Discursos e organizações [1 ed.]
 9786559176298

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DISCURSOS E ORGANIZAÇÕES

DIRETORES Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva Universidade Federal de Minas Gerais Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri Universidade Federal de Minas Gerais

COMITÊ EDITORIAL Prof. Dr. Alessandro Gomes Enoque Universidade Federal de Uberlândia Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Dra. Alessandra de Sá Mello da Costa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Prof. Dr. Amon Narciso de Barros Fundação Getulio Vargas Profa. Dra. Ana Silvia Rocha Ipiranga Universidade Estadual do Ceará Prof. Dr. Bruno Eduardo Freitas Honorato Universidade de Brasília Prof. Dr. Diogo Henrique Helal Fundação Joaquim Nabuco Prof. Dr. Eduardo Paes Barreto Davel Universidade Federal da Bahia Profa. Dra. Elisa Yoshie Ichikawa Universidade Estadual de Maringá Prof. Dr. Eloisio Moulin de Souza Universidade Federal do Espírito Santo Profa. Dra. Fernanda Tarabal Lopes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Luciano Mendes Universidade de São Paulo Profa. Dra. Ludmila de Vasconcelos Machado Guimarães Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Dra. Raylene Rodrigues de Sena Universidade do Estado do Amazonas

DISCURSOS E ORGANIZAÇÕES

Organizadores

Luiz Alex Silva Saraiva Georgiana Luna Batinga

Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Lucas Margoni Imagem de Capa: Chop Suey - Edward Hopper

A Editora Fi segue orientação da política de distribuição e compartilhamento da Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio que permitiu a publicação desta obra.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SARAIVA, Luiz Alex Silva; BATINGA, Georgiana Luna (Orgs.) Discursos e Organizações [recurso eletrônico] / Luiz Alex Silva Saraiva; Georgiana Luna Batinga (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

363 p. ISBN: 978-65-5917-629-8 DOI: 10.22350/9786559176298

Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Discurso; 2. Organização; 3. Sociedade; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título. CDD: 346.06 Índices para catálogo sistemático: 1. Organizações e sociedade 346.06

SUMÁRIO

PREFÁCIO

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José Henrique de Faria

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DISCURSOS E ORGANIZAÇÕES: O QUE, COMO E PORQUÊ Georgiana Luna Batinga Luiz Alex Silva Saraiva

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ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: ALGUMAS QUESTÕES DE METODOLOGIA PARA OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Maria Carmen Aires Gomes Viviane Vieira

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CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA PARA OS ESTUDOS DAS PRÁTICAS DE GESTÃO Joelma Soares da Silva

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A ACD E O MODELO TRIDIMENSIONAL DE FAIRCLOUGH Georgiana Luna Batinga Luiz Alex Silva Saraiva Marcelo de Rezende Pinto

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A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA DE RUTH WODAK NOS ESTUDOS DE DISCURSO Elisângela de Jesus Furtado da Silva Fabiane Louise Bitencourt Pinto Luiz Alex Silva Saraiva

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A ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA: DA TEORIA À PRÁTICA Felipe Fróes Couto Alexandre de Pádua Carrieri

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A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO EM NORMAN FAIRCLOUGH E OS GÊNEROS DISCURSIVOS COMO ELEMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÍTICA COGNITIVA E DO FUNCIONAMENTO DAS ORGANIZAÇÕES Fernanda Mitsue Soares Onuma

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A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: UMA ABORDAGEM PARA A ANÁLISE DO DISCURSO DA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL SOBRE O PERFIL DO TRABALHADOR Helena Kuerten de Salles

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PRÁTICAS DISCURSIVAS ORGANIZACIONAIS: UMA ANÁLISE DA “NOVA” PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO A PARTIR DO APARATO EPISTÊMICO DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO FAIRCLOUGHNIANA Fábio Melges Georgiana Luna Batinga Elcio Gustavo Benini

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ANÁLISE ESTRUTURALISTA DO DISCURSO E HISTÓRIAS DE VIDA: ENCONTROS E DESENCONTROS Luiz Alex Silva Saraiva Matheus Arcelo Fernandes Silva

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NARRATIVAS DE VIDA DE TRABALHADORES TERCEIRIZADOS: IMAGINÁRIOS SOBRE A PRECARIEDADE DO TRABALHO E (RE) INSCRIÇÃO DA VIDA EM NOVOS PROJETOS DE EXISTÊNCIA Cláudio Humberto Lessa Juliana Pacheco

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

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PREFÁCIO José Henrique de Faria

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Neste livro “Discursos e Organizações”, que tenho a honra de prefaciar, organizado por Luiz Alex Silva Saraiva e Georgiana Luna Batinga, encontram-se onze capítulos didaticamente elaborados, sem abandonar as provocações reflexivas. Trata-se de um livro oportuno, que oferece para professores, pesquisadores e estudantes, especialmente na área de Estudos Organizacionais, a oportunidade de peregrinar por um tema complexo e repleto de armadilhas. O que se encontra aqui é um fundamental esforço bem sucedido de exposição teórica e metodológica, criticamente construída, para ser discutida, refletida e referenciada. Abrindo as exposições, Georgiana Luna Batinga e Luiz Alex Silva Saraiva, em “Discursos e Organizações: o que, como e porquê”, defendem a “centralidade do discurso na vida e seu lugar de vinculação entre a linguagem e a realidade social, corroborando a Sociolinguística, na qual linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inseparável e representando a base da constituição humana”. Em seguida, apresentam os demais dez capítulos que constituem esse importante livro. Não tenho dúvidas que esse livro será consulta obrigatória para as disciplinas de metodologia, especialmente as que se desenvolvem em torno das técnicas qualitativas.

Professor Titular Sênior Aposentado, Universidade Federal do Paraná. Professor Visitante, Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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Ao ter o privilégio de ler todos os capítulos antes da publicação do livro, fui levado a refletir sobre a questão posta: discurso e organizações. Há uma questão concreta que inaugura a reflexão sobre o tema. Tudo o que não está enunciado não tem como ser socialmente compartilhado. Como se enuncia? Pelo discurso, pela narrativa, pelos símbolos, sinais, caracteres, figuras, imagens, gestos, expressões etc. O discurso é uma forma de enunciação de algo, seja esse um objeto real, seja uma ideia ou uma imaginação que se apresenta aparentemente destituída de sentido. De uma perspectiva epistemológica, metodológica e teórica, Análise de Discurso é um dos procedimentos mais complexos das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas e Jurídicas. Primeiro, porque não é uma técnica ou um modus operandi, mas um procedimento epistêmicometodológico. Segundo, porque não existe uma única concepção de Análise de Discurso, mas várias. Terceiro, porque, não obstante se possa escolher uma concepção, as interpretações dos discursos não são pacíficas. Insisto: todo discurso é uma forma de enunciação, é um enunciado. E todo enunciado se encontra alojado em uma rede de significantes, ou seja, não há um único e definitivo significante e tampouco um único significado absoluto e definitivo para um enunciado. Esta condição tem levado alguns pesquisadores a argumentar a favor da supremacia das técnicas quantitativas, por sua exatidão. Mas este argumento é falso. Sem significantes, números nada dizem além de sua abstração. E todo significante exige ser enunciado, em uma rede complexa e contraditória de significantes. O conceito de enunciado não é pacífico. Vou me referir, aqui, apenas para efeito de esclarecimento, duas distintas concepções: Bakhtin e Foucault. Para Bakhtin (1992, p. 293), enunciado é a “unidade real da comunicação verbal”, ou seja, toda comunicação tem por base o enunciado,

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de forma que o discurso “se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma” (Bakhtin, 1992, p. 293). “As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicação verbal são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes [...]” (Bakhtin, 1992, p. 294). O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro acerca desse objeto. A mais leve alusão ao enunciado do outro confere à fala um aspecto dialógico que nenhum tema constituído puramente pelo objeto pode conferir-lhe. A relação com a palavra do outro difere radicalmente por princípio da relação com o objeto, mas sempre acompanha esta última. Repetimos, o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica (Bakhtin, 1992, p. 320). Para Foucault, enunciado é o que realmente é pronunciado independentemente do que nele se encontra textualizado, de sua origem, da intenção do enunciador ou de sua unidade interna. O reconhecimento do enunciado, para Foucault, é sua “função enunciativa” e não o conteúdo textual ou o ato de pronunciamento. “O sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos” (Foucault, 1972, p. 113). O enunciado é, portanto, parte de um conjunto no interior de uma relação,

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de um “jogo enunciativo”, que não tem existência independente, mas que se insere em um sistema de acontecimentos. O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regras se sucedem e se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita) (Foucault, 1972, p. 105). Enquanto Bakhtin enfatiza a interação verbal, em que o enunciado somente existe a partir de uma relação com o outro, Foucault valoriza o sujeito despersonalizado, de forma que o sujeito do enunciado é uma “posição ocupada”, um “espaço vazio”, que pode ser tomado por qualquer indivíduo. Já se pode notar, desde logo, que o terreno por onde anda o discurso é acidentado e repleto de trilhas. Sem desejar indicar um caminho nesta selva, e apenas para iluminar os argumentos, vou tratar por enunciado toda exposição, por parte de sujeitos reais, de seus pensamentos, reflexões, interpretações, representações, percepções (através dos sentidos) e sentimentos, que se manifestam em diferentes formas de expressão, ou seja, como declaração oralmente dita ou não dita, exposta pela fala ou pelo silêncio, escrita ou indicada por sinais, desenhos, símbolos e gestualidade. Em outros termos, o enunciado, seja ele verbal, visual ou sensorial (percebido pelos sentidos), é uma forma de representação ou de manifestação (de pensamentos, reflexões etc.) de significantes que tem, para determinados grupos sociais, em dado contexto sócio-histórico concreto, significado e sentido universal ou particular/singular. Enunciados são, portanto,

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diálogos, não apenas registros escritos ou meras junções de palavras ou símbolos, mas estruturas de significantes e de sentidos sociais ou coletivos, sejam estes explícitos (expresso por palavras escritas, expressões orais, símbolos, gestos, sons) ou implícitos (justaposto ao fato a partir do qual o enunciado é produzido). Os enunciados, portanto, se apresentam tanto através de elaborados conceitos e teorias, como de concepções, descrições, nominações, expressões visuais, gestos, símbolos, desenhos, silêncios, não ditos etc. O enunciado é, desta forma, um registro produzido a partir de uma politextualidade. Em resumo, enunciado é o ato de representação, pelos sujeitos reais, de seus pensamentos, reflexões, percepções e sentimentos, por meio da exposição (oral, escrita, artística etc.), indicação, transmissão, simbolização e quaisquer outros modos de registro, independentemente de suas formas, sejam estas expressas de maneira explícita ou implícita. Neste sentido, o enunciado é um fato, mas não é o fato que enuncia e sim o registro politextual capaz de exteriorizar o que foi interiorizado na relação dinâmica e dialética com o concreto e que se encontra (i) no pensamento, no ato de pensar, de forma consciente (elaborada) ou não consciente (em elaboração ou resultado da percepção imediata), (ii) no sentimento (condição de sentir) ou (iii) no processo subjetivo social e mesmo inconsciente da representação. A tarefa de tomar o enunciado como fato na pesquisa, como objeto do pensamento, consiste em encontrar nele não ele mesmo, ele em si, mas sua origem objetiva (que é subjetivada pelos sujeitos), porquanto o enunciado é a única mediação possível entre o concreto e sua expressão ou representação. Considerar o enunciado ele mesmo como a própria realidade referida é desconsiderar a mediação do concreto pelo pensamento, como se o enunciado fosse uma atividade não mediada, direta, imediata: este procedimento só

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revela e só pode revelar a realidade aparente, interpretada, distorcida, imaginada. Contudo, é preciso observar se o discurso, como uma forma de enunciado, é ele mesmo objeto ou se ele é uma forma de representação politextual de significantes. Se ele é objeto, tem-se uma Análise do Discurso, de sua gramática, das normas, de sua forma de construção, das regras, de sua condição de comunicação como linguagem etc. Se o discurso é considerado como forma de representação, além das questões gramaticais, normativas, linguísticas e comunicativas, há o complexo problema do desvendamento do seu conteúdo e da interpretação. Assim, uma Análise de Discurso é necessariamente um desafio, pois o objeto não é o enunciado em si, mas os significantes, os significados e os sentidos que o discurso representa em sua produção concreta. Essa rede de significantes em que estão alojados os discursos, ou seja, essa politextualidade em que o discurso se expressa coloca frente a frente, dialógica e dialeticamente, os falantes. A realidade imediata ou mediada pelo pensamento e expressa em sua forma discursiva, é uma abstração de origem socialmente subjetiva em busca de objetivação concreta. No campo dos Estudos Organizacionais os pesquisadores se defrontam permanentemente com enunciados em suas diversas formas: teorias, documentos, relatórios, manifestações, entrevistas, imagens, símbolos, estatísticas, narrativas, observações. Há, contudo, diferentes meios de acesso a estes enunciados e diferentes procedimentos analíticos dos mesmos. Como já argumentado anteriormente, em linhas gerais, pode-se considerar, de maneira simplificada, que (i) ou o objeto é o enunciado em si mesmo (como em determinadas análises de conteúdo e do discurso), (ii) ou é quem enuncia (o enunciador, o falante etc.), (iii) ou é a coisa representada no enunciado. Entretanto, diversas

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análises tomam o enunciado como sendo equivalente direto do próprio fenômeno que ele pretende enunciar (o mediato é exatamente o imediato) e, ao final, nem tratam do objeto representado (que misticamente desaparece, pois foi arbitrariamente substituído pelo enunciado), nem do conteúdo mesmo do enunciado (o que o enunciado essencialmente diz), nem dos sentidos e significados que o enunciado quer enunciar. Os enunciados, embora contenham em si a representação do fenômeno que pretendem representar, qualquer que seja este fenômeno lato sensu, não se apresentam no imediato como uma forma já elaborada, ou seja, como já sendo a realidade expressa. Quando o pesquisador considera, por exemplo, aquilo que é expresso em uma entrevista como sendo a representação elaborada da realidade, sobre a qual não cabe nenhum tensionamento crítico, ele está tomando a aparência ou o pseudoconcreto como concreto pensado. O enunciado é, em diferentes “magnitudes” e diferentes “níveis” de profundidade, uma mediação entre o fenômeno, lato sensu, e sua representação. A forma de enunciar e o que o enunciado enuncia são ambos relevantes na produção do conhecimento. Neste sentido, para que se configure um Ato Epistemológico científico, filosófico, tecnológico, cultural ou artístico, o enunciado, qualquer que seja a maneira de sua manifestação, deve ser submetido a uma análise crítica ao mesmo tempo de sua forma e de seus significantes, significados e sentidos. Os significantes e significados estão, desde logo, inscritos ontologicamente nas relações sociais e históricas, pois o sujeito que enuncia é um ser social e o objeto que ele enuncia é matéria natural e/ou socialmente produzida. O enunciado ele mesmo, em sua exposição primeira, é o ponto de partida para alcançar a materialidade que o originou. Para ter acesso ao concreto que foi enunciado, independentemente de como este se

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apresenta, é necessário reencontrá-lo no próprio enunciado. Para tanto, é imprescindível um aporte ontológico que contemple o ser social que enuncia e a matéria enunciada. Na perspectiva dos Estudos Organizacionais, o discurso, como forma de enunciação (como enunciado) é expressão da mediação social e coletivamente significada entre um fato ou fenômeno, concreto ou imaginário, objetivo e subjetivo, e sua representação no plano da enunciação pelo sujeito. Contudo, a forma expressa ou enunciada do discurso pode não necessariamente corresponder ao fato original mediado, porquanto pode traduzir expectativas, interpretações distorcidas, projeções, ideologias, valores, crenças, desejos, interesses particulares, imaginações, avaliações parciais e/ou falsas (propositais ou não), pronunciamentos equivocados ou disfarces. É neste sentido que a multiconfrontação entre diversos enunciados sobre o mesmo fenômeno concreto é uma das formas necessárias de aproximação, por parte do pesquisador, da consistência destes enunciados acerca do fenômeno estudado. A multiconfrontação se dá entre todas as enunciações, ou seja, nos diversos registros politextuais (fala, textos formais, documentos, observações, relatos, descrições, símbolos etc.) na busca pela unidade sintética possível das mediações e de suas múltiplas contradições. É nesse sentido que a Análise (Crítica) de Discurso é um desafio permanente para todo pesquisador. Ontologicamente, sujeito (pesquisador) e objeto (fato material) se encontram em uma relação historicamente situada, de maneira que é impossível que entre eles subsista uma neutralidade que emergiria tanto do enunciado como de seu fato gerador. O desafio do pesquisador é, exatamente, considerando a ontologia que expressa tanto o registro politextual (aquilo que se encontra em diversas formas de enunciado),

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como seu fato concreto gerador (ou sua negação), encontrar a origem social e concretamente mediada do registro politextual. Origem essa, em geral, factualmente não disponível, pois se encontra em fatos representados e não necessariamente em toda sua concreticidade constitutiva. O fato material, no sentido empregado aqui, refere-se a todo fato ou fenômeno passível de cognoscibilidade (cognoscível), seja ele físico ou não. Registro Politextual compreende, portanto, todas as formas de expressão objetivas e subjetivas do pensamento ou do sentimento que o ser social (de maneira individual e/ou coletiva) produz a partir de várias formas de expressão socialmente reconhecidas: discursos, narrativas, textos reais ou ficcionais, documentos, objetos/artefatos, figuras, imagens, sons, símbolos, gestos, silêncios etc. É nesse sentido que reafirmo a concepção de que uma realidade não registrada, independentemente da forma de registro (símbolos, figuras, desenhos, marcas, escritas ou propriedades físicas), não pode ser concreta e historicamente apreendida. Um fenômeno concreto que não tem registro, seja ele simples ou complexo, não tem como ser compartilhado coletivamente, ou seja, não é acessível à consciência coletiva, inobstante ser um fenômeno real. O registro é, portanto, a materialidade do enunciado e constitui, nesta perspectiva, a forma socialmente mediada entre o ser social e a realidade que ele quer representar, conhecer ou mesmo negar. Tal processo de mediação não é linear, ou seja, exige uma interação complexa entre o ser social pesquisador, o ser social do enunciado, o próprio enunciado e o fenômeno concreto que ele quer acessar e representar. Trata-se de um ir-e-vir entre os diferentes momentos da investigação até que seja alcançada a totalidade cognoscível, ou seja, a realidade mediada pelos enunciados multiconfrontados.

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A Enunciação do Fato (o registro politextual) Coletivamente Significado se apresenta para o pesquisador como o ponto de partida imediato de acesso à realidade, a exigir mediação dedicadamente elaborada. O enunciado não é o início do fato, não é a origem do fato e não é, definitivamente, o fato. O enunciado encontra-se na origem do acesso ao fato, à realidade manifesta, ao fenômeno concreto registrado. O fato ou fenômeno concreto que dá origem à enunciação textual (ao registro textual) pelo ser social não tem como ser diretamente identificado como fato-em-si (coisa-em-si), pois já se acha mediado quando é enunciado, ou seja, o fato que deu origem ao registro politextual já será um fato-para-si ontológico socialmente significado. Trata-se, então, de saber: (i) o que (qual fenômeno) o pesquisador deve encontrar no enunciado? (ii) como o pesquisador encontra o fato gerador do registro politextual? Permito-me sugerir que o que o pesquisador encontra não é e tampouco poderia ser o fato ele mesmo, em sua inteireza concreta imediata e absoluta, mas o fato gerador mediado pelo enunciado do ser social que deu origem ao registro politextual, ou seja, o fato que motivou seu enunciado. Desta forma, o que o pesquisador deve se empenhar em encontrar é, ontologicamente, o fato ou fenômeno concreto que deu origem ao enunciado em sua totalidade cognoscível (e não em sua totalidade factual). Para tanto, é necessário tensionar o enunciado, ultrapassando sua aparência fenomênica, ou seja, sua mediação primária textualmente registrada. Essas reflexões que faço aqui, neste Prefácio, possuem mais indagações e provocações do que respostas. Mas essa é a questão de fundo da Análise de Discurso. O discurso, como a forma mais amplamente disponível de enunciado nos Estudos Organizacionais, é um fato complexo,

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difícil e, ao mesmo tempo, uma fonte necessária fundamental na produção do conhecimento. Não há uma resposta fácil para analisar discursos, uma técnica infalível, uma espécie de Vade Mecum para toda vida acadêmica. Exatamente por isso é que esse livro, ao enfrentar a questão do discurso nas organizações, é tão oportuno e necessário. REFERÊNCIAS

Bakhtin, M. (Voloshinov) (1992). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. Foucault, M. (1972). A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes.

1 DISCURSOS E ORGANIZAÇÕES: O QUE, COMO E PORQUÊ Georgiana Luna Batinga Luiz Alex Silva Saraiva

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Diferentemente de outras abordagens possíveis para a condução de pesquisas qualitativas, a Análise do Discurso (AD) se diferencia de todas e de várias maneiras, pois reúne um conjunto de características que contribui com singularidade e profundidade para a compreensão de distintos problemas, objetos e contextos de pesquisa. Para além de ser considerada apenas uma técnica de análise de dados, ela nos conduz a um caminho bastante consistente para compreensão dos dilemas, desafios, ambiguidades e contradições inerentes ao nosso campo. A análise do discurso se constitui a partir e para as Ciências Humanas e Sociais como uma perspectiva que não tem a pretensão de oferecer apenas um ferramental metodológico aos pesquisadores, o que significa dizer que é imprescindível dispor de elementos teóricos para as análises, recorrendo ao mesmo tempo a dispositivos teóricos e metodológicos, sendo improvável dissociá-los. Defendemos a centralidade do discurso na vida e seu lugar de vinculação entre a linguagem e a realidade social, corroborando a Sociolinguística, na qual linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inseparável e representando a base da constituição humana.

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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Universidade Federal de Minas Gerais.

Georgiana Luna Batinga; Luiz Alex Silva Saraiva

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Nesse ponto, é importante afirmar que acreditamos em uma realidade construída discursivamente – pois um discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos e múltiplas realidades. Por isso, ressaltamos a importância da linguagem e do discurso na sua relação com a exterioridade, com a vida social e com os Estudos Organizacionais. Entendemos ainda que ao significar o social, a análise do discurso condiciona a língua à exterioridade, à ideologia e ao inconsciente. Neste sentido, a AD produz um deslocamento mais significativo do que fora proposto pela Sociolinguística, principalmente em face da natureza dicotômica da língua/fala, ao deslizar para a relação não dicotômica língua/discurso. E, trabalhar nos entremeios, na reintrodução do sujeito e na situação do campo, ela termina por ressaltar a diligência da língua em movimento, e a ideia de que tanto o sujeito quanto a situação podem ser redefinidos e ressignificados o tempo todo, produzindo sentidos e significâncias (Orlandi, 2002; 2009). Quem analisa o discurso, não pode abrir mão dos sentidos, pois considera o processo de desconstrução, construção e compreensão incessante de seu objeto: o próprio discurso. Nessa perspectiva, o discurso é a linguagem em ação, o elemento que aproxima o sujeito de sua realidade social, manifesto na comunicação entre e com outros sujeitos, organizações e demais atores que circulam no contexto social e se expressam de diversas maneiras, produzindo sentidos enquanto membros de uma sociedade. É a palavra em movimento, é a língua criando elementos simbólicos, constitutiva do homem e de sua história (Orlandi, 2009). E é na produção de sentidos que surge a noção de formação discursiva, pois “a produção de sentido é parte integrante da interpelação do indivíduo em sujeito, na medida em que, entre outras determinações,

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o sujeito é produzido como ‘causa de si’ na forma-sujeito do discurso, sob o efeito do interdiscurso” (Pêcheux, 1988, p. 261). Sabemos que o sentido está lá, mas não está dado, pois se traduz nas formações ideológicas materializadas na linguagem, determinando o que pode e o que não pode ser dito, o que convém ou não convém dizer (Courtine, 2009). Desse modo, tanto a Análise do Discurso Francesa 3 quanto a Análise Crítica do Discurso 4 partem de posições comuns, mas se desdobram em ênfases e prioridades distintas. São comuns a ambas as abordagens: a concepção de discurso, de formação discursiva e de ordem do discurso em Foucault (2007); a base nos ideais marxistas que procuram compreender as transformações do capitalismo face à globalização; e as características inter e transdisciplinares, estão comprometidas em analisar e (des) revelar a função do discurso na (re) produção de dominação social. Nesse sentido, interessa-nos conhecer as condições de produção do discurso, um conceito da análise do discurso pecheutiana que remete diretamente às relações de forças constitutivas da prática discursiva, representadas pelos lugares sociais e suas representações (Courtine, 2009). Dizem respeito aos lugares sociais ocupados pelos sujeitos falantes e sua posição relativa no discurso. É quando assumimos a desigualdade existente entre eles e entre os lugares que ocupam – o que se materializa nos poderes exercidos na produção social. No entanto, essas desigualdades não são rígidas, pois sobre elas paira a possibilidade de ruptura, e, portanto, de alteração dessas condições (Orlandi, 1987). Sabemos que a atividade discursiva não ocorre no vácuo, e, por isso, 3

A Análise do Discurso Francesa também é chamada de Análise Estruturalista do Discurso.

A Análise Crítica do Discurso também é denominada de Análise do Discurso Crítica (ADC). Mantivemos as duas formas nesta introdução e ao longo do livro de maneira a preservar as escolhas dos autores.

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para entender os discursos e seus efeitos, devemos entender o contexto em que eles surgem, as características da situação social ou do evento comunicativo que pode influenciar sistematicamente o texto ou o falar (Van Dijk, 1997a). O discurso é ainda um modo de ação e suas manifestações nos diversos gêneros discursivos e em suas condições de produção nos remetem diretamente às relações de forças constitutivas da prática discursiva, representadas pelos lugares sociais e suas representações. Neste sentido, Fairclough (2001) o entende como uma prática social reprodutora e transformadora de realidades sociais. O autor acredita na relação dialética entre sociedade e sujeito, que se moldam e se transformam, ideológica e linguisticamente, por meio de práticas discursivas de reprodução, contestação, reestruturação, dominação e suas formações discursivas – seja resistindo, ressignificando ou se reconfigurando. Uma noção central na maioria dos trabalhos críticos do discurso é o poder, e, mais especificamente, o poder social exercido por grupos e instituições, manifestando-se em termos de controle social, cuja intensidade pode ser medida em maior ou menor poder, o quanto forem capazes de exercer maior ou menor controle sobre os atos e as mentes dos seus participantes e até mesmo de outros grupos. Existem pelo menos dois tipos de relações que o poder estabelece com o discurso: o poder no discurso, manifesto explicitamente no texto, na escolha das palavras que o compõe e na linguagem; e o poder que se esconde no discurso, cuja origem se encontra nas ordens discursivas às quais o texto está vinculado (Fairclough,1989). Essas relações de poder no discurso e de poder que se esconde no discurso, na maioria das vezes representadas pela relação entre linguagem e estruturas sociais, não são perceptíveis e não aparecem explicitamente. No entanto, os textos

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revelam, por meio de marcas discursivas, a dinâmica e da interação dessas relações sociais (Fairclough, 2001). Essa habilidade também pressupõe o acesso privilegiado a recursos sociais tais como força, dinheiro, status, fama, conhecimento, informação, cultura, ou na verdade, a várias formas públicas de comunicação e discurso (Van Dijk, 2008, p. 117). Esta é a proposta da análise crítica do discurso, pensar a linguagem para controlar a estrutura social e desestabilizar esse controle: “esta consciência crítica sobre práticas linguísticas cotidianas responde a mudanças fundamentais nas funções que a linguagem cumpre na vida social” (Fairclough & Wodak, 2000, p. 369), funções essas, representadas na linguagem instrumentalizada, tecnologizada, na linguagem publicitária, usada para seduzir e consumir, para vender, entreter, que refletem o homem e suas práticas sociais, por exemplo. As práticas sociais utilizadas por quaisquer organizações são mediadas via linguagem, que assume um papel central nas relações, pois é por meio dela que ocorrem as interações sociais (Bakhtin, 1998), em um determinado contexto social. Assim, estudar o discurso organizacional é uma maneira poderosa para explorar os processos da organização e, em particular, suas fragilidades. Podemos ainda estudar os efeitos políticos do discurso organizacional e observar como ele atua enquanto um recurso cultural, como diz Van Dijk (1997b), uma vez que o discurso como campo de estudo é “difuso” e abrange uma série de abordagens construídas por uma grande variedade de disciplinas. Neste sentido, os discursos organizacionais desempenham um papel na construção social da realidade não se limitando apenas a descrevê-la, mas, também, a criá-la, pois são constituídos socialmente e socialmente constitutivos, produzindo objetos de conhecimento,

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identidades sociais e relações entre os sujeitos (Fairclough & Wodak, 1997). Portanto, a maioria dos contextos – incluindo as organizações – consiste em discursos múltiplos e fragmentados que proporcionam aos sujeitos enunciadores determinadas escolhas. A interdiscursividade pode ser uma estratégia importante para provocar mudanças (Fairclough, 1992). Estudar o discurso significa compreender as propriedades do texto, do discurso e de seu contexto, assim como as características da situação social ou do evento comunicativo que pode influenciar sistematicamente o texto ou o falar. Portanto, a atividade discursiva deve ser estudada como uma parte constitutiva do seu contexto local, global, social e cultural (Van Dijk, 1997b). Dessa maneira, o objetivo desta obra não é construir um amplo referencial da produção acadêmica nacional sobre a Análise do Discurso e os Estudos Organizacionais. Entendemos que nosso campo possui uma produção sólida, mas que se apresenta em sua maioria de forma fragmentada, com algumas raras exceções. Dessa forma, propomos reunir nesse livro contribuições de diferentes pesquisadores especializados nesses temas, condensadas em uma obra que pretende ser um material de consulta sobre esta temática, continuando diálogos já iniciados em outro momento (Carrieri, Saraiva, Pimentel & Souza-Ricardo, 2009). O argumento central para a elaboração deste livro é reunir alternativas para condução de pesquisas em Estudos Organizacionais, sobretudo, a partir e por abordagens críticas do discurso. Com isso, reunimos vários textos a partir dos temas e contextos de pesquisa privilegiados por cada pesquisador, com discussões presentes ao longo de todos os capítulos que buscaram priorizar as adversidades e riqueza de temas que acompanham nosso campo. São 10 capítulos escritos especialmente para essa coletânea, nos quais, 16 pesquisadores,

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de diferentes localidades e atuando em distintas instituições de ensino superior brasileiras, apresentaram suas ideias, ponderações, provocações e indagações sobre questões envolvendo sua prática e suas experiências de pesquisa em Análise do Discurso. Abrindo os capítulos, Maria Carmen Aires Gomes e Viviane Vieira, em “Análise de Discurso Crítica: algumas questões de metodologia para os estudos organizacionais” apresentam uma importante discussão que privilegia a constituição dos estudos críticos do discurso ou da abordagem crítica do discurso. As autoras reconhecem a intensa proximidade percebida entre os Estudos Organizacionais e os Estudos da Linguagem, considerando seu uso em contextos sociais situados (discurso) e sua função na constituição de identidades, ações e relações sociais, sistemas de conhecimentos/saber e suas articulações com as relações de poder. No decorrer de suas buscas, ressaltam que a maioria das publicações em Estudos Organizacionais tem privilegiado as abordagens discursivocríticas, principalmente aquelas baseadas no método relacional-dialético, o que parece indicar a formação de uma identidade ao campo que prioriza a condução de pesquisas na perspectiva crítica. Nesse sentido, privilegiando o viés crítico-explanatório, as autoras nos oferecem um conjunto de procedimentos metodológicos que orientam os pesquisadores na condução de pesquisas nessa perspectiva, compostos pelos seguintes elementos: natureza específica do método; conceito de discurso; produção e seleção de dados, sistematização do corpus de informações de pesquisa; análise social e discursiva. Corroborando o primeiro capítulo, em “Contribuições teórico-metodológicas da análise de discurso crítica para os estudos das práticas de gestão”, Joelma Soares da Silva resgata a ampla utilização de análises críticas nos Estudos Organizacionais brasileiros, desde a década de 1980,

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quando um número significativo de pesquisadores tem recorrido a diversas propostas teórico-metodológicas transdisciplinares, a exemplo da Análise de Discurso Crítica (ADC) para a condução de suas investigações. A autora defende como a ADC tem contribuído de forma valorosa para os estudos da linguagem e da sociedade, especialmente para compreensão de alguns dilemas do cotidiano relacionados às questões sociais que nos cercam. Desse modo, a autora apresenta uma proposta teórico-metodológica de pesquisa para o campo de Estudos Organizacionais a partir do modelo analítico transdisciplinar proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999), que considera o discurso como um momento da prática social que, juntamente com outros momentos (elementos), compõem a prática e dialogam entre si. Na sequência e de modo correlato, temos no capítulo três o texto “A ACD e o modelo tridimensional de Fairclough” de Georgiana Luna Batinga, Luiz Alex Silva Saraiva e Marcelo de Rezende Pinto, que reúne as principais ideias da Análise Crítica do Discurso (ACD) enquanto uma abordagem teórico-metodológica, com ênfase no modelo tridimensional de Fairclough (2008) como um enquadramento analítico privilegiado nos Estudos Organizacionais. Para isso, os autores apresentam uma revisão acerca dos aspectos ontológicos, epistemológicos e metodológicos, reconhecendo, sobretudo, o posicionamento crítico e emancipador que a Análise Crítica do Discurso atribui às pesquisas no campo dos Estudos Organizacionais. Ademais, o texto apresenta como a ACD é abordada enquanto uma proposta que agrega características interdisciplinares voltadas para estudar fenômenos sociais complexos, a partir de uma abordagem multidisciplinar. Na sequência, o capítulo “A perspectiva histórico-discursiva de Ruth Wodak nos estudos de discurso”, de Elisângela de Jesus Furtado

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da Silva, Fabiane Louise Bitencourt Pinto e Luiz Alex Silva Saraiva, se propõe a contribuir, de forma introdutória, para o entendimento e possibilidades da Análise Crítica do Discurso (ACD) sob a ótica de um de seus expoentes, Ruth Wodak. A linguagem sintetiza a expressão daquilo que é próprio do humano. Tudo que somos, tanto em termos de possibilidade quanto de forma concreta, pode ser representado por meio da linguagem. Isso faz com que ela seja uma fonte valiosa e inesgotável em termos de análise em Ciências Sociais. Mais que um ferramental metodológico, esta abordagem representa um avanço e um processo de sofisticação em diversas dimensões analíticas, o que atrai a atenção de um número crescente de pesquisadores. Ao longo do capítulo, os autores apresentam os conceitos elementares de discurso, os aspectos associados ao método e à aplicação da Análise Crítica do Discurso, a dimensão política da ACD, a estruturação e análise dos dados e as conclusões, que defendem a necessidade de óticas científicas humanizadas e politicamente engajadas em prol da emancipação social. Felipe Fróes Couto e Alexandre de Pádua Carrieri, em seu capítulo “A abordagem sociocognitiva: da teoria à prática”, trazem a abordagem sociocognitiva enquanto uma pesquisa qualitativa crítica que reside na escolha epistemológica que a fundamenta. Os autores ressaltam que não se pode perder de vista que a vocação da pesquisa de natureza crítica não está na tentativa de desvendar as regras do universo, mas desafiálas, levando ao questionamento e à mudança das estruturas e mecanismos sociais. Em outras palavras, a crítica não descreve algo como é, mas como deveria ser, e intenta a mudança desejada, que deve erradicar a opressão e conduzir à emancipação dos agentes, desafiando hegemonias. O capítulo convida o(a) leitor(a) a explorar as construções teóricas de Teun A. Van Dijk e propõe um roteiro de análise a partir de suas

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ideias, fomentando o uso da Análise Crítica do Discurso como referencial metodológico nos Estudos Organizacionais brasileiros. Defendendo o potencial de contribuição da ACD faircloughiana para a compreensão das organizações, Fernanda Mitsue Soares Onuma defende, no capítulo “A Análise Crítica do Discurso em Norman Fairclough e os Gêneros Discursivos como elementos para a compreensão da política cognitiva e do funcionamento das organizações”, o argumento de que a ACD é capaz de não apenas desvelar o fenômeno da política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981), mas, demonstrar também como os elementos da vida social (como as semioses e as práticas sociais) interagem dialeticamente na produção das organizações. Dito isso, ressalta a ausência de um importante elemento da análise das práticas discursivas na abordagem faircloughiana, cujo potencial teórico e prático tem sido negligenciado dentro dos estudos organizacionais: os gêneros discursivos. Dessa forma, apresenta uma análise empírica do caso da Samarco e o conceito de política cognitiva, conduzindo sua análise para descobrir como a organização utilizou a escolha de gêneros discursivos para controlar sua imagem empresarial após a ruptura da Barragem de Fundão. No capítulo “A Análise Crítica do Discurso: uma abordagem para a análise do discurso da Quarta Revolução Industrial sobre o perfil do trabalhador”, Helena Kuerten de Salles apresenta cuidadosamente como a Análise Crítica do Discurso tem sido uma alternativa teórico-metodológica para os Estudos Organizacionais Críticos, pois contribui para o exame de questões sociais do mundo contemporâneo e busca desnaturalizar crenças que servem de suporte às estruturas de dominação. Partindo desse contexto, a autora introduz a abordagem de Norman Fairclough, enfatizando seus aspectos teóricos e metodológicos mais

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essenciais, com vistas a ressaltar sua pertinência para o campo dos Estudos Organizacionais. E para sustentar seu argumento, a autora faz uma análise empírica de trechos dos relatórios The Future of Jobs evidenciando a precarização impelida ao que denomina de neosujeito forjado pelo discurso da Quarta Revolução Industrial. O discurso disseminado para constituição desse novo perfil de trabalhador sustenta uma suposta liberdade para os sujeitos empreenderem suas vidas, suas carreiras e suas relações. Nesse contexto, ganha relevância o discurso do empreendedor de si, seja seu próprio patrão, favorecendo a instauração de novas e sofisticadas formas de controle, estímulos e recompensas que tem o efeito de produzir uma subjetividade de um novo tipo. Assim como o discurso é um modo de ação constitutivo do sujeito e de sua história, as condições de produção discursivas remetem diretamente às relações de forças constitutivas da prática discursiva, representadas pelos lugares sociais e suas representações. Fairclough (2001) entende discurso como uma prática social reprodutora e transformadora de realidades sociais e, nessa linha, Fábio Melges, Georgiana Luna Batinga e Elcio Gustavo Benini, no capítulo “Práticas Discursivas Organizacionais: uma análise da ‘nova’ precarização do trabalho a partir do aparato epistêmico da análise crítica do discurso faircloughiana”, trazem uma discussão sobre os deslocamentos e produções de sentidos observados nos diferentes modos de manifestação da precarização laboral ao longo de décadas de estudos acerca do mundo do trabalho. Seria a “nova” precarização do trabalho uma versão atualizada da já conhecida velha precarização, agora com uma roupagem nova? Não podemos negar que de fato, houve um amadurecimento do novo regime de acumulação pós-fordista e a nova precarização do trabalho, que fragmenta toda relação do trabalhador é nascida do processo de desconstrução

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neoliberal do antigo sistema de solidariedade fordista. No entanto, o discurso neoliberal parece ser o componente político constitutivo da lógica da precarização das relações do trabalho. Luiz Alex Silva Saraiva e Matheus Arcelo Fernandes Silva, em “Análise estruturalista do discurso e histórias de vida: encontros e desencontros” assumem que, dado que estamos em um contexto ainda influenciado pela incomensurabilidade de paradigmas sociológicos para a análise organizacional, e propõem uma discussão que promove uma interseção entre duas abordagens de pesquisa que, embora não positivistas, situam-se em paradigmas distintos: história de vida e análise estruturalista do discurso. Para tanto, situando a discussão no plano das pesquisas qualitativas, os autores efetuam uma discussão sobre a imprescindível discussão epistemológica da pesquisa, sobre contar histórias e como isso permite articulares os níveis individual e coletivo. O texto é construído explorando as possibilidades da análise estruturalista de discurso, bem como uma proposta de sistematização e das possibilidades de encontros e desencontros entre história de vida e análise estruturalista do discurso. Encerrando o livro, em “Narrativas de vida de trabalhadores terceirizados: imaginários sobre a precariedade do trabalho e (re) inscrição da vida em novos projetos de existência” Cláudio Humberto Lessa e Juliana Pacheco apresentam uma análise de narrativas de trabalhadores terceirizados como fruto de uma ação educativa proposta em um projeto de extensão intitulado “A Escrita de si como instrumento de visibilidade para trabalhadores terceirizados”. Esse projeto promoveu um espaço de fala a esses trabalhadores que puderam narrar acerca de suas atividades laborais e das desigualdades sofridas/vividas nos setores de trabalho em relação aos cargos que ocuparam, além de

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oportunizar a possibilidade de pensarem em (re) inscrever suas vidas em novos projetos existenciais. A fim de entender os elementos contextuais e históricos subjacentes às causas das desigualdades, os autores fundamentaram suas análises a partir da “terceirização” e da precarização das relações de trabalho. Boa leitura! REFERÊNCIAS

Bakhtin, M. (Voloshinov) (1992). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. Carrieri, A. P., Saraiva, L. A. S., Pimentel, T. D., & Souza-Ricardo, P. A. G. (Orgs.) (2009). Análise do discurso em estudos organizacionais. Curitiba: Juruá. Chouliaraki, L. & Fairclough, N. (1999). Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press. Courtine, J. J. (2009). Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: UFSCar. Fairclough, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília: UnB. Fairclough, N. (1995). Critical discourse analysis: papers in the critical study of language. New York: Longman. Fairclough, N. (1989). Language and power. London: Longman. Fairclough, N. & Wodak, R. (2000). Análisis crítico del discurso. In T. A. Van Dijk (Comp.). El discurso como interacción social. Estudios sobre el discurso II: una introducción multidisciplinaria (pp. 367-404). Barcelona: Gedisa. Fairclough, N. & Wodak, R. (1997). Critical discourse analysis. In T. A. Van Dijk (Ed.) Discourse as social interaction. London: SAGE. Foucault, M. (2007). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

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Guerreiro Ramos, A. (1981). A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV. Orlandi, E. P. (2009). Análise de discurso: princípios & procedimentos. (8a ed). Campinas: Pontes. Orlandi, E. P. (2002). A análise de discurso e seus entremeios: notas a sua história no Brasil. Cadernos de Estudos de Linguísticos, 42, 21-40. Orlandi, E. P. (1987). A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes. Pêcheux, M. (1997). O discurso: estrutura e acontecimento. Campinas: Fontes. Van Dijk, T. A. (2016). Discurso, organizações e sociedade: entrevista com Teun A. Van Dijk. Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 703-732. Van Dijk, T. A. (1997a). Semântica do discurso. In: Pedro, E. R. (Org.) Análise crítica do discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional (pp. 105-168). Lisboa: Caminho. Van Dijk, T. A. (Ed.). (1997b). Discourse as social interaction: discourse studies: a multidisciplinary introduction, vol. 2. London: Sage. Van Dijk, T. A. (2008). Discurso e poder. São Paulo: Contexto.

2 ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: ALGUMAS QUESTÕES DE METODOLOGIA PARA OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Maria Carmen Aires Gomes Viviane Vieira

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Trabalhos na área dos Estudos Organizacionais têm indicado um crescente interesse pelo estudo da linguagem em uso em contextos sociais situados (discurso) e sua função na constituição de identidades, ações e relações sociais, sistemas de conhecimentos/saber e nas (des)articulações com as relações de poder. Muitos desses estudos têm usado as abordagens discursivo-críticas, principalmente aquelas baseadas no método relacional-dialético, como, por exemplo, as pesquisas desenvolvidas por Norman Fairclough (1992; 2003; 2006), Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough (1999), Isabela Fairclough e Norman Fairclough (2012), assim como na área dos Estudos Organizacionais (Dias, 2020; Baêta, Brito & Barros, 2017). Neste capítulo, apresentaremos, dentro do viés crítico-explanatório, os procedimentos metodológicos: natureza específica do método; conceito de discurso; produção e seleção de dados, sistematização do corpus de informações de pesquisa; análise social e discursiva. Para analisar como discursos funcionam em redes de práticas sociais, a análise de conjuntura social é o ponto de partida para compreendermos aspectos das complexas (redes de) práticas sociais em 1

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que o discurso se constitui como um de seus momentos em interconexão com outros, quais sejam: atividade material, fenômenos mentais e relações sociais. O método discursivo-crítico, que será aqui apresentado, envolve cinco estágios: (1) ênfase em um problema social que tenha um aspecto semiótico, (2) inserção do problema em uma análise de conjuntura, de forma a (3) identificar obstáculos para que esse problema seja resolvido, (4) a escolha da rede de práticas sociais na qual o problema se insere, para enfim (5) analisar como os discursos se constituem e são constituídos, por meio da análise linguístico-textual (Fairclough & Melo, 2012; Gomes & Vieira, 2020). Após a análise discursiva crítica, é preciso compreender como o problema está funcionando na rede de práticas sociais do ponto de vista das relações assimétricas de poder, identificando maneiras possíveis de superar os obstáculos que sustentam os problemas sociais em estudo. O objetivo é relacionar a microanálise de textos à macroanálise social de forma a explanar criticamente como operam as relações de poder em redes de práticas e estruturas que envolvem a articulação do discurso nas práticas sociais (Vieira & Resende, 2016). No âmbito dos estudos organizacionais, Baêta, Brito e Barros (2017, p. 47) afirmam que novas abordagens ontológicas (novas maneiras de entender a natureza do mundo social) no campo dos estudos organizacionais “alteram a visão objetiva” e pode levar à compreensão que “as organizações são discursivamente formadas”. O objetivo das pesquisas à luz do método dialético-relacional é entender como os mecanismos e seus poderes causais operam nas redes de práticas sociais construídas cotidianamente nas relações intersubjetivas sociohistoricamente situadas, tendo como foco a superação dos modelos de gestão

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organizacionais economicistas e exploratórios do ser humano e da natureza (Dias, 2020). Pensar o trabalho humano e suas relações à luz da perspectiva crítica não é algo tão simples, pois, até mesmo sob esse olhar epistemológico, o tema assume diferentes perspectivas e escolas de análise. No contexto dos Estudos Organizacionais, a perspectiva crítica apresenta uma variedade de percursos e pensamentos que, embora compartilhem, em algumas temáticas, da negação aos modelos de gestão economicistas e exploratórios do homem e da natureza, apresentam diferentes repertórios e tradições intelectuais. Nosso propósito neste texto é chamar atenção também para o fato de que não há um método pronto para aplicar em pesquisas que pretendem discutir as relações entre discurso, relações de poder, hegemonia e transformações sociais, mas subsídios para que operacionalizações analíticas possam acontecer de forma a auxiliarem no estudo dialéticorelacional. Pesquisas como a de Dias (2020) têm apontado a produtividade do uso de tal abordagem teórico-metodológica para os estudos organizacionais, como buscamos exemplificar, a seguir. APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DOS ESTUDOS DISCURSIVOS CRÍTICOS

Parece-nos producente iniciar essa seção, trazendo a noção de discurso, que, como é de conhecimento, foi (e é) objeto de muitas reflexões interdisciplinares; exemplo disso é a coletânea brasileira Estudos do Discurso – perspectivas teóricas, organizada por Luciano Amaral Oliveira, em 2013, que apresenta a forma como abordagens filosóficas, sociológicas, psicanalíticas, semanticistas contribuíram com reflexões sobre as relações entre discurso-sociedade para o que seria constituído no final

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dos anos 1960 como campo da Análise do Discurso. Ainda que cada campo do conhecimento problematize o discurso à sua maneira, algumas questões perpassam todas elas: relações entre linguagem, sujeito, condições de produção, historicidade. Importante compreender em quais condições os discursos são produzidos, distribuídos, organizados, compreendidos e interpretados, o que implica que “qualquer objeto, na sua materialidade, existe sempre sob condições muito específicas de tempo e espaço” (Fisher, 2013, p. 24). O que nos leva à compreensão de que “em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2009b, p. 8 apud Fischer, 2013, p. 131). A produção discursiva, constituída pela relação entre língua, sociedade e ideologia, é percebida, segundo Fowler, por meio das representações, que “são mediadas, moldadas por sistemas de valores que estão impregnados no tipo de linguagem usada” (Fowler, 2004, p. 209), por este motivo “não existe necessariamente nenhuma realidade verdadeira que pode ser revelada pela prática crítica, existem apenas representações relativamente variadas” (Fowler, 2004, p. 209). A língua, então, forma parte da sociedade assim como se constitui nela e se manifesta nela também, tal como define M. A. K Halliday (1978). Usamos a linguagem, como sistema semiótico, para inter-agirmos, estabelecendo relações sociais e re-construindo e projetando realidades sociais nas representações, assim como para nos identificarmos relacionalmente como sujeitos posicionados na produção da vida diária. Gomes e Vieira (2020, p. 174), em Estudos Discursivos Críticos: análise crítica de problemas sociais discursivamente manifestos, citam uma

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notória fala de van Dijk (2008, p. 11) sobre o pluralismo metodológico dos estudos discursivos críticos que dá a dimensão da complexidade do campo de estudos da Análise do Discurso (AD): a AD “em si não é um método; antes, constitui um domínio de práticas acadêmicas, uma transdisciplinar distribuída por todas as ciências humanas e sociais”. Segundo Gomes e Vieira (2020, p. 174), “é preciso pensar que dentro dos estudos discursivo-críticos tem-se variados métodos, abordagens teóricas, que, a depender do interesse de pesquisa, poderão ser combinados, entrecruzados ou sobrepostos (van Dijk, 2008, p.11; Pedro, 1997)”. Esse “pluralismo metodológico” contribui não só para uma melhor instrumentalização, mas principalmente amplia e potencializa o olhar analítico-crítico para as questões que envolvem desigualdades sociais, injustiças, relações de poder e dominação (Wodak, 2004). Os estudos discursivos podem ser considerados críticos quando as relações de dominação são estudadas principalmente da perspectiva do grupo dominado e do seu interesse; as experiências dos (membros de) grupos dominados são também usadas como evidências para avaliar o discurso dominante; pode ser mostrado que as ações discursivas do grupo dominante são ilegítimas; podem ser formuladas alternativas viáveis aos discursos dominantes que são compatíveis com os interesses dos grupos dominados (van Dijk, 2008, p. 15).

