonho transferencial, já que você, em carne e osso, perfeitamente reconhecível, é o principal protagonista. Imagine a cena, muito simples à primeira vista: estou passeando com você, com toda a tranqüilidade, e não trocamos uma só palavra. Isso contrasta com a precipitação tagarela em que me atiro quase todas as vezes que o encontro! Mas então aparece uma dessas complicações comuns nos sonhos, visível a partir do momento em que a cena é vista com um certo recuo. De fato, onde é que estamos passeando? É incrível! Avançamos a passos lentos sobre o teto de um edifício de pouca altura, inteiramente construído em vidro e aço, como são alguns prédios modernos. Na realidade, estamos andando em cima de uma vidraça transparente, sem dúvida feita de um desses materiais recentes, suficientemente sólidos para suportar o peso de dois caminhantes. Andamos tranqüilamente em cima desse teto, mais ou menos à altura de um primeiro andar. Abaixo de nós, podemos ver uma área cuja disposição é confusa. Talvez seja uma estufa, ou uma espécie de hall com poucos móveis, e por ele perambulam diversas pessoas que não identifico. Se elas levantassem a cabeça, poderiam perceber-nos tão distintamente quanto as vemos. "É aí que se produz um acontecimento incongruente, bastante surpreendente por parte de uma pessoa tão reservada como eu. Eu me agacho, com toda a naturalidade, e, como se nada houvesse, deixo sobre aquela arquitetura polida um magnífico cocô. Embora seja apenas um sonho, eu deveria me envergonhar desse mau comportamento. Mas, para dizer a verdade, tornar a pensar nele mais me faz rir, sem dúvida porque vejo nisso uma das atitudes provocadoras que sempre me proibi.

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Seja como for, no sonho em si, não pareço estar procurando escandalizar, e rio menos ainda na medida em que você não deixa de me repreender prontamente, talvez até com bastante maldade ... " Silêncio. Nenhuma associação. " ... Não consigo mesmo ter a menor idéia sobre esse sonho, que ainda me fez rir quando voltei a pensar nele agora há pouco ... Esse ato excrementício, realmente enojante, sem dúvida está me tirando toda a fala ... Na sua frente, ainda por cima ... "Enfim, não me ocorre nada. Aquela arquitetura não me evoca nada. Suponho que essa defecação deva representar alguma coisa relacionada com os moradores da casa, que, levantando a cabeça, poderiam ter olhado por baixo da minha saia com a maior facilidade. Qual não teria sido a surpresa deles, se tivessem feito isso para se entregar a sua curiosidade maligna, ao perceberem, em vez do espetáculo prazeroso pelo qual estariam esperando, um cocô, muito vigoroso, juro! Aliás, acho que, revendo a cena ... esse cocô estava bem orgulhosamente erguido ... em ereção mesmo, eu até chegaria a dizer... Continuando ... Não era compreensível que você me repreendesse? Eu parecia ter feito aquilo com toda a naturalidade, eu, normalmente tão contida, e deve ter sido mesmo um sinal de que eu queria me entregar a alguma provocação, totalmente contrária a meus hábitos. É isso ... deve ser isso ... uma explosão contra meus recalques ... um sinal de saúde, em suma, uma reação sadia, embora pouco feminina ..." Essa evocação da feminilidade, num contexto que parecia contrariá-la, levou-me a suspender a sessão nessa palavra, pensando cá comigo que a sessão seguinte traria alguns esclarecimentos suplementares sobre essa exibição particular, certamente onírica, mas, ainda assim, feita em minha companhia. Mas não foi o que se deu de imediato, porque, algumas horas depois, na sessão seguinte, foi uma questão muito diferente, ao que parece, que reteve sua atenção. Como se isso não tivesse nenhuma ligação com os pensamentos latentes do sonho, ela então evocou longamente sua vida, ou melhor, sua não-vida amorosa, retomando com minúcias um percurso já detalhado muitas vezes. Para finalmente constatar que, agora, a ausência bem instalada de qualquer cumplicidade sexual com seu marido quase não lhe criava problemas. A presença noturna dele a seu lado lhe convinha e a tranqüilizava. Permitia-lhe mergulhar calmamente no sono, e qualquer gesto suspeito por parte dele quase chegava a perturbá-la. Ela preferia que ele estivesse ali, e não ausente, pois, nos últimos meses em que tinham estado separados, recentemente, suas noites tinham sido curtas e praticamente passadas em

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claro. Essas quase-insônias, aliás, haviam-na espantado, pois fora ela que, exasperada com a presença do marido, tanto fizera que ele se havia afastado. Quando os dois se reencontraram, pouco depois, houve realmente alguns dias de erotismo tórrido, mas essa sexualidade desenfreada acalmou-se rapidamente, deixando-a numa paz repousante, muito do seu agrado. De modo que, ela mesma surpresa com essa tranqüilidade, que já durava várias semanas, perguntou-se se aquele estilo de vida ainda tinha a mínima relação com o ideal de mulher sedutora e ativa com que sempre quisera assemelhar-se ... Para onde tinha ido, afinal, aquele espírito eternamente irrequieto que a animava ... aquele desejo tão feminino? ... Bis repeti ta ... Interrompi a sessão nesse ponto, sem dúvida notando, sem maior reflexão prévia, que essa ostentada falta de desejo era homogênea ao comentário feito algumas horas antes. Não havia ela considerado seu ato de defecação muito pouco feminino? Era lícito conjecturar, de fato, que a repetição, uma vez que concernia a um motivo tão importante quanto a identidade sexuada, realmente devia encerrar alguma causa comum, que não tardaria a se expressar. Permitiria a terceira e última sessão do dia esclarecer essa causa, ou pelo menos situar o termo faltante da quarta proporcional que se podia escrever mentalmente a partir de sua fala? ausência de feminilidade

ausência de desejo sexual

defecação

X(?)

Dessa vez, longe de passar para outro assunto, a jovem continuou a se interrogar sobre sua atual ausência de desejo sexual. Na verdade, acreditava Ler notado uma particularidade que distinguia o período atual de tudo o que ela havia conhecido no passado. Anteriormente e por períodos, já lhe acontecera muitas vezes achar o marido pouco atraente. a ponto de se perguntar por que continuava a coabitar com um tipo daqueles. Mas esse desinteresse concernia apenas ao marido, e ela continuava muito atenta a outros homens, e em geral gentilmente sedutora com eles, desde que isso não tivesse nenhuma conseqüência. Mas, desta vez, nada. A totalidade dos homens, próximos ou distantes, na rua, no trabalho e nas telas onde brilham as estrelas aduladas, deixava-a numa profunda indiferença. Mais do que isso, ela se espantava com os esforços feitos por alguns deles para lhe dirigir cumprimentos mais ou menos habilmente formulados.

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Que acontecimento, portanto, poderia tê-la mergulhado em tamanho torpor, ela, ainda tão jovem, e tão atraente, no dizer de alguns? No passado, ela já havia reparado em episódios como esses, se bem que mais breves, durante os quais, tomada de apatia, a maquiagem, as jóias e as roupas que caíam bem eram postas de lado por alguns dias ... Como lhe parecesse importante compreender o que lhe acontecia nessas ocasiões, ela procurou então dar-me um exemplo dessas quedas bruscas do desejo ... e voltou-lhe a lembrança muito distante de um encontro com um rapaz muito a seu gosto, distinto, bem-feito de corpo e meio desleixado, como era do seu agrado. Ela me descreveu a cena, bastante evocadora dos amores adolescentes: os jovens haviam trocado olhares e rondado um ao outro por muito tempo. Ocasionalmente, haviam trocado algumas palavras carregadas de subentendidos e, após longos meses de mortificação, finalmente haviam-se encontrado num restaurante, uma noite, num clima eletrizante de paixão já quase compartilhada. Os olhos faiscavam, os dedos se roçaram e, com a ajuda do vinho, as vozes tomaram-se mais roucas. Ao final do jantar, na hora mais propícia, o rapaz desapareceu por um instante, pretextando polidamente que precisava lavar as mãos. Essa ausência durou apenas um momento, mas estava quebrado o encanto. O entusiasmo da entrada transmudou-se numa profunda depressão na hora da sobremesa. Como era possível que uma espera tão prolongada, uma cumplicidade tão evidente na sedução mútua, se houvesse pulverizado assim, desaparecendo num piscar de olhos? No entanto, mal formulou essa questão, ela logo se lembrou da primeira sessão do dia, que havia deixado de lado. Foi nesse momento que, num súbito lampejo de compreensão, as três sessões mostraram a lógica de suas associações, luminosa em seu só-depois. Sem dúvida, não se lhe haviam evidenciado de imediato todos os detalhes do que ela chamara modestamente de provocação, embora estivesse claramente situada em relação à questão de sua feminilidade. Não fora o orgulhoso cocô, sentinela eréctil colocada nos postos avançados de uma identificação masculina, impudentemente exposto à vista de todos os que se atrevessem a lançar um olhar furtivo para sua feminilidade? E, se era verdade que não parecera existir nenhum vínculo aparente entre a primeira e a segunda sessão, essa relação evidenciou-se, todavia, por ocasião da terceira. De fato, sua ausência de desejo feminino, mencionada na segunda sessão, certamente estava ligada a um momento de identificação masculina, já que, na terceira sessão, ela sublinhou em que momento seu desejo havia declinado:

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quando o amante em potencial saíra para defecar. Podia-se imaginar que isso havia ocorrido porque os excrementos a enojavam, mas não era possível conservar essa hipótese, já que a primeira sessão mostrara que o cocô tinha, para ela, um valor fálico. Sua repugnância pelo homem que ela desejara momentos antes tinha surgido quando, apesar de sua discrição, ele havia mostrado sua relação com a merda e, ao mesmo tempo, dado a entender que, se alguém possuía o falo, era ele. O conjunto de deduções que acaba de ser mencionado não foi inteiramente efetuado pela analisanda, de modo que poderíamos alimentar dúvidas quanto a sua validade. Entretanto, uma última série de associações, in extremis, veio confirmá-lo. Agora, disse ela, estava compreendendo melhor seu sonho e sua baixa de libido atual... E logo emendou numa lembrança de sua primeira infância. Tratava-se do instante inesquecível em que, pela primeira vez, ela vira o pai suficientemente despido para perceber, ainda que obscuramente, as particularidades de sua anatomia sexual. Essa descoberta lhe provocara uma. profunda comoção, da qual ela já não sabia dizer se, na época, a curiosidade havia suplantado o pavor. A cena de que se lembrou dizia respeito a uma tarde de férias em sua infância. Tomada de uma necessidade urgente e levada por seu ímpeto de garotinha apressada, ela havia aberto num rompante a porta do banheiro, desastradamente deixada destrancada por seu pai, que, dentro do reservado, com as calças arriadas sobre os sapatos, fazia força para defecar. Espetáculo realmente inesquecível, em que a potência paterna e a do cheiro de fezes tinham sido bruscamente reunidas. Essa lembrança, marcada pela imponência e por um terror sagrado, seria verídica ou reconstruída, como muitas vezes são as primeiras imagens da infância? O fato de a exibição do cocô ser em seguida considerada equivalente à do pênis não bastava para garanti-lo. Faltava ainda acrescentar-lhe a expressão do desejo, que dispunha numa mesma série um pai excrementício e a inveja do pênis (e pouco importava, por conseguinte, que se tratasse de uma lembrança encobridora ou de um acontecimento efetivo). Foi essa expressão que apareceu na lembrança do restaurante. Quando, muito mais tarde, um homem ficara impregnado do odor do excremento, ele a havia enojado, menos pela sujeira da coisa do que por lhe haver recordado a castração e a injustiça de um privilégio fálico, ligado à imagem de um pai tão amado quanto inacessível. No caso que acaba de ser exposto, a inibição do desejo procedeu da luta pelo falo. Acaso não desejar o pênis não significa que já se o

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possui? A inibição do desejo, nessas circunstâncias, procede diretamente da angústia de castração. Ele só deixa de ser inibido em função da posição ocupada por seu agente, isto é, um pai. Essa posição, como já mostramos várias vezes, pode ser dupla, conforme o pai porte a máscara do violador ou esteja morto e castrado. É somente na medida em que é possível fazer o pai passar de um a outro desses estados, isto é, graças a um assassinato simbólico, que o desejo tem uma chance de se realizar com um homem. Nesse sentido, portanto, a agressão e o assassinato fantasístico estão a serviço do desejo Uá que reduzem um pai à condição de homem). E, por conseguinte, um homem amorosamente agredido cometeria um erro ao se queixar disso. A dupla face do homem, sua duplicidade, clássica em todos os romances água-comaçúcar ou noir, conforme uma face do enredo seja mais privilegiada do que a outra, aparece, por exemplo, no pequeno fragmento que se segue.

A duplicidade paterna e sua "solução" exogâmica "Eu gostaria de fazê-lo compreender em que pé estou com meu marido. Você sabe que, segundo a lenda, um beijo pode transformar um sapo num príncipe. Essa é realmente uma bonita história, emocionante e muito apropriada para dar esperanças à classe feminina, que, nos dias atuais, tem tanta dificuldade de encontrar homens de verdade, na falta de. príncipes. Também ouvi essa história encantadora quando era pequena, e devo ter-lhe dado algum crédito, porque, retrospectivamente, parece-me que andei beijando uma porção de sapos, como se eles fossem se transformar em príncipes - o que não aconteceu, infelizmente. Assim, contei esse belo conto a minha filha ainda ontem à noite, e ela parece ter ficado perdida em devaneios, a menos que seu silêncio tenha sido um sinal de ceticismo. As crianças de hoje já não têm nossa maravilhosa credulidade. Para convencê-la da força do sonho e humanizar a história, por pouco não lhe falei de seu pai, mas me contive a tempo, porque, com ele, deu-se justamente o contrário. Nele eu tinha visto o príncipe encantado, mas temo que meus beijos o tenham transformado num sapo, quando penso no olhar de batráquio que ele lança à televisão, à noite, afundado em sua poltrona." Sem dúvida, uma descrição tão rude assim só faz evocar, muito grosseiramente, a dupla face atribuída por uma mulher ao homem a

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quem está presa. Se há que descobrir a razão dessa duplicidade, não convirá atribuí-la, mais uma vez, à duplicidade da função paterna? A duplicidade paterna, como foi dito, responde por toda a complexidade da sexualidade feminina. Como primeiro é preciso ressuscitar, e depois "matar fantasisticamente" uma figura paterna, daí resulta, em relação a esta última, uma culpa tão violenta quanto inconsciente. "Matar fantasisticamente" raramente implica representações agressivas, que são encenações pouco adequadas à inocência feminina. Em contrapartida, é freqüente a fantasia eletiva do gozo feminino consistir em ser surrada e humilhada - uma encenação que aponta para a confissão da culpa pela fantasia em questão. Ademais, são muitas as maneiras de praticar um assassinato, sobretudo simbólico: não basta, para isso, contrariar o desejo do pai? É o que acontece quando uma moça se casa com um homem que discorda de seu pai numa questão de importância para este, como, por exemplo, a religião, a raça, as opções políticas etc. Num primeiro momento, o objetivo da fantasia é atingido por intermédio disso, embora haja o risco de resultar daí, por parte da moça, uma agressão contra o cônjuge, que poderá ser justificadamente tomado por responsável pelo rompimento exogâmico. De fato, é graças a ele, mas é também por sua falha, que a sedução paterna fracassa. E como reparar essa falha, uma vez cometida, senão graças a uma identificação com o desejo do pai? O ato agressivo de uma mulher contra seu companheiro pode não ter outro séntido senão o de atualizar esse desejo. 2 É o que acontece no exemplo seguinte. "Apesar da situação dramática que estamos atravessando, que exigiria que nos explicássemos no menor prazo possível, meu marido deu um jeito de acordar afônico e, a pretexto de uma laringite, quer adiar qualquer decisão. Com certeza, o coitado deve ter ficado abalado ao saber que agora tenho um amante, mas, afinal, ele podia suspeitar disso há várias semanas. Por acaso essa não era uma saída que estava se tornando inevitável, já que ele tinha me deixado de lado há vários anos, e nunca me escondeu nada dos casos que teve com outras mulheres, casos dos quais um, pelo menos, não teve nada de flerte passageiro? "Quando torno a pensar nesses anos de casamento, eu me pergunto como pude suportar. Era uma outra época, outras maneiras de ver, e nós nos casamos, é verdade, com um certo consenso a respeito da liberdade de cada um. Mas, se tem que haver 'amor livre', o que, pensando bem, me parece constrangedor, não é legítimo que essa disposição seja recíproca? Portanto, não me sinto triste por ele ficar a par do que está acontecendo comigo, e já que, afinal, não sou mesmo

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de temperamento dado a dividir as coisas, e como o amor finalmente chegou para mim, estou disposta a partir sem evasivas para a separação, com todas as formalidades de direito ... De qualquer maneira, esse casamento, apesar dos ares de leveza que quis se dar, sempre foi muito pesado, acompanhado por uma ameaça cujos meandros e detalhes nunca me ficaram muito claros. Sem dúvida, não é o que meu pai teria desejado para mim, porque, se ele nunca teve nada de religioso ortodoxo, se nunca me fez o menor comentário a esse respeito, é incontestável que teria preferido que eu perpetuasse a tradição e me casasse com um judeu, e não com um livre-pensador, incapaz de honrar como convém a mulher que ele escolheu sem nenhuma coerção ... " Assim foi resumida, em algumas frases, a última reviravolta da vida amorosa dessa analisanda. Desde o começo da análise, ela não parara de se confrontar com a atualidade conflitiva de seu casamento, numa trajetória cujos múltiplos episódios haviam levado a esse, que parecia fadado a ser o último que o casal enfrentaria junto. Do sintoma vocal do marido, eu nada podia dizer, não tendo ouvido nada. Mas também não podia contradizer sua mulher quando ela via nessa súbita afonia, além da reação a uma notícia desagradável que lhe teria tirado a fala, o reconhecimento da responsabilidade dele pela situação atual. Sua culpa o impedia de decidir o que quer que fosse e o deixava sem voz, entregando ao tempo e ao destino a tarefa de aliviar uma dor para a qual não podia propor nenhum remédio, desejoso como parecia estar de continuar a tirar vantagem de tudo. Revigorada por um novo amor, após tantos anos de desavenças e tantos meses de abatimento profundo, essa analisanda parecia segura, portanto, do terreno em que doravante estava pisando, finalmente em terra firme, depois de haver chafurdado por tanto tempo naquele lodaçal. Assim, havendo determinado as coordenadas da situação e ajustado suas decisões, ela não parecia ter grande coisa a acrescentar nessa sessão, chegada a hora em que era preciso extirpar o mal e passar aos atos. Contudo, depois de cair em um silêncio pesado sobre a afirmada culpa de seu companheiro, ocorreu-lhe uma lembrança infantil e ela quis dizer uma palavra sobre isso. Não sabia por quê, mas tinha-se lembrado de uma peça teatral que seus pais a haviam levado para assistir quando ela devia ter uns dez anos, um espetáculo que lhe causara enorme impressão. Talvez a tivesse revisto em outras ocasiões na infância ... é, com certeza era isso. Como quer que fosse, estava certa de que tomara a assistir a uma de suas representações depois da adolescência. Além disso, também

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havia lido várias vezes esse clássico da literatura ao longo de seus estudos. No entanto, até hoje era incapaz de se lembrar das peripécias e do desfecho, embora ele fosse simples e essencial para a compreensão da peça. Havia uma dívida a ser paga, disso ela não tinha dúvida, mas qual, e quem devia pagá-Ia, mistério! E quanto mais refletia sobre isso, mais ela era incapaz de reconstituir de que maneira e com quem tinham sido acertadas as contas que fechavam o enredo. Como se tratasse de uma lembrança referente à peça de Shakespeare intitulada O mercador de Veneza, rememorada no momento crucial em que acabara de entrar em pauta o acerto de algumas dívidas com um homem que, por sua extraterritorialidade religiosa, fora implicitamente desposado contra a opinião paterna, perguntei-lhe de imediato se ela não via uma analogia entre sua situação atual e sua lembrança infantil, na qual ela acabara de pensar tão espontaneamente. E, embora de fato lhe parecesse incontestável que havia uma analogia, na medida em que aquela lembrança não podia ter sido fortuita, ainda assim ela era incapaz de dizer em que consistia. Se a questão era formular corretamente o problema, somente uma equação lhe parecia certa: a que havia entre sua própria posição e a do usurário Shylock, que, na hora marcada disso. ela se lembrava -, vinha cobrar o pagamento de uma libra de carne, como consignado numa nota. Ora, na trama teatral, entre o pagamento da dívida e a prova por que era preciso passar para ser digno do amor de uma mulher, se havia um personagem que, aos olhos do público, podia parecer culpado, era certamente o usurário. E era impressionante que minha analisanda se atribuísse precisamente esse papel, no momento em que, certa de seu direito, exercia uma represália que, se não custara a vida, custara a voz a seu companheiro. Que pensar disso? Ela se declarava culpada ao se comparar ao usurário, apesar da certeza de seu direito legítimo. E não havia de fato transgredido far.t:1sisticamente o desejo do pai, descobrindo-se numa situação da qual decerto só padecera por tanto tempo proporcionalmente a seu erro? Assim, vendo-se nos traços de Shylock nesse momento, ela se identificava com o desejo que atribuía a esse pai, no exercício de uma vingança que, apesar dos justos motivos, não deixava de ser injusta ... É desnecessário dizer que a analisanda não enunciou nenhuma dessas considerações, num momento em que ainda era incapaz de se lembrar do enredo do Mercador de Veneza e de seu desfecho. Depois de se atribuir o papel do mercador veneziano, ela foi tomada de intensa emoção durante vários minutos. E como poderia ser diferente, se,

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malgrado suas justificativas tão bem fundadas, ela estava encontrando aquilo que realizava do desejo do pai? Quando recobrou um pouco a calma e chegou o momento de interromper a sessão, acompanhei-a até a porta, mas não a abri de imediato, em vista de um esquecimento que era incomum por parte dela. Esperando até o último minuto, finalmente lhe assinalei que ela estava esquecendo de me pagar. Ela procurou prontamente o dinheiro, na bolsa e nos bolsos, não sem uma certa confusão, e enfim percebeu que o havia esquecido. Prometendo que me pagaria na sessão seguinte, e novamente se preparando para se despedir, ela esqueceu, dessa vez, outra de nossas convenções, segundo a qual deveria deixar-me um cheque, se não pudesse me pagar em espécie. Se mais lhe valeu fazer isso, não foi porque um cheque consignasse o montante de uma dívida menos custosa do que uma libra de carne, mas porque era preciso sublinhar a culpa coexistente com seu evidente direito legítimo. Afora o movimento transferencial que esse momento denotou, porventura não se evidenciou aí com mais clareza, em circunstâncias que aliás a tornavam lícita, uma agressividade procedente de uma identificação com o desejo do pai? Nada parece menos erótico do que esse epílogo. Entretanto, não vem ele revelar, somente no fim do percurso, qual foi o móbil oculto do erotismo de um casal? Aí vemos desfazer-se um laço cujo motivo doentio é mostrado pelo só-depois. Ao menos nesse exemplo, e em muitos outros, sem dúvida alguma, fica claro que a insatisfação que tantas vezes rege a vida amorosa não encontra sua origem numa misteriosa infinitude do desejo. Poderíamos pensar que o ser humano busca através do amor o sinal de uma qualidade espiritual, ou uma certa característica estética que lhe conviria, e à qual a simples atração sexual não lhe permitiria aceder. Nesse caso, a cólera seria o sinal desse engano e nada teria de erótico. Entretanto, longe de buscar uma certa qualidade, é em apreender um corpo que o amor se empenha, um corpo que traga a marca de uma outra presença, a qual, de certo modo, é preciso desmascarar para poder abordar. O amor se excita na queda dessa duplicidade, nesse entre-dois em que sua violência se dirige a uma figura para melhor poder apossar-se de outra, como se duas pessoas se superpusessem numa só e fosse preciso afastar vigorosamente a primeira para descobrir a segunda (do mesmo modo que dois enredos enlaçam-se num só no Mercador de Veneza). Quão mais compreensível afigura-se então o gracejo corriqueiro segundo o qual um amante deve ter sempre alguém na regra-três, não por uma precaução avarenta, mas porque abandonar um deles, ao menos

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por algum tempo, só torna mais delicioso o uso do segundo. E não é para satisfação geral que, graças à montagem histérica, uma mulher nunca aprecia tanto um pretendente como quando seu rival é afastado? Por onde quer que a abordemos, falta estabilidade à montagem erótica. Seu móbil, para dizer a verdade, afigura-se demoníaco, e nunca parece estabilizar-se tão bem como com o socorro da fé, seja ela leiga ou consagrada. A religião, é verdade, tentou instaurar uma certa moral no jogo dessa duplicidade fatigante, ao conferir ao Espírito Santo o lugar do terceiro que reivindica com tanta constância o pareamento humano. Assim, a alquimia dos sagrados sacramentos do matrimônio transmuda a comédia popular em comunhão espiritual. Mas, infelizmente, como não é uma qualidade da alma que o apetite libidinal persegue num corpo, a religião passa por alguns dissabores nessa matéria, malgrado as decisões dos Padres da Igreja sobre a Encarnação e a transubstanciação. Falta ao espírito terceiro, por mais trinitário e colérico que se possa inventá-lo (deus do mal, na realidade), apesar de seu espetáculo, um pouco de substância. E o roteiro acaba deixando a desejar, em benefício do pecado e de sua potencial redenção. Conforme uma encenação implícita ou explícita, o parceiro viril é apenas o lugar-tenente de uma potência fálica que o ultrapassa. Todo homem sofre uma divisão ao deparar com o erotismo feminino divisão excitante e mais ou menos violentamente realizada segundo modalidades variadas, que vão desde os métodos suaves propostos pela religião até os jogos mais brutais da rivalização dos homens entre si, onde, entredilacerando-se, eles só fazem dividir-se melhor.

O sintoma, erótico apesar do sofrimento Que acontece quando, apesar de sua boa vontade, uma mulher não tem perto de si o amante real ou fantasístico que desperta em seu marido o demônio carnal? Ou então, para não insistir numa proposição tão chocante quanto imoral, quando ela não consegue fazer reluzir diante de seu legítimo esposo um sinal paterno, extraído, se necessário, da sacristia ou das inesgotáveis reservas espirituais da Sorbonne? Ou enfim, que acontece quando sua fé é tão escassa que lhe proíbe os recursos místicos, no entanto imensos, que o catolicismo tão generosamente concedeu às mulheres? Nessas condições, não é certo que o corpo possa manter sua consistência, desertado que terá sido pelo espírito trinitário, Alma mas Carne. Haverá ainda corpo quando ele

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não é desejado? E como lhe seria possível sê-lo sem aquilo que ele não é, aquilo que só o habita passageiramente, segundo uma graça contingente que às vezes lhe é soberanamente recusada? Não é quando falta o elemento terceiro, que permite o jogo do erotismo, que o corpo da mulher une-se a essa própria ausência, na paralisia, na morte, na hipnose, na tetania, ou, muito mais comumente, no sono? Assim, sucede . ao desejo de dormir tornar-se opressivo, a partir do momento em que se interrompe o jogo de um erotismo que, em outros momentos, pode dispor de uma energia inesgotável. Nada pode garantir a uma mulher que ela sempre encontrará um amante que se preste à encenação necessária à consistência de seu corpo. E, quando esse parceiro existe, nada garante, tampouco, que ele esteja apto a desempenhar esse papel a todo instante e em todas as ocasiões. Um homem, por exemplo, nem sempre se dispõe a se deixar colocar em rivalidade - quando são essas as modalidades eróticas de um determinado casal. Assim, sucede faltar-lhe tudo o que permitiria encarnar o Ausente paterno, faltarem-lhe os motivos de cólera que lhe são tão propícios, e nenhum corpo lhe permitir encarnar-se. É nesses momentos que uma mulher fica como que exposta à vacuidade de um desejo sem consistência, e que o pai carente de corpo pode cair na armadilha do sintoma. O sofrimento do sintoma, nesse aspecto, constitui uma declaração de amor puro ao Ausente. A cólera, que já não encontra a eleição do amante, explode no próprio corpo. E será que o sofrimento assim provocado não possui um valor erótico igual ao que uma discussão teria acarretado? Para muitos homens, como já vimos, a mulher sofredora é excitante. Não é que suas dores apelem para o gesto protetor do macho, mas é que este fareja no rastro do sofrimento as pegadas do Rival que sempre o desafiou. Que o sintoma é sexual, Freud o descobriu. Mas essa descoberta é freqüentemente compreendida como se esse sintoma constituísse uma conseqüência inoportuna e como que passiva de um recalcamento da sexualidade. Muito pelo contrário, o sintoma participa ativamente da vida erótica, estigmatizando tão bem o corpo que o espírito de Eros torna a vir habitá-lo. Há uma visitação do corpo por Eros, que lhe traz a guerra, no duplo sentido do excitante sofrimento que provoca e da demonstração da impotência do homem para lhe fornecer o amor que lhe é pedido. O que é excitante - o dedo do rival posto na carne dá-se como a própria interdição. Não pode o sintoma servir de pretexto para rejeitar o ato sexual? Nisso, aliás, sua interdição curva-se aos arcanos comuns da sedução, que nunca é tão viva como quando o ob-

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jeto do desejo se furta. O sintoma seduz: certo, ele demonstra a impotência viril, mas é também o apelo a um príncipe encantado que saiba curá-lo! A eclosão de um sintoma orgânico no exato momento da sedução é um lugar-comum da vida amorosa. Sucede às vezes aos amantes, ainda no deslumbramento da descoberta, verem-se obrigados a interromper seu ímpeto porque um sintoma interrompe seus jogos amorosos. Uma enxaqueca, por exemplo, ou uma acidez no estômago, quando não uma cãibra muscular que afeta um órgão útil a esses exercícios, vem prejudicá-los no momento mais apaixonado. Mais sutil ainda, embora igualmente corriqueiro, é o sintoma que se declara, não por ocasião dos riscos da vida amorosa, mas em acontecimentos da vida cotidiana. Para isso, basta que um homem, comum sob outros aspectos, evoque, por um de seus traços, um personagem paterno com quem falte acertar algumas contas. Embora apareça um único traço característico, o sintoma eclode, como mostra o exemplo seguinte. Depois de dirigir por vários anos uma moto de alta cilindrada, com o mesmo brilhantismo com que conduzia seus estudos, ao descobrir as virtudes da livre iniciativa e considerar atraente a posição de business woman, a jovem em questão havia decidido criar uma empresa de marketing, destinada, em seu projeto, a logo adquirir dimensões internacionais. Paris, Roma, Nova York e Tóquio são etapas inevitáveis para quem quer se apresentar decentemente em Moscou, na conjuntura atual. Traçaram-se planos, mantiveram-se contatos com os testas-deferro necessários à abertura das prestigiosas sucursais mencionadas, e eles opinaram com entusiasmo, encantados de antemão com o doce nome de Paris. Infelizmente, faltava um certo numerário, e os banqueiros exigiram garantias que os diplomas e o entusiasmo da juventude não lhes forneciam. Fez-se uma sondagem do círculo de amizades, da família ascendente e descendente, dos parentes colaterais, dos amantes e dos rivais. Por fim, a empresa foi lançada em sociedade com um cavalheiro idôneo, titulado como manda o figurino, não demasiadamente rico, mas já suficientemente estabelecido para obter a confiança dos homens do dinheiro. O negócio deu frutos rapidamente. O minúsculo contrato firmado em Tóquio silenciou as reticências de Roma, que assim finalmente cativou Paris, e choveram dividendos. O cavalheiro ficou pasmo, e seu espanto aumentou no mesmo ritmo da curva ascendente dos contratos, que ele constatava a cada uma de suas visitas mensais ao

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pequeno escritório que havia alugado por precaução. De modo que o comparsa logo se viu aturdido com um sucesso com que absolutamente não havia contado, do mesmo modo que não se sentia disposto a correr os riscos que sua temerária associada propunha-se a enfrentar. Apostando todos os lucros em cada nova investida, a jovem empreendedora demonstrava um ardor juvenil que não convinha muito ao estômago do sócio e, avaliando a situação, ele propôs vender-lhe sua parte no menor prazo possível, não sem tirar disso um lucro razoável. O negócio foi fechado sem problemas e foi com alegria que a heroína se preparou para assinar o contrato que a transformaria, tão jovem, na intrépida diretora de uma empresa cheia de perspectivas de futuro. O dia da assinatura do ato de cessão entre as partes aproximou-se tranqüilamente, e cada um dos parceiros se preparou para comparecer ao tabelião. Chegou a véspera do dia D e a moça sentiu violentas dores gástricas, que a obrigaram a ficar de cama e, pela primeira vez em muito tempo, interromper sua atividade incessante. E foi com dificuldade, no dia seguinte, que ela conseguiu se arrastar até o cartório, assinando com esforço o documento que constituía a prova tangível de seu sucesso, e mal tocando no champanhe que ela mesma se incumbira de escolher. Indo imediatamente se deitar, apesar das solicitações dos amigos que a convidavam a comemorar o acontecimento, ela acordou no meio da noite, adornada por uma bizarra dilatação abdominal. Foi essa rotundidade que ocasionou suas interrogações na sessão de análise subseqüente a esses acontecimentos. Parêntese: por que uma pessoa tão brilhante julgara conveniente cumular-se das coerções e do custo de uma psicanálise? Ora, para terum sucesso ainda mais brilhante, é claro! A psicanálise não representa um atraente "algo mais" que toda pessoa competitiva deve ter em sua bagagem? Além disso, sob muitos aspectos, o sucesso constitui um sintoma tão suspeito quanto os outros; aliás, porventura não fora por prever que não conseguiria fazer outra coisa senão ter sucesso que ela havia iniciado uma análise, desde a idade em que, com desprezo, havia abandonado as baixas cilindradas para dedicar sua atenção aos motores de alta potência? Pois ali estava o sucesso, o qual, sem maiores precauções, decididamente a havia apanhado pelo estômago.• Depois de me narrar os

• Há nesse ponto uma alusão implícita à expressão manquer d' estomac, fraquejar, dar mostras de fraqueza. (N.T.)

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acontecimentos, ela chegou a seu despertar noturno, à insônia que se seguira e, depois, ao dia e meio subseqüentes, em que ela havia cuidado mais ou menos galhardamente de suas ocupações, mas ainda igualmente arredondada. Animando-se aos poucos no divã, ela me descreveu tão bem a rotundidade, juntando os gestos à fala, que sua própria descrição, acompanhada por um amplo gesto da mão, em pouco já não lhe deixou a menor dúvida: era de uma gravidez nervosa que ela estava sofrendo. Um silêncio embaraçado acompanhou essa constatação, pois logo se evidenciou que um único acontecimento havia regido a insuflação do espírito procriador: a assinatura da escritura. Então, estaria ela grávida por sua própria obra? Era uma hipótese muito improvável, já que, até esse dia, ela nunca deixara de trabalhar, sem jamais ter sido inseminada daquela maneira. Convinha tomar a decisão de considerar, antes, que sua separação de um homem, que no entanto não era nada para ela, tinha levado a essa conseqüência. E, se cabia levar em conta esse fato, como é que um divórcio podia ter tido um efeito tão paradoxal? Era uma porção de perguntas, que finalmente exigiram um pouco de atenção. Teria o sócio tão inconsistente tido mais peso do que ela havia suposto? O fato de ele ter sido uma pessoa tão apagada, ao contrário, não ressaltava duas de suas qualidades? Certo, olhando mais de perto, o parceiro não fora tão anódino assim: conviria considerá-lo como um simples saco de dinheiro? Mas, nesse caso, seu único traço teria sido o da potência, símbolo geralmente associado ao dinheiro. Será que sua qualidade primordial estava em ser um testa-de-ferro?* Mas, também nesse caso, essa redução o colocaria numa pura função de nominação, potência que, apesar de vazia, nem por isso era menos temível. Ali estava um punhado de traços que evocavam ainda mais facilmente um pai, na medida em que, após uma reflexão mais ampla, evidenciou-se que esse personagem havia entrado em cena graças à irmã da analisanda, com quem mantinha uma relação de paternalismo exagerado, inversamente proporcional ao infortúnio sexual que conhecera com ela no passado. Em suma, era por não ter conseguido seduzir a jovem que esse qüinquagenário libidinoso se mostrara, posteriormente, protetor e generoso. Por conseguinte, sua obsequiosidade liberal havia-se estendido à intrépida amazona carente de crédito que era a irmã.

• Perde-se em português a acepção "literal" da expressão francesa, prête-nom, aquele que empresta seu nome (a um negócio, contrato etc.). (N.T.)

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Por ocasião dessa sessão, observei mais uma vez a interessante característica paterna de que, se existe uma qualidade que é conscientemente atribuída a um pai, sem hesitação, trata-se da ineficácia sexual. Não importa em que proporção ele seja amado pela filha, supõe-se que esse amor não comporte nenhuma conseqüência sexual confessa. O pai constituiria, assim, uma exceção no mundo dos homens, todos conhecidos por suas intenções libidinosas, que, apesar de freqüentemente sub-reptícias, não deixam de ser sempre certeiras. No entanto, o papel inconsciente dessa exceção afigurava-se menos claro à experiência, pelo menos para essa analisanda. Pouco importava, afinal de contas, que o sócio se houvesse mantido como um personagem com quem ela não tivera nenhuma outra relação senão a profissional; seu acesso ao Tesouro e suas funções, bem como seu próprio título de sócio, faziam dele um personagem paterno, ainda mais eficaz por não ter havido nenhuma outra consideração que se interpusesse para confundir as coisas. Esse pai sem valor, que passava despercebido, só se mostrara eficaz no momento em que resolvera desistir da empreitada. Sem dúvida, era previsível que ele se mostrasse incapaz, e essa saída era esperada; mas, justamente, bastara-lhe, escolhendo bem as palavras, declarar-se inapto, reconhecer que o ritmo dos negócios estava acima de suas possibilidades, e que suas pernas fracas não podiam manter aquele ritmo sem provocar acidez estomacal, para que o vento de sua ausência inflasse o abdômen de sua suposta companheira. De fato, é pelo fato de o "pai" se afastar, tomar a distância espiritual que convém à força do Nome, que se desencadeia a gravidez ideativa. Não permite esse incidente compreender uma das significações mais importantes do Penisneid freudiano, aquela que diz que a inveja do pênis equivale ao desejo do filho? A inveja do pênis e do filho decorrente dele nunca se manifesta tão bem quanto após a recusa por princípio do pênis paterno. Do mesmo modo, toda vez que um pai se apaga, se ausenta ou morre - forma de recusa definitiva-, o desejo de um filho pode nascer como conseqüência disso. Esse insubmersível clássico freudiano esquematiza às mil maravilhas as premissas de um grande número de gestações. Há que haver a intervenção de um recuo prévio do "pai" para que, em seguida, um filho seja esperado do homem: a generalidade dessa regra evidencia-se em toda a sua extensão ao concebermos que não é necessário que se trate do pai efetivo para que o recuo frutifique. Um pai factício também resolve, já que, afinal, a facticidade é uma das principais características

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dessa operação. (E, como formigam os semelhantes ou os comparsas potenciais do pai, aglutinados como estão em torno de todos os postos de comando da sociedade humana, qualquer amadora terá apenas o trabalho de escolher.) O próprio marido pode desempenhar esse papel, do qual não se privará se lhe for dada a oportunidade, sobressaindo quase que de imediato no papel de tirano doméstico, por menos que isso lhe seja gentilmente solicitado. Nessas ocasiões, uma vez adornado o marido com um traço paterno, restará ainda fazê-lo passar pela prova de uma separação mais ou menos simbólica, mais ou menos arriscada. Não faltam exemplos de mulheres que só conhecem a graça da maternidade depois que seus maridos, excessivamente paternais, são seriamente postos em perigo, seja por um acidente, seja por suas atividades. O risco de separação definitiva é fertilizador. Mais numerosas ainda são aquelas cujo ventre só pode arredondar-se depois de uma aventura extraconjugal, só encontrando fecundidade com o marido legítimo depois de havê-lo destronado brutalmente, graças a um amante ocasional. Por fim, se nunca se pode afirmar com certeza algo que repousa menos na elucidação dos significantes do que na eficácia de um dispositivo, é provável que, dentre as muitas mulheres que engravidam depois de começar uma análise, várias devam sua feliz condição à experiência transferencial. Com efeito, porventura elas não experimentam, desse modo, a privação sexual e a falta de sedução, com esse personagem meio paterno - e portanto, por definição, impotente que é o analista? Essas considerações não nos afastam muito do fio da sessão, onde as características paternas do sócio foram sublinhadas. Entre a dilatação do ventre e o encontro dessa sexta-feira passara-se uma noite, que fora pontuada por um sonho - bem simples de entender agora, aliás, já que, como muitas vezes acontece, as associações que permitiam sua análise haviam precedido seu relato. A analisanda viu-se andando pela rua, onde se apressou a entrar num automóvel. Duas outras pessoas, sem dúvida alguma homens, embora ela não pudesse identificá-los, entraram com ela no veículo. Seguiu-se então uma viagem de algum tempo, da qual ela não memorizara nada. Depois, ela se lembrou de uma nova cena: havia chegado a seu destino e o carro esvaziou seu conteúdo; a analisanda contou os passageiros que desciam: 1, 2, 3 ... 4. Tinham sido três na partida, e eis que eram quatro na chegada. No exato momento do relato que ela fazia, o pensamento do sonho se esclareceu: ela teria aproveitado essa viagem para conceber um filho.