Uma abordagem crítica do discurso exige “uma teorização e descrição tanto dos processos e estruturas sociais que levam à produção de um texto, quanto das estruturas e processos sociais no seio dos quais indivíduos ou grupos, como sujeitos sócio-históricos, criam significados em suas interações com os textos” (Fairclough & Kress, 1993, p. 2). Foucault, e seus conceitos de discurso, ordem de discurso e poder, e Bakhtin com a tese de que todo uso da linguagem é ideológico, porque

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se constitui no dialogismo, além de outros conceitos e premissas importantes como intertextualidade (vozes, palavras, textos de outrem), gêneros do discurso e palavra como terreno das lutas de classes, são marcos importantes para várias abordagens discursivo-críticas. A abordagem discursivo-crítica então tem o objetivo de analisar o uso da linguagem em instituições sociais, compreender as relações entre linguagem, poder e ideologia e “proclamar uma agenda crítica” política para a linguística. (Blommaert & Bulcaen, 2000, p. 453). Retomando os estudos de Foucault, Kress (1985, p. 6) destaca que “um discurso fornece uma série de asserções possíveis sobre uma certa área, e organiza e estrutura a forma pela qual um tópico, objeto, ou processo em particular deve ser discutido”. O discurso em si [como] prática social, discurso como uma forma de ação, é algo que as pessoas fazem para, ou com, as outras. Discurso, portanto, é um modo de prática política e ideológica que não só mantém e transforma as relações de poder, mas também “constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder”., neste sentido, as práticas política e ideológica “não são independentes uma da outra, pois a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder” (Fairclough, 2001, p. 94). O discurso é uso social da linguagem como forma de prática social: “prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (Fairclough, 2001, p. 91). Como tal, “discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as constituem: diferentes discursos constituem entidades-chave de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos

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sociais e são esses efeitos sociais do discurso”. Fairclough propõe uma análise discursiva orientada linguisticamente: “qualquer evento discursivo é considerado simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social” (Fairclough, 2001, p. 22). Essa proposta dialético-relacional já foi apresentada, aplicada e ampliada em muitos estudos tanto no Brasil (Gomes, 2020; Gomes & Vieira, 2020; Vieira & Resende, 2010; Resende, 2019; Vieira, 2019, Lima, 2019; Ribeiro, 2020; Carvalho, 2018) quanto em outros países da América Latina (Soichi, 2019; Pardo, 2010; Pardo Abril, 2007). Essa abordagem permite compreender que as “práticas discursivas em mudança contribuem para modificar o conhecimento (até mesmo as crenças e o senso comum), as relações sociais e as identidades sociais”, e tais questões serão analisadas por meio da multifuncionalidade dos textos que “representam a realidade, ordenam as relações sociais e estabelecem identidades” (Fairclough, 2001, p. 27). Para Fairclough (2001, p. 92), “a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade como é, mas também contribui para transformá-la”, por isso é importante compreender que estrutura social e discurso se relacionam de maneira dialética para evitar interpretações generalistas ou determinantes, e considerar que “a prática e o evento são contraditórios e estão em luta, com uma relação complexa e variável com as estruturas, as quais manifestam apenas uma fixidez temporária, parcial e contraditória”. (Fairclough, 2001, p. 94). A prática social aponta para questões hegemônicas, ideológicas como relações de poder. O conceito de poder é situado dialético e relacionalmente entre as práticas sociais institucionais e as posições de sujeito no campo da vida social. Para analisar as relações de poder como potencial de dominação, Fairclough resgata o conceito de hegemonia,

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que são as relações baseadas no consenso (mais na coerção do que no uso da força física), que envolvem a naturalização das práticas e suas relações sociais – baseados no discurso do senso comum, onde a ideologia vai operar de forma a sustentar, manter e reproduzir as relações assimétricas de poder. Chouliaraki e Fairclough (1999) resgatam os estudos do Realismo Crítico, na abordagem de Roy Baskhar, para quem a sociedade se constitui de uma maneira transformacional. A relação entre Estrutura social e semiótica (relativamente mais estáveis) e Ação (agenciamentos das pessoas em eventos sociais e discursivos, relativamente mais fluidas) não é dual, mas intermediada por um sistema posição-prática, em que a estrutura é condição e resultado da ação social, um potencial a ser produzido: reproduzido, transformado, negociado. As estruturas trazem a sua historicidade, mas também estão sujeitas à relativa liberdade das pessoas agentes. A transformação e a reprodução ocorreriam em um sistema responsável por ligar ação e estrutura, chamado de sistema posiçãoprática, que identifica “posições (lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos, etc.) ocupadas (preenchidas, assumidas, negociadas, desempenhadas, etc.) por pessoas, e aquele das práticas em que se engajam, segundo tais posições”. (Bhaskar, 1998, p. 221) Então, estrutura, ação e sistema posição-prática constituem a realidade. Barros, Vieira e Resende (2016, p. 12) destacam que: Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2003a) incluíram em seus estudos a ontologia social crítico-realista em busca da construção de uma crítica explanatória para explicar a vida social. Na perspectiva realista, a vida é compreendida como um sistema aberto, governado por mecanismos oriundos das estruturas e de que resultam os eventos sociais. Eventos e

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estruturas são partes da realidade social, e estabelecem, nessa perspectiva, relação transformacional.

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 28), resgatando os estudos de David Harvey, assumem que a prática social constitui-se de momentos sócio-discursivos: discurso/linguagem em uso, atividade material, fenômeno mental (experiências, crenças, valores, normas, atitudes, tradições, histórias pessoais) e relações sociais. O discurso, então, “internaliza tudo o que acontece nos outros momentos das práticas sociais”. Tais momentos transformacionais e abertos de práticas sociais (discurso, atividade material, fenômeno mental e relações sociais) podem ser estudados por meio da análise de discurso crítica em práticas sociais particulares socio-historicamente situadas. Então, os “eventos sociais são causalmente conformados por (redes de) práticas sociais e, embora eventos realizados possam divergir mais ou menos dessas definições e expectativas, ainda assim são parcialmente moldados por elas” (Fairclough, 2003. p. 25). Os textos, como elementos de eventos sociais, “têm efeitos causais – ou seja, acarretam mudanças”, isto é, geram efeitos “sobre as pessoas (crenças e atitudes), as ações, as relações sociais e o mundo material”, pois são construções sociais de significados (Fairclough, 2003, p. 8). Os textos são a empiria da análise discursiva textualmente orientada; é o material empírico de pesquisa, onde serão analisadas as “conexões entre mecanismos discursivos e o problema em foco” (Vieira & Resende, 2016, p. 108). No texto empírico como materialização semiótica de produção de significados culturais (normalmente multimodal na atualidade: verbal – oral, escrito – sonoro, visual, tátil) é que se

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exploram as estruturas de dominação, as operações de ideologia e as relações sociais situadas” (Resende & Ramalho, 2010, p. 189). O método proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 59) é transdisciplinar porque operacionaliza vários campos do conhecimento resultando em uma co-construção de saberes, fazendo emergir seu próprio locus epistemológico. Segundo Barros (2015, p. 43), a crítica explanatória “sustenta um conceito de que os objetos das ciências sociais devem abranger crenças, incluindo julgamento de valor e ação. [...] as crenças podem ter efeitos sobre a estrutura, impedindo as pessoas de tentar alterá-las”. Para Bhaskar (1998, p. 417), a estrutura lógica da crítica explanatória “constitui o núcleo do potencial emancipatório das ciências humanas” uma vez que aponta a efetividade de uma compreensão crítica, reflexiva e valorada. A maneira como vemos o mundo pode não ser a maneira como o conhecemos, ou mesmo do que se fala sobre ele, por isso é preciso “aprofundar o conhecimento dos mecanismos transfactualmente ativos sempre mais profundos da natureza [e da sociedade]” e compreender os poderes gerativos e os mecanismos causais que sustentam um tipo de conhecimento sobre a realidade social. “O que supomos acerca da realidade, daquilo que existe é da essência das coisas, são questões ontológicas”, como chama atenção Barros (2015, p. 102). Vieira e Resende (2016, p. 79) propõem processos interligados de planejamento de pesquisa voltados para decisões de ordem: 1. ontológica - “sobre o que constitui o mundo social e o que se pretende investigar deste mundo” (p. 79); 2. epistemológica - “sobre a natureza do conhecimento e a possibilidade de se gerar conhecimento sobre os componentes ontológicos identificados

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como essenciais” (p. 79) - (trazer as perspectivas decoloniais, críticas, interseccionais); 3. metodológica - “sobre as estratégias para a coleta ou geração de dados para a pesquisa”. (p.79)

Tavares e Resende (2021, p.89) propõem que o mapa ontológico proposto por Resende (2017) seja o ponto de partida para o desenho da pesquisa, uma vez que o mundo social se constitui “pelos seguintes elementos: estruturas, compostas por classe, gênero, sexualidade, raça, etnia, instituições e semiose; práticas sociais, compostas por posições, relações sociais, materiais, espaços-tempos e ordens de discurso; e eventos, compostos por pessoas, posições encarnadas, ação material, textos e espaço-tempo realizado”. Considerando então que questões sociais são, em parte, questões sobre discurso, e que não podemos “reduzir a realidade ao empírico” já que “eventos derivam da operação de mecanismos, os quais, por sua vez, derivam das estruturas dos objetos, e estes se localizam em contextos geo-históricos” (Sayer, 2000, p. 15), e textos resultam de eventos sociais, “não devemos presumir que a realidade dos textos seja exaurida por nosso conhecimento sobre eles” (Fairclough, 2003, p. 14). Com base na crítica explanatória de Roy Bhaskar, Chouliaraki e Fairclough (1999) propõem processos científicos para o estudo crítico de problemas sociais parcialmente discursivos que contemplam:

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Figura 1 –Arcabouço teórico-metodológico da Análise Crítica do Discurso. Fonte – Adaptado de Chouliaraki & Fairclough (1999), em Dias (2020, p. 121).

Estágio 1 – Identificação de um problema social parcialmente discursivo – neste estágio, o analista identifica o seu objeto de pesquisa e a natureza desse fenômeno. Inicia-se com “a percepção de um problema relacionado ao discurso em alguma parte da vida social. Os problemas podem estar nas atividades de uma prática social – na prática social per se, por assim dizer – ou na construção reflexiva de uma prática social” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 60). Pode ser uma “situação social concreta de injustiça social, desigualdade social, precariedade e vulnerabilidade sociais, manipulação de poder e/ou do controle” (Magalhães, Martins & Resende, 2017, p. 56). Gomes e Vieira (2020) destacam que é preciso entender os motivos pelos quais os problemas sociais continuam a ser representados e identificados como ruins ou injustos, e porque mantêm as relações desiguais e assimétricas de poder.

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Após a identificação do problema, o analista procede à seleção dos dados (coleta ou geração de dados), construindo uma amostra discursiva que seja representativa da prática particular que será analisada. Em 1992, Fairclough (2001, p. 277) já chamava atenção para a “representatividade da amostra” e orientava que o corpus deveria “refletir adequadamente a diversidade da prática e as mudanças na prática mediante diferentes tipos de situação, ambas consideradas de maneira normativa e inovadora”, ou seja, o corpus deve “incluir ponto de crítico e momentos de crise”, de forma que “incorporem períodos de tempo razoáveis”. O autor já sinalizava para a necessidade de se pensar o problema analítico a partir de uma análise de conjuntura; só a análise contextual não bastava para se compreender a complexidade das relações de força e poder constituídas nas (redes de) práticas sociais. Estágio 2 – Obstáculos a serem superados – neste estágio, o analista terá de observar como o problema social parcialmente discursivo se constitui e funciona nas redes de práticas, ou seja, quais relações de força e poder, as circunstâncias sociohistóricas, os recursos semióticos, que mantém a articulação hegemônica do problema, impedindo a sua transformação, mas também quais elementos que estão possibilitando essa mudança. É por isso que Chouliaraki e Fairclough (1999) inserem no estágio 2 a prática analítica pois a natureza da conjuntura pode ser um obstáculo, assim como a relação entre o discurso e outros momentos da prática social, e também os discursos, gêneros e estilos. Sobre a importância da análise de conjuntura, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 60) afirmam que “o foco aqui está na configuração de práticas associadas com acontecimentos sociais ocasionais específicos”. A conjuntura “representa um caminho particular através da rede de práticas sociais que constitui a estrutura social” e essas redes de

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práticas “podem ser mais ou menos complexas em termos de número ou extensão de práticas mais ou menos estendidas no tempo e no espaço social”. Para Souza (1997, p. 16), “uma questão chave na análise de conjuntura é a percepção da complexidade e da dificuldade em determinar relações de causalidade do tipo unilinear, simples. [...]”. (Gomes & Vieira, 2020). A análise de conjuntura exige que o analista identifique os principais acontecimentos que envolvem o problema em estudo, o contexto sociohistórico político e cultural, as relações de força e poder, de forma a compreender como estão se organizando as forças em conflito, como as lutas hegemônicas estão se articulando e se desarticulando, e se rearticulando. Olhar, por exemplo, para a forma como o ator social se representa/identifica, e representa/identifica o outro, no campo das relações de força e poder, sendo que “essas relações podem ser de confronto, de coexistência, de cooperação e estarão sempre revelando uma relação de força, de domínio, igualdade ou subordinação” (Souza, 1997, p. 12). Para Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 61), esse tipo de análise permite que se compreenda a complexidade da prática “em que o discurso em foco está localizado” e argumentam que o objetivo então é localizálo “em tempo real de uma forma que ligue as suas circunstâncias e processos de produção e suas circunstâncias e processos de consumo”, o que traz a questão de como o discurso é interpretado (e a diversidade de interpretações) na análise; para isso, sugerimos a leitura das seguintes pesquisas Queiroz (2020), Ribeiro (2020), Carvalho (2018), Gonzales (2017), Borges (2018), Rechetenicou (2021). Sobre a análise da prática da qual o discurso é um momento – o analista, após refletir sobre o problema social/objeto no campo das relações de forças e poder na análise de conjuntura, selecionará a prática

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social particular de seu interesse, de forma a analisar a relação do discurso com os outros momentos (atividade material, fenômeno mental, relações sociais). Trata-se de uma prática particular relevante para se analisar tal problema social? Ela inclui pontos críticos e momentos de crise? São perguntas que devem ser feitas neste estágio do estudo. O objetivo aqui, segundo Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 61), é “especificar relações entre o discurso e esses outros momentos – quanto de uma parte do discurso e que tipo de parte está executando na prática e que relações de internalização existem entre os momentos”. Na pesquisa de Ribeiro (2020), sobre estudantes transhomens em escolas públicas, por exemplo, a questão material – banheiro e lista de chamada – internaliza-se aos fenômenos mentais de maneira bastante potente rearticulando discursos e relações sociais na constituição desta prática socioescolar (cf. Ribeiro & Gomes, 2020a; Ribeiro & Gomes, 2020b; Gomes & Carvalho, Ribeiro, 2022). Uma pesquisa discursivo-crítica, a partir do método dialético-relacional, sempre irá extrapolar a análise do texto/discurso, porque se a reprodução ou a transformação acontece no sistema posição-prática, é necessário que se tenha “conhecimento sobre os diferentes momentos de uma prática social: seus aspectos materiais (por exemplo, arranjos locacionais no espaço), seus processos e suas relações sociais, bem como as crenças, valores e desejos de seus participantes”, como bem pontuam Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 62). É preciso que o analista entenda como o discurso trabalha em relação às “outras coisas”. As disputas, as negociações das relações de poder, não ocorrem só na análise de conjuntura; o poder também é disputado no discurso, e na relação do discurso com os outros elementos, produzindo articulações interdiscursivas de diferentes gêneros, discursos e estilos. A luta pelo

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poder é internalizada no discurso, assim como na internalização deste com os outros momentos discursivos. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 62) endossam então que “questões de poder ligam-se com questões de ideologia e são tratadas melhor em termos de relações entre os momentos do discurso de diferentes práticas e diferentes ordens de discurso”. Na análise discursiva – para os autores, “a primeira preocupação é localizar o discurso em sua relação com as redes de ordens de discurso para especificar como o discurso atrai seletivamente o potencial da rede, por exemplo, que gêneros, discursos e vozes,” e como as ordens de discurso se articulam juntas (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 63). Neste momento, a análise se voltará para o texto, materialidade de análise com seus aspectos multissemióticos, como resultado concreto de eventos sociais específicos (nível da ação), como já foi dito neste capítulo. O texto, portanto, articula discursos que são os modos particulares de representar parte do mundo, e estes discursos se ligam aos estilos, que estão articulados na potencialidade interacional e acional dos gêneros discursivos. Se todo discurso é um interdiscurso, então um texto é a materialidade que permitirá identificar a articulação dos variados discursos que representam e identificam as experiências de sujeitos posicionados socialmente nas práticas sociais. Como explicamos, “o discurso internaliza tudo o que acontece nos outros momentos das práticas sociais”, conforme Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 28), como parte da ação e da construção reflexiva da vida social, bem como reconhece a importância do trabalho socialmente transformador do discurso (Cf. Gomes, no prelo). No momento semiótico da prática – Discurso – articulam-se dialeticamente três elementos/recursos que configuram a (redes dialéticas de) ordens do discurso: gêneros, discursos e estilos, que são as maneiras semióticas de

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(inter)agir, de representar e de identificar(-se) as experiências, vivências, sentimentos, ações, atitudes, valores éticos na vida em sociedade. Com base nessa compreensão de que as pessoas fazem coisas nas práticas sociais, em um processo de meaning-making (de produção de significados), Fairclough (2003) propõe três macrocategorias discursivas de produção de significados situados: significado acional e relacional (gêneros discursivos, organizados conforme as maneiras como interagimos por meio do discurso), significado representacional (discursos particulares, que são representações e projeções particulares no mundo) e o significado identificacional (estilos, que conformam as maneiras como nos identificamos relacionalmente nas maneiras de ser, de co-existir na vida social). Tais aspectos de estruturas e práticas sociais mais abstratas são materializados em formas, significados e relações mais concretas no que definimos na análise de discurso crítica como “categorias linguístico-discursivas” (Vieira, 2019). Para o estudo de categorias analíticas aplicadas em textos, sugerimos a leitura do capítulo 4 do livro Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa das analistas críticas de discurso brasileiras Vieira e Resende (2016). Chamamos atenção inclusive para o Quadro 6 (2016, p. 114-116) que, além de apontar as categorias de análise e seus aspectos discursivos/textuais, propõe perguntas que podem auxiliar nas análises discursivas e sociais nos estudos organizacionais. Reproduzimos, também, a seguir um esquema de categorias linguístico-discursivas de análise com foco nas relações de poder, de saber e de ser, proposto em Vieira (2019, p. 99), para análise discursivo-crítica com atitude decolonial:

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Quadro 1 – Abordagem relacional-dialética para análise de textos como eventos sociais Dinâmicas da (de) colonialidade

Discurso nas práticas sociais

Momentos de ordem do discurso

Principais significados do discurso

Principais significados e formas textuais/categorias linguístico-discursivas

(De)colonialidade do poder

Modos de agir e interagir

Gêneros discursivos

Significado acional/relacional

Intertextualidade (ironia, pressuposição), estrutura genérica, cadeias de gênero, intergenericidade, controle interacional, relações semânticas/gramaticais, coerência, funções da fala, tipos de troca, modo gramatical, comportamentos/ performances, valor da informação em imagens etc.

(De)colonialidade do saber

Modos de representar e projetar aspectos do mundo

Discursos

Significado representacional

Interdiscursividade, seleção lexical, significado de palavras, processos de lexicalização, arranjos semânticos, coocorrências lexicais, representação de atores sociais e de eventos por meio da transitividade (seleção de processos, participantes, circunstâncias) estrutura visual (narrativa, conceitual) etc.

(De)colonialidade do ser

Modos de ser e identificar

Estilos

Significados identificacio-nal

Sistema de avaliatividade (atitude, engajamento e gradação), metáfora, presunções valorativas, modalidade (epistêmica, deôntica/categórica, modalizada) contato visual em imagens, linguagem corporal/performances, pronúncia e outros traços fonológicos, de vocabulário etc.

Fonte – Vieira (2019, p. 99).

Estágio 3 – Funções do problema na prática – no estágio 2, o analista deverá observar os obstáculos que sustentam o problema social parcialmente discursivo analisado na prática social particular em

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estudo, para que, no estágio 3, entenda como esse problema está funcionando e sendo mantido, contestado, negociado. Os resultados da análise de conjuntura social, do discurso e da prática particular apontam, na internalização de todos os elementos articulados, para a diferença? para a abertura para a mudança? para provocar potências inventivas ou disciplinadoras? Ou ainda reforça, itera, mantém o fechamento ideológico? Há (re)articulações e desarticulações ideológicas, e como estão materializadas nos textos? Para Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 65), neste estágio, retomamos a explicação da crítica explanatória de Roy Baskhar, e, em vez de identificar que há um problema que leva a este tipo de prática, avaliar a prática em termos de seus resultados problemáticos. Estágio 4 – Possíveis maneiras de ultrapassar os obstáculos – nesse estágio, identificadas as formas pelas quais as relações estruturais explicam o problema (obstáculos) e como geram os poderes e mecanismos causais responsáveis pela maneira como os problemas estão funcionando nas práticas (função do problema na prática), caberá ao analista problematizar como essa prática particular analisada poderia constituir-se de maneira mais emancipatória. Se as práticas se constituem de maneira hegemônica, então deveriam ser transformadas por meio de propostas de intervenções: que tipos de recursos poderiam promover mudanças? Estágio 5 – Reflexão sobre a análise – aqui, lembramos que a pesquisa social crítica deve ser reflexiva, então, parte de qualquer análise deve ser uma reflexão na posição a partir da qual é realizada. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 67), resgatando os estudos de Ricouer (1977), ressaltam que “a interpretação é um complexo processo em camadas, e é necessário fazer certas distinções dentro dele – primeiro, entre

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compreensão e explanação, ambas como partes da interpretação”. Neste sentido, os pesquisadores defendem, portanto, uma explanação particular: “uma explanação re-descreve propriedades de um texto (incluindo a variedade de compreensões que ele dá origem) usando um quadro teórico particular para localizar o texto na prática social” (Fairclough, 2003, p. 67). O objeto de pesquisa são as relações relevantes para a análise, seus funcionamentos, ou seja, como essas relações articulamse juntas, e suas potencialidades, não apenas seus efeitos reais, mas também sua função potencial. Assim, a lógica da análise crítica é relacional-dialética, orientada para avaliar como o momento discursivo trabalha no interior da prática social, do ponto de vista de seus efeitos sobre lutas e relações de poder. Interpretar textos ideologicamente não se limita a compreensões de textos, mas consiste de maneira aprofundada em explanações, o que envolve a localização de textos na prática social, ou seja, quais efeitos de sentidos ideológicos estão à serviço de relações assimétricas de poder? BREVE EXEMPLO DE PESQUISA CRÍTICO-DISCURSIVA NA ÁREA DOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Dias (2020), em pesquisa de Doutorado em Administração na Universidade de Brasília, estudou processos sociais e discursivos do problema social do retorno de policiais militares ao trabalho depois de adoecimento por transtorno mental. O estudo teve notável êxito ao explorar, no campo da Sociologia clínica, aspectos sociais e discursivos implicados no problema social em estudo, por meio da análise discursiva crítica das atividades materiais, dos fenômenos mentais (experiências, crenças, valores, normas, atitudes, tradições, histórias

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pessoais) e das relações sociais no contexto organizacional policial militar. “Os transtornos mentais e comportamentais apresentam-se como a terceira maior causa de incapacidade para o trabalho nos últimos anos. Tal fato demanda a necessidade de maior atenção aos aspectos que perfazem a organização do trabalho e o envolvimento dos profissionais com suas instituições”, justifica o autor. O estudo enfocou casos de adoecimento mental no trabalho, com ênfase no retorno do policial às atividades depois de ter vivenciado transtornos mentais e comportamentais, analisando, por meio da Sociologia Clínica e da Análise de Discurso Crítica, “como o contexto do trabalho militar da PMDF, perfazendo elementos da organização do trabalho, suas condições e fatores socioprofissionais, influencia o retorno do policial ao trabalho depois de afastamento por transtorno mental” (Dias, 2020, resumo n/p.). O estudo foi qualitativo, etnográfico, com uso de notas de observação participante, de pesquisa documental e de 21 entrevistas semiestruturadas, utilizados como recursos de geração de dados. O autor explica que A análise fundamentou-se nos recursos metodológicos da ADC. Foram analisados aspectos discursivos das representações particulares nos dados por meio do estudo do significado representacional na transitividade, na interdiscursividade, na representação dos atores sociais e nas escolhas lexicais/vocabulário; e por meio do estudo do significado identificacional por meio de análise das avaliações, da modalidade e das metáforas nos dados. A análise dos textos permitiu a identificação de cinco eixos temáticos, descrevendo: os fatores influenciadores da entrega e submissão dos policiais à dominação militar; a construção identificacional do policial; o contexto do trabalho como corresponsável pelo desencadeamento de transtornos mentais; e, por fim, aspectos que perfazem o retorno ao trabalho

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após afastamento por transtorno mental, identificando aspectos depreciativos e positivos desse retorno (Dias, 2020, resumo n/p.).

Em Dias e Siqueira (2021, p. 7), explica que, seguindo os pressupostos da ADC, após a transcrição das entrevistas e a construção do corpus de análise, procedeu à: “leitura do material coletado, para familiarização com os textos que revelariam aspectos profundos da prática social militar; leitura orientada à seleção de recortes, para reduzir o volume de material às especificidades das questões de pesquisa (Fairclough, 2003); leitura com codificação em cores, para identificar as categorias relevantes para a análise, tornando-as mais “legíveis” ou “analisáveis”“. Analisou “as categorias linguístico-discursivas relacionadas, principalmente, ao significado representacional dos discursos, ou seja, aquele relacionado ao modo como os aspectos físicos e sociais do mundo são representados pelos atores sociais (Fairclough, 2003, Fuzer & Cabral, 2014)”. A escolha desses significados deu-se em função da resposta aos objetivos propostos, bem como à frequência e às recorrências das categorias nos textos do corpus de pesquisa. As articulações discursivas foram analisadas segundo aspectos da transitividade, representação de atores sociais, interdiscursividade e seleção lexical. Para os autores, a análise textual permitiu observar traços discursivos presentes no contexto do trabalho militar e a identificação da realidade social de como essa função poderia comprometer a saúde mental do policial, por exemplo, por meio da análise da transitividade. A representação de atores sociais identificou inclusões/exclusões dos atores sociais nos discursos, revelando as maneiras como os atores sociais são representados no processo de adoecimento mental dos sujeitos. As categorias interdiscursividade e seleção lexical levaram em

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consideração o modo como diferentes discursos constituem as falas, bem como as maneiras como esses discursos são articulados ou não às falas. Como resultados principais, Dias (2020, p. 303-308) aponta, dentre outros aspectos, que:  estigmas da doença mental aparecem como dificultadores para o enfrentamento do adoecimento e para retorno ao trabalho, levando o policial a se culpabilizar pelo transtorno adquirido. A falta de reconhecimento do transtorno mental, o ceticismo dos superiores em relação ao adoecimento, as atitudes preconceituosas dos colegas de trabalho e a falta de apoio da gestão agravam os problemas. “O estigma inibe as pessoas a procurarem ajuda e se utilizarem dos serviços de saúde mental, considerando que assim estariam evitando o rótulo de doente mental, que impacta o seu senso de identidade policial e o destitui do mito de herói, construído sobre um ideal de ego totalmente devotado à polícia”.

 os discursos revelam a inexistência de qualquer programa, política ou procedimento para o reingresso de policiais afastados por transtorno mental. “Em uma instituição que tanto preza por regulações normativas, procedimentos e códigos de conduta, a ausência de procedimento ou regulamentação para o fato ecoa, discursivamente, como um modo de negligenciar a ocorrência dele”.

 faz-se necessário repensar ações que se voltem para a saúde mental dos policiais. O que se percebe é que, no contexto do trabalho policial, visto como altamente agressivo psicologicamente, a saúde mental deve ser tratada a partir de um ciclo de ações, que envolve iniciativas de prevenção, acompanhamento, tratamento, afastamento e reinserção do policial no seu espaço de trabalho. “Nesse processo, verifica-se que o retorno ao trabalho se apresenta como o elo mais deficiente da cadeia, o que acaba por comprometer todas as demais iniciativas”.

 o processo de reinserção no trabalho depois de transtorno mental envolve aspectos que ultrapassam a pauta da utilidade, do desempenho e da aptidão. Muito além do olhar para o “recurso humano”, o retorno ao trabalho deve ser

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pensado em função da existência humana do sujeito, que, depois de um episódio de adoecimento, se vê novamente útil para a organização, para a sociedade e para si. O desencontro desses olhares põe em risco as possibilidades de recuperação, de um indivíduo já tão sofrido pelo percurso do assujeitamento.

 a exposição frequente desses agentes a eventos potencialmente traumáticos, que exercem forte pressão psicológica e exigem a tomada de decisão instantânea, favorece o adoecimento psicológico e pode contribuir para o desencadeamento de atitudes nocivas contra si e contra a sociedade.

 ao articular as relações da saúde mental e retorno ao trabalho depois de transtorno mental no contexto do trabalho policial da PMDF, verifica-se a complexidade do tema e a ainda pouca discussão na academia, especialmente à luz de Estudos Organizacionais críticos e da Sociologia Clínica.

 questões relacionadas às alternativas de cuidado com a saúde mental dos policiais; negligência às violências morais institucionalizadas; uso inapropriado e abusivo do poder; fatores incentivadores dos conflitos interpessoais; viabilidade de implementação de políticas de retorno ao trabalho, entre outras temáticas, que emergiram deste estudo, apresentam-se como importantes aspectos a serem trabalhados em estudos futuros. É possível que a integração de resultados de pesquisas dessa natureza tende a revelar a disparidade na percepção dos agentes, fomentando novas possibilidades para a mudança social.

Sobre o método de análise de discurso crítica utilizado reflete que o número de entrevistas, as notas de campo, a pesquisa documental e os recortes jornalísticos geraram um volume de dados que dificultaram a análise, visto a abrangência da temática. Assim, foi preciso selecionar e sistematizar os dados: a abordagem teórico-metodológica da ADC exige um olhar minucioso, criterioso e detalhado dos diferentes aspectos que perfazem o texto. A diversidade de interpretações, a identificação e variabilidade de categorias analíticas e a variedade de conceitos e linhas teóricas são elementos que

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exigem do pesquisador uma afinidade muito grande com a teoria como técnica, assim, a pouca experiência tende a deixar lacunas reparáveis apenas depois de novos olhares (Dias, 2020, p. 307).

Com o estudo, identificou a relação direta entre a organização do trabalho militar e os conflitos interpessoais, a fragilização dos laços sociais e os abusos do poder, advindos do modelo hierárquico tradicional como desencadeadores do adoecimento mental e dificultadores para o retorno ao trabalho. Também a falta de políticas ou ações institucionalizadas de atenção aos/às trabalhadores/as que colaboraram com a pesquisa, quanto do retorno ao trabalho após transtorno mental, “desqualifica qualquer investimento realizado antes ou durante o afastamento do trabalho”. Isso mostra que a saúde mental da PMDF, como prática social particular analisada na conjuntura social brasileira de 2018-2020, “deve compor a agenda do Distrito Federal e ser alvo de exercício contínuo da corporação. A exposição frequente a eventos traumáticos favorece o adoecimento psíquico dos policiais e pode contribuir para a violência contra si e contra a sociedade”. Como superação para o problema, aponta como necessária “a criação de políticas e práticas organizacionais bem delineadas, incluindo o desenvolvimento de processos pedagógicos de educação em saúde mental, que envolvam oficiais, praças e demais agentes que lidam com a situação”. Os trabalhos, comentados a partir da construção discursiva do autor, trazem inovações na abordagem téorico-metodológica como forma de entender como os mecanismos e seus poderes causais operam nas redes de práticas sociais construídas cotidianamente nas relações intersubjetivas sociohistoricamente situadas, tendo como foco a superação dos modelos de gestão organizacionais economicistas e exploratórios do ser humano e da natureza (Dias, 2020, p. 307). Tecem reflexões

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organizacionais que problematizam não só a necessidade de mudança social do trabalho policial para que “a sociedade goze de um serviço policial mais seguro e qualificado”, mas também provocam potências contra-hegemonizadas junto às próprias pessoas colaboradoras do estudo que puderam se ouvir, falar, narrar, rever crenças, atitudes, histórias pessoais, valores éticos, a partir da práxis discursiva política dos estudos discursivos críticos. REFERÊNCIAS

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Maria Carmen Aires Gomes; Viviane Vieira

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3 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA PARA OS ESTUDOS DAS PRÁTICAS DE GESTÃO Joelma Soares da Silva

1

INTRODUÇÃO

Desde a expansão das análises críticas nos Estudos Organizacionais brasileiros, nos anos 1980, pesquisadores têm recorrido a diversas propostas teórico-metod ológicas transdisciplinares, a exemplo da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC), para desenvolvimento de suas investigações. A ADC pode ser considerada uma continuação da Linguística Sistêmico-Funcional e da Linguística Crítica, com avanços no debate (Magalhães, 1986; Magalhães, Martins & Resende, 2017). A ADC contribui de forma valorosa para os estudos da linguagem e da sociedade, especialmente para compreensão de alguns dilemas do cotidiano relacionados a variadas questões sociais (Pereira et al., 2020). Enquanto teoria e método, a ADC, sobretudo em sua abordagem dialético-relacional (Fairclough, 2016), tem se feito presente em pesquisas que propõem modelos de análises, a exemplo do que vemos nos Estudos Organizacionais (eg. Abdalla & Altaf, 2018; Rosa, Paço-Cunha & Morais, 2009). No âmbito internacional, Leitch e Palmer (2010) sustentaram possibilidades metodológicas de delimitação de contexto para os Estudos Organizacionais (doravante EOR), muito embora tenham sido

1

Universidade Federal do Ceará.

Joelma Soares da Silva

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contestados por Chouliaraki e Fairclough (2010) que defendem a maleabilidade do contexto. Para além do uso como ferramenta metodológica (como normalmente é abordada nos EOR), a ADC lança luz para novas perspectivas sobre as organizações enquanto objetos de estudo (Onuma, 2020) também em perspectiva teórica. Outro aspecto que merece atenção é o fato de que as propostas teórico-metodológicas encontradas nos EOR brasileiros,

pautadas

na

abordagem

dialético-relacional,

estão

fundamentadas unicamente no modelo tridimensional de Fairclough (1989). Ocorre, porém, que o próprio entendimento de Fairclough sobre discurso não permaneceu estanque; ao contrário, foi uma construção aprimorada ao longo de suas obras. O linguista expoente da ADC simplificou o modelo tridimensional, fez um percurso onde saiu do modelo tridimensional, passou pelo bidimensional e chegou à análise social, ou seja, ao modelo transdisciplinar, conforme afirmam Vieira e Macedo (2018). Sobre esse deslocamento do pensamento de Fairclough, Resende e Ramalho (2019) afirmam que houve um fortalecimento da análise da prática social que passou a ser mais privilegiada no último modelo, “[...],ou seja, a centralidade do discurso como foco dominante da análise passou a ser questionada e o discurso passou a ser visto como um momento das práticas sociais” (Resende & Ramalho, 2019, p. 29). Importante ressaltar que os modelos de Fairclough não se anulam, ao contrário, ampliam possibilidades de pesquisas. Diante do exposto, este capítulo, tem por objetivo apresentar uma proposta teórico-metodológica de pesquisa no campo nos Estudos Organizacionais a partir do modelo transdisciplinar proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999). Nessa perspectiva, o discurso é

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Discursos e Organizações

entendido como um momento da prática social que, juntamente com outros momentos (elementos) de similar importância, compõem a prática. Tais momentos (discurso, atividade material, relações sociais e atividade mental) dialogam entre si e articulam momentos internos, segundo o modelo analítico proposto. Resende e Ramalho (2019) explicam que o momento discursivo (M) de uma prática (P) é o resultado da articulação de recursos simbólicos/discursivos (como gêneros, discursos, vozes), articulados com relativa permanência como momentos (m) do Momento (M) do discurso. Igualmente, os demais momentos da prática social são formados por momentos que se articulam internamente e se transformam nesse processo de articulação. As práticas sociais, por sua vez, são pontos de conexão entre estruturas e eventos. As estruturas da vida social são modificadas lentamente pelas práticas sociais, enquanto os eventos são entendidos como acontecimentos imediatos individuais ou ocasiões da vida social (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Estrutura, práticas e eventos estão em um continuum de abstração/concretude. Por isso, a relação entre o que é estruturalmente possível e o que acontece de fato não é simples (Resende & Ramalho, 2019). As organizações são estruturas sociais e, portanto, prevalece nesta proposta, o pressuposto que suas práticas de gestão se configuram como práticas sociais que interagem com o contexto onde estão inseridas e com os eventos enquanto acontecimentos oriundos das práticas de gestão. Tal configuração é também uma característica das organizações como sistemas abertos. Como construções discursivas, as organizações operam em uma estrutura ideológica, cultural e hegemônica, ao mesmo tempo, que são

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constituídas por seus próprios discursos e ideologias. Assim, é importante entender como o momento discursivo nas organizações se articula com os demais momentos que formam suas redes de práticas de gestão, como interagem com o contexto social e o modificam por meio de seus eventos. Assim, apresento uma possibilidade adicional de pesquisa em Estudos Organizacionais como alternativa de ampliação das opções teórico-metodológicas, sobretudo para pesquisas etnográficas ou de inspiração etnográfica, conforme recomendam Magalhães, Martins e Rezende (2017). AS ORGANIZAÇÕES COMO ESPAÇOS SOCIAIS

Para tratarmos de práticas de gestão, primeiro precisamos assumir que as organizações, de forma geral, são organismos sociais (Schatzki, 2005) e que o seu contexto é “composto de um emaranhado de relações e suas transformações” (Davel & Vergara, 2005, p. 10). Nesse cenário encontramos relações de poder caracterizadas por hierarquias, relações entre pares e com o meio externo, como afirmam os próprios autores, “[...] a gestão e a vida organizacional são relações sociais” (Davel & Vergara, 2005, p. 1). As organizações são tipos de formações sociais ao lado de outros tipos, como: comunidades, grupos, multidões, mercados, sistemas e similares (Schatzki, 2005). Nessa perspectiva social, Jaime e Lúcio (2018) detalham que as organizações são arenas nas quais as pessoas buscam satisfazer as suas necessidades de dinheiro, de poder, de prestígio ou de reconhecimento social; são sistemas abertos que interagem de forma complexa com a sociedade e que estão em um constante processo de realidades instáveis.

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Assim, mais do que mecanismos racionais, as organizações são sistemas sociais e simbólicos e constituem cenários nos quais se desenrolam muitos dramas humanos (Jaime & Lúcio, 2018). Embora esse entendimento pareça óbvio, Davel e Vergara (2005) alertam para a perpetuação do modelo funcionalista que coisifica e quantifica relações em vez de singularizar e humanizar. O grande entrave é que a forma como a organização é concebida impacta diretamente em como sua gestão é praticada. “Concepção e prática, nesse caso, fazem parte de um todo indissociável” (Davel & Vergara, 2005, p. 10). Adicionalmente, as organizações são espaços culturalmente plurais. Trata-se de espaços, que, segundo Certeau (2017), vão além do local estrutural e envolve seu ambiente social, o “espaço é o local praticado” (Certeau, 2017, p. 184). O local só assume a condição de espaço, se praticado socialmente e, para tanto, necessita dos sujeitos e suas muitas relações. O espaço é dinâmico. À guisa do pensamento de Certeau (2017), arranjos organizacionais planejados arquitetonicamente e estruturalmente, são transformados em espaços pelos atores sociais carregados de suas muitas diferenças e identidades. Na verdade, essa passagem de local para espaço se dá à medida que todos os sujeitos envolvidos assumem papéis de autores e personagens ao mesmo tempo (Ciampa, 1989). A existência do indivíduo diz respeito à existência de outras pessoas. A importância do outro reside, não no processo pelo qual o indivíduo transfere suas próprias experiências, mas, em como ele aprende com as características das outras pessoas (Giddens, 2002). Por fim, Giddens (2002) ressalta que o mundo social não é um enfrentamento do sujeito com o outro, mas um mundo onde cada pessoa é responsável pela construção de interações sociais possíveis. O eu e a

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sociedade estão inter-relacionados num meio global. Logo, as organizações são arranjos que oportunizam o desenvolvimento e a consolidação de variadas e complexas relações, mas que também constituem espaços de desencaixe entre relações sociais, lugares e contextos específicos (Giddens, 1991). Na modernidade tardia, não só ocorrem processos de mudanças mais ou menos profundos, como a mudança é dinâmica e não se adapta nem à experiência nem ao controle humanos. A modernidade rompe com tradições e introduz o cenário de organizações muito maiores e impessoais (Giddens, 2002). Os arranjos organizacionais são compostos de dimensões econômicas (produtoras de bens e serviços – infraestrutura, contribuições materiais), políticas (produtoras de bens e serviços políticos – ideologias, interesses sociais) e simbólicas (produtoras de bens e serviços simbólicos – padrões culturais, representações mentais) (Srour, 1998). Dentre seus elementos simbólicos/subjetivos encontram-se a cultura e o clima organizacional, a história oral dos sujeitos, as relações de poder, relações sociais, relacionamentos interpessoais, lideranças paralelas, comunicação informal, socialização dos sujeitos, imagem e identidade organizacional e práticas cotidianas (não oficiais) de gestão (Jaime & Lúcio, 2018; Pais, 2003). As relações sociais desenvolvidas no espaço organizacional se concretizam em grande parte, por meio das relações discursivas (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Dessa forma, é iminente a discussão sobre os discursos organizacionais.

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O CONCEITO DE DISCURSO EM ADC

Entender e posicionar-se acerca do conceito de discurso é fundamental para estudos discursivos de vertentes críticas. Isso se dá porque, conforme apontam Pereira, Teixeira e Pereira (2020), este não é um ponto pacífico entre os/as pesquisadores/as. Apesar de existir consenso sobre a contribuição basilar de Michel Foucault para as diferentes vertentes da ADC e “[...] tais vertentes compartilhem princípios fundamentais de caráter ontológico, diferem em seus princípios epistemológicos e metodológicos” (Pereira, Teixeira & Pereira, 2020, p. 26). Wodak e Meyer (2009) apontam seis diferentes vertentes ou abordagens da ADC (e seus representantes) – Histórico-Discursiva (Reisigl e Wodak), Linguística de corpus (Mautner), Atores Sociais (Van Leeuwen); Análise de Dispositivo (Jäger e Meier), Sociocognitiva (Van Dijk) e Dialético-Relacional (Fairclough). Mesmo sob a possibilidade de diálogo entre diferentes abordagens, abordo, neste capítulo, o conceito de discurso na ADC para a abordagem dialético-relacional de Norman Fairclough. O ponto de partida é entender que, na ADC, recaem dois significados sobre o termo “discurso”: o significado abstrato (discurso) como momento irredutível da prática social associado à linguagem; e o concreto (discursos), enquanto modo particular – ligado a interesses específicos – de representar nossa experiência no mundo. À perspectiva dialético-relacional da ADC interessa o papel do discurso na mudança social e nos modos de organização da sociedade em torno de objetivos emancipatórios. Busca oferecer suporte científico para estudos sobre o papel do discurso na instauração, manutenção e superação de problemas sociais. Nesse sentido, a ADC é crítica por conduzir sujeitos à reflexividade e assim reconstruir papéis sociais (Melo,

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2018). Neste sentido, Magalhães, Martins e Rezende (2017, p. 52) detalham que “A ADC prioriza o exame de situações sociais específicas, nas quais o discurso desempenha papel preponderante na produção, reprodução ou superação de desigualdades ou de relações de dominação”. Fairclough (2016) entende o discurso como o uso da linguagem como uma forma de prática social e não como uma atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. O discurso é, portanto, um modo de agir sobre o mundo e sobre outras pessoas, bem como um modo de representação. Há uma relação dialética entre discurso e estrutura social, ou seja, mais precisamente, entre prática social e estrutura social, pois são mutuamente influenciadas. “O discurso é socialmente constitutivo” (Fairclough, 2016, p. 95) à medida que contribui diretamente ou indiretamente para todas as dimensões da estrutura social ao mesmo tempo em que é moldado e restringido por ela por meio de suas normas, convenções e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é, portanto, “[...] uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (Fairclough, 2016, p. 95). O entendimento de Norman Fairclough acerca do papel do discurso na prática social passou por modificações que implicaram em modelos teórico-metodológicos que, não se anulam, ao contrário, servem a diferentes propostas de pesquisas. Fairclough (1989) partiu do modelo tridimensional onde o discurso é a própria prática social e mais tarde propõe o modelo transformacional no qual o discurso é reposicionado como um elemento constitutivo da prática social, mas não o único. “O conceito de discurso pode ser entendido como uma perspectiva particular nestas várias formas de semioses – ele os vê como momentos das

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práticas sociais em sua articulação com outros momentos não discursivos” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 38). Chouliaraki e Fairclough (1999) explicam que o discurso compreende elementos semióticos das práticas sociais que incluem linguagem (escrita ou falada combinada com outras semióticas), comunicação não verbal (expressões faciais, movimentos do corpo, gestos, outros) e imagens visuais (fotos, filmes, outros). No que diz respeito às práticas sociais, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21) explicam que “são maneiras recorrentes, situadas temporal e espacialmente pelas quais agimos e interagimos no mundo [...] pontos de conexão entre estruturas abstratas, com seus mecanismos, e eventos concretos”. São caminhos de interação social, caminhos de ação conjunta das pessoas na vida social, no trabalho, nas suas casas, nas ruas e assim por diante. A interação social é o viveiro para novas formas sociais e de temas de todos os tipos que servem de base para novas relações sociais, novas identidades sociais e novas estruturas sociais. Embora nem toda interação seja discursiva, a maior parte envolve o discurso de forma substantiva e central (Chouliaraki & Fairclough, 1999). As práticas representam, portanto, a transformação do abstrato presente nas estruturas em eventos concretos (Vieira & Resende, 2016). As práticas sociais são formadas por momentos (elementos) de similar importância que dialogam entre si. Tais momentos (discurso, atividade material, relações sociais e atividade mental) dialogam entre si e articulam momentos internos. Após revisitar algumas propostas de representação desses momentos (Magalhães, Martins & Resende, 2017; Resende & Ramalho, 2019; Vieira & Resende, 2016) adoto a representação dos Momentos da Prática

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Social (figura 1) fruto da adaptação das propostas de diferentes autores/as.

Figura 1 – Momentos da prática social Fonte – Adaptado de Magalhães, Martins e Rezende (2017), Resende e Ramalho (2019) e Vieira e Resende (2016).

Articulação é um conceito que também pode ser aplicado a cada um dos momentos da prática, pois eles também são formados de elementos que se articulam no interior de cada momento. Resende e Ramalho (2019, p. 40) explicam que “o momento discursivo de uma prática particular é o resultado da articulação de recursos simbólicos/ discursivos (gênero, discursos, estilos), articulados com relativa permanência como momentos do Momento discursivo”. A articulação é fonte de criatividade discursiva, já que a mudança discursiva se dá pela reconfiguração ou modificação dos elementos que atuam na articulação, pela “redefinição de limites entre os elementos” (Fairclough, 2016, p. 101). Ademais, os limites entre os elementos podem ser linhas de tensão e os resultados de tais lutas são rearticulações das relações entre os elementos.

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Consequentemente, os limites entre os elementos podem variar entre relativamente fortes ou relativamente fracos (Fairclough, 2016). Igualmente, as demais dimensões da prática social são formados por momentos que se articulam internamente e se transformam nesse processo de articulação. Como, dentre outros momentos internos, o momento “prática material” articula espaços, recursos e materiais diversos como seus momentos internos; o momento “relações sociais” articula as relações entre os diversos atores sociais envolvidos na prática e o momento “atividade mental”, segundo Magalhães, Martins e Rezende (2017), articula valores, crenças e desejos. Quando há mudanças ou reconfigurações desses elementos que se articulam, há também mudança discursiva, pela “redefinição de limites entre os elementos” (Fairclough, 2016, p. 97). As práticas sociais são entendidas por Chouliaraki e Fairclough (1999) como o ponto de conexão entre estruturas e eventos. Estruturas são “condições históricas da vida social que podem ser modificadas por ela, mas lentamente” e eventos “são acontecimentos imediatos individuais ou ocasiões da vida social” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p. 22). As estruturas sociais são entidades abstratas que definem um conjunto de possibilidades para realização de eventos. Os eventos, porém, não são efeitos da estrutura. Na verdade, estrutura, práticas e eventos estão em um continuum de abstração/concretude e, portanto, a relação entre o que é estruturalmente possível e o que acontece de fato não é simples (Resende & Ramalho, 2019). Se, por um lado, a prática social é composta por situações que articulam momentos internos, ela própria se articula externamente a outras práticas, formando uma rede de práticas relativamente permanentes e se tornando momento dessa rede (Ramalho & Resende, 2019).

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As práticas sociais formam, portanto, uma rede de práticas interligadas, conforme a figura 2. Tais articulações são atravessadas pela estrutura e geram eventos, conforme já abordados.

Figura 2 – Rede de práticas sociais Fonte – Adaptado de Resende e Ramalho (2019, p. 42).

A abordagem de redes é importante em ADC porque, nesta perspectiva, as práticas são determinadas umas pelas outras gerando diversos efeitos sociais. Em análises amplas que consideram conjunturas e estruturas, observa-se a constituição de rede de práticas interligadas. Em outras palavras, se a articulação entre momentos de práticas sociais pode ser aplicada aos momentos internos de uma prática, também pode ser ampliada para se aplicar na formação de redes de práticas relativamente permanentes. As práticas articuladas constituem redes das quais são momentos (Ramalho & Resende, 2019). Nessas redes, discursos se articulam internamente em cada prática. Devido ao caráter aberto das práticas sociais, a articulação de uma rede de práticas sofre tensões devido ao seu equilíbrio instável. A ADC se debruça nas brechas ou aberturas existentes nessas articulações.

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Em função do exposto e da abordagem dialético relacional sobre a qual me debruço para debater o entendimento acerca do conceito de discurso, ressalto a importância da relação entre mudança social e mudança discursiva. O DISCURSO COMO MOMENTO DAS PRÁTICAS DE GESTÃO

Como já destaquei no início, as organizações são formações sociais complexas compostas por inúmeras práticas e relações sociais e parte significativa dessas relações se concretizam por meio de discursos. As práticas de gestão são construções sociais (Schatzki, 2005, 2017) e situam-se em um contexto, que constitui um conjunto de fenômenos que circunda uma ação e exerce influência sobre ela. Qualquer prática é um conjunto de ações espaciais- temporais organizadas e abertas. O conjunto de ações que compõem uma prática é organizado por três fenômenos: classificação de como fazer coisas, regras e estrutura (Schatzki, 2005). As organizações e as pessoas são os princípios organizadores dessas práticas (Schatzki 2017). Na verdade, Schatzki (2017) assume que práticas e pessoas são mutuamente dependentes e as pessoas são em todo o plenum das práticas. Como exemplo ele cita as práticas de gestão (Schatzki, 2005). O entendimento do discurso como parte indissociável das práticas de gestão perpassa pela compreensão das práticas de gestão como práticas sociais enquanto modos mais ou menos estabilizados de produção da atividade humana organizada (Batista Júnior, Sato & Melo, 2018). As práticas de gestão são, adicionalmente, maneiras de fazer pelas quais usuários se apropriam do espaço organizado.

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A forma e a aparência do espaço construído, as práticas sociais incorporadas que tornam lugar em espaço (Certeau, 2014), espaços virtuais através de sites, e-mails, listas de discussão e blogs, cartazes e material promocional, entre outros, são formas de discursos organizacionais. Estruturas dos edifícios e cartazes, por exemplo, nos lembram que os textos não são necessariamente escritos e podem ser encontrados de diversas formas (Fairclough, 2016; Tatli, 2011). Nesse ínterim, os grupos de conversas por aplicativos, como, por exemplo, o WhatsApp, se fortaleceram como discursos organizacionais (ou como propagadores desses discursos) nos últimos anos, em especial com a necessidade do home-office no decorrer da pandemia de Covid-19. Na esteira do pensamento de Swan (2010), os discursos podem ser encontrados em diferentes formatos nas organizações para além das normatizações que as regem. A arquitetura, os espaços e os eventos, entre outras formas, constituem fortes modalidades de discursos. Conforme alertam Saraiva e Irigaray (2009), o discurso tem o papel estratégico de alinhar a imagem organizacional ao moderno, ao menos no nível retórico, além de difundir uma nova visão de organização, tratando de aspectos díspares e ao mesmo tempo complementares em busca de legitimidade. Os discursos refletem as ideologias organizacionais e seu fim “[...] é a adesão dos empregados a um projeto que os antecede e que sucumbe sem seu apoio, embora pretenda deles independer” (Saraiva & Irigaray, 2009, P. 339). Os discursos organizacionais são tradicionais, pois não questionam a ordem capitalista estabelecida, ao mesmo tempo em que se apresentam como humanizadores do ambiente organizacional, modificadores de realidades e capazes de tornar a organização em um espaço amado pelos empregados (Saraiva & Irigaray, 2009).

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Sob esta égide, as práticas de gestão são idealizadas e construídas no contexto organizacional e refletem suas ideologias, como por exemplo, os discursos acerca do empreendedorismo como uma ética do trabalho necessária à massa trabalhadora (Costa & Saraiva, 2014). O discurso, enquanto momento da prática de gestão dialoga com outros momentos de igual importância na sua constituição (figura 3).

Figura 3 – Momentos da prática de gestão Fonte – Elaborado pela autora a partir de Magalhães, Martins e Rezende (2017), Resende e Ramalho (2019) e Vieira e Resende (2016).

Na representação está subjacente a ideia de autonomia relativa dos atores. Os atores possuem expectativas diferentes acerca das organizações e até mesmo sobre cada prática e isso varia em função de muitos aspectos, inclusive de posição hierárquica. Esse é um elemento a ser considerado nas implicações das articulações desses momentos. Muitos recursos são acionados pelos atores organizacionais para a consecução de uma prática de gestão, dentre eles, os materiais que podem variar de recursos tecnológicos ou mobiliários, à propriedades,

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bens ou até mesmo investimentos financeiros. A Atividade Material é um momento da prática social que engloba tais recursos e é um dos momentos importantes da prática de gestão que se soma a recursos sociais, simbólicos e cognitivos. Esses recursos organizacionais adicionais podem ser observados nos elementos Relações Sociais (redes de relações entre pessoas, Estado e/ou organizações, disputas, colaborações, negociações, tensões) e Atividade Mental (conhecimentos, competências, valores pessoais, expectativas e objetivos profissionais). Para a consecução de uma prática de gestão, no momento Discurso Organizacional há articulação de diversos momentos internos que dizem respeito aos discursos oficiais e não oficiais. No que tange os discursos oficiais há aqueles documentados nos manuais de comportamentos e códigos de conduta, nos balanços sociais, nas políticas internas, nas mídias, entre outros. Os discursos não oficiais estão, muitas vezes, latentes nas falas informais, em práticas cotidianas não formalizadas, nas edificações e arquiteturas, na cultura organizacional, nas relações de poder, dentre outras formas de se manifestar. Importante ressaltar que se torna quase impossível e não seria o propósito aqui, elencar todas as possibilidades de momentos internos de cada um desses momentos das práticas de gestão. Faço aqui indicações sugestivas, mas é óbvio que variarão de acordo com cada prática e cada pesquisa. Os momentos por si só evidenciam o quão dinâmicas são as práticas de gestão. Em uma organização ou mesmo em um setor ou departamento há sempre o que Schatzki (2005, p. 473) denomina “pacote de práticas” que se concatena à rede de práticas de Resende e Ramalho (2019).

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Muitas práticas de um setor são parte de um pacote de práticas da organização e algumas ações podem fazer parte de mais de uma prática; ações de diferentes práticas são realizadas no mesmo espaço, mas em arranjos diferentes. A sua formação social surge de práticas já existentes. Uma prática de gestão é um produto de ações executadas em outras práticas, é uma mistura de arranjos e continua existindo através de uma perpetuação de práticas e em uma manutenção de arranjos (Schatzki, 2005). O contexto pode mudar alterando as práticas de uma organização e as práticas se perpetuam também por meio dos eventos. Assim como a rede de práticas sociais interligadas, apresentada por Resende e Ramalho (2019), Schatzki (2005) explica que a organização é um feixe de práticas (figura 4).

Figura 4 – Rede/feixe de práticas organizacionais Fonte – Elaborado pela autora baseado em Resende e Ramalho (2019).

O exemplo traz um/uma feixe/rede de práticas organizacionais (PGP – Práticas de Gestão de Pessoas; PD – Práticas de Diversidade; PRS – Práticas de Responsabilidade Social) cada uma com seus momentos, porém interligadas.

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Essa ontologia tem implicações às organizações, pois, para compreender uma organização, é necessário identificar as práticas que a compõem e, só então, identificar o/a feixe/rede de práticas ao qual fazem parte. Ao identificar diversos/as feixes/redes de práticas de uma organização é possível analisar se há coerência entre eles ou se competem entre si (Schatzki, 2005). Ademais, as redes de práticas internas de uma organização estão ligadas a redes semelhantes de outras organizações locais, nacionais ou estrangeiras: “todas essas malhas, redes e confederações formam uma gigantesca metamorfose fosfatizando a teia de práticas e ordens, cujo alcance máximo é coextensivo com espaço-tempo sócio-histórico” (Schatzki, 2005, p. 473). Enquanto dimensão de uma prática, o discurso tem papel importante não só na sua constituição, mas também nas mudanças ocorridas nela. “Neste caso pode-se falar tanto em mudança social, como mudança discursiva. [...] A relação entre essas duas dimensões da mudança é dialética [...] Por vezes, elas se retroalimentam” (Magalhães, Martins & Rezende, 2017, p. 52). Dessa forma, é importante considerar o papel dos múltiplos discursos que são construídos nas redes de práticas organizacionais. No que concerne à pesquisa, a ADC não pode ser reduzida a um método de análise. Ela precisa ancorar um arcabouço teóricometodológico. Além disso, a ADC não poder ser limitada à análise linguística, tampouco à análise social. A limitação, em qualquer uma dessas dimensões, resulta na não utilização da ADC, de fato. É nesse sentido que decorre a Análise de Discurso Textualmente Orientada (Fairclough, 2016), pois a análise linguística e a análise crítica social devem, necessariamente, estar inter-relacionadas. Segundo Vieira e

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Resende (2016, p. 23) “a análise linguística alimenta a crítica social, e a crítica social justifica a análise linguística”. Ao conduzir uma pesquisa em ADC, o primeiro passo é definir a perspectiva ontológica adotada que ajude a compreender o problema social a ser investigado. Dessa forma, o analista de discurso precisará apontar a perspectiva de ADC mais adequado ao seu estudo (Wodak & Meyer, 2009). Por conseguinte, o pesquisador precisa tomar decisões epistemológicas e ter clareza acerca dos aspectos da realidade mais relevantes do problema pesquisado. Segundo Magalhães, Martins e Rezende (2017, p. 159) “um embasamento teórico claro evitará equívocos na reflexão epistemológica”. Este passo deve ser uma prévia das decisões metodológicas, pois a escolha do(s) método(s) dependerá do foco da pesquisa. Dessa forma, as decisões ontológicas, epistemológicas e metodológicas não são meras etapas estanques, mas reflexões interrelacionadas (Magalhães, Martins & Rezende, 2017). Essa observação é necessária tendo em vista que, mesmo para uma versão ontológica da ADC, existem múltiplas possibilidades epistemológicas e metodológicas (como por exemplo, os métodos de coleta e/ou geração de dados). Magalhães, Martins e Rezende (2017) apontam a etnografia como paradigma epistemológico coerente com versão ontológica adotada por Fairclough, porém relembram a necessidade de flexibilidade e da autocrítica. Feitos os devidos posicionamentos, apresento uma proposta de planejamento de pesquisa em ADC para estudos de práticas de gestão baseado em Chouliaraki e Fairclough (1999). Trata-se da figura 5, que explano a seguir:

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Figura 5 – Framework para análise dialético-relacional nos Estudos Organizacionais Fonte – Adaptado de Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 60).

De acordo com esse enquadre, toda análise em ADC parte de um problema social que envolva aspectos semióticos, ou seja, manifestações linguísticas. Além disso, segundo Resende e Ramalho (2019), a ADC se debruça, em geral, sobre problemas que envolvam relações de poder ou naturalização de discursos particulares como sendo universais já que é seu objetivo “refletir sobre a mudança social contemporânea, sobre mudanças globais em larga escala e sobre a possibilidade de práticas emancipatórias em estruturas cristalizadas na vida social” (Resende & Ramalho, 2019, p. 36). Dessa forma, no contexto organizacional, problemas relacionados aos discursos organizacionais oficiais e não oficiais acerca de temas emergentes como inclusão e práticas de diversidade; práticas empreendedoras; práticas de responsabilidade socioambientais; práticas de gestão de pessoas; relações hierárquicas, poder e conflitos;

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comportamento, cultura e mudança organizacional; liderança e trabalho em equipe; comunicação organizacional, entre muitos outros, acenam como temas passivos de enquadre no framework proposto. Ademais as interações sociais discursivas, base das relações sociais que se desenvolvem no interior das organizações, são forte escopo de análise da ADC no contexto organizacional. Como já asseverado, para além do conceito racional, as relações sociais constituem o cerne da existência de uma organização. Desta forma, problemas semióticos oriundo destas interações certamente se adequam à proposição analítica. O segundo ponto a ser considerado no planejamento de pesquisa em ADC é a identificação de obstáculos para que o problema seja superado. Nesse ínterim, são considerados três tipos de análises que atuam em conjunto nesta etapa: 

Análise da conjuntura (contexto/estrutura): onde o problema ocorre, ou seja, da configuração de práticas das quais o discurso a ser analisado faz parte, as práticas associadas ou das quais ele decorre (Resende & Ramalho, 2019). A definição de contexto é ampla e contingencial, conforme defendem Chouliaraki e Fairclough (2010). Não deve ficar restrita a moldes pré-definidos. Nessa proposta, a estrutura corresponde ao cenário interno das organizações e o contexto socioeconômico e político nacional e local, que corresponde à proposta de conjuntura. É importante, portanto, considerar o cenário nacional e local desta conjuntura bem como a estrutura interna das organizações com foco em práticas específicas de gestão.



Análise da prática em particular: com ênfase para os momentos da prática de gestão em questão e suas relações com os discursos.



Análise do discurso: orientada para a estrutura e para a interação. Análise de recursos linguísticos utilizados e sua relação com a prática de gestão. Nessa etapa, é importante considerar os diferentes significados que os discursos podem assumir.

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Fairclough (2003) enfatiza três significados que o discurso pode assumir, simultaneamente, dentro de enunciados do discurso: acional (modo de agir), Representacional (modo de representar) e Identificacional (modo de ser). Cada um desses modos de interação entre discurso e prática social corresponde a um tipo de significado. O terceiro passo diz respeito à análise social do problema ou verificação da função do problema na prática, já que a ADC nasce do social e volta a ele, como já afirmado. O último passo, a Explanação, corresponde à mudança de polaridade da análise, ou seja, sair do problema para soluções. Isso implica mudanças que podem ocorrer na estrutura social. Esse estágio revela a posição da ADC como instrumento de ação reflexiva para emancipação social, inclusive em práticas de gestão. Por fim, destaco que a ADC é crítica pela sua capacidade de produzir reflexões e mudanças. Tais impactos devem ser primeiramente vivenciados pelo próprio pesquisador dos Estudos Organizacionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo apresentou uma proposta teórico-metodológica de pesquisa no campo nos Estudos Organizacionais valendo-se do modelo transdisciplinar proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999). A visita a diferentes estudiosos da ADC e dos EOR, sobretudo àqueles dos discursos organizacionais e das práticas de gestão, serviu de base para compreender que é possível um diálogo entre ADC e EOR. A articulação de categorias teóricas da ADC e a reflexão sobre as organizações como espaços propulsores de múltiplas relações sociais acena que, desvelar discursos e problemas relacionados à linguagem nos contextos organizacionais é preponderante para a compreensão da

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dinâmica das práticas de gestão, mas não se encerra nesse percurso. Enquanto a proposta de pesquisa aqui apresentada se sustenta na vocação transdisciplinar da ADC, o movimento inverso também é possível. Os EOR contribuem com outras áreas do conhecimento por se debruçar em dilemas sociais que se replicam no contexto organizacional. Assim, temos um itinerário dual de pesquisa. A intenção do capítulo não se restringiu em fornecer modelo de pesquisa para os EOR, mas de promover intersecção com a ADC a partir de uma demanda comum e, ao fim, contribuir com as duas áreas. A explanação mostrou que esse diálogo é possível e ainda há um longo caminho a ser explorado. REFERÊNCIAS

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4 A ACD E O MODELO TRIDIMENSIONAL DE FAIRCLOUGH Georgiana Luna Batinga Luiz Alex Silva Saraiva

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Marcelo de Rezende Pinto

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INTRODUÇÃO

A construção de um trabalho científico carrega consigo escolhas e definições que, além de integrar os propósitos metodológicos, configuram o caminho que conduz à construção do conhecimento, refletindo crenças e convicções que orientam a escolha e definição dos pressupostos do estudo (Guba & Lincoln, 1994), afinal, os sujeitos conhecem, pensam e agem conforme os em que se inserem do ponto de vista cultural (Morin, 2002). Na seara científica, sobretudo nas Ciências Sociais, há um vasto número de possibilidades, principalmente no contexto das técnicas que podem ser utilizadas a fim de privilegiar o acesso ao conhecimento acadêmico. Esses variados caminhos se devem a uma compreensão ampliada da realidade, que pode ocorrer em múltiplos níveis, o que demanda distintas formas de acessar o conhecimento. Este texto se concentra na análise do discurso para além do foco estritamente metodológico observado nas pesquisas em Administração, que consideram esta perspectiva apenas do ponto de vista operacional,

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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Universidade Federal de Minas Gerais.

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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descolando-o de toda uma tradição teórica que sustenta e explica a centralidade do discurso na abordagem dos fenômenos sociais. Desde que Kuhn (1962) sustentou que a opção primeira de uma pesquisa que se situa no nível do paradigma de investigação, o que indica o fazer científico reconhecido e aceito por seus pares, entende-se que os paradigmas funcionam como lentes por meio das quais se enxerga o mundo e se conduz a pesquisa, acatando fundamentos filosóficos de modo explícito ou implícito. Nesse sentido, os paradigmas se modificam e/ou são substituídos por outros paradigmas à medida que a ciência evolui e promove rupturas, gerando mudanças que ordinariamente ocorrem em etapas e contribuem para seu progresso. No contexto das Ciências Sociais observa-se um período de mudanças, localizadas principalmente no século passado, com algumas rupturas que ocorreram, entre outros motivos, pela insatisfação e falta de ajustamento das abordagens positivistas e naturais, adotadas no campo com o consequentemente o enfraquecimento de sua influência hegemônica (Santos, 2010). Recebeu ainda, influência do movimento intitulado “virada linguística” e do progressivo interesse por perspectivas abordagens críticas tais como a teoria crítica, o pós-estruturalismo, a crítica social e o pós-modernismo. A virada linguística amplia a discussão da perspectiva estruturalista até então predominante no campo dos estudos da linguagem, introduzindo a dimensão social na agenda dos estudos da língua e direcionando o olhar para o funcionamento da linguagem em movimento. A virada linguística levou a que se pensasse a linguagem como forma de controlar a estrutura social, e ao mesmo tempo, pensar a linguagem para desestabilizar esse controle. “Esta consciência crítica sobre práticas linguísticas cotidianas responde a mudanças

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fundamentais nas funções que a linguagem cumpre na vida social” (Fairclough & Wodak, 2000, p. 369), representadas, por exemplo, na linguagem instrumentalizada, tecnologizada, na linguagem publicitária, usada para seduzir e consumir, para vender, entreter, que refletem o homem e suas práticas sociais. As práticas sociais utilizadas por quaisquer organizações são mediadas via linguagem, que assume um papel central nas relações, pois é por meio dela que ocorrem as interações (Bakhtin, 1992), em um determinado contexto social. Tal movimento se traduziu em uma perspectiva renovada sobre a natureza da linguagem e sua relação com questões centrais das Ciências Sociais e, ao romper esses limites, originou diferentes escolas e abordagens metateóricas sob o rótulo da Análise de Discurso (AD): a escola francesa, anglo-saxã, espanhola, germânica, brasileira, entre outras, com pontos de similitudes e disparidades (Orlandi, 2003). Tomando a título de exemplo as duas principais escolas, Pêcheux, na escola francesa (ADF) e Fairclough, na anglo-saxã (ACD), respectivamente autores referenciais das duas escolas, partem de lugares diferentes o que se desdobra em ênfases e prioridades distintas. São comuns a ambas abordagens a concepção de discurso, de formação discursiva e de ordem do discurso proposta inicialmente por Foucault (1996), o fato de se basearem em ideais marxistas que procuram dar conta das transformações do capitalismo, características de inter e transdisciplinaridade, e o comprometimento com a análise e revelação da função do discurso na (re)produção da dominação social. Como pontos de divergência entre essas duas abordagens, podemos citar a intenção da ACD em fazer a análise do discurso como instrumento político contra a injustiça social, assim como o posicionamento de seus analistas que não podem adotar uma postura de imparcialidade em relação ao objeto

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analisado, pois, ao fazê-lo, se tornariam cúmplices de tais estruturas. Neste sentido, ela promove um deslocamento epistemológico em relação à ADF, ao propor uma perspectiva que busca promover rompimentos e transformações sociais e sua relação com estruturas dominantes de poder. No entanto, é possível desenvolver um projeto comum entre ambas, por exemplo, quando se pretende produzir interfaces e desdobramentos sobre práticas discursivas e práticas sociais. Para além dos trabalhos já apresentados acerca da Análise Crítica do Discurso (ACD), este texto pretende avançar na discussão, promovendo uma contribuição ao apresentar de forma aprofundada esta abordagem teórico-metodológica, associando-a reflexões epistemológicas e sociais. Considerando que a sociedade se trata de um campo de disputas políticas, ideológicas e de interpretações, com enquadramentos conflitantes, que disputam pela interpretação e construção da realidade, pois a linguagem, por conseguinte, é “uma prática social, partilhada, uma entidade concreta e viva de signos ideológicos” (Bakhtin, 1998, p. 99), o que se pretende aqui é reunir as principais ideias da Análise Crítica do Discurso com ênfase no modelo tridimensional de Fairclough (2008) como um enquadramento analítico possível de ser executado. APROXIMANDO-SE DOS ESTUDOS DO DISCURSO

Assumir a ACD requer assumir um posicionamento epistemológico associado à mudança, à emancipação e à transformação, o que implica direcionar o olhar para as condições de produção dos textos, para a observação dos significados alojados em seus interiores e para as suas influências nos processos de construção de realidades sociais. Essa

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interação ocorre em dois níveis da ordem social: “o uso da linguagem, o discurso, a interação verbal e a comunicação pertencem ao micro nível”; já “o poder, a dominação e a desigualdade entre grupos sociais são tipicamente termos que pertencem ao macro nível” de análise. Cabe à ACD preencher essa lacuna entre os dois níveis, que se dá na interação, na experiência cotidiana, nas práticas sociais (Van Dijk, 2008). A posição ontológica dessa abordagem assume que o discurso não possui uma relação passiva com a realidade e com a linguagem, referindo-se aos objetos, tidos como dados na realidade, mas em uma relação ativa: a linguagem lhe atribui sentidos e significados. Uma noção central na maioria dos trabalhos críticos do discurso é o poder, mais especificamente, o poder social exercido por grupos e instituições, manifestando-se em termos de controle social, cuja intensidade pode ser maior ou menor dependendo do quanto forem capazes de exercer maior ou menor controle sobre membros de um grupo social, e até mesmo de outros grupos. Outra característica marcante dessa abordagem é o posicionamento sociopolítico que pleiteia de seus pesquisadores, reconhecidos como “analistas críticos do discurso”, uma atitude crítica e explícita, que assuma explicitamente seu papel na sociedade e sua posição sociopolítica. Como defende Van Dijk (2008, p. 114), aos analistas, “é fundamental a consciência explícita do seu papel na sociedade, dando continuidade a uma tradição que rejeita a possibilidade de uma ciência não valorativa”, por meio da crença de que “os analistas críticos argumentam que a ciência, em particular, o discurso acadêmico não apenas são parte inerente de uma estrutura social, mas também são por ela influenciados, além de serem produzidos na interação social”. O papel do discurso nas organizações é igualmente difícil de definir. Apesar de abordagens divergentes e às vezes conflitantes, a

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pesquisa sobre o discurso organizacional está associada ao estudo de textos (embora o que constitui um texto também seja uma questão de debate) e seu uso em configurações organizacionais particulares. Discursos podem ser textos, falas e práticas e sua análise requer um exame da linguagem, da produção de textos e processos de comunicação e as interações entre atores em ambientes organizacionais e institucionais (Grant, Keenoy & Oswick, 1998). Estudar o discurso organizacional ou ainda o discurso nas organizações a partir dessa perspectiva constitui um caminho rico para explorar os processos da organização e, em particular, suas fragilidades e lutas travadas dentro da dinâmica organizacional. É saber que “grande parte do que passa na organização é um tipo de discurso” (Van Dijk, 2016, p. 710). Significa estudar os efeitos políticos do discurso organizacional e examinar como ele atua como um recurso cultural, uma vez que o discurso como campo de estudo é “difuso” e abrange uma série de abordagens que são construídas por uma grande variedade de disciplinas (Van Dijk, 1997). Esses diferentes saberes nasceram, pois, de práticas e de formas de organização. O que se conclui é que o próprio sujeito é uma posição discursiva, uma função dos discursos. Pois, como diz Foucault, “somos seres de linguagem e não seres que possuem linguagem” (Foucault, 2012, p. 20). Observa-se, assim, como determinados mecanismos linguísticos permitem a construção de uma realidade na dinâmica da língua e suas manifestações nos aspectos sociais, culturais e históricos. É nesse caminho que todas as linguagens, qualquer que seja o princípio de sua estratificação, “podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si, oporem-se umas às outras e se corresponder dialogicamente” (Bakhtin, 1998, p. 99).

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CONTEXTUALIZANDO A DISCUSSÃO: LÍNGUA, LINGUAGEM E DISCURSO

A concepção moderna do conceito e objeto de estudo da Linguística se origina do curso de “Curso de linguística geral” [1916] do suíço Ferdinand de Saussure, que estabelece uma noção de língua que rompe com a tradição histórico-comparativa de estudos de linguagem, conferindolhe um caráter de cientificidade nos moldes positivista e estruturalista, e posicionando-a como ciência (Saussure, 2006). Para ele, a língua é um fato social e está dissociada de fatores externos: funciona como uma estrutura autônoma, um sistema de signos, constituído por relações de natureza essencialmente linguística que se estabelecem entre seus elementos. Para Saussure, a linguística tem por único e verdadeiro objeto, a língua considerada em si mesma e por si mesma. Foi somente no final do Século XIX, que ocorre um corte epistemológico que promove uma mudança no campo conceitual e, No lugar do puro pensamento e das ideias do racionalismo e do empirismo do século XVII e no lugar da razão kantiana com suas formas puras “a priori”, surge a linguagem como um dos problemas centrais do pensamento ocidental. A linguagem não é mais considerada como simples instrumento para o pensamento representar as coisas, e sim estrutura articulada, independente de um sujeito ou de uma vontade individual e subjetiva, não mais submetida à função exclusiva da nomeação ou designação, quer dizer, o signo não se limita a estabelecer uma relação direta com a coisa nomeada. [...] A virada linguística, pressentida por Hegel, configura um novo panorama para a filosofia da linguagem e para a linguística (Araújo, 2004, p. 1112).

Esse rompimento ganha evidência na metade do Século XX, com a chamada “virada pragmática”, quando o campo assume os elementos sociais, culturais e contextuais. “Não se considera mais um sujeito

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racional, intencional, solitário, um ‘tipo ideal’, mas, ele se faz a partir da construção de objetos discursivos, na intersubjetividade das negociações, das ratificações de concepções individuais e públicas” (Ferreira, 2010, p. 24). Em contraponto a essa abordagem estruturalista de Saussure, entra em cena uma concepção de linguagem que cria o vínculo entre o homem e a realidade social por meio do discurso, tornando possível “tanto a permanência e a continuidade, quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade na qual vive” (Piovesan et al., 2006, p. 2). Ao estabelecer uma nova concepção dos diferentes contextos de uso da língua, que acabam conferindo diferentes sentidos a uma mesma palavra, as palavras passam a não ser neutras ou imutáveis: é no contexto real de uso da língua que se constroem os valores que o falante dá para a língua, sendo esta um signo variável e flexível (Bakhtin & Voloshinov 1992). Surge, então, o conceito de discurso como “uma dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir um espaço de regularidades enunciativas” (Maingueneau, 2005, p. 15): é a língua em movimento, perpassando as diversas esferas da sociedade, é o lugar da materialização ideológica (Pêcheux, 1993). “A relação estabelecida pelos interlocutores, assim como o contexto, são constitutivos da significação do que se diz” (Elichirigoity, 2007, p. 174). Com essa noção de discurso estabelece-se que o modo de existência da linguagem é social e fica entre a língua (geral) e a fala (individual): o discurso é o lugar social. Enquanto “a língua é um conjunto de estruturas, os discursos são unidades de funcionamento, e a análise da linguagem em sua totalidade não pode deixar de fazer face a essa exigência fundamental [...] não somente da língua que permite dizer, mas dos discursos que foram ditos” (Foucault, 2000, p. 72). A “linguística permitiu, enfim, analisar não

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somente a linguagem, mas os discursos, isto é, ela permitiu estudar o que se pode fazer com a linguagem” (Foucault, 2000, p. 166). Diz respeito, assim, aos lugares sociais ocupados pelos sujeitos falantes e sua posição relativa no discurso; é a desigualdade existente entre eles e entre os lugares que ocupam que se materializa nos poderes que exercem na produção social. No entanto, essas desigualdades não são rígidas: sobre elas paira a possibilidade de ruptura e, portanto, de alterações dessas condições (Orlandi, 1987, p. 158). Ora, se o discurso é o elo entre a linguagem e a realidade social, ao eleger o discurso como seu objeto, a AD acaba relacionando à linguagem a exterioridade. Para Alkmin (2001, p. 21), “linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inseparável. Mais do que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano”. Inspira-se ainda, em sua origem, na afirmação de Saussure (2006) de que a língua é fato social e busca significar o que ali é social e ao estabelecer essa proposta, a análise do discurso adquire uma singularidade: ligar a língua à exterioridade, à ideologia e ao inconsciente (Orlandi, 2002). Neste sentido, a AD produz um deslocamento mais significativo do que a sociolinguística, principalmente em face da natureza dicotômica da língua/fala, ao deslizar para a relação não dicotômica língua/discurso, o que abre. “A não-dicotomização da relação língua e discurso abre o conhecimento linguístico para um novo marco em seu desenvolvimento. A teoria do discurso, trabalhando os entremeios, vai além das relações representadas como dicotomias” (Orlandi, 2002, p. 22). Ao trabalhar na reintrodução do sujeito e da situação no campo dos estudos da linguagem, a análise do discurso compreende o dinamismo que há na língua em movimento, e que tanto o sujeito como a situação podem ser

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redefinidos e ressignificados o tempo todo, e é na interpretação e busca do sentido escondido em algum lugar atrás do texto, que “procura-se compreender a língua não só como uma estrutura, mas sobretudo como um acontecimento” (Orlandi, 2009, p. 19). Mais do que isso, a “análise do discurso visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos” (Orlandi, 2009, p. 26): “ao produzir este deslizamento, ao desmanchar teoricamente essa dicotomia, a teoria do discurso redefine (ressignifica enquanto instrumento de reflexão) o que é língua para a linguística” (Orlandi, 2002, p. 24). Quem analisa o discurso, assim, não pode abrir mão do sentido, que, por sua vez, não está “separado” da sintaxe. Para os objetivos do analista de discurso, considerando uma relação regrada entre língua e discurso, é necessário trabalhar o “impulso metafórico interno da discursividade pelo qual a língua se inscreve na história” (Orlandi, 2002, p. 24). Embora esteja fundamentada por estes elementos que a tornam singular, a análise do discurso é, sobretudo, “um processo de desconstrução, construção e compreensão incessante de seu objeto: o discurso” (Elichirigoity, 2007, p. 170). Nesse sentido, a análise do discurso se aproxima ainda mais da linguagem, pois o discurso, objeto de seu estudo, é a linguagem em ação, é o elo entre o homem e a realidade natural, social. Mais do que isso, o discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade, manifesta na comunicação entre as pessoas, as organizações, e todos os atores sociais que se inserem contexto social e se expressam de diversas maneiras, produzindo sentidos enquanto sujeitos e enquanto membros de uma sociedade; é a palavra em movimento, é a língua criando sentidos simbólicos, constitutivos do homem e da sua história (Orlandi, 2009).

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A DIMENSÃO DA MUDANÇA SOCIAL POR MEIO DO DISCURSO

Ao considerarem a linguagem como prática social, Bakhtin e Fairclough pressupõem o contexto histórico e econômico da sociedade na análise do texto e de seu contexto e incorporam um posicionamento crítico ao reconhecerem a heterogeneidade discursiva e problematizarem as estruturas fixas das práticas de linguagem (Bakhtin, 1992; Fairclough, 2003). Essa concepção surge a partir dos primeiros estudos de linguística crítica, na década de 1970, que passam a investigar a linguagem interagindo com o contexto social, com o objetivo de compreender os valores associados às práticas sociais. A preocupação primeira da linguística crítica foi teorizar sobre a linguagem como prática social, reprodutora de ideologias, sobretudo da linguagem e sua relação com o poder. Ao final da década de 1980, vários estudos foram publicados sobre esta perspectiva, consolidando os estudos críticos da linguagem e revelando autores que passariam a ser expoentes dessa corrente como Norman Fairclough, Gunter Kress, Ruth Wodak, Teun van Dijk e Theo van Leeuwen que, promovem sua a discussão inserindo-a no eixo da análise do discurso, que até então se preocupava apenas com o texto e sua interação social no nível do discurso, deixando a prática social de lado. Essa é uma das diferenças entre a escola francesa e a escola anglosaxã de análise do discurso, que desloca sua atenção aos processos de produção e interpretação linguística, caracterizados por tensões sociais e contempla essencialmente a dimensão da mudança social por meio do discurso (Wodak, 2003; Van Dijk, 2008; Wodak & Meyer, 2009). Coube a Fairclough avançar na discussão, criar a expressão “Análise Crítica do Discurso” (ACD) ou “Análise do Discurso Crítica” (ADC), (Magalhães,

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2005) e formalizar o método de estudo da linguagem como prática social, cujo objetivo é investigar as transformações na vida social. Essas formalidades acontecem durante um simpósio na cidade de Amsterdã, na década de 1990. A expressão criada por Fairclough se consagra, além de contribuir para evidenciar o pensamento crítico associado a um objetivo intervencionista e emancipador, ao buscar identificar os elementos do sistema de relações sociais presentes no discurso, e tentar avaliar seus efeitos sobre as relações sociais. Apesar de recente, a Análise Crítica do Discurso ganha espaço e tem sido reconhecida enquanto uma proposta teórico-metodológica com características interdisciplinares, voltada para estudar fenômenos sociais complexos, que requerem uma abordagem multidisciplinar e multimetodológica (Fairclough & Wodak, 2000). A ACD não propõe apenas uma reflexão teórica acerca do funcionamento da linguagem em práticas sociais, mas também enquadramentos analíticos para a análise de textos (Wodak, 2003). Embora não possua homogeneidade entre suas diversas perspectivas, como ressalta Meyer (2003), tais como a perspectiva cognitiva de Van Dijk (1997), a perspectiva histórica de Wodak (1996), e a perspectiva social de Chouliaraki & Fairclough (1999) e Fairclough (2003), a abordagem representa um conjunto de configurações teóricas e analíticas que compartilham uma visão crítica acerca da linguagem e um interesse na mudança social. Assim como a Análise do Discurso Francesa, a Análise Crítica do Discurso se compromete a olhar para as condições de produção dos textos, para os significados alojados em seus interiores e para suas influências nos processos de construção das diversas realidades sociais. Como dito, o poder é uma noção central na maioria dos trabalhos críticos do discurso. Existem pelo menos dois tipos de relações que o poder

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estabelece com o discurso: o poder no discurso, manifesto explicitamente no texto, na escolha das palavras que o compõe, na linguagem; e o poder que se esconde no discurso, cuja origem se encontra nas ordens discursivas as quais o texto está vinculado (Fairclough,1989). Essa relação de poder no discurso e de poder que se esconde no discurso, na maioria das vezes, representado pela relação entre linguagem e estruturas sociais, não é perceptível, não aparecendo explicitamente. No entanto, os textos revelam, por meio de marcas discursivas, da dinâmica e da interação dessas relações sociais (Fairclough, 2001), o que pressupõe o acesso a recursos sociais, tais como força, dinheiro, status, fama, conhecimento, informação, cultura, ou na verdade, às várias formas públicas de comunicação e discurso (Van Dijk, 2008, p. 117). ORGANIZAÇÕES COMO CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS

Estudar o discurso é uma maneira potente para explorar os processos que acontecem nas organizações e, em particular, a fragilidade e as lutas internas vivenciadas na dinâmica organizacional. Estudos dos efeitos políticos do discurso examinam como ele atua como um recurso cultural, e desempenham um papel na construção social da realidade, não se limitando simplesmente a descrever fatos: eles os criam (Grant, Keenoy & Oswick, 1998). O discurso é socialmente constituído e socialmente constitutivo, pois produz objetos de conhecimento, identidades sociais e relações entre pessoas. Na sua análise, as práticas comunicativas dos membros são examinadas tendo em vista as formas que contribuem para o processo contínuo da organização e da constituição da realidade social (Fairclough & Wodak, 1997). Estudar o discurso organizacional também pode ser um recurso

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para revelar como as pessoas utilizam estratégias discursivas para viabilizar seus planos e projetos, como ocorre a construção coletiva desses discursos e os objetivos institucionais a que os discursos particulares atendem. Enquanto alguns autores argumentam que os efeitos do discurso estão fora do controle dos indivíduos, outros defendem que a atividade discursiva pode ser controlada e usada para influenciar os resultados pretendidos (Grant, Keenoy & Oswick, 1998). Hardy, Palmer e Phillips (2000) assumem que os sujeitos se envolvem em atividades discursivas de maneira estratégica e direcionada para produzirem resultados benéficos e alcançarem seus objetivos. Apesar de assumirem que essa agência é limitada, os autores acreditam que os sujeitos se envolvem propositalmente em atividades discursivas, a fim de produzirem e disseminarem várias formas de textos – em um contexto discursivo maior (Hardy & Phillips, 1999). Os discursos que compõem esse contexto decorrem das lutas entre diferentes atores e a acumulação das atividades de muitos indivíduos (Phillips & Hardy, 1997). Portanto, a maioria dos contextos – incluindo as organizações – consiste em discursos múltiplos e fragmentados que proporcionam aos atores escolhas, sendo a interdiscursividade uma estratégia importante para provocar mudanças (Fairclough, 1995). Os indivíduos empregam estratégias discursivas com intenções particulares previamente definidas e podem garantir os resultados esperados, mas fazem isso em um contexto de múltiplos discursos que têm efeitos complexos e de grande alcance e que estão fora do controle de indivíduos isolados. A estratégia discursiva, assim, não ocorre no vácuo. Para entender os discursos e seus efeitos, é preciso compreender o contexto em que eles surgem (Grant, Keenoy & Oswick, 1998).

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Estudar o discurso significa compreender as propriedades do texto, do discurso e de seu contexto, as características da situação social ou do evento comunicativo que pode influenciar sistematicamente o texto ou falar. Estudos sobre o discurso dizem respeito a um diálogo entre o texto e o seu contexto. A atividade discursiva deve, então, ser estudada como uma parte constitutiva do seu contexto local, global, social e cultural (Van Dijk, 1997). O discurso não é produzido sem um contexto e não pode ser entendido sem levar em consideração esse contexto. Os discursos sempre estão conectados a outros discursos que foram produzidos anteriormente, bem como aqueles que são produzidos de forma sincronizada e posteriormente. Estamos falando da intertextualidade e do conhecimento sociocultural do contexto (Fairclough & Wodak, 1997, p. 277). A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO ENQUANTO PROPOSTA METODOLÓGICA

A Análise Crítica do Discurso é, simultaneamente, uma teoria e um método em uma relação dialógica com outras teorias sociais, com os quais deveria se engajar de um modo transdisciplinar, mais que apenas de forma interdisciplinar. A interdisciplinaridade também se aplica à metodologia de geração de análise de dados, razão pela qual se pode afirmar que a ACD se situa na interface entre a Linguística e a Ciência Social Crítica e tem como objetivo analítico identificar as conexões entre relações de poder e as escolhas linguísticas elaboradas pelos atores sociais. Portanto, suas análises avaliam os elementos linguísticos, mas também os elementos sociais, pois, para a Análise Crítica do Discurso, o discurso é uma prática social e um modo de ação dialeticamente constituído, isto é, ele é socialmente constitutivo – o discurso constitui as

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estruturas sociais – e é constituído socialmente – o discurso reproduz as estruturas sociais vigentes (Fairclough, 2001). Para Wodak e Meyer (2009), as perguntas que orientam as pesquisas em Análise Crítica do Discurso conduzem a perspectivas distintas e podem voltar-se ora mais para procedimentos dedutivos, ora mais para procedimentos indutivos, conforme a investigação seja conduzida por diferentes abordagens críticas, que implicam distintas relações de poder, comumente escondidas no discurso. Diante da diversidade de possibilidades de análises e pressupostos teóricos construídos a partir da influência de distintos autores e correntes epistemológicas e, na tentativa de orientar os analistas e pesquisadores que adotam a abordagem, Wodak e Meyer (2009, p. 25) organizaram esboços teóricos possíveis, agrupados de acordo com seus principais objetivos: a) Abordagem de Análise Dispositiva – mais voltada para a origem da noção do discurso, das teorias estruturalistas do fenômeno discursivo, segundo Foucault. Nega a realidade construída fora do discurso. b) Abordagem Sociocognitiva – compreende o discurso como um evento comunicativo, incluindo interações conversacionais e textos escritos, associados a gestos, expressões faciais, leitura de imagens, entre outros. Essa abordagem utiliza como principal corrente teórica, as representações sociais. c) Abordagem Histórico-Discursiva – enfoca o vínculo entre a teoria do discurso e o campo de ação, os gêneros discursivos e o texto. Alinha-se a teoria crítica e dá ênfase na análise histórico-contextual em que um determinado evento está inserido. d) Abordagem do Objeto Linguístico – é uma abordagem quantitativista da ACD. e) Abordagem dos Atores Sociais – trabalha com o amplo escopo de teorias linguísticas e sociais, que explicam o papel das ações nas estruturas sociais e foca no que os atores sociais fazem socialmente.

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f) Abordagem Dialético-Relacional – enfoca a vida social, sua história e experiências humanas, analisadas no contexto social, tenta detectar a ideologia e o poder nas manifestações linguísticas, no discurso e nos elementos de dominação, diferença e resistência.

A abordagem dialético-relacional, que tem como principal expoente Norman Fairclough, foco teórico escolhido para ser discutido e apresentado neste texto, concebe a linguagem a serviço do controle da estrutura social e a linguagem utilizada para desestabilizar tal controle. Para a Análise Crítica do Discurso, a linguagem é considerada uma forma de prática social e como tal se constitui em discurso, o qual pode ser considerado “um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros” (Fairclough, 2001, p. 91). Por se posicionar como uma abordagem teórica-metodológica, uma dúvida recorrente é sobre como operacionalizar essa visão crítica e ideológica da linguagem e analisar o discurso criticamente, enquanto prática social. Em função disso, Fairclough (2008) propõe o modelo tridimensional apresentado na figura 1, chamado de “modelo tridimensional do discurso”, composto por três dimensões de análise: texto: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual; prática discursiva: produção, distribuição, consumo, contexto, força, coerência, intertextualidade e prática social: ideologia, sentidos, pressuposições, metáforas, hegemonia, orientações econômicas, políticas, culturais e ideológicas.

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TEXTO (Vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual)

PRÁTICA DISCURSIVA (Produção, distribuição, consumo, contexto, força, coerência, intertextualidade)

PRÁTICA SOCIAL (Ideologia, sentidos, pressuposições, metáforas, hegemonia, orientações econômicas, políticas, culturais e ideológicas)

Figura 1 – Categorias analíticas do modelo tridimensional de Fairclough (2008) Fonte – Resende e Ramalho (2006, p. 29), adaptada pelos autores.