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Sem dúvida, não poderia ter procedido sozinha a essa concepção, evidentemente!. .. Mas, com qual dos dois homens que a acompanharam nesse périplo fora consumado o ato fecundo? Ela não saberia dizer. Ao acordar, como se a encenação onírica da duplicidade paterna tivesse bastado para deslocar o sintoma, a dilatação abdominal havia praticamente desaparecido. Resta dizer que o sintoma, no vazio orgânico em que se havia apresentado, não deixara de ter transitoriamente uma função: a de afirmar que, apesar de sua prevaricação, tinha efetivamente havido um "pai". O sintoma erigira-se para glorificar a potência paterna, no próprio momento em que esta fizera um papelão, e bastara o aparecimento, no sonho, de um outro pai potencial, aliás anônimo, cuja identidade ficou por descobrir, para que o sintoma passasse a parecer inútil, relegando para o futuro a espera de um pai enfim potente. O sintoma, portanto, tivera a função meritória de reabilitar o pai. Resta ainda acrescentar que, se este se achava em tal estado sintomático, isso não se produzira sem que a analisanda contribuísse com seu sofrimento. Portanto, ela dera à luz, durante essa parturição nervosa, graças àquele a quem nunca fizera outra coisa senão rebaixar.* O sofrimento do sintoma purga a culpa por uma agressão latente, assim como mantém em seu estado de glória eficaz o mito paterno. A dor garante que um dia haverá um pai digno desse nome, neste mundo leigo em que os homens se transformaram no que são, e onde as mulheres se dão tanto trabalho - no sentido estrito do termo - para que, na indigência do patriarcado, que elas certamente quiseram, ainda reste alguma oportunidade de exercer uma violência que condicione o erotismo. Esse sentido do sintoma - como metáfora paterna - comporta numerosas conseqüências, dentre as quais a identificação com o desejo do pai não é a menor. Identificação paradoxal, já que caracteriza um sujeito que, apesar de se identificar por intermédio disso, não deixa de se afirmar como especificamente feminino. "Identificar-se" quer dizer que a dor do sintoma dá sentido ao desejo do sujeito. No caso, uma identificação paterna, já que a função do sintoma é reabilitar o pai. Trata-se, de certo modo, de uma identificação com o pai que sucede

• O autor joga aqui com as expressões mettre bas (parir, partejar, literalmente "pôr [por baixo]") e mettre à bas (desdenhar, derrubar, pôr para baixo). (N.T.)

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ao assassinato do pai. Essa maneira de mantê-lo vivo, após seu falecimento fantasístico, pode ser compreendida segundo o mecanismo geral que pretende que nos identifiquemos com o desejo do morto - uma identificação, portanto, que não implica nenhuma semelhança com os hábitos masculinos ou as características paternas. A identificação com o desejo do pai (através do sintoma) é totalmente diferente da identificação com o pai que se seguiria ao processo do luto. Ela sofre essa ambigüidade do genitivo, segundo a qual o desejo do pai tanto é aquele que é sentido em relação ao pai (como no exemplo anterior) quanto o que lhe é atribuído (no exemplo seguinte), como muitas vezes acontece no amor feminino pelas mulheres. De fato, identificar-se com o desejo do pai, em geral episodicamente, pode ter como conseqüência o traço feminino de um amor dirigido às mulheres, que decerto não merece ser chamado de homossexualismo no sentido perver'so do termo, mas que não deixa de suceder ao momento em que a eliminação fantasística do pai promove uma identificação com seu suposto desejo pelas mulheres (" Eu o mato e, para conservá-lo vivo, tal como você, amo as mulheres": é o caso das mulheres que alternam as ligações heterossexuais com as homossexuais).

O sintoma, índice da duplicidade paterna Essa moça achou que uma análise a ajudaria a se livrar do que considerava uma escravidão penosa, a das chamadas drogas" pesadas". Não teve a leviandade de atribuir esse hábito ao meio profissional que freqüentava, onde essa prática era corrente. Em seu círculo, a droga tinha a reputação de proporcionar uma certa capacidade criativa, uma potência onírica, ou, com muito mais certeza, de oferecer um meio de lutar contra a angústia e a ansiedade, num ambiente competitivo em que convinha que qualquer apresentação, mesmo corriqueira, fosse brilhante e cheia de entusiasmo. No que lhe dizia respeito, os entorpecentes que ela tomava não a ajudavam em nada no âmbito do trabalho, nem tampouco de sua vida social, na qual ela evoluía com desenvoltura e interesse. No entanto, ela precisava da droga para superar uma dificuldade cuja natureza, justamente, não conseguia precisar, e era por isso que fora me procurar, achando que, uma vez conhecido o obstáculo, encontraria outros meios de enfrentá-lo. Logo me ficou claro que ela não estava procurando num psicanalista, como muitas vezes acontece nessas circunstâncias, uma lei de mentirinha que fosse pra-

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zeroso transgredir, nos termos daquele jogo bastante perverso em que o analista logo se vê ridicularizado (o que não é tão grave, exceto pela perda de tempo). O consumo de drogas, no que a concernia, devia realmente corresponder a um sintoma, já que ela nunca as tomava para eliminar uma inibição, combater uma angústia, ou segundo os moldes do prazer perverso da transgressão de uma lei, há pouco mencionado. Já na primeira sessão se propusera uma pista: era quase sempre de comum acordo com seu companheiro, vinte anos mais velho, que ela se drogava. Desconheço o que impelira e continuava a impelir este último para essa tendência, com a qual ele parecia se satisfazer já de longa data. Esse expediente, a seu ver, parecia subsumir todos os prazeres, sem no entanto tê-lo levado à falência ou à decadência física, como às vezes acontece. O fato é que, fosse por um efeito desse hábito, fosse porque, ao contrário, a droga lhe evitava preocupações, ele parecia dar muito pouca atenção aos prazeres da carne. Assim, passava dias tranqüilos, sendo agradável e amoroso com a companheira, aparentemente sem conhecer os tormentos da libido, os sobressaltos, as reviravoltas, os rancores e as paixões que tecem o cotidiano do erotismo. Que o amor pode acomodar-se com uma ausência de vida sexual, ou até contrariar francamente o desejo em certas circunstâncias, eis aí um lugar-comum conhecido por promover a longevidade de muitos casais, cujo apego recíproco não deixa de se relacionar com a paz que eles encontram nessa guarda mútua. Daí a achar que minha analisanda havia adotado as opções do homem a quem amava, inclusive ao preço de seu erotismo, era apenas um passo, que eu me abstive de dar. Na verdade, ela realmente devia ter tido uma forte razão para se ligar a um homem que se interessava tão pouco por seus encantos femininos. Assim, longe de me apressar a atribuir nobres virtudes sacrificiais ao amor, esperei que ela falasse um pouco mais sobre o que a mantinha nesse compromisso. Não tendo segurado a mão que o amor estendia, seria preciso mostrar tanta prudência ao escutar o relato de acontecimentos de sua vida que pareciam haver constituído traumas? O condicional se impunha, porque esses acidentes eram narrados com distância, como se houvessem acontecido com uma outra pessoa, de quem ela seria muito diferente hoje em dia. Assim, dois acontecimentos foram contados sucessivamente, não sem uma relativa frieza. No fim da adolescência, e num contexto político que não lhe dizia respeito, uma bomba havia explodido a pouca distância dela. Em conseqüência desse atentado, do qual

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tinha saído ilesa, vários meses haviam transcorrido antes que ela pudesse andar normalmente na rua. Sem dúvida, isso era razão para se apavorar por muito tempo. Mas algumas questões se colocavam: por que o medo das ruas, por exemplo? Quais teriam sido, para ela, os ecos mais longínquos desses rumores de guerra? Eu ainda não tinha a mínima idéia. Por certo igualmente traumatizante - embora, mais uma vez, não fosse apresentado sob esse prisma - fora um acontecimento de sua primeira infância. Para dizer a verdade, seu relato não tinha sido muito claro, e ainda era difícil discernir o que havia de reconstrução e de acréscimo nas lembranças e nos personagens. O fato é que, numa casa de veraneio, um jardineiro se entregara a excentricidades exibiciJnistas na presença da menina. É evidente que o trauma residia menos nessa cena - as crianças inocentes vêem muitas outras - do que na falta de reação de seu pai, ao ser informado do incidente. Numa palavra, ele não tinha protegido a filha e, mais do que isso, podia passar por cúmplice daquele velho obsceno, uma vez que houvera por bem não despedi-lo. De modo que ela ligava a esse incidente seu pavor, agudo durante toda a infância, de ter que andar sozinha por jardins, parques ou espaços verdes ... Afinal, não podia ter medo de ver surgir das moitas um jardineiro estuprador, saltitando ao som do riso bonachão de seu pai? Considerando esse trauma, não teria sido muito fácil conferir à droga uma função de anestesia, perfeitamente apropriada para colocar o corpo numa posição de indiferença e frieza? A frigidez, de fato, çonstitui uma arma absoluta contra um pai a ·quem a deferência talvez impeça de resistir, mas a quem uma acolhida gélida impedirá, pelo menos, de tirar qualquer satisfação que seja de seu abuso. O jardineiro podia desdobrar-se em quantos pais quisesse, mas um gelo virginal saberia recepcioná-los em qualquer ocasião, irrealizando o desejo segundo as normas canônicas do prazer insatisfeito. Teria sido muito fácil, sem dúvida, contentar-me com essas aproximações, pois isso seria avalizar a vertente passiva do trauma - como se aquilo houvesse acontecido com uma pobre criança inocente-, ao passo que o efeito mais devastador do trauma prende-se àquilo com que ele depara do desejo do sujeito, este plenamente ativo. O detalhe dessas circunstâncias certamente tinha muita importância, mas ainda era preciso esperar pelo toque que, retwativamente, lhes daria seu lastro sintomático.

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Mal a história passada acabou de ser esquematizada em linhas gerais, apareceram em diversos sonhos soldados alemães, brutais e cruéis como o foram nos territórios ocupados. A repetição e a insistência dessas cenas oníricas deixaram-na espantada. Que aqueles militares aparecessem ocasionalmente num sonho, ela poderia compreender com facilidade, já que, além de exações fazerem parte da história comum, eles haviam marcado com um cunho indelével o povo judeu, do qual ela fazia parte. Todavia, nunca aqueles rostos de carrascos lhe haviam aparecido com tanta precisão, nem em seus sonhos nem tampouco, aliás, em seus pensamentos. Eles não tinham feito parte de sua história imediata, pois quase vinte anos separavam seu nascimento do fim da guerra, e ela achava a insistência desses sonhos quase tão estranha quanto se eles lhe houvessem retratado a destruição do Templo ou a deportação para a Babilônia. Como é que acontecimentos que haviam precedido seu nascimento em quase tantos anos quantos a analisanda tinha de vida podiam agitar suas noites, como se se tratasse de restos diurnos que ela tivesse que digerir penosamente durante o sono? As peripécias desses pesadelos lhe escapavam, no entanto, e era preciso contentar-me, nesse momento, na impossibilidade de analisá-los, com o registro de sua insistência, tão vaga quanto repetida. Como muitas vezes acontece numa análise, as preocupações e pequenos acontecimentos da vida cotidiana dão ensejo a relatos mais ou menos detalhados. Apesar de serem anódinos em si, eles não deixam de ser sintomáticos, com tamanha freqüência, que mais vale prestar-lhes atenção do que subestimá-los. Foi por ocasião dessas narrativas, de aparência muito superficial, que observei em diversas oportunidades o tom alerta que ela empregava ao descrever suas relações com suas amigas. Não era tanto o vocabulário bastante cru que ela utilizava para qualificar seus semelhantes que me surpreendia naquela boca graciosa, mas sim a descrição de suas relações de amizade. Dir-se-ia que era um soldado, falando insolentemente de suas conquistas, e não aquela jovem elegante, sempre vestida com bom gosto e na última moda. Registrei essa particularidade, a princípio sem dizer palavra, não tanto por temer ser ultrapassado pelo vocabulário e pelos hábitos de uma nova geração para a qual essa linguagem se tornou natural, mas por continuar indeciso quanto ao sentido que convinha atribuir àquele vocabulário chulo, utilizado por uma moça tão francamente heterossexual (quanto a sua escolha de objeto) quanto ferozmente monogâmica. E então, veio um dia em que a analisanda evocou uma de suas melhores amigas de infância, a quem perdera de vista fazia vários anos,

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aquela sem-vergonha, disse ela, que se casou com um homem. Por causa desse cafetão, e por um mau motivo como o amor, ela havia desdenhado, a partir de então, os ternos laços que se haviam tecido entre as duas no final da adolescência. "E ela fez questão de me dar a boa notícia! ... E não é que o cara tenha se mandado, não, de jeito nenhum, ele continua atravessado no caminho, borboleteando em volta de sua meiga presa." Mas, por ocasião de uma longa conversa telefônica, ela soubera dar um jeito e, graças a algumas manobras habilidosas, conseguira fazer a amiga se abrir. Entre confidências amargas e confissões desiludidas sobre seu quase-enclausuramento, esta lhe confessara sua tristeza e finalmente se decidira a tomar uma certa distância daquele personagem odioso, não afastando nem mesmo a hipótese de uma vida novamente solitária, que lhe permitisse freqüentar normalmente suas amigas, como nos belos tempos de outrora. Como a analisanda me confiasse mais alguns outros detalhes sobre esse acontecimento, num tom tão triunfal que parecia fazer soar a derrota de um rival, acabei por lhe assinalar essa característica, perguntando se ela não ficava impressionada com o vocabulário conquistador que empregava para descrever a situação. A questão, embora cercada de numerosas precauções oratórias, estava fadada a criar surpresa, depois espanto e, por fim, cólera: não estaria eu insinuando que ela estava sujeita a alguma anomalia quanto a seu sexo? ... em suma, será que, por acaso, eu não a estava chamando de lésbica? ... "É verdade, qual é?, é melhor falar francamente, se é isso que você tem na cabeça! Será que eu tenho, nem que seja remotamente, o jeito ou o estilo de uma invertida? ... " Na sessão seguinte, seu começo de cólera havia-se acalmado um pouco. Mas ela precisava tirar aquela história a limpo e cortar o mal pela raiz o mais cedo possível. Fazia questão de me participar que havia abordado esse problema em longas conversas telefônicas com várias de suas amigas, algumas delas muito a par das curiosidades da vida, e que chegara à conclusão de que, na realidade, a lésbica propriamente dita, lésbica para valer, não existia. Na verdade, tinha-se de considerar que aquelas que amavam mulheres sexualmente só o faziam na espera do príncipe encantado, ou só se entregavam a isso por despeito, unicamente por terem sido decepcionadas por homens brutos ou desastrados. Por conseguinte, se ela não se equivocara quanto ao sentido de minha questão, coisa de que, aliás, não conseguia ter certeza, cabia concluir que eu me havia enganado duas vezes. Primeiro, porque ela efetiva-

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mente não era lésbica, e segundo, porque as lésbicas não existiam realmente ... Feito esse enérgico esclarecimento, ela então se perguntou se poderia continuar sua análise nessas condições, falando com um inútil como eu, que provavelmente não devia gostar muito das mulheres, para fazer reflexões como aquelas ... Talvez fosse melhor ela interromper o tratamento analítico, visto que, afinal, se fazia algumas semanas que quase não se drogava mais, ela devia isso mais a sua vontade do que a sua análise, que não tivera nenhuma relação imediata com esse progresso . ... Mas, enfim, já que estava ali, naquele divã, e que eu estava escutando, parecendo ter-me dado conta de meus erros e ter-me rendido modestamente a suas razões, talvez ela aproveitasse, afinal, para me falar do sonho que tivera na noite anterior. Valia a pena, porque, pela primeira vez, ela conseguira memorizar os detalhes de um daqueles pesadelos em que apareciam os soldados alemães. Iniciou então o relato desse sonho, não sem observar que, ao contrário do desenrolar dele, que lhe parecera longo, claro e preciso, sua narração parecia bastante curta. O conteúdo era simples: dois homens, sem dúvida da Resistência, eram perseguidos por soldados alemães, numerosos e decididos. O cenário da ação parecia ser qualquer um. Isso se passava numa cidade provinciana, difícil de identificar, cidade que apresentava as características da época, com todo um labirinto de ruelas, pátios e quintais, sem contar os pórticos e as escadarias, que permitiam que a perseguição fosse cheia de imprevistos e acabasse virando a favor dos dois fugitivos, mais inteirados daquela geografia urbana e seus acidentes. A fisionomia dos heróis deixava uma impressão de familiaridade, embora sua identidade fosse difícil de precisar. Um era moço, o outro parecia nitidamente mais idoso. O mais jovem ajudava o mais velho nas passagens arriscadas, com uma devoção absolutamente filial, naquelas condições perigosas. "Aí está! É difícil eu dar maiores detalhes, mas devo dizer que estou satisfeita por ter-me sido possível, finalmente, memorizar um desses sonhos desagradáveis, que têm ainda mais jeito de pesadelos por se evaporarem quando eu acordo. Isso não me adianta muito, aparentemente, e agora compete a você me ajudar! ... Estou vendo que você não consegue, mas vou passar por cima da sua deficiência, já que você parece estar de boa vontade hoje, depois de sua mancada da última vez!. .. Quando você abre a boca, excepcionalmente, é mesmo meio barra, ora ... E aí, você não pode me dizer nada? Talvez possa pelo menos me dar alguns elementos úteis para minha cultura geral sobre

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os sonhos e a interpretação deles, não é? ... Me diga, doutor, o senhor que estudou Freud, é normal eu ter um sonho como esse, onde eu mesma não apareço em parte alguma? ... A gente não poderia perguntar, legitimamente, de que maneira eu faço parte dessa história heróica, e com certeza devo fazer, já que, afinal, fui eu que me dei ao trabalho de fabricar essa sagazinha noturna ... Como disse? ... Você está me declarando que não está muito interessado na minha cultura geral, e que não está disposto a abastecê-la! Ora, mas, decididamente, você não se acalmou nada! E eu que achava que estava arrependido! E ainda vem me dizer que, se eu quiser a resposta, é só me dar ao trabalho de examinar meu sonho com mais cuidado! Ora, lá vem você outra vez! Será que está querendo insinuar que eu estou de fato representada no sonho e que - por que não, nesse caso? - fui eu que me representei sob os traços de um dos dois resistentes?! ... Só falta você dizer que eu sou o mais novo dos dois heróis, não é? E por que parar, se está indo tão bem? ... Continue!. .. Já que é assim, diga, por exemplo, que se eu ajudo o mais velho a fugir, ele só pode ser meu pai, por que não?, tudo é possível, não é? ... Pode-se dizer qualquer coisa por conta disso, já que eu pareço estar resistindo ... Como? Agora você acrescenta que não disse nada disso, e que toda essa construção é da minha autoria?! Mas foi você que a sugeriu, não é evidente? Como poderia ser de outro modo? - se da última vez você achou que eu era lésbica, hoje não pode se impedir de me colocar no masculino! É claro que agora você está me vendo sob os traços de um combatente das trevas, apresentação, aliás, que me parece um pouco mais heróica! "Semanas atrás, quando apareceram os primeiros pesadelos em que, com toda a probabilidade, eu estava sendo ameaçada pelos nazistas, você me perguntou se eu sabia quais tinham sido as atividades do meu pai durante esse período da Ocupação, tão terrível para minha família. Eu lhe respondi que não sabia, e que ninguém do meu meio nunca tinha me falado disso na minha infância. Mas refleti sobre a sua questão, e a resposta, aliás, me parece bem simples de formular. Acho que, na época, meu pai devia ser novo demais para ter qualquer participação nos combates. Em contrapartida, hoje que estou voltando a pensar nisso, diz a lenda familiar que o pai do meu pai teria se portado muito mal durante toda a guerra. Teria abandonado a família na zona livre, a pretexto de que, sem a sua presença, a clandestinidade dos familiares seria mais fácil. E teria ido refugiar-se em Mônaco, onde dilapidaria a fortuna da família em companhia de criaturas frívolas, dessa vez pretextando que, ao fazer um espalhafato daqueles, ele se fundiria

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melhor no cenano e teria mais facilidade de passar despercebido ... Aliás, talvez não estivesse errado, porque, afinal, quase todos nós saímos vivos ... Percebo que acabei de dizer nós ... Então, será que você teve razão em dizer que eu realmente apareci nesse sonho, sob os traços do jovem maqui? " ... Agora você me pede para esclarecer que idade tinha meu pai nessa época ... bom, entre quinze e dezenove anos. Ao dizer isso, percebo que ele não era tão jovem assim, e sem dúvida estava na idade de pegar em armas, é verdade. Aliás, é mais fácil a gente pegar em armas nessa idade, quando a injustiça é gritante demais ... Mas, não tenho nenhuma vontade de me curvar às sugestões que você está me fazendo de novo, e não vou procurar saber o que aconteceu. Na realidade, não quero saber nada do que aconteceu durante aquele período pavoroso. Você tem que parar de fazer essas perguntas. Não quero saber, em absoluto, o que meu pai fez naquela época horrível..." A temporalidade do tratamento, a crueldade da história e o tato que se impunha levaram-me, de fato, a não perguntar mais. Aliás, não estava a investigação encerrada quanto ao essencial? Ela já sabia o que havia por saber: não era tanto que temesse a indignidade do pai, mas é que respondia como se estivesse certa de antemão. Assim, não queria saber nada que pudesse lançar alguma dúvida sobre suas certezas. O que ainda ignorava era a função atual exercida por essa convicção para ela. Será que a suposta indignidade do pai desempenhava algum papel em sua vida cotidiana, organizava seus dias sem que ela o soubesse? Refletindo sobre o encadeamento das últimas sessões, realmente parecia que a amnésia incidente sobre seus primeiros pesadelos havia-se desfeito, vivamente, aliás, quando eu a interrogara sobre a maneira brusca com que ela tratava suas relações femininas. Isso parecia provável, já que não fora preciso nada além dessa questão para que ela pudesse lembrar-se de um primeiro sonho em que efetivamente se identificava com um homem. A rigor, que é que se evidenciava? Que ela estava menos identificada com um homem do que com o herói que seu pai deveria ter sido, se não tivesse sido um personagem tão indigno quanto ela o supunha. Nesse caso, conviria crer que esse pai só era indigno segundo seu desejo, uma vez que, na realidade, ela não tinha nenhum esclarecimento sobre o que efetivamente havia acontecido? Abandonando qualquer idéia compassiva sobre o trágico da história, porventura não cabia deixar essa seqüência em seu devido lugar no desenrolar da totalidade da análise, não devia o demérito paterno ser relacionado com uma outra cadeia de pensamentos, a de que o pai não

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a havia protegido das exibições do jardineiro? Não querer saber nada sobre aquilo que pudesse questionar um eventual demérito paterno adquiria, assim, seu valor sexual. Desse modo, o estrago da guerra o atentado - e o lrauma sexual - o atentado ao pudor - podiam ser articulados, e, se era verdade que o vício da droga não tinha nenhuma função direta de manter a amnésia, nem por isso ele deixava de ter lugar num tipo de ligação amorosa que vinha dar-lhe seguimento. A questão que se colocava era saber se o uso de entorpecentes não correspondia ao momento em que o sintoma histérico não conseguia mais conter os efeitos do trauma e, por conseguinte, era preciso recorrer a esse expediente. Com efeito, a fixação "normal" do sintoma, tal como se produz, por exemplo, em conseqüência da fantasia de sedução, requer a existência de duas instâncias da paternidade: é preciso, de um lado, um pai potencialmente violador, e de outro, uma segunda instância paterna que permita simbolizar a primeira. Ora, no que concernia a minha analisanda, não teria havido uma grave carência dessa segunda instância, já que, em seus sonhos, ela se identificava repetidamente com o pai de que teria precisado para escapar à perseguição? Se essa hipótese se confirmasse, o consumo de drogas teria tido o sentido de uma letargização do corpo, de uma resistência passiva a qualquer sedução, por intermédio do sono dos sentidos. O entorpecente seria, nesse caso, o pai que lhe faltava, vindo no lugar do sintoma, barreira útil a seu pudor, senão a sua virgindade. Assim, ela poderia continuar como uma Bela Adormecida no bosque, passível de ser despertada por um príncipe, se a vinda dele não fosse das mais problemáticas, uma vez que todo homem possuidor dos atributos masculinos evocaria prontamente o violador. Portanto, talvez fosse porque a duplicidade paterna já não garantia a fixação do sintoma, segundo o jogo normal da sedução histérica, que essa jovem havia recuado para a linha de defesa passiva da droga, da qual parecia ser difícil prescindir, já que, de um lado, era inevitável que o pai lhe parecesse sexualmente sedutor e, de outro, ela estava convencida da indignidade que o mantinha nessa postura. Sua luta onírica contra o nazismo, portanto, corria o risco de revelar-se demorada, uma vez que ela se abstinha criteriosamente de verificar acontecimentos sobre os quais sua versão lhe permitia travar essa luta, preferindo encarnar nos sonhos a conduta que o pai deveria ter tido, se tivesse ficado à altura. Com o uniforme da Gestapo, perenizava-se apenas a imagem dos violadores, cuja série fora iniciada pelo personagem do jardineiro e acabara subsumindo o avô - este,

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famoso pelo temperamento volúvel e pelo cinismo, diante do acúmulo de lendas espalhadas a seu respeito como símbolo do homem sexualmente perigoso. Teria esse circuito infernal alguma possibilidade de ser interrompido graças à análise, ou, mais exatamente, graças ao amor transferencial? Era o que não se mostrava tão evidente. Eu ficara impressionado, logo no começo dessa análise, com um estranho acontecimento. Essa paciente, quase que imediatamente após as primeiras sessões, havia parado de se drogar regularmente. E, a despeito de todas as qualidades que posso me atribuir, era difícil creditar esse sucesso imediato à análise, que ainda não tinha analisado coisíssima alguma. Era mais razoável pensar que se tratava de um efeito da transferência, menos porque a analisanda quisesse, graças a essa sedação, reduzir as despesas de sessões que lhe custavam caro do que por sua possível suposição de que me encantaria que ela se contivesse um pouco. Portanto, ela estava procurando me agradar, nem mais nem menos do que no quadro da sedução histérica. Logo, era preciso demonstrar uma prudência calculada e empregar a vacilação, como se aquilo me deixasse basicamente indiferente (porém não demais, tampouco). Sob essa condição, haveria uma possibilidade de que se confirmasse uma simbolização, graças ao homem da transferência, famoso por sua impotência sexual ( ... mas, quem pode ter certeza?), exceção experimental que reitera na terra o milagre da desencarnação. O sintoma, portanto, poderia encontrar seu limite no quadro da transferência, embora não sem perigo, já que qualquer sucesso que pudesse seduzir-me traria o risco de anunciar, ao mesmo tempo e proporcionalmente, a iminência da recaída. Porventura essa dificuldade não foi evidente, por exemplo, na seqüência seguinte? Acabavam de se passar quinze dias de abstinência, pelos quais ela talvez esperasse algum sinal de contentamento de minha parte, mas eu me abstivera disso, agindo como se nada houvesse. Veio então uma sessão em que, depois de alguns ditos anódinos, ela me anunciou que, ao mesmo tempo, fazia quatro dias que não comia praticamente nada, estando totalmente sem apetite, ao passo que, por outro lado, sentia uma viva euforia, que estava longe de lhe ser habitual. E, como eu continuasse a me abster, fosse de felicitá-Ia por sua temperança, fosse de me inquietar com seu jejum, ela iniciou o relato de um sonho que, à primeira vista, parecia inserir-se - sem trazer grandes novidades - na série já então monótona de seus devaneios guerreiros.

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Mas, na realidade, esse sonho apresentava, pela primeira vez, duas seqüências nitidamente articuladas, que punham em cena as duas figuras paternas necessárias à fixação do sintoma. Numa primeira parte, ela se via perambulando por uma cidade na companhia... de um exibicionista! Que surpresa! Era um passeio bem estranho, porque, ao contrário de suas habituais reações de nojo ao deparar com esses personagens, desde sua infância, essa presença provocadora não a incomodava nem a angustiava. Não estava ela conversando com esse companheiro casual como se fosse um de seus familiares, e como se fosse perfeitamente natural ou anódino que, em seguida, ele desse alguns passos a seu lado na rua? Não havia nada mais simples, apesar de tudo em que ela sempre acreditara, do que andar naquela companhia! O passeio onírico desenrolava-se, mais uma vez, em meio ao cenário de cidade do interior que vinha sendo propício a suas noites desde seu ingresso na resistência, e fora com prazer que ela o havia iniciado. Mas, de repente, o cenário se modificara, ao dobrar uma esquina. Ali, os nazistas tinham erguido uma barreira; eles eram numerosos e ameaçadores, e qualquer recuo, sobretudo naquela companhia provocadora, ter-se-ia revelado mais perigoso do que seguir em frente. Somente a astúcia parecia convir para superar aquela provação. O sonho não dava detalhes sobre os subterfúgios que tiveram de ser empregados, mas todo o mérito por esses estratagemas coubera, sem dúvida alguma, à sonhadora, mais uma vez representada numa postura heróica. Ao longo de diversas manobras, o resultado fora que os soldados alemães tinham sido tapeados e, com as armas abaixadas, como se nada houvesse, tinham deixado passar os dois caminhantes, dos quais ao menos um estava circulando numa atitude pouco discreta. Esse sonho não constituía uma inovação? Em nenhum momento anterior as duas funções paternas, sexual e simbólica, tinham sido tão claramente articuladas entre si. A provocação sexual havia perdido seu valor tirânico, e fora sem confronto nem derramamento de sangue que se superara a barreira da perseguição, também ela paterna, já que quem não havia combatido tinha sido colaboracionista, e quem havia colaborado estava, na verdade, no campo do inimigo, onde a sonhadora também situou, portanto, um dos avatares paternos. Teriam o dispositivo psicanalítico e a presença do analista permitido transpor o plano de uma identificação alienante, materializada, no caso, na barreira nazista? Não foi sem uma pontinha de entusiasmo que assinalei o acontecimento que, embora unicamente psíquico, parecia-me revestir-se de uma

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importância muito maior do que duas semanas de contenção, uma contenção obtida sob o jugo fraudulento de um amor transferencial de destino essencialmente efêmero. E devo ter deixado transparecer algum contentamento em minha maneira de aprovar e de solicitar esclarecimentos suplementares sobre as diferentes seqüências do sonho. Três dias depois, fiquei sabendo que, ao sair dessa sessão, ela se precipitara para a lanchonete mais próxima ainda aberta àquela hora, e depois para uma confeitaria, terminando a noite com um consumo de drogas tão importante quanto no passado. Esse incidente, que a seqüência mostraria ter sido um fato isolado, indicou, sem dúvida alguma, que eu teria feito melhor em exibir um pouco menos de entusiasmo e um pouco mais de neutralidade. E a pulsão oral tinha sido o barômetro de minha reserva insuficiente. Não é a pulsão oral o refúgio da histérica quando o pai é demeritório, porventura não constitui o pólo matemo para onde ela regride, quer se empanturre ou se drogue? (Como todo barômetro, aliás, esse só fez dar informações já evidentes; e as apontou, além disso, numa língua regressiva que, podendo traduzir-se em múltiplos idiomas, tinha somente um valor arqueológico.) Os arroubos da pulsão oral indicaram, assim, um certo estado da transferência, aliás muito provisório, já que, uma semana depois, o que ela indicou foi a pressão reinante num outro território: de fato, fiquei sabendo, não que a analisanda houvesse perdido o apetite outra vez, mas que estava sendo movida pelo que qualificou de apetite sexual. Havia recuperado, segundo disse, seu instinto sexual, expressão que desdenhava a amnésia, já que ela declarou, ao mesmo tempo, que nunca tinha experimentado isso antes. Até onde conseguia lembrar-se, o sexo sempre a havia repugnado secretamente, e somente a afeição pelos companheiros a tinha ajudado a suportar suas investidas e seus jogos amorosos. Agora, constatava que o desejo dos homens de seu círculo a interessava e a divertia, enquanto, antes, sentira repulsa por ele, ou até vontade de vomitar, como já lhe acontecera algumas vezes. Na seqüência desse trabalho, os sonhos de guerra iriam espaçar-se e, depois, cair em desuso. Aliás, a própria análise foi interrompida por algumas semanas, por causa de uma viagem que achei, ainda sem poder confirmá-lo, que não deixava de se relacionar com os progressos da analisanda. Por motivos profissionais, segundo me disse, ela precisava ir a Israel, Gaza e, depois, ao Sinai. Não estaria indo buscar alguma conciliação secreta na terra de seus ancestrais, depois de haver aqui-

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!atado o vín.culo sintomático que a ligava a eles? Na volta, ela ainda deixou passar algum tempo antes de tornar a me procurar, como se esse intervalo devesse significar uma travessia irremediável. Várias semanas depois, todavia, um sonho de guerra tomou a se apresentar. Comportava uma característica nova, surpreendente, quando comparada à longa série das hostilidades oníricas anteriores. Com efeito, nessa nova versão, os protagonistas das operações bélicas haviam mudado de sexo. Não apenas minha analisanda aparecia nele com seus próprios traços, sem se revestir do menor aparato militar que pudesse fazê-la situar-se no campo dos homens, como também o motivo da beligerância, aliás obscuro, dizia respeito apenas às mulheres. Que nos mostrava esse sonho? Um certo combate, de móbeis imprecisos, acabara de chegar ao fim ... e a sonhadora via-se sozinha no que devia ter sido um campo de batalha. Talvez viesse a sair vitoriosa, mas ainda tinha que atravessar o campo de batalha, um vasto espaço coberto de carcaças calcinadas e cheio de engenhos explosivos. Assim, ela ia avançando com precaução por essa no man 's land, • evitando as minas sofisticadas, que pareciam uma espécie de balõezinhos. Seus inimigos nem sequer se tinham dado ao trabalho de dissimulá-las, porque essas bombas inteligentes possuíam a temível característica de detectar os pensamentos de quem se aproximava delas e, conforme o conteúdo desses pensamentos, explodir. Portanto, só havia um meio de evitar a morte, que era pensar convenientemente, pelo menos segundo a ortodoxia em vigor no país das minas. Em caso de heresia ideativa, era morte certa. Aquela era uma situação em que era preciso agir sem pensar, lançar-se adiante sem refletir! E foi o que ela fez, percorrendo sem incidentes metade do caminho que a separava de uma paz vitoriosa. Ia iniciando o resto do percurso quando, de repente, surgiu em sua mente um pensamento que, no mesmo instante, ela teve certeza de que seria imediatamente explosivo ... Ocorreu-lhe a idéia - imaginem só! - de que ela tinha alguma coisa a menos. E como, apesar de seus esforços, não conseguisse refrear esse juízo catastrófico, a deflagração simultânea de várias minas interrompeu o sonho (que, apesar de seu epílogo, ela não qualificou de pesadelo).

• "Terra de ninguém", cuja tradução literal, vale ressaltar, seria "terra de homem algum". (N.T.)

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Ao ouvir esse relato, logo pensei no atentado à bomba que, vários anos antes, acontecera em suas imediações, e que ela havia descrito como um dos traumas dignos de explicar seu sintoma, no início da análise. Era uma aproximação ainda mais interessante na medida em que o pensamento explosivo do sonho, isto é, que ela tinha alguma coisa a menos, parecia relacionar-se com a castração. Se fosse realmente isso, a causa de seu sintoma teria sido, com efeito, o trauma da castração. Mas essa intuição ainda era apenas uma hipótese, que trazia o risco de me impedir de escutar as primeiras associações que lhe ocorressem depois desse relato. Existia, disse ela, uma história muito parecida com a de seu sonho, contada por Alexandre Dumas em Vingt ans apres. Numa de suas aventuras, um dos mosqueteiros tinha que explodir uma bomba, instalada por ele no porão da casa de seus inimigos. O explosivo da época, é desnecessário dizer, não sabia detectar pensamentos, e era preciso acender artesanalmente o pavio, antes de se afastar o mais depressa possível. O mosqueteiro em questão era um homem de ação corajoso, que se distinguia por sua eficiência e possuía uma reputação perenemente glorificada nos exércitos: a de executar as ordens sem nunca pensar em nada. Assim, acendeu escrupulosamente o pavio, continuando a não pensar em nada. Mas, desastradamente, uma vez executado esse gesto irreversível, o mosqueteiro pensou, muito provavelmente pela primeira vez na vida. Cogitações mortais, uma vez que ele se esqueceu a tal ponto das circunstâncias, que a bomba explodiu antes que caísse em si. Ao escutar esta última associação, minha prevenção levou-me a considerá-Ia uma denegação bastante astuciosa dos pensamentos do sonho. Vi nela, por um lado, um esforço de negar a novidade do sexo da combatente, posto que o mosqueteiro tinha um ar bastante viril, e por outro, uma tentativa de edulcoração do pensamento conflagrador, que certamente não era a burrice com que poderíamos qualificar o mosqueteiro, mas a confissão da falta. Não tendo nenhuma razão para me contentar com minhas intuições, mesmo diante de formulações tão convincentes, pedi-lhe esclarecimentos sobre seu pensamento explosivo: que era, afinal, essa alguma coisa a menos? É evidente que eu esperava que ela evocasse, senão um termo tão técnico quanto falo, pelo menos a diferença dos sexos. Eu esperaria uma formulação mais ou menos dessa ordem, não porque o saber freudiano permitisse pressagiar isso, mas porque, impondo-se a com-

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paração desse sonho com os sonhos belicosos anteriores e havendo mudado o sexo dos guerreiros, a frase concernente à "falta" parecia beneficiar-se de um sentido unívoco. Pois bem, não foi isso que ouvi, porque, em resposta à minha questão, ela considerou que havia perdido apenas sua inconsciência. Agora, teria de conseguir viver reconhecendo realidades que, até pouco antes, tinham-lhe sido totalmente opacas. Era por isso que as minas explodiam. Sua consciência da vida fazia tudo saltar pelos ares, a começar por ela mesma, e, se ainda havia uma coisa pela qual ela podia se felicitar, era sua aptidão a ser tão estúpida quanto o mosqueteiro (antes que ele tivesse aquela idéia besta de pensar). Acaso não lhe cabia felicitar-se por sua capacidade, assim preservada, de um dia ser feliz? E que lhe importava a inépcia de sua felicidade, se ela devia evitar as conflagrações? Esse exemplo clínico tem o interesse de mostrar a continuidade que existe entre o sofrimento do sintoma e a duplicidade paterna, e teremos observado que assim são ativados os mesmos termos que, de maneira igualmente explosiva, animam o erotismo da cólera.