As categorias de análise representam uma orientação para auxiliar a análise, não sendo necessário que todas elas sejam utilizadas em todas as instâncias. Elas se apresentam da seguinte forma, sem se limitar a essas possibilidades: Análise textual: o vocabulário, a gramática, a coesão e a estrutura textual. O estudo do vocabulário trata das palavras individuais – neologismos, lexicalizações, relexicalizações de domínios da experiência, supere expressão, relações entre palavras e sentidos – e a gramática, das palavras combinadas em frases. A coesão trata das ligações entre as frases, através de mecanismos de referência, palavras de mesmo campo semântico, sinônimos próximos e conjunções. A estrutura textual refere-se às propriedades organizacionais do texto em larga escala, às maneiras e à ordem em que elementos são combinados. Análise das práticas discursivas: participam as atividades cognitivas de produção, distribuição e consumo do texto. Analisam-se também as categorias força, coerência e intertextualidade. A força dos enunciados refere-se aos tipos de atos de fala desempenhados; a coerência, às conexões e inferências necessárias e seu apoio em pressupostos ideológicos; a análise intertextual

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refere-se às relações dialógicas entre o texto e outros textos (intertextualidade) e às relações entre ordens de discurso (interdiscursividade). Análise da prática social: está relacionada aos aspectos ideológicos e hegemônicos na instância discursiva analisada. Na categoria ideologia, observam-se os aspectos do texto que podem ser investidos ideologicamente, como os sentidos das palavras, as pressuposições, as metáforas, o estilo. Na categoria hegemonia, observam-se as orientações da prática social, que podem ser orientações econômicas, políticas, ideológicas e culturais. Procura-se investigar como o texto se insere em focos de luta hegemônica, colaborando na articulação, desarticulação e rearticulação de complexos ideológicos (Resende & Ramalho, 2004, p. 187).

Ao se debruçar sobre os discursos organizacionais, o pesquisador que adota essa abordagem, inicialmente se detém na descrição do contexto e das estruturas sociais nas quais os indivíduos, grupos ou a própria organização criam sentidos em sua interação com os textos. Essa é uma etapa central para a Análise Crítica do Discurso, uma vez que os discursos são históricos e só podem ser entendidos quando analisados em seus contextos específicos. Antes de iniciar a análise, é necessário apresentar a conjuntura do fenômeno em questão, com base nos pressupostos da ACD, que concebe a língua como um elemento integrante do processo social, nas três dimensões de análise propostas por Fairclough (1992). As três dimensões são apresentadas separadamente apenas para auxiliar na organização da análise, mas estão dialeticamente interconectadas e cada uma delas é indispensável às etapas de análise. A proposta do autor é estabelecer uma articulação entre essas dimensões, considerando-as simultaneamente, texto, prática discursiva e prática social em um único evento discursivo. Finda a análise da conjuntura, é iniciada a análise do texto, da prática discursiva e da prática social. O texto é observado em linguagem

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falada ou escrita; a prática discursiva constitui a interação nos processos de construção de sentidos que se realizam entre os interlocutores, relacionados aos processos de produção, distribuição e consumo textual; e a prática social constitui as relações com estruturas sociais e outros processos mais amplos dessa estrutura, nos quais o discurso é produzido. Porém, “a centralidade está no discurso”. A análise da prática social se dá pelo texto. É por meio dele que identificamos “as formas de exploração das estruturas de dominação, as operações de ideologia e as relações sociais” (Resende & Ramalho, 2004, p. 189). CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos listados por Fairclough (2008) são constituintes das práticas. Apesar de distintos entre si, relacionam-se dialeticamente e possuem um sentido por meio do qual cada um consegue internalizar os demais sem perder suas próprias essências. As relações e identidades sociais, os valores culturais e a consciência, por exemplo, são, em parte semióticos, o que não significa dizer que podem ser teorizados da mesma forma que os estudos da linguagem. A Análise Crítica do Discurso surge com a proposta de compreender essa relação dialética que se estabelece entre as práticas sociais e a semiose. Nessa relação, a semiose pode assumir diferentes papéis e graus de determinação, variando com o tempo, de acordo com a prática. Seu funcionamento se manifesta ora como parte evidente da prática social em si; ora reinterpretando-a, reconfigurando-a, recontextualizando-a e incorporando-a, produzindo diferentes performances, variando de acordo com a posição ocupada dentro da prática. Ao entrar em movimento, a semiose produz

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gêneros discursivos que representam as maneiras de agir, de produzir a vida social. A Análise Crítica do Discurso, em sua abordagem dialético-relacional, assume a centralidade do discurso na vida social, pois a ação das pessoas na sociedade se dá por meio do discurso, em todas as suas formas de realização, e permeia as instâncias da estrutura social. Para entender os discursos e seus efeitos, é preciso compreender o contexto em que eles surgem, isto é, as características da situação social ou do evento comunicativo que pode influenciar sistematicamente o texto ou a fala (Van Dijk, 1997). Para os objetivos propostos nesse texto, as proposições da ACD a legitimam enquanto abordagem teóricometodológica para o tratamento dos discursos organizacionais ou nos estudos de gestão, pois, ao unir o social e o linguístico, buscam explicitar, por meio dos mecanismos linguístico-discursivos, caminhos para uma compreensão do social, assim como apresentar a linguagem veiculada em forma de discursos, ideologias e relações de poder. Fairclough (2008) entende discurso como uma prática social simultaneamente reprodutora e transformadora de realidades sociais, defendendo a relação dialética entre sociedade e sujeito, que se moldam e se transformam, ideológica e linguisticamente. Assim, ao refletir sobre o ambiente social, suas práticas e as práticas de outros sujeitos, o sujeito pode promover mudanças das práticas por meio da reprodução, contestação, reestruturação, dominação e suas formações discursivas, seja resistindo a elas, as seja ressignificando, seja as reconfigurando. Para Fairclough, as práticas discursivas contribuem para produzir a sociedade como ela é – suas identidades sociais, sistemas de conhecimento e crença – mas também contribuem dialeticamente para sua transformação. As instâncias de uso de linguagem, em textos

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escritos ou orais, são realizadas, em suas diversas modalidades, pelas ordens de discurso, que constituem os aspectos discursivos das redes de práticas sociais. Por estarem em relação dialética, é difícil estabelecer as fronteiras entre as práticas discursivas e as práticas sociais. Por isso, Fairclough (2008), entende que a ação do indivíduo na sociedade se dá por meio dos gêneros discursivos, uma prática social capaz de revelar os sistemas de motivação de sua produção, recepção e consumo. O discurso também é capaz de revelar essa prática dialética de ação na sociedade, pois pode revelar estruturas sociais de poder constitutivas de formas de crenças e de conhecimento estabelecidas nas relações sociais. Com base em Bakhtin, Fairclough (2008) distingue esses eventos comunicativos – gêneros discursivos – de acordo com as práticas sociais e o nível de abstração que assumem e são utilizados em situações específicas, apresentando padrões e composição mais rigorosos, ao passo que outros são associados a redes de práticas sociais e tem padrões mais flexíveis. REFERÊNCIAS

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5 A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA DE RUTH WODAK NOS ESTUDOS DE DISCURSO Elisângela de Jesus Furtado da Silva Fabiane Louise Bitencourt Pinto Luiz Alex Silva Saraiva

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INTRODUÇÃO

A virada linguística não apenas popularizou o discurso como fonte inesgotável de informações e análises, como permitiu a multiplicação de perspectivas para aproximação, explicação e tratamento do material discursivo (Meyer, 2001). Tal processo constituiu uma via de duas mãos na medida em que, se por um lado favoreceu que se multiplicassem correntes de análise de discurso, por outro que se complexificasse sobremaneira o que se toma por discurso e as formas mais adequadas de abordá-lo. Atentos a essas questões, construímos esse texto de modo a contribuir, de forma introdutória, para o entendimento e possibilidades de uma dessas correntes, a Análise Crítica do Discurso (ACD) sob a ótica de um de seus expoentes, Ruth Wodak. Nascida em Londres em 1950, cursou bacharelado em Filosofia, doutorado e pós-doutorado em Linguística na Universidade de Viena, tendo lecionado na mesma instituição entre 1975 e 2004 nas áreas de Sociolinguística, Psicolinguística e Linguística Aplicada. Desde 2004 atua em estudos relacionados a

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Universidade Federal de Minas Gerais.

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Universidade Federal da Bahia.

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Universidade Federal de Minas Gerais.

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Discurso na Lancaster University, no Reino Unido, permanecendo filiada à sua alma mater. Enquanto pesquisadora, ela tem se debruçado sobre questões sociais relacionadas a gênero, política, identidade, antissemitismo por meio do estudo do discurso (Pérez-Milans, 2013). Os modelos analíticos baseados em relações de causa e efeito por muito tempo foram muito úteis, mas demonstravam limitações para estudo e análise de processos sociais complexos. Nesse contexto, muitos estudos foram construídos explorando as estruturas formais da linguagem, com o objetivo de descrever e explicar as variações da linguagem, as estruturas de interação da comunicação, sendo o caráter crítico reduzido a uma atenção limitada às noções de hierarquia social e poder. Na década de 1970, surgiram os estudos e teorias ligados à Análise Crítica no campo da Linguística. Movidos pelo interesse de investigação dessa lógica, um grupo de acadêmicos mantinha discussões durante a década de 1990, mais precisamente a partir de um pequeno simpósio realizado em 1991, em Amsterdã, Países Baixos, que lançou as bases da Análise Crítica do Discurso (Wodak, 2001b). Wodak desenvolveu a chamada Escola de Análise Crítica do Discurso de Viena, reunindo ex-colegas e alunos do doutorado, consolidando o pioneirismo do tratamento do discurso por meio de uma abordagem histórica, interdisciplinar, orientada para o problema, com foco nas mudanças das práticas discursivas, confrontadas pelo tempo, contexto e gêneros textuais, de acordo com Pérez-Milans (2013). Tratase de um processo que cria uma forte associação entre pesquisa e análise empírica. Seu uso está relacionado ao intuito de desvelar práticas sociais ideológicas e que, de algum modo, representam opressão e, desse modo, aspectos que antes eram invisíveis por meio de análises causais se tornaram perceptíveis por meio da ACD.

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O interesse em compreender esses processos em suas formas de manifestação e seus desdobramentos levou ao desenvolvimento de diversas teorias de cunho crítico. A proposta de interpretação de Wodak explora a dimensão histórica, sendo conhecida como Abordagem Histórica do Discurso (Pérez-Milans, 2013). Por meio dela, é possível perceber que as civilizações apresentam ideologias, paradoxos e contradições, sobretudo os ocidentais, e podem ser expressão de processos de dominação, opressão e violência, segundo a autora (Wodak, 1997). O desafio da análise de práticas sociais opressoras é sua constante atualização, o que envolve diversos aspectos, em especial a linguagem. Por meio dela, ideias, costumes, crenças e visões de mundo são compartilhadas, e dessa forma agem e reagem na forma como as pessoas percebem o mundo à sua volta, como o compreendem e como lidam com as demais pessoas. Já que ideologias estão comprometidas com alguma pretensão de mudança, é por meio da linguagem que se capilarizam e se enraízam no cotidiano, provocando alterações na vida das pessoas, mas de modo sutil e, muitas vezes, naturalizada. A dificuldade de identificar essa dinâmica provoca uma tensão constante nos meios de pesquisa, sobretudo os de cunho crítico. A Análise Crítica do Discurso pode ser entendida como uma abordagem (Wodak & Weiss, 2005) por meio da qual se enfocam as relações de poder, história, dominação e ideologia (Wodak, 2008), tributária das correntes crítico-dialéticas e fenômeno-hermenêuticas (Wodak & Weiss, 2005). Sendo a linguagem um local de poder e de luta, a ACD confere a possibilidade de desconstruir concepções naturalizadas, revelando processos opressores bem como interesses adjacentes. Pelas suas possibilidades e aplicações, esta abordagem promove a valorização da pesquisa qualitativa, multimetodológica e empírica, já que seu uso

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demanda conhecimento proveniente de diversas áreas do saber das ciências sociais, a combinação de instrumentos de construção de dados além de uma práxis investigativa, reflexiva e politizada. Neste texto vamos abordar cada um desses pontos de forma detida, de modo que o percurso trilhado aponte a ACD como uma abordagem empírica densa, robusta e complexa, precisa em tornar visíveis aspectos singulares, o que já deixa evidente o caráter indutivo dessa categoria de pesquisa. A seguir apresentamos aspectos conceituais do discurso, a explicitação do método, sua aplicação, possibilidades e por fim suas especificidades. CONCEITOS ELEMENTARES DE DISCURSO

Sendo a linguagem a expressão de humanidade, é plausível considerarmos que se trata também de meio de dominação e força social. Mais até, ela exprime nossa existência (Wodak, 1990). O que aprendemos sobre o mundo, termina emoldurando-o e também o condiciona. Tomemos, como exemplo, a noção de gênero. Uma criança, ao nascer, é caracterizada como menina ou menino a partir da genitália que possui. Essa característica está associada a todo um código de condutas ligadas às construções de homem e mulher e condicionado por uma lógica binária (Wodak, 1997; Beauvoir, 1970). Essa criança crescerá recebendo informações que a enquadrarão de acordo com a expectativa social compartilhada em torno dos papéis de gênero. As informações recebidas por meio da linguagem irão moldar o comportamento e a visão de mundo dessa criança, fazendo com que ela reproduza as ideias que recebeu. As informações recebidas por ela se tornam valores e são tomadas como única expressão de verdade e do real e é por isso que a linguagem resulta em um mecanismo responsável pela construção do que entendemos

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como real, condicionando-o. Um desdobramento dessa situação é a existência de muitas pessoas com dificuldade de compreender as diferenças de gênero em uma percepção que não parta de diferenças biológicas. Questões como esta impulsionaram a percepção de que a linguagem pode ser encarada por diferentes perspectivas, capazes de realçar aspectos implícitos, mas carregados de sentidos e significados próprios e associados a intencionalidades e interesses (Wodak, 2001a; 2001b; Fairclough & Wodak, 1997; Wodak, 1990). A sociedade é constituída por diversos grupos de pessoas que se inter-relacionam em um cenário de tensão e luta contínuos, já que todos estão em busca de condições mais favoráveis para si (Richardson & Wodak, 2002). A linguagem reflete parte dessas tensões e conflitos e isso é algo compreensível por meio da História, sendo esse o motivo pelo qual Ruth Wodak se torna uma autora singular para entendimento e adoção da ACD enquanto abordagem empírica. Para ela, historicamente as civilizações têm se tornado cada vez mais complexas, fragmentadas, o que é resultante de diversos processos como a globalização e mudanças ligadas às ideologias neoliberais (Wodak, 2001a). Essa complexidade chega a ser encarada como cenário em colapso por alguns, o que indica a dificuldade de perceber e compreender dinâmicas sociais na atualidade. O aparente caos apresenta dinâmicas sociais bem articuladas, dotadas de mecanismos com potencial de operar mudanças na sociedade. Em outras palavras, existem grupos sociais que impõem e competem na defesa de um determinado ordenamento, uma forma considerada ideal de como a sociedade, uma comunidade ou mesmo uma coletividade deve ser organizada (Benke & Wodak, 2003). Nesse cenário, o mecanismo mais importante é

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justamente a linguagem e as formas pelas quais ela é construída, modificada e reproduzida. A História torna visíveis mudanças e processos sociais ocorridos por meio da linguagem. Assim, é possível nela demarcar a existência de discursos, encarados como prática social (Fairclough & Wodak, 1997; Wodak, 1990). Eles podem ser entendidos como um conjunto enredado de atos linguísticos, inter-relacionados de forma simultânea e sequenciada, com manifestação interna e externa aos campos de ação social. Trata-se de um conjunto de símbolos, por ela chamados de tokens semióticos que carregam sentido próprio. Os discursos podem ser manifestos por meio oral ou escrito, constituindo assim os textos. Já os campos de ação podem ser entendidos como um fragmento da realidade, uma nuance social como, por exemplo, a situação de um grupo de refugiados ou ainda de uma comunidade étnica tradicional. É importante diferenciar texto e discurso. Um texto pode estar associado a vários discursos, mas ele é sempre um fragmento, uma porção dotada de sentido. Já o discurso se refere a um campo social amplo e complexo, constituído de diversos elementos, dentre eles os textos. Para Wodak (2001a), a complexidade ligada aos discursos é que eles não podem ser isolados por inteiro, já que atravessam e são atravessados por outros, esse é o fator pelo qual a autora propõe um tratamento multidisciplinar. Os textos representam uma base durável dos atos linguísticos e são a maior unidade básica de comunicação que dispomos (Wodak, 2001b). Ao acompanhar o desenvolvimento de um discurso, historicamente estaremos atentos a determinados textos produzidos por grupos sociais. Aqui, texto possui um sentido amplo, pois pode ser associado a tudo que carrega sentido do ponto de vista linguístico. Sua construção ocorre ao

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longo do tempo e, por meio dele, são operadas articulações dos diversos grupos sociais. Os discursos estão ligados a objetivos institucionalizados em termos sociais. Pensemos na dimensão política. Entendamos esse campo como iceberg. Metaforicamente, o discurso político é formado por elementos concretos e visíveis, e outros imperceptíveis e não acessíveis de forma facilitada. Os textos são a parte visível do discurso que se refere à política. Os sentidos, intencionalidades e interesses são a parte invisível e, por esse motivo, muitas vezes desconhecida do discurso. Ao observar os elementos semióticos, isto é, carregados de sentidos presentes nos textos, é possível revelar a camada de práticas sociais ligadas às lutas e tensões, disputas e contradições sociais. Por esse motivo, tais disputas pelo poder nem sempre são evidentes, embora em muitos casos permaneçam subjacentes aos próprios discursos. Visto de outra forma, o que estamos dizendo é que existem aspectos sociais que só são acessíveis por meio do discurso. Voltemos à política enquanto discurso. Ela remete a um campo de ação, já que expressa o meio pelo qual as pessoas manifestam seus interesses e se articulam em favor de mudanças, segundo uma percepção de situação idealizada ou de expectativas. Existem elementos concretos, como a legislação, como também existem elementos tácitos, como opinião pública. Ocorre que esses elementos estão interconectados de forma simultânea e sequencial. Entender um fenômeno no campo político por meio do discurso demanda acessar textos de gêneros diferentes e acessíveis por meios distintos, mas que se comunicam e reforçam o discurso. Assim, todo discurso é marcado pela intertextualidade. Pensemos hipoteticamente em um determinado fenômeno no campo político, o resultado de uma eleição. Tal situação é decorrente de

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uma série de fatores, sendo impossível estabelecer uma única causa. Trata-se de um evento conectado com diversos fatores e que também produz desdobramentos em outros vários. É plausível considerar que o resultado de uma eleição possa ser favorável para outro campo de ação, como o econômico, por exemplo. Na luta pelo poder, discursos podem ser marcados por interesses comuns e isso indica outro aspecto que lhes é familiar: a interdiscursividade. Até esse ponto temos o discurso enquanto prática social, manifesto por meio de textos, nas mais diversas formas de expressão (oral, escrita, corporal ou imagética, para citar algumas), ou ainda de gêneros distintos. O discurso representa um campo de ação social dotado de um conjunto de tokens, uma espécie de símbolos carregados de sentido próprio compartilhados socialmente (Wodak, 2007; Benke & Wodak, 2003; Wodak, 2003; Meyer, 2001; Wodak, 2001a). Seu caráter ideológico indica que podem estar associados a processos de disputas pelo poder e dominação. Além disso, os discursos sofrem alterações com o passar do tempo, o que reflete as mudanças ocorridas e a lógica de sua produção e reprodução, envolvendo tanto intertextualidade quanto interdiscursividade. Identificar os discursos não é uma tarefa óbvia, de início. O fato de estarmos lidando com uma abordagem de natureza qualitativa já sinaliza que a expertise necessária à prática empírica se ampara em conhecimento teórico, isto é, entender os conceitos, mas necessariamente ter habilidade recorrente na sua aplicação. A teoria ampara a técnica, mas ela é menos um passo-a-passo do que uma baliza que procura orientar as decisões metodológicas. Algo que pode ajudar a identificar os discursos é analisar um texto aleatório, como uma música, um poema ou um conteúdo publicitário, por exemplo. É preciso

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primeiro questionar se o material faz referência a algum campo social de ação. Essa relação pode não ser direta, mas considerar que esteja implícita não deve ser confundido com forçar vínculos que não existem. No processo de identificar o discurso presente em um texto, é preciso recorrer a uma série de estratégias, como conhecer o contexto do surgimento do texto em questão, quem o elaborou, quais suas motivações declaradas e quais os seus desdobramentos na sociedade. Pode haver discursos imediatamente identificáveis e outros implícitos. Outra questão é que o texto pode apresentar referência a mais de um discurso, de maneira que esse processo analítico tem início em um fragmento em direção a aspectos mais amplos que o regem. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: MÉTODO E APLICAÇÃO

Sendo o discurso um meio de construção e reprodução de ideologias e que estas, por sua vez, se ligam a embates sociais em torno de poder e dominação, a análise nada mais é do que o processo pelo qual tais tensões e seus desdobramentos são desvelados (Wodak, 1990). Desse modo, o objetivo da análise do discurso é reduzir a opacidade de determinadas práticas sociais, manifestas na linguagem (Wodak, 2008; Wodak, 2002a; Wodak, 2001b). Interessa a ACD não qualquer prática, mas as relacionadas à dominação, discriminação, poder e controle, uma característica que Wodak (2001b) revelou ser tributária à Escola de Frankfurt e as contribuições de Jürgen Habermas, portanto fortemente embasadas em princípios filosóficos e teóricos sensíveis à desigualdade social. Entre pesquisadores críticos, existe uma noção mais ou menos estabilizada de que as relações de dominação, controle e violência, seja

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ela física ou simbólica, estão associadas à desigualdade na sociedade, das mais diversas ordens, como social, econômica e cultural. As estruturas dominantes tensionam as relações sociais no sentido de estabilizar o status quo, as convenções existentes (Wodak, 2011; Wodak, 2008; Wodak, 2006; Wodak, 2004; Wodak, 2003, Wodak, 2002a; Wodak, 2001a, Wodak, 2001b; Benke & Wodak, 2003). Essa estabilidade é resultante da aceitação dos discursos e do que representam. De forma geral, as pessoas tomam para si, sem maiores reflexões acerca das mais diversas implicações, que um discurso e as ideologias que carregam podem representar. Ainda de acordo com a autora, A ACD está comprometida com a exploração da zona de possibilidades localizada entre os interesses de pesquisa e o compromisso político, entendidos como ciência crítica. Podemos destacar algumas das características da Análise Crítica do Discurso: 

os textos são a menor unidade comunicativa e podem estar associados a diversos discursos, por seu caráter polifónico (Wodak, 2002a);



tem por objetivo compreender as interseções entre poder, história e ideologia analisando processos de produção, naturalização e contestação de poderes desiguais que emergem nas relações e práticas discursivas, evidenciando aspectos opacos, contradições, conflitos e dilemas que expõe mecanismos de dominação e controle (Krzyzanowski & Wodak, 2011; Richardson & Wodak, 2009; Wodak & Weiss, 2005; Meyer, 2001; Wodak, 2009; Wodak, 2007; Wodak, 2006; Wodak, 2008; Wodak, 2004; Wodak, 2003; Wodak, 2002a; Wodak, 2002b; Wodak, 2001a; Wodak, 2001b, Wodak, 1997; Wodak, 1990);



auxilia na compreensão de como a desigualdade social é expressa, sinalizada, constituída e legitimada (Wodak, 2004);



a construção do trabalho é feita por meio diálogo entre teoria e dados;



a teoria auxilia a compreensão dos dados, como também é por eles interrogada;

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o discurso como prática social, torna imprescindível a compreensão do contexto percebendo criticamente a natureza interligada das coisas (intertextualidade e interdiscursividade).

A aderência aos discursos e sua reprodução não podem ser justificados unicamente por ignorância, embora esta seja um fator importante. Assumir o discurso como prática social implica admitir que os processos linguísticos mobilizados em um discurso se atualizam, de modo que sua manutenção ocorre por meio da persuasão e da naturalidade das mudanças de interesse, fatores presentes na maior parte dos discursos (Wodak, 2006). Na medida em que a ideologia pretende operar uma mudança social e sendo o discurso um mecanismo ideológico, as ideias que o representam são apoiadas em estratégias que o reforçam, sendo a naturalização uma delas (Wodak, 2011; Wodak, 2001a; Wodak, 2001b; Wodak, 1997). A naturalização das hierarquias sociais é um processo que garante a manutenção de privilégios a determinados grupos sociais, ao mesmo tempo em que submete outros à precariedade e dominação. Ao naturalizar esse estado de coisas, as pessoas veem essa situação como algo determinado e imutável. Esse é o primeiro ponto que as impede de refletirem e perceberem alternativas de mudança, pois o estranhamento realça situações ou práticas. Ao estranhar, as pessoas farão um esforço de entender e se posicionar, ao passo que quanto mais inserido um processo está no cotidiano, menor a tendência de ser estranhado. Se não estranham a situação em que estão, não fará sentido buscar mudança, tal como em Weick (1995) relata em seu conceito de sensemaking. A forma como lidamos com o real, no cotidiano, é mediada pelo conjunto de saberes que acumulamos durante a vida, tal como o exemplo de

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gênero determinado biologicamente, ensinado na infância. Assim, a persuasão e a naturalização podem ser vistas como efeito de estratégias discursivas e sua articulação no discurso pode estar associada a lógicas mais amplas de dominação e controle. O discurso possui um traço muito peculiar que o torna extremamente complexo. Ele é produzido e reproduzido por meio da linguagem, e esta que por sua vez estabelece o modo como as pessoas verão e compreenderão o mundo a sua volta, ao mesmo tempo em que também configura aquilo que não estará no campo visível e compreensível. A linguagem é um mecanismo dinâmico, mutável, o que significa que elementos são incorporados enquanto outros são abandonados e tais mudanças não são por mero acaso. As mudanças semióticas a que estão sujeitos os signos usados na linguagem, as estratégias discursivas, a intertextualidade e interdiscursividade, só para ficar em alguns aspectos, são algumas referências que indicam de forma frontal o quanto a interpretação do discurso é complexa. Isso em parte explica porque há diversas propostas de análise do discurso, que funcionam como chaves específicas de interpretação. Há um fator comum que interfere em todas as referências que citamos: o tempo. É precisamente aqui a contribuição específica de Wodak, já que propôs uma analítica baseada na história. Para ela, a interpretação de um discurso passa por seu percurso de desenvolvimento. Foi assim que ela identificou um processo de atualização do racismo, ao denominá-lo como novo racismo, ao observar que o discurso incorporou ideias quase antirracistas nas suas novas formas de manifestação (Wodak, 2008). Parte do processo de manutenção de um discurso está justamente ligado à incorporação de partes das críticas a ele dirigidas.

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A apropriação das críticas, que sinalizam uma tensão à mudança, pode provocar uma errônea sensação de que a questão foi tratada e resolvida. A lógica ligada ao racismo e xenofobia tratada por Wodak (2008), é um marcador importante e que dá a dimensão da complexidade da análise do discurso. No Brasil, segundo país em número de população negra do planeta, perdendo apenas da Nigéria, diversos estudos, como o de Pedro Jaime (2016), demonstram a dificuldade de pessoas negras identificarem situações racistas, mesmo entre as que tiveram acesso à educação formal. Ao analisarmos o racismo como um discurso, é possível perceber que ele está associado a uma ideologia específica, que representa um determinado ordenamento da sociedade com base na hierarquização das diferenças étnico-raciais. Assim, o racismo se manifesta por meio de textos, dos mais diversos gêneros, e sua produção e reprodução estão ligadas à manutenção de convenções estabelecidas que privilegiam pessoas brancas ao passo que impõe controles às pessoas negras. No caso tratado por Wodak (2008), uma das questões identificadas foi o quanto o racismo tem se tornado cada vez mais sutil. Os textos que, em primeiro plano, podem parecer inofensivos, terminam por reforçar o discurso e a ideologia que ele sustenta. Essa atualização torna a lógica quase invisível à percepção, porém seus efeitos se mantêm, já que a população negra apresenta indicadores que tornam possíveis associar o racismo à violência e a desigualdade econômica e social. Discursos marcados por dominação e controle, tal como o racista, são representados por signos, tokens semióticos a que eles se referem, e seu sentido somente pode ser interpretado se respeitada a história e o contexto no qual estão inseridos. Para a autora, a sociedade é heterogênea, e a complexidade que lhe é inerente demanda a realização de análise a partir de

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um “modelo de influências multicausais entre diferentes grupos de pessoas” (Wodak, 2001a, p. 63). O tratamento de questões de grupos sociais deve ocorrer sob a preocupação de que eles estão imersos em uma rede complexa permeada por diversos discursos e ideologias distintas e que também apresentam contradições. Desse modo, observar essa rede complexa que se mostra caótica em princípio, deve ocorrer por meio de uma ciência orientada pelo problema de pesquisa. A ACD não está preocupada em avaliar o que é considerado certo ou errado. Os recortes extraídos das narrativas são justificados em função da proposta da pesquisa e dizem respeito a fragmentos do real a partir da perspectiva singular de cada pessoa. Para Wodak (2001a), a importância da construção da análise está na transparência com que as escolhas são realizadas. Temos assim, os elementos mais básicos sugeridos por Wodak, sendo o discurso e suas formas de manifestação na sociedade, e que consiste na sua identificação por meio dos campos de ação social, o caráter crítico que imprime determinada ótica e finalidade e, por fim, a via interpretativa que realça o aspecto histórico e contextual.

Tratamos

aqui

de

uma

abordagem

multidisciplinar,

transdisciplinar e interdisciplinar, como forma de elevar o nível de compreensão das condições de produção dos discursos. Os textos são apenas fragmentos que indicam a existência de um discurso, que operam em uma lógica fragmentada como os campos do saber o são. Entender um discurso por meio dos textos é um esforço que deve estar ancorado em uma visão não obliterada do ponto de vista teórico. Conhecidos os fatores mais básicos, podemos partir para algumas especificidades da ACD proposta por Wodak.

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O QUE NÃO É ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO?

Tão importante quanto compreender do que se trata o método, também é saber o que não pode ser considerado ACD. Essa é outra tarefa complexa e necessária, já que a leitura de outros trabalhos é importante no processo de aprendizado e aplicação. Em nossa experiência como pareceristas de periódicos e eventos científicos, já nos deparamos com estudos que afirmam ter feito a adoção do método, porém a análise do material revela uma inadequação que pode se apresentar sob diversos prismas de análise. Talvez uma das maiores confusões seja tomar ACD por Análise de Conteúdo, proposta por Bardin (1970), algo expresso pelo processo de categorização dos dados. A partir de uma racionalidade positivista, a autora propõe um processo de categorização baseado na mensuração dos dados. Assim, aqueles mais recorrentes serão considerados mais importantes e, em conjunto com a teoria utilizada, servirão de fundamento para a criação das categorias analíticas. O ponto de partida é a repetição de termos, sendo sua incidência fundamental para a identificação daquilo que é considerado representativo do estudo. Uma eventual limitação de vocabulário do depoente, com consequente limitação dos termos empregados, é tomada como ênfase de conteúdo, e descontextualizada pelo olhar voltado à quantificação. A ACD não pode ser associada a essa dinâmica. Isso porque o método já parte de outra orientação ontológica e que influência completamente aquilo que pode ser considerado objeto de estudo. Se o real é construído e influenciado pelos discursos, e estes por sua vez são produzidos e reproduzidos por textos (Wodak, 2001a, Wodak, 2001b), acessar o que é relevante deve estar alinhado ao princípio filosófico do

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qual emerge. Existem diversas abordagens e não é possível enquadrar todas elas; porém é possível considerar que a ACD está associada à ontologia nominalista e ao pós-estruturalismo (Harcourt, 2007) como dimensão epistêmica. Os sujeitos mobilizam a linguagem para representar suas ideias. Os termos que usam, o número de vezes que os citam, não guardam nenhum compromisso com conceitos, tampouco com relações de relevância teórica. Os textos são constituídos por tokens semióticos (Wodak, 2001 a), o que significa que o processo analítico precisa considerar que os símbolos usados nessas produções extrapolam seu significado formal e genérico. O uso de um termo pode apresentar mudança ao longo do tempo e do contexto no qual está inserido. Ao considerarmos o advento das redes sociais, essa situação se torna ainda mais evidente. A quantidade de vezes que um determinado termo aparece pouco informa sobre o seu sentido, porque está sendo usado, quais ideias ele reforça e quais ele contradiz, e quais os sentidos a ele associados socialmente. O método aqui tratado também não se confunde com descrição de dados. A adoção da ACD é decorrente do alinhamento de interesses em diversos níveis observados pelo pesquisador e que não se resume à dimensão analítica. Descrever os dados é apenas um processo comum a diversos métodos, tal como na Análise de Conteúdo, por exemplo. Como não há percurso rígido, o pesquisador pode desenvolver uma seção para relatar os dados que possui, oferecendo ao leitor uma exposição do contexto social do qual eles emergiram. De outra forma, também é possível associar a descrição à análise. Nesse último caso, o intuito termina sendo o de explorar cada macrotópico nas dimensões histórica, teórica e criticamente.

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Uma mera técnica de seleção de dados também não suporta a complexidade da abordagem. Ela pode ser entendida como meio usado para eleger quais informações serão selecionadas para tratamento analítico. Desse modo, ele representa uma decisão metodológica e que deve resultar da coerência nos níveis já citados. Como a ACD se refere a uma abordagem, seu desenvolvimento é um processo encadeado, em que teoria e análise são desenvolvidas de forma paralela. Ela não pode assim ser fragmentada em etapas de podem ser usadas de forma estanque – e isso é um alerta para muitos textos em estudos organizacionais que insistem em tratar da análise de discurso como “técnica” de tratamento de dados, deixando de lado que ela se trata de teoria e método. Na proposta de Wodak (2001a) há indicações que auxiliam a seleção das informações, mas ela ocorre de forma conectada com todo o estudo, de modo que não é possível lançar mão de outro meio de seleção dos dados, nem tampouco reduzir a ACD a uma técnica usada somente com esse intuito. Para ela, toda escolha feita deve ser justificada em termos teóricos, o que se aplica a todas as decisões realizadas no estudo e, de igual modo, na seleção e interpretação dos eventos discursivos, considerados pelo pesquisador mais válidos do que outros (Wodak, 2003). A autora é enfática ao defender que, diferentemente de outros tipos de análise do discurso, a ACD não se presta a emitir julgamento ou juízos de valor (Wodak, 2003; Wodak, 2001a). Aqui podemos realçar duas situações. Considerando-se que um dos pontos de partida desse método é a dimensão política, sob a qual os pesquisadores apresentam compromisso

com

emancipação

social,

é

possível

considerar

um

posicionamento que, de fato, colide com práticas sociais de dominação e controle. Porém, esse posicionamento reflete um interesse, mas não se trata de dimensão de análise. Em um caso situado por ela, uma coisa

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é afirmar que políticos de extrema direita usam recursos linguísticos que ampliam percepções xenofóbicas, preconceituosas, e outra é demonstrar um quadro de análise coerente, fundamentado teórica e historicamente que indique essa prática (Wodak, 2003). Outra situação é a de que, em contato com questões particulares do cotidiano dos sujeitos, o pesquisador deve assumir uma ótica exígua dos dados e do contexto dos quais foram construídos. O uso de termos machistas por mulheres, ou ainda a reprodução de ideias racistas por pessoas negras, são exemplos disso. Essa situação é decorrente de contradições impostas pela própria sociedade e pela tensão entre os discursos e podem ser ideológicas, políticas, de valores e crenças. A contradição expressa nos textos deve ser relacionada com a análise contextual, histórica e conceitual (Wodak, 2007; Wodak & Weiss, 2005; Wodak, 2003; Wodak, 2002a; Wodak, 2001a). A existência das contradições é esperada, mais que isso, ela é uma das características marcantes dos discursos e estará presente nos textos em função de sua polifonia (Wodak, 2002a). Os dilemas, conflitos e contradições são aspectos importantes dos discursos e um dos objetivos da ACD é justamente revelálos. Contudo, alguns cuidados são necessários em seu tratamento, como que as contradições não sejam lidas e encaradas como meios para julgar os sujeitos. A posição crítica do pesquisador indica o interesse em determinadas questões, mas quem ampara o tratamento dessas questões é o repertório teórico. Do contrário, o autor incorre em alguns riscos entre os quais a produção de um texto composto apenas de denúncias, de informações que não ultrapassam a camada do óbvio, ou a apresentação de achados sem suporte na análise, resultando em um estudo sem relevância prática ou teórica.

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Por fim, resta dizer que A ACD não se presta a produzir defesas romanceadas de grupos oprimidos. Boyer (2015) relata uma situação na qual pesquisadores críticos transformam seus estudos em uma narrativa comum, sob a qual um grupo minoritário é oprimido por outro grupo dominante. Essa narrativa é decorrente do silenciamento, por parte do pesquisador, das contradições, conflitos e dilemas presentes nos textos enunciados pelos sujeitos. Um dos desafios relativos à profundidade dessa análise é não deixar que o compromisso político seja um mecanismo que limita o tratamento dos conflitos existentes nas sociedades e nos grupos que as constituem. Em Silva (2019), por exemplo, uma comunidade quilombola apresenta diversos dilemas ligados às expectativas associadas a uma comunidade tradicional, por seus próprios membros e a necessidade de interação e negociação com o meio em que está inserida com outros grupos sociais. A adoção da ACD informa diversas questões relativas não somente ao estudo, mas também diz do próprio pesquisador. Portanto, boa parte dos equívocos em sua escolha e na sua aplicação podem ser prevenidos a partir do conhecimento teórico-metodológico e da consciência política, sobretudo da reflexividade, questões que trataremos na próxima seção. A DIMENSÃO POLÍTICA DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

Para ter sentido para um determinado grupo social, um discurso precisa ser constituído de signos e símbolos socialmente compartilhados, o que possibilita a interpretação e o compartilhamento da ideologia. Esse processo revela que o discurso é permeado pelas noções de poder e dominação (Wodak, 2001a). Os discursos existentes na sociedade não são fruto do acaso, mas de ideais que refletem interesses e

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intencionalidades conectadas a formas de organizações, ordenamentos considerados ideias na sociedade. Os discursos são mais eficazes na medida em que conseguem ocultar as ideologias ou interesses. Um discurso que não apresenta uma ideologia aparente possui maior possibilidade de ser aceito e reproduzido, o que leva à sua incorporação no cotidiano e, posteriormente, à sua naturalização (Wodak, 2011; Wodak, 2001a; Wodak, 2001b; Wodak, 1997). Isso explica porque existem diversos discursos opressores na sociedade, mas que não são combatidos por terem sido naturalizados pelas pessoas. A crítica realizada na Análise do Discurso imprime à investigação a nuance política, voltada à desnaturalização dos processos opressores e de desigualdade social (Wodak, 2008; Wodak, 2002a; Wodak, 2001b), possível por meio do estudo da linguagem nos textos. A ACD pode demonstrar como as desigualdades sociais são expressas, constituídas, legitimadas e reproduzidas. Para tanto, a análise deve estar fundamentada em teorias e na descrição das condições necessárias para a produção e manifestação de discursos. Eles podem ser entendidos como um fluxo contínuo de representações expressas por meio de atos linguísticos, e por isso o processo de construção tem origem histórica, o que demanda uma abordagem histórico-discursiva (Wodak, 2001b). A ACD pode ser vista como uma forma de promover emancipação social. A Escola de Frankfurt tem profunda relação com o desenvolvimento de métodos que combinam posicionamento político e uma abordagem teórico-metodológica: Max Horkheimer, diretor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, em 1930, viu o papel do teórico de articular e ajudar a desenvolver uma consciência de classe latente. As tarefas da teoria crítica eram auxiliar na "lembrança" de um passado que corria o risco de ser esquecido, de lutar pela

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emancipação, de esclarecer as razões de tal luta e de definir a própria natureza do pensamento crítico. A relação entre teoria e prática era vista como dinâmica: não há um sistema imutável que fixe a maneira pela qual a teoria guiará as ações humanas. Horkheimer acreditava que nenhum método único de pesquisa poderia produzir resultados finais e confiáveis sobre qualquer dado objeto de investigação, que tomar apenas uma abordagem a uma determinada questão era arriscar-se a obter um quadro distorcido. Ele sugeriu que vários métodos de investigação devem complementar um ao outro. Embora o valor do trabalho empírico tenha sido reconhecido, ele enfatizou que não era um substituto para a análise teórica (Wodak, 2010, p. 234).

O trecho indica como a crítica está aliada uma postura política, comprometida com mudanças capazes de promover emancipação social, mas realizada de forma amparada pela análise do desenvolvimento dos discursos respeitando-se o cenário histórico, o contexto e os conceitos teóricos. Alcançar a coerência em um estudo que interroga o discurso criticamente é um desafio porque as capacidades de interpretar e de analisar os dados estão relacionadas, além dos fatores que já mencionamos, como o nível de consciência política do próprio pesquisador. Em pesquisas podemos nos deparar com questões que podem não estar bem resolvidas para nós mesmos e é preciso cuidado para tratálas, de modo a não reproduzir ideias e crenças as quais se espera combater. O engajamento social e político precisa existir de forma técnica e transparente, por meio da explicitação das motivações que levaram à construção dos problemas de pesquisa, para evitar manifestos panfletários e unilaterais, desprovidos de validade. Além do posicionamento político, outra dimensão que toca a ACD é a da reflexividade. Ela diz respeito a preocupações mais amplas do pesquisador sobre o conhecimento que produz, como produz, a quem

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interessa as ideias nele contidas, as articulações necessárias para construção dos dados, os desdobramentos sociais que o estudo provoca, como o grupo evidenciado encara a realização da pesquisa, os achados dela provenientes, porque o estudo pode ser considerado relevante do ponto de vista teórico, empírico e, principalmente, para o grupo pesquisado. Essas questões estão vinculadas ao desenvolvimento de pesquisas críticas realizadas em Ciências Sociais, após a percepção dos limites na orientação positivista (Evens, 2016), sendo que a transparência na sua descrição reporta o rigor na pesquisa qualitativa, relatado por Koch e Harrington (1998), e possibilita aos leitores compreender o estudo e seu contexto em perspectiva. Wodak (1990, p. 128) considera que “a autorreflexão dos pesquisadores e todo o processo de pesquisa também são de grande relevância; caso contrário, a unilateralidade e um alto viés parecem inevitáveis”. O posicionamento político e a reflexividade são responsáveis por uma preocupação bem mais ampla do que apenas responder a um problema de pesquisa, e dizem respeito, no que se refere aos pesquisadores, a um nível elevado de consciência, responsabilidade, ética com a produção da pesquisa e consigo mesmos. ESTRUTURAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Nesta seção frustramos, logo de início, qualquer expectativa de entrega de um manual ou roteiro passo-a-passo. Na bibliografia de Wodak não há tal representação, e todo seu material acerca de ACD reforça justamente o oposto, que não uma forma única considerada correta para adotar a abordagem. O que realizamos aqui é um esforço de reunir os aspectos considerados incontornáveis neste tipo de produção.

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A estruturação dos dados consiste em organizá-los de modo que seja possível criar relação entre eles e os conceitos teóricos, momento que antecede e direciona a análise. Nesse processo, o primeiro ponto importante é o papel do repertório teórico usado no estudo. Para desenvolver a pesquisa, os conceitos precisam estar bem alinhados com o tema de interesse, pois, do contrário, não irão fornecer suporte para a análise. Sabemos a dificuldade no início da pesquisa, de ser assertivo em relação a quais conceitos serão mais importantes para seu desenvolvimento, já que a dimensão empírica será feita após essa etapa. É justamente por isso que a Grounded Theory (Glaser; Strauss, 1967) poder ser uma alternativa para operacionalizar a pesquisa (Meyer, 2001). Isso porque não há fases estanques na ACD. Embora o primeiro passo seja realizar o levantamento bibliográfico e a produção do referencial teórico, esse deverá ser interrogado, modificado e atualizado durante a produção de todo o estudo. Esse processo é o responsável por caracterizar esse tipo de estudo como teórico-metodológico, já que a construção de um ampara e direciona o outro (Wodak, 2001a). Após esse primeiro contato inicial com o repertório teórico, o pesquisador precisa decidir qual o meio para construção de dados é mais adequado ao seu trabalho. Como todas as demais decisões de realização do estudo, precisam estar orientadas pelo problema de pesquisa. A ACD pode ser usada para tratamento de diversos materiais, sejam eles dados primários ou secundários, tais como: 

charges;



notícias provenientes de jornais ou revistas;



entrevistas (realizadas pelo próprio pesquisador ou de terceiros);



pronunciamentos oficiais;



conteúdo publicitário;

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produções culturais e artísticas, tais como livros, filmes e músicas;



leis, normas, regras e atos normativos;



pesquisas;



produções científicas;



etc.

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De posse dos dados, o pesquisador organizará os conceitos teóricos e as informações empíricas, fragmentando-os em uma lógica daquilo que é mais amplo, para o que é mais específico. Essa organização precisa ser capaz de possibilitar a identificação dos conceitos mais centrais, resultando na seleção das grandes teorias, teorias médias e pequenas teorias, considerando o estudo em questão Wodak (2001a) – mais esquematizado na figura 1. Já os dados são fragmentados em macrotópicos, subtópicos e, por fim, os textos. Essa lógica servirá para mediar a teoria e os dados empíricos, sendo a qualidade da análise ligada à fragmentação dessas duas dimensões.

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Figura 1 – Estruturação dos Dados da Análise Crítica Histórico-Discursiva Fonte – Adaptado por Silva (2019) a partir de Benke & Wodak (2003), Wodak (2001a) e Wodak (2001b).

Para compreender isso em termos aplicados vamos à outra situação hipotética. Uma notícia publicada por um jornal informa a demora de atendimento de pessoas em uma unidade básica de saúde pública. Ao tratar essa informação como dado, uma teoria grande pode ser a de Saúde, já teorias médias podem estar ligadas a questões mais específicas presentes na notícia. Imaginemos que na descrição da situação, foi dito que a unidade estava cheia de pessoas, com relato algumas que passaram horas aguardando por atendimento, da precariedade da estrutura e do pequeno número de profissionais para realizar o atendimento.