Apanhado sobre a evolução respectiva do erotismo feminino e do mito paterno Os exemplos que acabam de ser fornecidos têm o interesse de situar o paradoxo que a sexualidade feminina tem de enfrentar. A" castração", como realidade psíquica atualizada pelas mulheres, leva-as a considerar que "alguma coisa" lhes é devida: não apenas honrarias ou consideração, mas uma compensação que elas reivindicam com maior ou menor vindita. Como o que constitui o objeto de sua demanda é também o que a maioria dos homens está disposta a lhes dar, tudo deveria arranjar-se numa harmoniosa complementaridade. Infelizmente, não é nada disso! Pois não é qualquer homem que é digno de proporcionar a reparação de um dolo mais imaginário que anatômico. Como o homem conveniente deveria ter a fibra paterna, e como o pai é justamente aquele que é sexualmente interditado, vislumbra-se a dificuldade, ilustrada nas páginas precedentes. Para concluir este apanhado geral, cabe ainda acrescentar que a posição do erotismo feminino procede de sua relação com o patriarcado e com o mito paterno da sociedade em que ele se manifesta. E, bem

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mais que a do homem, a relação da mulher com essa imagem do pai passou por revoluções irreversíveis nos últimos dois séculos. Se houve um acontecimento de peso, cuja totalidade das conseqüências ainda é difícil de prever, trata-se do que se costuma chamar de liberação da mulher. Entretanto, essa liberação não seguiu um rumo qualquer e, se os sucessos do feminismo resultam, em parte, de uma luta de idéias, eles também procedem, numa parte não menos importante, de urna evolução dos costumes e de uma relação com a sexualidade que situa o ideal feminino de urna outra maneira (em sua relação com o mito paterno). Desde Sade, para tomarmos esse ponto de referência, que é significativo por pretender acabar de uma vez por todas com o ideal do amor cortês, e segundo um gradiente progressivo, mas rápido, o lugar atribuído à imagem da mulher modificou-se. (Tanto assim que um vendedor de queijos que queira desfazer-se de seu excesso de estoque terá um certo interesse em enaltecê-los com a ajuda de uma starlet, ao passo que uma imagem devota resolveria melhor essa questão há menos de dois séculos.) Quase a meio caminho entre a época de Sade e a nossa, a obra de Zola permite supor que uma mulher que quisesse ser livre só podia contar com seus encantos, pelo menos se não quisesse dever sua independência a ninguém em particular. O que equivale a dizer que a mulher liberada da época emergia do bordel. E que, antes de dar a um queijo um valor publicitário, a beleza foi um desses queijos. Segundo a ideologia da Revolução Francesa, somente os irmãos (e não as irmãs) eram cidadãos, e como daí resultava, inversamente, que todo cidadão era irmão, quem quer que ocupasse o poder era um usurpador em potencial. Aliás, foi para destruí-lo ativamente que se empenhou, desde essa época, essa espécie de um novo gênero, essa especialidade francesa que é o intelectual de esquerda. Zola é, incontestavelmente, um de seus mais dignos representantes. Lembramo-nos disso graças a uma de suas heroínas, cuja ascensão e queda são descritas em seu romance Naná, onde o escritor denuncia os detentores do poder a quem abomina. De um lado, o pai desmorona, e de outro, a mulher se liberta, segundo vias muito particulares. Nos dias atuais, tendo esgotado seu percurso romanesco, o termo "naná" designa, na linguagem coloquial, urna mulher jovem, e já não traz nenhum vestígio visível de seu passado de aventureira. Um século antes, na pena de Zola, e tendo saído do nada, Naná subjugava os mais

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altos dignitários 3 da sociedade. O escritor, que lhe delegou seus poderes de vingador4 e procurador, fez dela o exutório de sua ira, fustigando através dela os costumes dos poderosos do Segundo Império. Conferiu às prostitutas, sacerdotisas de um novo templo, uma função purificadora.5 Que essa mulher" com um sorriso incisivo de comedora de homens" possuísse tamanho poder, caberia atribuí-lo apenas a sua beleza, a um encanto que, fosse em que circunstância fosse e em todos os lugares, lhe valeria ser distinguida e elevada à categoria das primeiras? Nada é menos certo. Ela devia sua atração, antes, ao lugar que lhe era conferido no palco de um certo teatro. Naqueles cavaletes simbólicos concentravam-se os olhares do que a vida parisiense tinha de mais mundano, 6 fazendo daquela que neles se firmava, e somente nesse momento, o objeto de todas as cobiças, vindo a admiração de um produzir prontamente a do outro, quando não decuplicá-la. A alta roda de Paris, a aristocracia dos boêmios e dos abastados, nunca a adulava tanto quanto nos momentos em que, sem nada desconhecer de suas origens prostituídas, sabia que atirar-se a sua conquista era caminhar para a ruína. Não era assim que os panfletos dos jornalistas a descreviam? Para quem quisesse ver sua fortuna devorada, bastava freqüentá-la, e não parecia faltar apetite à comilona, a julgar pelas metáforas canibalescas que descreviam sua atividade. 7 A lista dos homens arruinados por ela circulava de boca em boca, exacerbando seu erotismo e prometendo a quem o quisesse, sem nenhum disfarce, o encanto de sua perdição. Era a aniquilação certeira, portanto, o que havia de fascinante nela, como se Naná se houvesse transformado numa espécie de altar sacrificial semelhante ao que, pouco tempo antes, levara os abastados a destinarem parte de sua fortuna aos oficiantes do culto, a suas pompas e suas obras. Toda a sua beleza de nada lhe teria servido, se a ela não se acrescentasse essa fascinação. Se o romance de Zola contém alguma verdade histórica, dele havemos de concluir que poucas épocas foram tão subjugadas pela imagem da prostituta. Esta, longe de ser um simples instrumento de prazer recompensado por seus serviços, aparece como a senhora de um jogo em que escolhe, um após outro, aqueles que serão seus escravos, antes de serem rejeitados. Sem dúvida, a prostituição tem a reputação de ser a mais antiga profissão do mundo, 8 mas, será que algum dia teve tamanho lugar numa sociedade, a ponto de ter tanta repercussão na literatura mais cotada da época? Isso nunca aconteceu. Quando, em

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Manon Lescaut, o abade Prévost narra as tribulações de uma heroína que sempre prefere um pretendente rico a um amante pobre (muito embora ame este último), é verdade que Manon se relaciona com homens ricos, mas a aristocracia lhe permanece fechada, particularidade esta que constitui, aliás, o nó da intriga. Novos tempos! Não é apenas que, na época de Zola, o bordel se houvesse tomado um lugar mais reconhecido de iniciação sexual, que permitia à juventude perder a ingenuidade, enquanto, em termos mais amplos, oferecia um exutório para as vidas familiares, por demais austeras. A novidade estava, antes, em que era no bordel que se encontrava a Mulher maiúscula, apontada a todos os homens como o Ideal de sedução a ser conquistado - se preciso fosse, a peso de ouro. Tal mulher só podia provir dali, mesmo que depois fosse eternizada sob as luzes da ribalta. Uma vez retirada da sarjeta, Naná, por exemplo, poderia ter sido apresentada pelo diretor do teatro, que garantia sua promoção, como uma descoberta dele, de passado talvez duvidoso, mas que seu talento tão deslumbrante levaria a esquecer. Longe disso, era em altos brados, pelo contrário, que o diretor reivindicava que seu próprio teatro fosse qualificado de bordel. Assim, corrigindo as circunlocuções de um jovem aristocrata que visitava o lugar pela primeira vez, "diga meu bordel!. .. ", exclamou ele em vários momentos. Esses termos deviam definir, segundo ele, o tablado em que brilharia aquela que estava destinada a exercer seu império: "De repente ... a mulher pôs-se de pé, inquietante, trazendo o acesso de loucura de seu sexo, descortinando a incógnita do desejo. Naná continuava sorrindo, mas com um sorriso incisivo de comedora de homens." O desejo das altas rodas de Paris, tanto o da aristocracia quanto o das finanças, marchava, assim, ao compasso do bordel. Mais conviria dizer, aliás, o desejo da Europa, já então unida por essas vias premonitórias, como terá observado o leitor ao tomar conhecimento dos títulos dos amantes das mulheres de reputação duvidosa da época. 9 A burguesia e a aristocracia, desde então, foram postas no mesmo saco, medidas pelas cortesãs pelo parâmetro de sua liquidez, mais do que pelas virtudes honoríficas de seus títulos ou suas proezas. Não é que, de vez em quando, os que podiam fazê-lo se oferecessem algumas intimidades secretas com as beldades em evidência na época. Antes, as cortesãs haviam-se transformado no objeto central do desejo, que todo homem respeitável devia cobiçar, desde que possuísse algum patrimônio. 10

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A meio caminho entre a época de Sade e a nossa, portanto, a prostituta foi festejada como se encarnasse um ideal feminino cujo erotismo era proporcional às devastações que ela era passível de causar. Mas só teve esse papel nas ficções literárias. Até pouco tempo atrás, acaso as ligações com mulheres sustentadas ou de reputação duvidosa não faziam parte das normas da vida burguesa? Numa sociedade que afirmava cada vez mais francamente sua laicização, o dinheiro serviu, ao menos por algum tempo, como critério de ereção do desejo, uma vez que as notas do Banco de França permitiam idealizar uma imagem da mulher à altura do preço que ela cobrava. Antes que isso ocorresse, uma mulher só era desejada em caráter excepcional, e mesmo assim com vergonha, em função de seu valor de troca no mercado dos homens. Desse modo, existiu uma interessante etapa de idealização da mulher. A caminho de sua liberação, a modesta" naná" moderna, cuja ancestral foi arrancada do bordel, vai subindo de escalão, passando da mulher de reputação duvidosa à mulher de teatro, de cabaré ou de letras, também elas mulheres "públicas" num outro sentido, para se aproximar do ideal que elegemos atualmente, um ideal que, como qualquer outro, não pode renegar suas origens. "Fazer os homens pagarem" é uma modalidade de taxação do desejo que ultrapassa a remuneração merecida por uma certa mercadoria a partir do momento em que ela é posta em circulação num mercado. Por um lado, os homens implicados encontram uma vantagem nisso, que é a de conciliar a divisão de seu desejo entre a imagem da mamãe e a da puta. Por outro lado, as mulheres que se prestam a isso não o fazem sem uma garantia, e o dolo imaginário que elas vingam, graças ao dinheiro, coloca-as de antemão em pé de igualdade com os homens em matéria de maldade. É evidente que a filiação da "liberação" feminina que acaba de ser evocada mereceria ser examinada através de numerosos sintomas. Por exemplo, nunca se ouviu nenhuma das virulentas associações feministas norte-americanas questionar as incríveis pensões alimentares pleiteadas por suas concidadãs, que consideram uma afronta ver-lhes restituída a liberdade. Sem falar das recentes leis que reprimem o assédio sexual do outro lado do Atlântico, leis estas que, à parte suas conseqüências cômicas, não apenas fazem alguns homens pagarem pela expressão agressiva de seus desejos, como fazem recair uma suspeita de agressividade sobre o desejo masculino em geral. Justificadamente, aliás, de modo que essas leis, como muitas outras, decerto terão sido promulgadas com o objetivo expresso de serem deliciosamente transgredidas.

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NOTAS 1. A mais conhecida equação freudiana dessas equivalências é, por exemplo, pênis = fezes = filho, mas também = dinheiro. Quem não se apercebe de que a fantasia de prostituição encontra um álibi nisso? 2. Cf. Paulina 1880, de Pierre Jean Jouve. 3. " ... Seu sexo, forte o bastante para destruir todo esse mundo, sem ser maculado por ele"; " ... seu sexo elevava-se e reluzia sobre suas vítimas prostradas." 4. Pois o escritor não confidenciou a Goncourt, um dia, que precisava estar encolerizado para que lhe viesse a inspiração? 5. " ... Como dizia Vandeuvres, as moças vingavam a moral limpando a caixa." 6. Zola escreveu que, no momento em que um personagem real visitava sua heroína no camarim, "O mundo do teatro era um prolongamento do mundo real, numa farsa grave, sob o vapor ardente do gás. Naná, esquecendo que estava de calças e corpete sobre a pele, bancava a grande dama, a rainha Vênus, abrindo seus pequenos aposentos às personalidades do Estado." 7. "Naná, em poucos meses, comeu-os vorazmente ... "; "A cada bocado, Naná devorava uma jeira." 8. Adágio cristão cuja veracidade conviria, aliás, verificar em outras culturas. 9. Assim, no primeiro banquete oferecido por Naná, somos informados de que "todas sonhavam com algum capricho real, com uma noite paga com uma fortuna"." - Diga-me, meu caro-perguntou Caroline Hecquet a Vandeuvres, inclinando-se: -que idade tem o imperador da Rússia? ... Mas Blanche fornecia detalhes sobre o rei da Itália... e ficou aborrecida quando Fauchery lhe garantiu que Vítor Emanuel não poderia comparecer. Louise Violaine e Léa estavam apaixonadas pelo imperador da Áustria. De repente, ouviu-se a pequena Maria Blond, que dizia: - Aquilo é um velho magricela, o rei da Prússia!. .. Estive em Baden no àno passado. Sempre o encontrávamos com o conde de Bismarck. - Olhe! Bismarck - interrompeu Simone, - eu o conheci ... Um homem encantador." 10. Como, por exemplo, o banqueiro Steiner, que" ... as queria a todas; não podia aparecer uma no teatro sem que ele a comprasse, por mais cara que fosse. Citavam-se somas."

Observações sobre as preliminares da excitação sexual

A mecânica da ereção seria um fenômeno fácil de compreender, caso se definisse como o evento necessário que acompanha o desejo até sua satisfação, seja ela ortodoxa ou não. Ora, o desejo está longe de ser sempre seguido pelo efeito fisiológico esperado. Inversamente, aliás, a turgescência em questão às vezes aparenta não ter objeto, presente ou até fantasístico, e a ereção parece resultar de um excesso de força viva que se descarrega como pode, com a ajuda de fantasias conscientes ou inconscientes, sem que uma pessoa física em particular pareça ser a causa desse acontecimento. Ocorre que nem todas as ereções respondem aos mesmos estímulos, se podemos tomar emprestado por um instante esse vocabulário pavloviano. Pouquíssimas delas unem o amor e a sexualidade, segundo o impulso que qualifica propriamente o domínio do erotismo, com a pessoa amada causando diretamente a excitação. O desencadeamento da maioria das outras ereções merece ser aparentado, antes, com o domínio do auto-erotismo, na medida em que procede da excitação pulsional: uma certa parte do corpo, o olhar, a voz, uma postura ou uma situação dão ao amante mais ímpeto de morder, beijar, exibir e brutalizar do que qualquer sentimento nobre, ou mesmo do que a atração estética. De acordo com uma concepção simplificada, o auto-erotismo é freqüentemente assimilado ao prazer solitário. No entanto, seria mais exato defini-lo como o prazer que se obtém graças à excitação de diferentes pulsões parciais. Por exemplo, o tato, o olhar, a boca, o cheiro etc. podem proporcionar um prazer que ainda não é o do ato sexual -

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uma realidade figurada pelo termo convencional "preliminares". É verdade que, nessa ocasião, há um parceiro presente, mas a excitação em causa permanece auto-erótica porque cada protagonista entra nisso menos a título de uma pessoa do que como um conjunto de zonas erógenas correspondentes às pulsões parciais. O objeto, mais do que o sujeito, é como que cortado em pedaços, conforme a necessidade, e assim -se reduz a seus seios, sua altura, sua boca etc. O parceiro sexual, como totalidade, passa então para o segundo plano, devendo ser mentalmente apresentado em partes separadas, de acordo com certas partes atraentes de sua anatomia, para que daí resulte o efeito eréctil esperado. Essas partes prazerosas correspondem, cada qual a seu modo, à satisfação de uma pulsão. O despedaçamento realizado pelo autoerotismo anula o parceiro como pessoa e o reduz, inocentemente, a um conjunto de pedaços. Mais ainda, o simples funcionamento da pulsão pode prescindir da presença de qualquer parceiro sexual, permitindo obter o mesmo glorioso resultado. O ato de ver, de comer, de ouvir, ou qualquer outra sensação passível de responder pelo auto-erotismo pulsional, podem assim provocar, sub-repticiamente, uma tumescência incompreensível. Entretanto, quando um protagonista é inexistente a ponto de nem mesmo aparecer nas fantasias, a não ser posteriormente ao estado de excitação, não seria melhor, mais uma vez, evocarmos um excesso de energia natural, em vez da pulsão, noção complexa que implica o inconsciente ali onde seu efeito parece pouco evidente? Há fortes razões, todavia, para mantermos a noção de um auto-erotismo pulsional, pois a sexualidade comum encontra um constante apoio nas chamadas atividades preliminares, que resultam do acionamento do circuito acéfalo da pulsão. Antes de ser regulado pela relação com o outro do amor, o erotismo fundamenta-se no auto-erotismo, isto é, na relação com os objetos parciais que sexualizam o corpo. E a genitalidade continua a se apoiar neles, mesmo que sua erogenicidade não pareça ser mais que um simples acompanhamento das manifestações do desejo sexual. Totalmente diferente disso é o erotismo, que se interessa menos pela compilação dos supostos órgãos excitantes, segundo diversas normas mais ou menos fetichistas, do que pela obscura relação do sujeito com a coisa sexual que trama seu corpo. O que habita esse corpo como pode interessa mais ao erotismo do que a impessoalidade da pulsão, cujo infinitivo (ver, morder, pegar, tocar, bater) é assim conjugado por

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um sujeito, supQndo a existência de um outro que afirme (eu te vejo, eu te mordo etc.). De ponta a ponta, o parceiro sexual é inicialmente abordado segundo o empilhamento de diversos corpos pulsionais. Depois, é com o amado ou a amada que lidamos, na nudez crua de seu desejo, reconhecido como único, tão certo quanto o pai é Um. Enfrentamos esse Um que nos fascina ao mesmo tempo que a nossa angústia de castração. Tramada menos pela morte do que por uma pulsão mortífera, a dimensão colérica do desejo seria incompreensível sem esse olhar unificador do pai, pousado sobre a cena. Assim, caminhamos desde o ponto em que éramos auto-eroticamente gozados pela pulsão até o outro ponto em que o ato de gozo depende da castração, e portanto, do pai morto. A pulsão de morte no erotismo não tem, por conseguinte, esse ar de morte açucarada e mole que ajudaria a reprodução da vida, assim como a noite beira o dia e o implica. Ela procede da passagem de uma pulsão despersonalizante para um enfrentamento da castração e, por mais temperada que seja por uma ternura que lhe vem proporcionalmente, comporta sempre uma violência, independentemente da efração, por mais desejada que seja, de um corpo por outro. O que se convencionou chamar sexualidade "genital" apóia-se na base da pulsão que está ligada à perversão, uma vez que ela fetichiza o corpo do- p'arceiro sexual, reduzido à montagem de suas partes mais excitantes. Não existe, portanto, uma espécie de selvageria própria da sexualidade humana?" Selvageria", aliás, é um termo pouco adequado, pois evoca um estado "primitivo", ao passo que essa violência da sexualidade resulta da cultura. Esse grau pulsional do sexo acarreta uma excitação cuja violência potencial é extrema, ainda que esteja livre de qualquer animosidade pessoal (e que, por conseguinte, não requeira uma discórdia prévia para se exercer).

Da excitação pulsional ao auto-erotismo Quando se evoca o auto-erotismo, como dissemos, é a masturbação que lhe é mais comumente associada. Existe, de fato, uma articulação entre as pulsões - justificadamente chamadas de sexuais - e o genital, embora essa constatação ainda não permita saber qual é a ordem lógica dessa relação, nem sua ca~salidade. O exemplo clínico seguinte permite mostrar a relação da pulsão com a demanda materna e a pressão acéfala

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que resulta daí - violenta, já que se confronta diretamente com a transgressão incestuosa. Um rapaz entregava-se a uma atividade masturbatória intensa por motivos que de modo algum se resumiam numa dificuldade que ele tivesse de se satisfazer de outras maneiras. Na verdade, é um tanto apressado considerar o onanismo como um expediente a que se entregaria aquele que não encontra ou ainda não encontrou meios mais ortodoxos de se aliviar. Muitos exemplos mostram que a masturbação e o ato sexual se distinguem, que a primeira não é o substituto do segundo e que quem conhece as alegrias do conjungo não dispensa forçosamente os prazeres solitários, que lhe trazem outras satisfações. Como quer que fosse, ignorando a proteção de Diógenes, que talvez o houvesse tranqüilizado, esse rapaz temia entregar-se a um onanismo exagerado e, quanto mais violenta era a culpa que o invadia, mais compulsiva era sua vontade de se entregar, várias vezes por dia, ao que considerava um vício vergonhoso. Na sua idade e por força de sua condição de estudante, ele ainda morava com os pais, e, como a porta de seu quarto não tinha fechadura, o medo de ser surpreendido no exercício dessas atividades o obcecava. Foi nesse estado de espírito que ele veio me ver, sem dúvida considerando que a análise se destina.va a corrigir-lhe esse defeito infame. Travando uma luta por uma heterossexualidade harmoniosa, à qual nada se oporia, já que ele era provido de uma noiva apetitosa, ele me partícipou, durante longas semanas, seus esforços e suas recaídas, bem como seu medo pânico de ver a mãe abrir bruscamente a porta no momento de suas torpezas. Tinha certeza de que, se ocorresse um acontecimento assim, ficaria perturbado para sempre. E esse pensamento torturante, aliás, dava-lhe uma vontade imediata de se masturbar, qualquer que fosse a situação em que estivesse, vendo-se então imediatamente embaraçado por uma tumescência proporcional a sua vergonha. Não tendo uma opinião fechada a esse respeito, já que a masturbação tem lá suas credenciais, é claro que ficou acima de minhas possibilidades indicar-lhe, malgrado sua demanda e a simpatia que eu tinha por ele, o procedimento adequado a libertá-lo dessa servidão. Todavia, como seus desabafos verbais fizeram reduzir um tantinho sua,culpa, já que, justamente, eu não reagia no sentido de ajudá-lo a modificar essa situação, logo se verificou que sua excitação baixou proporcionalmente. E, por conseguinte, ele logo pôde comunicar-me o que considerava ser um progresso.

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Qual não fora a alegria de sua noiva ao constatar um vigor de que havia duvidado amargamente, uma vez que ele já estava sempre exausto quando ela o procurava! O enlevo dela o satisfazia, pois ele sempre ficava muito feliz, é claro, em dar prazer aos que o cercavam. Todavia, longe de se rejubilar com espalhafato, ele se mantinha numa expectativa prudente, na ansiedade em que continuava de ver-se outra vez tomado por aquelas comichões satânicas. Temia uma recaída, por um motivo bizarro. É que, aparentemente num outro campo, já havia experimentado um sucesso que fora apenas provisório. Quando muito garoto, ele adquirira o hábito de fumar, e não se lembrava de que seus pais jamais se houvessem oposto a isso. Todos os anos, os períodos das provas eram acompanhados por um tabagismo intenso e, apesar das campanhas da imprensa contra o fumo, que eram abundantes na época, nenhuma observação familiar viera moderar seus hábitos, embora as opiniões da faculdade de medicina oferecessem pretextos muito fáceis a quem quisesse martirizar o próximo. E então, um dia, num período de férias, ele havia parado de fumar, sem retomar esse costume de imediato. Qual não foi o orgulho de seus pais, que viram nessa façanha um surpreendente ato de vontade a comprovar a força de caráter de seu filhão. E este logo foi citado como exemplo a toda a vizinhança, bem como aos parentes, inclusive distantes! De modo que, quando a irritação da vida cotidiana de novo se apossou dele e o rapaz quis tornar a tirar proveito dos benefícios do fumo, só pôde fazê-lo às escondidas, temendo, também nesse caso, a propósito de um hábito que não fora objeto de nenhuma condenação anterior, ficar embaraçado, desta vez ao ser surpreendido com um cigarro na boca. Assim, empenhava-se cuidadosamente em fazer desaparecerem as cinzas e as pontas de cigarro, arejando intensivamente seu quartinho e acumulando manobras que, junto com as precauções de sua vida de onanista, atrapalhavam deliciosamente todo o curso de seus dias. Portanto, ele se manteve reservado quanto a seus progressos atuais, temendo uma recaída, pois nada lhe garantia que, como no caso do fumo, ele não voltaria a mergulhar no vício amanhã, apesar de sua preocupação de não entristecer a velhice dos pais. Entrementes, a associação de idéias que ele acabara de fazer mostrava que uma interdição, em síntese apenas potencial - a que decorria mentalmente de uma inadequação a um ideal de pureza infantil - , era suficiente para colocar no mesmo plano o onanismo e um gozo pulsional, o de

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fumar. Essa constatação só fez mergulhá-lo num abismo de perplexidade, afora as considerações sobre a vida em sociedade, que ele não deixou de tecer imediatamente, segundo essa educação pouco agradável que a análise inculca, de quebra, nos que a ela se submetem: " ... Mas por que os fumantes são tão irritantes para os não fumantes, numa época em que passou a ser de mau gosto descarregar a irritação naqueles cuja pele é de outra cor, como se o ostracismo exigisse, nos dias atuais, um atestado médico? Não é porque existe essa ligação que estou descobrindo entre o prazer de fumar e a masturbação? Eu disse 'fumar', mas, afinal, pode ser que exista uma ligação idêntica com outras formas de prazer. Por mim, nada me enoja mais do que alguém comendo vorazmente do meu lado, quando não estou com fome. Do mesmo modo, tenho grande dificuldade de suportar um mascador de chiclete: será que essa pessoa indelicada, na realidade, não está se masturbando ingenuamente em minha companhia? E mais, eu tenho então pleno direito de me perguntar se a excitação dela não decorre da minha presença, e se ela não estará obtendo seu prazer pelas minhas costas. Então, não é lícito que suas práticas me deixem com os nervos à flor da pele? ... O fato é que não entendo por que, por duas vezes, a presença de minha mãe pareceu tão estreitamente ligada a esses prazeres, que só são aparentemente solitários, portanto, já que a idéia da possível surpresa também participa da excitação, ou melhor, constitui aquilo que é exasperante, lancinante, a ponto de acabar sendo excitante ... " Em que contexto caía essa interrogação dele, e como pensar a ligação do auto-erotismo pulsional com a excitação sexual? Isso depende, como se sabe, das primeiras respostas que um filho dá às demandas maternas, quando se interroga obscuramente sobre o que a mãe quer dele. Do mesmo modo que o filho, não se pode quase apostar que ela nunca sabe nada a.esse respeito? O objeto de seus anseios permanece desconhecido por aquela que o reivindica. Todavia, esse desconhecimento não impede que se conjecture a natureza do móbil que existe entre um filho e sua mãe, nas demandas recíprocas que os unem. Por mais atenta que ela seja a satisfazer as diferentes necessidades de seu filho, a mãe também cuida de sua própria falta, a do falo (segundo pretende a equação freudiana, filho = falo). Atender à demanda, portanto, equivaleria a preencher a falta. Por conseguinte, ao aceitar todos os prazeres ligados a seu estado alienado, o bebê preenche a mãe, fazendo dela a matriz fálica de sua própria ereção.

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Violência pulsional e corpo erógeno Opera-se assim, por princípio, uma articulação entre prazer pulsional e gozo fálico, de modo que, por mais inocente que possa parecer uma pulsão, ela é sempre sexual. Nessa condição, ela se enreda nas viscosidades da libido, assim como, aliás, beneficia-se de suas satisfações: a pulsão que excita a boca, por exemplo, também exercerá sua pressão juntamente com a ereção. A despeito do abismo que parece separar a papila gustativa das satisfações de Diógenes, todo prazer, por mais parcial que seja, comporta sua implicação fálica. Do mesmo modo, e simetricamente, todo incidente da vida sexual tem sua repercussão pulsional, e a linguagem familiar, que tão facilmente liga a devoração ao amor ou o excremento à abominação, dá uma idéia dessa equivalência. Certa jovem, por exemplo, não procurou a psicanálise por um motivo diretamente ligado a sua vida sexual. Para dizer a verdade, como muitas vezes acontece, seu sintoma era impreciso, quase que por definição, poderíamos dizer, já que a função do sintoma é ocultar a causalidade traumática de que ele procede. De que ela se queixava explicitamente? De algumas enxaquecas, é claro, e além disso, anunciada ao cabo de algumas semanas como uma banalidade, de uma persistente repugnância alimentar, em particular pela carne: carne vermelha, nem pensar, era um horror. Porém, o mesmo acontecia quando esse alimento estava mais do que cozido. E mais, como as refeições são freqüentemente feitas em companhia, e como a maioria dos convivas é carnívora, ela era tomada de repugnância ao ouvi-los mastigar as carnes cozidas e mal conseguia tocar no conteúdo de seu prato, apesar de especialmente preparado para ela. É claro que dispunha de uma solução, que consistia em fugir de qualquer convívio na hora em que os parentes se instalavam à mesa. Mas, à parte o fato de que, a longo prazo, esse procedimento revelava-se menos fácil de utilizar do que parecia, para quem não queria causar preocupação, a idéia da carne a seguia e contaminava até o mais ínfimo pedaço de pão. De modo que, convinha confessar, ela havia perdido quase dez quilos nos últimos meses - um balanço que começava a se tornar alarmante. Não era a primeira vez que ela ficava sujeita a esses episódios de ... como é que vocês chamam isso? ... anorexia, é essa a palavra. Essa disposição do apetite, na verdade, apossava-se dela regularmente, desde a adolescência, para ser mais exato. Sim, ela podia datar facilmente 6 primeiro episódio, uma vez que ele ocorrera pouco depois de suas

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primeiras regras. Fora nessa época que ela havia começado a se alimentar com parcimônia. O mais curioso, não é mesmo?, é que, de tempos em tempos, ela de repente parava de beliscar e, da noite para o dia, abandonava suas preferências vegetarianas e se alimentava com voracidade, sem que os acontecimentos que cercavam essas seqüências jamais tivessem sido mais claramente elucidados. Não, esses estados de magreza que ela atravessava episodicamente não a incomodavam além da conta. Ela não se queixava disso, e nunca se preocupara em saber se uma mulher descarnada podia agradar ou, ao contrário, corria o risco de repelir. E depois, também havia reparado que esses episódios eram acompanhados por atrasos das regras. Portanto, foi nessa conjuntura que a análise teve início, destacando muito depressa, apesar de sua banalização, um sintoma tão bem delimitado que era bastante fácil indagar a seu respeito. Entretanto, acaso as primeiras pistas fornecidas não eram evidentes demais? Tão patentes que fechavam o sentido e, assiin, pertenciam ao próprio sintoma, mais fazendo justificá-lo do que esclarecê-lo. Não foi isso que aconteceu, por exemplo, quando ela indicou o peso ótimo que era o objeto de toda a sua atenção? O peso de 44 quilos parecia-lhe possuir um atrativo especial. "É claro que, para você que é psicanalista, esse peso não há de surpreender, se você souber que meu pai voltou dos campos de concentração em 1945, mais magro era impossível, como você pode facilmente imaginar. Aliás, tenho a idéia insistente, embora nunca lhe tenha perguntado, isso me ocorreu de repente, de que ele devia ter mais ou menos esse peso quando voltou. Não o interroguei, porque ele é muito pudico e nunca fala desse período de sua vida. Em contrapartida, vasculhei uma documentação abundante sobre a deportação, e me parece que esse era realmente o peso de muitos homens em sua saída dos campos. Pesar 45 quilos é uma idéia que me vem com freqüência, mas cair abaixo dessa linha sempre me fascinou vertiginosamente ... " ... Mas, você deve ter notado que estou meio surpresa pelo fato de esses números diferentes não lhe causarem maior efeito, embora me pareça muito claro que estou-me esforçando por retomar a meu modo uma das características, sem dúvida a mais heróica, do que foi a vida do meu pai. Naturalmente, estou cometendo um engano, e você mesmo o teria retificado: eu quis dizer o que é a vida do meu pai, já que ele não morreu ... Mas, falando de números, você agora está me perguntando se eu me lembro que idade tinha quando das minhas primeiras regras ... Confesso-lhe que isso não me impressionou, devem ter sido doze ou

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treze anos, quatorze, talvez. Não prestei muita atenção. Foi uma coisa que veio por si, assim, é claro, naturalmente ... E também não compreendo, agora, porque você repetiu naturalmente depois de mim; eu me lembro bem de ter pronunciado essa palavra há pouco, mas já nem saberia dizer a propósito de quê empreguei esse termo banal, que parece lhe interessar tanto ... " O emprego dessa palavra, na verdade em dois momentos - a primeira vez a propósito de um erro temporal que implicava a morte do pai, e a segunda a propósito de uma amnésia concernente à data de um acontecimento de vulto na vida de uma mulher-, só podia chamar a atenção. Nas sessões seguintes, nenhuma lembrança lhe permitiu, apesar de seus esforços, esclarecer a data de suas primeiras regras, não mais, aliás, do que suas circunstâncias. De momento, só restava no primeiro plano da cena o tênue vínculo, efetuado graças ao significante naturalmente, entre suas regras e a morte de um pai cuja vida fora inadvertidamente colocada no passado. Que surpresa isolar, desse modo, um sentimento tão contrário à consideração filial que ela havia exibido no início de sua análise! E o espanto estava fadado a aumentar ainda mais, porque os dois fatos "naturais" mencionados articularam-se abruptamente um com o outro, graças a suas associações sobre a menstruação. Não têm as regras a significação geral de que, já que acabou de se concluir um ciclo de fecundidade, não veio um filho? Por conseguinte, elas também carregam em seu sangue o pai que esse filho teria tido se fosse concebido. E sem dúvida era porque, apesar de tudo, esse "filho do pai" fora concebido na fantasia que as regras haviam constituído um trauma, atingido pela amnésia. Se o sintoma anoréxico tinha algum vínculo com essas associações, faltava ainda estabelecer, agora, se existia alguma relação entre o horror ao sangue e o horror à carne. Todavia, de nada adianta correr, e um sintoma não é libertado quando se repõe no devido lugar uma significação, pois o que o aprisiona não reside numa falta de explicação, mas na contradição que o articula (como uma flecha presa na carne por suas farpas). E seu vestígio, até esse momento, mal fora vislumbrado! Por isso, eu tinha que esperar pelo que, na fala atual, tivesse o valor de uma contradição equivalente. Não sem que solicitasse sua vinda. " - Mas, diga-me, desde quando se produziu essa recaída recente, que a faz abominar quase todos os alimentos provenientes do que é vivo e, por contágio, quase todos os outros alimentos?

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" - Eu já lhe disse, há alguns meses. " - E o que aconteceu, exatamente, durant~ esses alguns meses? Que acontecimento, em sua opinião, teria sido particularmente importante nesse período? " - Na verdade, não vejo... É claro, eu me casei, e talvez tenha deixado de lhe dizer isso, porque foi só uma formalidade: já vivo há cinco anos com meu companheiro. Nós nos casamos legalmente sobretudo para agradar à família, que de ambos os lados é bastante antiquada, confesso. Na verdade, meu pai se recusava a nos receber enquanto tínhamos o estado civil de concubinas, e eu passava as festas sozinha na casa de meus pais. Isso convinha a todo o mundo, na realidade, porque meu marido tem horror a todas as recepções, até as íntimas. Realmente, há que admitir que esse rapaz que eu adoro é um bocado esquisito, e esse casamento não parece ter-lhe feito bem. Eu me pergunto se não foi depois dessa data que ele passou a se mostrar incapaz de cumprir seus deveres conjugais além de uma duração de alguns segundos, o que não acontecia antes. Tenho quase certeza, agora que estou falando nisso, que a condição de marido fez dele um ejaculador precoce, e eu me pergunto que jeito vou dar para que ele se indisponha o mais depressa possível com meu pai, para restabelecer um equilíbrio sexual cuja perturbação não parece ser independente de minha inapetência alimentar." Sem dúvida, havia uma forte probabilidade de que a mudança de estatuto simbólico do companheiro tivesse estado na origem de um transtorno em suas proezas sexuais. Mas nada podia atestar isso, porque, além do fato de que eu não conhecia esse homem, só pareciam garantidos os efeitos de uma única mudança de estatuto, a de minha analisanda. Esta, de fato, vendo chegar ao fim o estado de beligerância insidiosa que existia entre o pai e o companheiro, podia muito bem ter mudado de atitude, de tal maneira que o marido houvesse passado a ter nos braços uma mulher que já não reconhecia, apesar ou em virtude de ela ter passado a ser legitimamente sua. Não estaria ela contribuindo para que o ato carnal se reduzisse a uma coisa insignificante? Assim, o evento atual - a ejaculação precoce - preservava todo o seu valor de fator desencadeante de uma semi-anorexia, mas apenas na medida oculta em que fazia soar novamente a cadeia na qual seu ser sexuado tinha sido determinado. E fora somente no nível da pulsão oral que o sintoma sexual tinha virado sua agressão erótica contra o corpo - segundo as vias passivas próprias da feminilidade.

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Porventura todo homem não foi ou corre o risco de ser, de vez em quando, ultrapassado por seu gozo, e de, aparentemente premido pela violência de seu desejo, concluir onde o mais sério deveria começar? Decerto, é fácil compreender que um incidente desse tipo entrave o arroubo de um rapaz, cuja impetuosidade, aliás, muitas vezes só é detida por alguns instantes. Do mesmo modo, um homem mais experiente, um veterano Don Juan ou um velhote cheio de artifícios podem, em certas circunstâncias acrobáticas, ou inflamados pelas chamas de um desejo rejuvenescedor, experimentar desventura semelhante, da qual talvez tenham maior dificuldade de sair, havendo-se tomado menos prontos a repor as coisas em andamento. A maioria dos homens, portanto, terá tido oportunidade de experimentar os dissabores da ejaculação precoce, que, mesmo a título de incidente excepcional, não deixa de ser sintomática. A juventude, a emoção do momento e o transtorno das circunstâncias escamotearão essa lembrança desagradável, não sem que a namorada, a mulher ou a amante contribuam, muitas vezes, com uma certa complacência. A coisa já fica menos clara quando o incidente se repete, quer se manifeste episodicamente ou se torne uma constante da vida amorosa, amiúde ainda mais angustiante por se aliar a uma melindrosa preocupação com a virilidade, ou, pior ainda, por contrastar com a pujança de um amor compartilhado. Que há de mais desolador que não poder oferecer a uma companheira amada o que ela espera? Do ponto de vista da doutrina, a ejaculação precoce leva uma vantagem sobre o comum dos sintomas: é que sua origem, não apenas inconsciente, mas sexual, parece incontestável. É verdade que, malllO

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grado essa evidência, muitos especialistas esforçam-se por encontrarlhe uma causa orgânica, glandular, fisiológica, hereditária, em suma, qualquer coisa para não reconhecer a urdidura do corpo pelo desejo. Esquecidos de sua própria experiência, os técnicos do sexo nunca deixam de infamar a libido e suas esquisitices, plenamente dispostos a prescrever o medicamento ad hoc: um aparelhinho, um cinto de contenção, um método comportamental, uma técnica de dramatização familiar ou uma intervenção cirúrgica, para não ter que pronunciar, nem mesmo baixinho, o nome maldito de Freud ou de um de seus sequazes. É evidente que os que sofrem dess~ sintoma também preferem, por sua vez, e às vezes por muito tempo, qualquer explicação e qualquer método que os poupem de descobrir o que seu inconsciente trafica por vias tão humilhantes, e que, por conseguinte, eles demoram a se abrir com os sequazes em questão. · Se ao menos a resistência à psicanálise pudesse ser forte o bastante para acarretar, com a ajuda de algumas sugestões, uma cura imediata! Infelizmente, se muitos sintomas podem beneficiar-se com sucesso dos passes magnéticos, da prece tranqüilizadora ou dos mandamentos da caridade, esse, na maioria das vezes, mostra-se rebelde quando chega a hora da verdade! Uma vez superadas essas resistências, aliás muito comuns, à psicanálise, e para aquele que tem algumas suspeitas quanto à origem inconsciente dos sintomas, a ejaculação precoce exibe, pois, uma origem sexual interessante de estudar. O mesmo não se dá com uma angina, uma enxaqueca ou uma acidez estomacal, sobre as quais quem delas padece, mesmo estando informado, geralmente acha que elas requerem primeiro a ajuda do médico. Até um analisando tarimbado começa, às vezes, por consultar um médico, ao ser afetado por uma dessas perturbações. O interesse, em seguida, consiste em isolar um sintoma sexual e, ainda por cima, masculino. Quem é afligido por um gozo intempestivo passa por um tormento paradigmático do siritoma em sua vertente viril, na medida em que a estrutura geral do sintoma é desviada pela escolha do sexo (pela ·relação com a castração, independentemente do tipo de neurose). A ejaculação precoce comprova a existência de pelo menos um sintoma característico dos homens - esclarecimento que não é inútil, numa época em que certos teóricos falam de bom grado da neurose sem levar em conta o sexo daquele a quem ela concerne. Será tão certo assim que as mulheres não conhecem equivalentes da ejaculação precoce? Um clínico atento talvez pudesse buscar um

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correspondente desta numa precipitação para o gozo que abrevia o prazer feminino. Mas tal acontecimento não é considerado uma desvantagem por aquela a quem sucede. Antes, dá-lhe a esperança de gozar mais uma vez, e ela não se queixa disso. Não há, portanto, nenhuma relação entre um gozo feminino precipitado e uma ejaculação precoce, uma vez que a característica desta última é ser um sofrimento, e ser provocada pela expressão do prazer da amante, o que não ocorre com o primeiro. Mas um clínico, ansioso ao ver os cavalheiros serem afetados por misérias de que suas companheiras não sofreriam, poderia persistir e, diante dessa desagradável dissimetria, achar que deve existir, do lado feminino, um equivalente desse sintoma, num nível mais sutil. Por que não haveria uma mulher de reter seu gozo (inconscientemente). como se seu amante fosse assemelhado a um pai violador? Nesse caso, a frigide.l, a ausência de qualquer manifestação de gozo do lado feminino, deveria ser considerada simétrica à ejaculação precoce, havendo com freqüência, aliás, uma boa combinação entre esses dois sintomas, uma vez que um ejaculador precoce nunca é tão senhor de seus recursos como quando depara com uma mulher frígida, ou que tenha a malícia de fingir sê-lo. Entretanto, complementaridade (que ainda seria preciso comprovar) nada tem a ver com simetria, ainda mais que a frigidez não tem o caráter orgástico que é próprio da ejaculação. Em desespero de causa, o clínico partidário da igualdade entre os sexos poderia ainda examinar outras hipóteses, e se perguntar se a passagem do gozo clitoridiano para o gozo especificamente feminino não corresponderia ao obstáculo transposto pelo ejaculador precoce quando ele deixa de sê-lo. Esse argumento parece mais sério, já que, com efeito, essa passagem corresponde, do lado feminino, ao salto que vai do gozo orgânico ao gozo com a falta (isto é, ao assassinato do pai). Isso também é, como veremos, o que um homem enfrenta quando o prazer feminino não o sodomiza e quando, de certa maneira, ele se inclui, de modo inteiramente fantasístico, na categoria dos assassinos. Por fim, esses esforços teóricos não conseguiriam mascarar por mais tempo a triste realidade: a ejaculação precoce é uma imperfeição tipicamente masculina. Pois se, para anunciar o que virá em seguida, o móbil desse sintoma prende-se à antecipação de uma feminilização diante da expressão do gozo feminino, tal apreensão só pode ser obra de um homem, já que somente este pode temer a perda de sua virilidade a ponto de preferir gozar antes da hora.

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Uma aproximação intuitiva talvez levasse a crer que convém situar a ejaculação precoce entre o auto-erotismo e o erotismo, tais como foram definidos no capítulo anterior. A passagem do auto-erotismo ao erotismo (ou ainda, das preliminares ao ato sexual propriamente dito) requer um salto qualitativo do qual a experiência corriqueira é testemunha. O jogo pulsional das preliminares pode satisfazer-se com quase nada - por exemplo, com o simples olhar-, ao contrário da colocação do falicismo à prova, que implica coações totalmente diferentes. Uma mulher, por exemplo, pode adorar os jogos que antecedem a penetração, mas experimentar uma angústia insuperável no momento desta, quando resolve submeter-se a ela para não desagradar seu companheiro. Do mesmo modo, um homem pode mostrar-se criativo e empreendedor enquanto se restringe às múltiplas distrações que podem preceder a copulação, e se encontrar em estado lastimável na hora da consumação. Essa rapidíssima passagem das preliminares gloriosas para a derrota da ereção, no momento em que sua firmeza seria necessária, conhece diversas manifestações: a detumescência, nessa hora, pode marcar menos o fim do desejo sexual (que pode se arranjar com situações muito diversas) do que a eclosão de uma angústia insuperável. A ereção também pode se sustentar com a mesma intrepidez, mas, nesse caso, uma ejaculação intempestiva vem toldar as perspectivas abertas por essa promessa. E por último, a ereção pode ainda manter-se indefinidamente, sem uma conclusão decisiva. Essas três eventualidades, embora não tendo a mesma significação, indicam a arriscada passagem que existe entre o auto-erotismo e o erotismo, obstáculo que só é superado, na maioria das vezes, graças à atividade de uma fantasia particular - por exemplo, a de uma humilhação ou uma fustigação - , fantasia esta que é necessária, embora em geral inconsciente, para abordar o âmago do sujeito. Por que o salto do auto-erotismo para o erotismo é tão freqüentemente marcado por uma angústia insuperável, ou pela conclusão apressada da ejaculação precoce? Podemos responder - e não correremos o risco de nos enganar ao nos mostrarmos tão genéricos - que a angústia de castração torna essa experiência inevitável. Assim, determinado teórico poderá sublinhar como é corriqueira a representação de uma vagina dentada, cujas profundezas cortantes ocasionariam, no momento crucial, o terror do homem. A clínica, é verdade, parecerá vir mais de uma vez em seu socorro, pois é certo que muitos analisandos não deixam de relatar essas representações.

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No exemplo clínico desenvolvido mais adiante neste capítulo, M.R. confiou-me que, tendo um dia que sofrer uma intervenção cirúrgica anódina no alto da coxa, a enfermeira quis raspar-lhe o púbis para fins de assepsia, horas antes da intervenção. Qual não foi seu pavor ao ver aproximar-se, de navalha na mão, aquela mulher de branco! Angústia incoercível, mas desmedidamente gozosa, já que, sendo o gradiente de seu sintoma levado ao extremo nesse momento, ele ejaculou ao contato com a navalha, sem sequer ter tido tempo de esperar pela ereção. Com esse simples exemplo, não seria fácil provar que a ejaculação precoce é causada pela angústia da castração feminina? No entanto, essas imagens fornecem apenas um dos termos do complexo e tendem a encontrar na anatomia feminina a causalidade psíquica do sintoma. Embora invocando a angústia de castração, não corremos muito risco de nos enganar, ainda que essa explicação seja meio abreviada, pois ela não nos permite detalhar o processo das três ocorrências antes mencionadas, nem, sobretudo, articular a angústia de castração (na relação com as mulheres) com o complexo paterno (inconsciente). De fato, e quase que por definição, como seria possível que a angústia de castração não se relacionasse com o pai? Como foi mostrado mais acima, a passagem do auto-erotismo ao erotismo caracteriza-se por uma mutação entre objetivação pulsional e subjetivação fantasística. Essa mudança é expressa quando a parceira se manifesta de maneira diferente, daquela maneira particular que indica que já não se trata do prazer das preliminares, mas de sua relação com o falicismo. Falando claramente, a manifestação de uma modificação qualitativa de seu gozo indica esse ponto de passagem, sendo seu único tormento, a partir de então, a inveja do pênis. A manifestação do gozo feminino, exposto a esse tormento, difere de tudo que o precede, e o gemido que o assinala pode provocar, por si só, a detumescência ou a ejaculação precoce. (Tanto que uma mulher experiente, avaliando as fragilidades de seu amante, pode abster-se de exteriorizar seu prazer por tanto tempo quanto lhe seja possível.) Um gemido, como outro sinal de gozo, aliás, em nada se assemelha a uma vagina dentada e, por conseguinte, conviria interrogar essa propriedade, não da anatomia, mas do gozo feminino, de provocar o inverso do que ela espera. Qual é a idéia que pode então atravessar a cabeça do homem, de tal maneira que leve a esse resultado, sob muitos aspectos humilhante para ele? Nada é tão profundo quanto a superfície dos pensamentos, e é por isso que sua superficialidade merece tanta atenção. Se nos ativermos a ela, interrogaremos, primeiro, uma espécie de ódio amoroso do

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feminino, ou de cólera contra seu sexo, já que, num número de casos suficientemente importante, pensamentos insultuosos precedem esse momento humilhante. Como se o fato de ela mostrar seu gozo fosse, numa mulher, o sinal de sua decadência, algumas denominações agradáveis, como "piranha", "puta", "galinha" ou "cadela", são atribuídas à mulher que está gozando, ou melhor, começando a fazê-lo. Curiosamente, às vezes é preciso muito tempo para obter a confissão desses insultos, em sua maioria mentais, pois é como se esses xingamentos sucedessem à ejaculação, quando, ao contrário, na realidade da fantasia, eles a precedem. Os epítetos mencionados acima quase sempre possuem, como se há de notar, uma característica interessante, que é a de evocar a prostituição ou, pelo menos, por parte da mulher assim invectivada mentalmente, um amor ao falo que já não leva em conta a individualidade do parceiro, como se, nesse instante, uma paixão impessoal pelo sexo masculino se manifestasse, independentemente de seu proprietário do mqmento. A mulher que começa a gozar prostitui-se a uma potência fálicà anônima, e a constância dessa idéia oprime o ejaculador precoce, como aquele que recua no último instante de suas obrigações viris. É verdade que nem por isso ela poupa aquele que, transpondo esse obstáculo, também outorga a sua companheira alguns adjetivos dessa lavra, embora não tenha um comportamento que expresse um pensamento equivalente. Ele encontra nisso, ao contrário, razão para ir adiante. A generalidade dessa evocação peripatética não basta, pois, para indicar as particularidades dessa transposição, embora forneça uma indicação útil. Com efeito, se nesse instante a amante fecha os olhos, esquecendo o rosto daquele que a deseja, como se ficasse abruptamente subjugada à potência de um sexo sem nome, onde é que seu companheiro vai achar que ela está, e com quem, quando envereda por esse caminho? Pois ela realmente tem que estar em algum lugar, e com alguém. Nos braços de quem é arrebatada quando deixa escapar esse gemido? De onde vem esse grito, que se diria datar de antes das palavras e que parece não invocar ninguém em sua particularidade, a não ser algum gênio da virilidade, reconhecido mais além de qualquer presença? Espírito de Pan ictifálico, é a universalidade do mundo viril que esse apelo reconhece, e nessa multidão inominada inclui-se a figura de um pai mítico. Esse grito invoca a potência "d.o pai". De um pai que, sem ser o de alguém em particular, foi a máscara com que todo

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pai cobriu a face por algum tempo. Máscara que ele ainda usa para o neurótico, como atesta o hieroglifo do sintoma. A cadela, a puta, portanto, goza com "o pai", esquecendo sem _nenhuma vergonha qualquer pretenso amor em prol da força anônima que anima o sexo. Que uma mulher copule com" o pai", por intermédio de seu amante, evoca de imediato o ternário edipiano, já que, a partir do momento em que ela goza com essa augusta figura, soltando com a voz seu suspiro do aquém-nascimento até o além-túmulo, ela mesma é prontamente assimilada à mãe genitora. (Do auto-erotismo ao erotismo, longe de passar do um ao dois, é o emprego de quatro figuras que convém evocar, afinal.) Não é curioso que, num abrir e fechar de olhos, num suspiro, a rigor, a "puta" se una tão depressa à "mamãe", vindo as duas figuras, encaixadas numa só num curtíssimo intervalo de tempq, redilzlí o amante a um gozo apressado, quando ele chega pelo menos a esse resultado deplorável? Em seu texto sobre "O mais comum dos rebaixamentos da vida amorosa",* Freud mostrou que, entre a representação da mamãe e a da puta, existe uma distância realmente necessária à sexualidade masculina. Esse traço tão corrente decerto merece ser generalizado. Mas persiste o fato de que nem todos os homens são bígamos e de que uma profusão deles satisfaz-se exclusivamente com o amor conjugal! As considerações feitas no "Rebaixamento" nem por isso são invalidadas, pois uma mesma mulher pode desempenhar os dois papéis e, conforme as horas do dia, alternar cuidados perfeitamente maternos com uma perversidade apta a evocar seu contrário na duplicidade masculina (com a ajuda das brigas). Em último caso, quando uma mulher não se compraz muito em exibir essa dupla face, nada impede o marido de fantasiá-la como tal, quando o fogo se apag'.l. Contudo, impõe-se uma observação suplementar, pois essa dupla face da mamãe e da puta pode dar a impressão de que apenas a mamãe está às voltas com "o pai", e de que, por conseguinte, a configuração edipiana só conviria a esse caso ilustrativo. No entanto, acaso a puta também não tem contas a ajustar com" um pai", e muito mais terríveis, já que é com este que ela corre o risco de deparar casualmente, na

• No Brasil, traduzido como "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor", ESB, v. XI, Jl!. ed., Rio de Janeiro, Imago, 1976. (N.T.)

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totalidade dos homens a quem se oferece? (A fantasia de prostituição comporta, com efeito, a variação clássica segundo a qual, em sua prática, a puta depara com o pai, carente de um gozo venal. 1) A mamãe e a puta, portanto, conhecem igualmente "o pai", embora não se trate da mesma instância da paternidade. De um lado, a fantasia pretende que a mãe seja deixada praticamente virgem por um pai situado sob a proteção de S. José, enquanto, de outro, a puta confronta-se com a impetuosidade de um pai mítico, digno da horda primeva, tão perverso, anônimo e sem lei quanto um homem sonha ser, quando ousa fazê-lo. Apliquemos agora a generalidade dessa fantasia ao sintoma da "ejaculação precoce". Quando um homem confronta-se com uma mulher que, sem maior continência, começa a gozar, e quando é perigosamente excitado pela idéia de estar lidando com uma cadela prostituída, essa idéia implica matematicamente uma outra: a de que, com seu gemido, ela invoca um certo pai. Sem dúvida, é raro obter de um analisando o pensamento fantasístico de que os gemidos do gozo feminino evocam um pai. Muitas vezes, porém, basta um trabalho analítico bem curto para que em alguns elos da cadeia se destaque essa presença, evidenciação que não basta, aliás, para esvaziar completamente o sintoma, já que somente o ato pode fazê-lo. Assim, é correto referir à angústia de castração o sintoma da ejaculação precoce. Com efeito, se a passagem do auto-erotismo ao erotismo requer um salto, agora é possível precisarmos sua natureza: a implicação do pai no ato sexual expressa as modalidades da castração do sujeito (da qual o pai é agente), ou então, a simbolização da potência fálica em decorrência de uma fantasia homicida (o que dá na mesma, já que simbolizar o falo resulta do confronto com a angústia de castração). Como livrar-se" do pai", embora ele inicialmente salve da angústia, graças a uma potência que, no mesmo movimento, esmaga? A dificuldade é tão maior quanto mais importante tenha sido seu amor (e, por conseguinte, os que tiveram um pai desagradável, ou mesmo odioso, levam vantagem sobre seus colegas da mesma idade cujos pais foram bons o bastante para se fazer amar). De modo que alguns pais revelam-se impossíveis de esvaziar. Não é que seja mais sadio saber passar do amor ao ódio, pois este último pertence ao mesmo registro. Em contrapartida, como já dissemos, assumir um traço do pai (com isso o reverenciando), e servir-se deste em nome dele (o que equivale a tomar seu lugar), simboliza a potência paterna e permite escapar a essa

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dominação sentimental. Nesses casos, o que caracteriza a ejaculação precoce é uma impossibilidade de matar o pai, em nome de um lucro que ainda está por estabelecer e que interrogaremos no exemplo clínico seguinte.

A quem se dirige a agressão na ejaculação precoce? Após vários anos de um casamento que dera diversos filhos ao casal, M.R. continuava sofrendo de uma impossibilidade de fazer amor com sua mulher por mais de alguns segundos, aliás só ocasionalmente conseguindo consumar um ato correspondente ao habitual adjetivo "sexual''. Havia tentado de tudo antes de começar uma análise, que seus estudos deveriam tê-lo levado a iniciar muito mais cedo. Muito embora sua análise já houvesse deslanchado, e em pouco tempo lhe tivesse permitido ao menos reduzir a violência de sua angústia, ele perseverava em certas práticas que lhe permitiam superar o obstáculo do minuto anterior à entrega das armas. Quando o desejo o espicaçava, como acontecia quase cotidianamente, ele ingeria, antes da hora fatídica· do toque de recolher, uma mistura de álcool e ansiolíticos, composta segundo uma posologia que lhe permitia fazer boa figura. Diutumamente imprensado na parede por seu desejo e, por conseguinte, quase que unicamente centrado nessa inquietação em cada uma de suas sessões de análise, ele logo havia conseguido desmontar as articulações de uma importante cadeia associativa, expediente provisório cujo resultado fora uma notável sedação de sua angústia. Como os elementos dessa concatenação ganham mais relevo ao serem examinados retroativamente, à luz de certos fatos que ele só exporia um pouco depois, eles serão reteimados no contexto que lhes confere sentido. Tomemos essa análise em andamento, portanto, e escutemos os dissabores cotidianos e aparentemente anódinos nela narrados! Eis onde estava M.R., pouco menos de um ano após o início de seu tratamento: acabara de assinalar a insistência de uma de suas atitudes, que omitira de apontar até então. Convém dizer que ele era tão obnubilado pela certeza de estar com a razão, que não julgara útil me falar de uma discórdia doméstica subalterna e insidiosa. Quase todos os dias, ele tinha que procurar uma briga com a mulher. Não conseguia prescindir dessa provação. Na maioria das vezes, algum detalhe da administração doméstica o exasperava e ele explodia. Era só a sopa estar quente

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demais, fria demais, sem sal suficiente ou insuficientemente temperada, e ele logo fazia uma crítica. E, como essas queixas suscitavam um protesto às vezes vigoroso na dona-de-casa magoada, elas degeneravam rapidamente em acessos de cólera, cada um dos quais reavivava a lembrança do anterior. Da sopa ao piso mal encerado ou encerado demais, a vida cotidiana tinha-se transformado numa corrida de obstáculos. À noite, no entanto, como se nada houvesse, o marido ingeria o álcool e as drogas que julgava necessários e, mais uma vez, experimentava a humilhação secreta do gozo insatisfeito da companheira pouco vingativa a esse respeito, no entanto. Como se a noite e o dia formassem dois mundos distintos, ele retomava, no dia seguinte, a seqüência de suas brigas intermináveis, reivindicando obstinadamente desculpas da mulher por qualquer dos ítens em que, a seu ver, ela se teria mostrado não apenas incompetente, mas, ainda por cima, arrogante. E, considerando que era possível serem necessários quinze dias de discussão para acertar as contas por um jantar servido com muito atraso, apesar do horário de um jogo de futebol televisionado, tinha-se tornado impossível enfrentar o acúmulo dos motivos de queixa. De modo que ele acabara sendo levado a exprimir uma exigência mais global. Sua mulher tinha de lhe pedir perdão pela totalidade de seus erros, penitência após a qual ele jurava mostrar-se magnânimo. A convicção de estar assim adotando uma atitude marcada pelo espírito de justiça e pela generosidade dos fortes o levara a não me dizer uma palavra sobre esses aborrecimentos domésticos, como se apenas o relato de seus dissabores noturnos fosse passível de me interessar. Por isso, foi com surpresa que fui um dia informado da degradação de sua vida conjugal diurna. Personalidade aparentemente forte, sua . mulher sempre se recusara a enunciar a menor das desculpas que lhe eram exigidas, assim como também não havia condescendido em se explicar sobre eventuais imperfeições. E, de repente, fiquei sabendo que o casal estava à beira da separação, cada qual, marido e mulher, já havendo preparado sua mala, depois de jurar em alto e bom som que iria embora - na realidade, sem sabei" para onde. Assim, os dois continuavam a se suportar, devendo cada dia ser o último que passariam em comum. O marido, sem dúvida desejoso de acertar de uma só vez uma conta global, e querendo tentar uma última chance antes de um adeus definitivo, acabara, num momento de exasperação, por exigir uma única

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cerimônia: que a culpada se desculpasse de joelhos, e estaria tudo resolvido! A imagem dessa cena redentora parecia-lhe fadada a augurar uma renovação do casaIJ1ento, e se transformou no tema central de suas reclamações com a companheira. E esta, depois de ficar meio desconcertada com essa exigência e de novamente ter querido ir embora, passara a ridicularizá-lo. Assim, foi pouco depois do início dessa crise que veio uma sessão em que, num tom de boa fé ultrajada, ele me descreveu mais uma vez a imagem fixa que seria a condição de seu perdão: "É só ela se desculpar de joelhos, e enfim poderá começar uma vida normal!" Foi nesse ponto que tive de segurá-lo pela manga, pedindo-lhe para ir um pouco mais devagar e me explicar o que significavam as desculpas pedidas nessas circunstâncias. (Mas não me dei conta de que, ao sublinhar dessa maneira o significante" desculpas", eu estava simultaneamente isolando o significante "joelhos", que teria serventia algum tempo depois.) Sim, que queria dizer esse pedido de desculpas concernentes a uma multiplicidade de erros, a totalidade dos quais englobava queixas tão antigas na história de sua vida conjugal que até ele havia esquecido seus detalhes? Qual era o erro feminino que ele queria purgar dessa maneira? Eu tinha fortes razões, é verdade, para isolar o "pedido de desculpas", já que ele apresentava uma impressionante analogia com seus pensamentos a respeito da mãe, que, em sua opinião, quando ele era pequeno, deveria ter-se desculpado com o marido por sua incrível maldade para com ele, a quem não hesitava em ridicularizar e aviltar em todas as oportunidades. Esse era o ponto que ele havia analisado pouco tempo antes, apercebendo-se de que atribuía à mãe uma agressividade que, a rigor, era dele - estratagema que lhe permitira, quando menino, preservar o amor pelo pai, ao mesmo tempo que o desdenhava secretamente. Ele censurava a mãe por ter-se portado com seu pai como ele mesmo teria querido fazer. Assim, não fora sem razão que o "pedido de desculpas" me havia chamado a atenção, quando ele tinha passado a recriminar na mulher - pelo menos quando ela se revestia dos adereços domésticos (maternos) - um erro que era fantasisticamente seu. As cóleras e zombarias da mãe haviam-lhe roubado seu próprio desejo homicida em relação ao pai e, por conseguinte, toda expressão do desejo feminino e da violência que ele comporta acabava por retirar-lhe seu próprio desejo; era por isso, a seu ver, nesse ponto da análise, que ele sofria de ejaculação precoce.

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Quando, algum tempo antes, ele havia desmontado essa cadeia associativa, as violentas angústias que o assaltavam cotidianamente, em particular à noite, haviam obtido um amplo apaziguamento. Mas a ejaculação precoce persistia. Então, seriam falsos os esclarecimentos trazidos por essa primeira série de associações, ou, mais provavelmente, apenas incompletos? Sem dúvida eles deviam ser pertinentes, já que a angústia havia diminuído. Mas por certo ainda continuavam fragmentados, não só porque o sintoma persistia, mas também porque a cadeia associativa interrompia-se numa contradição. Julguemos: se, como ele dizia, a expressão do desejo feminino roubava-lhe seu desejo, por que era isso acompanhado de um gozo prematuro, e não de uma detumescência? Apesar de suas explicações, um acontecimento conservava sua opacidade: como compreender a violência incoercível de seu gozo, no momento em que seu desejo lhe era retirado pela expressão do prazer feminino? Que significava o gozo, então, se sobrevinha no momento em que, no dizer dele, o desejo se furtava? Era provável que a série associativa estivesse saltando um elo, cujo ponto de união devia encontrar-se no enigma formulado pela expressão do prazer feminino: se o gozo feminino exprimia seu próprio desejo, era preciso que ele mesmo se sentisse feminilizado nesse momento, mas, diante de quem? E era exatamente esse o ponto que lhe continuava incompreensível, pois, como poderia ele ter facilidade de perceber que se feminilizava, no exato momento em que, ao contrário, exibia todos os sinais da potência viril? Assim, a situação estava bloqueada, tanto em sua análise como em sua vida cotidiana: nem mais um dia se passava sem que ele reclamasse da mulher as tão esperadas desculpas. Do mesmo modo, não transcorria mais uma única sessão sem que ele registrasse a sólida fundamentação desse pedido, bem como o mal que devia ter-lhe feito, na infância, a falta de firmeza paterna diante de sua mãe, carência que ele tomava todo o cuidado de não imitar, ao agir como agia. Portanto, ele não se comportava como o pai, mas como o pai deveria ter feito, dizia. Mas a repetição dessas demonstrações sobre o que deveria fazer um pai digno de sua função apresentou uma novidade interessante em relação a seu discurso anterior. Antes, ele evocava sua ejaculação precoce, a cada sessão, segundo descrições repetitivas. A partir desse momento, foi uma cena de sua infância (sempre a mesma, embora comportando variações infinitas) que ficou no centro de seus pensamentos: ele revisitava as diferentes situações em que a mãe havia feito chacota do pai. Esses dois pontos

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de imantação do discurso ocupavam o mesmo lugar na organização de suas associações. Acaso ele não estabelecia constantemente um paralelo entre as duas séries de seqüências, embora a primeira comportasse apenas dois personagens (ele e a mulher), enquanto a segunda abrangia três (o pai, a mãe e ele)? Caberia deduzir disso que o pai, ator da segunda série, devia realmente estar presente de algum modo na primeira, no momento de suas tentativas de relação sexual, como acabei por lhe observar? Impossível! exclamou ele prontamente, acrescentando que, se havia um aspecto desagradável na análise, era justamente querer inferir uma presença paterna por toda parte onde havia um sintoma. Deveria a vivacidade dessa resposta levar a pensar numa denegação, como se o fato de dizer "não" tivesse sempre o valor de uma afirmação? Que um analisando rejeite uma observação de seu analista não é o bastante para qualificar a denegação. Em contrapartida, a seqüência das associações permite fazê-lo com certeza, se, depois de haver negado com maior ou menor veemência uma certa proposição enunciada pelo analista, o analisando a confirma implicitamente após alguns rodeios, ou às vezes explicitamente, como se bastasse estampilhá-la com um "não" enérgico para que ela logo assuma um valor de verdade. Foi o caso de M.R., que, depois dessa exclamação, calou-se por algum tempo. Um silêncio bastante longo, seguido, como se o incidente estivesse encerrado, por uma nova descrição minuciosa de sua ejaculação precoce. Os detalhes tinham sido cuidadosamente descritos por ele mil vezes, mas, num primeiro nível, era como se a minúcia desses exames devesse finalmente lançar um exorcismo sobre aquela precipitação intempestiva ... E eis que, de repente, veio-lhe um pensamento igualmente irreprimível e, à primeira vista, ainda por cima, incongruente: ele não conseguiu impedir-se de comparar sua má sorte de ejaculador com uma diarréia! Essa imagem o surpreendeu e mais uma vez o deixou em silêncio ... Desse silêncio, e vinda de longe, emergiu então uma lembrança infantil bastante penosa. Quando ele achava já não estar pensando em nada, subitamente as imagens se apresentaram, claras e detalhadas: ele tinha uma idade que não sabia precisar, precoce, sem dúvida. De manhã cedo, todos os dias, ainda entorpecido de sono, tinha que fazer sua higiene e se vestir sob os gritos do pai, que o insultava e o ameaçava brutalmente quando ele se atrasava um pouco. Como poderia adivinhar que o pai também estava lutando contra o cansaço? E, quando lhe . acontecia irromper em prantos diante da cólera paterna, suas lágrimas

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só faziam exasperar ainda mais esse pai, despreparado para uma função que sem dúvida considerava indigna de sua virilidade, uma vez que ela deveria ter ficado entregue a sua mulher, ainda adormecida no cômodo adjacente. A tal ponto que finalmente o tom se elevava e, por vezes, choviam pancadas, a pretexto de que assim as lágrimas encontrariam um motivo um pouco mais sério para serem derramadas. Esses atos de violência lamentáveis, apesar de pouco freqüentes, tiveram um efeito funesto, acrescentando o pavor ao desajeitamento decorrente do sono. Uma cena, em particular, ficara gravada em sua memória. Num dia em que o pai tornara a perder todo o controle e batera nele, sua angústia havia-se descarregado da maneira mais vergonhosa, nas calças que ele mal acabara de enfiar, sob a forma de uma diarréia. Por uma fração de segundo, ele sentira a coisa chegando, mas, paralisado como estava pelo terror, ficara sem condições de evitá-la. Nesse ponto de suas associações, os termos empregados para evocar a defecação incoercível não puderam deixar de impressioná-lo, reproduzindo quase que palavra por palavra sua descrição da ejaculação precoce, e dando à figura paterna, na conjunção do erotismo anal com a fantasia da criança espancada, um lugar que ele acabara de lhe negar com energia. Que o erotismo anal conjuga o medo com as pancadas, ou com o medo das pancadas, é uma imagem bastante comum. A maioria dos que experimentaram um terror violento sabe que ele pode acarretar um desagradável relaxamento dos esfíncteres, aliás ilustrado pela linguagem popular quando ela evoca essas situações. E nem é preciso que haja situações de perigo extremo: muitas vezes, um perigo simbólico é amplamente suficiente para acelerar de maneira intempestiva o trânsito intestinal, embora aquele a quem isso acontece nem sempre estabeleça a relação entre a situação com que se vê confrontado e as necessidades, aparentemente fisiológicas, que o pressionam nesse momento. O interesse da cena que acabara de ser evocada por esse analisando ultrapassava essas generalidades, de um lado porque o medo associava-se com certeza a uma ameaça paterna, e de outro porque esse medo certamente fora erotizado, uma vez que foi inicialmente evocado por sua analogia com a ejaculação precoce. O terror em si, no momento em que as pancadas do pai eram iminentes, associara-se, desse modo, à precocidade de seu gozo viril, embora ele não estivesse de modo algum numa posição viril frente a esse pai fustigador.

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Se os termos do sintoma se adensavam, eles passaram a se mostrar numa contradição que parecia inextricável. Como conciliar o ato masculino da ejaculação, por um lado, com a atitude feminilizada diante da potência paterna, por outro? Não era impossível pôr em continuidade, numa mesma seqüência gozosa, a masculinidade e a feminilização que lhe abrira caminho? Impossível compreender que a precipitação do excremento pudesse corresponder a uma sodomização pelo pai, quando, no mesmo momento, o gozo manifesto era o do falo erecto. Como muitas vezes acontece, é graças a uma espécie de casualidade dos significantes que um determinado termo ou grupo de palavras vem reunir em si esse caráter bífido do sintoma, insistindo nas associações até a resolução do enigma. Foi o que aconteceu com o significante "joelhos", que até então ficara em suspenso. A sessão havia terminado na surpreendente analogia que ele acabara de constatar entre sua descrição da defecação incoercível e suas ejaculações prematuras. Desde o momento de seu sobressalto denegador, eu não o havia ajudado por outro caminho senão o de minha presença, a tal ponto seria delicado, ou mesmo perigoso, insistir numa ou noutra vertente de um sintoma que corria o risco de ser interpretado como um sinal de homossexualidade (embora se tratasse de uma feminilização constitutiva da virilidade, isto é, da castração). Quando ele voltou, alguns dias depois, a princípio parecia ter esquecido o quadro comparativo do menino trêmulo diante do pai com o homem que perdia seus recursos diante de sua mulher. Deixando de lado essa analogia, mesmo assim ele retomou o fio da lembrança infantil que tinha evocado, espantando-se com o fato de a mãe nunca haver cuidado dele na hora de seus preparativos matinais. E, logo sublinhando involuntariamente o que esse momento tinha de erotizado, interrogou as relações do pai com a mãe, que continuavam a ser um mistério para ele. Com efeito, apesar da violência feminina que o pai suportava durante o dia, aparentemente sem a menor resistência, M.R. pressentia que ele preservava, sem ter que disputá-lo, um imperium indiviso e ilimitado. A aparente marionete masculina, entregue aos caprichos e à tirania de uma megera, preservava intacta uma majestosa soberania, e esta nunca se evidenciara tão vivamente a M.R. quanto por ocasião da lembrança que lhe voltou nesse momento, a de um coito a tergo. Ele ficara particularmente impressionado com a posição elegante do pai, solidamente postado de joelhos e fornicando poderosamente a companheira, reduzida a uma submissão incondicional.

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Sem dúvida levado por sua narração, o analisando não reparou que, de uma sessão para a outra, o erotismo anal fora validado pela lembrança de uma cena primária memorizada nessa posição. 2 Portanto, era a postura do pai que havia predominado desde sempre em sua lembrança, sem que ele jamais tivesse tido a menor dúvida a esse respeito. Nada o incitou, no momento de sua narração, a comparar a posição ajoelhada paterna com o que ele vinha reclamando da mulher com tanta insistência havia semanas. Afinal, o caráter misto do significante joelhos, presente nas duas cenas, não bastava, por si só, para garantir uma proximidade de pensamento inconsciente. Um outro indício é que iria permitir o estabelecimento dessa conexão. É que, bruscamente, interrompendo sua narrativa, ele hesitou: aquela era uma cena infantil cuja imagem fora certa desde sempre, a de um pai mostrando sem rodeios a majestade de sua potência. E, súbito, no momento de narrá-la, ou melhor, logo depois de fazer uma primeira descrição dela, uma dúvida insinuou-se, como se o enunciado da palavra joelhos, por sua proximidade ainda latente das atuais exigências do analisando em relação à mulher, obrigasse a um reexame da certeza até então estabelecida. Ele hesitou. Já não sabia se o pai tinha estado realmente de joelhos. E, se não estava, em que posição estivera, afinal? Sem dúvida, por ter seu pensamento hesitado entre a pessoa do pai e a de sua mulher, ele transpôs essa incerteza para a posição ocupada por um ou por outro. E ei-lo a tentar descobrir como se deveria reorganizar sua lembrança, se ele quisesse evitar a desagradável surpresa de descobrir o pai em sua mulher e, por conseguinte, descobrir o ponto extremo em que sua feminilizáção se articulava com seu desejo masculino. Mas, afinal, em que posição podia realmente estar esse pai? E, como se sua hesitação não bastasse para lhe mostrar o caminho, um lapso precipitou-o nessa direção. Querendo dizer "Não consigo descobrir [trouver] a posição ... ", ele disse "Não consigo sentar no trono [trôner] .. .* Estranho assento real, que assim lhe foi outorgado por um inconsciente muito esperto, mas que só o coroaria por um instante, já que, segundo os termos empregados em sua família (aliás, largamente usados na linguagem popular), a expressão" estar no trono" significava" ir à privada". O erotismo anal, portanto, voltou a insistir,

• O verbo se traduziria por reinar, imperar, dominar, pontificar, destacar-se. A tradução escolhida procurou facilitar a compreensão da seqüência do texto e preservar a outra acepção (popular), citada logo adiante. (N.T.)

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indicando, além disso, qual era a posição imaginária dele no momento de sua hesitação: se duvidava assim, não era por ser ele mesmo o elo que faltava entre a posição do pai e a que queria obter da mulher, e pelo fato de.que, reinando [trônant] graças à dúvida entre essas duas figuras, ele gozava analmente com um pai sodomita, no exato momento em que era intimado a penetrar sua companheira? Sua coroa gozosa, ele a conservava por se ausentar dessa intersecção incompreensível. Esperava a solução de seus inextricáveis conflitos conjugais mediante a posição ajoelhada de sua esposa, mas, nessa posição que ansiava por obter, ele percebeu subitamente o pai fustigador, ali onde não o esperava. E, se ele pudesse dizer alguma coisa racional sobre isso, não teria que admitir que esperava do pai um gozo passivo, análogo ao que experimentava em suas ejaculações intempestivas? Na realidade, a ejaculação precoce tinha a significação de uma sodomia pelo pai. 3 Foram necessárias essas hesitações, e depois o lapso e as diferentes digressões que ele acarretou, para que o significante joelhos ganhasse todo o relevo que merecia. Não sem apresentar, mais uma vez, uma nova faceta do mesmo enigma (a castração), pois o que queria dizer a superposição entre a imagem paterna e a de sua mulher? Poderia alguém sustentar, a partir disso, um raciocínio sensato que se pudesse referir a uma complementaridade anatômica entre os sexos? Impossível, certamente, e, se o progresso analítico havia deslocado sensivelmente a questão, ele teve então de reconhec~r sua feminilização no momento em que gozava, o que não tinha nenhuma correspondência com um ato cuja representação, de qualquer modo, continuava a ser viril. Se a ejaculação e a diarréia eram o direito e o avesso de seu gozo, a atividade da primeira não se dava, no entanto, sem a passividade da segunda, e ele ficou preso nesse dilema até que se lhe impôs um novo pensamento, sem que ele o compreendesse, aliás, embora, no momento de enunciá-lo, tivesse que adotá-lo prontamente, pelo honroso compromisso que ele lhe oferecia. É que, pensou M.R., o pai sempre o preterira em favor de sua irmã, dois anos mais velha, brilhante soh todos os aspectos, um raio de sol apaziguador num lar agitado pelos dramas domésticos. O analisando lembrou-se de que ela fora, para ele, aquela que era preciso imitar, fosse a título do trabalho intelectual, fosse da graça ou da sedução. E essa idéia pareceu-lhe subitamente luminosa, porque lhe permitiu reconhecer uma identificação feminina que ele já não podia renegar, mas que lhe era quase impossível atribuir-se diretamente, à guisa de uma conseqüência de seu amor pelo pai.

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M.R. preferiu deixar este último em seu papel de personagem aparentemente bonachão, na verdade brutal, fonte de um prazer renegado, já que era ocultado pela violência. Sua irmã dava consistência a seu gozo bifronte, e era por se identificar com ela para se fazer amar que ele tinha que se feminilizar no amor. Em vez de reconhecer o gume da função paterna, ele preferiu transigir, graças à mediação da irmã que lhe oferecia a constelação familiar. Inexata, no fundo, mas rica em conseqüências, essa explicação permitiu-lhe, a partir daí, explicar a si mesmo alguns fenômenos que até então tinham permanecido herméticos. Por muito tempo, ele havia sofrido não apenas de ejaculação precoce, mas também, circunstância agravante, não experimentava nessa ocasião nenhum prazer, nem sequer o que é gerado pelo alívio da libido, cuja queda de tensão era prontamente substituída pela angústia. Mais tarde, quando suas práticas sexuais haviam como que se instalado num certo ritual, ele observara que, quando sua mulher tinha a boa idéia, no curto lapso de tempo concedido por sua desgraça, de lhe introduzir velozmente um dedo no ânus, a ejaculação decerto era tão precoce quanto antes, mas, pelo menos, ele gozava intensamente. Agora, podia explicar a si mesmo esse estranho prazer de uma feminilização paradoxal por sua identificação com a irmã, que, como ele houve por bem acrescentar mais uma vez no momento dessa descrição, fora a única pessoa da fratria realmente amada pelo pai. Através disso, a sodomia latente do ejaculador intempestivo pareceu aceitável, ao passo que, sem ela, a ejaculação não era, de maneira alguma, sinônima de gozo. Uma primeira parte do trabalho analítico permitiu destacar uma seqüência de pensamentos segundo os quais ele reivindicava da mulher desculpas por um erro que, a rigor, era seu. Graças a esse procedimento, rechaçando para a mulher um desejo de que ele mesmo era culpado, ele se livrava de uma identificação feminina que correspondia a sua representação da castração. Mas, ao fazê-lo, não gozava mais somente a mulher exposta ao desejo do pai o fazia, e ele ejaculava sem prazer às primeiras manifestações do seu. O pedido de desculpas, porém, tinha uma vantagem, que era preservar sua masculinidade, rechaçando a identificação para a mulher, de modo que esse casal só constituía realmente uma mistura (masculino-feminino) sob a condição da discórdia. Para eles, a diferença sexual só se especificava graças a uma briga constante. E, se a mulher tivesse preferido desculpar-se, se houvesse concordado em fazer o jogo da culpa para ter sossego, é mais

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do que provável que a guerra tivesse recomeçado logo depois, sob outros pretextos. Num segundo tempo, o trabalho analítico mostrou uma superposição do pai e de sua mulher: o inimigo já estava dentro da cidadela que ele pretendia construir, reforçando a expugnabilidade do sintoma por vias que ele desejaria que fossem as da cura. Eis aí um disfarce que seria totalmente incompreensível, se esquecêssemos que o caminho da heterossexualidade, em geral, serve-se da via da homossexualidade que é preciso o amor do pai, e portanto, a feminilização (a castração), para que a virilidade se afirme em seguida!