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Todas essas informações são seleções feitas para construir a narrativa da notícia. Para cada informação selecionada, há outros fatores excluídos, não abordados por diversas razões; mas a análise de discurso se atém ao que é enunciado. Entre as possibilidades empíricas, podemos elencar algumas. O número de pessoas, a infraestrutura e a qualidade de atendimento são as características mais específicas do texto em questão e podem ser usados para determinar as teorias médias. Essa escolha está conectada com outras dimensões do trabalho, como a política e onto-epistêmica. Por isso, os conceitos teóricos usados não são aleatórios ou meras aproximações, mas refletem decisões planejadas pelo pesquisador. Considerando-se a ótica crítica, as informações apresentadas na notícia poderiam ser associadas a teorias relacionadas à Saúde Pública, ao Estado do Bem-Estar e ao Neoliberalismo. Essas escolhas têm relação com a noção de que a Saúde Pública representa uma questão para cada grupo social, logo as narrativas construídas, sobre essa organização social, refletem disputas e interesses. A mesma lógica se aplica à organização dos dados da pesquisa. Alguns materiais podem ser facilmente organizados, como pequenos textos provenientes de dados secundários, já que sua seleção já foi feita em decorrência do alinhamento percebido a algum discurso de interesse investigativo. Já dados primários, decorrentes de técnicas para construção, tais como entrevistas não estruturadas, histórias de vida ou grupos focais, pelo volume de material gerado e pela diversidade de conteúdos discutidos, representam um desafio adicionam para a organização, o que reforça a importância de se conhecer bem os dados que se possui. Isso é fundamental porque o pesquisador deverá perceber quais são os campos sociais, os discursos que emergem dos dados e

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como eles formam mobilizados (Benke & Wodak, 2003). Considerandose as limitações relativas a tempo e recursos para realização de pesquisas, sobretudo as acadêmicas, é recomendável cuidado na quantidade de macrotópicos nos dados, tal como feito na dimensão teórica, devendo sua escolha estar alinhada aos objetivos e conceitos centrais do estudo. Após esse processo, o pesquisador deverá identificar quais os subtópicos presentes em seus dados. É possível que, nesse momento, perceba que um tema muito presente nos dados não está foi contemplado pela teoria, o que indica a necessidade de ampliar a teorização. A situação contrária também pode ocorrer, após a organização dos dados, se notar que determinado conceito é demasiadamente frágil para sustentar a análise. O movimento de análise se baseia na mediação durante a realização de todo o estudo. A teoria ajuda a entender a cadeia que indica a estrutura dos discursos presentes nos dados, e os dados, por seu turno, tensionam a qualidade da revisão teórica, ou a qualidade explicativa desses conceitos. Após selecionar os subtópicos dos dados, o pesquisador já tem condições de selecionar os textos que serão analisados, quando se tratar de dados primários, servindo a estruturação dos dados como um roteiro de análise. O macrotópico empírico se associa a uma grande teoria, e essa dará subsídio para a análise. De acordo com Wodak (2001a), é possível usar essa abordagem a fim de compreender as interseções entre poder, história e ideologia, por meio da análise dos processos de produção, naturalização e contestação de poderes desiguais, que emergem das/pelas relações e práticas discursivas. É preciso reforçar a ideia de que a linguagem por si só não representa poder. O poder se manifesta na linguagem por meio dos usos que as pessoas em situação de poder fazem dela (Wodak, 2001a). Perceber e desvelar interesses e relações de poder é justamente se debruçar sobre

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as inter-relações entre sociedade e discurso, e para serem analisadas, as abordagens linguística e sociológica devem ser combinadas (Wodak & Weiss, 2005). A autora não reduz a ACD a um modelo, mas a figura 1 pode auxiliar a compreensão da dinâmica da abordagem proposta por ela. Em estudo mais recente, a autora incorporou a dimensão histórica na identificação do método proposto, razão pela qual apresentamos a síntese respeitando essa nomenclatura (Krzyzanowski & Wodak, 2011). O estudo teórico antecede a análise e a perpassa. As teorias usadas e a modelagem dos dados são mobilizadas e utilizadas de forma simultânea e processual. As grandes teorias aguçam o pesquisador para os discursos relacionados ao fenômeno sobre o qual está debruçado. Assim, ele será capaz de identificar em seus dados, macrotópicos que dialogam diretamente com grandes conceitos teóricos. A partir dos macrotópicos identificados nos dados, é possível definir os subtópicos já que são temáticas neles incluídas. Os subtópicos são tratados por teorias médias, e tratam das especificidades de determinados grupos da sociedade. É nesse aspecto que o diálogo entre a abordagem proposta por Wodak e a Grounded Theory (Glaser & Strauss, 1967) se torna evidente. Isso porque a construção do trabalho ocorre sob o diálogo entre teoria e dados, em um processo que tanto a teoria auxilia na compreensão dos dados, como também os dados interrogam e apontam limites nas concepções teóricas. Em uma proposta de trabalho indutivo, o que se objetiva não é buscar no real a confirmação ou a refutação de teorias pré-existentes, mas de mobilizar o arcabouço teórico existente como forma de aprimorar o olhar e, consequentemente, a compreensão dos fenômenos estudados. Os textos são produtos da ação linguística produzida pelas pessoas e, segundo a autora, eles dizem respeito a diversas manifestações

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mediadas pela linguagem. Neles estão impressos formas e usos da linguagem que apresentam certa estabilidade na atividade social. Os textos remetem a crenças, a visões de mundo e a ideologias a que estão ligados, mas essa relação não ocorre somente de forma linear. Wodak (2001a) revela a existência de uma rede marcada pela possibilidade infinita de estabelecimento de conexões entre macrotópicos diferentes, entre subtópicos e textos. Essas conexões estão descritas na figura 1 como as linhas e setas que mostram fluxos possíveis e representam interdiscursividades e intertextualidades e que podem ser usadas como estratégias argumentativas que visando a persuasão. Nesse sentido, a empregabilidade é um subtópico atravessado por outros tantos, assim como os textos produzidos sobre o tema, o que demarca a ocorrência da polifonia (Wodak, 2002b), intertextualidade (Wodak, 2006; Wodak, 2004; Wodak, 2003; Wodak, 2002; Wodak, 2002a; Wodak, 2001a; Wodak, 2001b; Wodak, 1997) e interdiscursividade (Richardson & Wodak, 2009; Wodak, 2003; Wodak, 2002a; Wodak, 2002b; Wodak, 2001a). Além das interseções possíveis entre as manifestações discursivas representadas na figura 1, há outros elementos importantes no processo de modelagem e análise. Já que a proposta de Wodak é uma abordagem histórico-discursiva, não há como compreender fenômenos de forma descontextualizada. Todo o processo de construção dos dados e sua organização ocorrem à luz de conceitos teóricos e do estabelecimento das inter-relações configuram um tratamento de textos que os retiram de um contexto mais amplo. Por isso, durante a análise os dados devem ser recontextualizados nos diversos planos, tais como histórico, político, social e econômico, para citar alguns. Após a identificação dos macrotópicos, dos subtópicos, dos textos e das relações intertextuais e interdiscursivas perceptíveis procede-se

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à análise propriamente dita. Nessa fase, o objetivo é identificar as estratégias discursivas usadas como formas de persuasão. Essa demonstra a tentativa de o enunciador reforçar um discurso, ligado a interesses específicos e a um contexto social. Wodak (2001a) cita várias estratégias discursivas ao longo de seu trabalho, tais como estratégias de perspectivação, autorrepresentação, argumentação, nomeação e predicação. Essas são somente algumas, já que em seu estudo sobre política na União Europeia estão descritas estratégias macro e micropolíticas (Krzyzanowski & Wodak, 2011), ambivalência calculada (Richardson & Wodak, 2009), legitimação, mitigação, intensificação e justificação (Benke & Wodak, 2003). Ao tratar de preconceitos e estereótipos discriminatórios presente em textos políticos, ela expõe um quadro contendo algumas estratégias, seu objetivo e o contexto que em são usadas (Wodak, 2008). Outras indicações podem ser encontradas no estudo de Akerstrom-Andersen (2003). Segundo Wodak (2001a), a estratégia de perspectivação é usada quando o locutor deixa evidente que o que diz é com base em seu ponto de vista particular. A autorrepresentação está presente no texto em que o locutor descreve a si mesmo, como se vê. As estratégias de mitigação ou intensificação dizem respeito à decisão do locutor de intensificar ou minimizar elementos em seu texto, podendo valer-se de eufemismos, hipérboles ou metáforas para fortalecer o sentido desejado. A argumentação é uma estratégia que visa convencer o interlocutor de algo e pode estar manifesta por meio da justificação de elementos positivos ou negativos. A nomeação ocorre quando é interessante para o enunciador diferenciar “nós e eles”, que denota a construção em torno dos grupos internos e externos. Já a estratégia de predicação ocorre quando o enunciador rotula outros atores sociais, tanto de forma apreciativa quanto

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depreciativa. Essas são algumas das estratégias possíveis, mas elas não encerram todas as possibilidades de estratégias discursivas, podendo ser usadas simultaneamente com outras. Essas estratégias estão presentes nos textos e são mecanismos que geram convencimento, persuasão. Elas são o indicador de intencionalidades associadas a ideologias, crenças e valores. Outros mecanismos também podem representar esse vínculo, como as incoerências, paradoxos, inconsistências e conflitos (Wodak, 2003; Wodak, 2001a). Fatores adicionais podem ser tratados, como os silêncios e silenciamentos (Silva, 2019). A análise das estratégias torna possível identificar os discursos, as intertextualidades e os interdiscursos, os quais podem ser explicados por meio do que Wodak (2001a) chama de grandes, médias e pequenas teorias. Essa diferenciação não visa estabelecer categorias rígidas e generalizáveis. É o pesquisador quem determina o nível das teorias das quais se vale para compreender o fenômeno, com base nos enunciados selecionados para estudo. Isto é, as teorias podem ser consideradas centrais ou periféricas em relação aos enunciados discursivos. Diferentemente da Análise Francesa do Discurso (ou análise estruturalista do discurso), caracterizada pelo rigor analítico do ponto de vista linguístico estrutural, a vertente crítica privilegia a dinâmica das relações sociais, por meio dos discursos e apresenta a nuance política, já que os estudos visam possibilitar a emancipação social. Por fim, o produto de análise histórico-discursiva é a possibilidade de mudança social. Todo o processo possibilita a desnaturalização de processos existentes e operantes na sociedade e que representam opressão a determinados grupos. Sendo esses, o foco em pesquisas de Análise Crítica do Discurso, esses grupos devem ser alcançados pelos achados desses trabalhos. O resultado da pesquisa deve tanto ser

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disponibilizado e discutido no meio acadêmico, como deve ser capaz de compreendido e proporcionar mudanças em certas práticas discursivas e sociais. CONCLUSÃO

Neste texto nos propomos a contribuir, de forma introdutória, para o entendimento e possibilidades de uma dessas correntes, a Análise Crítica do Discurso (ACD) sob a ótica de um de seus expoentes, Ruth Wodak. Para tanto, de uma forma não exaustiva, se percorreu um percurso que versou sobre as principais características gerais da análise crítica do discurso, bem como dos aspectos particularmente elaborados por Wodak ao longo de uma sólida carreira acadêmica. Em seguida discutimos os equívocos associados à análise crítica de discurso, que em definitivo não se referem a esta abordagem, para então apresentar, de forma não prescritiva, a abordagem da autora de forma mais detida. Dado o foco na história, e em como ela permite a enunciação de repertórios discursivos de certa forma contextualizados e justificados por uma temporalidade específica, a perspectiva da abordagem histórica do discurso (ou abordagem histórico-discursiva) de Ruth Wodak se destaca por uma perspectiva fortemente empírica e, ao mesmo tempo, situada em um momento histórico que de certa forma sustenta as relações sociais naquele momento e, consequentemente, as condições de enunciação. Como qualquer perspectiva teórico-empírica, a Análise Crítica do Discurso se reveste de desafios associados ao seu próprio desenvolvimento. O primeiro deles é levantado por Meyer (2001), ao questionar como desenvolver pesquisas intelectualmente desafiadoras, rigorosas e

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críticas. Isso implica certa qualificação dos pesquisadores para enfrentar posições estabelecidas, inclusive as consagradas entre seus próprios pares, rumo a uma agenda que proporcione rigor, crítica e desafios intelectuais contínuos. Outra grande questão diz respeito ao nível reflexivo do pesquisador, para que este não se veja como um tipo de herói que pode demonstrar e livrar os grupos sociais da opressão em que vivem. Para tanto, a reflexividade tem um papel fundamental para levantar continuamente questões a respeito das concepções e ideais dos pesquisadores e o quanto elas se manifestam na condução do estudo. Este é um alerta contra a autossuficiência da universidade e de perspectivas que tomam o humano como mera variável a ser observada e posteriormente colocada “de volta na prateleira”, esvaziando os sentidos sociais da investigação científica. Embora a ACD apresente complexidade e desafios, isso não deve desencorajar seu uso. Antes, porém, sugerem o quanto é possível avançar em estudos dessa natureza, ainda mais considerando cenários carentes de óticas científicas humanizadas e politicamente engajadas em prol da emancipação social. REFERÊNCIAS

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6 A ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA: DA TEORIA À PRÁTICA Felipe Fróes Couto

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Alexandre de Pádua Carrieri

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INTRODUÇÃO: QUESTÕES SOBRE ANÁLISE DO DISCURSO

Ao se iniciar a empreitada de aventurar-se pela Análise Crítica do Discurso nos estudos organizacionais, é importante ter consciência da controvérsia que se enfrentará ante aos demais campos da ciência da administração. Isso porque o campo fora construído a partir de uma forte tradição positivista e funcionalista (Misoczky, 2005; Valent & Vinhas, 2015), o que causa estranhamento em muitos pares na academia – que veem nessa opção metodológica um caminho para a (re)produção de ideologias em espaços ditos “científicos” que, muitas vezes, favorecem um ou outro posicionamento político crítico em detrimento do que é objetivamente afirmado no campo (Rodrigues-Júnior, 2009). Por essa razão, é comum testemunharmos afirmações de que o trabalho científico que trabalha análise do discurso deve ser procedimentalmente impecável. Tais pesquisadores parecem esquecer que prática política e prática científica não são desvinculadas uma da outra (Carrieri, Leite-da-Silva, Souza, & Pimentel, 2006). Toda organização pode ser entendida como uma arena na qual atores sociais interagem por meio da fala (Valent & Vinhas, 2015). A linguagem é um 1

Universidade Estadual de Montes Claros.

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Universidade Federal de Minas Gerais.

Felipe Fróes Couto; Alexandre de Pádua Carrieri

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tipo de prática social, bem como textos são manifestações dessas práticas. Analisar essas práticas demanda um olhar crítico para o texto, uma vez que estes refletem e traduzem desigualdades, interações e relações de poder assimétricas e ideologias camufladas que constituem a sociedade (Rodrigues-Júnior, 2009; Valent & Vinhas, 2015). Ideologias são acessíveis por meio da linguagem. Logo, não se pode dissociar o discurso da sociedade, visto que estes interagem em uma relação ativa, e que todo discurso produzido é historicamente situado e espacialmente contextualizado (Cabral, 2005; Rodrigues-Júnior, 2009). O discurso significa a realidade na medida em que constrói sentidos para ela – e seus objetos nunca são simplesmente dados, mas são interpretados (Carrieri et al., 2006). Todo discurso possui a intenção de imprimir um sentido nos seus interlocutores, e essa interpretação deriva das práticas e estruturas sociais que envolvem os agentes no contexto comunicativo (Barcellos & Dellagnelo, 2014; Souza & Carrieri, 2014). Nesse sentido, é importante afirmar que não podemos negligenciar o fato de que o discurso participa da construção da realidade como a conhecemos. As estruturas sociais são constituídas e constituem novos discursos, e são dessas dinâmicas que surgem normas, convenções ou representações sociais (Fairclough, 2005). Discursos são dinâmicos, interacionais e retóricos, ou seja, tendem a evoluir de forma situacional. Da mesma forma, discursos podem ser aderentes ou resistentes a superestruturas (Van Dijk, 1997). Compreender um discurso demanda um olhar profundo e meticuloso sobre os atos de fala, sobre as estruturas mentais dos interlocutores (crenças, significados, cognição, práticas) e o contexto no qual tais falas são proferidas (tempo, espaço, regras), buscando estabelecer conexões críticas entre as dimensões (Van Dijk, 2015; Van Dijk, 2017).

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A potencialidade da pesquisa qualitativa crítica que faz uso da análise do discurso reside justamente na própria escolha epistemológica que a fundamenta (Leitch & Palmer, 2010). Os dados de um texto também podem ser considerados uma rica fonte de informações qualitativas para a pesquisa. Isso porque usuários da língua adotam posicionamentos particulares em seus discursos, bem como adotam traços linguísticos estrategicamente colocados pela fala. A análise dos dados se triangula à crítica da ideologia subjacente para produzir análises e contradiscursos (Van Dijk, 1997; Van Dijk, 2009b). Não se pode perder de vista que a vocação da pesquisa de natureza crítica em ciências sociais não está na tentativa de desvendar as regras do universo, mas a desafiálas, levando ao questionamento e à mudança das estruturas e mecanismos sociais. Em outras palavras, a crítica não descreve como é, mas como deveria ser. A mudança desejada deve levar à erradicação da opressão e à emancipação dos agentes, desafiando hegemonias (Rodrigues-Júnior, 2009). A análise crítica do discurso (ACD) visa remover as opacidades dos discursos para demonstrar as estratégias de dominação efetivadas por uma classe dominante que, necessariamente, oprime cognitivamente um grupo que é oprimido pela reprodução das desigualdades sociais e das práticas de dominação que constituem um poder hegemônico (Fairclough, 2003; Melo, 2011). O propósito deste capítulo é convidar o(a) leitor(a) a explorar as construções teóricas de Teun A. Van Dijk e propor um roteiro de análise a partir de suas ideias. Nossa intenção explícita não é explorar exaustivamente as ideias do autor, mas de atribuir a elas um sentido instrumental que facilite a estruturação de um protocolo de análise ou um instrumento didático de análise (da teoria à prática). Nosso objetivo indireto (ou oculto), ao longo deste capítulo, é fomentar o uso da Análise

Felipe Fróes Couto; Alexandre de Pádua Carrieri

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Crítica do Discurso como referencial metodológico nos Estudos Organizacionais brasileiros, dadas as inúmeras possibilidades existentes em um campo em que as práticas de perpetuação da pobreza e desigualdade são tão evidentes. A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO EM VAN DIJK: A RELAÇÃO TEXTOCONTEXTO

De acordo com Van Dijk (2000), seria ideal se houvesse uma única e prática definição que condensasse tudo sobre o que sabemos acerca do termo “discurso”. Contudo, este conceito sofre da mesma ambiguidade e amplitude de outros conceitos como “linguagem”, “comunicação”, “interação”, “sociedade” e “cultura”. A noção de discurso é polissêmica e difusa, por se tratar de um fenômeno complexo; nesse sentido, constitui um campo de conhecimentos transdisciplinares que compõem os “estudos do discurso” (também denominado análise do discurso) que bebe de várias fontes e teorias para compor seu corpus (Van Dijk, 2000, 2001). Lato sensu, o termo “discurso” se aplica a forma estratégica de utilização da linguagem; entretanto, os analistas têm admitido cada vez mais que esta definição é imprecisa e nem sempre conveniente, e tentam introduzir um conceito mais teórico que traga consigo mais categorias que compõem uma dinâmica complexa de interação (Van Dijk, 2000). Isso porque as pessoas utilizam a linguagem para comunicar ideias, crenças ou expressar emoções, e o fazem como parte de acontecimentos sociais mais complexos, em situações específicas. Nesse sentido, é importante demonstrar que o discurso não se reduz a estratégias de utilização da linguagem, mas também aos elementos que compõem a interação verbal entre os indivíduos, como contexto, estruturas anteriores, significados compartilhados, etc. (Van Dijk, 2000, 2001).

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Portanto, textos não podem ser dissociados do contexto. Discursos e a dimensão do poder/ideologia são mediados pelo contexto tanto em nível micro quanto em nível macro. Em nível micro, um discurso é resultado da agência de um sujeito em um ato de comunicação específica, e é nesse nível que residem as motivações individuais e interações; já em nível macro, existem estruturas de poder subjacentes aos agentes, que estabelece regras de interação e papeis sociais exercidos pelos interlocutores em atos de fala. No nível macro ocorre a intersubjetividade e a modulação das mentes (Van Dijk, 2009b). Modular mentes significa ‘constituir modelos mentais’. Em outras palavras, significa criar um conjunto de elementos que compõem nossa subjetividade, como crenças, valores, comportamentos, atitudes, conhecimentos etc. Modelos mentais são individuais, mas são forjados a partir das estruturas que se manifestam em situações de interação e episódios sociais cotidianos ou que vão sendo experimentados ao longo da vida (Van Dijk, 2009b). Em outras palavras, é impossível compreender a constituição de uma relação de poder desvinculada de seu contexto. Contextos influenciam estilos e escolhas lexicais; são experiências únicas derivadas do encontro de modelos mentais distintos em relações de poder. Contextos controlam a produção discursiva de modo dinâmico e culturalmente variável (Van Dijk, 2008a; 2008b). Nas palavras do próprio autor: Uma tarefa característica do estudo do discurso é fornecer descrições integradas em suas três dimensões: como o uso da linguagem influencia as crenças e a interação, ou vice-versa? Como alguns aspectos da interação influenciam o modo de falar? Ou como as crenças controlam o uso da linguagem e interação? Além disso, além de fornecer descrições sistemáticas, pode-se esperar que o estudo do discurso formule teorias que

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expliquem essas relações entre o uso da linguagem, as crenças e a interação social 3. (Van Dijk, 2000, p. 23)

Um contexto, conforme Leitch e Palmer (2010), pode ser compreendido em pelo menos cinco dimensões: a) espacial, b) temporal, c) prática, d) da mudança, e d) analítica. A dimensão espacial pode ser intratextual, quando analisada a sentença dentro de seu próprio contexto textual; situacional, quando o texto é analisado em relação a um recorte específico e limitado de interações sociais; organizacional, quando o texto é analisado em um contexto organizacional; institucional, quando o texto é analisado à luz de um espaço permeado por regras institucionalizadas; nacional, quando envolve um recorte de identidade de um povo; e multiespacial, quando envolver dimensões interconectadas como organização e governo. A dimensão temporal pode ser do tipo intertextual ou de eventos passados. É intertextual quando se analisam fatos passados para se compreender sua importância nos eventos presentes. Por outro lado, é de eventos passados quando analisados os fatos históricos para se aperfeiçoar ou questionar uma interpretação que se tinha de eventos históricos anteriores (Leitch & Palmer, 2010). A dimensão das práticas pode assumir pelo menos três feições: a) profissional, b) sociocultural, econômica e política e c) ideológica. É profissional quando um contexto se refere ao exercício de determinada profissão institucionalizada; é de natureza sociocultural, econômica e

3 Versão original: Una tarea característica del estudio del discurso consiste en proporcionar descripciones integradas en sus tres dimensiones: ¿cómo influye el uso del lenguaje en las creencias y en la interacción, o viceversa?, ¿cómo influyen algunos aspectos de la interacción en la manera de hablar? o ¿cómo controlan las creencias el uso del lenguaje y la interacción? Más aún, además de brindar descripciones sistemáticas, cabe esperar que el estudio del discurso formule teorías que expliquen tales relaciones entre el uso del lenguaje, las creencias y la interacción social.

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política quando diz respeito às práticas de agentes em determinadas macroestruturas sociais; por fim, é ideológica se refere às subjetividades por trás das práticas e dos praticantes em uma determinada situação de interação (Leitch & Palmer, 2010). A dimensão da mudança pode ser compreendida ou pela perspectiva dos conflitos e disputas, ou a partir dos processos incrementais de mudança existentes em um determinado contexto. Por fim, a dimensão analítica do contexto diz respeito às escolhas epistemológicas e metodológicas de análise, que alteram significativamente a lente sobre o contexto (Leitch & Palmer, 2010). A relação entre texto-contexto pode ser visualizada na figura 1.

Figura 1 – Esquema simples de um contexto controlado de produção discursiva Fonte - Van Dijk (2008b, p. 103).

Uma situação textual é interpretada em função dos modelos mentais do interlocutor. Cada um dos agentes que compõem uma situação discursiva flexiona suas memórias de curto e longo prazo para atribuir sentido ao discurso, representando-o. Essa representação se dá a partir dos modelos mentais que se tem do contexto específico no qual ocorre

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a situação comunicativa, bem como no contexto mais amplo (evento) no qual aquela situação se insere. Um exemplo seria uma representação que se faz em um comício eleitoral local (contexto) que ocorre durante um período de campanha eleitoral nacional (evento). As representações ocorrem interconectadas entre si (o comício não pode ser desvinculado da campanha eleitoral nacional, pois há uma linha de coerência e sentido compartilhado entre contexto e evento). Cada uma dessas dimensões vai compor a memória episódica do discurso, ou seja, da situação em que o mesmo foi produzido (Van Dijk, 2008b; 2017). Entretanto, a memória episódica também é influenciada pela memória semântica que compõe um determinado contexto. Quais são as atitudes aceitáveis para o grupo em um comício eleitoral? Quais são os conhecimentos e valores compartilhados que compõem a ideologia do grupo ao qual pertencem os interlocutores? Qual é o nível de conhecimento dos agentes que compõem o grupo? Qual o conhecimento compartilhado de maneira generalizada na sociedade? A memória episódica individual, portanto, não pode ser analisada à revelia dos fatores grupais que compõem os modelos mentais dos agentes (Van Dijk, 2008b). Tanto memória episódica quanto memória semântica são aplicadas a situações sociais em que são produzidos os discursos. Essas situações, por sua vez, são também governadas pelas estruturas sociais que constituem o plano de fundo para o evento discursivo. Quais são as leis que permitem comícios? Quais são as interpretações da sociedade em relação à realização de comícios? Por que a realização de campanhas eleitorais é aceita/desejável? Quais são as regras para a justa realização de propaganda eleitoral em período de campanha? Como essas regras privilegiam determinados grupos políticos, perpetuando opressões?

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Todas essas questões são referentes mais às estruturas sociais do que necessariamente ao evento discursivo. Em nossa situação hipotética de um comício eleitoral, é possível compreender, por exemplo, o efeito do abuso do poder econômico ao se contratar artistas famosos para compor as atrações ao público, criando assim condições para abertura à fala. Vamos supor que se trata de um partido de cunho ideológico voltado ao Estado Mínimo patrocinado por grupos empresariais muito influentes. No nosso exemplo, seria um grupo que obteve acesso a fartos recursos privados, patrocinados por agentes interessados em absorver atividades estatais, dado o seu retorno econômico, fazendo uso de recursos para atrair grande volume da população em comícios e, assim, produzir situações favoráveis ao discurso de que o Estado deve ser reduzido. Nesse caso, o texto não pode vir dissociado do contexto, dada a relevância do novelo de atos e fatos que levam às reais intenções por trás da produção de um discurso liberal. Para dar conta da complexidade da relação entre texto e contexto na produção de discursos, Van Dijk (2000) estabelece três dimensões que vão compor o sentido do termo “discurso”: a) o uso da linguagem; b) a comunicação de crenças (cognição) e, por fim, c) a interação em situações de índole social. Para dar conta de analisar tais dimensões, um chamado a vários campos de conhecimento é feito. A linguística vai trazer contribuições pelos estudos específicos da linguagem e sua utilização; a psicologia contribui com o estudo de crenças e de como estas se comunicam e, por fim as ciências sociais trazem importantes aportes no que tange as interações em situações sociais e os precedentes históricos da interação (Van Dijk, 2000).

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A complexidade da tarefa torna-a um grande desafio para os pesquisadores que se aventuram neste campo, visto que o uso da linguagem não se limita à linguagem falada, mas também diz respeito à linguagem escrita, a comunicação, às diferentes formas de interação ou contextos em que há troca de sentidos entre os agentes (como cartas, livros, anúncios,

discursos políticos,

depoimentos,

entrevistas,

conversas

informais, etc.) (Van Dijk, 2000). Da mesma forma, conversações e textos também possuem usuários (os autores e os leitores, por exemplo); por isso, é importante compreender que também se trata de uma ação (consciente ou não) entre agentes que visam constituir estrategicamente uma relação. Um mesmo texto pode ter vários contextos subjacentes (Van Dijk, 2008a). Por isso, Van Dijk (2000) entende ser fundamental para a análise do discurso tratar não apenas das propriedades do texto ou da conversação, mas também analisar o que determina o contexto, bem como as características da situação social ou dos acontecimentos de comunicação que podem influir sobre a interação. Portanto, o estudo do discurso visa integrar o texto e o contexto (Van Dijk, 2000; 2001). E, segundo Van Dijk (1999; 2000; 2001), devemos ir além. Para o autor, a análise do discurso também deve se preocupar com elementos teóricos que definam o começo e o término de um texto ou de uma conversação, sua unidade e sua coerência, noções que definam as relações intertextuais entre discursos diferentes, as intenções dos que falam e escrevem, as situações, o tempo, o lugar e outros aspectos do contexto de comunicação. O discurso, nessa acepção, não diz respeito apenas à utilização da linguagem, mas é um elemento que compõe estruturas sociais maiores (Van Dijk, 1999; 2000; 2001; 2015).

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Entre os estudos do discurso, situa-se o que alguns autores chamam de Análise Crítica do Discurso (ACD). Para Van Dijk (2015), o termo ACD deve ser evitado por que sugere que este é um método de análise do discurso, e não uma perspectiva crítica ou uma atitude no campo de estudos do discurso. Segundo o autor, a abordagem crítica dos estudos do discurso caracteriza mais os pesquisadores do que os seus métodos. Este é um importante ponto no pensamento do autor. Para Van Dijk, não há diferentes tipos de análise do discurso, mas uma única análise linguística do discurso cuja abordagem varia conforme a intenção do pesquisador. Portanto, acadêmicos que utilizam a abordagem crítica da análise do discurso estão especificamente interessados em (re)produções discursivas de abuso de poder e de resistência contra essa dominação. Por isso, seus objetivos, teorias, métodos, dados e práticas são escolhidas como contribuições acadêmicas para a resistência. Por isso, os estudos críticos do discurso são mais orientados ao problema e menos voltados à disciplina – e requerem multidisciplinaridade (Van Dijk, 1999; 2001; 2015). Crucial para os analistas críticos do discurso é a consciência explícita de seu papel na sociedade. Continuando uma tradição que rejeita a possibilidade de uma ciência “livre de valores”, eles argumentam que a ciência, e especialmente o discurso acadêmico, são inerentemente parte e influenciados pela estrutura social e produzidos na interação social. Em vez de negar ou ignorar tal relação entre vida acadêmica e sociedade, eles alegam que tais relações devem ser estudadas e explicadas por si mesmas, e que as práticas acadêmicas se baseiam em tais insights. A formação, descrição e explicação da teoria, também na análise do discurso, são socio politicamente “situadas”, gostemos ou não. A reflexão sobre o papel dos estudiosos na sociedade e na política torna-se assim uma parte inerente do empreendimento analítico-discursivo. Isso pode significar, entre outras coisas, que os analistas do

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discurso conduzem pesquisas em solidariedade e cooperação com grupos dominados 4 (Van Dijk, 2001, p. 352-353).

Em outras palavras, a análise linguística do discurso é um tipo de pesquisa analítica que estuda, primariamente, as formas pelas quais o abuso de poder social, a dominância e as desigualdades são estabelecidas, reproduzidas e resistidas pelo texto e conversam em um contexto político e social. As origens desses estudos nos remetem à Escola de Frankfurt antes da Segunda Guerra Mundial e seu foco atual na linguagem advém da “linguística crítica” que emergiram, hegemonicamente, do Reino Unido da Austrália no final dos anos 1970. Trata-se de uma perspectiva crítica útil à pragmática, à análise conversacional, à narrativa, retórica, estilística, sociolinguística, etnográfica ou análise da mídia, entre outros (Van Dijk, 2001). Por ser uma forma marginal de pesquisa (que rejeita a neutralidade e visões positivistas da ciência), o estudo crítico do discurso deve satisfazer determinados requisitos para efetivamente realizar seus objetivos: a) a pesquisa deve ser mais bem estruturada e construída logicamente para ser aceita no meio acadêmico; b) deve focar primariamente em problemas sociais e assuntos políticos, mais do que em paradigmas atuais e modismos; c) a análise empírica de problemas deve ser multidisciplinar para ser considerada adequada; d) mais do que meramente descrever estruturas discursivas, a pesquisa deve tentar 4 Versão original: Crucial for critical discourse analysts is the explicit awareness of their role in society. Continuing a tradition that rejects the possibility of a “value-free” science, they argue that science, and especially scholarly discourse, are inherently part of and influenced by social structure, and produced in social interaction. Instead of denying or ignoring such a relation between scholarship and society, they plead that such relations be studied and accounted for in their own right, and that scholarly practices be based on such insights. Theory formation, description, and explanation, also in discourse analysis, are sociopolitically “situated,” whether we like it or not. Reflection on the role of scholars in society and the polity thus becomes an inherent part of the discourse analytical enterprise. This may mean, among other things, that discourse analysts conduct research in solidarity and cooperation with dominated groups.

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explica-las em termos de propriedades da interação e estrutura social e, por fim, e) a análise linguística do discurso foca nas formas como estruturas discursivas estabelecem, confirmam, legitimam, reproduzem ou desafiam relações de poder e dominação na sociedade (Van Dijk, 1993; 1999; 2001). A análise linguística do discurso implica uma crítica política àqueles responsáveis pela perversão e pela reprodução da dominação e desigualdade; essa crítica não deve ser ad hoc, individual ou incidental, mas geral, estrutural, focada em grupos na medida em que estes estabelecem relações de poder com outros grupos – por essa razão, a análise linguística do discurso produz o seu próprio discurso – que necessariamente se posiciona ao lado dos grupos mais oprimidos pelas estruturas de poder (Van Dijk, 1993; 1999; 2000; 2001; 2015). OPERACIONALIZANDO A ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA

A abordagem sociocognitiva de Van Dijk (2015) não possui um método em específico, visto que é caracterizada pela combinação de vários elementos epistemológicos, teóricos e metodológicos (Van Dijk, Medeiros, & Andrade, 2013). Entretanto, pode ser sumarizada pelo triângulo discurso-cognição-sociedade, aqui, para fins de melhor compreensão visual, adaptado em círculo (Fig.02). A abordagem sociocognitiva afirma que as relações entre esses vértices são mediadas; assim, estruturas discursivas e estruturas sociais são de naturezas distintas e só podem ser relacionadas por meio de representações mentais de usuários da linguagem como indivíduos e membros da sociedade (Van Dijk, 2015). Dessa forma, a interação, as situações e as estruturas sociais só podem influenciar o texto e a fala através das interpretações dadas por agentes de

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tais ambientes. Por outro lado, o discurso só pode influenciar a interação social e as estruturas sociais por meio da mesma interface cognitiva de modelos mentais, conhecimentos, atitudes e ideologias (Van Dijk, 2000; 2015).

Discurso

Cognição

Sociedade

Figura 2 – O Círculo Discurso-Cognição-Sociedade Fonte - Elaborado pelos autores a partir de Van Dijk (2015).

Para compreender a dinâmica do triângulo, daremos um exemplo relacionado ao problema do racismo nas organizações: Primeiramente, o componente discursivo da teoria lida com as muitas estruturas de textos e falas relacionados ao racismo nas empresas, como tópicos específicos, descrições do empresariado como vítimas de sistemas opressores, o uso lexical de expressões e estruturas gramaticais, etc. Em segundo, o componente cognitivo pode ser analisado a partir da interpretação e explicação hegemônicas referentes aos discursos anteriores, mormente ao discurso contemporâneo que visa estrategicamente negar as diferenças e invisibilizar a negritude em prol de um falso discurso de miscigenação (mito da democracia racial). Por fim, o componente social pode ser visto a partir da forma como esse discurso é utilizado com

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propósitos políticos na (re)produção da dominação de determinados grupos e manutenção das condições de desigualdade na sociedade. A análise, nessa perspectiva, só se torna completa a partir da interligação dos três componentes. [...] cada vértice desse triângulo está ligado aos outros dois. É impossível para nós explicar a estrutura do texto e a interação na ausência de uma abordagem cognitiva. Da mesma forma, não é possível explicar a cognição sem entender que o conhecimento e outras crenças são adquiridas e usadas nos contextos discursivo e social. Da mesma forma, cognição, sociedade e cultura, assim como sua reprodução, precisam de linguagem, discurso e comunicação. Então, em qualquer lugar do triângulo de onde começarmos a análise, logo descobrimos que a descrição sistemática, a análise e explicação devem resgatar esses segmentos interdisciplinares que constituem os lados da figura e que se conectam com os outros vértices do triângulo. [...] qualquer análise do discurso apropriada, ainda que estude temporariamente um aspecto parcial do triângulo discursivo, não demora em perceber a necessidade de se converter em uma ferramenta multidisciplinar e integrada 5. (Van Dijk, 2000, p. 52)

A leitura dos componentes presentes no triângulo denota a importância de se considerar elementos subjetivos no discurso, como o papel do self na percepção da situação comunicativa; o julgamento e formação de impressões sobre coparticipantes; identidades, papéis, intenções, propósitos e objetivos dos agentes; simplificações de informações Versão original: […] cada vértice de ese triángulo está vinculado con los otros dos. Nos es imposible explicar la estructura del texto y la interacción en ausencia de un enfoque cognitivo. Igualmente, no es posible dar cuenta de la cognición sin comprender que el conocimiento y otras creencias se adquieren y utilizan en el discurso y los contextos sociales. Asimismo, la cognición, la sociedad y la cultura, así como su reproducción, necesitan del lenguaje, del discurso y de la comunicación. Así, en cualquier lugar del triángulo donde iniciemos el recorrido, pronto descubrimos que la descripción sistemática, el análisis y la explicación deben recorrer esos segmentos interdisciplinarios que constituyen los lados de la figura y que conectan con los otros vértices del triángulo. […] cualquier análisis del discurso adecuado, aun cuando estudie provisoriamente sólo un aspecto parcial del triángulo del discurso, no tarda en advertir la necesidad de convertirse en una herramienta multidisciplinaria e integrada.

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complexas (reducionismos); e a microssociologia da interação no processo comunicativo (Van Dijk, 2009a). Por óbvio, toda a análise do discurso traz consigo a análise de um importante componente social – o abuso de poder de grupos dominantes ou a resistência de grupos dominados (Van Dijk, 2015). Nos estudos críticos do discurso, estamos interessados nos grupos e organizações que direta ou indiretamente controlam o discurso público, bem como seus líderes e elites simbólicas na política, na mídia de massa, na educação, na cultura e empresas (Van Dijk, 2000; 2015). Uma abordagem mais sociológica dá enfoque no nível micro da interação cotidiana de um lado, e no nível macro a partir das estruturas gerais e relações de grupos e organizações do outro. Em outras palavras, o entendimento sobre um determinado tópico deriva das estruturas e formas de produção de discursos a partir de estruturas de falas e textos (na mídia, por exemplo); e essa produção de textos e falas deriva das relações entre os agentes envolvidos/interessados no conteúdo do tema em que se deseja produzir um discurso (Van Dijk, 2015). Nesse sentido, relações de poder, segundo Van Dijk (2015), são relações específicas de controle entre grupos sociais ou organizações. Esse controle, segundo o autor, tem uma dimensão social e cognitiva: por um lado, o controle das ações (e, por conseguinte, de discursos) de grupos dominados e seus membros; por outro, o controle de suas cognições pessoais e socialmente compartilhadas, como modelos mentais, conhecimento, atitudes e ideologias (Van Dijk, 2015). O discurso exerce um papel de pivô no exercício de poder – equipara-se a quaisquer outras ações que possam controlar membros de grupos dominados, como leis, ordens e proibições; contudo, o discurso expressa cognição social e

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pode, assim, “gerenciar mentes” de outros grupos e seus respectivos membros (Van Dijk, 2000; 2015). Dentro dessa noção de poder trazida pelo autor, emergem três categorias (ou componentes) teóricas: a) a sociedade definida em termos de grupos controladores e organizações no nível macro, e membros e interações controladoras no nível micro; b) cognição em termos de modelos mentais pessoais dos agentes, ou o conhecimento e ideologias de grupos e organizações e, por fim, c) o discurso dos membros de grupos ou organizações como formas de interações controladoras e como expressão conducente da cognição pessoal e social (Van Dijk, 2015). Tal poder, segundo Van Dijk (2015), pode assumir feições legítimas, como no caso de sociedades democráticas ou no exercício do poder parental; contudo, os estudos críticos do discurso estão mais interessados no abuso de poder ou dominação – essa relação negativa se estabelece em termos de violação da legitimidade, das normas sociais e direitos humanos. Para Van Dijk (1999), a relação entre discurso e poder começa no acesso a formas específicas de discurso, como nos casos da política, da mídia e mesmo da ciência. Para o autor, nossas mentes controlam a nossa ação – assim, se somos capazes de influenciar a mentalidade das pessoas, por exemplo, em seus conhecimentos, suas opções e opiniões, podemos controlar indiretamente algumas de suas ações. Portanto, uma vez que as mentes são influenciadas sobretudo pelos textos e pela fala, descobrimos que o discurso pode controlar, indiretamente, as ações das pessoas, tal e como sabemos na persuasão e manipulação (Van Dijk, 1993;1999). O ato de se contrapor e expor esses discursos constitui o ato crítico de resistência na pesquisa.

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Fechar o círculo do poder do discurso significa, finalmente, que os grupos que controlam os discursos mais influentes também têm maior probabilidade de controlar as mentes e ações dos outros. A ACD foca na exploração de tal poder e, em particular, no domínio, isto é, nas formas pelas quais o controle do discurso é abusado para controlar as crenças e ações das pessoas no interesse dos grupos dominantes. Nesse caso, o "abuso" pode ser considerado, de maneira muito simples, como uma violação de normas que prejudicam os outros, dados certos padrões éticos, como regras (justas), acordos, leis ou direitos humanos. Em outras palavras, o domínio pode ser definido como o exercício ilegítimo do poder 6. (Van Dijk, 1999, p. 26)

Podemos, a partir de tais premissas, estabelecer uma descrição genérica da maneira em que o discurso funciona na reprodução do poder e do domínio na sociedade. Van Dijk (1999) estabelece duas perguntas básicas que devem ser respondidas ao longo da análise: a) como os grupos (mais poderosos) controlam o discurso? b) Como tal discurso controla a mente e a ação dos grupos (menos poderosos), e quais são as consequências sociais desse controle? Isso porque, segundo o autor, a ampla maioria das pessoas controlam apenas sobre a fala cotidiana frente a membros de suas famílias, amigos ou colegas, dispondo de um controle meramente passivo sobre o uso das mídias, por exemplo 7. Em muitas situações, as pessoas comuns são vazias mais ou menos passivos

Versão original: Cerrar el círculo del discurso-poder significa, por último, que aquellos grupos que controlan los discursos más influyentes tienen también más posibilidades de controlar las mentes y Ias acciones de los otros. El ACD se centra en la explotación de tal poder, y en particular en el dominio, esto es, en los modos en que se abusa del control sobre el discurso para controlar las creencias y acciones de la gente en interés de los grupos dominantes. En este caso cabe considerar el «abuso», muy latamente, como una violación de normas que hace daño a otros, dados ciertos estándares éticos como las reglas (justas), los acuerdos, las leyes o los derechos humanos. En otras palabras, el dominio puede ser definido como el ejercicio ilegítimo del poder.

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Claramente há um importante ativismo político, social e cultural que hoje corre pelas redes sociais virtuais. Mesmo que as pessoas não tenham acesso ou esclarecimento sobre os algoritmos utilizados para definir quais falas têm maior alcance, há que se reconhecer a importância deste meio como forma de expressão popular da vontade e da opinião na contemporaneidade.

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para textos ou para falas de seus chefes, de seus professores, tais como professores, juízes e burocratas estatais, por exemplo (Van Dijk, 1993; 1999). O controle do contexto, por exemplo, é uma das formas mais expressivas de controle da mente. Para Van Dijk (1999), o contexto é a estrutura (mentalmente representada) daquelas propriedades da situação social que são relevantes para a produção e a compreensão do discurso. O contexto é formado por categorias como a definição global da situação, seu espaço e tempo, as ações em curso, os participantes em papéis variados, comunicativos, sociais ou institucionais, bem como suas representações mentais: seus objetivos, conhecimentos, opiniões, atitudes e ideologias. Assim, controlar o contexto implica controlar uma ou mais dessas categorias, por exemplo, decidindo sobre o tempo e o lugar do acontecimento comunicativo, ou sobre o quê os participantes devem opinar ou participar, em quais papéis, ou sobre quais conhecimentos ou opiniões devem ter ou não e sobre quais ações sociais podem ou não se cumprir através do discurso (como em uma sala de aula ou audiência judicial) (Van Dijk, 1999). Já no caso do controle do texto e da fala, estamos tratando do acesso às estruturas das formas e estruturas de transmissão da linguagem. Para Van Dijk (1999), se relacionarmos o texto e o contexto, vemos que os membros de grupos poderosos podem decidir sobre os possíveis gêneros do discurso ou atos de fala de uma ocasião concreta. Assim, um juiz ou um professor têm o poder de inquirir e demandar respostas imediatas de alunos ou acusados, por exemplo. O que cabe examinar, criticamente, é como os enunciadores poderosos podem abusar de seu poder em tais situações (Van Dijk, 1999). Os gêneros podem, do mesmo modo, ter esquemas convencionais que consistem em várias categorias.

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O acesso a alguns desses gêneros pode estar proibido ou ser obrigatório, como acontece em casos de gatekeepers científicos, como periódicos, ou lugares em que apenas autoridades podem ou devem falar (parlamentos). Da mesma forma, quem controla o texto também possui controle sobre os temas e mudanças de tema, como editores de revistas e noticiários (Van Dijk, 1993; 1999; 2006). Para Van Dijk (1999), o controle discursivo da mente pode se dar de múltiplas formas. O autor enumera quatro possibilidades não exaustivas que elucidam claramente pressupostos da influência de discursos sobre as estruturas mentais do sujeito: a) há menos que sejam inconsistentes com as suas crenças e experiências pessoais, os receptores do discurso tendem a aceitar as crenças transmitidas pelo discurso das fontes que consideram legítimas, como acadêmicos, professores ou mídia de confiança; b) em algumas ocasiões, os participantes estão obrigados a serem receptores do discurso, como na educação e no trabalho; c) em muitos casos, não existem outros discursos ou mídia que provejam informações das quais se queira derivar crenças alternativas e, por fim, d) os receptores podem não possui o conhecimento e as crenças necessárias para desafiar os discursos ou informações a que foram expostos (Van Dijk, 1999). Muitos pesquisadores resistem à noção de controle da mente porque a construção do construto teórico “mente” é vaga e abstrata; por essa razão, o foco da ação na análise do discurso deve ser, portanto, voltada para análise das formas pelas quais essas formas de controle da mente se tornam manifestas na conduta – tornando explícitas as muitas propriedades do texto e da fala que são tidas como naturais (Van Dijk, 1993; 1999; 2006).

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Aqui tocamos no núcleo da análise crítica do discurso: isto é, uma descrição detalhada, explicação e crítica das formas como os discursos dominantes (indiretamente) influenciam tais conhecimentos, atitudes e ideologias socialmente compartilhadas, nomeadamente através do seu papel na fabricação de modelos concretos. Mais especificamente, precisamos saber como estruturas discursivas específicas determinam processos mentais específicos ou facilitam a formação de representações sociais específicas. Assim, pode ser o caso de figuras retóricas específicas, como hipérboles ou metáforas, afetar preferencialmente a organização de modelos ou a formação de opiniões incorporadas em tais modelos. Da mesma forma, movimentos semânticos podem facilitar diretamente a formação ou mudança de atitudes sociais, ou podem fazê-lo indiretamente, isto é, através da generalização ou descontextualização de modelos pessoais (incluindo opiniões) de eventos específicos. [...] precisamos nos concentrar nessas relações entre as estruturas discursivas e as estruturas da cognição social. Ao mesmo tempo, essa análise das estruturas discursivas e cognitivas deve, por sua vez, ser incorporada a uma teoria social, política ou cultural mais ampla das situações, contextos, instituições, grupos e relações globais de poder que possibilitem ou resultem de tais estruturas simbólicas 8. (Van Dijk, 1993, p. 258-259).