A linha demarcatória da duplicidade paterna Serão todos os homens ejaculadores precoces, dentre os quais alguns, à força de exercícios e manobras propiciatórios, seriam suscetíveis de ser um pouco menos precoces do que os outros, demonstrando uma certa continência diante do que o gozo feminino comporta de incomensuravelmente excitante? Haverá uma simples diferença quantitativa entre aquele que perde todo o controle em alguns segundos e o amante valoroso, para quem uma noite inteira de caça custa apenas um cartucho? Mostraremos que, ao contrário, existe uma diferença qualitativa entre, de um lado, aquele cujo gozo, por mais masculino que pareça, é não menos passivo e se produz no momento de uma penetração que lhe evoca a sua, e, de outro, aquele que desfere o golpe que já não consegue conter num momento inteiramente diferente do prazer, no qual enfrenta um outro enigma, o do orgasmo feminino. "Experimentalmente", se assim podemos dizer, essas duas modalidades do prazer masculino se distinguem, mas, para esclarecer essa diferença, convém. nos perguntarmos porque o orgasmo feminino pode provocar a ejaculação. Será a morte que atravessa as gerações, bem como a força que está presente no nascimento, que ressoam no grito orgástico? Não seria porque esse extremo do prazer feminino evoca o esvaecimento do indivíduo em algo maior do que ele, ilustrando a perda que todo ser humano admite, a de sua vida, em jogo no momento do ato de reprodução? O dom da vida ao preço da vida evoca, assim, o "assassinato do pai", já que seu nome simboliza a transmissão. Há, pois, uma diferença qualitativa, para voltarmos agora à ejaculação, entre aquele para quem o coito evoca a sodomia de um pai violador,

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no instante da penetração, e aquele que mata esse pai no momento em que o orgasmo feminino anuncia sua morte, ou melhor, sua passagem à espiritualidade. O reconhecimento dessa espiritualidade paterna é tão difícil, fora do âmbito religioso (reconhecimento religioso que não resolve nada, aliás, uma vez que, ao contrário, a pecaminosidade do místico aumenta com sua espiritualidade), que é um milagre, propriamente falando, que todos os homens não sejam ejaculadores precoces. Em nome do que não é carnal, a reprodução da espécie é acompanhada, portanto, de alguns prazeres. Como já mostramos, o erotismo não põe em cena a pulsão de morte pelo fato de, tal como os animais, farejamos a morte ao nos reproduzirmos. Se Tanatos junta-se tão firmemente a Eros, é mais na medida em que a passagem do auto-erotismo ao erotismo implica uma fantasia mortífera, que nos leva a enfrentar "o pai". Na verdade, essa entidade tão vaga, que há de ter merecido as aspas ao longo de todas estas páginas, só deixa transparecer o rigor com que rege a vida sexual na trama libidinal das religiões. Ela nunca é tão clara como quando se expõe no aparato sumamente prático de gozo da teologia, do qual as místicas femininas, no interior de nossa cultura, ofereceram tantos quadros extasiados. Entre a ejaculação precoce e a que vem no momento oportuno, dois pais diferentes se revezam. Sem dúvida, essas duas figuras da paternidade estão ligadas, uma vez que primeiro é preciso a presença do pai violador para que a simbolização de sua potência se articule com uma segunda representação paterna, desta vez totalmente espiritual. O" pai" é testemunha da irrupção do desejo, e cada ato sexual se compara a essa entidade, ainda mais difícil de enfrentar por ser inominada. Em outras palavras, é preciso, sucedendo-se na própria ordenação do prazer viril, primeiramente a castração (a feminilização) por um pai onipotente, para que, depois, a simbolização dessa potência permita que haja uma apropriação viril dela, prostrando por terra o fantasma mais ou menos irrequieto de um pai morto. A duplicidade das funções paternas, portanto, é vetorizada num sentido único, do pai totêmico ao pai espiritual, e é nesse espaço estreito que o ejaculador precoce diferencia-se do que age com vagar. Atravessar esse espaço permanece atual todas as vezes que o ato sexual se produz e, desse modo, nenhum homem está livre de uma surpresa sintomática. Entretanto, existe uma certa estabilidade: quem nunca soube desligar-se da dominação paterna experimentará, por um tempo tão longo quanto o de sua escravidão, os inconvenientes da ejaculação precoce, seja ela acompanhada de prazer ou não. Quanto ao homem

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que não tem apenas um pai, mas dois (como Édipo), ele navegará no campo da duplicidade assim delimitado, nunca seguro de sua vitória, de vez que esta é sempre passível de ser questionada, conforme as circunstâncias e conforme as parceiras que o destino lhe escolher. Quem ontem foi um artista do prazer, em seu refreamento extremo, talvez conheça amanhã, sob a influência de um amor tresloucado, aflições semelhantes às do adolescente a quem um olhar ou um roçar da amada tomam incontinenti. De fato, o assassinato do pai é uma fantasia atual, que pede para ser repetida, e a realização de um desejo que encontra em sua execução sua dimensão colérica reclama a cada vez a presença do vivo. É o caso do descomedimento místico de Don Juan, cujo desejo se extinguia quando ele punha em sua lista o nome patronímico de uma de suas conquistas. É o do renascimento do desejo, que, para ser renovado, reclama as mesmas preliminares, exige que se atravesse de novo o espaço que vai do pai violador a seu assassinato simbólico, condição de renascimento dessa espécie da qual cada membro é portador de um nome. O sintoma do neurótico ancora-se no espaço aberto pela duplicidade paterna, no entre-dois dessas duas figuras ligadas, a do sodomita e a do santo. A fixação sintomática depende da distância que cada homem mantém entre essas duas figuras paternas (segundo um gradiente que define, além disso, diferentes graus da neurose). Para quem superpõe as duas figuras paternas e desconhece como matar propriamente o pai (num ato tão próprio quanto um nome), inibido que ele fica por seu amor e sem ter ainda percebido o uso indolor que pode fazer do símbolo, a mulher que goza se ausenta, e essa ausência perante um pai lhe relembra, senão sua covardia, ao menos que seu amor o paralisa a ponto de conter seu ato. A impossibilidade de matar o pai, no momento de sua ruidosa aparição na cena erótica, tem uma conseqüência imediata: ou bem surge a impotência, decorrente da presença daquele que interdita o gozo, ou bem a ejaculação precoce provém da irrupção de um pai que não apenas interdita, mas que vem gozar até mesmo na voz das mulheres, precipitando o gozo daqueles que a escutam.

Mitologia da referência paterna adequada A partir do momento em que um sintoma encontra um ponto de apoio na mitologia paterna, é inevitável vê-lo ilustrado nas ficções mais

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corriqueiras. As montagens míticas ou ficcionais que correspondem à fantasia do ejaculador precoce são tão numerosas quanto quisermos, embora a vertente da sodomia pelo pai só seja evocada, na maioria das vezes, com prudência. O filme americano Sea of love 4 inclui-se nos chavões de um gênero que pretende que somente o crime e o amor ainda possam interessar ao espectador, antecipadamente fatigado por qualquer esforço de pensamento, e que somente essas duas cartadas vitoriosas lhe permitam identificar-se com certeza, desde que uma técnica impecável garanta o domínio da imagem. Entretanto, o roteiro evocado propõe uma montagem da violência que difere dos outros sucessos do gênero, que muitas vezes fazem questão de dar como verdadeira a ficção de que é impossível fazer um assassino monstruoso demais ou por demais banhado em sangue. Ao contrário dessas carnificinas desagradáveis, o interesse desse filme reside na dúvida, que persiste até o fim, quanto ao agente do crime e quanto a sua motivação, com isso oferecendo uma cômoda duplicação fantasística ao espectador, que pode reconhecer ali o que beira cotidianamente seus atos e suas próprias angústias. "Sea of !ove", mar de amor, é o título de uma antiga canção de sucesso que o assassino faz suas vítimas escutarem antes de executá-las, e sua melodia rouca acompanha os diferentes episódios da trama. O filme começa pela acumulação estereotipada de várias cenas impressionantes. Vemos um homem nu, deitado de bruços numa cama. Ele balbucia protestos parecidos com os de quem, gozando com demasiada intensidade, à beira da ejaculação precoce, na verdade, pede que parem o movimento que ultrapassa sua potência. Essa atitude exprime uma emoção tão intensa que, a princípio, fica-se convencido de estar assistindo à prática de um onanista que sinta aproximar-se a fase terminal de seu prazer. Soa então um disparo, sem que vejamos quem atirou, porque, ao olhar o homem deitado, estávamos no mesmo lugar do assassino. Não sabendo coisa alguma sobre este nem sobre seus motivos, poderíamos supor, por exemplo, que se trata de um maníaco da pureza, decidido a purgar a terra dos masturbadores que a poluem. Mas também pode ocorrer-nos a idéia de que não se trata de uma cena de masturbação. A vítima poderia muito bem estar no meio de uma relação amorosa com uma parceira, que o abate traiçoeiramente numa posição em que talvez tenha acabado de pedir que ele se instalasse, a pretexto dos jogos eróticos. Em suma, o mistério é completo, e tem início uma investigação policial que se segue a

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um tríplice assassinato praticado nos moldes dessa encenação (um serial killing • de que a América, país de grande consumo, parece ser apreciadora, tão frágil é a margem que vai do fetichismo da mercadoria à perversão). O investigador, herói do filme, logo adquire a convicção de que uma mulher é responsável por essa série de assassinatos. Todas as vítimas responderam a um anúncio de jornal, caracterizado pelo fato de que, longe de se contentar em solicitar uma aventura amorosa, pedia um certo veio poético ao amante buscado. O justiceiro, por conseguinte, prepara uma armadilha, passando ele mesmo a utilizar a coluna dos anúncios, e acaba encontrando, entre as mulheres que respondem, aquela por quem se apaixona, além de ela se transformar rapidamente em suspeita. À medida que progride a investigação, ele se recusa a crer na culpa da moça, a despeito do acúmulo de indícios - como, por exemplo, a presença na casa dela de todos os anúncios correspondentes aos assassinatos, ou como quando ele se dá conta de que ela anda armada. Não é bem que ele se recuse a crer naquilo de que é quase obrigado a estar convencido, mas seu amor o faz duvidar reiteradamente. (A não ser que essa própria potencialidade assassina esteja na origem de seu amor.) A trama segue seu curso e, segundo a armadilha que ele mesmo imaginou, chega a vez de o herói ser a vítima seguinte, se essa mulher for realmente a assassina. Uma vítima tão designada, já que ele atendeu positivamente aos critérios do anúncio de jornal, quanto condescendente, uma vez que ele ama essa mulher, a despeito ou por causa da ameaça que ela faz pairar sobre ele. Assim, ele chega ao âmago da cilada que armou, segundo seu papel de justiceiro, e que é também a cilada que ela lhe prepara, se for a assassina. Os dois irão se encontrar segundo as duas vertentes de que nasceu seu amor, e somente o amor aparece em primeiro plano, já que a moça não sabe que ele é policial e ele não tem certeza da culpa dela. Os dois protagonistas, assim, armam uma cilada mútua, até a cena final, em que o herói espera que aquela que se tornou sua amante venha assassiná-lo. No momento desse desfecho e contrariando todas as expectativas, é um desconhecido que comparece ao encontro. Ele tenta assassinar aquele a quem surpreende, mas só depois de obrigá-lo a se despir e a imitar na cama uma cena de amor, prelúdio que lhe é necessário para

• Assassinato em série. (N.T.)

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matar. Na verdade, esse ciumento furioso é o ex-marido da suspeita, abandonado por ela por causa de sua violência. Desde então a vinha perseguindo, e os anúncios eram seu meio de abater, um após outro, aqueles que pudessem ser amantes de sua ex-mulher. Mais além da mulher amada, na sua sombra, seguindo-a por toda a parte, estava o assassino, o desconhecido violento que a havia possuído no passado. E é por ter-se arriscado à morte que o justiceiro, protegido pela fantasia edipiana que aspira a uma distribuição equitativa do gozo, assegura-se de seu amor, não sem quase acidentalmente eliminar, no decorrer da luta que se segue, aquele que talvez já não seja seu rival, mas nem por isso é menos ameaçador. Como muitas ficções, quando suas narrativas são bem conduzidas, essa história pode prestar-se a diversas leituras. Não poderíamos, por exemplo, reconhecer nela a trama edipiana do assassinato fantasístico que todo homem tem que cometer para possuir uma mulher? Ou ainda, o risco enfrentado como preço do que uma mulher exige de um homem antes de aceitá-lo como amante? A duplicidade do amor, o que poderíamos chamar de" fantasia do justiceiro" (tão em voga na era moderna desde a história de Tebas), o desconhecido e a violência do pai primevo, eis aí um punhado de temas que poderíamos desenvolver a partir desse roteiro. Retenhamos apenas a cena preliminar, pelo que ela evoca da ejaculação precoce, quando um homem que parece estar fazendo amor é abatido por trás por um personagem cuja identidade ignora, talvez uma mulher, como indicaria sua postura, mas que é finalmente reconhecido como aquele que foi um primeiro amante, rejeitado e esquecido paterno, nesse sentido. Assim como o conjunto do filme explicita a brevidade de sua primeira seqüência, também o ejaculador precoce representa num instante toda a complexidade da fantasia da qual uma versão é assim exposta.

Simplicidade de princípio, complexidade de execução Como parece bem-feita essa elucidação do mecanismo da ejaculação precoce! Casando harmoniosamente um exemplo clínico, uma referência cultural cinematográfica e diversas considerações teóricas que não estorvam com uma enxurrada de citações freudianas e lacanianas (as quais, no entanto, facilmente encontrariam seu lugar aí), acaso ela não traz convicção? Tudo parece indicar que agora possuímos um modelo

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sólido para compreender o bloqueio desse sintoma, e que doravante será fácil ajudar os machos excitados até a incontinência a moderarem seus excessos! A manobra de fato se afigura fácil, já que parece suficiente efetuar uma disjunção das funções paternas e, em seguida, permitir que a primeira seja simbolizada pela segunda. Eis aí uma operação que deveria produzir-se quase que sozinha, graças à rigidez do dispositivo psicanalítico, não é verdade? De fato, o dispositivo analítico opera - por princípio - uma disjunção das funções paternas: o analista encarna uma potência tutelar, e portanto, ocasionalmente paterna, de quem se espera a salvação, e por força dessa representação, não deixa de ser desprezado - coisa que o pagamento de cada sessão permite simbolizar automaticamente. Duas outras características deveriam concorrer para essa orientação salvadora. Por um lado, o analista acha-se numa posição de impotência confessa quanto à sedução sexual. Tem essa reputação, oficialmente. Os ditos mais excitantes ou os sonhos escabrosos de que ele é protagonista podem ser-lhe contados, sem que esses galanteios rebuscados tenham a menor conseqüência. E, por outro lado, o ato de falar participa da simbolização evocada pela transferência assim atuada. A orientação perversa contrariada desse dispositivo, portanto, deveria bastar por si só para separar as funções paternas e simbolizar uma pela outra. Aliás, nota-se que muitas vezes é isso que acontece, sem que o analista tenha que proferir a mínima palavra, quer suas sessões sejam longas ou curtas, e quer ele se faça remunerar em cheque, em espécie, mensalmente ou no fim de cada sessão. Com bastante freqüência, a vida sexual do analisando modera-se sem maiores dificuldades e, entre outras coisas, o ex-ejaculador precoce realiza proezas com que é o primeiro a ficar totalmente atônito (ou então, simetricamente, uma mulher que tinha do orgasmo apenas um conhecimento incerto, quando nf\o solitário, descobre suas delícias). Infelizmente, surge r.Qm muita freqüência uma complicação, ainda mais rebelde na medida em que é majorada pela majestade da própria transferência. É que, se é certo que o tratamento permite simbolizar o assassinato de um pai, colocado num estado de impotência pelas coerções do próprio dispositivo, o que assim se simboliza, todavia, permanece num perigoso equívoco, em função da posição paterna visada pela fantasia. Com efeito, o desejo de eliminar o pai pode ser uma conseqüência da sedução exercida por ele - no sentido de que o sujeito alienado por seu amor, e conseqüentemente feminilizado (seja

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ele homem ou mulher), pode desejar defender-se desse sedutor potencialmente violador. Mas esse sujeito também pode desejar a morte do pai por este ser um rival em relação à mãe. O objetivo desse desejo distingue-se inteiramente do primeiro: por exemplo, se, toda vez que se apresenta um sedutor Ímportuno, uma mulher mata nele o pai, segundo os mil procedimentos próprios de seu sexo (recusando-se depois de se haver oferecido, sendo frígida, preferindo repentinamente seu melhor amigo etc.), está claro que ela não terá eliminado um rival ao agir assim. O assassinato fantasístico de um pai sedutor, portanto, não é a mesma coisa que o desejo de eliminar um rival. É verdade que o pai nunca é tão sedutor e violento quanto no momento em que desdenha quem o ama e volta seu amor para o Outro que é a mãe. Entretanto, é importante distinguir bem esses dois tempos da fantasia, ativo e passivo, porque são eles que constituem a dificuldade da transferência no caso do sintoma aqui examinado. O menino é seduzido pelo pai na medida em que este o protege do que há de invasivo em seu amor pela mãe. Ele o ama na medida em que é assim desembaraçado da impossibilidade de seu próprio amor. Mas, uma vez que ele mesmo tenha instaurado esse dispositivo de salvaguarda, com toda a força de seu amor, passa a detestar esse pai, porque ele será um rival, nos moldes de seu desejo. É a partir dessa declaração de guerra que a função paterna é ativamente simbolizada, e o pai passa de sua função de violador (apassivador) para a de pai espiritual (morto). Mas, nem por isso as duas seqüências sucessivas deixam de se opor num ponto, já que uma depende de um desejo de conquista ativo (a rivalidade) e a outra resulta de uma defesa passiva (contra a sedução). A distinção entre as vertentes ativas e passivas da fantasia é importante, porque é homogênea à diferença simbólica entre os sexos: se a "bissexualidade" é uma noção que possui alguma pertinência, é menos pelo prisma dos resíduos anatômicos do que pelo ângulo de uma atividade fantasística que oscila entre uma posição feminilizada e um humor guerreiro basicamente viril. O desejo assassino contra o sedutor diz respeito ao sujeito feminilizado, enquanto o concernente à rivalidade qualifica o masculino. Por isso, é importante notar em que vertente de identificação sexual encontra-se um sujeito quando ele registra sua agressividade em relação a um personagem paterno. E continuaríamos aproximativos ao situar na rivalidade edipiana o que é uma defesa contra a sedução.

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Última conseqüência dessa distinção: o desbloqueio do sintoma é dos mais espinhosos quando a agressividade do analisando dirige-se ao pai violador, já que qualquer gesto de autoridade por parte do analista, por mais indulgente e neutro que ele seja, reforçará a figura paterna, bem como, conseqüentemente, o sintoma, como é o caso confesso na histeria (feminina ou masculina). Tanto assim que a simples presença do analista poderá complicar uma situação já precária, a ponto de bloquear, ao menos por algum tempo, o processo analítico. Não será difícil separar as funções paternas a partir de tal circuito? Com efeito, o assassinato fantasístico desloca o amor para um pai unicamente espiritual, e como, salvo no que concerne à exceção mística, não existem outros pais na terra senão homens sexuados, estes tiram um lucro desse amor excessivo, que não lhes é realmente dirigido. Os homens, portanto, graças a essa nova queda terrestre e retroativa, são investidos de um sentimento que se dirige, para além deles, a um pai morto. São sedutores graças a uma qualidade que, na maioria dos casos, certamente não lhes pertence: a de não se interessarem pelo sexo. Enganador por definição, portanto, o homem amado fertiliza mais uma vez o território do sintoma, e não vemos a quem o amor possa ser votado com toda a segurança, deixando de lado algumas exceções de pura convenção, entre as quais se incluem os padres e os psicanalistas (e é óbvio que, a não ser pelo respeito devido à mencionada convenção, essas exceções não resistem a um exame sério). É por isso que criam dificuldade a separação das funções paternas e a simbolização de uma pela outra: a função do violador é infinitamente reencetada pela sede de amor gerada pelo pai espiritual, já que ele acaba por se encarnar. Assim, a simbolização jamais consegue produzir-se de uma vez por todas. Nesse trajeto, a cada vez, o amor renasce, sempre tão puro quanto cortês, virando as costas desde o começo a seu tormento carnal. E, a cada vez, ele é impelido para suas trincheiras e empurrado até voltar a cair em sua perversão, que lhe estende deliciosarr.ente os braços no fim de um caminho que ele julgava ser o da saída.

NOTAS 1. Para avaliar a banalidade dessa fantasia, basta reler Mademoiselle Else, de Arthur Schnitzler.

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2. Neste pon,o, convém sublinhar a freqüência, nas neuroses obsessivas, da lembrança da cena primária numa posição a tergo, talvez porque ela conjugue mais facilmente o erotismo anal com o gozo sexual. 3. A generalidade desse benefício oculto da ejaculação precoce poderia ser mostrada pela seriação de diversos casos clínicos, mas seu fragmento mais sucinto é o de um paciente que começou a analisar essa particularidade depois de observar que exclamava "Merda!" a cada ejaculação precoce. 4. Sea of love, filme norte-americano de 1989 (diretor: Harold Becker), baseado num romance de Richard Price.

O desejo de ter um filho oferece uma solução pacífica?

Por motivos que decerto se prendem ao recalcamento do que ele tem de traumatizante, e a despeito da experiência corriqueira, o amor tem a reputação de corresponder a um ideal de harmonia. A ausência de conflitos deveria acompanhar a vida amorosa, pelo menos na medida em que supomos que o amor consiste em chapinhar no açúcar. E aqueles que só com grande dificuldade realizam esse ideal normativo esforçam-se, ao menos por algum tempo, por se conformar ao pacifismo que, segundo crêem, rege harmoniosamente as relações dos outros, daqueles que se amam de verdade. Contudo, o ideal de harmonia prevalece na proporção inversa à realidade comum - um ideal do qual o nascimento de um filho é freqüentemente considerado a prova. Assim, ter um filho pode afigurar-se uma solução para a desarmonia ou o mal-estar das paixões prestes a sufocar, trazendo uma justificativa para vidas comuns desabitadas por seu ímpeto inicial. Entretanto, o desejo de ter um filho e o eventual nascimento de um rebento não levantam para o casal novos problemas, pelos quais ele não esperava? Por que haveria o filho de trazer uma solução pacífica? Os animais se reproduzem sem consciência nem ruminações metafísicas, e durante todo o tempo em que seu corpo lhes permita fazê-lo, sem se preocupar com as circunstâncias ou as dificuldades prováveis. A progressão das estatísticas mostra que o mesmo acontece com o conjunto da humanidade. Que há de mais natural do que ansiar por uma descendência? E nem é preciso um levantamento aprofundado para constatar que o desejo de ter um ou vários filhos move a maioria dos seres humanos. Nada parece mais normal do que querer ultrapassar 138

o desejo de ter um Jillro r,ferece umu solução pucíficu?

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o egoísmo da própria existência: elegância de um gesto característico do mais modesto dos homens, que, sem frases inúteis, assim se curva à potência da morte, mas vencendo-a. E há, por último, a economia do procedimento, que lega à descendência o mistério da renovação da vida, mais forte que o dom do nome, dos bens ou de qualquer prerrogativa. É freqüente em nossas sociedades, depois de uma adolescência prolongada, que a realização de tal desejo seja adiada para depois. Entretanto, ele passa então a dominar secretamente a vida amorosa, mesmo quando ela parece das mais atormentadas. E quando, muito raramente, a recusa de qualquer procriação é proclamada, não apenas por ora (o que é comum), mas para sempre, essa própria recusa não deixa de organizar o conjunto da sexualidade, da qual revela o ponto mais crucial. Portanto, é contrariando o senso comum que buscaríamos na procriação a realização de sabe-se lá que desejo que pudesse ser mais profundo do que aquele de que a vida simplesmente invoque a vida (não tendo a potência vital outro objetivo, nessa questão, senão a realização de sua própria potência, nem outra regra senão sua própria perenidade). Entretanto, apesar dessas considerações que colocam a espécie humana em harmonia com a obstinada exuberância dos animais, ou até dos vegetais, ainda é duvidoso que a simplicidade de uma pulsão de vida, mais forte do que tudo, reja a reprodução humana. Que há de "natural" na sexualidade humana? Seu resultado aparente, isto é, a reprodução da espécie, parece corresponder ao desígnio superior de uma "natureza" que impeliria, por toda parte, ao aumento e à multiplicação de seus sujeitos. E, no entanto, como não ver que a escolha do próprio sexo, no que concerne aos seres humanos, só ocasionalmente corresponde à anatomia, e que essa coincidência aproximativa invalida de antemão qualquer conaturalidade do apetite sexual? A partir do momento em que estudamos as exceções e as particularidades, as questões se acumulam. De modo que acabamos por nos perguntar o que terá garantido tamanha longevidade a uma espécie cuja genitalidade está presa em contradições psíquicas que, examinando bem, parecem insuperáveis. A heterossexualidade - condição sine qua non - está longe de ser uma disposição natural do ser falante. Prova disso é que numerosas civilizações, dentre as mais refinadas, não consideravam a atração do homem pela mulher uma norma de vida digna de ser valorizada. O amor, tal como o cantamos - reputado por

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alguns como sendo apenas uma invenção dos trovadores franceses e italianos do século XII-, coloca a mulher numa posição tão sacralizada (digna conseqüência da invenção cristã, na qual nosso erotismo continua a se apoiar), que nada, no sentimento que lhe é dedicado, parece destiná-la a ser mãe (a não ser sob a condição de permanecer virgem). Acaso existem muitos romances de amor - ou filmes - em que, na ocasião de um primeiro encontro, o herói declare sua atração pela heroína manifestando-lhe seu desejo de ge_rar um filho nela no menor prazo possível?

Divergência de princípio entre o amor e a reprodução O amor nunca se declara em nome da procriação; que é considerada apenas uma conseqüência não essencial e, além disso, aleatória. Nossa mitologia implica que o homem e a mulher se encontrem por um motivo sentimental. É somente a título de conclusão que podemos ler, em nossos contos, que "Eles se casaram e tiveram muitos filhos ... " Com essas belas palavras terminam nossas lendas e nossas fábulas, e o que acontece depois desse final já não parece ser da alçada de Eros. Essa posição tão cristã do amor heterossexual apaga qualquer relação desse sentimento com a paternidade e a maternidade. Que há de mais comovente que o amor cortês e seus sucedâneos modernos? Que emocionante é o tempo de suspensão em que a beleza feminina, tão intocável quanto novamente virginal, requer os cuidados de um amante disposto a enfrentar todos os perigos para ser digno de sua bela! (E os perigos que se acumulam no céu de nossa efêmera liberdade sexual -considerando-se a transmissibilidade de certos vírus - renovam mais uma vez essa façanha, estabelecendo as regras do safe sex!*.)

Nesse espaço, o desejo se aguça e se embriaga com sua própria busca, tão mais glorificado quanto mais permanece insatisfeito. Nada de novo desde o cântico de Dante a Beatriz. Essa valorização do desejo, tão impressionante, por exemplo, no mito moderno de Don Juan, e nunca tão poderosa como quando a figura da mulher é mais inacessível do que intercambiável, situa um lugar-comum literário, artístico ou

• Sexo seguro. (N.T.)

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publicitário tão poderoso, tão "natural", por sua vez, que seu encanto oculta a estrutura em que ele se apóia e que ele reproduz. Não que convenha ansiarmos por nos livrar de tão doce veneno. É que estamos tão mitridatizados que já não vemos sua função nem suas conseqüências. Sua curtíssima embriaguez fica suspensa, qual uma doce lembrança, no zênite de nossos amores, e sua efemeridade persevera em nosso pensamento. O amor, tal como o cantamos, idealiza uma mulher Maiúscula, como condição prévia da sexualidade comum. Que significa essa idealização, esse investimento característico da mulher amada, às vezes tão violento que eventuais defeitos de sua anatomia ou falhas desagradáveis de seu caráter são esquecidos, como que por encanto? A idealização não concerne simplesmente às qualidades efetivas e mais ou menos reconhecidas da mulher amada, quer se trate de sua beleza, seu charme, sua inteligência ou sua gentileza. Na verdade, todas essas qualidades são sempre relativas e não podem contentar o absoluto do Ideal. (Além disso, sua apreciação pode oscilar de um instante para outro.) Se nenhum desses critérios merece ser preservado, que significará a idealização, senão que uma certa qualidade é atribuída a uma mulher, embora ela não a possua? O amante enceguecido superpõe a qualquer preço a crença numa qualidade que não é própria dessa pessoa, mas que corresponde ao que ele espera encontrar nela. Porventura, o ideal não é aquilo que foi desejado e que, por conseguinte, continua a sê-lo todas as vezes que as condições para isso parecem reunir-se? E o desejo as reúne com tanta facilidade! Assim, a mulher amada é investida de uma qualidade independente de suas características efetivas, um atributo como que sobrenatural e suprassensível, uma dessas qualidades de que não há muitos casos: em particular, ela é investida pelo amante com a qualidade de ser virgem, ao contrário do que foi o estado deplorável de sua mãe, de quem ela assim se distingue radicalmente (pelo menos enquanto não se une, por sua vez, à condição materna). Postular a virgindade como o valor que definiria a idealização talvez faça sorrir em nossa época, na qual essa virtude parece pouco valorizada. Entretanto, longe de ser o florão encantador da noite de núpcias, próprio das épocas em que a administração do simbólico não se dava sem um certo peso, a virgindade que importa é, antes de mais nada, efeito da própria idealização, isto é, da cortina de fumaça que permite ao rapaz sair discretamente de sua família, uma cortina de fumaça que

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separa a mãe da mulher. Daí resulta o aforismo, pleno de esperança, de que uma mulher é virgem para todo homem que a ame (a idealize). Pensando bem, na verdade, a virgindade pode ser conquistada tantas vezes quantas corre o risco de se perder. Não se trata propriamente de que uma mulher saiba recusar-se ao homem que ama, por alguns momentos ou por muito tempo, como se o hímen lhe estivesse reservado. Se se tratasse apenas desse estratagema, recompor a virgindade seria uma operação simples e das mais difundidas. E o mesmo aconteceria com o subterfúgio em que consistiria, numa mulher, dar a entender ao amante que ele é o primeiro homem que ela jamais conheceu em tudo o que há de essencial, que nunca o amor, o gozo ou ambos foram tão maravilhosos quanto com ele, e que aqueles que o antecederam não tiveram realmente importância. Qual homem deixa de acreditar prontamente nessas afirmações? E, se duvidasse, estaria errado em ver nelas uma mentira digna da duplicidade feminina, pois o fato de lhe conferir tal prioridade corresponde, naquela que a afirma, tanto a uma amnésia do passado quanto a uma necessidade de seu gozo atual. Na realidade, longe de recorrer a tais procedimentos, é antes por seu simples movimento que a idealização produz o himeneu, segundo o interessante duplo sentido que essa palavra possui em nossa língua, onde significa, ao mesmo tempo, a barreira da virgindade e o laço conjugal.* Se a mulher é idealizada por possuir uma qualidade que deveria ter sido a da mãe, a barreira que está na origem da idealização consiste menos na característica fisiológica da virgindade do que no sinal da interdição: ele concerne ao que caracteriza a "filha do pai", aquela que não pode pertencer a outro sem sua permissão, e que continua a fazê-lo sub-repticiamente até depois das núpcias. Nesse sentido, a idealização de que se trata tanto pode arranjar-se com uma virgindade declarada quanto contentar-se com uma fantasia, ou ser reconstruída graças à presença de um traço "do pai", qualidade sutil mas fácil de descobrir ou de inventar na mulher a ser amada. O amor confere, ao mesmo tempo - nisso sendo fiel aos cânones do cristianismo - , uma inesgotável potencialidade virginal e a marca de um pai espiritual. O exemplo clínico seguinte mostra um desses casos em que o amor idealiza seu objeto.

• A palavra é hymen, que tem as acepções de "hímen" e de "casamento", usada na expressão anterior, faire hymen. (N.T.)

o desejo de ter wnfillw oferece uma solução pacífica?

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A idealização do amor como conseqüência do recalcamento Somente o amor desvairado justificava a existência desse rapaz e, todas as vezes que era tomado por esse sentimento, ele sempre lhe cedia tudo. Estar apaixonado, aliás, segundo suas palavras, era a única experiência em que seu talento era realmente solicitado. Quanto aos outros acontecimentos de sua vida, obrigações, família, estudos, trabalho, ele os ia suportando sem muita paciência, submetendo-se a eles na medida do necessário, sem hesitação mas sem entusiasmo. Na realidade, vivia apenas à espera do amor fulminante, o único capaz de lhe descortinar a beleza das coisas, de reduzi-lo a uma vacuidade deliciosa, que o tornava escravo de uma aparência, um olhar ou uma voz. Quando ainda era pequeno, já levara a família à loucura, ao desaparecer numa tarde de verão e não mais reaparecer por vários dias, dormindo ao relento ou nos celeiros de uma aldeia vizinha. E isso com a única finalidade de mal entrever uma menina um pouco mais velha que ele, que não morava longe de sua casa e estava em veraneio como ele, embora fosse mais estreitamente vigiada - a amada, aliás, ficara mais assustada que lisonjeada com o sentimento que havia provocado. Em várias ocasiões depois disso, seus estudos tinham sido interrompidos por um único objeto, o amor. Além de nem sempre terem sido felizes, essas paixões ocupavam todo o seu tempo e se desenrolavam como se o enamoramento devesse ser excludente de qualquer outro interesse, para ficar à altura do que se esperava dele. Seria o sintoma desse rapaz o de um donjuanismo de conseqüências inoportunas? Tal qualificativo não convinha nem um pouco, porque ele nunca perdia tempo, na rua, nos bares ou em seus locais de atividade, procurando aquela que pudesse ser o próximo objeto de sua paixão. Preferia abster-se desse tipo de busca estafante, sendo mais tímido e tendente a se isolar do que conquistador. Mas, onde quer que fosse, era possível que um olhar ou um gesto feminino chamassem sua atenção e dele se apossassem repentinamente, e então ele sentia o peso de uma potência mais forte do que tudo. Tinha que se precipitar de imediato e enveredar por essa espécie de engrenagem em que nada mais tinha importância, a não ser a proximidade daquele olhar e daquele gesto. Por certo ele teria podido, não sem recorrer à fortuna familiar, passar assim a maior parte do tempo em que alguém se torna homem. Mas a repetição e a violência desses momentos em que se dispunha a se despojar de tudo, a começar por ele mesmo, em benefício de mulheres

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que, aliás, não lhe pediam tanto zelo, acabaria por levá-lo a interrogar essa inquietação. Vá lá que ele escrevesse a uma mulher - e uma vez por ano, quando muito - que só valia a pena viver por ela. Mas, quando o emprego de uma fórmula tão extrema quanto essa repetiu-se em duas ocasiões, entre abril e setembro, com uma sinceridade que eliminava o fingimento ou o calculismo, e quando, entre a mesma primavera e o mesmo outono, essas paixões repetidas ocasionaram o abandono de dois concursos universitários, é compreensível que aquele que fora fulminado por esses sentimentos se formulasse algumas questões na entrada do inverno, menos porque só restassem cinzas num terreno queimado por Eros do que pelo fato de que a espera de um novo amor continuava a impor sua lei, sempre igualmente vigilante e sempre igualmente insaciável. Foi nessas condições que se formulou uma demanda de análise que não deixou de evocar um apelo ao policial, pois esse rapaz realmente pareceu falar-me de seu pendor como que à espera de que eu o repreendesse. E, embora o propósito da iniciativa freudiana nunca tenha sido o de livrar quem quer que seja do mal de amor, ela também não pode convencer do contrário os que pensam que ela é feita para isso, ou, pelo menos, para pôr ordem nas questões do coração. Nesses momentos, o analista deve vestir sem reclamar as roupas que lhe são estendidas, inclusive as de guarda da vida sexual, de guardião dos bons costumes e do patriarcado. Quando esse rapaz veio ver-me pela primeira vez, lembro-me de ter tido o sentimento de que ele não desejava nada menos do que uma sólida vigilância. Também me aflorou a idéia de que a função policial atribuída a mim logo de saída devia, além de lhe fazer falta há muito tempo, também interessar de algum modo a seu erotismo. Como quer que fosse, pus meu quepe na cabeça com resignação, não sem esperar que os incidentes do percurso me permitissem trocar de roupa o mais depressa possível. Como nada lhe interessasse tanto quanto o amor, foi com seus incidentes que ele quis me entreter, a princípio. E como, apesar dos tormentos provocados por Cupido, nada é mais valorizado que esse sentimento em nossa cultura, onde se consideram bem-aventurados os que o experimentam, não foi sem uma pitada de complacência que ele se entregou rapidamente a isso. Tanto assim que, ao longo da narração sucessiva de suas conquistas, de suas noites de desvario, da embriaguez erótica aliada à estética de situações contrastantes, não ficou muito clara a utilidade de uma escuta atenta, a tal ponto aquilo tudo parecia proporcionar-lhe o mais vivo prazer. No fundo, estaria ele exprimindo

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a mais ínfima queixa a propósito desses momentos deliciosos? É verdade que o que descrevia estava bem próximo de uma espécie de instante de despersonalização, onde ele já não era mais do que desejo diante da mulher amada, de quem se tomava um escravo submisso, obedecendo ao menor de seus caprichos. Entretanto, esse estado não lhe ocasionava remorsos, mas, antes, uma alegria selvagem, tão mais violenta quanto mais ele podia abandonar tudo por seus amores. Ele era capaz de abandonar tanto seus projetos mais ambiciosos quanto suas preferências mais modestas. Pois, não lhe acontecera muitas vezes encerrar-se em casa por dias inteiros, à espera de um simples telefonema, e sem outra ocupação além dessa espera? É claro que o quepe me pesava muito sobre as orelhas, pois esse exercício logo me pareceu enfadonho e, às vezes, era-me difícil reprimir um bocejo. Alguns detalhes, contudo, logo me pareceram obscuros, e resolvi explorá-los. Abstendo-me de responder de antemão a questões que pareciam evidentes, acabei por me indagar o que era, exatamente, que tanto o fascinava no momento da conquista, a ponto de ele perder até mesmo o sentido de sua própria presença (característica que o contrastava com as imagens presunçosas e narcísicas de Don Juan). E também me perguntei por que aqueles amores tão belos mergulhavam com tamanha freqüência no esquecimento, da noite para o dia, embora esse rapaz, agradável e passional, mais conhecesse o sucesso do que o fracasso. E eu tampouco compreendia porque, entre essas duas possibilidades, o fracasso parecia cativá-lo muito mais do que o sucesso. Considerar" masoquista" o gosto pelo fracasso é um rótulo psicológico que não explica nada. Tão logo uma mulher o fazia sofrer, involuntariamente ou mostrando-se cruel, a dor infligida era capaz de retê-lo muito mais do que a afeição das que cediam a ele. Quando sucedia a uma de suas conquistas confessar-lhe seu amor, essa declaração era suficiente, às vezes, para que o rapaz sentisse produzir-se nele uma espécie de dilaceração. "Quando uma mulher pronuncia a palavra 'amor' e confessa sua paixão por mim, balanço a cabeça como se quisesse dizer não, mas é tarde demais. Fico muito sorridente, é claro. Mas sinto uma espécie de desolação, como se, ali onde tudo poderia começar, viesse anunciar-se um fim certeiro e mais ou menos rápido. Produz-se como que uma fratura definitiva. A mulher que eu amo precisa ser minha dona, eu preciso ser integralmente possuído. Quando sou eu quem manda, está tudo acabado. Produz-se uma espécie de ciclo infernal que eu não

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compreendo, porque essa confissão amorosa representa, na realidade, o que pareço estar buscando ... Esse ciclo me faz pensar num sonho repetitivo da minha infância, onde me aparecia um fantasma, ou, mais exatamente, uma mulher desconhecida, coberta por um véu. Eu puxava o véu para descobrir seu rosto, e aí ela desaparecia. Noutras versões desse sonho, eu via o mesmo fantasma, coberto por meu próprio lençol. Nesse caso, eu ficava descoberto em minha cama, tomado pelo terror, até que acordava e, aliás, na maioria das vezes, minhas cobertas haviam efetivamertte caído no chão. Parei de ter esse pesadelo quando devia estar com uns quinze anos. Aliás, estou-me dando conta, ao lhe contar isso, de que essa interrupção deve ter correspondido mais ou menos ao fim do episódio de misticismo intenso que marcou o começo da minha adolescência, pouco antes que minhas paixões se tornassem mais terrenas. Essa é uma lembrança engraçada, aliás, porque pus fim a meu gosto pela Igreja depois de uma peregrinação a Chartres, onde as cenas da Paixão de Cristo tinham sido teatralmente representadas por uns estudantes. Meu interesse por Deus evaporou-se em prol da Virgem Maria, transubstanciada numa jovem estudante (na ocasião, coberta por um véu, de fato) que, pouco depois, foi uma de minhas primeiras amantes ... bom, na verdade, estou enfeitando um pouco, ela foi a primeira ... " Sem perder tempo em trocar meu quepe por uma mitra, observei então o que se desenhava graças a essas associações. A figura da mulher digna do enamoramento tornou-se mais clara, através da evocação do fantasma virginal que precedera a primeira amante. Como sempre acontece quando uma conjectura parece - unicamente pelo dito do paciente - ter algum valor de verdade, resta ainda que ela tenha sua prova sintomática, não ocasional, mas confirmada. Foi por isso que se tornou necessário obter alguns esclarecimentos mais técnicos sobre o desenrolar de seus amores, mesmo que a complacência d9 relato sofresse um pouco com isso. Assim, informei-me, tão logo isso foi possível, sobre o curso mais exato dos acontecimentos e sobre os detalhes de um erotismo cujas particularidades tinham sido deixadas na obscuridade, em prol da beleza dos sentimentos. Usando o tato necessário nessas ocasiões, fiquei sabendo como ele se saía em suas relações sexuais, bem como as reações de suas parceiras. Pois não há apenas amor no que uma mulher pode confessar a um homem que a ama apaixonadamente; há também seu gozo, que ela exprime com maior ou menor clareza, e pelo qual testemunha ou não algum reconhecimento ao amante.

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Foi assim que fiquei sabendo que, se ele tivesse de recensear as companheiras com quem seus amores haviam durado mais de algumas semanas, nenhuma parecia ter tirado do desenrolar da ação muito prazer sexual. Sim, era isso, nenhuma gozava realmente. Assim, já que a impertinência de minhas questões lhe permitia dar-se conta disso, será que a frigidez feminina não exercia uma certa atração sobre ele, já que, afinal, essas eram as mulheres que ele preferia? E essa qualidade de relativa frieza (que não deixava de excitá-lo, dando-lhe a esperança de conseguir fazê-Ias gozar no dia seguinte) não era uma maneira de preservar uma parcela de virgindade·? Sem dúvida, até esse momento ele não prestara muita atenção ao que havia considerado um detalhe, avaliando que os sentimentos eram mais importantes. Mas, não teria ele querido encontrar nessa característica um sinal da pureza delas, traço que, aliás, só adquiria valor por constituir uma série? Essa particularidade ganhou ainda mais relevo na medida em que, nesse momento, ele se perguntou se, em contrapartida, o prazer feminino não lhe causava medo. E então recordou vários episódios em que havia abandonado uma ou até várias de suas amantes sob um pretexto estranho ... Sim, era isso! Ele tivera de fugir rapidamente de algumas de suas parceiras, que, além dé seu amor declarado, gozavam ruidosamente. Uma, em especial, ele se lembrava, entregara-se ao prazer com tamanha violência, e ele ficara tão inexplicavelmente angustiado depois disso, que não havia conseguido acabar a noite com ela. Tinha ido embora, pretextando uma súbita necessidade de dar uma caminhada. Até então, embora valorizasse o erotismo, ele sempre achara que seu desejo por uma mulher estava ligado a suas qualidades estéticas e, mais ainda, espirituais. A partir daí, teve total amplitude para determinar com maior precisão qual era, na realidade, o lugar do que ele chamava de uma qualidade espiritual, um encanto. De modo que só fez evidenciar-se com mais clareza porque esse traço sutil podia desvanecer-se tão bruscamente. Com efeito, se lhe bastava obter o que alegava querer para fugir disso, se a qualidade que ele buscava desaparecia tão logo ele a conquistava, era porque ela dizia respeito, senão à virgindade, pelo menos a uma forma de pureza quanto ao gozo. Quando uma mulher deixava de se manter distante e, ao menos em seu imaginário, ele a possuía, ela perdia prontamente o que o rapaz acreditava ser uma qualidade espiritual. Mas, na realidade, o declínio de seu desejo, longe de corresponder a uma generalidade poética concernente a sabe-se lá que essência inacessível da amada, correspondia, simplesmente, a uma

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pulverização da pureza que ele lhe atribuíra e que, num mesmo impulso, tomava de volta. Não era esse o ideal que ele encontrava em seu fascínio pelas mulheres inacessíveis? " ... Muitas vezes falei de certas mulheres cujo olhar me eletriza. Agora posso precisar a razão dessa espécie de hipnose. Esse olhar que me subjuga não é dirigido a mim, não vê nada ... É a perfeita indiferença a tudo o que pode haver de humano, sua ausência do mundo e, em particular, do mundo do sexo, que me arrebata nesse nada. Um olhar assim poderia fazer-me pensar em minha mãe, evidentemente ... Ela ficava doente com freqüência, e então passava os dias na cama, com os olhos voltados para a janela, sem que nada pudesse distraí-la de sua indiferença, daquela espécie de tristeza inacessível que me angustiava, porque eu me perguntava o que estava acontecendo com ela, o que eu devia fazer para ajudá-la a sair daquilo. Mas, não se trata simplesmente disso, porque, fora desses momentos de isolamento bizarro, minha mãe sempre me demonstrou uma grande afeição. Eu era, dizia ela, o primeiro em seu coração, superava em sua afeição todos os outros seres humanos. E é nela que eu penso, com o rosto voltado para a janela, quando evoco esse olhar ausente de certas mulheres, que me faz abandonar tudo para ser o que elas estão vendo. É o estado de um filho desarmado, diante do provável sofrimento mudo da mãe, que isso me lembra ... "Essa aproximação com esse estado vazio da minha infância me faz compreender melhor essas espécies de momentos de loucura em que eu consinto em tudo, por menos que uma mulher a quem amo o peça. Estou sempre disposto a abandonar tudo quando me apaixono. No entanto, tenho certeza de que as mulheres por quem me apaixono diferem completamente de minha mãe num ponto essencial - e, ao dizer isso, não estou falando, em absoluto, da relação sexual... é um paradoxo incrível que vou lhe confiar. Para essas mulheres, sou muito mais filho do que para minha mãe. Isso o surpreende, não é? Com minha mãe, tenho a impressão de que nunca me senti filho. Aliás, como é que eu poderia caracterizar minha situação em relação a ela? Pela dependência? Impossível, porque, na realidade, eu me sentia responsável por minha mãe. Era isso que me angustiava quando eu a via triste. Eu tinha a impressão de estar encarregado dela. Quando volto a pensar nisso, agora, falando com você, parece-me até que, de certa maneira, ela estava sob a minha proteção ... Isso foi absolutamente verdade, aliás, já que, certa tarde, havendo um professor adoecido, não tive aula e voltei para casa mais cedo: encontrei minha mãe em casa com um de seus amigos. Por um motivo que não compreendi na hora, ela me pediu

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para não dizer nada a meu pai. Portanto, ela estava sob minha proteção ... Eu poderia tê-la denunciado, se quisesse bancar o guarda ... " Qual não foi minha surpresa, nesse instante, ao ouvir o representante da lei vir à tona nesses termos em seu próprio discurso, quando eu tivera, em minha primeira conversa com ele, o sentimento muito claro de que ele estava me pedindo para pôr ordem em sua conduta! À primeira vista, essa impressão não fora sem fundamento, já que ele se queixava de estar dilapidando seu tempo por causa de suas paixões amorosas. Entretanto, não teria sido ridículo adotar em relação a ele uma atitude moralista, a pretexto de atender a sua demanda superficial de enquadramento? Ainda mais que, nesse momento, revelou-se que ele mesmo tinha sido um guarda, embora alistado a contragosto, naquele momento da infância - que deve ter sido determinante - em que havia protegido a mãe com seu silêncio. Atado pelo amor, não fora ele intimado a participar da traição a seu pai? O apelo ao guarda que ele me dirigira tão explicitamente na primeira entrevista, portanto, destinara-se a livrá-lo desse fardo policial e a disciplinar, antes de mais nada, o desejo de sua mãe, que pesara sobre ele com um peso esmagador e que continuava a obcecá-lo todos os dias, ainda que sem seu conhecimento. Era como se o desejo materno não tivesse conhecido outro limite senão o amor do filho, que havia ditado a lei. De modo que, depois de livrá-la da autoridade paterna, ele destinara fantasisticamente a mãe, segundo seu desejo infantil, a uma pureza virginal, qualidade que depois teria de procurar nas mulheres, como se ela oferecesse a garantia mais certeira de ele ser amado com exclusividade. Não apenas esse rapaz buscava numa mulher uma qualidade fantasisticamente atribuída a sua mãe, como também, no prolongamento dessa busca, era inevitável que se angustiasse com o que o gozo feminino tem de desmedido para aquele que é seu objeto. Assim, ele temia o prazer de uma mulher a ponto de fugir dele, depois de havê-lo buscado, sem ver de que modo seu próprio desejo estava comprometido com uma queixa que ele nem sequer conseguia formular. E com uma violência ainda maior, na medida em que a frase da mãe, pedindo seu silêncio, privara de eficácia sua fantasia de eliminar o pai (guarda muito prático nessas ocasiões, no entanto), uma vez que a havia realizado. No exemplo que acaba de ser dado, o gozo feminino era temido cm nome do Ideal. Do mesmo modo, será que o amor votado a uma mulher não corre o risco de atravessar uma zona de turbulência a partir do momento em que ela se torna mãe? Por idealizá-Ia segundo um desejo

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antigo, o homem que ama o faz a título de seu desejo edipiano recalcado, que, quando criança, o fazia desejar uma mulher que fosse sua propriedade exclusiva. Nessa medida, o amor idealizado, do lado masculino, não pode buscar a paternidade sem correr o risco, no mesmo movimento, da perda desse amor. De fato, os lugares simbólicos mudam, no momento do nascimento de um filho. Nesse instante, o amante deixa de ser o menino, e já não lida com a mesma mulher depois que ela se torna mãe. Reciprocamente, aliás, ele deixa de se assemelhar àquele que foi, ao ser investido de uma identidade paterna. Quando o homem às voltas com essas mudanças de condição não consegue interessar-se por nada além do amor desvairado, ele tem então que idealizar imediatamente uma outra mulher, ou, pelo menos, deixar por algum tempo de ter uma ligação sexual com a mãe de seu filho, até que volte a idealizá-la, operação realizável com a ajuda do recalcamento.

Por que ter um filho nessas condições, senão em razão direta do recalcado? Não é a virgindade pura do amor (sua separação da sexualidade) proporcional à severidade patriarcal de uma lei que coloca a mãe fora do campo do desejo, por ter sido sua origem? Esse desejo freático, que eclode sem que se saiba de onde vêm suas águas, nem a que se deve a força de sua irrupção, afasta por princípio, portanto, tudo o que o liga à noção de reprodução, ou mesmo de sexualidade. Assim, permanecem ignorados, no deslumbramento de um amor tão idealizado quanto o exige o recalcamento, os laços secretos que, da virgindade materna ao amor puro, situam o desejo de um filho como um enxerto oculto e de aparência acidental. Como um fio de cabelo no oceano do amor puro, advém aos que ontem se amavam sem pensar no assunto o desejo de ter um filho amanhã. Em que circunstâncias pode surgir-lhes esse desejo? Freud, como se sabe, acabou por chegar à conclusão de que era à guisa de reparação da castração que a mulher queria ter um filho, e que ela desejava a realização desse anseio com aquele que fora o suposto agente dessa castração, isto é, "um pai". É desse pai mítico, de "um pai", que ela espera um filho, tão certo como é feita para ser amada. De fato, se for amada, ela o será graças à admissão de sua incompletude. Esse sentimento, portanto, se ela não o recusar, irá reme-

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morar-lhe sua castração, seu agente e o que ela esperou dele. Nesse sentido, o amante atual reativa obrigatoriamente o amor do pai (assim como todas as suas contradições). Para a amada, a força do desejo desdobra o amante entre ele mesmo e esse pai errático, esse fantasma que a torna desejável. E seu desejo de um filho sucede, pois, ao desejo sexual do homem graças a cujo amor a figura paterna terá ressurgido. "Esperar um filho do pai", segundo a consagrada fórmula freudiana, supõe esse desdobramento, já que a mulher não há de confundir seu pai com seu parceiro. Se fizesse essa confusão, aliás, só se deixaria desejar para melhor recusar, juntamente com o erotismo, o filho de um pai que, por ter-se tornado objeto sexual, não mais o seria. Assim, o muro do amor é cimentado pela interdição da qual provém. Quando um homem quer ser pai e se empenha em realizar esse anseio, tal desejo lhe provém de uma posição infantil. De fato, ele começa por amar uma dada mulher, por motivos dos quais ignora quase tudo, e segundo o processo de idealização (de recalcamento) já evocado. Assim, deseja tornar-se pai a partir de uma posição infantil, porque é filho. Dizer que a maioria dos homens procria na condição de filho explica a complexidade das funções paternas. Do ponto de vista da função simbólica, e quando gera um filho, todo homem terá estado apenas a serviço da paternidade, já que nunca terá feito outra coisa senão transmitir uma vida e um nome que também foram dados a ele mesmo. Nesse aspecto, ele será filho para sempre, honrando sua linhagem, pagando sua dívida sob essa forma contingente da reprodução. Ao fazê-lo, apesar desse papel de doador do nome, a função simbólica da paternidade não deixará de ter sido integralmente assegurada. Com efeito, aquele que tiver sido o suporte dessa transmissão funcionará como pai para seu filho, embora não seja" Pai" de nenhum outro modo senão nessa relação. Ele continua servo da função que assim garante às cegas, filho digno de seu próprio pai e sem ter consumado nada além de um dever filial. Nesse aspecto, somente os filhos reconhecem a eficácia da função simbólica, sendo o pai aquele que dá ensejo a esse reconhecimento (que ele não pode conferir a si mesmo). Ser pai apenas no que tange à própria descendência não tem somente uma implicação para frente, mas também uma implicação para trás, a de só ser pai "como filho". Dupla implicação do impossível da paternidade, da qual é preciso distinguir cuidadosamente as duas vertentes (que são menos uma frente e verso a que correspondam a neurose infantil e a neurose adulta do que o resultado de uma posição bifronte

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na linhagem: de um lado, o homem é filho de seus pais, e de outro, funciona proporcionalmente como pai para sua descendência). Eis aí uma série de proposições que parecem verdades primordiais, mas essas evidências talvez requeiram que sublinhemos algumas de suas conseqüências. É que os problemas que concernem à vertente infantil da neurose colocam-se nesses termos. Com efeito, se é verdade que todo homem nunca é pai senão como filho, isso ainda não nos diz como filho de quem ele se desincumbirá dessa função. Claro, filho de seu pai e sua mãe, mas o problema da neurose está justamente em nunca situar esses dois termos no mesmo plano. Seja durante um ciclo bem curto, seja por um longo período de sua vida, o neurótico prefere, mais ou menos secretamente, seu pai ou sua mãe, e às vezes vota a um dos dois uma franca inimizade, enquanto o outro é objeto de sua solicitude. A essa diferença de afeição, sujeita a reviravoltas em ocasiões precisas, corresponde uma diferença de deveres. Assim, o qu_e é devido a este ou aquele membro do casal parental varia sensivelmente. Um dá ensejo a uma reclamação (concernente ao dinheiro, por exemplo) no momento em que o outro é coberto de presentes, que testemunham o sentimento de uma dívida a seu respeito. Harmoniosamente - a título de resolução do Édipo - , a solução de um filho do pai para a mãe é excepcional. É nesse sentido do pagamento de uma dívida que um filho pode vir à luz, quer tenha sido fantasisticamente concebido do pai ou para a mãe daquele que é seu genitor. Esperar um filho do pai ou tê-lo para a mãe não tem o mesmo sentido do ponto de vista da dívida, ainda que, em ambos os casos, o resultado seja uma espécie de ódio pela mulher ou pelo marido. No que concerne ao primeiro caso, uma vez nascido o rebento, a mãe portadora I torna-se sempre demais, considerando o desejo do filho-pai. Haveria motivos para inquietação quanto ao destino que ela correria o risco de ter-lhe reservado, se, por seu lado, ela não tivesse fantasias equivalentes - complementares, no melhor dos casos-, fantasias que são as que a ajudaram em seu desejo de ser mãe. De fato, ela também, de modo muito neurótico, pode secretamente esperar seu rebento do pai ou dedicá-lo à mãe. Que um filho gere um bebê, não na mãe, mas para a mãe, decerto não pertence aos desejos conscientes daqueles a quem isso acontece, embora os sinais de tal desejo sejam às vezes tão patentes que nos perguntamos como pode sua significação escapar aos principais interessados. Além disso, é claro que esse desejo não é unilateral, e que o

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pai ou a mãe do filho-pai ou da filha-mãe também estarão, um ou outro, implicados nessa complexa constelação. É o que acontece com a avó que oferece regularmente ao filho-pai um presente (uma pequena soma em dinheiro) no ... Dia das Mães. E o faz a pretexto de que, assim, ele poderá dar dinheiro a seu neto, que poderá presentear sua mãe. O sentido dessa festa pretende que, nesse dia, o neto ofereça um presente a sua própria mãe, enquanto o marido desta deve fazer o mesmo com a dele. Se a avó presenteia seu filho, é porque considera que este fez um filho para ela e, por conseguinte, gratifica-o a título de um agradecimento que nem sequer lhe é dirigido no Dia dos Pais. Nesse caso, poderíamos perguntar-nos como irá a criança localizar o operador do Nome-do-Pai. Mas ela terá ampla oportunidade de fazê-lo, porque seu pai, não tendo sido feminilizado nessa operação, permanecerá como um rival para eia. Além disso, a criança também terá a seu dispor o referenciai do avô paterno, que terá ficado fora dessas implicações. O mesmo acontece quando um homem anseia por ter um filho "do pai". Essa fantasia o habitará segundo a relação feminilizada que os filhos mantêm com o pai ao menos por algum tempo, e da qual só se livram depois de um longo combate, vindo sua virilidade afirmar-se apenas através, ou melhor, graças a essa passagem pela feminilização (a castração). É quando o amor do pai fica preso nessa etapa (aproximativamente designada na literatura analítica pelo termo Édipo invertido) que o filho pode desejar presentear o pai com um filho. Esta última constelação apresenta um risco particular, embora seja apenas resultante da fantasia de sedução histérica, do lado masculino. Na verdade, a relação feminilizada de um pai com seu pai implica uma anulação da função paterna, mais radical ainda na medida em que, sendo o avô situado, por causa disso, como um sedutor, ele já não garantirá nenhum referencial do Nome-do-pai. Assim, é muito freqüente constatar que uma criança psicótica tem um pai tão mais maternalizante quanto mais tenha feito tudo, não apenas para romper o laço conjugal, preservando o filho, mas também para expulsar da cena a mulher que foi a mãe portadora, assim ocupando em sua fantasia uma posição feminilizada em relação a seu próprio pai. 2 Entretanto, ter um filho para o pai só adquire uma feição inquietante quando não há simbolização da sedução, segundo aquilo que, afinal, constitui o comum da filiação masculina. Existem várias funções paternas, contraditórias por definição. O pai que interdita o gozo da mãe difere daquele que dá o nome. A primeira

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função significa uma declaração de guerra, enquanto a segunda é a assinatura do armistício e a troca de garantias. De modo que um mesmo homem não pode reunir em sua pessoa, sem problemas, móbeis contrários. Esse inevitável desdobramento da paternidade formaliza-se conforme diferentes paliativos, assim gerando o espírito religioso ou, noutros lugares, certas particularidades da filiação, que merecem ser sublinhadas. Assim, por exemplo, e muito comumente numa família, o pai genitor exerce o papel do rival poderoso para o filho, enquanto o avô deste representa o que há de pacificador no reconhecimento da filiação (constelação que reúne no mesmo território os dois pais que Édipo teve). As diferentes funções paternas do complexo de Édipo, como aliás indica o mito, podem não estar concentradas numa mesma pessoa (como é o exemplo mais freqüente nas famílias modernas). A possibilidade de o avô desempenhar a função do pai simbólico (aquele que dá o n.Jme), enquanto o pai genitor fica restrito ao papel de rival, permite estabelecer uma repartição amiúde harmoniosa das funções paternas no seio de uma mesma família. Assim, os filhos nutrem pelo avô paterno um amor de qualidade diferente, como se encontrassem junto dele uma garantia como que purificada da filiação do nome. Do mesmo modo, um pai pode pedir a seu próprio pai, mais ou menos conscientemente, que garanta essa função, como se ela nunca fosse tão bem garantida quanto ao ser duplicada dessa maneira. É o caso do pai que, no Dia dos Pais, exorta os filhos a oferecerem um presente a seu próprio pai, assim reconhecendo sintomaticamente o lugar que atribui a si mesmo na filiação. Esse ato não implica, de modo algum, que ele considere não estar à altura de seu papel, nem que se identifique com os filhos (como pensara inicialmente esse analisando). Ele apenas situa o espaço duplo em que cada homem que procriou é e não é pai, na medida em que pode ser tomado por uma dúvida todas as vezes que é investido por seu filho de uma dupla função, a qual, por um lado, implica sua morte, e por outro, exige que ele imponha uma ordem que ele mesmo não subscreve (faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço). Assim, é compreensível que procure pleitear, mais além de sua pessoa, uma garantia em relação ao que sua própria palavra comporta de incerto e arbitrário. Chega-se, assim, à instauração de uma constelação dupla, que, apesar de um profundo mal-entendido, pode estabilizar-se por muito tempo. Um homem e uma mulher se amam, segundo o ímpeto de um amor que, apesar de tão exogâmico e desvairado quanto queiramos, não deixa

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de continuar a obedecer às regras que deram ao desejo sua forma e seu objeto. Proporcionalmente à força e à verdade do vínculo amoroso, o filho resultante do desejo que ele oculta terá sido, de um lado, esperado do pai (da filha-mãe) e, de outro, querido pela mãe (do filho-pai). O mal-entendido não provém em absoluto de um "erro", pois os dois amantes amaram-se conforme a verdade em que foram unidos pelo que afinal os separa, germinalmente, desde os primórdios de seu encontro. Dizer que a partir de então eles são desunidos pelo que motivou seu encontro não significa que tenham de se separar efetivamente, mas que terão de atravessar um espaço violento para se reencontrar. E, se não puderem fazê-lo, terão que viver num rancor que, no entanto, não exprime nada além de seu próprio desejo. Eles permanecem ligados pelo que detestam neles mesmos e no outro, isto é, pela alteridade de seu próprio desejo.

Só provirá a exogamia do recalcamento? (Algum dia nos livramos da família?) M.A., por exemplo, estava casado há muito tempo, e o filho nascido dessas bodas logo chegaria à idade da razão. Sua união nunca tinha sido realmente feliz. Sempre fora atormentada e agitada por dramas minúsculos e reconciliações precárias, prorrogada na iminência de uma disputa que ele esperava que fosse definitiva, sem que tivesse nada a ver com isso. É que, na realidade, a perspectiva de uma separação o assustava e se apresentava como um buraco negro em que ele preferia não pensar. Assim, ele vivia num mal-estar latente a que sequer sabia dar nome, pois havia um paradoxo: na verdade, sua mulher lhe agradava tanto quanto no primeiro dia e, por seu lado, manifestava sentimentos idênticos. Nada corria a contento, embora tudo parecesse destiná-lo à felicidade. Ainda mais que seu filho estava se desenvolvendo bem, embora a tristeza ambiental não deixasse de influir em seu humor. Até sucedia ao menino insistir cm ir morar com um ou outro dos avós, pelos quais manifestava uma afeição expansiva e confortante. Em suma, M.A. nem sequer dispunha de um pretexto plausível em que ele mesmo pudesse acreditar e que desse a seu mal-estar a dimensão de um drama autêntico. Faltava-lhe o ponto de apoio de algum incidente violento que desse sentido à infelicidade sorrateira que o acabrunhava. Tão logo saía da residência do casal, ele pensava na mulher com afeição,

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e nunca lhe acontecia, no curso de seus pensamentos cotidianos, fazer o menor projeto - férias, viagens, casa de campo - que não incluísse a presença dela. Mas, assim que tornava a cruzar a soleira da porta, à noite, mal passado um momento de calorosa reconciliação, as nuvens voltavam a se acumular. O ritual do jantar tornava-se insuportável, com os copos tilintando desagradavelmente num silêncio difícil de romper, e o barulho da mastigação aumentava a tensão, de modo que a deglutição de cada garfada era um parto para todos. E era com alívio que, segundos depois da sobremesa, o jornal televisionado das oito horas abria sua janela para as catástrofes ocorridas no mundo durante o dia, que davam um lastro muito provisório ao mal-estar ambiente, com isso proporcionalmente transmudado numa relativa felicidade. Logo se tornou muito claro que aquela situação não podia perdurar. O que restava de sua sexualidade, morna e furtiva, basicamente espaçada e requerendo a ajuda do whisky e da penumbra, logo naufragaria na atonia total, apesar de alguns gestos de ternura que, aliás, nada tinham de excitante. As lágrimas noturnas da esposa, que ela não sabia explicar, e os domingos embrutecidos por um sono ocasionado pelo tédio davam o toque final a um quadro desolador, que era preciso abandonar. Fugir, sem dúvida, mas, que direção tomar? Foi nessas condições que aos poucos se instalou uma idéia obsedante nas ruminações de M.A. Uma idéia perfeitamente lógica, em tais circunstâncias: ele precisava divorciar-se, e sem se deixar deter pelo fato de que não tinha para isso nenhum motivo de espécie alguma. Mas, uma idéia já não tão lógica: ele só podia conceber esse divórcio sob a condição de continuar a viver com a mulher, ou com a ressalva de tornar a se casar com ela num futuro próximo. Por si só, o projeto de se divorciar para voltar a se casar já modificou sua vida e quase lhe deu uma certa alegria, a tal ponto esse programa lhe pareceu inovador. Acaso esse plano não era válido para outros que não ele, aplicável como era a todos aqueles tristes casais ao lado de quem ele andava, pressentindo neles um abatimento semelhante ao seu? Nada é mais animador que uma grande ambição, quando se pressente que ela é coletivamente libertária! No entanto, se essa idéia lhe havia restituído uma certa confiança na vida, passar ao ato, da noite para o dia, parecia-lhe impossível. Era preciso imaginar etapas, pelo menos censurar algumas pequenas queixas, propor um acordo a sua mulher, com quem seria preciso justificar-se, e essas diversas perspectivas retiravam-lhe de antemão toda a alegria que ele mal acabara de reencontrar. Precisava aconselhar-se com alguém. Mas, com quem po-

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deria desabafar, a quem relatar semelhante projeto, sem desencadear prontamente o sarcasmo ou o riso? Com quem podia falar, a não ser com aquela que sempre fora sua confidente, isto é, sua mãe? Ele lhe diria duas palavras sobre suas intenções, prudentemente, nesse fim de semana. É, isso era o melhor, e ele o faria quando fosse levar-lhe, como de costume, a roupa suja do netinho para lavar, além de algumas de suas roupas pessoais, graças às facilidades permitidas pelas dimensões da máquina de lavar materna. Aí está, portanto, esquematicamente reconstituído, o quadro que M.A. me descreveu. É que uma inspiração de última hora levara-o a se abster de falar sobre seu projeto com a mãe, preferindo recorrer aos serviços de um desses confidentes mercenários que são os analistas, para examinar mais friamente a questão. E, para começar, não pude deixar de lhe confirmar o quanto ele tivera razão em preferir bater à minha porta, em vez de correr o risco de grimpar a máquina de lavar. Pois, acaso não era o paradoxo do sintoma, em toda a sua acuidade, que aparecia no amor, quando um homem declarava querer divorciar-se para enfim poder encontrar sua mulher? E, como achei que sua inspiração estava bem orientada, também o aprovei quando ele evocou a idéia de uma separação. Sucede que não anotei a construção exata que ele empregou ao me confiar seu projeto, mas, como o fez na mesma frase em que acabara de dizer que por pouco não o anunciara a sua mãe, ele compreendeu que eu realmente aprovava uma separação, mas da pessoa com quem havia inicialmente desejado examinar essa solução. Ou seja, da mãe. Ele me confiou, mais ou menos, que tivera "a intenção de falar em divórcio com a mãe". E, como lhe respondi vigorosamente que já era tempo de considerar essa solução, o possível equívoco sobre a pessoa apanhou-o tão abruptamente que, meses depois, ele ainda ria disso. Nesse meio tempo, teve toda a liberdade para descrever, com os detalhes necessários, as circunstâncias dos primeiros anos de seu casamento e as do nascimento de seu filho, que, a pretexto da ama-secagem, fora confiado por quase dois anos a sua mãe. Fora durante esses anos que havia surgido uma hostilidade cada vez mais declarada entre a sogra e a nora, cada qual disputando com a outra os horários de presença junto ao berço, arrancando uma da outra as fraldas por lavar e iniciando longas controvérsias a propósito dos cardápios das refeições e dos preceitos educativos. Não sem que a família da mulher também participasse. Essa família, aliás, só entrara na batalha com certo tempo de atraso, pois fora contra a vontade do pai que a moça havia contraído

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matrimônio. O atraso fora rapidamente compensado, no entanto, pois o avô, compreendendo depressa que uma guerra insidiosa estava sendo travada, tomara a defesa da filha, embora ela não pedisse nada. De modo que as duas famílias acabaram se desentendendo por completo, declarando-se como pretexto a distribuição dos períodos de férias com o menino, períodos esses que tinham sido litigiosamente distribuídos (numa discordância que adquirira ainda mais amplitude por corresponder a divergências doutrinárias sobre a higiene esfincteriana). Esse fundo familiar venenoso, que meu analisando havia até então banalizado, considerando-o um contexto corriqueiro, adquiriu subitamente um novo relevo. Seu amor contrariado pela mulher, por ocasião do qual não transpirava nada dessa constelação nefasta, não impedia, de modo algum, que as determinações simbólicas incidissem com todo o seu peso. Como ele pôde aperceber-se então, o desejo de sua mãe não deixara de ter algo a ver com seu anseio de ter esse filho, não obstante o amor que ele sentia pela esposa. E também lhe pareceu, sem que ele pudesse dizê-lo em seu lugar, que, se sua mulher havia tentado fazer uma escolha exogâmica ao tomar por marido um homem profundamente alheio a sua cultura, o pai não estava de acordo com isso. Este não tardara em querer se apoderar do bebê, talvez se aproveitando da discórdia para mostrar o quanto tivera razão em desaprovar tacitamente aquela união, pela qual provavelmente não conseguia perdoar a filha por completo. Será que M.A. não tinha querido divorciar-se de todo esse complexo familiar, para finalmente se encontrar com sua mulher?

O desejo do filho como filho esperado "do pai" ... Também aí, o desdobramento das funções paternas desempenha um papel notável na realização do desejo feminino de ter um filho. Segundo Freud, como já lembramos, um filh0 "do pai" é desejado pela menina à guisa de reparação pela ausência do pênis, que ela pode constatar com maior ou menor boa vontade por ocasião dos estudos de anatomia comparada realizados com seus coleguinhas. Quaisquer que sejam as críticas que possamos fazer a essas ásperas formulações, a clínica psicanalítica mostra que esse desejo continua sempre ativo em muitas mulheres. Entretanto, persiste um problema: na maioria dos casos, o homem com quem uma mulher procura realizar esse sonho infantil possui

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poucos pontos em comum com seu pai, ou, quando os tem, eles nunca acarretam confusão entre as duas pessoas que são o pai e o marido. Na maioria das vezes, aliás, as diferenças (senão os conflitos) são tão importantes entre esses dois personagens que a menor dúvida é prontamente desfeita. Na realidade, são mais as diferenças do que as analogias que retêm a atenção: não será, se não para se proteger do incesto, ao menos para distinguir as duas funções paternas, que, num número significativo de casos, as mulheres escolhem um companheiro que contraria francamente as preferências de suas famílias, ou mesmo seus ideais, sua cultura ou sua religião? Assim, uma dada moça, criada à sombra da religião, elege um amado entre os comunistas militantes do bairro; outra, acostumada a só comer alimentos consagrados na sinagoga, apaixona-se por um descrente, sempre suscetível de ter pelo menos um anti-semita na família; outra ainda, finalmente, cujo pai não perdeu nenhuma guerra colonial, só reaviva uma sexualidade melancólica sob a condição de passar pelos ritos africanos. Assim, partindo de seu voto mais secreto, não reconhecendo nada das leis bárbaras e segregadoras do clã dos homens, o que tem de civilizador o desejo feminino, além disso, mostra seu valor. Sem dúvida, essas filhas com um desejo tão excessivamente oposicionista constituem uma exceção, mas esta nada retira da generalidade de um procedimento cujo objetivo é garantir a realidade da exogamia e evitar o incesto ... mas conseguindo, apesar de tudo, o filho do pai. Com efeito, todas essas precauções e todos esses ritos, as distâncias às vezes enormes que certas mulheres percorrem para se assegurar de estarem definitivamente protegidas do pai, tudo isso prova apenas uma coisa: que elas continuam a pensar nele - ainda que sob a forma do pai morto. O pai fantasístico de um filho, à guisa de produção ideativa, será pois o pai da mãe, mesmo que seu companheiro, cujo papel é ser genitor, seja perfeitamente reconhecido, ao mesmo tempo, como pai, mas numa outra função paterna. O desdobramento das funções paternas terá permitido, portanto, esse tour de force mediante o qual o que foi desejado com um primeiro pai só se realize com um de seus lugares-tenentes, este se opondo àquele na exata medida da contradição de seus papéis. Esse caso ilustrativo (freqüente) tem tanto maior valor quanto mais o desejo primário de ter filhos tenha ficado preso à "pessoa" do pai (devendo "pessoa" [persona] ser entendido em sua equivocidade). Se esse processo é tão corriqueiro, é porque, de um lado, a imagem do primeiro pai permanece impessoal, e de outro, os homens adquirem um certo grau de impes-

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soalidade ao desejar (podendo a função propriamente genital, portanto, ser intercambiada nessa no man 's land *). Quanto à segunda função paterna, caso se trate de situar o pai simbólico sempre já morto, ela é atribuível, por exemplo, graças ao pai que está à disposição em todas as religiões que se prezam. E, quando esse procedimento não convém, nada impede que se recorra ao vaudeville, isto é, aos serviços de quase qualquer terceiro, quer ele apenas dê ensejo a fantasias no momento da procriação, quer efetivamente ponha mãos à obra nessa operação, lançando uma dúvida suficiente sobre a paternidade para que sua duplicidade seja efetivamente estabelecida. São múltiplos os meios de atualização da dupla função paterna, e a religião, que sempre foi considerada a mais respeitável dessas modalidades, é sem dúvida a que teve maior sucesso na história da humanidade. Todavia, seja qual for a perspectiva da religião e do vaudeville, o resultado final é sensivelmente idêntico: o filho nascido desses rituais complexos poderá servir-se agradavelmente de um pai para malhar o outro e, como nos bons velhos tempos de Tebas, venerará tanto o primeiro que trucidará o segundo como se nada houvesse, assim descrevendo o campo culpado de sua neurose. Não é sem uma amargura secreta que, depois de haver atravessado múltiplas provações, uma família judia vê sua filha amada, criada com atenção, casar-se com um homem que não pertence a sua cultura. Por mais honrado que seja o pretendente, ele não deixa de romper o fio de uma tradição já duramente testada pela história. O liberalismo - aliás, freqüentemente superficial - dos tempos modernos em nada modifica isso e, se o chefe de família não sente nenhum rancor de uma filha ternamente amada, o mesmo não acontece em relação a seu genro. Ainda mais quando, com o tempo, diferentes queixas vêm somar-se a esse desgosto inicial. Foi o que se deu na família dessa analisanda: problemas de trabalho, questões de dinheiro, falta de tato, tudo se acumulou para aprofundar o abismo. A chegada de um filho não alterou nada e, ao contrário, foi uma ocasião suplementar de divergências. E mais, pela primeira vez as recriminações eclodiram às claras, quando antes haviam permanecido latentes. Foi como se esse nascimento desnudasse os nós de uma situação que se tornara inextricável, e como se o recém-chegado interrogasse silenciosamente cada um sobre o lugar

• Ver nota de tradução da p.92. (N.T.)