Van Dijk (1999) propõe que essa análise seja feita a partir de algumas categorias explícitas, presentes na fala e nos textos, quais sejam: a) a memória pessoal dos agentes discursivos, que diz respeito aos Versão original: Here we touch upon the core of critical discourse analysis: that is, a detailed description, explanation and critique of the ways dominant discourses (indirectly) influence such socially shared knowledge, attitudes and ideologies, namely through their role in the manufacture of concrete models. More specifically, we need to know how specific discourse structures determine specific mental processes, or facilitate the formation of specific social representations. Thus, it may be the case that specific rhetorical figures, such as hyperboles or metaphors, preferentially affect the organization of models or the formation of opinions embodied in such models. Similarly, semantic moves may directly facilitate the formation or change of social attitudes, or they may do so indirectly, that is, through the generalization or decontextualization of personal models (including opinions) of specific events. […] we need to focus on these relations between discourse structures and the structures of social cognition. At the same time, this analysis of both discursive and cognitive structures must in turn be embedded in a broader social, political or cultural theory of the situations, contexts, institutions, groups and overall power relations that enable or result from such symbolic structures. 8

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conhecimentos e às opiniões acumulados ao longo da vida; b) o contexto, que diz respeito à situação comunicativa em que se encontram os agentes, e c) a memória social, que consistem nos conhecimentos, crenças e valores compartilhados com outros membros do mesmo grupo e cultura, o que alguns denominam como representações sociais (dizem respeito às manifestações culturais, hegemônicas ou de resistência, existentes ao tempo da fala ou texto). Afirmar uma análise linguística do discurso significa situar nesses três níveis as ações estratégicas de poder e resistência, denunciando os abusos de poder para a reprodução de desigualdades (Van Dijk, 1999; 2006). A partir dessas construções trazidas a partir da visão de Van Dijk sobre a análise linguística do discurso, propomos um roteiro de operacionalização, com definição das categorias analíticas a serem utilizadas nos dados, sumarizadas em questões conforme a estrutura abaixo (quadro 1) que esquematizam as perguntas às quais o texto deve ser submetido. Quadro 1 – Perguntas a serem direcionadas ao texto Estruturas Mentais

Memória Pessoal

Construto (Variável)

Pergunta

Subjetividade

Quais são as crenças, valores e emoções expressas pelo enunciador?

Uso Linguístico

Quais os recursos linguísticos são utilizados? (Metáforas, Hipérboles)

Intencionalidade

Qual a intenção explícita do enunciador? Convencer sobre o quê?

Coesão

Como o enunciador ordena estrategicamente os argumentos?

Unidade

Qual a mensagem geral que o enunciatário deseja expressar?

Coerência

Quais são as contradições ou inconsistências presentes na fala ou no texto?

172 •

Discursos e Organizações

Contexto

Memória Social

Vantagem Direta

De que forma o discurso beneficia o enunciatário no contexto?

Persuasão

De que forma ou com quais recursos o enunciador visa influenciar a cognição de seu interlocutor imediato?

Controle da Fala/Texto

Quem detém maior controle sobre os temas, as falas ou o texto no momento do proferimento do discurso?

Identificação

É um discurso proferido em função de alguma obrigação legal, social ou cultural ou de algum papel social específico?

Conhecimento dos Receptores

Qual o nível de conhecimento expresso pelos receptores do discurso no momento de seu proferimento?

Estilos Discursivos

Quais as formas costumeiras de se controlar os discursos sobre o tópico específico do discurso analisado?

Vantagem Indireta

De que forma o discurso beneficia a posição social ou o poder do enunciatário?

Influência sobre Abuso de Poder

De que forma o discurso reforça ou resiste aos abusos de poder praticados no tempo-espaço sociais da fala?

Influência sobre Reprodução das Desigualdades

De que forma o discurso reforça ou resiste à reprodução das desigualdades existentes no tempo-espaço sociais da fala?

Influência sobre Visão Teórica Hegemônica

De que forma o discurso reforça ou resiste à visão teórica hegemônica sobre o fenômeno social tratado na fala?

Coesão Social Antíteses Discursivas

É um discurso de fácil aceitação social? Existem outros discursos que levam a crenças alternativas?

Fonte – Elaborado pelos autores.

Afirmamos que este quadro não é exaustivo, pois não consegue (e nem conseguirá!) abarcar toda a complexidade que envolve a analítica do discurso. Contudo, nossa proposta aqui é facilitar a operacionalização de pesquisas por meio de um protocolo de análise que auxilie a uma leitura mais detida dos dados, com questões e pontos sistemáticos a serem analisados nos textos e nos discursos. O Quadro 1 é inspirado nas principais categorias expostas na teoria de Teun A. Van Dijk e constituem variáveis que podem ser adotadas ou não, dependendo da estratégia de resistência do(a) pesquisador(a) em seus estudos críticos.

Felipe Fróes Couto; Alexandre de Pádua Carrieri

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Aqui, os mínimos detalhes interessam: formato da mensagem, conteúdo da mensagem, tempo, lugar, circunstâncias físicas, formação de cena performática, enunciador e enunciatário, propósitos e objetivos desejados pelas partes, canais de fala (oral, escrito), normas de interação e interpretação, identidade dos agentes, gêneros, estilos etc. (Van Dijk, 2009c). Em nossa proposta, a escolha da ordem da análise é uma questão de preferência do(a) autor(a). Tanto faz iniciar as inquirições a partir de memória social, contexto ou memória pessoal. Contudo, entendemos que realizar os procedimentos conforme a ordem proposta pode aumentar o potencial analítico do discurso em relação ao contexto, dada a possibilidade da constituição de uma memória analítica hábil a potencializar as conexões entre necessárias entre texto-contexto. As respostas das perguntas propostas no Quadro 1 trazem um potencial de grande volume de análises, o que demanda uma estratégia de síntese. Esta pode acontecer por meio de quadros sintéticos que sumarizam os principais achados para cada tópico, que pode em seguida ser analisado sistemicamente, ou cada pergunta pode ser individualmente respondida no texto, com aporte de trechos do discurso analisado que ilustre adequadamente a análise feita. Optar por táticas mistas também é interessante neste caso, mas sempre tendo em mente a necessidade de uma linha argumentativa consistente em relação à análise proposta. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o exposto, reafirmamos que a Análise Crítica é a análise das relações dialéticas entre semioses e outros elementos de poder. Sua preocupação, acima de tudo, é com as mudanças radicais na vida social

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Discursos e Organizações

contemporânea. Em outras palavras, é entender o sentido produzido por aquele que exerce maior poder dentro de estruturas hegemônicas para, assim, empoderar e conscientizar aquele que é suprimido por essas estruturas de poder. Por essa razão, acreditamos que a ACD é uma importante forma de lançar luz e integrar essas relações “esquecidas de poder na estrutura social e trazer para os (con)textos. Ao analisar sistematicamente a produção de sentidos e as formas de convencimento e naturalização ideológica de alguns discursos, os pesquisadores necessariamente se posicionarão radicalmente como opostos a essas formas de exercício de poder – o que retira totalmente a pretensa “neutralidade” científica que atribui aos pesquisadores a qualidade de “iluminados imparciais” (como se tais construções já não fossem, em si, ideológicas e fontes de legitimação e poder). Antes de tudo, a ACD parte de um compromisso do pesquisador em combater estruturas de desigualdade e opressão que levam à indignidade e à precariedade das formas de vida humanas. Nesse sentido, não há que se espantar que alguns setores mais conservadores da academia continuem resistindo a esse tipo de pesquisa (em que a dialética é levada a níveis tão extremos). Contudo, neste capítulo estressamos que toda análise deriva do viés cognitivo do pesquisador (que é influenciado pelo meio em que vive) e afirmamos que, mesmo em pesquisas críticas, nas quais os pesquisadores partem de pressupostos a priori acerca de relações de poder, a análise deve ser feita a partir de critérios rigorosamente estruturados. Esse é o gap no qual buscamos atuar ao longo deste texto. Teun A. Van Dijk oferece uma teoria em que discurso, sociedade e cognição são dimensões inter-relacionadas e dependentes (uma análise

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não pode ser feita sem a outra); daí a riqueza de suas construções. Ao provincializar cada campo e analisá-lo em profundidade, o autor nos permite conhecer, com maiores detalhes, as nuances da produção de sentido a partir dos mecanismos internos e externos à nossa percepção. A complexidade que deriva de suas ideias pode ser fonte de muitas outras formas de interpretação. Reconhecemos, nesse sentido, que nosso trabalho constitui apenas uma das formas possíveis de se enxergar a teoria. Várias outras são desejáveis, bem como outras abordagens podem ser idealizadas, a depender dos interesses e das perspectivas críticas a serem adotadas pelos pesquisadores. REFERÊNCIAS

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Discursos e Organizações

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7 A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO EM NORMAN FAIRCLOUGH E OS GÊNEROS DISCURSIVOS COMO ELEMENTOS PARA A COMPREENSÃO DA POLÍTICA COGNITIVA E DO FUNCIONAMENTO DAS ORGANIZAÇÕES Fernanda Mitsue Soares Onuma

1

INTRODUÇÃO

A teoria das organizações se encontra descaracterizada em razão da “colocação inapropriada” (misplacement) de conceitos e por realizar, de maneira incompetente, o empréstimo de teorias, modelos e conceitos de outras disciplinas, que a distanciam de sua tarefa específica” (Guerreiro Ramos, 1981, p. 69). Para este autor, “a missão fundamental dos especialistas em teoria da organização não consiste em legitimar a total inclusão de pessoas nos limites das organizações formais, mas sim em definir o escopo de tais organizações na existência humana em geral” (Guerreiro Ramos, 1981, p. 83). Por meio do que denomina “política cognitiva”, o autor alerta que os teóricos organizacionais realizam o uso consciente ou inconsciente de uma “linguagem distorcida, cuja finalidade é levar as pessoas a interpretarem a realidade em termos adequados aos interesses dos agentes diretos e/ou indiretos de tal distorção” (Guerreiro Ramos, 1981, p. 87). Desta forma, caso se pretenda que a elaboração teórica da administração organizacional se liberte da aceitação ingênua de concepções 1

Universidade Federal de Alfenas.

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da sociedade centradas no mercado, torna-se essencial o estudo do fenômeno da política cognitiva a partir de recursos presentes na linguística, na sociologia do conhecimento, na teoria da comunicação, na antropologia cognitiva e na psicologia cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981). Em estudo anterior, Souza e Añez (2012) apontaram para a escassez de produções bibliográficas sobre o tema da política cognitiva em periódicos científicos brasileiros, reforçando a justificativa teórica da relevância da temática ao olhar crítico sobre as organizações. O uso político da produção e reprodução de semioses no ambiente organizacional já foi abordado também por Norman Fairclough. Como apontou o autor, o novo capitalismo, ao se apresentar como uma ordem socioeconômica baseada no/dirigida pelo conhecimento, implica também que este seja dirigido pelo discurso, aludindo à importância contemporânea deste para, nas palavras de Bourdieu e Wacquant (2001 apud Fairclough, 2010, p. 231) se criar um novo vocabulário liberal “dotado do poder performativo de forjar as realidades que afirma descrever”. Jang, Ott e Shafritz (2015), também já afirmaram que a teoria e a prática sobre as organizações se constituem de maneira recíproca, uma vez que, embora a teoria organizacional possa ter por base a observação da realidade cotidiana das organizações, ela também se origina, de maneira significativa, de noções culturais e ideológicas bastante independentes das realidades organizacionais em curso. Ao mesmo tempo, tais teorias, independentemente de sua fonte de criação, acabam orientando as pessoas na concepção de organizações na prática, visto que tanto consultores, quanto administradores formados ou leigos podem entrar em contato com as ideias formuladas no meio acadêmico e,

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Discursos e Organizações

a partir destas criar novas organizações ou transformar as já existentes (Jang, Ott & Shafritz, 2015). Estas observações reforçam a afirmação de Harvey (2014) de que nenhuma forma de pensamento, como as teorias organizacionais, ou os discursos empresariais, se torna aceita sem mobilizar valores e desejos das pessoas, sem que se torne hegemônica, uma vez que a hegemonia corresponde a um direcionamento moral, cultural e ético por meio do qual se busca adaptar as classes trabalhadoras às estratégias de dominação capitalistas (Gramsci, 1980). Em trabalho anterior (Onuma, 2020), apresentei como a contribuição da Linguística, por meio da Análise Crítica do Discurso (ACD) em Norman Fairclough é capaz de mostrar que, ao contrário do que apontam teorias correntes em Estudos Organizacionais nacionais e internacionais, elementos da linguagem e do discurso não configuram as organizações em si, a despeito de visões idealistas, nominalistas, localistas, reducionistas e deterministas que recaem no erro de identificarem as organizações e suas constituição com os discursos em si, ignorando a existência das estruturas sociais e a relação dialética que aspectos discursivos e não discursivos desempenham na sociedade, com vistas a processos de mudança social (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012). Em contraposição, apresentei como a perspectiva teórico-metodológica da ACD é capaz da crítica a estas concepções por meio de sua proposta materialista histórica dialética, que nos permite compreender que os discursos que colaboram na construção das organizações mantêm relações dialéticas, nos termos de Marx (2003), não apenas com outros discursos que se fazem hegemônicos no contexto organizacional, mas também, com relações de poder e com a hegemonia capitalista, que

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não são consideradas pelas abordagens correntes (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012; Onuma, 2020). Complementando minhas análises anteriores no sentido de apontar para outro potencial de contribuição da ACD faircloughiana para a compreensão das organizações, argumento que a ACD é capaz não apenas de desvelar o fenômeno da política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981), mas, de demonstrar como elementos da vida social (como as semioses e as práticas sociais) interagem dialeticamente na produção das organizações. Para tal, darei ênfase a um importante elemento da análise das práticas discursivas na abordagem faircloughiana, cujo potencial teórico e prático tem sido negligenciado dentro dos Estudos Organizacionais: os gêneros discursivos. Neste capítulo, partindo do caso da Samarco e do conceito de política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981), minha questão de pesquisa interroga: como a equipe da Samarco utilizou a escolha de gêneros discursivos a favor da realização de política cognitiva para buscar controlar sua imagem empresarial após a ruptura da Barragem de Fundão, considerado o maior desastre socioambiental já ocorrido no país? A partir da problemática apresentada, meu objetivo é compreender a relação dialética entre os discursos produzidos pela Samarco após o rompimento da Barragem de Fundão no município de Mariana-MG e as estruturas sociais da sociedade brasileira, em seu contexto capitalista neoliberal. Mais especificamente, a realização da ACD faircloughiana de textos produzidos por equipe(s) da Samarco que compõem meu corpus de pesquisa buscará: a) desvelar a política cognitiva da empresa Samarco buscando controlar sua imagem institucional após a repercussão negativa de suas ações referentes ao ocorrido em 2015 em Mariana-MG e b) apresentar o potencial de contribuição do conceito de gêneros

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discursivos (Bakhtin, 1997; 2014; 2017), utilizado na ACD faircloughiana, para a compreensão do próprio funcionamento das organizações. A fim de alcançar tais objetivos, organizei o texto da seguinte forma: em primeiro momento, discuto a questão da política cognitiva e a busca por legitimação que orienta a construção de sentidos na comunicação organizacional. Em seguida, faço apontamentos acerca da perspectiva teórico-metodológica da ACD para introduzir a análise e discussão dos resultados embasados na problemática de pesquisa proposta. Por fim, teço algumas considerações finais acerca da ACD faircloughiana e seu potencial para o entendimento acerca das organizações, com destaque à contribuição dos conceitos de gêneros discursivos e política cognitiva a este processo. REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA COGNITIVA: USOS DA COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL PARA CONSTRUÇÃO DE LEGITIMIDADE APÓS ESCÂNDALOS EMPRESARIAIS

A comunicação organizacional tem ganhado espaço tanto no meio acadêmico quanto nos meios corporativos. Partindo de uma premissa sistêmica articulada à teoria da complexidade, Souza e Añez (2012) consideram a comunicação organizacional como um processo dinâmico, caracterizado por transações contextuais que não se repetem e que envolvem interações entre pessoas não apenas como locutoras e receptoras de processos comunicacionais, mas em tensão dialógica-recursiva permanente na qual, a todo momento, tanto estas pessoas, quanto pessoas terceiras interpretam os processos de comunicação que se desenvolvem no âmbito organizacional. O objetivo final do processo de comunicação organizacional é a formulação de significações que sejam favoráveis ao alcance dos objetivos da organização (Souza & Añez,

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2012). Neste sentido, os autores entendem que as considerações de pesquisas sobre comunicação organizacional devem envolver o conceito de política cognitiva. Por política cognitiva, Guerreiro Ramos entende a produção de sentidos pelas organizações, ainda que usando de linguagem distorcida, para promover e legitimar a produção de semioses para se interpretar a realidade em termos benéficos às pessoas que se beneficiam com estas formas de interpretação. Na maioria das sociedades na era pré-industrial, as tradições tendiam a relacionar o mercado como o local da linguagem enganadora e, assim, da prática da política cognitiva, o que motivou muitas sociedades arcaicas a determinarem ao mercado limitações geográficas rigorosas, longe da vida social, a fim de que não distorcesse a natureza da comunicação nem abalassem as bases da comunidade (Guerreiro Ramos, 1981). Contudo, como Guerreiro Ramos (1981) nota, a partir do surgimento da era industrial, o mercado se tornou o agente central de influência social, derrubando laços comunitários e traços culturais então existentes. A política cognitiva passa a constituir, para Guerreiro Ramos (1981, p. 91) “uma parte fundamental das estruturas organizacionais formais, de todas as categorias e de todos os tamanhos”. Preocupados com esta questão, Souza e Añez (2012) concluem que a adoção da política cognitiva, sem considerações acerca de suas implicações negativas, pode afetar gravemente a cultura organizacional. Todavia, as preocupações destes autores acerca dos efeitos negativos da política cognitiva, aparentemente, não são compartilhadas por pessoas responsáveis por organizações, sobretudo, empresas, ao redor do mundo. Estudos nacionais e internacionais com o tema das estratégias comunicacionais de controle da imagem empresarial após eventos

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que colocaram a sua credibilidade em risco apontam que os relatórios anuais de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) são o principal documento por meio do qual as empresas buscam reaver uma percepção positiva junto à sociedade e seus stakeholders 2, como os trabalhos de Adhariani e Siregar (2018), Cosenza et al. (2018), Painter e Martins (2017) e Rudkin et al. (2019) apresentam. O intuito de tais relatórios seria, a princípio, de divulgar a stakeholders todos os riscos envolvidos nas atividades empresariais, a fim de permitir a investidores uma decisão esclarecida para tomada de decisão. Servem ainda para mostrar como as pessoas responsáveis pela empresa entendem a sua interação com questões relativas à sua responsabilidade social e à sustentabilidade (Cosenza et al., 2018). Tais relatórios, assim como outros documentos produzidos dentro das empresas para comunicação externa, têm por objetivo o alcance de legitimidade, entendida como o processo pelo qual o discurso empresarial em suas publicações tem por objetivo lidar com impactos negativos ou positivos de ações tomadas pela organização, com fins de administrar a imagem corporativa junto a stakeholders (sobretudo, investidores e acionistas) e o público em geral. A legitimidade é necessária às pessoas que comandam as organizações visto que uma imagem negativa pode impactar na lucratividade de uma empresa, pelo seu potencial de geração de boicote a seus produtos e serviços e redução de preço de seus ativos no mercado de capitais (Rudkin et al., 2019). As empresas se utilizam da comunicação organizacional como ferramenta para buscar sua legitimação junto à sociedade e stakeholders

Conceito empresarial que se refere a grupos de pessoas que têm algum interesse em relação à empresa, como a sociedade de seu entorno, trabalhadores, consumidores, credores, agências reguladoras, fornecedores e investidores/acionistas.

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por meio da criação de sentidos, processo interpretativo a partir do qual se utiliza de palavras, frases e discursos que buscam produzir consensos para promover a compreensão e interpretação da diferença entre valores expressos e ações, eventos e resultados observáveis das empresas (Cosenza et al., 2018). Investigando o processo de criação de sentido de relatórios de RSC da Samarco após a ruptura da Barragem de Fundão em 2015, Cosenza et al. (2018) observaram uma incompatibilidade entre valores declarados pela empresa e suas atitudes concretas. Analisando o relatório anual de RSC da Samarco de três anos após a ruptura da referida barragem, os autores concluíram que o discurso da empresa não relata adequadamente os eventos ocorridos, os atores sociais envolvidos, o contexto real do impacto socioambiental e revela que as ações de reparação partiram de pressões externas da sociedade e de acordos e decisões judiciais e não de uma iniciativa espontânea da empresa em reparar danos cometidos pelas suas ações (Cosenza et al., 2018). Os autores concluíram que o processo de criação de sentido pelas pessoas responsáveis pela Samarco denotam que estas interpretaram tanto o crime socioambiental cometido, quanto os seus eventos subsequentes, como uma sequência de momentos em que a empresa deveria buscar recuperar sua legitimidade, utilizando-se de “padrões morais e instrumentais de conduta, promovidos por stakeholders externos e poderosos” (Cosenza et al., 2018, p. 13). Adicionalmente, os mesmos autores concluem que, embora a narrativa criada pelas pessoas à frente da empresa sugira uma postura aberta, as análises realizadas apontam para uma postura defensiva expressa no discurso empresarial. Não se trata, portanto, de “falta de espiritualidade” no ambiente de trabalho, como Vasconcelos (2018) sugere em relação ao caso da

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Samarco. Atribuir as mentiras, a negligência, equívocos e erros na condução do processo (nas palavras atribuídas pelo próprio Vasconcelos (2018) à condução da situação pela Samarco) que levou ao “pior e mais massivo desastre ambiental da história do Brasil” (Cosenza et al., 2018, p. 6) a uma suposta característica de “organização não espiritualizada” da Samarco (Vasconcelos, 2018) beira a uma ingenuidade e um desconhecimento acerca do próprio funcionamento da ordem econômica e social capitalista, pautada pela lógica do lucro acima da proteção às vidas e ao meio ambiente. Este tipo de análise (Vasconcelos, 2018), todavia, está fadada a se repetir nos Estudos Organizacionais caso perspectivas materialistas históricas dialéticas, como as da ACD faircloughiana, sigam ignoradas por cientistas do campo, seja por desconhecimento ou preconceito ideológico. Por estas razões, o debate ancorado em discussões com validade epistêmica, amplamente criticadas e convalidadas pela comunidade científica nacional e internacional, a exemplo da ACD faircloughiana e não tomados a partir da sedução da “novidade” dos modismos pseudocientíficos é fundamental para a contribuição teórica e social séria a respeito dos riscos reais da política cognitiva na comunicação organizacional. Exemplo de outro artigo que, assim como Cosenza et al. (2018), se atentou ao caráter negativo da comunicação organizacional de forma crítica é o trabalho de Rudkin et al. (2019), que investigou relatórios anuais de RSC de dezenove empresas operantes no Reino Unido que cometeram atos pelos quais responderam por diferentes escândalos corporativos, ocorridos de 2004 a 2017. Os resultados do estudo de Rudkin et al. (2019) mostraram a existência de seis estratégias de legitimação mais frequentemente adotadas

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pelas empresas para pronunciamento acerca de escândalos corporativos para o público geral e stakeholders: 1) Marginalização: estratégia pela qual o discurso empresarial minimiza o caso, afirmando que suas consequências não foram muito graves; 2) Abstração: quando o discurso empresarial busca generalizar o ocorrido, ainda que de forma equivocada, buscando justificar que se trata de situação que já ocorreu a diversas corporações além da empresa em questão; 3) Indicação de Fatos: quando a empresa simplesmente relata que algo ruim aconteceu, mas não trata sobre explicações de causas, nem dos efeitos que isso pode gerar às atividades empresariais, algo que é de interesse, sobretudo, de acionistas; 4) Racionalização: quando, após a ocorrência do escândalo, a empresa apresenta justificativas ao que aconteceu, apresentando a questão como supostamente inevitável; 5) Autorização: quando a declaração da empresa faz referência a poderes públicos, governos ou autoridades para explicar ou justificar um escândalo; 6) Ação corretiva: quando a empresa admite uma ação danosa, mas apresenta que está tomando ações corretivas a este respeito. As ações corretivas podem ser de Tipo I, que trata sobre como os efeitos da ação empresarial já foram ou estão sendo encaminhados pela corporação, ou do Tipo II, em que o discurso empresarial trata de forma detalhada sobre os passos que a organização está realizando para lidar com os efeitos negativos de sua ação e como está se preparando para evitar repetição do ocorrido (Rudkin et al., 2019).

Os autores concluíram que a efetividade das abordagens estratégicas de gestão da imagem corporativa após escândalos variou conforme o tipo de empresa, ramo de atividade e tipo e severidade da ação escandalosa em que cada corporação se envolveu. Por exemplo, uma das empresas analisadas pelo estudo, a BHP Billiton, do ramo de mineração, utilizou da estratégia de marginalização em seu relatório anual de 2016

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Discursos e Organizações

ao se referir à ruptura da Barragem de Fundão operada pela Samarco, empresa controlada pela BHP Billiton, com sede na Inglaterra. Outra estratégia de legitimação adotada, conforme o estudo, foi a de ação corretiva do Tipo I (Rudkin et al., 2019). Interessante notar que o estudo aponta para uma tendência das empresas buscarem o controle da narrativa acerca de suas ações danosas, visto entenderem que a cobertura dos fatos pela mídia tende a ser danosa à empresa ao revelar questões sensíveis ao público em geral sobre as origens e consequências dos fatos, levando consumidores, fornecedores e investidores a buscarem distanciamento de suas próprias imagens à da companhia, gerando perda de rentabilidade desta (Rudkin et al., 2019). Ao estudarem a utilização das estratégias de legitimação na comunicação empresarial após escândalos, Rudkin et al. (2019) perceberam uma tendência dos discursos empresariais operarem um jogo de “esconde-esconde”, no qual, diante da necessidade de expor questões negativas relativas à organização, os pronunciamentos traziam alguma informação positiva para atrelar às atividades corporativas. Citando o trabalho de Suchman (1995), Cosenza et al. (2018) apresentam três tipo de legitimidade buscadas pelo processo de criação de sentidos: legitimidade pragmática, legitimidade cognitiva e legitimidade moral. Quando as pessoas responsáveis pelas empresas reagem a pressões externas buscando convencer stakeholders de que suas atividades e decisões lhes são úteis, estamos diante do que os autores denominam de busca por legitimidade pragmática. Na legitimidade cognitiva, adota-se uma estratégia de racionalização, por meio do qual o discurso empresarial busca alinhar as atividades corporativas às expectativas externas recebidas. Por fim, a legitimidade moral diz respeito à cocriação de

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normas aceitáveis de comportamento junto a stakeholders relevantes aos negócios, recurso este bastante utilizado quando as pessoas responsáveis pela empresa percebem que sua organização está perdendo credibilidade junto ao público (Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018). Além dos relatórios anuais de RSC, a realização de política cognitiva por meio da busca pela criação de legitimidade junto ao público e stakeholders pode estar se aperfeiçoando graças às redes sociais. É o que o trabalho de Vignal Lambret e Barki (2018) sugere. Para estes autores, uma vez que as redes sociais aumentaram a imprevisibilidade dos resultados de crises de imagem organizacional, ao invés de adotar uma estratégia reativa de comunicação, defendendo o nome da empresa ou assumindo posturas de ataques contra campanhas difamatórias, as empresas poderiam adotar a matriz de gestão de crises empresariais baseada nas redes sociais. Esta matriz é elaborada pelos próprios autores com base em estudos anteriores e tem por objetivo proporcionar uma análise de múltiplas perspectivas sobre uma ação que repercuta negativamente em sua imagem, visando minimizar o risco à sua reputação. Para tal, os autores consideram que a resposta estratégica otimizada a uma situação crítica à empresa deve ser avaliada em termos da amplitude da ameaça à reputação organizacional, que, para eles, é formada por três variáveis: a resposta emocional dada por stakeholders, a origem da situação/evento crítico e o grau de atribuição de responsabilidade (Vignal Lambret & Barki, 2018). Analisando o caso específico da ruptura da Barragem de Fundão, os autores mostram que as pessoas responsáveis pela comunicação organizacional da Samarco direcionada ao público e stakeholders ignoraram as redes sociais, que apontavam para uma resposta

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emocional de raiva e indignação em virtude de uma interpretação de que a ruptura era evitável, enquanto o discurso presente nas publicações oficiais da empresa em seu site e redes sociais assumia tom defensivo, buscando retratar a situação como um “acidente”. Mesmo as empresas controladoras da Samarco na Inglaterra e na Austrália, conforme os autores, seguiram adotando a estratégia defensiva de criação de sentido de “acidente”. As três empresas responsáveis pela Barragem de Fundão, segundo os autores, Samarco, BHP Billiot e Vale, persistiram na estratégia de respostas defensivas, negando ou diminuindo sua responsabilidade em relação ao ocorrido o que, na análise apresentada, impediu que a resposta corporativa aos stakeholders fosse mais clara e efetiva (Vignal Lambret & Barki, 2018). Em suma, a literatura acadêmica nacional e internacional tratando do caso da Samarco aqui apresentada reforça a importância para organizações, sobretudo, empresariais, do uso da política cognitiva no tratamento a ações danosas à sociedade. A literatura internacional, sobretudo, denota uma astúcia perniciosa no uso de estudos sobre o potencial de contribuição da comunicação organizacional de maneira instrumental, de modo a favorecer a elaboração de estratégias para o controle de narrativa e produção de sentidos que sirvam para promover interpretações favoráveis a pessoas e stakeholders poderosos destas empresas e que estejam envolvidos em casos prejudiciais à sociedade. Deste modo, a política cognitiva já está em curso, sendo utilizada mesmo em casos de crimes cometidos por empresas. Cabe a cientistas em Estudos Organizacionais, portanto, a importante (e, ao que parece, urgente) tarefa de cumprir com a missão atribuída por Guerreiro Ramos (1981) de denúncia e alerta aos efeitos danosos da política cognitiva

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organizacional, para a qual argumento que a ACD faircloughiana (da qual trato na seção seguinte) possui imenso potencial de contribuição. DESMISTIFICANDO A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO (ACD) EM NORMAN FAIRCLOUGH A PARTIR DA VISÃO DE UMA NÃO LINGUISTA DOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Desde a defesa de minha tese de doutoramento, em 2017, na qual utilizei a abordagem teórico-metodológica da ACD, recebi alguns convites, de pessoas relacionadas a cursos de graduação e programas de pós-graduação em Administração e Administração Pública para palestras e minicursos sobre o tema. O que mais me chamou a atenção nestas oportunidades foi a expectativa do público nestes eventos de que eu apresentaria uma “fórmula mágica” ou uma “receita de bolo” para a realização de uma ACD “de sucesso”. Tal expectativa me parece um reflexo da prática administrativa, que revela uma formação (ainda) predominantemente

instrumental

e positivista em Administração

e

Administração Pública, embora os Estudos Organizacionais busquem romper com esta corrente dominante. Além desta expectativa, outro lugar-comum é o de se tratar de abordagem excessivamente complicada, cujo uso correto estaria circunscrito a profissionais da Linguística e que, portanto, a cientistas de outros campos do saber caberia todo tipo de utilização parcial e invencionismo, ainda que de forma pseudocientífica por não realizar mediações que garantam coerência epistêmica ao resultado final das “análises”. Minha intenção nesta seção do texto é contribuir para desmistificar a ACD em Norman Fairclough para não linguistas dos Estudos Organizacionais (como eu), a fim de que se sedimente no campo uma base teórica sólida sobre esta importante perspectiva teórico-metodológica que tanto pode contribuir

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para os avanços dos estudos sobre organizações. Espero que as breves explanações que se seguem sirvam de ponto de partida para a criação de novos usos e inovações respaldadas em conversações teóricas fundamentadas, e não em invencionismos ecléticos. Afinal, o fazer científico nas ciências sociais (e, acrescento aqui, nas ciências sociais aplicadas), como já nos apontavam Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999), implica que, em cada uma das operações de pesquisa se realize, efetivamente, ciência, construindo um objeto com a mínima coerência teórica. Isso implica, para os autores, que conceitos e métodos não podem ser tratados como meras “ferramentas”, que podem ser arrancadas de seu contexto original para qualquer forma de uso “inovador”, desprendido de rigor científico. É preciso, como apontam, não superestimar a importância das operações, dos “métodos”, como se fossem destacados de pressupostos teóricos e epistemológicos que os originam e nem recair num preciosismo que transforme a “prudência metodológica em reverência sagrada” por meio da qual a ACD cause tanto medo que deixe de ser utilizada nos Estudos Organizacionais (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999, p. 14). A ACD é, em si, construída por meio de um quadro teórico que sintetiza contribuições tanto de estudos da Linguística, quanto de outras disciplinas, sobretudo, das Ciências Sociais, a fim de teorizar a respeito da mediação entre o social e o linguístico e como operacionalizar a análise das complexas relações entre os aspectos discursivos e nãodiscursivos do mundo social (Chouliarak & Fairclough, 1999). Trata-se, portanto, de abordagem teórico-metodológica que, em essência, não só combina diferentes ciências buscando uma abordagem mais totalizando acerca do discurso enquanto objeto de pesquisa social, mas também

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adota esta intercientificidade de modo interdisciplinar, como forma de reação à segmentação disciplinar no meio acadêmico (Saes, 2012). Em minha breve experiência com a ACD, enquanto pesquisadora sem graduação acadêmica em Linguística, este foi, para mim, o maior desafio imposto pela ACD faircloughiana: a imersão em um quadro teórico-metodológico composto pela síntese de contribuições de diferentes abordagens da Linguística e das Ciências Sociais, campos científicos pouco familiares a alguém, como eu, com formação acadêmica em Administração. Baseada nesta experiência pessoal com a ACD em Norman Fairclough e seus estudos é que me proponho, na seção seguinte, a compartilhar com colegas dos Estudos Organizacionais a essência da base de conhecimentos que vem contribuindo, ao longo dos anos, para minha aproximação com a ACD faircloughiana. Espero, com isso, desmistificar esta abordagem teórico-metodológica para cientistas dos Estudos Organizacionais e outros campos científicos, a fim de convidar mais pessoas a conhecerem e utilizaram desta perspectiva, que tanto pode auxiliar na compreensão de processos de mudança social e, com isso, nos apontar novos olhares sobre as organizações 3. COMPREENDENDO A DIALÉTICA DO DISCURSO COMO BASE TEÓRICA PARA SE OPERACIONALIZAR A ACD EM NORMAN FAIRCLOUGH

Para facilitar a compreensão da teoria social do discurso de Norman Fairclough, a Dialética do Discurso, que dá base a toda sua proposta teórico-metodológica da ACD, proponho iniciar questionando: o que é o discurso e como ele opera na sociedade? Trata-se de questão crucial ao

Em Onuma (2020), trato mais detidamente acerca do potencial de contribuição da ACD faircloughiana aos Estudos Organizacionais.

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entendimento visto que, em nosso cotidiano, é comum escutarmos que o discurso representa “retórica vazia” como quando, no contexto político atual brasileiro, seguimos ouvindo quem diga que determinadas ameaças ou discursos de ódio que circulam no meio político e são divulgados pela mídia em massa (tanto tradicional, dos canais televisivos, jornais e revistas de ampla circulação, quanto redes sociais e aplicativos de comunicação) representam “só um discurso”, que nada causa na realidade concreta da sociedade brasileira. Norman Fairclough critica, simultaneamente, abordagens que, a exemplo de perspectivas pós-modernas do mundo social, reduzem a vida social ao discurso, de forma idealista, nominalista e determinista; como também aquelas que o tratam como “retórica vazia”, centrandose apenas em questões estruturais da sociedade e ignorando que processos de mudança social, econômica e cultural existem tanto no campo dos discursos, enquanto esfera de disputa de poder na forma de hegemonia, quanto fora do campo discursivo, direcionando projetos sociais rumo a interesses econômicos e políticos (Chouliarak & Fairclough, 1999). Para tratar de hegemonia, o autor recorre à Gramsci (2001), que a entende como o direcionamento moral, cultural e ético exercido pelas classes dominantes com a finalidade de adaptar as classes trabalhadoras às estratégias de dominação capitalistas. A fim de que transformações econômicas, sociais e culturais possam ocorrer em um mundo cada vez mais globalizado e no qual, paulatinamente, novas formas plurais de identidades coletivas têm emergido, para que uma forma de pensamento guiador de ações na sociedade se torne aceita, é necessária a mobilização de desejos e valores das pessoas, de modo que processos de mudança social perpassam o discurso, visando criar consensos e formas passividade que se tornem

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hegemônicos, facilitando a sua adesão pelo maior número de pessoas possível (Chouliarak & Fairclough, 1999; Harvey, 2014). A fim de compreender as maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder, a abordagem faircloughiana da ACD adota o conceito de ideologia presente nos trabalhos de Thompson (2011), para quem grupos sociais em posições de poder mobilizam os sentidos para estabelecer e sustentar relações de dominação que ocorrem no mundo social. O conceito de ideologia em Thompson (2011) ajuda a compreender o porquê de o discurso ser entendido na análise faircloughiana como uma ação ou prática social, visto constituir modo de ação (sobre o mundo e sobre outras pessoas) e de representação do mundo, que vai guiar a ação própria e de outras pessoas (Fairclough, 2008). O discurso e a estrutura social, explica Fairclough (1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012) mantêm uma relação dialética entre si. Por dialética, o autor entende que as formas de pensamento partem de sua base concreta da realidade material da sociedade (Konder, 1981; Marx, 2003; Vaisman, 2006). A relação entre o discurso e a estrutura social, na ACD faircloughiana, se dá de maneira dialética, enquanto resultante do contraponto entre a determinação e a construção social do discurso. É neste sentido que o autor afirma que o discurso se constitui como prática política, à medida que estabelece, mantém e transforma relações de poder e entidades coletivas em que ocorrem tais relações, além de constituir prática ideológica, visto que configura, naturaliza, mantém e transforma significados de mundo (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; Marchiori et al., 2010). Ao mesmo tempo em que as estruturas sociais condicionam as possibilidades de discurso, o qual é influenciado por questões como

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pertencimento de classe social, normas e convenções sociais, relações sociais específicas como as do direito e da educação, o discurso é também socialmente constitutivo, contribuindo para construir as dimensões das estruturas sociais que, direta ou indiretamente, moldam e impõem restrições ao discurso (Fairclough, 2008). Cada vez mais, mudanças sociais e culturais mais amplas dependem de mudanças no uso linguístico (Fairclough, 2008). Os discursos que circulam na sociedade, neste sentido, representam e refletem entidades e relações sociais, ao mesmo tempo em que contribuem no processo de constituição destas (Fairclough, 2008). Os discursos contribuem para posicionar pessoas e organizações como sujeitos sociais de diferentes formas e, por isso, para Fairclough (2008), a tarefa da ACD é também compreender os efeitos que estes discursos produzem na sociedade. Outro foco de atenção da ACD é analisar como discursos diferentes se combinam em condições sociais particulares para produzir discursos novos e mais complexos (Fairclough, 2008). Logo, o objetivo da ACD faircloughiana não é, pura e simplesmente, analisar os discursos em si, mas a relação dialética entre aspectos discursivos e não discursivos que constituem a complexidade desta relação e como mudanças em discursos podem ser pistas de mudanças sociais, cujas consequências na realidade social concreta precisam ser investigadas (Fairclough, 1985; 2001; 2008; 2010; 2012). Feitas estas considerações, fica mais evidente que a alcunha de “crítica” da ACD na abordagem faircloughiana deve-se ao fato de que esta abordagem não só aponta à desnaturalização de representações ideológicas tidas como supostamente “neutras” ou “corretas”, mas também investiga os efeitos que discursos ideológicos causam nas estruturas sociais (Fairclough, 1985; 2008). Por isso é que o autor, em

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“Discurso e Mudança Social” (Fairclough, 2008, p. 89), obra em que sintetiza sua proposta teórico-metodológica da ACD, propõe “reunir a análise de discurso orientada linguisticamente e o pensamento social e político relevante para o discurso e a linguagem, na forma de um quadro teórico que será adequado para uso na pesquisa científica social e, especificamente, no estudo da mudança social”. Como pesquisadora sem qualquer título acadêmico relacionado à Linguística, sugiro que um conceito desta ciência, essencial para que pessoas leigas às contribuições deste campo possam entender a noção de discurso como enquanto prática social (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012) expressa em Norman Fairclough, é o de enunciação. A enunciação é entendida como o evento único que produz um enunciado, abrangendo todas as suas condições de produção, como o tempo, o lugar, as relações sociais, os papéis representados pelas pessoas interlocutoras, imagens recíprocas e objetivos da interlocução (Bakhtin, 2017; 2014; 1997). Posto de outro modo: uma pessoa, quando fala, não é completamente autoconsciente e autorreferida, pois a sua própria consciência, como explica Bakhtin (2014) adquire existência e forma por meio de signos, como símbolos e palavras, que são criadas por grupos sociais, enquanto elementos de comunicação ideológica e interação semiótica. É por isso que para compreendermos uma obra, como um livro, por exemplo, precisamos nos remeter às suas condições de enunciação que podem ser entendidas, de forma geral, como o contexto em que ela foi escrita, uma vez que este não é exterior ao seu conteúdo (Maingueneau, 2015).

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A unidade real da comunicação é, portanto, o enunciado (oral ou escrito), ou seja, a oração (unidade da língua, da “gramática” 4) tomada em seu contexto, sua enunciação (Bakhtin, 1997). Pela própria relação intrínseca dada entre o uso das palavras e o contexto de produção da fala é que Norman Fairclough propõe que a fala ou discurso é uma prática social (Fairclough, 2008). Daí também não dissociar, no quadro teórico da proposta da ACD, o estudo de elementos textuais, que compõem a dimensão da análise das práticas textuais, de elementos sociais e políticos, presentes nas práticas discursivas e sociais do modelo tridimensional de análise proposto pelo autor (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012). Ora, se a teoria social do discurso proposta por Norman Fairclough sugere, justamente, a análise da relação dialética entre discurso e estruturas sociais, sendo os enunciados que compõem o texto (entendido pelo autor como a materialização de discursos, seja de forma oral, escrita, ou imagética, por exemplo) as unidades de análise (visto serem as unidades verdadeiras da comunicação), espero ter elucidado sobre a impossibilidade de se realizar a ACD faircloughiana dissociando a análise de elementos do texto (como a oração, a gramática e as escolhas vocabulares) das práticas sociais e discursivas (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012). Como o próprio Fairclough (2008) explica, a ACD combina a análise do discurso linguisticamente orientada (sua descrição) com a compreensão da interação entre texto e discurso, em sentido sócio-teórico (interpretação e explicação). Enquanto a dimensão textual se ocupa da Para compreender a distinção entre língua (sistema ou langue) e a fala (parole, ou uso que os sujeitos fazem da língua), conceitos elaborados pelo precursor da Linguística, Ferdinand de Saussure, recomendo a leitura de Fiorin (2010). Alternativamente, apresentei uma explicação anterior a este respeito, disponível em Onuma (2020).

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análise linguística dos textos, a dimensão das práticas discursivas se ocupa da interação e a dimensão das práticas sociais investiga questões de interesse na análise social, como o contexto dos enunciados e os efeitos possíveis e em curso que os discursos podem promover, dialeticamente, em relação às estruturas sociais (Fairclough, 2008). Baseando-me nestas considerações, entendo que a representação gráfica da concepção do modelo tridimensional de análise da ACD em Norman Fairclough presente em Fairclough (2008, p. 101) me parece pouco ilustrativa da interdependência entre as dimensões analíticas que compõem o modelo tridimensional do autor, o que pode estar por detrás de usos parciais que cientistas iniciantes nos estudos desta abordagem realizam, optando por utilizarem apenas um ou dois dos níveis de análise propostos pelo autor. Por isso, preferi, alternativamente, apresentar a concepção tridimensional da ACD em Norman Fairclough (Fig. 1) apresentada por Gomes (2013, p. 219) que, em minha análise, representa a perspectiva teórico-metodológica da ACD com maior exatidão:

Figura1 – Concepção tridimensional do discurso da ACD em Norman Fairclough Fonte – Gomes (2013, p. 219).

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A partir da visualização da figura 1, elaborada por Gomes (2013), fica mais evidente a afirmação de Norman Fairclough de que a distinção entre as dimensões da análise tridimensional do discurso da ACD faircloughiana tem caráter meramente didático-pedagógico pois, como aponta o autor, tal separação é ilusória, visto a análise de textos implicar, simultaneamente, questões de forma e de significado (Fairclough, 2008). Como aponta o autor, tanto o texto não pode ser compreendido sem atenção aos enunciados (formados, reciprocamente, pelo texto e seu contexto social), quanto as práticas discursivas, que podem ser entendidas como formas particulares das práticas sociais, se manifestam linguisticamente nos textos, tendo por foco os processos de produção, distribuição e consumo do texto (Fairclough, 2008). Por isso, não existe uma maneira “correta” no sentido de um receituário sobre como se deve proceder a ACD faircloughiana ou a partir de qual nível analítico se deve iniciar, dada a interdependência entre as dimensões que compõem o modelo tridimensional da ACD em Norman Fairclough. O próprio autor já se pronunciou de forma contrária à estabilização de um método para a realização da ACD (Chouliarak & Fairclough, 1999). Por isso, apresento a seguir um quadro de síntese de elementos que podem compor a ACD faircloughiana. Trata-se de um compêndio realizado com base, sobretudo, em Fairclough (2008), cujo objetivo é somente apresentar uma “caixa de ferramentas”, da qual pesquisadores em Estudos Organizacionais podem se valer para realização da ACD faircloughiana. Não é necessário, portanto, utilizar todas as ferramentas aqui apresentadas a cada análise: cabe a cada cientista realizar um estudo prévio sobre tais

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“ferramentas 5” para que tenha condições de decidir a respeito de quais delas pretende adotar para realização da análise de cada texto.

Figura 2 – “Caixa de Ferramentas” para a ACD em Norman Fairclough Fonte – Elaborada pela autora, com base em Fairclough (2008).

A respeito dos desafios para a utilização da perspectiva teóricometodológica de sua proposta de ACD, Fairclough (2008, p. 102) aponta: A análise linguística é por si mesma uma esfera complexa e às vezes bastante técnica que incorpora muitos tipos e técnicas de análise. Embora uma experiência prévia em linguística, em princípio, possa ser pré-requisito para fazer uma análise de discurso, é uma atividade multidisciplinar e não se pode exigir uma grande experiência linguística prévia de seus praticantes, do mesmo modo que não se pode exigir experiência prévia em sociologia, psicologia ou política.

Para contribuir ao estudo da “caixa de ferramentas” que apresento, sugiro as contribuições de Antunes (2005), Fontanini (2002), Germano (1997), Koch (2013), Maingueneau (1997; 2013; 2015), Marcuschi (2007; 2008) e Meurer (2007).

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Portanto, embora um conhecimento prévio em Linguística não seja imperativo para utilização da abordagem faircloughiana da ACD, como o próprio Norman Fairclough aponta (Fairclough, 2008), pela breve experiência de não linguista que busco compartilhar aqui, deixo o meu testemunho de que alguns conhecimentos básicos podem contribuir para que as análises ganhem não só em profundidade teórica, mas também em potencial de contribuição para reflexão acerca dos efeitos de discursos na sociedade. Esta recomendação se aplica também aos conhecimentos básicos sobre os autores a partir dos quais Norman Fairclough embasa sua proposta, como apresentei ao longo deste tópico. Feitas estas considerações sobre a ACD faircloughiana, utilizarei a mesma, a título de ilustração (e não como “passo-a-passo” do “método”, como alertei) a fim de apresentar o potencial de contribuição desta perspectiva para, analisando a relação dialética entre a mudança discursiva da Samarco, após o crime ambiental do rompimento da barragem de Mariana-MG e aspectos não discursivos (estruturais), apontar a efeitos sociais deste discurso, cumprindo com meu intuito de, paralelamente, demonstrar a cientistas em Estudos Organizacionais o potencial que esta perspectiva tem para melhor compreensão do funcionamento das organizações, destacando o papel dos gêneros discursivos para tal. RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE O DISCURSO DA “NOVA SAMARCO” E AS ESTRUTURAS SOCIAIS E SEUS EFEITOS NA SOCIEDADE: APRESENTANDO A IMPORTÂNCIA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS AO FUNCIONAMENTO DE UMA EMPRESA

A fim de demonstrar como os elementos da vida social (a exemplo das semioses e das práticas sociais) interagem dialeticamente na produção das organizações, darei ênfase em a um importante elemento da

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análise das práticas discursivas na abordagem faircloughiana, cujo potencial para a crítica à política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981) tem sido negligenciado dentro dos Estudos Organizacionais: os gêneros discursivos. Não fosse a existência dos gêneros do discurso ou gêneros discursivos, as organizações sequer poderiam existir ou funcionar. Como apontam Orlinowski e Yates (1994) e Yates e Orlinowski (2002), enquanto ações sociocomunicativas sintetizadas em textos materializados, os gêneros discursivos permitem às organizações seu agir, seu dizer (configuração identitária) e sua constituição. Como define Bakhtin (2017), os gêneros discursivos são formas relativamente estáveis de enunciados elaborados pelas mais diversas esferas da atividade humana. Atuam como modelos comunicativos dotados de caráter normativo e que promovem uma economia nos processos comunicativos (Bakhtin, 2017). Para compreender o conceito de gênero discursivo bakhtiniano, pensemos nos exemplos citados por Marcuschi (2007), segundo o qual a carta pessoal, a carta comercial, o edital de concurso, a piada, a conversação espontânea, o cardápio de restaurante, a reunião de condomínio, a receita culinária, a bula de remédio, o outdoor e até o horóscopo constituem gêneros discursivos. Em uma organização empresarial, sem as reuniões, os ofícios, as atas, os relatórios, as peças publicitárias, os comunicados, como alguns exemplos de gêneros discursivos, as empresas não funcionariam e nem existiriam. Quando, por exemplo, a secretaria da presidência da empresa emite um ofício de convocação para uma reunião extraordinária com os gerentes, aquela pessoa em cargo de gerência que a recebeu já sabe que precisará comparecer a tal reunião, ou pode ter consequências, como ser questionada pela sua ausência ou deixar de ter conhecimento de

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informações sobre o andamento das atividades empresariais que poderão afetar seu desempenho e/ou remuneração na empresa, por exemplo. As organizações dependem sobremaneira da comunicação entre as pessoas que as compõem para o alcance de seus objetivos. Por isso, os gêneros discursivos são usados nas organizações a todo o momento, como recursos de eficiência organizacional, poupando tempo na comunicação (Maingueneau, 2013; Yates & Orlinowski, 2002). Além disso, Maingueneau (2013) assevera que os gêneros discursivos são responsáveis pela garantia da comunicação verbal, evitando angústias, violências e mal-entendidos, por promoverem um entendimento coletivo prévio dos propósitos de comunicação em cada atividade humana em que atuam. Ao mesmo tempo, uma vez que o gênero discursivo é uma forma relativamente estável de modelo de comunicação, a pessoa que recebe o ofício de convocação já sabe o que esperar das informações ali constantes e como proceder diante destas: eis a economia no processo comunicativo. Apresentando um padrão com cabeçalho contendo numeração, data e local, assunto e um texto breve, além de a quem se destina o texto, o ofício já expõe os seus motivos e sua finalidade de forma sintética, economizando tempo no processo de comunicação (Brasil, 2018; Bakhtin, 2017). Como é relativamente estável, já apresenta um padrão (Brasil, 2018) que faz com que seja um modelo de comunicação familiar a quem o recebe. Enquanto um gênero oficial, seu caráter normativo fica ainda mais expresso: a pessoa que recebe um ofício, ao ignorar seu conteúdo, pode ficar sujeita a constrangimentos ou outras consequências dentro da empresa, em razão do respaldo aos interesses das classes dominantes garantido pelo Estado capitalista (Brasil, 2018; Bakhtin, 2017; Engels, 1976).

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Para, nos termos de Guerreiro Ramos (1981), cumprir com a missão da teoria organizacional e desvelar o escopo das organizações na vida humana, proponho expor o potencial da ACD para a compreensão do funcionamento das organizações e seus impactos na vida das pessoas por meio do exemplo da empresa Samarco e suas opções, em termos de gêneros discursivos, para tratar com a imprensa e público em geral via seu sítio oficial na internet no dia do maior crime social e ambiental registrado na história brasileira (Cosenza et al., 2018), o rompimento da Barragem de Fundão da empresa Samarco/Vale, em 05 de novembro de 2015, um mês após o acidente, em 04 de dezembro de 2015, um ano após o acidente (em 04 de novembro de 2016) e cinco anos após o crime, em 05 de novembro de 2020. A seleção dos referidos textos para composição do corpus de análise se justifica em razão de serem textos produzidos por pessoas da Samarco (ou contratadas pela empresa para tal finalidade) em tempos e contextos distintos, oferecendo assim, potencial de investigação acerca dos processos de enunciação que envolveram a escolha dos gêneros discursivos em cada momento, desde a ocorrência do rompimento da Barragem de Fundão, até passado algum tempo, a saber: um mês, um ano e cinco anos após o ocorrido. A escolha do corpus é um passo importante para a realização da ACD faircloughiana, bem como outras abordagens de estudos de discursos. Maingueneau (2015) explica que a construção do corpus envolve a reunião de materiais que cada cientista julga serem necessários para responder ao problema de pesquisa elaborado, considerando também as restrições impostas pelos métodos utilizados. Deste modo, uma vez que meu problema de pesquisa envolve a questão do controle da imagem organizacional ou reputação da empresa

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Samarco, a escolha do corpus se justifica também pelo mídium ou meio de suporte compartilhado por todos os textos reunidos: a aba “Imprensa” do site da Samarco, em que a empresa apresenta textos cujos principais interlocutores pretendidos são pessoas que trabalham na imprensa. A cobertura da imprensa ainda é atraída por casos que envolvem repercussões negativas, o que motiva as empresas a produzirem suas próprias narrativas, buscando criar legitimidade para atenuar possíveis danos à sua reputação causados pela ação da cobertura midiática (Rudkin et al., 2019). Como a análise tridimensional do discurso da ACD em Norman Fairclough pode envolver diferentes “ferramentas” de análise, como as sugeridas na figura 2, é possível que se torne extensa, embora não seja regra. Para uso ilustrativo da ACD, optei pelo corpus anteriormente descrito tanto para responder à questão de pesquisa proposta, como para utilizar textos curtos que facilitem a compreensão da abordagem teórico-metodológica por pessoas com pouca afinidade com a obra de Norman Fairclough. Na construção de corpus, em termos de gêneros discursivos, é interessante notar que, no dia do rompimento da barragem, a equipe de comunicação da Samarco optou por lançar um informe. Um mês depois, no mesmo ambiente de seu sítio oficial voltado à imprensa, publicou uma notícia, que mescla os gêneros discursivos carta pessoal e notícia. Após um ano, a opção foi por uma nota, intitulada “Nota sobre um ano após o rompimento” acompanhada de um dossiê, já não mais disponível no dia de acesso (05 de junho de 2021) e, após cinco anos, publicou, neste mesmo espaço de seu sítio oficial, uma nova nota. A repercussão do caso de rompimento foi incorporada na própria missão organizacional da

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empresa que, em seu sítio oficial na internet, se refere a “Uma Nova Samarco”. O que a mudança discursiva da empresa, para “Uma Nova Samarco” e as escolhas de gêneros discursivos adotados em cada momento após o crime podem nos revelar acerca da política cognitiva nesta empresa? Na proposta teórico-metodológica da ACD em Norman Fairclough, os gêneros discursivos se enquadram no nível das práticas discursivas, referentes a processos de produção, distribuição e consumo do discurso, possibilitando a compreensão das formas de interação e de relações sociais que se pretende estabelecer por meio do discurso (Fairclough, 2005; 2008; Magalhães, 2001). Assim, a partir da ACD em seu modelo tridimensional das práticas sociais, discursivas e textuais (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012), proponho analisar estes documentos citados, dando particular ênfase às escolhas de gêneros discursivos pela empresa a cada período, a fim de demonstrar a importância de os Estudos Organizacionais romperem com a política cognitiva das organizações, sobretudo, empresariais e o potencial de contribuição teórica da ACD para esta empreitada. Enfatizando os gêneros discursivos na análise das práticas discursivas da ACD, pretendo apontar também ao potencial deste conceito para a compreensão do funcionamento organizacional e reforço a relações de poder via caráter normativo dos gêneros discursivos, elementos que entendo como fundamentais ao desvelamento da política cognitiva organizacional. Afinal, como aponta a abordagem faircloughiana da ACD, os discursos, como os veiculados por empresas em sua relação com a imprensa, são representações das práticas sociais que contribuem para sustentar relações de dominação, uma vez que têm por objetivo moldar

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o modo como as pessoas interpretam a si próprias, ao mundo (Chouliaraki & Fairclough, 1999) e, acrescento, a imagem institucional da organização em casos polêmicos, como os da Samarco, a fim de buscar salvaguardar sua reputação organizacional e garantir a continuidade (e, sobretudo, lucratividade) de suas atividades empresariais. Para facilitar a compreensão das análises, apresento, a seguir, a Tabela 1, na qual sintetizo as “ferramentas” de análise que utilizarei para realização de cada um dos níveis de análise do modelo tridimensional da ACD faircloughiana: Quadro 1 – Quadro teórico adotado para realização da ACD Dimensão da ACD

Elementos Analisados

Análise das práticas sociais

- Ideologia (THOMPSON, 2011); - Hegemonia (GRAMSCI, 2001).

Análise das práticas discursivas

- Significados interpessoais (relações que o texto busca estabelecer); - Força ilocucionária (intenções imediatas do texto); - Significados ideacionais (crenças transmitidas); - Gênero discursivo (estilo e mídium).

Análise textual

Escolhas de vocabulário (sentidos das palavras escolhidas para uso no texto); Orações (sujeitos, modos e tempos verbais) Operadores argumentativos e Marcadores de pressuposição

Fonte – Elaborada pela autora com base em Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2005; 2008).

Apresentados o corpus e os elementos que compõem o quadro teórico que utilizarei em minhas análises passo, a seguir, à apresentação e discussão dos resultados da ACD realizada.

Fernanda Mitsue Soares Onuma

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ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE POLÍTICA COGNITIVA DA SAMARCO APÓS A RUPTURA DA BARRAGEM DE FUNDÃO

Iniciarei as análises pelas dimensões textual e discursiva, mostrando que, embora Fairclough (2008) enxergue a prática discursiva como um tipo de prática social, todos os níveis de análise, como argumenta o autor, são interdependentes (Fairclough, 1985; 1992; 2001; 2005; 2008; 2010; 2012). A escolha por iniciar pelas dimensões textual e das práticas discursivas se justifica também para romper com análises do próprio autor, que costumam começar pelas práticas sociais (Chouliaraki & Fairclough, 1999). Cabe ressaltar que, tal como abordado por Chouliaraki e Fairclough (1999), o quadro teórico de análise da ACD começa a partir da percepção de um problema relacionado ao discurso em algum aspecto da vida social. Neste capítulo, partindo do caso da Samarco e o conceito de política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981), minha questão de pesquisa interroga: como a equipe da Samarco utilizou a escolha de gêneros discursivos a favor da realização de política cognitiva para gerir sua imagem empresarial após a ruptura da Barragem de Fundão, considerado o maior desastre socioambiental já ocorrido no país? Para responder a esta questão, comecei pela análise das práticas textuais e discursivas, as quais apresento no tópico seguinte. PRÁTICAS TEXTUAIS E DISCURSIVAS DE TEXTOS PRODUZIDOS PELA SAMARCO PARA SUA POLÍTICA COGNITIVA APÓS O ESCÂNDALO DE 2015

A fim de facilitar a compreensão das análises, organizei os textos que compõem o corpus em quadros, identificando os conteúdos de cada texto e numerando linhas com frases separadas, para simplificar o

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Discursos e Organizações

entendimento acerca das referências aos textos que farei ao longo das análises. Assim, evito a repetição de conteúdo dos textos, o que deixaria a leitura das análises longa e cansativa. Como apresentei, não existe uma “fórmula mágica” ou “receituário” para realização da ACD em Norman Fairclough, sendo esta minha proposta apenas uma sugestão de organização do corpus para auxiliar nas análises. O primeiro texto que compõe o corpus é apresentado no Quadro 2 e consiste na nota publicada pela Samarco em seu sítio da internet (site) no mesmo dia em que ocorreu o rompimento da Barragem de Fundão, no município de Mariana-MG. Quadro 2 – Primeiro texto do corpus, publicado no site da Samarco no dia em que ocorreu o rompimento da barragem Linha Título

Conteúdo do Texto Samarco Informa

1.

A Samarco informa que houve um acidente em sua barragem de rejeitos, denominada Fundão,

2.

localizada na unidade de Germano, nos municípios de Ouro Preto e Mariana (MG).

3.

A organização está mobilizando todos os esforços para priorizar o atendimento às pessoas e a mitigação de danos ao meio ambiente.

4.

As autoridades foram devidamente informadas e as equipes responsáveis já estão no local prestando assistência.

5.

Não é possível, neste momento, confirmar as causas e extensão do ocorrido, bem como a existência de vítimas.

6.

Por questão de segurança, a Samarco reitera a importância de que não haja deslocamentos de pessoas para o local do ocorrido, exceto as equipes envolvidas no atendimento de emergência.

Fonte – https://www.samarco.com/2015/11/05/samarco-informa/. Acesso em 05 jun. 2021.

Dia 05 de novembro de 2015, data em que o primeiro texto foi publicado no site oficial da empresa Samarco, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos de mineração, a Barragem de Fundão, operada no município de Mariana-MG (Alves, 2016; Freitas et al., 2019; Lacaz, Porto

Fernanda Mitsue Soares Onuma

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& Pinheiro, 2017; Miranda et al., 2017; Viana, 2016; Zhouri et al., 2016). Antes do rompimento, conforme Zhouri et al. (2016), já havia pesquisa indicando o risco de ruptura da Barragem de Fundão: 68% dos moradores locais entrevistados já temiam que a barragem pudesse se romper, 64% relataram receio de que suas propriedades fossem desapropriadas pela Samarco e 94% reclamavam sobre a poluição das águas causada pelas atividades da empresa. Tratou-se, portanto, de risco iminente já percebido em pesquisa anterior junto aos moradores locais. Todavia, na linha 1, a nota diz informar sobre a ocorrência de um “acidente”, escolha léxica que indica uma tentativa de desresponsabilização da empresa pelo ocorrido. “Acidente” se refere a um acontecimento imprevisto, fortuito. Porém, o trabalho de Zhouri et al.(2016) sugere que os riscos de rompimento eram previsíveis e visíveis à população local, o que pode denotar negligência. A escolha do verbo “houve” na linha 1 também chama a atenção. Como explica Koch (2013), há uso, neste trecho, de recurso linguístico do tempo comentado, em que a parte locutora (no caso, a Samarco) “relata” um fato, distanciando-se do mesmo e, assim, sem se responsabilizar pela ação narrada. Logo, as escolhas léxicas não são aleatórias: “acidente” e o uso do modo narrado ou tempo comentado complementamse para passar a ideia de que a empresa não teve responsabilidade pelo rompimento da barragem que seria, supostamente, um caso fortuito (Koch, 2013). O uso de verbos no gerúndio na linha 3 tenta passar a imagem de que as ações de “atendimento às pessoas e mitigação de danos ao meio ambiente” estão em continuidade. Tenta-se, assim, passar uma imagem de que, embora a empresa não tenha responsabilidade pelo rompimento da barragem, estaria atuando de forma continuada para atendimento a

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pessoas e “mitigação”, ou seja, abrandamento “de” e não “dos” “danos ao meio ambiente”. Sugere, assim, uma ação supostamente “abnegada” da empresa e coloca os “danos ambientais” como uma possibilidade e não uma realidade, visto usar a preposição “de” e não a preposição “de” junto ao artigo definido “os”, resultando em “dos danos ambientais”. A ausência do artigo definido “os”, como o próprio nome sugere, deixa a referência aos “danos”, justamente, indefinida, abrindo espaço para que a empresa busque atenuar, “mitigar” alguns e não todos os danos causados. Tem-se, portanto, um reforço à imagem de distanciamento da empresa em relação ao ocorrido, que representa o significa ideacional deste primeiro texto. Na linha 4, o texto denota uso de estratégia de legitimidade do tipo “autorização”, declarando ter acionado as “autoridades”, ou seja, forças do Estado brasileiro que já estariam prestando assistência no local. Falta um complemento nesta sentença, na qual a Samarco não deixa claro a quem esta assistência se refere. Omitir a informação de que a “assistência” se refere a pessoas, ajuda a controlar a narrativa da empresa pela criação de sentidos (Cosenza et al., 2018), realizando sua política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981) e diminuindo o impacto em sua reputação pela busca de legitimidade moral (Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018) e reduzindo o risco de se atrelar diretamente a ação da empresa de negligência diante do risco de ruptura da barragem de rejeitos às 19 mortes imediatas que a liberação de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração carreados até o rio Doce, que percorreram quase 600km até o litoral do estado do Espírito Santo, provocou (Zhouri et al., 2016). Esta dissimulação em relação às mortes causadas pela ação da Samarco na nota publicada no dia do fato reitera as análises de Vignal

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Lambret e Barki (2018) de que, a despeito da comoção pública causada pela ruptura que, segundo os autores, foi expressa pelas manifestações públicas de raiva nas redes sociais da empresa, esta optou pela estratégia de tratar o fato como se fosse, aparentemente, “acidental”, alimentando as emoções negativas contra a empresa. Na linha 5, usou-se do indicador modal ou modalizador “não é possível”, recurso linguístico que, conforme Koch (2013) serve como forma de direcionar a interpretação de quem lê a informação seguinte, a principal, que é a ocorrência de mortes e a extensão dos danos causados pela negligência da empresa. Tem-se, assim, o uso de recursos linguísticos como estratégia de tentar deixar em aberto as consequência da ação negligente da Samarco na ruptura da barragem, criando o sentido de que “não é possível”, ou seja, é tarefa “incerta” dimensionar danos e mortes, denotando que responsabilizar a empresa de imediato pelas consequências danosas decorrentes do fato seria atitude precipitada. O significado ideacional ou representação da realidade expresso no texto é de que o fato foi acidental e, supostamente, sem envolvimento da Samarco, mas que, mesmo assim, a empresa estaria empenhada em tomar atitude diante do ocorrido, transmitindo ainda significado interpessoal de distanciamento, impessoalidade, dado o suposto não envolvimento da Samarco no caso, apresentado pela empresa como “acidente” (Meurer, 2007). Na linha 6 do texto em análise, há uso do operador argumentativo “por” que introduz a justificativa da empresa recomendar que as pessoas não se desloquem até o local do “acidente”. A justificativa apresentada é que as pessoas que se deslocarem até lá e não compuserem equipes de resgate, com formação específica para tal, podem colocar sua própria segurança em risco. A este respeito, cabem

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considerações acerca do gênero discursivo do texto e suas características (estilo e mídium ou meio de suporte). Todos os textos que compõem o corpus de análise, embora sejam gêneros discursivos distintos, compartilham do mesmo mídium ou meio de suporte: o site oficial da empresa Samarco e, mais especificamente, a aba “Imprensa” do site. Ou seja, foram todos textos produzidos tendo como interlocutora imediata a imprensa (a princípio, nacional, por serem textos em língua portuguesa). Desse modo, a “recomendação” de não deslocamento até o local teve por interlocutora imediata, a princípio, a imprensa, o que nos deixa a dúvida: será que a justificativa da “segurança” pessoal não encobre uma tentativa de a empresa dissuadir a cobertura midiática do caso? Eis uma limitação da ACD em Norman Fairclough, já que temos acesso apenas ao texto, que é público, enquanto produto material do discurso da empresa e não participamos de reuniões internas da Samarco, em que o mesmo foi elaborado, de modo que não há meios científicos para tal afirmação, cabendo apenas a dúvida, neste caso. Quanto ao meio de suporte deste e dos demais textos que compõem o corpus, o fato de estarem disponíveis na aba “Imprensa” do site oficial da Samarco coloca que, embora seja um texto público, a pessoa leitora precisa buscá-lo no site. Difere, assim, de outros meios de suporte: por exemplo, se a mesma nota fosse veiculada em transmissão de rádio ou televisão, seria distribuído de maneira mais ampla do que no meio de suporte do site, dentro da aba de “Imprensa”, mais direcionada para que jornalistas e pessoas da imprensa busquem o texto. Dado que a cobertura da mídia ainda é atraída por casos que envolvem repercussões negativas, as empresas recorrem a produzir, por conta própria, respostas à mídia, na tentativa de atenuar possíveis

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• 215

danos à sua reputação causados pela ação da imprensa por meio da busca por legitimidade (Rudkin et al., 2019). No caso deste primeiro texto, a análise textual e de práticas discursivas revela o uso de estratégias de legitimação do tipo indicação de fatos, presente, sobretudo, no distanciamento da empresa e uso de discurso relatado e pela autorização, fazendo referência de que a Samarco acionou autoridades competentes para lidar com o caso. Em relação ao gênero discursivo, temos ainda neste primeiro texto uma nota, que se trata de gênero informativo e de estilo formal e que corresponde a uma atividade de caráter jornalístico (Fairclough, 2008; Magalhães, 2001; Melo & Assis, 2016). Tais características do gênero discursivo do texto em análise reforçam a busca por legitimidade e domínio da construção de sentidos, visando realização de política cognitiva pela Samarco, já que demonstra que a equipe da empresa optou por um gênero típico às atividades jornalísticas, visando controlar a narrativa sobre o fato e buscando mascarar as intenções de gestão da reputação empresarial usando de um modelo comunicacional típico à atividade jornalística que, a princípio, deve primar pela isenção e ser informativo. Passo agora à análise do segundo texto do corpus: Quadro 3 – Segundo texto do corpus, publicado no site da Samarco um mês após o rompimento da barragem Linha Título

Conteúdo do Texto Fazer o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso

1.

Nós, da Samarco, reafirmamos nossa profunda consternação pelo acidente ocorrido. Já, desde o primeiro momento, mobilizamos todos os recursos disponíveis, humanos e financeiros, para atender às emergências e buscar soluções.

2.

Estamos trabalhando incessantemente e contando com muitos apoios.

3.

Agradecemos a todos que, direta ou indiretamente, estão prestando sua solidariedade às comunidades e à Samarco.

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Discursos e Organizações

4.

Neste momento, estamos sendo muito questionados, mas continuamos firmes para esclarecer os fatos.

5.

Somos mais de 3 mil pessoas orgulhosas do trabalho que realizamos há 40 anos no Brasil.

6.

E continuaremos fazendo o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso, o compromisso da Samarco.

Fonte – https://www.samarco.com/2015/12/04/fazer-o-que-deve-ser-feito-esse-e-o-nossocompromisso/. Acesso em 05 jun. 2021.

Este segundo texto é composto também por uma figura, conforme a Fig. 3, apresentada a seguir que, no site da Samarco foi exposta logo abaixo do texto do Quadro 3:

Figura 3 – Imagem apresentada logo abaixo ao texto do Quadro 2 no site da Samarco Fonte – https://www.samarco.com/2015/12/04/fazer-o-que-deve-ser-feito-esse-e-o-nossocompromisso/. Acesso em 05 jun. 2021.

Na primeira parte do segundo texto, de linguagem escrita, a linha 1 apresenta verbos no infinitivo, “fazer”, “ser”, bem como usa o verbo ser no presente, em “é”. Estas escolhas verbais assumem uma atitude comunicativa que deseja expressar afirmações categóricas: denota como se a empresa cumprisse com suas obrigações “fazer o que deve ser feito” e, sem sombra de dúvidas, isso representa, “é” seu compromisso. A perspectiva adotada no texto é do tempos-zero (em “fazer o que deve

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ser feito”), visto o verbo no infinitivo indicar permanência, constância, já que não está conjugado em tempo passado, presente ou futuro e tempo comentado, com o verbo “ser” no presente (em “é”), no qual a empresa faz um juízo de valor, colocando-se como “comprometida” com suas obrigações, com “o que deve ser feito” (Koch, 2013). Na linha 2, o texto emprega o pronome “nós” exclusivo, referindose apenas à equipe da Samarco, sem incluir as pessoas que leem o texto. Mais uma vez, a escolha léxica para a empresa se referir à ruptura da barragem de rejeitos é “acidente”, como se fosse evento imprevisível e inevitável. Ao invés de optar por uso de verbo factivo, que explicitasse um estado psicológico (ex: lamentar, lastimar, sentir), a equipe/pessoa que redigiu o texto materializando o discurso da Samarco optou por manter certo distanciamento de quem lê, não expressando diretamente emoções, mas expondo que a equipe da empresa reafirma sua “profunda consternação pelo acidente ocorrido” (Koch, 2013). Neste trecho, a escolha léxica de “consternação”, uma grande tristeza, é intensificada pelo uso do adjetivo “profunda”. Há também intertextualidade constitutiva ou interdiscurso, ou seja, referência a discurso ou texto anterior no uso de “reafirmamos”, dando a entender que, em oportunidades ou textos anteriores, a empresa já manifestou sua grande tristeza em relação ao “acidente” (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001). Os conectores circunstanciais “já” e “desde” operam como marcadores de pressuposição que, para Koch (2013) realizam “manobra” argumentativa de que aquilo que está sendo expresso é uma informação nova. Mas não é verdade, visto que o primeiro texto já apresentava a informação de que a Samarco estaria trabalhando na solução do caso e teria acionado as autoridades competentes. É como se, a partir desta “manobra” argumentativa (Koch, 2013), a Samarco quisesse transmitir a

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ideia de que está fazendo coisas novas para a solução da questão, quando a análise textual indica o contrário. A linha 2 retoma a estratégia do uso de verbos no gerúndio para passar imagem de atividade (“trabalhando”) e recebimento de “apoios” contínuos da empresa. A palavra “apoios” não é especificada, deixando dúvidas quanto à origem destes apoios (poder público, sociedade, acionistas... não fica evidente no texto). O advérbio “muitos” confere, entretanto, intensidade a estes “apoios”, como se a Samarco quisesse transmitir que tem recebido apoios diversos e abundantes de diferentes fontes, ou seja, há pessoas, grupos ou entidades (não se sabe ao certo, já que os “apoios” não são especificados) que estão ao lado da empresa nesta questão, “apoiando-a”. Na linha 3, utiliza-se do verbo factivo (“agradecemos”), em que se atrela sentimento de gratidão por parte da equipe da Samarco, seguido dos indicadores de domínio ou modo “direta ou indiretamente” que tenta indicar um amplo domínio ou amplitude das fontes de “solidariedade” que se direcionam “às comunidades e à Samarco” (Koch, 2013). Neste trecho, o operador argumentativo “e” (presente em “e à Samarco”) realiza uma soma da empresa às comunidades, agrupando-as em uma mesma conclusão (Koch, 2013): a de que a empresa seria tão merecedora de ampla solidariedade quanto as comunidades atingidas. Estas escolhas no texto reiteram a força ilocucionária do texto anterior, buscando transmitir a crença de que a empresa é comprometida com seus deveres e foi também “vítima” do suposto “acidente” de modo que, assim como as pessoas atingidas, merece “apoios” e “solidariedade”. O interdiscurso (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001) aparece também na linha 4, em que a Samarco faz referência à existência de discursos críticos a respeito de sua conduta, discursos estes localizados no momento presente, como indica o adjunto adverbial de

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tempo “neste momento”. O uso do “mas”, “operador argumentativo por excelência”, nos termos de Koch (2013, p. 36) opõe o argumento possível de que a Samarco mereceria críticas ao argumento decisivo para argumentação contrária apresentado na sentença, de que “continuamos firmes para esclarecer os fatos”. A partir destas escolhas no texto, a equipe responsável pelo mesmo reafirma a força ilocucionária do texto da empresa como “vítima”, já que a mesma segue “firme” para “esclarecer os fatos”, dando a entender que estaria sendo alvo de críticas supostamente indevidas, já que não estaria escondendo sua participação

no

“acidente”,

mas

sim,

prestando

informações

para

esclarecimento. Na linha 5, para reforçar o significa interpessoal de pessoalidade do texto, já indicado pelo uso de verbos factivos, a Samarco recorre a um recurso de “humanização” da empresa, lembrando esta ser composta por “mais de 3 mil pessoas orgulhosas do trabalho que realizamos há 40 anos no Brasil”. Trata-se de estratégia para sensibilização de seus interlocutores, a princípio, membros da imprensa, de que a Samarco é responsável pelo emprego de milhares de pessoas cujo sustento pode ser prejudicado por uma cobertura midiática que ataque a reputação da empresa. Este recurso sugere que para realização da política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981), quando conveniente, uma empresa pode colocar questões humanas em seu discurso, utilizando o fato de a classe trabalhadora depender da venda de sua força de trabalho às corporações para sua própria sobrevivência como “escudo” de proteção a “ataques” à sua reputação, como quando pessoas cobram a responsabilização de empresas por seus atos danosos à sociedade. O adjunto adverbial de tempo “há 40 anos” busca construir legitimidade moral para a empresa

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(Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018), dando a entender que possui credibilidade por estar há quatro décadas em operação no país. Na linha 6, o texto retoma o tema da linha 1, passando a ideia de que a empresa estaria comprometida em cumprir com suas obrigações, como mostra o uso do operador argumentativo “e”, cuja função é somar argumentos em favor de uma mesma conclusão desejável pelos dirigentes da Samarco (Koch, 2013). A figura 3 reforça a força ilocucionária do texto de “compromisso” com obrigações e deveres, retomando também o significado ideacional de que a empresa foi “vítima”, que sofre críticas mesmo estando trabalhando continuamente para “esclarecer os fatos” e estar prestando assistência a pessoas e à redução de danos ambientais. O uso de ícones com desenhos para indicar cada ação da empresa oferece caráter lúdico, que atenua o fato de serem medidas tomadas diante do “pior e mais massivo desastre ambiental da história do Brasil” (Cosenza et al., 2018, p. 6). A escolha da cor amarela, mais “viva e alegre” contribui para a atenuação da gravidade do fato, pois contrasta com a sobriedade do fundo na cor cinza claro e das letras, em azul escuro. O esquema de cores e escolha por desenhos ilustrativos complementam, assim, o significado interpessoal de pessoalidade do texto, que busca chamar para a empresa as imagens de “vítima” merecedora de “apoios” e “solidariedade” e não de críticas. Com base no trabalho de Vignal Lambret e Barki (2018), a escolha da Samarco em usar da Fig.3 no texto em análise pode estar relacionada à linguagem de imagens como figuras ilustrativas ser bastante utilizada no meio de suporte das redes sociais, mídium no qual, segundo os autores, a Samarco vinha sendo alvo de manifestações de raiva por parte do público. Neste sentido, a adoção da Fig. 3 no texto de análise pode ser

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interpretada como interdiscurso (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001), no qual a equipe responsável pela comunicação organizacional da Samarco busca construir legitimidade moral (Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018) por meio de política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981) em que se utiliza de estratégia de legitimação de ação corretiva do Tipo I, indicando que estaria tomando providências para agir diante do fato causador de impacto negativo à sua reputação empresarial (Rudkin et al., 2019). As características do gênero discursivo do texto em análise demonstram um estilo impessoal, tratando-se de gênero notícia, para fins de condução de política cognitiva a partir de modelo comunicacional relacionado à atividade jornalística, socialmente atrelada à ideia de isenção e informação, mas que mescla, em interdiscurso com as emoções negativas do público nas redes sociais da empresa, uma linguagem de carta pessoal, buscando uma relação mais próxima com as partes interlocutoras, denotando uma intertextualidade intergêneros, na qual o gênero notícia, mais formal e jornalístico, tem sua linguagem aproximada ao do gênero carta pessoal, adequando a produção de sentidos da Samarco à linguagem das redes sociais, em que discursos de indignação produtores de impactos negativos à reputação da empresa circulavam (Bakhtin, 1997; Cosenza et al., 2018; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001; Melo & Assis, 2016; Guerreiro Ramos, 1981; Rudkin et al., 2019; Vignal Lambret & Barki, 2018). Após um ano da ruptura da barragem de resíduos de mineração, a equipe responsável pela comunicação organizacional da Samarco publicou, no mesmo meio de suporte dos demais textos, o texto que se segue:

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Discursos e Organizações Quadro 4 – Terceiro texto do corpus, publicado no site da Samarco um ano após o rompimento da barragem Linha Título

Conteúdo do Texto Ainda há muito a ser feito nas comunidades impactadas

1.

Nota sobre um ano do rompimento

2.

Prestamos nossa solidariedade às vidas que se foram e às famílias impactadas.

3.

Reconhecemos os danos causados e estamos empenhados na reparação.

4.

Um ano após o rompimento da barragem de Fundão, ainda há muito a ser feito.

5.

Sabemos que estamos apenas no início.

6.

Clique aqui para baixar o dossiê no formato PDF.

Fonte – https://www.samarco.com/ainda-ha-muito-a-ser-feito-nas-comunidades-impactadas/. Acesso em 05 jun. 2021.

Nesta nota, a equipe responsável pela comunicação organizacional da Samarco retoma a impessoalidade no significado interpessoal, tal como no primeiro texto analisado. Isso fica demonstrado na escolha de, mais uma vez, ao invés de optar pelo uso de verbos factivos (que demonstram emoção), optar por linguagem indireta como na linha 2, em “prestamos nossa solidariedade” (Koch, 2013). O título, ao empregar o marcador de pressuposição “ainda”, introduz o conteúdo de que o trabalho de reparação de danos às comunidades segue inacabado no momento, trazendo a inferência, pressuposição, de que se trata de trabalho de longo prazo. Interessante notar o uso de tempo narrado (Koch, 2013) em “vidas que se foram” e “famílias impactadas”, colocando, ao invés da ação direta de “matar” e “impactar”, realizadas pelas atividades econômicas da Samarco na região, o uso de discurso indireto, buscando “suavizar” os impactos em termos de mortes causadas pela ganância de pessoas responsáveis pela empresa. Por meio deste recurso semântico, o sujeito da ação que levou tais famílias a serem “impactadas” pelas mortes de entes queridos fica indefinido, reforçando o significa interpessoal de impessoalidade do texto.

Fernanda Mitsue Soares Onuma

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Na linha 1, a referência ao gênero discursivo nota complementa o significado interpessoal, visto se tratar de gênero informativo relacionado à atividade jornalística e de estilo formal. O meio de suporte segue o mesmo apontado aos demais textos (Fairclough, 2008; Magalhães, 2001; Melo & Assis, 2016). Na linha 3, embora a primeira oração apresente verbo na primeira pessoa do plural “reconhecemos”, incluindo assim a equipe da Samarco na ação de reconhecimento, este se refere a “danos causados”, trecho que retoma o uso de voz passiva, deixando indefinida a autoria dos danos. Este recurso semântico contribui à política cognitiva da Samarco, que não assume a responsabilidade pelos danos com a ruptura da barragem, construindo sentido de que não participou de ações que os causaram, utilizando de estratégia de legitimação de ação corretiva do Tipo I, em que até reconhece os danos, mesmo sem assumir sua autoria e aponta formas de ação de atenuação destes (Fairclough, 2008; Koch, 2013; Rudkin et al., 2019). Ainda na linha 3, o operador argumentativo “e” antecede argumento que soma ideia anterior, justificando-a, buscando mostrar que a equipe da empresa não só está ciente, reconhece os danos, como trabalha para sua reparação. Justificando e somando mais argumentos por meio deste operador argumentativo, o texto reitera a estratégia de legitimação de ação corretiva do Tipo I e opera sua política cognitiva buscando criar legitimidade moral (Fairclough, 2008; Guerreiro Ramos, 1981; Koch, 2013; Rudkin et al., 2019; Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018). A linha 4 do texto apresenta os marcadores de pressuposição “após” e “ainda”, que atuam como conectores circunstanciais de pressuposição, servindo para passar ideias (pressupostas pelo texto) de que após passado tanto tempo (“um ano”) a situação das famílias não foi

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Discursos e Organizações

resolvida em virtude da extensão das consequências da ruptura da barragem que, também neste texto, não são assumidas de forma aberta pela Samarco (Fairclough, 2008; Koch, 2013). Estas pressuposições se somam ao enunciado da linha seguinte, em que o verbo “estar” indica afirmação categórica (Meurer, 2007) afirmando, que a extensão das consequências da ruptura da barragem é tão ampla que, mesmo agindo há um ano, a Samarco está longe de concluir sua reparação, que está “apenas” (operador argumentativo que indica haver pouca coisa já realizada em termos de reparação) no início, a princípio, mas não por negligência da empresa (Koch, 2013). A força ilocucionária (Fairclough, 2008; Magalhães, 2001) expressa no texto, por conseguinte, remete que o trabalho de reparação de danos pela Samarco não foi concluído porque os danos são muito extensos, mas a empresa segue comprometida a reduzi-los mesmo que não reconheça sua participação na ruptura da barragem. Na linha 6, há uso de linguagem injuntiva, com uma ordem/recomendação de acesso a outro documento, um dossiê, por meio de intertextualidade manifesta, com a apresentação do link de acesso ao mesmo. A intertextualidade manifesta ocorre quando um texto faz menção direta a outro, como ocorre aqui (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001). Como o link de acesso me direcionou a uma página com mensagem de “Erro 404 – Arquivo ou Diretório não Encontrado [sic]”, não incluí o mesmo ao corpus de análise e nem consegui observar o conteúdo do “dossiê” ou sua temática, que não são mencionados no terceiro texto em análise. Para finalizar as análises textual e das práticas discursivas dos textos que compõem o corpus, passo ao quarto e último texto, apresentado a seguir no Quadro 5.

Fernanda Mitsue Soares Onuma

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Quadro 5 – Quarto texto do corpus, publicado no site da Samarco cinco anos após o rompimento da barragem Linha

Conteúdo do Texto

Título

Samarco reafirma compromisso com ações de reparação pela barragem de Fundão

1.

Os impactos do rompimento da barragem de Fundão, que completa cinco anos hoje, nunca serão esquecidos por nós da Samarco.

2.

Por isto, afirmamos, mais uma vez, nosso compromisso com a reparação, por meio das ações da Fundação Renova.

3.

Até setembro deste ano, foram destinados mais de R$10 bilhões para as medidas de reparação e compensação.

4.

Entendemos e ressaltamos a complexidade das ações que estão sendo executadas pela Fundação.

5.

Entre elas, as compensações financeiras, recuperação da flora e fauna, além dos processos de reassentamentos, que contam com a participação direta dos atingidos e do poder público em todas as etapas.

6.

Acreditamos que é possível fazer uma mineração diferente, sempre com base nos aprendizados e com foco nos nossos valores:

7.

respeito com as pessoas, integridade, mobilização para resultados e segurança.

Fonte – https://www.samarco.com/2020/11/05/samarco-reafirma-compromisso-comacoes-de-reparacao-pela-barragem-de-fundao/ . Acesso em 05 jun. 2021.

Neste quarto texto, a equipe de comunicação organizacional da Samarco retoma o estilo formal que marca o gênero discursivo da nota, enquanto atrelado à atividade jornalística, promovendo um significado interpessoal de impessoalidade. Logo no título, ao invés da ordem direta “A Samarco se compromete em reparar”, o texto utiliza de ordem indireta “Samarco reafirma compromisso com ações de reparação pela barragem de Fundão” (Koch, 2013). A escolha léxica de “pela barragem de Fundão” dá a entender, a quem lê, que as ações de reparação se devem por responsabilidade da “barragem de Fundão” em si e não por ação de exploração mineral na região pela Samarco. Logo no início, portanto, o significado interpessoal do texto já se mostra de distanciamento, impessoalidade (Fairclough, 2008; Magalhães, 2001).

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Na linha 1, a equipe de comunicação organizacional da Samarco redige, no texto, que “Os impactos do rompimento da barragem de Fundão, que completa cinco anos hoje, nunca serão esquecidos por nós da Samarco”, mas sem complementar a sentença explicando as razões que tornam o acontecimento tão memorável à empresa, restando a dúvida se o motivo seria de ordem moral ou financeira. A linha seguinte inicia com o uso do operador argumentativo “por isso”, que justificativa ou explica o enunciado desta linha com base no enunciado da linha anterior: o compromisso de reparação da Samarco via Fundação Renova se justifica em razão dos impactos da ruptura da barragem serem inolvidáveis pela equipe da empresa, mas sem explicar, mais uma vez, a razão que leva o acontecimento a ser tão memorável (Koch, 2013). A escolha léxica de “mais uma vez” realiza interdiscurso (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001), transmitindo a quem lê a ideia de que a Samarco já afirmou seu compromisso de reparação em outras oportunidades. Segundo Lacaz, Porto e Pinheiro (2017), a Fundação Renova foi criada pela Samarco, em parceria com suas empresas controladoras BHP Billiton e Vale para destinar recursos para prestar assistência e oferecer compensações a pessoas afetadas pela ruptura da barragem. Como explica Groppo (2007), as fundações empresariais criadas no âmbito de práticas de RSC ligadas ao chamado “Terceiro Setor” contribuem para a mercantilização e despolitização da solidariedade social, visto sua criação ter por finalidade a valorização de ativos de empresas no mercado financeiro, em razão de práticas socioambientais serem vistas como boas práticas de governança corporativa, além de representarem uma resposta neoliberal de suposta investida para mitigar problemas sociais

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cujos fins últimos são o enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social, desmobilização social e aumento de lucratividade. Posto de outro modo, o estudo de Groppo (2007) nos ajuda a perceber na Fundação Renova uma oportunidade de melhoria da reputação institucional da Samarco e suas controladoras, bem como palco de atuação neoliberal de enfraquecimento ao papel do Estado no provimento de políticas sociais e aumento de seus lucros via melhoria em seu índice de governança no mercado financeiro via RSC. As empresas encontraram na RSC via fundação uma forma de lucrar com as mortes e destruições nas quais elas próprias têm participação, como Miranda et al. (2017) sugerem. O recurso ao tempo comentado, via discurso indireto, que apareceu no primeiro texto do corpus se repete nas linhas 3 e 4 do texto, em que o uso de voz passiva (como em “foram destinados” e “ações [...] executadas”) garante indefinição quanto à autoria das referidas ações (seriam ações do poder público, da Samarco, de suas empresas controladoras? Fica a dúvida), ao mesmo tempo em que se garante a produção de significado interpessoal de distanciamento, impessoalidade, a fim de aproximar o texto à atividade jornalística atrelada ao gênero discursivo da nota, aqui adotado (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Koch, 2013; Magalhães, 2001). Na linha 5, o texto faz referências às ações da Fundação Renova, dentre as quais destaco o uso do operador argumentativo “além de”, que soma ao argumento de participação popular nos processos de assentamentos, as medidas de compensações financeiras e de reparação a danos ambientais (Koch, 2013). Na linha 6, o verbo “é” foi empregado como indicador modal de que se trata de expressão “cristalina”, afirmação categórica sobre a possibilidade de existência de uma “mineração

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diferente”. Ao redigir “Acreditamos que seja possível uma mineração diferente, sempre com base nos aprendizados e com foco nos nossos valores:” a equipe de comunicação organizacional da Samarco exerce sua política cognitiva em que há uma modalização da intenção da empresa: não há comprometimento claro de que a Samarco irá realizar uma “mineração diferente”, apenas a afirmação da crença corporativa na existência da possibilidade de tal forma de mineração (Guerreiro Ramos, 1981; Koch, 2013). Resta dúvida também quanto à possibilidade de “aprendizados” efetivos pelas pessoas responsáveis pela empresa dado que em 25 de janeiro de 2019 ocorreu a ruptura da barragem de rejeitos de mineração do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho-MG, operada pela Vale S.A. que, junto à BHP Billiton é uma das empresas controladoras da Samarco (Freitas et al., 2019; Lacaz, Porto & Pinheiro, 2017). Por fim, na linha 7, o uso de vírgulas marca uma sequência de valores expressos pela Samarco, cabendo atenção à escolha léxica de respeito “com” as pessoas e não “às” pessoas. O “respeito” a que a equipe de comunicação organizacional se refere é em conjunto, é “com” as pessoas e não direcionado pela empresa a pessoas. A palavra “para” nesta última linha indica a finalidade da “mobilização” expressa: “resultados e segurança”. Como a natureza dos “resultados e segurança” não estão identificados no texto, pode indicar a “mobilização” cuja finalidade sejam os “resultados e segurança” da Samarco em termos financeiros, como um “recado” interdiscursivo para acalmar acionistas, investidores e outros stakeholders quanto ao futuro financeiro da empresa, já que o texto expressa que esta está direcionando volumes de dinheiro para compensações de danos (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Koch, 2013; Magalhães, 2001).

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A força ilocucionária do texto é que a Samarco tem, paralelamente à continuidade de ações compensatórias e de reparação, se ocupado com questões de RSC e de resultados e segurança financeiros, atendendo a anseios, em especial, de seus investidores e demais stakeholders poderosos, realizando política cognitiva com vistas à construção de legitimidade cognitiva e moral e usando de estratégia de legitimação de ação corretiva do Tipo I, alegando estar tomando medidas para reduzir os impactos negativos da ruptura da barragem. O significado ideacional, portanto, é de que a empresa está tomando medidas para garantir a restauração de sua reputação e a garantia de seus resultados e segurança financeiros (Fairclough, 2008; Guerreiro Ramos,1981; Magalhães, 2001; Suchman, 1995 apud Cosenza et al., 2018; Rudkin et al., 2019). Para complementar minhas análises, apontando para os efeitos da política cognitiva (Guerreiro Ramos, 1981) da Samarco na sociedade brasileira realizo, a seguir, a análise das práticas sociais. PRÁTICAS SOCIAIS: DESVELANDO OS EFEITOS DA POLÍTICA COGNITIVA DA SAMARCO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Uma vez que as dimensões do modelo tridimensional da ACD faircloughiana são indissociáveis, a fim de mostrar a base concreta materializada nos textos que compõem o corpus das discussões em torno das relações dialéticas entre o discurso da Samarco sobre a ruptura da Barragem de Fundão e as estruturas sociais, por meio dos conceitos de ideologia (Thompson, 2011) e de hegemonia (Gramsci, 2001), retomo no Quadro 6, apresentado a seguir os resultados das análises textual e práticas discursivas do corpus. Meu intuito aqui é mostrar como a ACD pode contribuir para desvelar a política cognitiva de organizações como a Samarco não como

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fruto de supostas “elucubrações vazias”, como o senso comum tende a compreender as análises sociológicas, mas análises científicas dotadas de uma base material verificável na realidade concreta: os discursos da empresa materializados nos textos produzidos por sua equipe de comunicação organizacional visando criar legitimidade moral via política cognitiva (Fairclough, 2008; Guerreiro Ramos, 1981; Rudkin et al., 2019). Quadro 6 – Síntese da análise textual e das práticas discursivas do corpus

Data do Texto

Gênero Discursivo (Bakhtin, 1997; Fairclough, 2008; Magalhães, 2001)

Título

Estratégia de Legitimação (Rudkin et al., 2019) ou Força Ilocucionária Indicação de Fatos e Autorização.

05 de novembro de 2015 (Dia)

Informe, estilo formal, mídium: aba “Imprensa” do site da Samarco

“Samarco Informa”

A empresa não teve responsabilidade no rompimento, que foi “imprevisto”, já tomou providências e avisou às autoridades. Ação corretiva de Tipo I.

04 de dezembro de 2015 (Após um mês)

Notícia/Carta pessoal, estilo informal, mídium: aba “Imprensa” do site da Samarco

“Fazer o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso”

Crença de que a empresa é comprometida com suas obrigações e foi também “vítima” do suposto “acidente” de modo que, assim como as pessoas atingidas, merece “apoios” e “solidariedade”.

Significados Ideacionais e Significados Interpessoais (Fairclough, 2008; Magalhães, 2001) Relação de distanciamento ao que ocorreu, que foi “acidental”. Impessoalidade.