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que ele ocupava. As circunstâncias da vida familiar tomaram-se ainda mais tensas, na medida em que nenhum dos protagonistas conseguia reconhecer com muita facilidade o valor do que estava em jogo, embora tudo se passasse como se cada um se sentisse obrigado a prestar contas disso. Nas condições dessa luta surda, a jovem mãe demandou uma análise, não porque houvesse percebido a ambigüidade do conflito concernente à paternidade (conflito do qual ela era parte integrante), porém, mais simplesmente, porque via acumularem-se as nuvens na relação com o marido, a quem continuava a amar. A moça tinha a impressão de que era principalmente ele que não estava bem, que se debatia em problemas insuperáveis, e que corria o risco de abandonar, a qualquer momento, não apenas sua profissão, mas seu país ou até a Europa, ao mesmo tempo abandonando seu filho e ela mesma, embora ela se sentisse disposta a fazer tudo para remediar essa situação. Como muitas vezes acontece quando uma análise começa em nome do equilíbrio precário de um terceiro que se trataria de ajudar, é raro não haver um certo sentimento de culpa a respeito dele, agravando uma situação que às vezes, por conseguinte, toma-se inextricável. Não era essa a situação que estava em primeiro plano nesse caso, pois fazia algum tempo que existia uma outra realidade que a jovem ignorava no momento em que veio me ver. Teria o marido ficado desorientado com uma situação em que sua posição paterna fora violentamente contestada pelo sogro, ou teria ele mesmo que enfrentar certos desafios com sua própria mãe (problemáticas tantas vezes complementares, aliás)? Como quer que fosse, constatou-se que o jovem pai arranjara uma amante, a quem talvez não amasse, mas que lhe trazia um erotismo ausente desde o parto de sua mulher. Por fim, a verdade dessa ligação extraconjugal foi descoberta, atingindo duramente a jovem mulher, que, em seu desarvoramento, deixou a situação como estava por algum tempo. Depois de recobrar o controle, ela pediu que o marido lhe prestasse contas. Embora ambos houvessem acumulado razões para fazê-lo, nenhum dos dois cônjuges parecia querer separar-se. Apesar desse esforço recíproco, no entanto, as brigas envenenaram-se ainda mais e o marido saiu de casa. Mal fechada a porta, foi tomado de remorsos e voltou. Depois, não agüentando mais, quis ir embora outra vez, tamanha a freqüência com que era convidado a fazê-lo, após noites de explicações tumultuadas. De modo que, nessas circunstâncias penosas, considerou-se finalmente uma separação oficial. Mas, cada qual por seu turno, os dois cônjuges

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rejeitaram essa solução, apesar do acúmulo de dramas minúsculos e desgastantes. Como organizar uma separação que cada um só desejava pelo tempo de esgotar a paciência do outro, antes de se reconciliar? Finalmente, produziu-se um esboço de separação. Sendo o filho ainda pequeno, combinou-se, inicialmente, que ele ficaria com a mãe no que tinha sido a residência comum. O marido, a princípio, aceitou essa solução improvisada, levando alguns pertences, não para a casa da amante, como se poderia esperar, mas, ao que parece, para a casa da mãe. A calmaria mal chegou a durar alguns dias, pois, de repente, ele rejeitou esse arranjo com extrema energia, voltando todas as vezes que podia ao apartamento conjugal, de manhã cedo, ao meio-dia, à noite e até de madrugada, argumentando passo a passo para dormir pelo menos no sofá da sala. Mas era impossível que a esposa conseguisse esquecer a afronta sofrida, e recomeçou a guerra para que esse homem, transformado numa espécie de objeto de horror amoroso, deixasse a casa. E ele só parecia entregar as armas mais uma vez para melhor voltar à carga no dia seguinte, entrando no apartamento de manhã cedo, com a chave que havia conservado. Com o passar dos dias, como se essa situação se houvesse invertido imperceptivelmente, ele passou de acusado a acusador e exigiu que acabasse aquele inferno: o tom subia com freqüência, porque, jurando seu amor, ele exigia um reconhecimento formal de um retorno à situação anterior. E, uma manhã, quando novamente voltou cedo ao apartamento, ele fugiu discretamente, levando o filho ainda meio adormecido, enquanto a mulher tomava um banho de chuveiro, cujo barulho encobriu os preparativos dessa espécie de seqüestro. Nenhuma notícia nas horas e dias subseqüentes. Como esse acontecimento coincidiu com um período de férias, os possíveis esconderijos onde os desaparecidos poderiam ter-se refugiado eram múltiplos, e os locais de trabalho onde se pode ter certeza de entrar em contato com alguém estavam desertos. Passado o primeiro momento de cólera, a jovem mãe experimentou a angústia e o pânico, sendo as famílias alertadas quase que de imediato. Do lado da família paterna- decerto conviria dizer, com mais exatidão, do lado da mãe do pai - , o desconhecimento foi fingido. Mas a avó paterna fingiu não saber de nada com tamanha má fé e tamanha despreocupação que ficou claro que a informação havia circulado. A mentira mal contada, apesar de tudo, tranqüilizou a inquietação materna, ao mesmo tempo, aliás, que reatiçou sua cólera. Por fim, ao cabo de alguns dias, a situação acalmou-se, uma vez conhecido o local em que o pai e o filho estavam veraneando. Eu fora informado desses aconte-

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cimentos por telefone, ao fim de um curto período de férias escolares, e a angústia aguda dessas semanas levantou um problema de coordenadas tão implacáveis quanto secretas: de que filiação provinha esse filho, para ter-se tornado o móbil de tais conflitos? Seria ele um filho dedicado à mãe de seu genitor, ·ou teria sua paternidade sido atualizada de tal modo que o pai da mãe conservasse um direito sobre ele? O avô materno, de fato, não ficara inativo durante esse período atormentado, manifestando uma cólera que se dirigira, dessa vez, contra sua filha. Entretanto, ele enfatizara queixas tão estranhas, que logo ficara evidente que era efetivamente a questão da paternidade, de sua desgastante duplicidade, que ele estava colocando naqueles termos dissimulados. Toda a sua irritação girava em torno de uma só questão, que ele formulava sem parar: como era que, no momento do "seqüestro", sua filha pudera mostrar-se tão ingênua a ponto de tomar um banho de chuveiro? É verdade que a insistência dessa censura era sem dúvida meio surpreendente. Mas nada permitia prever que essa moça fosse aproveitar isso para se interrogar sobre o que podia haver de sintomático na cólera do pai. Quando um analisando atribui a outrem uma idéia ou uma intenção que interpreta sua própria posição subjetiva, muitas vezes é útil tomar rapidamente suas afirmações no sentido oposto, e foi o que fiz. Retificar a posição subjetiva era fácil num caso desses, já que bastava perguritar-lhe por que, de fato, ela estivera tomando uma ducha - como se isso não fosse evidente àquela hora da manhã. E, em seguida era preciso - sem esperar por uma resposta de relativamente pouca importâ_ncia - , interrogar as associações que lhe ocorressem a propósito do chuveiro, desde então significante da duplicidade, do desejo por ela atribuído ao pai. Portanto, tudo repousava na maneira como a analisanda captasse em pleno vôo associações tão mais fugidias quanto mais iriam revelar-se terríveis. Como explicava ela essa esquisitice paterna? A primeira associação que lhe ocorreu foi realmente assustadora. Num instante, ela não conseguiu impedir-se de pensar nas pseudotomeiras utilizadas nos campos de concentração nazistas para asfixiar os prisioneiros com gás. E lhe pareceu que essa característica, provavelmente, era o que havia encolerizado seu pai, pois ele decerto devia ter pensado no extermínio do povo judeu. Acaso essa associação não concernia à morte do pai, de um pai que, aliás, nesse caso, era um simples representante da raça, da filiação paterna no que ela tem de mais geral? Essa evocação da morte, difícil de sustentar, foi seguida por um silêncio ... Quais foram

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as conexões que se estabeleceram nesse intervalo de tempo? Elas não abandonaram o fio que acabava de ser evocado, por mais terrível que fosse. De fato, revelaram pensamentos concernentes à "culpa" da analisanda por ter-se casado com um não-judeu e, assim, ver-se ligada, senão ao tema do extermínio, pelo menos ao da extinção da raça. Eles ligavam diretamente o assassinato do pai à sexualidade. Chuveiro, de fato, logo deu ensejo a uma segunda associação: "Esse termo também deve ter exasperado meu pai porque ele pode ter pensado que, apesar da situação, eu tinha acabado de fazer amor com meu marido e, por conseguinte, estava me lavando." Portanto, surgiu então no primeiro plano da cena a figura de um marido de quem o pai teria ficado enciumado. Assim se expôs a rivalidade potencial entre dois pais, dos quais o segundo teria sido o responsável fantasístico pela morte do primeiro (quanto à filiação da raça). O erotismo abrupto dessa fantasia remontava até o ponto em que a cólera inflamava diretamente o personagem paterno, que fora seu abrigo originário. A duplicidade paterna, que mostrou suas duas vertentes nessas associações, só apareceu brevemente e graças às questões orientadas do analista, de modo que o leitor talvez possa não lhes dar crédito. Mais vale, de fato, dispor de outras formações do inconsciente, que tenham o mesmo sentido, antes de lhes dar valor de verdade. Propomos um exemplo disso num sonho dessa mesma analisanda, relatado algumas sessões depois, felizmente num contexto mais moderado. A cena onírica tem muito interesse, pois mostra uma espécie de tentativa de solução amigável do complexo paterno: a analisanda recebia em seu escritório o pai e o marido, que iam visitá-la como se fossem seus clientes ... "Falamos de negócios, em termos apropriados ao contexto das transações imobiliárias. A questão era saber qual seria a moradia mais conveniente à situação de casada. No fim, o negócio foi fechado: o marido tomaria dinheiro emprestado do pai da mulher e utilizaria essa soma para comprar um apartamento para ela, que moraria lá a contento e, segundo todas as aparências, sozinha." A discórdia pareceu concluir-se, assim, num pacto simbólico entre dois representantes da paternidade, que, por não operarem no mesmo registro, acabariam por se entender. Foi isso o que exprimiu o desejo desse sonho, consolador, sob certos aspectos, uma vez que se destinava a poupar a sonhadora, ao preço de sua solidão, de um desejo que às vezes se atualizava menos pacificamente.

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Ter um filho "para a mãe" Segundo o esquema edipiano do amor heterossexual, o homem exogâmico sentirá por uma mulher um amor equivalente ao que teria querido dedicar à mãe, se ela não lhe tivesse sido interditada no passado. Esse é um resumo prático, mas apressado, pois não se cava um abismo entre uma mulher e uma mãe? Com efeito, antes de aceder a um desejo exogâmico, nosso heterossexual esquemático deverá ter sofrido os horrores da castração. E disso resultará que o que ele amará numa mulher, não sem um certo horror sagrado, se prenderá ao fato de ela não ter pênis. Ora, justamente, não é esse o caso de sua mãe, que, segundo uma crença tenaz, não deixa de estar munida dele! Assim, a genitora nunca será para o filho uma mulher como as outras. A crença na mãe fálica perdurará, a despeito de tudo, pela forte razão de que o próprio filho é que supostamente foi esse pênis materno, na época em que era bebê. E os anos modificam muito pouco essa doce e traumática lembrança! O neurótico continua a acreditar por muito tempo que deve "tudo" à mãe, a começar, como nos bons velhos tempos, por ser seu falo. É essa dívida para com a mãe que lhe fica eternamente atravessada na garganta, pois, como diabos irá ele dar um jeito de pagá-la? A rigor, ele poderia ter a esperança de cumprir esse dever se conseguisse fornecer-lhe um equivalente aceitável do falo que lhe deve. E o bebê possui essa reputação, já que tem um alto teor de brilho fálico. Quando tem um filho, o heterossexual culpadamente exogâmico pode oferecer o corpo lamuriante de sua prole à mãe, na falta de seu próprio corpo, num dom fantasístico que corresponde, nesse sentido, ao pagamento da dívida materna. Entretanto, nessas circunstâncias, acaso não fica claro que a mulher que é realmente mãe da criança, a mulher portadora, digamos, que foi inicialmente amada por sua castração, correrá o sério risco de ser rejeitada? Esse é o risco que ela irá correr a partir do momento em que sua feminilidade, sua castração, for questionada, por ela haver acabado de ter um filho. Nesse aspecto, é comum, quando uma mulher se torna mãe, que seu companheiro deixe de desejá-la, ao menos por algum tempo. Decerto, o desejo geralmente retorna, mas sob a condição de que, mais uma vez, a companheira apareça com sua falta, sua castração, o que nunca se realiza tão bem como quando a criança se une a seu lugar de sonho, isto é, ao berço que lhe foi preparado pela sogra de mamãe! Depois de um parto, uma luta que muitas vezes não deixa de ser ferrenha, apesar de velada, corre o risco de atormentar a mãe do genitor

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e a mulher dele. Trata-se de um novo episódio da renegação da castração, que será encenado por um, dois, ou três per-sonagens, conforme a mulher que acaba de dar à luz se debata contra sua própria maternidade, conforme se oponha à sogra ou a sua própria mãe, ou conforme, enfim, consinta em lhes entregar o punhado de carne que é seu filho por um tempo indeterminado, e segundo cláusulas particulares a cada um dos protagonistas. Também é possível que o erotismo não consiga abrir caminho novamente, ou só o faça com grande dificuldade, na medida em que o jovem pai estará diante de uma mulher possuidora da mesma qualidade que sua mãe possuiu, isto é, a de ser fálica. Quando o desejo inconsciente do homem foi, segundo os caminhos de um desejo incestuoso,fazer um filho para a mãe, ele nunca o realiza tão bem quanto separando-se da mulher depois do primeiro nascimento. Entre as duas possibilidades que existem do lado masculino - ter um filho para a mãe ou tê-lo do pai - , a primeira eventualidade parece ser a mais forte, por um motivo que não é estatístico, mas lógico. Na generalidade dos casos, o desejo de ter um filho não está em primeiro plano para o homem apaixonado. Essa preocupação depende mais do desejo feminino, conforme as imposições já expostas da Penisneid. Quando um homem quer ser pai, ele pressente, ao mesmo tempo, que corre um sério risco, uma vez que, além da mortalidade que sua futura paternidade revelará (não há bom pai senão pai morto), ele correrá o risco de perder, por desidealização, o inebriante objeto de seu amor. Por isso, na maioria das vezes, o homem deixa a expressão do desejo de ter um filho a cargo de sua companheira, que, por seu turno, pensará mais facilmente que tem tudo a ganhar e que, ao fazê-lo, não correrá nenhum perigo (desde que seu desejo se situe, de fato, na trilha da "inveja do pênis"). Deixando a companheira à vontade, o homem continua a venerar nela seu ideal. Mas, será que fica quite? Falta muito para isso, já que é como filho que ele continua a amá-Ia nesse ímpeto delicioso. Entretanto, de acordo com essa condição, ele continua ao mesmo tempo devedor, antes de mais nada, da mãe, já que, antes de dever seja o que for ao pai, primeiro é preciso matá-lo; ora, ele justamente se abstém de fazer isso (pois tem, ele mesmo, certas dificuldades em ser pai). Assim, perante a mãe, ele continua numa dívida que é tão mais insistente quanto mais essa mãe não deixa de lhe relembrar constantemente seu dever. A descrição clássica do complexo de Édipo não evidencia suficientemente que o desejo não circula simplesmente do filho para a mãe,

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mas que a recíproca de uma insistente demanda da mãe, dirigida ao filho, precede esse desejo. Essa demanda é suportada com maior ou menor paciência pelo menino e, na maioria das vezes, ele a rejeita graças a sua identificação masculina com o pai. Todavia, mesmo depois de se proteger dela tanto quanto lhe é possível, a demanda materna ainda continua a pesar sobre ele. O desejo edipiano do menino depende do tratamento dessa demanda mais ou menos pesada, que, por ser rejeitada por ele, rege a idealização de seus amores. A demanda materna, desse modo, continua a contribuir para a idealização. E, :;e existe um meio cômodo de satisfazê-la, ele consiste em ter um filho, não com a mãe, porém, mais uma vez, para a mãe. Assim, a mãe participa secretamente dos amores do filho, disposta como está a colher seu fruto, à guisa de uma retribuição adiada do que, a rigor, foi gerado pela rejeição de sua demanda. A aparente complexidade desse esquema não deve levar a perder de vista que ele é uma banalidade da vida familiar amorosa nos países católicos (e sem dúvida em outros lugares). Apesar de sua denominação paterna, o genitor de uma criança continua, antes de mais nada, a ser um filho (um filho-pai, para retomarmos o termo já arriscado anteriormente) que só teve um filho para acertar as contas com a mãe. E esta, em muitos casos, logo se encarrega dele, entrando numa rivalidade mais ou menos violenta com a nora, de acordo com roteiros repetitivos que fazem parte da vida familiar corriqueira em nossas paragens. Dessa luta mais ou menos insidiosa, a mulher anteriormente amada pode sair vencedora, mas também lhe acontece ser vencida, no sentido de que ela corre o risco de ser simbolicamente excluída, tanto no plano amoroso quanto no de sua maternidade. Entretanto, e por um retorno lógico, a posição de exclusão às vezes violenta que ela sofre pode devolver-lhe a posição idealizada da mulher amada. Com efeito, na relação do filho-pai com sua mãe, quando o filho é realmente um dom concedido pelo primeiro à segunda, em pagamento de uma dívida, qual vem a ser a posição da" mãe portadora" em relação a esse vínculo incestuoso? A de uma desmancha-prazeres que deve ser eliminada de diversas maneiras, graças a uma cumplicidade (cujos recursos são às vezes surpreendentes) entre o filho-pai e sua mãe. Mais ou menos liberta de suas prerrogativas maternas, a amante fica assim colocada numa posição inteiramente paterna de interditar o incesto e, nessa condição, resgata um traço de sua idealização originária: o traço do pai que deu ensejo ao enamoramento. Sem que ela sequer o procure, sua simples presença excitará a cólera. E o

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momento mais violento da cólera dirigida contra ela será aquele em que ela recobrar a plenitude de seu poder erótico. A excitação que ela novamente despertará, dessa maneira, será tão mais violenta quanto menos ela se deixar excluir e quanto mais manifestar sua recusa a ocupar o lugar que o marido e a mãe dele sonhariam vê-la ocupar. Certo rapaz nunca havia considerado a paternidade. Havia muito tempo para pensar nisso! Chegaria o dia em que isso ia acontecer, sem dúvida alguma! Avaliando ponderadamente o que sua própria infância tivera de atormentada, ele podia sonhar para mais tarde com os princípios educativos que evitariam a sua futura progenitura os dissabores que havia conhecido. Mas a realização desse projeto não era para amanhã, nem tampouco para depois de amanhã. Primeiro, ele precisava de tempo para esgotar os prazeres do celibato, e abandonar a uma maturidade mais moderada as alegrias decerto profundas da procriação. Quando sucedeu a uma de suas companheiras engravidar dele, o rapaz não insistiu em que essa promessa fosse levada a termo, indeciso como ainda estava e sentindo-se pouco comprometido com uma vida de perspectivas incertas. A desagradável realidade de sua situação ainda mal assegurada na sociedade, junto com alguns sintomas físicos persistentes, levara-o, por outro lado, a começar uma análise. E depois, quando, mais uma vez, sem que se tivessem tomado maiores precauções, a mesma companheira ficou esperando um filho, foi-lhe forçoso admitir que ele contribuíra muito para isso e, assim, ele resolveu tornar-se pai de uma filha, em suma, para sua extrema satisfação. Até porque essa situação não o impedia de esperar outras ligações que continuavam a ser-lhe oferecidas. Sua mãe havia festejado com muita emoção a chegada da neta, mas, dos serviços à amabilidade, da amabilidade aos conselhos e, por fim, a uma pura e simples intrusão, entrara rapidamente em guerra aberta, entrecortada por armistícios mais ou menos longos, com a mãe efetiva da criança. Não tinha jeito, a avó não conseguia impedir-se de contestar mais ou menos abertamente, até nos mínimos detalhes, todos os princípios educativos da nora. Entre a mãe e a companheira, a companheira e seus relacionamentos do momento, e sem esquecer a filha, que não tardou a fazer ouvir sua voz, esse homem pôde assim explorar, na maioria das vezes em caráter de urgência, as diferentes facetas do desejo feminino, suas demandas, seus artifícios, seus dramas e sua remissão. Todavia, acostumou-se com essa situação, que aliás parecia

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mais tumultuada ao ser resumida em algumas frases do que no correr da vida - acaso as horas do dia não são múltiplas, e não pode cada uma delas conhecer seu apaziguamento? De modo que os dramas sucessivos, embora às vezes ameaçadores, encontravam sua solução, um após outro, como se bastasse ir em frente para ver que obstáculos aparentemente insuperáveis deixavam-se transpor com facilidade. É claro que a vida conjugal não se encaixava em absoluto em suas aspirações. Muitas vezes, por pouco ele não provocara um rompimento, e mais de uma desavença surgia quase que cotidianamente. Mas ele acabara se ajeitando, sabendo encontrar tempo para algumas liberdades, como a de sonhar com outros amores (que, por sua vez, corriam o risco de ser opressivos). Depois, seu pai morreu. O velho vivia afastado, nos arredores da cidade, mas, embora estivesse geograficamente perto, era como se tivesse sido exilado para o outro lado do planeta. Ficara tão distante de todo o imbróglio cotidiano da família que seu falecimento mal chegou a ser marcado por mais que uma emoção convencional. O desaparecimento de um homem idoso, cuja vida fora bastante cheia, parecia tão natural que não se diria merecer realmente o trabalho do luto, tão diferente das lágrimas ou do sofrimento. Mas os mortos continuam a acompanhar os vivos, não se poupa o luto por eles (mesmo quando não foram amados). E, se é verdade que esse luto pode esperar, ou aparecer sob formas surpreendentes, ele sempre se manifesta. O que faz um trabalho de luto demorar a ser desencadeado, a não ser em virtude de o falecido ter sido tão necessário à vida, simbolicamente, que seu desaparecimento não é aceito por aquele que continua vivo? Nesse sentido, o verdadeiro trabalho do luto só começa com o aparecimento das primeiras formações do inconsciente, que, nem que seja renegando a morte, transladam e remanejam o lugar do sujeito em função do falecimento. No que concerne a esse rapaz, foi como se esse trabalho não começasse de imediato. Uma vez realizadas as cerimônias de praxe, a vida continuou, sempre igualmente tumultuada. Chegaram as férias, sem trazer outros acontecimentos senão os que ele tinha previsto. E então, algumas semanas depois, veio a notícia, não realmente inesperada, mas abrupta, de uma separação do casal. Da noite para o dia, e por um detalhe nem mais nem menos dramático do que muitos outros, a jovem mãe havia ficado sozinha com a filha, enquanto o marido, apenas munido de alguns pertences pessoais, refugiara-se na casa de um colega, sem sequer procurar saber se poderia dispor do lugar a que

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podia aspirar na casa de uma namorada. As cóleras e as disputas sempre tinham feito parte do cotidiano até então, sem maiores conseqüências, e costumavam encerrar-se na obscuridade da noite. Nada, portanto, tornava inevitável um desfecho tão fragoroso, em que o único acontecimento novo tinha sido a morte desse pai cujo luto nem sequer se esboçara. Foi por isso que me pareceu que devia haver uma relação entre a falta de elaboração do luto e a precipitação do rompimento, embora nada permitisse ainda ter certeza disso. E foi preciso esperar por um sonho para estabelecer uma correspondência entre os dois acontecimentos, tão próximos no tempo. Esse sonho sucedeu em pouco ao rompimento e, pela primeira vez, registrou, por intermédio de uma formação do inconsciente, o falecimento paterno. "A cena era clara e simples. Contrastava com a confusão e a agitação dos meus últimos sonhos, tão embaralhados há algum tempo. Tomei conhecimento de que meu pai havia morrido, como se eu ainda não soubesse disso, e fui até seu túmulo. Eu estava sozinho e sem ser perturbado por todos esses aborrecimentos da família, sem ter que me preocupar com as relações muito complexas que mantenho com os tios, as primas e as irmãs. Talvez tenham sido esses laços e essas rivalidades que me impediram, até hoje, de encarar esse acontecimento de frente. Foi como se só naquele instante eu descobrisse o que essa morte queria dizer. Não havia lápide, apenas um quadrado de relva, naquele ambiente calmo que mais parecia um jardim que um cemitério. Então, cavei a terra e, no buraco assim formado, instalei ... uma espécie ... uma espécie de vaso de flores ... " Na nitidez dessa descrição, em que nada se prestava à confusão, em que nenhuma figura se desdobrava em elementos complexos, e que nem sequer parecia requerer associações, a tal ponto o que representava era simples e só devia inspirar silêncio, fiquei intrigado, no entanto, com o emprego da expressão ... uma espécie de ... , pronunciada após uma breve hesitação e um ligeiro balbucio. Inspirado nessa aspereza verbal, portanto, pedi alguns esclarecimentos: "Mas, por que uma espécie de? Nada se presta menos ao equívoco ou à confusão do que um vaso de flores nessas circunstâncias, não é?" E o pensamento que lhe veio, enquanto eu formulava minha questão, um pensamento incongruente e abrupto, foi que, em vez de dizer vaso de flores, ele ia pronunciando sexo: enterrar um sexo - e não outro senão o dele, nessas circunstâncias - naquele buraco feito na terra. Fora por isso

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que ele tivera de acrescentar ... uma espécie de ... , no meio de uma frase tão simples. Os sintomas que se sucederam nos dias subseqüentes foram os do luto, quer se tratasse do cansaço inopinado, da sensação de ter dificuldade de andar ou, mais exatamente, de estar com as pernas bambas. "'Bambo', salientou ele, quer dizer 'faisandé' em culinária.* Estou percebendo que essa fadiga imensa caiu em cima de mim depois que comi um queijo em que encontrei umas larvas. Aquilo me arrasou. Faz alguns dias que arrasto essa impressão de não parar de me identificar com o corpo putrefato do meu pai." Nada disso havia aparecido antes do sonho do vaso de flores, e só depois de ele ter sido analisado é que se formaram os sintomas. Que podia significar, no sonho, o ato de plantar seu sexo na terra? Não foi preciso hesitar muito para descobrir que esse traço sexual combinava o pai recém-falecido com a mulher de quem a separação acabara de se consumar. Como se a viva se juntasse ao morto, com a passagem ao ato da separação impedindo o começo do luto. Ao cometer uma agressão contra sua companheira - que continuava viva-, fora como se a separação renegasse a morte e adiasse o momento do luto. O desaparecimento, portanto, ainda não adviera quando ele saiu de casa. Ele mantivera vivo o corpo do pai, graças ao corpo de sua mulher. E então, de repente, lembrou-se que, nos dias antecedentes ao sonho, uma musiquinha ficara passando por sua cabeça, vinda sabe-se lá de onde; era um refrão infantil, sem dúvida. Alguma coisa como "Artur, onde puseste o corpo?" Seu inconsciente musical não se .nostrara, assim, espantosamente malicioso? A passagem ao ato que fora a separação, seguida por esse sonho, introduziu na inacreditável realidade do falecimento um elemento de saber suplementar - o da fantasia assassina encenada graças à esposa - e foi somente graças a essa conjunção que o luto pôde começar (uma vez que a dificuldade de um luto procede, para muitos, de uma culpa concernente ao falecimento, que o sujeito atribui fantasisticamente a si mesmo). Essa conjunção permitiu o desencadeamento do luto, mas não deixou de ser difícil compreender porque aquele pai, que fora tão amado e

• Os termos são, respectivamente, mortijié e faisandé (também "mortificado" e "amolecido"), que têm ainda a acepção de "em começo de decomposição". (N.T.)

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admirado, tinha sido tão pouco investido de interesse e afeição no momento de sua morte. Como mostravam os fatos, esse desapego só era compreensível porque o essencial da função paterna já fora transposto pelo sonhador para outro lugar, especificamente, para sua mulher. A que ponto essa transposição do investimento fora eficaz, isso é o que ainda estava longe de estar completamente estabelecido, e muito menos reconhecido. É verdade que entre o pai e a esposa havia certos traços comuns, em especial de pertença ideológica. Mas algumas semelhanças não bastavam, de modo algum, para garantir uma transferência de função. O essencial, na verdade, não estava nisso, e ficou evidente que a translação tinha-se efetuado de maneira muito mais simples: se, por seu comportamento, a mãe do sonhador expressava que tinha um direito particular sobre a neta, daí decorrera ela iniciar as hostilidades contra a nora, mãe legítima do bebê. Por conseguinte, por sua simples presença, a nora já não podia senão adquirir uma função de interditora - paterna, propriamente dita, no sentido pleno da palavra - em relação às ligações incestuosas que a sogra tentava manter com seu filho. E foi somente com o recuo desse luto e dessa nova situação, aliás, que se puderam compreender as cóleras repetitivas do sonhador contra sua mulher, cóleras que tantas vezes haviam explodido no passado. Elas indicavam o imbróglio em que ele estava imprensado, entre o amor pela mãe e o dever conjugal, quando não entre o amor pela mulher e o dever filial. Certamente, a irascibilidade poderia ter resultado de um desinteresse, ou qualificado um vínculo que havia chegado a um certo grau de desgaste. No entanto, considerando o passado a partir da análise do último sonho, parecia provável que a irritabilidade sempre se houvesse endereçado à função paterna. Não tanto porque aqueles arroubos tivessem tido uma função erótica, independentemente de qualquer enamoramento, mas porque seria impossível interpretar de outra maneira a imagem do sonho que deu início ao luto, onde ele teve de plantar um sexo na terra. A montagem desse sonho tomou-se clara a partir do momento em que se estabeleceu um vínculo entre o pai e a esposa. Nessa homenagem solitária prestada por um filho a seu pai, evidenciou-se, apesar da bizarrice da cena, uma generalidade concernente às cerimônias fúnebres: superficialmente, elas recordam, graças a alguns sinais totêmicos ou à evocação da pertença religiosa, que o espírito não morre, que sobrevive ao corpo. Os rituais confirmam que a potência

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paterna realmente foi transmitida. Entretanto, as cerimônias comuns não deixam ver mais profundamente, como permitiu esse sonho, a dimensão sexual do luto, aquela que aparece quando nos lembramos de que o "espírito do pai", o que constitui a característica de sua função, é a castração. (E não pode esse" espírito do pai" alojar-se em quem quer que simbolize essa função, em particular uma mulher?)

Esperar um filho "do pai" ... para a mãe Nesse exemplo clínico, a função do pai apareceu como que depurada de sua presença. O mesmo não se deu no exemplo seguinte, em que o pai apareceu mais em sua vertente de sedução. Na Catalunha, onde sempre vivera, Antonio finalmente casou-se com aquela que tinha sido sua primeira namorada, na época de sua atormentada adolescência. O jovem casal comprou uma casa e nela se instalou, na esperança de logo ver nascer um rebento. Esse projeto, compartilhado com alegria, realizou-se. No entanto, mal a mulher deu à luz, Antonio não conseguiu mais suportá-Ia. A visão da amamentação o enojava; as cenas enternecidas de afagos e tatibitates deixavam-no num estado de gélida raiva. Por algum tempo, ele manteve as aparências, e depois, quartos separados. Acabou abandonando a residência conjugal, sob um pretexto profissional, enquanto, nesse meio tempo, sua mãe acudiu em socorro, para ajudar na administração adequada da casa. Vagamente corroído por um remorso não muito agudo, Antonio voltava episodicamente para casa, mas a menor oportunidade servia-lhe para se fazer ao largo. Nem sequer procurava uma desculpa; argumentava, muito simplesmente, com sua ojeriza à vida familiar e à falta de erotismo que então prevalecia entre ele e a mulher, privando de todo o sentido, em sua opinião, a vida em comum, fosse ela diurna ou noturna. Na verdade, segundo as normas de sua ética, somente o amor desvairado merecia ser vivido, e qualquer outra consideração tinha que se curvar às exigências de Eros. Fiel a si mesmo, portanto, era o amor desvairado que ele cultivava, dedicando todo o seu tempo disponível a uma mulher por cuja vinda esperava, espreitando o instante em que um olhar o arrebatasse. Declarava-se disposto a abandonar tudo para seguir aquela que soubesse seduzi-lo, e era o que fazia, rigorosamente, todas as vezes que tinha uma oportunidade. A partir de então, passou a levar uma vida de geografia incerta, navegando entre a cidade onde

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trabalhava, aquela em que seu filho crescia e as diversas localidades em que o amor soubera encontrá-lo. Nessa flutuação meio errante, era apenas episodicamente que vinha falar comigo. Sentia-se, aliás, ainda menos inclinado a fazê-lo, na medida em que se considerava basicamente um homem feliz, capaz, em suas palavras, de consentir em seu desejo, fosse qual fosse o risco. E não via muito bem o que a psicanálise pudesse oferecer-lhe, como suplemento àquilo de que se beneficiava, a não ser uma" normalidade" que ele recusava de antemão, achando que, cantada assim, sua vida era mais musical e sabia gozar de tudo e de quase nada, ao contrário da maioria dos que o cercavam. Eu tinha' o cuidado de não desiludi-lo e o convidava a tornar a me ver, o que ele fazia perguntando-se por quê. Foi por ocasião de uma de suas visitas que ele me falou de um sonho recorrente que já havia evocado, mas que vinha assumindo, de uns tempos para cá, um jeito de pesadelo: um felino o perseguia interminavelmente, e às vezes ele tinha a impressão de que essa corrida persecutória durava a noite inteira. Os momentos mais penosos eram aqueles em que o terror o paralisava e ele se sentia incapaz de dar um passo, enquanto o animal se aproximava indefinidamente. Tratava-se de uma espécie de puma, ou simplesmente de um grande gato selvagem. E, quando o animal finalmente o alcançava, atirav.a-se sobre ele e se agarrava a sua panturrilha com todas as garras e presas. Enlouquecido de terror, o sonhador sacudia a perna (pata) para se libertar. Para dizer a verdade, ele só estava me falando desse sonho porque se supunha que viesse falar de suas produções inconscientes. Na realidade, quase não sentia necessidade disso, pois achava já tê-lo analisado. Parecia-lhe que o gato simbolizava sua mulher, cujo nome podia ser associado ao de um felino, graças a uma proximidade homofônica. No fundo, a compreensão desse sonho parecia ser das mais simples: ele mostrava a que ponto era Urgente que Antonio se separasse definitivamente da mulher. Ainda mais que sua paixão por uma nova conquista já não lhe dava tempo de agir de outra maneira, como me dera a entender uma rápida descrição de sua vida amorosa atual. Esse sonho não tinha realmente muito interesse, mas ele julgara útil mencioná-lo. Em contrapartida, queria muito me falar de um outro sonho, cuja chave esperava descobrir, pois sua apresentação dramática o deixara bastante inquieto. Eis como se apresentava: ele se via numa espécie de palco de teatro, onde também se encontrava uma atriz que não lhe

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evocava nenhuma de suas conhecidas. Estava muito pomposamente fantasiado, provavelmente com um traje do século passado, e todo enfeitado com adornos postiços. " ... Como é que vocês dizem isso em francês? Em castelhano, dizemos patillas ... " (e seu gesto me fez compreender que se tratava de suíças). "Pois lá estava eu, altivamente postado no palco, como se uma representação fosse começar, bem iluminado pelos holofotes da ribalta. Mas, de repente, o ambiente mudou e ficou claro que se estava preparando um acontecimento dramático ... Houve uma espécie de rebuliço, ouviram-se gritos, um vozerio. Eu me virei e a atriz que estava a meu lado, um pouco recuada no instante anterior, acabara de cometer, sem razão aparente, um ato terrível. Acabara de saltar aos gritos pela janela; ouviu-se o barulho assustador de seu corpo esborrachando-se no chão. Então, depois de um silêncio, algumas vozes se elevaram: várias pessoas gritaram que ela não tinha morrido, que havia apenas quebrado as pernas ... Depois, o sonho se perdeu numa sucessão de acontecimentos confusos, dos quais já nem sequer me lembro ... "É um enorme alívio, para mim, ter-lhe contado esse sonho. Agora, essa história se torna quase qualquer uma. Na realidade, eu tinha uma apreensão, pois tinha medo de que essa encenação representasse um desejo secreto meu de matar minha mulher. Não quero mal a ela a esse ponto! O fato é que, ao lhe contar esse sonho em francês, nessa língua que domino bem, mas que não é a minha, aconteceu-me uma coisa que desdramatizou tudo. Você deve ter notado minha hesitação quanto à tradução que convinha dar à palavra suíças, não é? Pois bem, isso me levou então a traduzir automaticamente, comigo mesmo, do francês para o espanhol, os termos correspondentes. Veja como é engraçado: quando falei das pernas quebradas, logo pensei, em espanhol: patas. Na mesma hora, notei que patillas soava como um diminutivo. E é por isso que, ao falar com você agora, penso ter descoberto a chave do sonho: sou eu que possuo a 'perninha', e o gesto aparentemente tão dramático da atriz tem como resultado apenas ela se quebrar. Foi esse o drama todo que montei! Eu quis sublinhar quem possui e quem não possui a coisa eréctil! ... Isso parece dar panos para manga, mas nunca passa de mais do que uma coisa postiça! ... O inconsciente não é ridículo, em certos aspectos? 'Inconsciente' tem 'con' ,* não é? ... "

• "Babaca", na dupla acepção de órgão feminino, na linguagem vulgar, e de idiota, pateta. (N.T.)

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Pareci partilhar seu ponto de vista de maneira tão calorosa que ele ficou um bom tempo em silêncio... E, quando fotomou a palavra, pareceu abordar uma questão completamente diferente. Evocou sua relação com o pai e a análise inacabada de um sonho anterior, que lhe continuava a ser incompreensível. Era preciso reconhecer que havia um bocado com que se interrogar nesse sonho, já que o analisando aparecia nele com um ar bastante feminilizado. Estava nu num bar, em companhia do pai, e no centro dos olhares da platéia, como se fosse uma presa sedutora destinada aos consumidores do lugar. Antonio tornou a questionar esse sonho enigmático, depois que o episódio das patillas mostrou-lhe a ligação delas com o falo. Só então lhe pareceu que os sinais conquistadores de sua virilidade livre, a que ele tanto se apegava, conservavam, apesar de tudo, uma certa aparência postiça, e que talvez isso estivesse relacionado com o que lhe fora transmitido pelo pai a título de masculinidade. Não que houvesse a menor dúvida a esse respeito, ele nunca havia questionado sua pertença masculina, mas relacionar aqueles dois sonhos sugeria-lhe que ele devia ter travado e estar travando uma luta obscura contra sua própria parte feminina, e que esse combate, sem dúvida, tinha alguma coisa a ver com o que o opunha ao outro sexo. Todas essas considerações, entretanto, não acarretavam nenhuma modificação em suas disposições amorosas, e foi com a mesma determinação de mudar de vida, agora radicalmente, que ele se despediu até a próxima sessão. Mas foi sem ter feito nada disso que voltou, detido em suas decisões por um novo sonho, que o deixara perplexo. Numa de suas numerosas peregrinações de trem, ao embarcar num desses vagões-leito espanhóis que andam tão devagar que se pode ter uma noite inteira de repouso, indo de uma capital provincial para outra, ele pedira ao condutor que o acordasse em Gerona, cidade onde havia mandado construir a casa em que seu filho viera ao mundo. Durante essa migração caótica, sonhou que estava efetivamente fazendo essa mesma viagem, porém o papel do condutor fora confiado a seu pai. Essa função parecia cair-lhe como uma luva, com o uniforme e o boné dando-lhe um ligeiro ar marcial. Por mais profissional que o pai lhe houvesse parecido naqueles trajes, entretanto, ele faltaria com todos os seus deveres, pois se esqueceria de acordá-lo ao chegar à estação de Gerona. Só em Barcelona é que o dorminhoco recobraria os sentidos, furioso como ninguém, imputando justificadamente àquela droga de condutor sua incapacidade de voltar à residência conjugal.

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Não tendo outra solução, ele descera do trem com sua bagagem e, mal dera alguns passos, tinha avistado a mãe, que trazia seu próprio filho pela mão, vestido como ele o vira recentemente em companhia de sua mulher. O par estava imóvel, a alguns passos dele, e a mãe o olhava intensamente, com aqueles olhos de louca, quase diabólicos, que Antonio já vira nela no passado, todas as vezes que se recusara a se submeter a suas injunções. Ele conhecia bem aquele olhar, por tê-lo comparado, na infância, a nada menos que os olhos fosforescentes dos filmes de terror. Quanto a seu filho, ele se mantinha numa atitude natural, agarrado à mão da avó e muito sorridente. Então, o sonhador fora tomado pela súbita certeza de que a mãe lhe roubara seu filho, de que esse filho tinha-se transformado num patrimônio dela durante a viagem. E ele, adormecido, havia deixado tudo acontecer, como se aquele seqüestro fosse o fruto retardado das injunções ferozes da mãe, uma espécie de tributo oferecido em troca de todas as suas recusas passadas de menino colérico, e de suas longas peregrinações de adolescente pela Europa, que a haviam deixado em lágrimas. Ao ver sua mãe e seu filho, que obviamente o esperavam, avaliando como teria sido preferível acordar em Gerona, e como que pressentindo um complô no qual teria sido um fantoche, no exato momento em que tinha mais certeza de sua livre disposição sobre sua vida, uma cólera violenta apoderou-se dele. Seu furor explodiu contra o pai, com uma violência como ele não se lembrava de jamais haver esboçado na vida real. O sonho terminara nesse momento, de maneira bastante brusca, com uma imagem estranha: seu pai, cuja imagem estivera fugidiamente presente no sonho, era associado à idéia de uma garrafa de champanhe, ou talvez até se transformasse numa garrafa de champanhe ... Um silêncio seguiu-se a estas últimas evocações. As imagens oníricas mais bizarras nem sempre são as que guardam seu segredo por mais tempo: não demorou mais do que o tempo de descrever essa cena estranha para que logo se impusesse às associações de Antonio uma outra imagem, incontornável, embora muito desagradável de mencionar. Tratava-se de uma foto, vista há muito tempo numa revista pornográfica, uma foto tão chocante que ele se lembrava de todos os seus detalhes, a despeito dos anos. Cobrindo a página inteira da revista, via-se em preto e branco uma cena grotesca de orgia, cujo tema central representava a sodomização de um homem com uma garrafa de champanhe. Seria o amor pelo pai que lhe havia pregado mais essa peça, no momento em que sua cólera contra ele era a mais forte? "Filho de alguém" (hidalgo [fidalgo]), o analisando nunca

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duvidara de ser, mesmo no auge de suas errâncias, afinal conformes a sua tradição patriarcal. A transmissão de homem para homem de certas características, como as da coragem, da honra, do desprezo pelo dinheiro, da errância e das virtudes do Nome, tendo por contrapartida um certo desprezo enamorado pelo feminino, essas eram qualidades que sempre lhe haviam parecido constituir uma herança honrosa. E agora, ele se dava conta de que, quanto mais amável lhe parecera o pai em suas qualidades aristocráticas, mais ele fora seu filho feminilizado e menos estivera em condições de resistir às demandas da mãe, nas quais havia consentido sem saber, deixando-lhe como tributo seu filho, um outro ele-mesmo, sob a condição do sacrifício de sua parceira (com quem, aliás, ele parara de sonhar sob as feições de um felino carniceiro). Acaso sua mulher não havia fornecido o filho que ele deixara prontamente nas mãos maternas? Quoad matrem, não uma mulher no lugar da mãe, mas uma mulher "para" a mãe, a seu serviço. O pai o deixara dormindo enquanto ele atravessava a cidade que simbolizava a exogamia, e fora essa falência paterna que o entregara à loucura da mãe. Não tinha sido esse pai sodomita que o fizera parturiente de um filho - em nome do amor desvairado-, adormecido no trajeto que o fazia passar tão perto de seu amor exogâmico, e só recobrando os sentidos na estação em que a mãe o esperava?

NOTAS 1. A bem da clareza e embora ele seja impróprio, empregaremos o termo "mãe portadora" para distinguir aquela que efetivamente parteja o filho. 2. Assinalar a existência de tal constelação familiar não deixa de ter importância, numa época em que o discurso psiquiátrico tem uma certa propensão a considerar as mães dos psicóticos como responsáveis por todos os males de seus filhos.

A cólera erótica, ficção exemplar da transgressão

A transgressão e, por conseguinte, a violência que o erotismo requer acabam de ser esboçadas, segundo algumas de suas apresentações e conseqüências. Existem outras, mas as que foram examinadas bastam para mostrar que todas são estruturadas pelo complexo paterno e suas contradições internas. Ora, a questão paterna possui, num de seus pólos, a particularidade de servir de mito intercambiável, de constituir um vínculo social, até mesmo uma religião, que, em contrapartida, determina a margem de manobra de todos os sujeitos a que ele ou ela concernem. Por conseguinte, a violência do erotismo passa por modificações, conforme o tratamento da questão do pai na sociedade em que eclode. Assim, ela pode ser posta em perspectiva tanto na história quanto através da geografia. Quanto ao essencial, nossas copulações provavelmente se assemelham às do homem de Cro-Magnon. Em contrapartida, os roteiros, os preparativos, as fantasias mentais, em suma, aquilo que nos coloca no estado ad hoc, diferem sensivelmente, sem dúvida, daquilo de que foram testemunhas as cavernas de nossos ancestrais. Poderíamos chegar a nossos fins, por exemplo, sem uma certa imagem da mulher, sempre intensamente idealizada por qualquer um? Todas as civilizações organizam certas modalidades de distribuição do gozo e promulgam, mais ou menos explicitamente, regras e interditos, cujo mistério é tematizado pelo sistema religioso. A religião não tem como ambição primordial trazer uma tentativa de explicação racional da ordem do universo. A organização do sagrado não se dirige à razão consciente: sua função mais superficial parece ser a de deixar 179

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o desconhecido aparecer no conhecido. Ela manifesta o divino na simplicidade das coisas, revelando a ausência na opacidade do presente, descortinando o mais além do que um cotidiano parece deixar sem mistério. Entretanto, além dessa função, muito mais do que propor as premissas de uma reflexão sobre o incompreensível, cujo princípio ele nomearia, o sagrado tematiza o mistério da sexualidade humana. Que nenhuma relação sexual é possível sem fantasia, eis aí o que todo o mundo é capaz de reconhecer sem jamais ter lido Freud. Haverá outra necessidade, que não a representação dessas fantasias, para inventar as religiões? Eis aí uma coisa pouco provável! O homem inventou Deus ao copular, para poder fazê-lo e refazê-lo. Com um "Ser supremo", explicativo da causalidade do universo, nunca houve demasiada preocupação. Em contrapartida, nomear mortíferamente o limite graças ao qual ele adquire sua potência, fazer-se sujeito de um Deus que testemunhe seu caráter herético, sua devoção de traidor, eis o que sempre lhe importa. A religião constitui somente uma transposição do exílio do gozo e não é, em si mesma, responsável por esse exílio, do qual só faz apresentar o mito. Imputar-lhe essa responsabilidade seria um erro compreensível, pois quão cômodo seria achar que a interdição sofrida por cada i.Jm foi-lhe imposta a partir do exterior, sem levar em conta que esse" exterior" fundou o que há de mais íntimo, isto é, sua humanidade! Seja como for, o sagrado ritualiza com tamanha força os acontecimentos mais significativos da vida sexual, que seu cerimonial organiza o erotismo da sociedade onde ele predomina - quer seus membros se dêem conta disso, quer, na maioria das vezes, o ignorem. Imprimindo seu selo nas maneiras de amar, a divindade contribui, assim, para a reprodução da espécie, no que ela parece ter de mais animalesco. A sexualidade não revela o que seria o segredo "natural" do homem, que se encerra numa pulsão genital disciplinada pela civilização. A sexualidade humana afasta-se, decididamente, de qualquer referência à natureza, e nenhuma construção expõe melhor essa discordância do que a religião. Não é tanto que ela regulamente a bestialidade dos instintos, ou que lhes traga um suplemento anímico. Antes, ela fornece a ficção necessária e suficiente sem a qual os filhos varões não poderiam suportar uma função paterna que primeiro os oprimiu e os castrou. Sem um mito da morte do pai, ritualizando obsequiosamente, de um modo ou de outro, aquilo que obseda o ato sexual até em seus menores detalhes, parece que nenhum deles o levaria a termo.

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A sexualidade, portanto, constitui esse limite, não de uma feliz animalidade com a qual seríamos efusivos, mas do sagrado. Algumas religiões ligaram mais explicitamente a questão da interdição, a da pecaminosidade e do sacrifício procedente dela, aos impasses da sexualidade. O monoteísmo, em geral, e o cristianismo, em particular, o fizeram. Eles expuseram essa verdade em quase todos os seus considerandos e, no mesmo movimento, convocaram uma forma de erotismo que provavelmente não era conhecida pelos gregos ou romanos, cuja mitologia nunca articulou o pecado com a sexualidade, contentando-se em expor, através da saga dos deuses, o enigma de suas conseqüências e a tabela dos preços a serem pagos por cada transgressão. No mundo cristão dos corpos atingidos pelo pecado, foi em continuidade ao que o desejo tem de mais carnal, e quase sem ruptura vocabular com o vocabulário do gozo, que a alegria mística instalou o amor divino na fragilidade do corpo. O cerimonial religioso, que, na ária monoteísta, canta com tamanha intensidade o amor violento de um pai, sua eterna ausência e o pecado dos filhos cuja veneração reivindica seu perdão, propõe uma ficção dessa ordem. Graças a ela, as particularidades dos sintomas individuais se religam' e, desse modo, podem intercambiar-se, ainda que obscuramente, na condição de um mistério que é, equivalentemente, o de Deus e o do sintoma. Portanto, não surpreende que a fantasística sexual, tanto no essencial quanto nos detalhes, corrobore tantos temas que, apenas transpostos, foram objeto das reflexões dos Padres da Igreja. Achando justificáveis nossas maneiras de organizar nossa vida, ou confiando, ao menos obscuramente, na cultura que é portadora delas, somos ingenuamente levados a crer em sua universalidade. E disso concluímos que nosso fio de prumo deve ser sensivelmente idêntico ao que servia de base para a vida dos romanos ou a dos gregos, das quais alguns imaginam sentir-se próximos. Ora, dois mil anos de cristianismo nos tomaram incapazes de compreender, senão seus pensamentos, ao menos seus estilos de vida. Há que fazermos um esforço para compreender, por exemplo, a organização de sociedades em que tinha tamanho peso uma homossexualidade que é dissimulada em nossos estudiosos apaixonados pela história antiga, quando essa particularidade sexual não é reduzida à categoria de uma fantasia de época. 2 Mais do que isso, segundo uma mania que é fonte de erros assustadores, não deixamos de achar que nossos valores cristianíssimos, heterossexuais e patriarcais, assim como suas inúmeras conseqüências (dentre

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elas, por exemplo, a democracia), são facilmente compreensíveis e, por conseguinte, exportáveis, seja para o Cairo, seja para Pequim. É nesse estado de espírito que, obnubilados pela extensão das normas presentes em todas as épocas e em todas as áreas geográficas, avaliamos com mal-estar a tendência que, desde a queda da teocracia capetíngia até o advento oculto do reinado de Sade, vem deslocando a questão do pai de seu epicentro religioso. Que espantoso acaso ver coincidirem a queda da teocracia francesa e a redação dessa obra única, onde o marquês de Sade ousou reivindicar a prática de uma violência do erotismo na admissão da morte do Deus cristão! Seja como for, a partir dessa data foram reformuladas todas as representações da interdição, tão úteis à organização de fantasias que, apesar da inconsciência de sua origem subjetiva, possuem essa particularidade de ser compartilhadas. A revista Critique publicou em 1963 3 um artigo de Michel Foucault, "Prefácio à transgressão". Foucault expõe nesse texto o que talvez tenha sido a preocupação de toda uma geração. Ele se volta para o caminho de pensamento percorrido desde a Revolução Francesa e procura captar o princípio da violência de sua época: " ... Anunciamos a nós mesmos que Deus estava morto. A linguagem da sexualidade, que Sade, a partir do momento em que pronunciou suas primeiras palavras, fez com que percorresse num só discurso todo o espaço de que logo se tomou soberano, alçou-nos a uma noite em que Deus está ausente e em que todos os nossos gestos se dirigem a essa ausência, numa profanação que ao mesmo tempo a designa, conjura-a, esgota-se nela e é por ela reconduzida a sua pureza esvaziada de transgressão." Mas uma questão se coloca à leitura dessas linhas: será garantido que essa "morte de Deus" e esse "esvaziamento de transgressão" tenham constituído o ponto final de uma progressão, ou se trata, ao contrário, de um ocultam'-"Dto? Se assim fosse, que invenção tão extraordinária poderíamos reivindicar, a não ser a de novos sintomas, nem todos os quais deporiam em favor da liberdade a que aspiramos? Na mesma área de pensamento de Foucault, Bataille, Blanchot e Klossowski exploraram, cada qual a sua maneira, um certo estado atual da sexualidade, que doravante parece desprovido de qualquer recurso ao sagrado. Terá o erotismo encontrado, graças a esses autores, sua base num pensamento filosófico? O rótulo de "filosofia do erotismo" é justificável, caso a sexualidade, liberta de sua armadura religiosa, já não se organize a partir das interdições tradicionais. Nesse sentido, ela parece doravante entregue a uma transgressão que não ultrapassa nada

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(nihil). Uma vez decretada a morte de Deus, o niilismo se espalha e, nessa ausência, segundo os lugares-comuns em vigor a esse respeito, a transgressão não ultrapassa nada além do que ela mesma instaurou e, nessa medida, não se opõe a nada. 4 Assim, pode ser aproximada de uma filosofia que, no mesmo momento histórico, declara-se" niilista" .5 Mas, acaso a filosofia não fugiu sempre do erotismo, quase que por definição, se excetuarmos o entusiasmo dos heróis sadeanos, cujas conversas, destinadas a justificar suas inclinações monstruosas, tinham menos um interesse filosófico que o de inflamar os espíritos e arrastá-los a algumas fantasias sexuais? Mais do que falar de uma filosofia do erotismo, não conviria reconhecer a antinomia de um discurso sobre o Ser (mesmo aniquilado), tal como sustentado pela filosofia, e a fala que provém da divisão do sujeito por seu próprio gozo, fala sintomática que só se aproxima de seu objeto graças à ficção, ao sonho, à mitologia individual ou ao sintoma? Porventura a ficção, que é feita para isso, não descreve uma deficiência comum ao sexo e à linguagem, enquanto a filosofia obtura a deficiência graças a esta última? 6 Segundo as concepções mais ou menos compartilhadas dos autores que acabam de ser citados, Deus estaria morto; mas, a confiarmos na definição do monoteísmo dada por Freud, não é precisamente sua morte que o funda? Na medida dessa certeza dos primeiros, que parece diretamente proporcional a seu esquecimento do segundo, não estaremos entrando, sem saber, e de pés e mãos atados, numa nova relação com o sagrado? Pensávamos que o sagrado havia perdido todo o sentido positivo, que éramos senhores de um mundo sem Deus, e deparamos com um limite ao qual já não sabemos dar nome, o limite com que nos confronta nossa sexualidade. Como denominar essa fronteira, se quisermos dispensar-nos de um palavrório filosófico exportado do "niilismo"? Como explicitar, na ausência de um suporte divino, o limite de uma interdição que pesa sobre a sexualidade, ao mesmo tempo em que ela participa do gozo? Essa autotravessia do prazer por seu contrário (por exemplo, do erotismo pela cólera) traça uma fronteira que vimos ser o nome comum do sintoma sexual. Quaisquer que sejam as encenações ou os devaneios que o enfeitam, o ato sexual é sempre acompanhado por um momento transgressivo cuja opacidade provém de um assassinato fantasístico. Como um pai se opôs ao primeiro impulso erótico, foi preciso ultrapassá-lo, e esse ato tornou-se uma condição presente da excitação, nunca tão exacerbada quanto no momento da transgressão. Eis aí um paradoxo, pois,

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como pode tal fantasia ter um efeito erótico? De fato, por que seria excitante a luta com um rival, quando dela resultou uma derrota, como aconteceu na luta que opôs um filho a seu pai? É que, na realidade, se a criança foi efetivamente vencida no desfecho do confronto que a opôs ao adulto, ela não o foi de modo algum em pensamento, onde, ao contrário, foi vencedora, graças a diferentes roteiros de sua invenção. Em suas maquinações ideativas, e para obter a vitória, ela se plantou num papel muito parecido com o de seu pai e se imaginou com uma potência igual à dele, segura que estava de possuí-la juntamente com seu nome. Assim, a criança destaca um "Espírito" do pai, potência fálica eternizada graças ao símbolo. Utiliza a força de um nome que nem sequer é nome algum, já que simboliza a potência no que ela tem de mais desencarnado, embora, em troca, ofereça sua força à ereção, tensionada nesse espaço mortal. A idéia de uma potência única, cujo nome impronunciável7 é apenas o sinal da potência do amor, conjugase, assim, com a tensão sexual. Desse modo, o homem inventa para si o misticismo sucinto necessário a sua sexualidade, tensionada entre a morte de Deus e sua ressurreição espiritual. Ressurreição ardentemente ansiada, pois o que há de espiritual no pai continua a ser necessário ao ato, e porque a culpa pelo assassinato encontra assim sua expiação. 8 Portanto, existe uma coerção a acreditar na ressurreição do pai porque ela é necessária à de nosso próprio desejo - , menos depois da morte do que após cada uma das pequenas mortes constituídas pelos orgasmos. Essa coerção nos instiga ainda que a ignoremos, ou ainda que, nesse desconhecimento, chamemo-la de "Nada". Como escreveu Bataille, "O que o misticismo não pôde dizer (falhou no momento de dizê-lo), o erotismo diz: Deus não é nada, a não ser ultrapassamento de Deus em todos os sentidos do ser vulgar, no do horror e no da impureza; no fim, no sentido de nada ... " Assim, ele dá a entender que o misticismo ignorou - porque gozava obscuramente com isso - o que hoje estaria claro para nós, com uma clareza que nos teria chegado graças a nossa relação diferente com o erotismo (sem dúvida, a partir de Sade). Mas, não será, antes, o contrário? Não seremos nós que, em nosso confronto com a coisa sexual, ignoramos em que ficção - cuja estrutura equivale à das religiões - continuamos a nos apoiar, a ponto de não termos mais que um vago pressentimento dela diante da insistência do sintoma? O limite, que as religiões e os mitos formalizaram por tanto tempo (no sentido de haverem imposto sua eficácia), já não tem nome hoje

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em dia. Convirá utilizar em lugar dele o vocábulo "niilismo", mesmo que, depois de haver soado verdadeiro uma primeira vez, ele já não tenha voltado a soar senão de maneira fútil e grandiloqüente? Nihil designa, nesse sentido, uma incapacidade de dizer a coisa contraditória que orienta o erotismo. Nulas são apenas as capacidades discursivas de descrever aquilo que é, não um vazio, mas uma plenitude opaca, sofredora e gozosa; círculo queimado a fogo no corpo, sofrimento erótico longamente suportado, por ter longamente desejado e por continuar a fazê-lo. Se existe uma sexualidade "moderna", ela cabe inteiramente nesse desconhecimento. Portanto, apenas perdemos a fé naquilo de que, não obstante, continuamos a nos servir por vias sintomáticas ou por novas vias, fiéis ao espírito da época. 9 A "morte de Deus" pôde aparecer como a verdade da época. Na realidade, dois séculos de ateísmo apenas ocultaram o que vários milênios de monoteísmo sempre afirmaram, isto é, uma culpa muito parecida com o pecado do homem bíblico, que coloca a morte de Deus no centro do campo de seu gozo, assim integralmente balizado pela interdição paterna. Havendo o rei por direito divino tombado ante a horda dos irmãos, Sade ensinou-nos menos a "morte de Deus" do que a inutilidade da crença numa vida após sua morte. Somente a fé é obsoleta, mas o fato de crer nisso ou de se abster não modifica essa função, em si exacerbada por seu ocultamento e inteiramente reduzida ao sintoma sexual. Nossa particularidade consiste apenas em havermos acreditado que Deus estava morto, sem nos apercebermos de que essa crença tornava a fundá-lo. E essa ocultação não se nos revela de maneira mais brutal do que em nossa relação com o erotismo. Como mostramos, por ser preciso matar o pai para gozar, por esse pai nunca preservar seu posto tão bem como quando está morto, é preciso ressuscitá-lo todas as vezes que o desejo retorna. Daí a invenção de uma ficção destinada a lhe dar vida e tornar a matá-lo. E nunca é outra coisa senão essa ficção (isto é, uma parcela considerável da realidade simbólica das interdições) que é transgredida, a fim de abrir a temporalidade do gozo, segundo o compasso de um assassinato inocente, mascarado pelo amor e indefinidamente reinstaurado. 10 Dessa maneira, a transgressão funda seu próprio limite, o qual ela torna a ultrapassar. Que transgridamos o mandamento paterno para melhor fundamentá-lo em seu poder, que um limite nunca se instaure tão bem quanto ao ser ultrapassado, eis aí uma contradição que se evidencia melhor ao concebermos mais uma vez a duplicidade do pai. Se a criança lida

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primeiramente com um rival, com aquele que é preciso matar, e se, por amor a esse rival, depois ela o faz renascer graças à força do Nome, a fim de herdar sua potência fálica, então, é realmente a transgressão que funda o limite requerido pelo erotismo. Mas, como nada é mais necessário do que um limite tão agradável de transgredir, a função persiste, sempre igualmente premente. Em conseqüência disso, um avatar do Deus interditor corre o risco de reaparecer, às vezes sob as mais estranhas formas. Não é preciso que ele ressuscite, para que sua lei transgredida seja a Lei? Não significa isso que, nessa temporalidade, nesse esquecimento forçado que é o do recalcamento, é preciso que duas figuras divinas se revezem, não sendo mais do que uma no instante exato em que o assassinato primevo tem de ser esquecido, para que o nome preserve sua potência? "Deus é Um", 11 ou" existe recalcamento": eis aí duas fórmulas que significam que o limite é transposto e que, graças a essa transgressão unária, o erotismo inaugura sua temporalidade própria. · A transgressão situa-se no ponto do tempo em que funda aquilo que renega, experimentando sua positividade nessa negação. Não constitui, portanto, um limite idêntico ao que separaria o proibido do permitido, porquanto, no que lhe diz respeito, o proibido permite. E o que é assim permitido permite prever novamente a imposição da interdição, segundo um movimento em que, longe de se satisfazer, o desejo gera o desejo, cada vez mais. A experiência amorosa, na qual uma morte implícita e devota condiciona a ereção, ilimita esse limite, criando a dureza de um desejo certamente sexual, mas extenuado por se confrontar com sua condição, que não é sexual. Apesar da redução de um aparato de crença à estrutura psíquica que lhe é correspondente, não convirá conservarmos a palavra "mistério", certamente religiosa, mas, ainda assim, precisa, para definir uma transgressão que torna a fundar seu limite, 12 por seu próprio movimento de transposição, assim fundando o inconsciente - aquilo que de modo algum pode ser consciente - em sua relação com a sexualidade? É que a crença na redenção de um pecado mortífero não pode ter desaparecido, a tal ponto nos é preciso ressuscitar um pai para nos tornarmos a excitar, e para copular à sombra desse fantasma. Nesse sentido, o ateísmo comum apenas atesta uma cegueira, uma espécie de enucleação do sentido da copulação. Assim, na Histoire de l'oeil, de Bataille, podemos ler essa metáfora fortíssima do erotismo moderno, cego onde se acreditava liberto, ou melhor, enceguecido por sua própria libertação. Para levar a apreender essa verdade, Georges

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Bataille utiliza o espaço violento da tauromaquia, que lhe serve para figurar uma ficção tão obscura e tão verdadeira quanto um mito religioso. A cena desenrola-se na arena, ao mesmo tempo na arquibancada e na areia, onde uma tourada chega a seu epílogo mortal. No momento em que o chifre de um touro enterra-se na órbita de um matador, a quem ele cega e mata, Simone, espectadora dessa morte pelo olho, enfia em seu sexo um testículo de touro: "Dois globos de cor e consistência iguais foram animados por movimentos contrários e simultâneos. Um testículo branco de touro penetrou a carne negra e rosa de Simone; um olho foi arrancado da cabeça do rapaz." Que posição ocupamos nós, nós que podemos perceber o aparato da crença religiosa, ou melhor, em que se transforma o inconsciente de cada um, se ele já não dispõe das imagens sociais da religião, organizador tão prático de seu mais íntimo erotismo? Se nos contentássemos com a palavra nihil (marca do recalcamento), não ganharíamos nada, enquanto perderíamos uma potência onírica. Quando se impõe uma contradição que já não pode se apoiar numa distinção entre o bem e o mal, quando o rito religioso não mais oferece o ponto de apoio de seu mistério, não é ao simulacro que convém recorrer, se assim podemos chamar uma montagem ficcional em que talvez não acreditemos, mas que nem por isso será menos eficaz? como a cólera, que, apoiando-se num pretexto derrisório, regra o processo da transgressão. Essa montagem terá a mesma estrutura das religiões, e a mesma eficácia, sem exigir uma crença equivalente. 13 A função dos mitos e das religiões era expor racionalmente um impossível de dizer. Essas religiões continuam a existir, mas, será que sua verdade ainda é reconhecida, e terá ela preservado sua eficácia? Nada é menos certo em nossa cultura. Por isso, para expor o irrepresentável do desejo inconsciente, o recurso à ficção revela-se o processo mais prático, se quisermos tentar dizer alguma coisa dele, apesar da dificuldade. Por que não tentar, de fato, sobretudo se considerarmos a estruturação do vínculo social pela coisa sexual e o incrível desconhecimento em que ela é mantida? Hitler escreveu, sem rir, que não podia se casar, pois a mãe pátria, a Germania, já era sua mulher. Teria ele podido sustentar com tamanha facilidade uma afirmação tão incestuosa, com os benefícios carismáticos que extraiu dela, se as descobertas da psicanálise fossem um pouco mais difundidas quando ele escreveu Mein Kampf? Assim, há algumas vantagens em que os psicanalistas exponham, apesar da dificuldade, o saber contraditório que provém de

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sua experiência. (Que há de mais incompreensível, por exemplo, que uma agressividade cujo resultado é o erotismo?) Revela-se útil o recurso à ficção (que permite essa exposição contraditória), e o relato clínico é um caso particular dela, pois o analisando ficcionaliza seu sintoma, apura seu tempero, assim tornando seus ingredientes mais digeríveis. O "Nada" com que ele se crê confrontado é apenas o nome moderno de seu recalcamento. Não mais encontrando nenhum vestígio de sua ficção no sagrado, ficção do bem soberano e do mal, ocultada pela expansão da fala racional (ada ciência, por exemplo), onde irá ela reaparecer, senão nos recônditos do sintoma, tendo sido perdida em prol de um sofrimento deslastreado de qualquer causalidade? Antes que a fala procure desatar-lhe o nó, o sintoma faz ficção (fixação) daquilo que há de impossível de escrever na relação do homem com a mulher, no nó de amor e ódio que os ata. Uma ficção de uso particular, é claro (e não um novo gênero literário). Mas quem nela se reconhece eleva seus impasses secretos, desse modo, à dignidade de um destino. O ateísmo prático da psicanálise não tem nenhuma necessidade de renegar a existência de Deus, de quem reconhece a concordância com um fato estrutural incontornável, que só é "nada" sob a condição do recalcamento. Ao efetuar essa redução - que é tudo o que se pode esperar atingir como ateísmo-, a psicanálise deixa cada um descobrir seu vínculo místico com a Coisa, que, ao contrário da religião, já não resulta de nenhuma coerção externa. Cada qual, portanto, fica sozinho com uma ficção cujas restrições já não partilha com alguns correligionários, abandonando um dogma comum em favor da flexibilidade de seu romance familiar. É claro que, num e noutro desses casos ilustrativos, ele depara com a interdição. E admitir que existe uma proibição estrutural, interna à sexualidade humana, talvez leve a crer que só resta arriar os braços diante dos regulamentos, dos rituais, das religiões ou dos ditames "médicos" que dão continuidade aos conselhos dos Padres da Igreja nessa matéria. A teoria freudiana pareceria a conta certa, nesse caso, para dar força aos" gorilas" que são herdeiros da Inquisição, bem como a todos os modernos prosélitos do preservativo. Todavia, a interdição que acaba de ser questionada não tem nada a fazer com o regulamento, cuja função, em suma, é basicamente tranqüilizadora, pois deixa os espíritos fracos acreditarem que as dificuldades que eles possam encontrar resultam de um ditame divino ou de uma prescrição da medicina. Melhor ainda, a regulamentação da sexualidade poupa-os de qualquer

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encontro incômodo com a Coisa, encontro que os obrigaria a avaliar suas capacidades de transgressão. Por isso, descobrir a existência de uma limitação interna da sexualidade, que nada deve a Deus nem tampouco à "ciência", de modo algum .consola os defensores da ordem moral, mas antes os desarma, pois eles são confrontados com a impossibilidade de ditar uma regra geral, aplicável à particularidade do desejo de cada um. Assim, não há por que baixar a guarda, em nome de Freud, ante os defensores dessa nova ordem moral, cujos partidários, sob o disfarce dos princípios, gozam por interditar. Despachar esses inúmeros paizinhos não continua a ser de uma tenaz atualidade? E nos entregaremos com entusiasmo ainda maior a esse sadio exercício, na medida em que, em si mesmo, ele não deixará de ser dos mais eróticos, nele encontrando a transgressão uma certa substância, sem dúvida alguma. Há que admitir, portanto, no fim do caminho, que o sintoma persiste, lancinante como sempre. Haverá por que nos queixarmos disso? A violência do erotismo, como vimos, é sintomática no sentido estrito, já que, como o sintoma, resulta da apresentação bifronte das funções paternas. Assim sendo, longe de erradicá-lo, como pretenderia uma certa doxa psicanalítica, todo apaixonado pelo amor mais fará cantar as virtudes do sintoma, pelo menos enquanto ele se situar no terreno do erotismo e enquanto os que forem afetados souberem servir-se dele! Quando tem como ponto de origem e válvula de escape o erotismo, acaso a cólera não é um exercício sadio? Sob esse aspecto, quem não desejaria que a violência em questão permanecesse encerrada no território em que nasce, isto é, no campo do amor? Viva a cólera, quando ela é erótica! Fazer o panegírico do sintoma, sublinhar seu insubstituível valor erótico, decerto fatigante mas, ainda assim, revigorante, eis aí o que sem dúvida há de afastar decididamente o psicanalista de qualquer função religiosa na era moderna - se essa aposta, no entanto, não for arriscada demais.

NOTAS 1. "Religiosamente", para falar com propriedade, segundo a etimologia do termo refigure.

2. Essa particularidade é cuidadosamente ocultada, para que seja possível continuarmos a admirar os valores guerreiros de um César, ou para exaltarmos sem enrubescer a filosofia de um Sócrates, para falar apenas desses dois heróis

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bissexuais, que foram adeptos de uma sodomia longamente condenada pelos Padres da Igreja. Não seria preferível podermos considerá-los como modelos integrais, ainda em uso em nossa civilização? Critique, nQ 195-196, em homenagem a Georges Bataille. Como escreveu M. Foucault em seu artigo "Prefácio à transgressão": "A transgressão não opõe nada a nada ... Justamente por não ser violência num mundo compartilhado (num mundo ético), nem triunfo sobre limites que ela apaga (num mundo dialético ou revolucionário), ela toma, no cerne do limite, a medida exagerada da distância que se abre nele, e desenha o traço fulgurante que o faz existir. Nada é negativo na transgressão ... Mas podemos dizer que essa afirmação nada tem de positivo ... " Heidegger escreveu, por exemplo: "A metafísica como metafísica é o niilismo propriamente dito. Não é pelo fato de que, ao 'pensar' o ser, ela o afaste em si como pensável que a metafísica o ignora, mas porque o ser por si mesmo se exclui (do ente)" (Heidegger, Nietzsche, v.11, p.343, ed. Neske, 1961). Como escreveu Nietzsche (Le Gai Savoir, IV, af. 333), evocando os impulsos contraditórios com que se depara o ato de conhecimento: "O pensamento consciente, notadamente o do filósofo, é o mais desprovido de força." Como realização extrema, um Deus eficaz e inominável aparece fantasisticamente em relação a isso. Será que o impossível da "experiência interior" descrita por Bataille e o Real impossível destacado por Lacan não são, nesse aspecto, figuras epônimas do Deus inominável inventado em Canaã - "aquele que é" (Ex. 3, v.14)-, embora ele não corresponda a "Nada"? O espaço constante da experiência monoteísta terá sido o da morte de um pai divino, reanimado pela fé, menos numa vida depois da morte do que numa vida depois da morte dele. Uma fé na redenção do pecado que consistiu em querer sua morte para poder desejar sexualmente e viver eroticamente. Se o que qualifica o espaço religioso contemporâneo é apenas a perda da fé, ou melhor, sua ocultação, já que persiste a culpa que motiva a esperança do perdão, o pensamento religioso reduz-se ao espaço mínimo exigido pela sexualidade. Não é isso que ocorre com nossa crença numa Ciência em que é difícil distinguirmos até que ponto ela assumiu uma função religiosa - a de ditar novas interdições (ao menos formalmente) sobre a sexualidade? Acaso o médico que interdita qualquer copulação sem o uso do preservativo não assegura, a sua maneira, a continuidade dessa função? Não cremos mais nas ficções religiosas que permitiam regrar as chicanas do desejo, com as quais, no entanto, continuamos a nos confrontar. O progresso do discurso científico levou a rejeitar os mitos religiosos, em nome de uma racionalidade superficial (segundo o princípio do terceiro excluído). Assim, toma-se difícil regrar o que escapa à lógica comum (como acontece com o inconsciente), mas que nem por isso deixa de ser uma lógica de outra ordem (na dimensão três). Sem ser religiosa, essa lógica é não menos indizível. Seu ritual não se tomou tão comum que passa despercebido? Num outro registro, a rigor muito próximo, a dimensão amorosa que a traição comporta aparece com mais clareza: o profanador venera secretamente o Deus a quem trai. Foi o caso de Sabatai Levy, o falso profeta, que quis levar seus irmãos judeus a renegarem sua religião e se converterem ao islamismo. Do mesmo modo, não é possível compreendermos que Hitler se pensava judeu, o que provavelmente

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era por parte de pai, e que fez tudo para escondê-lo? Em certo sentido, nesse exemplo terrível, o traidor não reconheceu aquele a quem renegava? E não faltaram comentadores das Escrituras para mostrar que Judas foi o verdadeiro fundador da religião católica. Há que estarmos mal informados para acreditar que a "morte de Deus" seria uma invenção contemporânea! 11. O monoteísmo suportou explicitamente a contradição que existe entre mortificação e ressurreição - ainda que ignorando a necessidade psíquica a que essa ficção correspondia: que era preciso passar por uma fantasia homicida para gozar, e que continua a sê-lo. A fantasia foi ocultada em nome de Deus, que, em benefício dessa operação amorosa, foi pois o esteio do recalcamento, do inconsciente e do cortejo de gozo refreado que acompanha esse recalcamento. 12. Será que essa noção de uma interdição feita para ser transgredida é tão difícil de compreender? A linguagem comum oferece um exemplo disso. Quando nos perguntam quais são as palavras que não podemos pronunciar sem transgressão, em que palavras pensamos? Aqueles de nós que não tiverem esquecido sua Bíblia hão de lembrar que pronunciar o nome de Deus foi interditado no primeiro monoteísmo. Entretanto, a relação desse mandamento com o gozo não é evidente. Em contrapartida, pronunciar um palavrão é, na maioria das vezes, uma transgressão gozosa. De um lado, há esse nome de Deus, sobre o qual Bataille escreveu: "Não podemos acrescentar impunemente à linguagem a palavra que ultrapassa todas as palavras." Não é que a linguagem comporte uma palavra em excesso, esse nome do Pai, que, à semelhança do nome do Deus dos primeiros monoteístas, não possa ser pronunciado, nem mesmo em voz baixa. Antes, é que esse nome permanece inconsciente na hora da excitação sexual, muito embora contribua para ela. E, por outro lado, outros vocábulos arrastam até a beira desse nome improferível e ali mantêm os da obscenidade, que valem de uma vez por todas pelos nomes impronunciáveis. As palavras obscenas costumam acompanhar o pensamento erótico, na falta da palavra Deus. "Merda", "foda", "babaca", "pica" e" puta" podem ser, nesse aspecto, nomes divinamente excitantes, epônimos do de Deus. A fala comporta em si o recôndito da obscenidade que constitui sua pontuação comum, e oferece suas armas a qualquer um que as use, e que assim salta inocentemente para a categoria dos assassinos. 13. É o que acontece quanto ao erotismo e ao sintoma; este último (como Deus) realmente aparece como uma unidade, mas sua tensão fundamenta-se em sua duplicidade. Do mesmo modo, para alguns místicos-por exemplo, Sta. Ângela de Foligno - , o bem supremo abrange o mal, e os caminhos da Providência nunca chegam tão perto de Deus quanto ao tomar os caminhos do mal, do pecado reconhecido.

Livros que integram a coleção Transmissão da Psicanálise

1 A exceção feminina, Gérard Pommier

2 Gradiva, WilhelmJensen

3 Lacan. Bertrand Ogilvie 4 A criança magnífica da psicanálise, J.-D. Nasio 5 Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia, Jean laplanche e J.-B. Pontalis

6 Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise, Alain Didier-Weill 7 Sexo e discurso em Freud e Lacan, Marco Antonio Coutinho Jorge

8 O umbigo do sonho, laurence Bataille 9 Psicossomática na clínica lacaniana, Jean Guir 10 Nobodaddy - a histeria no século, Catherine Millot

11 Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise, J.-D. Nasio 12 Da paixão do ser à "loucura" do saber, Maud Mannoni

13 Psicanálise e medicina, Pierre Benoit 14 A topologia de Jacques Lacan, Jeanne Granon-lafont

15 A psicose. Alphonse de Waelhens 16 O desenlace de uma análise, Gérard Pommier

17 O coração e a razão, Léon Chertok e Isabelle Stengers 18 O mais sublime dos histéricos, Slavoj Zizek

19 Para que serve uma análise?, Jean-Jacques Moscovitz 20 Introdução à obra de Françoise Dolto, Michel H. Ledoux 21 O conceito de renegação em Freud, André Bourguignon 22 Repressão e subversão em psicossomática, Christophe Dejours 23 O pai e sua função em psicanálise, Joel Dor

24 A histeria, J.-D. Nasio 25 Hõlderlin e a questão do pai, Jean laplanche

26 Eles não sabem o que fazem, Slavoj Zizek

27 A ordem sexual, Gérard Pommier 28 A neurose infantil da psicanálise, Gérard Pommier

29 Pulsão e inconsciente, Noga Wine 30 Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, J.-D. Nasio 31 Psicossomática, J.-D. Nasio 32 Fim de uma análise, finalidade da psicanálise, Alain Didier-Weill 33 Freud e a mulher, Paul-laurent Assoun 34 Conversas com o Homem dos Lobos, Karin Obholzer 35 Eros e verdade, John Rajchman 36 Leitura das perversões, Georges Lanteri-lAura 37 O olhar em psicanálise, J.-D. Nasio 38 Amor, ódio, separação, Maud Mannoni 39 O nomeável e o inominável, Maud Mannoni 40 O real e o sexual, Claude Conté 41 Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott. Dolto, Lacan, J.-D. Nasio 42 Metapsicologia freudiana, Paul-lAurent Assoun 43 A obra clara, Jean-Claude Milner 44 O gozo do trágico, Patrick Guyomard . 45 O estranho gozo do próximo, Philippe Julien 46 Do bom uso erótico da cólera, Gérard Pommier

Este livro foi composto pela TopTextos Edições Gráficas Llda., em Times New Roman. e impresso por Tavares e Tristão Ltda., em junho de 1996.

DO BOM USO ERÓTICO DA CÓLERA e algumas de suas conseqüências ... O que será mais instigante do que adiscussão entre dois amantes, quando seu desfecho se dá numa explosão de paixão ardorosa? Afinal, quanto mais violento o entrevem, mais sensual parece seu epílogo. Mesmo quando os dois amantes percebem estar se entregando a suas tendências belicosas para atingir o clímax libidinoso, nada os demove desse curioso hábito! Caso presenciem tais cenas ocorrerem com casais· amigos, ou observem-nas no teatro ou na literatura, nada os divertirá tanto. Porém, será sem o menor distanciamento que extravasarão sua paixão quando, por sua vez, o demônio da cólera os solicitar. O que há de tão envolvente em tais situações, ao menos quando concernem aos outros? Sem dúvida a conclusão, contrária a suas premissas. É esse paradoxo que justifica nessa ocasião o termo "tragicomédia", embora o primeiro ato possa às vezes beirar a catástrofe. Não será próprio do amor exacerbar violentamente o desejo fazendo uso de um subterfúgio? Tendo seu ponto de partida numa conferência pronunciada no Brasil, este é um dos temas principais desta obra, na qual o autor percorre todo o domínio da vida sexual - cujos limites foram tão bem delineados por Freud.