Empresa também foi “vítima” do acidente e tem recebido críticas “infundadas” pois, mesmo sem ter responsabilidade no caso, tem agido em favor de pessoas e da redução de danos ambientais. Pessoalidade.

Fernanda Mitsue Soares Onuma Ação corretiva de Tipo I.

04 de novembro de 2016 (Após um ano)

Nota, estilo formal, mídium: aba “Imprensa” do site da Samarco

“Ainda há muito a ser feito nas comunidades impactadas”

O trabalho de reparação de danos pela Samarco não foi concluído porque os danos são muito extensos, mas a empresa segue comprometida a reduzi-los mesmo que não reconheça participação na ruptura da barragem. Ação corretiva de Tipo I e Autorização.

05 de novembro de 2020 (Após cinco anos)

Nota, estilo formal, mídium: aba “Imprensa” do site da Samarco

“Samarco reafirma compromisso com ações de reparação pela barragem de Fundão”

A Samarco tem, paralelamente à continuidade de ações compensatórias e de reparação, se ocupado com questões de RSC e de resultados e segurança financeiros, atendendo a anseios, em especial, de seus investidores.

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O trabalho de reparação segue no início porque os danos, que não são assumidos pela empresa, foram muito grandes. Impessoalidade.

A empresa está tomando medidas para garantir a restauração de sua reputação e a garantia de seus resultados e segurança financeiros Impessoalidade.

Fonte – Elaborada pela autora.

A leitura do Quadro 6 nos mostra que o discurso das pessoas responsáveis pela Samarco nos textos que compõem o corpus de análise indica que estes foram produzidos de forma coerente com a criação de sentidos que buscassem atenuar os impactos negativos à reputação da empresa gerados pela ruptura da Barragem de Fundão. A questão que fica é: como esse discurso interage dialeticamente com as estruturas sociais ou, posto de outro modo, como pode uma empresa produzir textos

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buscando construir uma narrativa de “acidente”, eximindo-se da responsabilidade pelo ocorrido e, ainda assim, após cinco anos, usar das mortes e danos como forma de marketing da instituição, criando uma fundação privada para explorar a questão via RSC e lucrando em cima disso? Para compreender esta questão é que recorro à análise das práticas sociais, discutindo questões estruturais que, ao mesmo tempo em que possibilitam a criação deste tipo de discurso visando à política cognitiva empresarial (Guerreiro Ramos, 1981), este participa do processo de criação destas mesmas estruturas, por exemplo, criando ou reafirmando ideologias que permitam a sua reprodução na sociedade. Neste sentido, temos uma mudança social (Fairclough, 2008) na qual a ruptura da Barragem de Fundão deixa de ocupar tanto espaço na mídia corporativa e nas conversas diárias na sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que a Samarco se apresenta em seu sítio na internet como “Uma Nova Samarco” e seus ativos retomam valorização após seis anos do ocorrido. Que elementos das estruturas sociais permitiram a criação deste discurso aqui analisado de política cognitiva e quais efeitos nocivos potenciais este pode apresentar à sociedade brasileira? O atual regime de acumulação capitalista, o capitalismo financeirizado, pode ser mais bem compreendido a partir do entendimento de que este é regido pela lógica do neoliberalismo (Fraser & Jaeggi, 2020). O neoliberalismo é entendido por Harvey (2014) como uma crença de que os mecanismos de mercado, via privatização, desregulamentação e retirada do Estado da prestação de bens e serviços públicos garantiria melhores condições de vida à população. Como Paulani (2005) explica, o neoliberalismo assume caráter dogmático, como verdadeira “profissão de fé” baseada em um postulado econômico pautado na suposta supremacia do mercado como resposta

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ao atendimento a todas as necessidades humanas, resultando na negação científica de outras formas de visão de mundo e postulados teóricos presentes nas diferentes teorias econômicas, colocando-se como “a” proposta correta de atuação nos planos político, econômico e social. Neste sentido, o neoliberalismo pode ser entendido como uma ideologia, estabelecendo uma disputa ideológica pelo controle da produção, circulação e consumo de sentidos e semioses na sociedade visando a dominação social por grupos pertencentes à classe dominante (Fairclough, 2008; Harvey, 2014; Paulani, 2005; Thompson, 2011). A mundialização do capital, que ficou mais conhecida como “globalização” garantiu a transformação da ideologia neoliberal em hegemonia (Chesnais, 1996; Gramsci, 2001). Por mundialização do capital, Chesnais (1996) compreende uma fase específica do processo de valorização e internacionalização do capital em escala mundial, cujo principal objetivo é transformar profundamente a organização do trabalho ao redor do globo, a fim de possibilitar o livre trânsito de capitais e de operações de empresas transnacionais às localidades que lhes oferecerem melhores condições de domínio e exploração da mão-de-obra e riquezas naturais locais. O neoliberalismo pode ser entendido, portanto, como o elemento semiótico da mundialização do capital que, graças à sua relação dialética com as estruturas sociais do capitalismo em suas fases recentes de acumulação, permitiu uma reordenação radical no mundo do trabalho em todo o planeta, justificado por esta ideologia que passou a ser hegemônica (Chesnais, 1996; Fairclough, 2008; Gramsci, 2001; Harvey, 2014; Paulani, 2005; Thompson, 2011). É importante ressaltar, contudo, que para Chesnais (1996), a mundialização do capital não se realiza de forma externa e unilateral nas

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periferias do capitalismo, a exemplo do Brasil. Como Fernandes (2015) aponta, é necessário reconhecer a singularidade do capitalismo dependente que caracteriza o país, assim como países de outras regiões empobrecidas, a exemplo da própria América Latina e regiões marginais ao capitalismo dos continentes da Ásia e da África. A relação de dependência trata-se de via de mão-dupla: ao mesmo tempo em que países da periferia do capitalismo, como o Brasil, dependem de tecnologias e capitais dos países centrais ao capitalismo, mais ricos, estes dependem dos primeiros para oferta de mão-de-obra e matérias-primas baratas, por exemplo. Não fosse o capitalismo dependente, explica Fernandes (2015) não teria sido possível a especialização das nações centrais ao capitalismo na produção de tecnologias e bens de alto valor agregado, já que estas se beneficiaram do fato da divisão internacional do trabalho ter relegado aos países de capitalismo dependente a produção de bens de agro exportação, sem os quais não poderiam abastecer suas populações. Por meio do que Fernandes (2015, p. 104) denomina de “congelamento da descolonização”, as classes abastadas nacionais dos países periféricos se aliaram a parceiros estrangeiros visando combater anseios de desenvolvimento capitalista local e movimentos reivindicatórios das classes trabalhadoras. A exploração intensiva da mineração dentro da lógica dependente na qual o Brasil se insere subalternamente no processo de mundialização de capital e explica o cenário de flexibilização de legislações ambientais e precariedade de fiscalizações quanto aos riscos iminentes de ruptura de barragens de rejeitos de mineração, a exemplo da Barragem de Fundão, como Zhouri et al. (2016) avaliam. Analisando a situação a partir das lentes teóricas da mundialização do capital (Chesnais, 1996) e do capitalismo dependente (Fernandes, 2015), fica mais fácil

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compreender que a aparente fragilidade institucional de ausência de controle e fiscalização pelo Estado brasileiro e a sensação de revolta e impunidade que restam após o crime socioambiental não se tratam de “eventualidade” ou “acidente”, mas sim, de efeito da própria lógica de funcionamento da economia brasileira inserida de modo subalterno na mundialização do capital. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da ACD faircloughiana do corpus de análise, espero ter conferido visibilidade à política cognitiva da Samarco visando controlar os efeitos da repercussão negativa da ruptura da Barragem de Fundão à sua reputação e, por conseguinte, à sua lucratividade, mostrando como a escolha de notas, como gêneros discursivos tradicionais à atividade jornalística foi uma estratégia de comunicação organizacional para dissimular

os

reais

objetivos

de

seu

discurso.

Tendo

por

interlocutores/consumidores principais agentes da imprensa a partir do uso do gênero discursivo nota distribuído pelo meio de suporte da seção de “Imprensa” do site oficial da Samarco, a equipe de comunicação organizacional visou dissimular a realização de sua política cognitiva como se fosse uma suposta oferta de “textos jornalísticos” para embasar a cobertura midiática. Não fossem os gêneros discursivos, aliás, as empresas sequer conseguiriam existir ou funcionar: sem ata de fundação, sem memorandos, ofícios, comunicados, dentre outros gêneros discursivos, não haveria práticas sociais que legitimassem a existência e que facilitassem, como economia comunicacional e normatividade, o funcionamento organizacional. Espero, a partir dos apontamentos realizados, inspirar trabalhos

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futuros em Estudos Organizacionais que se atentem ao potencial da contribuição deste conceito para a compreensão das organizações em si, enquanto objetos de estudos deste campo científico. Complementarmente, desejo que este texto possa contribuir para desmistificar a perspectiva teórico-metodológica da ACD em Norman Fairclough, convidando mais pessoas que pesquisem em Estudos Organizacionais a explorarem, com embasamento teórico, o potencial de contribuição desta perspectiva teórico-metodológica para a compreensão das organizações. Embora conhecimentos prévios em Linguística não sejam um pré-requisito para a utilização desta abordagem, espero que as análises aqui apresentadas demonstrem a cientistas dos Estudos Organizacionais o quanto estudos de conceitos vindos desta outra ciência podem aprimorar as análises em ACD com base em Norman Fairclough, para além de uma restrição à análise textual com base no sentido das palavras utilizadas nos textos que compõem o corpus de análise. A política cognitiva permitiu que, após seis anos do crime, a empresa tenha não apenas continuado a lucrar com a exploração de pessoas e recursos minerais no país, enriquecendo acionistas de suas controladoras no Brasil e em outros países, mas também, aberto novas frentes lucrativas. A RSC tem servido ativamente à política cognitiva, gerando ainda um outro mercado em que, gerenciando semioses que produzam uma interpretação positiva da sociedade às ações empresariais no chamado “Terceiro Setor” capaz de gerar valor e lucros a empresas a partir de danos ambientais e sociais causados pelas suas próprias atividades econômicas. É urgente, portanto, que cientistas dos Estudos Organizacionais tenham conhecimentos de perspectivas teórico-metodológicas como a ACD faircloughiana a fim de conseguirem

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promover o debate qualificado acerca de formas de política cognitiva como a apresentada aqui. REFERÊNCIAS

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8 A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: UMA ABORDAGEM PARA A ANÁLISE DO DISCURSO DA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL SOBRE O PERFIL DO TRABALHADOR Helena Kuerten de Salles

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INTRODUÇÃO

– Quando eu uso uma palavra – Humpty Dumpty falou, mais uma vez num tom desdenhoso –, ela significa o que eu quero que ela signifique... Nem mais nem menos. – A questão é – Alice falou – se o senhor pode fazer as palavras significarem coisas tão diferentes. – A questão é – disse Humpty Dumpty – quem é que manda... E isso é tudo.

Esse diálogo entre o Ovo Humpty Dumpty e a menina Alice, no famoso livro Alice através do Espelho, de Lewis Carroll (1871), é bastante inspirador para a discussão do papel da linguagem na Análise Crítica do Discurso (ACD). Na Linguística, ciência de origem da ACD, há, pelo menos, duas perspectivas sobre linguagem: a formal e a funcional. Abordar a linguagem a partir da perspectiva formal significa dar destaque à autonomia das formas linguísticas (gramática) e assumir que essa não é influenciada por suas funções externas. De forma oposta, a linguagem observada pela perspectiva funcional focaliza o uso da língua reconhecendo que ela assume funções externas e que tais funções interferem em sua

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Universidade Federal de Santa Catarina.

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organização interna. Dessa forma, a perspectiva funcional percebe a linguagem como um fenômeno eminentemente social e, por isso, uma alternativa para análise dos fenômenos sociais sendo, portanto, a perspectiva que ancora a ACD (Meurer & Dellagnelo, 2008). Conforme esclarecem Resende e Ramalho (2006, p. 13) o foco de interesse da análise do discurso não é apenas “a interioridade dos sistemas linguísticos, mas, sobretudo a investigação de como esses sistemas funcionam na representação de eventos, na construção de relações sociais, na estruturação, reafirmação e contestação de hegemonias no discurso”. Segundo assinalam Rear e Jones (2013) quando os discursos se tornam hegemônicos, a prática social que sustentam pode parecer tão natural que os membros da sociedade não percebem que ela é resultado de práticas hegemônicas políticas. Assim, quando os discursos alcançam o nível de senso comum, suas origens e contingências intrínsecas tendem a ser esquecidas. Fairclough (2001; 2003) comenta que a exposição contínua a um determinado discurso é um dos mecanismos pelo qual os sujeitos tendem a ser por ele incorporados. Segundo o autor esse processo de mudar o sujeito pode ser pensado em termos de inculcar novos discursos, ou seja, fazer com que as pessoas incorporem discursos, posicionando-se dentro deles, agindo, pensando, falando e se vendo nos termos dos novos discursos (por exemplo, discurso da moda, da beleza, do entretenimento, da saúde, do sucesso etc.). Para ACD a linguagem é um evento aberto, ou seja, ela reflete o contexto da situação e da cultura em que está inserida. Assim, podemos afirmar que os textos (entendidos como produto da linguagem) guardam traços: da ação individual e social que lhe deram origem e de que fez parte; da interação articulada por ele; das relações sociais,

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simétricas ou assimétricas, entre as pessoas envolvidas na interação; e do contexto sócio histórico em que foi gerado (Eggins, 1994). Essa compreensão sociolinguística que a ACD confere aos textos permite que, por meio do exame linguístico, aspectos sociais sejam revelados. Com isso, conforme lembram Wodak (2004) e Van Dijk (2010), estudos críticos do discurso são fundamentais para denunciar o papel do discurso na reprodução da dominação. Nesses termos, a “ACD é uma alternativa teórico-metodológica para os estudos organizacionais críticos já que ela contribui para o exame de questões sociais do mundo contemporâneo e busca desnaturalizar crenças que servem de suporte às estruturas de dominação” (Salles & Dellagnelo, 2019, p. 415). Partindo desse contexto, neste capítulo vamos apresentar a Análise Crítica do Discurso (ACD), de vertente anglo saxã, notadamente a abordagem de Norman Fairclough, enfatizando seus aspectos teóricos e metodológicos mais essenciais, com vistas a ressaltar sua pertinência para o campo dos Estudos Organizacionais. Para sustentar nosso argumento usaremos, para ilustrar a aplicação da ACD, a análise de trechos dos relatórios The Future of Jobs (WEF, 2016; 2018; 2020) para evidenciar a precarização impelida ao neosujeito (Dartot & Laval, 2016) forjado pelo discurso da Quarta Revolução Industrial. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO A ONTOLOGIA DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

A ontologia diz respeito ao modo como se entende a natureza do mundo social. A perspectiva ontológica da ACD está baseada no Realismo Crítico (Fairclough, 2003). Para o Realismo Crítico (RC) o mundo

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real é um sistema aberto, mutável, e constituído por diferentes estratos (físico, biológico, social, semiótico etc.) e domínios (potencial, realizado e empírico) (Sayer, 2000). O Realismo Crítico assume uma ontologia estratificada por diferentes domínios ontológicos: o potencial, o realizado, e o empírico. O potencial diz respeito “ao que quer que exista, seja natural ou social, independentemente de ser um objeto empírico para nós e de termos uma compreensão adequada de sua natureza” (Sayer, 2000, p. 11). É o lócus de forças que podem vir a propiciar ou restringir os eventos. Assim, embora o potencial seja a dimensão onde as causas se originam, é na dimensão do realizado que as tendências se encontram para produzir um resultado. Com isso, o realizado, corresponde ao modo contingente como os objetos (físicos ou sociais) são configurados em um contexto, de modo que esta dimensão inclui, além das experiências, eventos que podem ou não ser observados (por não existir ninguém para observálos, por não poderem ser percebidos pelos instrumentos de observação disponíveis, etc.). Assim, o resultado da combinação de tendências se revela no domínio do realizado, mas suas causas devem ser buscadas na dimensão do potencial. Por fim, o estrato empírico refere-se ao domínio da experiência, ligada à percepção sensorial dos fenômenos, ou seja, aquilo que observamos e/ou experimentamos sobre os objetos físicos ou sociais. O princípio de que há um mundo real, incluindo o mundo social, que existe independentemente de nós e de nosso conhecimento sobre ele, é fundamental para a abordagem da ACD. Com base neste princípio, a vertente inglesa da ACD concebe a linguagem como um dos estratos da realidade que, com seus mecanismos gerativos e poderes causais particulares, internaliza traços de outros estratos assim como tem efeitos

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sobre eles. Inspirado na ontologia estratificada do RC, Fairclough (2003) aproxima os domínios do potencial, realizado e empírico às três dimensões do estrato social: estrutura social, prática social e evento social e sustenta que a linguagem é um elemento presente em todos os níveis do social. No nível da estrutura, a linguagem se manifesta como sistema semiótico; no nível das práticas sociais, a linguagem se expressa como ordem de discurso; e no nível dos eventos, a linguagem se apresenta como texto, o material empírico de eventos que ocorrem em práticas sociais mais amplas (Ramalho, 2006). Dessa forma, a exemplo do RC que sustenta que embora as estruturas sociais não possam ser diretamente observáveis elas podem ser conhecidas por seus efeitos nos eventos sociais, Fairclough (2003) recontextualiza essa noção e propõe que os textos revelam traços das estruturas sociais em que foram gerados. Além da distinção entre os três níveis da realidade, o Realismo Crítico também pressupõe que a realidade é mutável, ou seja, a conjunção de certas condições em um dado contexto dá origem a novos processos, imprimindo uma concepção de transformação social. Na ACD, o princípio da mudança social está fundamentado no Modelo Transformacional da Sociedade de Roy Bhaskar (1998). Na concepção do autor as pessoas não criam a sociedade, pois ela é pré-existente às pessoas e é uma condição necessária para a atividade delas. Em vez disso, a sociedade deve ser considerada como um conjunto de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos reproduzem ou transformam, mas que não existiria sem a ação dos indivíduos. Nessa ontologia, as estruturas são condição e também resultado da ação sendo, dessa forma, passíveis de mudança. Entretanto, é fundamental perceber que nesse Modelo a relação entre estrutura e ação não é dialética, o que pressuporia dois momentos de um mesmo processo, mas sim transformacional. Isto significa dizer que

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não há sincronicidade e sim uma relação assíncrona entre estrutura e ação, ou seja, as estruturas são pré-existentes à ação, mas existem apenas em razão da agência. Há, portanto, uma relação temporal: a estrutura social atual foi conformada pela ação de atores sociais anteriores. Essa relação assíncrona entre estruturas sociais e agência humana implica na necessidade de entidades intermediárias que atuem como ponto de conexão: as práticas sociais. Este ponto de contato deve ser durável e ocupado por indivíduos (Bhaskar, 1998, p. 221). A ideia de prática social, como uma dimensão ontológica do RC e fundamental na ACD, permite que não se perca de vista as estruturas sociais nem a agência humana e evidencia que, embora os atores sociais não usufruam de total liberdade, já que há restrições impostas pela estrutura social, gozam de relativa liberdade na rearticulação das práticas sociais o que torna as restrições sempre parciais e temporárias. Por isso, para conservar o poder, as práticas sociais que sustentam tal condição precisam constantemente reafirmar suas posições hegemônicas. Sendo o discurso um dos momentos da prática social, a luta hegemônica pode ser percebida como disputa pela criação e/ou sustentação de um status universal para determinadas representações particulares (do mundo material, mental e social) (Fairclough, 2003). Considerando que o poder depende da conquista do consenso, o discurso figura como elemento essencial para sustentação de relações hegemônicas em um dado contexto histórico. Na ACD, o conceito aberto de hegemonia, recontextualizado de Antonio Gramsci, reforça o papel do discurso no estabelecimento e na manutenção de relações de dominação, uma vez que a naturalização de representações particulares é fundamental para a permanência de articulações baseadas no poder.

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Naturalizadas, práticas hegemônicas não são facilmente perceptíveis, pois elas projetam uma maneira habitual de organização do mundo (Chouliaraki & Fairclough, 1999) e pode parecer tão natural que os membros da sociedade não as percebem como resultado de uma ação política (Rear & Jones, 2013). A proposta central da ACD é expor as ideologias subjacentes ao discurso a fim de expor que nem tudo que é senso comum é natural, mas sim naturalizado por tradições e convenções sociais que, normalmente, perpetuam relações assimétricas de poder. Dessa forma, quando as práticas discursivas são percebidas como construções sociais podem ser questionadas e perder sua força de sustentar práticas sociais centradas na desigualdade (Fairclough, 2001; Salles & Dellagnelo, 2019). PRÁTICA SOCIAL E DISCURSO: CONCEITOS FUNDAMENTAIS NA ACD

A ACD busca superar uma lacuna entre teorizações baseadas na linguagem e pesquisas voltadas para uma explanação do papel da linguagem em práticas sociais contextualizadas. Ao delimitar o conceito de discurso, Fairclough procurou combinar a abordagem linguística com uma perspectiva socioteórica de discurso (Fairclough, 2001, p. 22). Neste movimento, o autor recorreu a teorias da linguagem (notadamente a Linguística Sistêmico-Funcional) e a teorias sociais para elaborar sua proposta e fornecer um complexo modelo teórico-metodológico onde a noção de práticas sociais e discurso são fundamentais. Na ACD o termo discurso guarda certa ambivalência, pois se propõe a dois entendimentos distintos, mas adequados: “por um lado tem um significado muito próximo de ideologia e por outro é apenas uma ocorrência de uso da linguagem, muito próximo ao significado de texto”

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(Meurer, 2005, p. 87). No entanto, discurso não é sinônimo de texto, ainda que esse seja um momento daquele. Texto tem existência material, é concreto, portanto. Já o discurso está situado por trás do texto, ou seja, o discurso encerra valores que sustentam determinados textos. Nas palavras de Meurer (2005, p. 87) discurso é o conjunto de afirmações que, articuladas na linguagem, expressam os valores e significados das diferentes instituições; e o texto é a realização linguística na qual se manifesta o discurso [...] todo discurso é investido de ideologias [...] todo discurso é também reflexo de uma certa hegemonia. [...] o discurso organiza o texto e até mesmo estabelece como o texto poderá ser, quais tópicos, objetos ou processos serão abordados e de que maneira o texto deverá ser organizado […].

Para ACD, além da noção de discurso, outro conceito central é o de prática social. Inspirado no RC, Fairclough (2003) defende os eventos sociais não são efeitos diretos das estruturas sociais, a relação entre eles é mediada por entidades intermediárias: as práticas sociais. As práticas sociais podem ser pensadas como uma instância capaz de controlar a seleção e/ou exclusão de certas possibilidades estruturais e retenção dessas seleções ao longo do tempo em áreas particulares da vida (econômicas, políticas, culturais, entre outras). Para Fairclough (2005, p. 308) a concepção de práticas sociais nos permite combinar as perspectivas de estrutura e de ação – uma prática é, por um lado, uma maneira relativamente permanente de agir na sociedade, determinada por sua posição dentro da rede de práticas estruturada; e, por outro, um domínio de ação social e interação que reproduz estruturas, podendo transformá-las.

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FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

A linguagem como recurso para a análise de fenômenos sociais Chouliaraki e Fairclough (1999), com base no materialismo histórico-geográfico de David Harvey (1996), propõem que as práticas sociais são constituídas de linguagem (ou semiose); atividade material; relações sociais (relações de poder e luta hegemônica pelo estabelecimento, manutenção e transformação dessas relações); e fenômeno mental (crenças, valores, ideologia). Desse modo, a linguagem é um momento irremediável de qualquer prática social constituindo-se uma alternativa para análise dos fenômenos sociais (Salles & Dellagnelo, 2019). Segundo postulado por Halliday (2004) na Linguística SistêmicoFuncional (LSF), ao interagirmos socialmente fazemos uso da linguagem para expressar nossas ideias, ou seja, não estamos interessados em produzir sons, palavras e frases, mas em criar significados. Essa concepção funcional da linguagem é o que sustenta a operacionalização da ACD. Com base no princípio da multifuncionalidade da linguagem de Halliday (2004), Fairclough (2003) defende que o discurso age de três maneiras principais nas práticas sociais: como modos de agir, como modos de representar e como modos de ser e cada um desses modos de interação corresponde um tipo de significado textual: acional, representacional e identificacional. O significado acional focaliza o texto como modo de ação já que interagimos através da linguagem. A análise do significado acional de um texto pode ser revelador das posições dos sujeitos na atividade em curso, o que é especialmente valioso para ACD, pois desvela as relações de poder. Já o significado representacional enfatiza como aspectos do mundo são representados nos textos. Isso significa que diferentes

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discursos são diferentes perspectivas do mundo que estão associadas a diferentes relações que as pessoas estabelecem com o mundo e que estabelecem com outras pessoas (cooperação, competição, dominação etc.). Por fim, a linguagem também age como um elemento na constituição de modos particulares de ser e, deste modo, o significado identificacional refere-se à construção e à negociação de identidades no texto estando relacionado não apenas à própria identidade, mas também a identificação do outro e, portanto, relacionado a julgamentos. Fairclough (2003) articula os significados do texto a três categorias linguísticas: gêneros, discursos e estilos, estabelecendo uma correspondência entre ação e gêneros, representação e discursos, identificação e estilos. Então, a ACD deve ser, simultaneamente, a análise de como os três tipos de significado são realizados em traços linguísticos dos textos (vocabulário, gramática, etc.) e a conexão entre o evento discursivo e práticas sociais, verificando-se quais gêneros, discursos e estilos são utilizados e como são articulados nos textos. Enquanto os gêneros discursivos são maneiras relativamente estáveis de agir e interagir discursivamente na vida social; os discursos são maneiras relativamente estáveis de representar o mundo; e os estilos, são maneiras relativamente estáveis de identificar, discursivamente, a si e os outros. A distinção entre os três significados é uma necessidade metodológica, pois conforme sinaliza Fairclough (2003) a relação entre eles é dialética, ou seja, não são isolados entre si. O autor explica que representações particulares (discursos) podem ser legitimadas em maneiras particulares de ação (gêneros) e inculcadas em maneiras particulares de identificação (estilos). Os significados textuais constituem as categorias de análise possíveis para o exame da dimensão textual. No entanto, na proposta teórico-

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metodológica de Fairclough (2001; 2010), além da dimensão textual, a ACD também requer a investigação da dimensão discursiva e social. Para análise do texto, devem ser considerados aspectos léxico-gramaticais descritivos da linguagem (como vocabulário, gramática, estrutura textual e coesão). Para a análise da prática discursiva importam questões como a produção, distribuição e consumo do texto; e, por fim, para o exame da prática sociocultural importam questões mais abrangentes da sociedade, como as relações de poder. Essas três dimensões são ilustradas nas seções a seguir. A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO: UMA ILUSTRAÇÃO A PARTIR DA ANÁLISE DO DISCURSO DA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL SOBRE OS TRABALHADORES AS DIMENSÕES DE PRÁTICA DISCURSIVA E PRÁTICA SOCIAL

O exercício da ACD na abordagem faircloughiana implica, necessariamente, um momento de análise textual. No entanto, como assinalam Salles e Dellagnelo (2019, p. 431) “apesar da contribuição indispensável da análise textual, ela guarda apenas um poder descritivo já que o domínio explicativo do fenômeno em análise está contido na análise da prática social”. Neste sentido, para analisar um fenômeno social, compreender o contexto mais amplo no qual o tema está inserido é a primeira etapa metodológica na ACD. Inclusive, é esta análise da prática social que proporcionará as condições necessárias para seleção dos textos que comporão o corpus de análise. Neste sentido, para ilustrar a abordagem da ACD, apresentamos na sequência aspectos da prática social e discursiva de transformações recentes no mundo do trabalho.

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A partir do final do século XX observa-se uma demanda crescente de um novo perfil de trabalhador e de um mundo do trabalho que passa a valorizar um chamado capital humano. Com isso, novos termos, como trabalhador do futuro ou trabalhador do século XXI, surgem no contexto social para designar a força de trabalho. Esse novo ideal de trabalhador engendra a figura do homem-empresa ou do “homem empresarial” (Dardot & Laval, 2016). Conforme preconizado pelo World Economic Forum, para sua inserção no mercado de trabalho, o trabalhador deve aprender a se autogerir, tornar-se empregável, investir em si mesmo e reunir as competências do trabalhador do futuro (WEF, 2020). O discurso disseminado para constituição desse novo perfil de trabalhador sustenta uma suposta liberdade para os sujeitos empreenderem suas vidas, suas carreiras e suas relações. Nesse contexto, ganha relevância o discurso do empreendedor de si, seja seu próprio patrão, favorecendo a instauração de novas e sofisticadas formas de controle, estímulos e recompensas que tem o efeito de produzir uma subjetividade de um novo tipo (Jost, Fernandes & Soboll, 2014). Conforme pontuam Dardot e Laval (2016, p. 322): Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. [...] Porque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir.

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A disciplina e a obediência, até então características demandadas do trabalhador, abrem espaço para novas exigências como: flexibilidade, criatividade, desempenho e excelência. O trabalhador agora é estimulado a ir sempre além de si mesmo, como um esportista de alta performance. “Ele precisa, assim, mobilizar todas as suas faculdades permanentemente e obter desempenhos que sempre ultrapassem os resultados obtidos anteriormente” (Andrade, 2011, p. 41). O empreendedor de si tem liberdade para planejar suas atividades e agenda, o que permite que ele esteja permanentemente disponível para se dedicar à consecução do trabalho. Essa disponibilidade é impulsionada pela tecnologia que torna o sujeito rastreável em qualquer lugar e momento. Assim, o oximoro liberdade vigiada parece traduzir a experiência vivenciada pelo neotrabalhador (Dardot & Laval, 2016), configurando-se uma estratégia neoliberal altamente eficaz para construção de uma sociedade do cansaço (Han, 2015). Esse imbricamento da tecnologia e do alto desempenho está no cerne do discurso da chamada Quarta Revolução Industrial (4RI). O conceito 4RI é fortemente associado a Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial (FEM), para o qual a Quarta Revolução Industrial “gera um mundo no que os sistemas de fabricação virtuais e físicos cooperam entre si de uma maneira flexível a nível global” (Schwab, 2016, p. 12, tradução nossa). Esse conceito e, sobretudo, as previsões sobre o Futuro do Trabalho são disseminados pelo FEM, através de seus inúmeros mecanismos de comunicação e se refletindo em diversas práticas discursivas. Uma ideia associada à 4RI é o cenário de profundas transformações provocadas pela tecnologia e a necessidade, em ritmo acelerado, de adaptação dos trabalhadores a esse novo contexto. Como preconiza

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Schwab (2016, p. 60, tradução nossa) “No mundo da quarta revolução industrial, onde a prática padrão é a utilização do software com base na nuvem, será ainda mais importante garantir que os seres humanos e suas competências mantenham-se no mesmo ritmo.” Este cenário, para além da propalada tecnologização, “mobiliza um proletariado fabril e de serviços precarizados, de período parcial e vínculo temporário, bem como um proletariado informal – um segmento de trabalhadores conhecidos hoje como ‘uberizados’” (Paes de Paula & Paes, 2021, p. 8). Segundo Schwab (2016, p. 49, tradução nossa) afirma a economia sob demanda está alterando de maneira fundamental nossa relação com o trabalho e o tecido social no qual ele está inserido. Mais empregadores estão usando a “nuvem humana” para que as coisas sejam feitas. [...] Essa é a nova economia sob demanda, em que os prestadores de serviço não são mais empregados no sentido tradicional, mas são trabalhadores bastante independentes que realizam tarefas específicas.

Essas novas formas de trabalho provocam a perda progressiva dos direitos dos trabalhadores e instala uma insegurança já que na economia sob demanda há facilidade cada vez maior para demitir; diminuição do poder de compra e um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. Essa dependência, segundo Dardot e Laval (2016), contribuiu para o surgimento de um medo social facilitando a implantação da neogestão nas empresas. Nesse sentido, prosseguem os autores a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento

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da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores (Dardot & Laval, 2016, p. 324).

Essas questões levantadas na análise da prática social e discursiva de transformações recentes no mundo do trabalho, como um futuro que se realizará em breve e que é necessário adaptar-se para prosperar, se manifesta no corpus analisado na seção a seguir. A DIMENSÃO TEXTO

A análise textual pode se valer de diversos recursos linguísticos. No entanto, aqueles que serão mais úteis só são definidos após uma exploração inicial do corpus de análise. É o corpus que vai revelar as características linguísticas mais recorrentes ou marcantes no texto e, portanto, indicarão os caminhos mais interessantes para análise textual. A exemplo da construção da identidade do trabalhador do futuro pode-se identificar vários discursos articulados em conjunto dos quais se destaca o da Quarta Revolução Industrial, capitaneado pelo Fórum Econômico Mundial. Se de um lado a 4RI é oferecida como o futuro promissor por outro preparar-se para esse futuro é condição para sobrevivência do trabalhador, conforme as evidências linguísticas a seguir expõem. Publicado em 2016, 2018 e 2020, o relatório intitulado The Future of Jobs, desenvolve uma série de argumentos para legitimar seu conteúdo. Uma das formas apontadas por Fairclough (2003) de legitimação é a autorização, na qual a legitimação é promovida através da referência à autoridade da tradição, costume, leis e de pessoas as quais algum tipo

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de autoridade institucional é investida. A exemplo desse recurso, identificamos nos relatórios as passagens (1), (2) e (3): (1) Ele [Relatório O Futuro do Trabalho] explora o conhecimento daqueles que estão em melhor posição para observar a dinâmica das forças de trabalho – Diretores de Recursos Humanos e Executivos […]” 2 (WEF, 2016) (2) Com uma necessidade crescente de evidências tangíveis e informações confiáveis das linhas de frente dessa mudança, esta nova edição do Relatório Futuro dos Empregos mais uma vez explora o conhecimento coletivo daqueles que estão em melhor posição para observar a dinâmica das forças de trabalho – executivos, especialmente o chefe Diretores de Recursos Humanos […] 3 (WEF, 2018) (3) Apesar do alto grau de incerteza atualmente, o relatório usa uma combinação única de inteligência qualitativa e quantitativa para expandir a base de conhecimento sobre o futuro de empregos e habilidades. Ele agrega os pontos de vista dos líderes de negócios – executivos-chefes, diretores de estratégia e diretores de recursos humanos – nas linhas de frente da tomada de decisões sobre capital humano com os dados mais recentes de fontes públicas e privadas para criar um retrato claro da situação atual e das perspectivas futuras para empregos e habilidades 4 (WEF, 2020)

It [The Future of Jobs Report] taps into the knowledge of those who are best placed to observe the dynamics of workforces – Chief Human Resources and Strategy Officers

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With an increased need for tangible evidence and reliable information from the frontlines of this change, this new edition of the Future of Jobs Report once again taps into the collective knowledge of those who are best placed to observe the dynamics of workforces – executives, especially Chief Human Resources Officers,

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Despite the currently high degree of uncertainty, the report uses a unique combination of qualitative and quantitative intelligence to expand the knowledge base about the future of jobs and skills. It aggregates the views of business leaders – chief executives, chief strategy officers and chief human resources officers – on the frontlines of decision-making regarding human capital with the latest data from public and private sources to create a clearer picture of both the current situation and the future outlook for jobs and skills

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A expressão melhor posição denota um recurso linguístico para referenciar uma posição superior às demais na qual a observação tornase precisa e objetiva e, portanto, legítima. Outra estratégia de legitimação é a avaliação moral. Nessa forma de legitimação, explica Fairclough (2003), recorre-se a referência ao sistema de valores para reforçar os argumentos utilizados. Os trechos (4) e (5) evidenciam a adoção desse recurso: (4) A atual revolução tecnológica não precisa se tornar uma corrida entre humanos e máquinas, mas sim uma oportunidade para que o trabalho se torne verdadeiramente um canal através do qual as pessoas reconheçam seu pleno potencial 5 (WEF, 2016). (5) A inventividade humana está na raiz de toda prosperidade compartilhada. À medida que a fronteira entre as tarefas de trabalho executadas por humanos e aquelas executadas por máquinas e algoritmos se desloca, temos uma pequena janela de oportunidade para garantir que essas transformações levem a uma nova era de bom trabalho, bons empregos e melhoria da qualidade de vida para todos […] (WEF, 2020).

No excerto (4) a revolução tecnológica é apresentada ao leitor como um verdadeiro canal para o seu pleno desenvolvimento. Ou ainda, no trecho (5) a 4RI é uma oportunidade um mundo melhor. Essas estratégias de legitimação (pessoas críveis, julgamentos positivos) estabelecem as bases para o engajamento do leitor ao conteúdo que se apresenta. Outra característica marcante do texto é seu caráter profetizante. Ele é construído permanentemente fazendo referência ao tempo futuro, a começar pelo próprio título do relatório: O Futuro do Trabalho (The The current technological revolution need not become a race between humans and machines but rather an opportunity for work to truly become a channel through which people recognize their full potential.

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Future of Jobs). Aqui cabe chamar atenção para o emprego do artigo definido masculino “o” no início do título. Os artigos definidos determinam ou individualizam de forma precisa aquilo que estão designando. Com isso, o título O Futuro sugere que o relatório não está apresentando um amanhã possível, mas sim um amanhã específico e conhecido pelo Fórum Econômico Mundial. Outro aspecto importante de salientar sobre a natureza preditiva dos relatórios é a associação de uma dimensão sombria ao futuro que se aproxima, proporcionando um medo social (Dardot & Laval, 2016). Os trechos (6), (7), (8) e (9) exemplificam a criação de um cenário no qual o futuro previsto está cada vez mais próximo e as mudanças serão profundas, disruptivas e incertas: (6) Mudanças disruptivas nos modelos de negócios terão um impacto profundo no cenário do emprego nos próximos anos” 6 (WEF, 2016) (7) As transformações da força de trabalho não são mais um aspecto do futuro distante 7 (WEF, 2018) (8) […] a hora de moldar o futuro do trabalho é agora 8. (WEF, 2018) (9) Os bloqueios provocados pela pandemia do COVID-19 e a recessão global de 2020 criaram perspectivas altamente incertas para o mercado de trabalho e aceleraram a chegada do futuro do trabalho 9. (WEF, 2020)

Disruptive changes to business models will have a profound impact on the employment landscape over the coming years

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Workforce transformations are no longer an aspect of the distant future.

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[...] the time to shape the future of work is now.

The COVID-19 pandemic-induced lockdowns and related global recession of 2020 have created a highly uncertain outlook for the labour market and accelerated the arrival of the future of work (2020).

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Essa sensação de urgência que o texto promove com a chegada do futuro é associada a prescrição de formas para lidar com o novo cenário e evitar o pior. A análise da coesão textual, ou seja, a forma como um texto é organizado é uma dimensão útil para identificar sua tendência mais descritiva ou mais analítica. Essa análise pode ser realizada em dois níveis de exame do texto: numa instância mais localizada (frases e orações) e numa instância mais ampla, pela análise de relações estabelecidas entre partes mais longas do texto (Fairclough, 2003). Considerando as frases e orações, a modalidade é uma alternativa para análise. A modalidade pode ser vista em termos do comprometimento que o enunciante estabelece com aquilo que diz em seu texto. Isto significa que ao realizar escolhas lexicogramaticais possíveis dentro de um sistema linguístico, existe uma zona intermediária entre o extremo positivo e negativo, que constitui a modalidade. Fairclough (2003) classifica a modalidade em epistêmica e deôntica. Enquanto a modalidade epistêmica é usada para se referir sobre probabilidade (certo, provavelmente, eventualmente) a modalidade deôntica é usada para designar obrigatoriedade (isto é, isto deve, será, pode ser, não é) e pode ser pensada como um recurso de linguagem que aponta proposições sobre o mundo que são categoricamente afirmadas ou negadas e denotam, portanto, um alto grau de compromisso com o que é dito. O corpus analisado é marcado pelo recurso da modalidade deôntica, típica de um texto prescritivo, como ilustram os trechos (10) e (11): (10) Para evitar o pior cenário – mudanças tecnológicas acompanhadas por escassez de talentos, desemprego em massa e crescente desigualdade – será

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fundamental a requalificação e qualificação dos trabalhadores de hoje 10 (WEF, 2020). (11) Desenvolver e melhorar as competências e capacidades humanas através da educação, aprendizagem e trabalho significativo são os principais motores do sucesso econômico, do bem-estar individual e da coesão social 11 (WEF, 2020).

Nesses excertos os verbos em negrito denotam que o desenvolvimento de novas competências e habilidades da força de trabalho são apresentadas como a solução para lidar com as transformações que se avizinham, ou seja, a solução não está em negociação. Ainda na análise de frases e orações outro recurso é examinar as relações semânticas, que se referem a como o enunciante cria e expressa um relacionamento lógico entre as partes de um texto. As relações semânticas podem ser: causais (de razão, consequência ou propósito); condicionais; temporais; aditivas; elaborativas; de contrastes ou concessões. O trecho (12) exemplifica relações semânticas condicionais por meio da conjunção se: (12) Essas transformações, se gerenciadas com sabedoria, podem levar a uma nova era de bom trabalho, bons empregos e melhor qualidade de vida para todos, mas se forem mal gerenciadas, representam o risco de aumentar as lacunas de habilidades, maior desigualdade e polarização mais ampla 12 (WEF, 2018).

To prevent a worst-case scenario – technological change accompanied by talent shortages, mass unemployment and growing inequality – reskilling and upskilling of today’s workers will be critical

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11 Developing and enhancing human skills and capabilities through education, learning and meaningful work are key drivers of economic success, of individual well-being and societal cohesion.

These transformations, if managed wisely, could lead to a new age of good work, good jobs and improved quality of life for all, but if managed poorly, pose the risk of widening skills gaps, greater inequality and broader polarization.

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Além da análise das frases e orações, há também relações mais amplas que podem ser verificadas, entre trechos mais longos do texto, ou mesmo no texto todo, como a relação problema-solução (Fairclough, 2003). Na estrutura problema-solução um problema é detalhado e, em seguida, uma solução é apresentada, delineando possíveis caminhos para a ação. Essa estrutura é observada no corpus conforme ilustram os trechos (13), (14) e (15): (13) […] A questão, então, é como as empresas, o governo e os indivíduos irão reagir a esses desenvolvimentos. Para evitar o pior cenário – mudanças tecnológicas acompanhadas por escassez de talentos, desemprego em massa e crescente desigualdade – será fundamental a requalificação e qualificação dos trabalhadores de hoje 13 (WEF, 2020). (14) Ondas passadas de avanço tecnológico e mudanças demográficas levaram ao aumento da prosperidade, produtividade e criação de empregos. No entanto, isso não significa que essas transições estivessem livres de riscos ou dificuldades. Antecipar-se e preparar-se para a atual transição é, portanto, fundamental. […] o projeto Future of Jobs intenciona proporcionar especificidades sobre as mudanças disruptivas no panorama do emprego e das competências em indústrias e nas regiões - e estimular um pensamento mais profundo sobre como empresas e governos podem gerenciar essa mudança 14 (WEF, 2016). (15) [...] está claro que a onda de avanço tecnológico da Quarta Revolução Industrial está destinada a reduzir o número de trabalhadores necessários para determinadas tarefas de trabalho. Nossa análise conclui que o aumento da demanda por novas funções compensará a diminuição da demanda por To prevent a worst-case scenario – technological change accompanied by talent shortages, mass unemployment and growing inequality – reskilling and upskilling of today’s workers will be critical

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Past waves of technological advancement and demographic change have led to increased prosperity, productivity and job creation. This does not mean, however, that these transitions were free of risk or difficulty. Anticipating and preparing for the current transition is therefore critical.

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outros. No entanto, esses ganhos líquidos não são uma conclusão precipitada. Eles implicam transições difíceis para milhões de trabalhadores e a necessidade de investimento proativo no desenvolvimento de uma nova onda de aprendizes ágeis e talentos qualificados em todo o mundo (WEF, 2018).

Esses trechos exemplificam que a solução para lidar com os desafios da 4RI é qualificação da força de trabalho. Essa qualificação é ofertada nos relatórios como uma lista de competências que os trabalhadores devem desenvolver como forma de sobreviver a esse futuro que se aproxima, a saber: pensamento analítico e inovação; aprendizado contínuo e estratégia de aprendizado; solução de problemas complexos; pensamento crítico e análise; criatividade, originalidade e iniciativa; liderança e influência social; uso, monitoramento e controle de tecnologia; design e programação de tecnologia; resiliência, tolerância ao estresse e flexibilidade; raciocínio, resolução de problemas e ideação; inteligência emocional; solução de problemas e experiência do usuário; orientação de serviço; análise e avaliação de sistemas; persuasão e negociação (WEF, 2020, p. 36). A adesão a essas competências é a solução para resistir ao futuro que se desenha com o discurso da 4RI. Investir-se dessas competências é o mínimo necessário para demonstrar preparo para novo cenário, esforço supostamente recompensado pela promessa de sucesso e felicidade. Assim, conforme lembram Dardot e Laval (2016, p. 140) “o mercado é concebido, portanto, como um processo de autoformação do sujeito econômico, um processo subjetivo autoeducador e autodisciplinador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo apresentamos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise Crítica do Discurso, do linguista britânico Norman Fairclough, com o objetivo de evidenciar o potencial dessa abordagem para o campo dos estudos organizacionais (Salles & Dellagnelo, 2019). Para Fairclough (2001) a tarefa da Análise Crítica do Discurso é explorar, por meio da linguagem, conexões e causas que estão ocultas e lutar pela emancipação. Neste sentido, o caráter emancipatório da ACD fundamenta-se em sua proposta central de revelar o conteúdo ideológico de determinado discurso, pois ao se evidenciar conexões e causas ocultas na linguagem abre-se espaço para intervenção, ou seja, proporciona-se aos indivíduos em desvantagem recursos para mudança. Com base nesse propósito, a análise que empreendemos nesse capítulo, embora de caráter ilustrativo, contribui para evidenciar como o discurso da Quarta Revolução Industrial, capitaneado pelo Fórum Econômico Mundial, expressão institucionalizada do capitalismo global, age na constituição da identidade do trabalhador. Esse discurso, ao promover um senso de urgência e certo temor em relação ao futuro que se aproxima, oferta como tábua de salvação a qualificação para as competências do trabalhador do futuro. Essas competências, ao serem apresentadas como resultado “de conhecimento coletivo daqueles que estão em melhor posição”, são ofertadas como informação legitima e, com isso, deixam de ser questionadas. Os trabalhadores do futuro, ao incorporarem tais competências, encerram em si os interesses do capital. REFERÊNCIAS

Andrade, D. (2011). Empresa humana ou humano empresa? GV Executivo, 10(1), 38-41.

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9 PRÁTICAS DISCURSIVAS ORGANIZACIONAIS: UMA ANÁLISE DA “NOVA” PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO A PARTIR DO APARATO EPISTÊMICO DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO FAIRCLOUGHNIANA Fábio Melges 1 Georgiana Luna Batinga Elcio Gustavo Benini 3

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INTRODUÇÃO

O termo precário, no que tange às relações de trabalho, tem sido utilizado para descrever trabalhos inseguros e irregulares que incluem questões ligadas às horas trabalhadas ou à renda recebida pelos trabalhadores. Incluem-se também ao termo, o trabalho casual e contratos de curto prazo ou temporários, bem como trabalhadores por conta própria, subcontratados, imigrantes, imigrantes ilegais e trabalhadores à distância ou domésticos. De acordo com Quinlan (2012), é possível afirmar que o uso mais geral do termo “emprego precário” ocorreu em um período em que não havia legislações de proteção social. Como exemplo, destaca-se o uso de trabalho infantil no século 19 em países como a Inglaterra, contexto em que crianças exerciam diversas atividades cuja natureza do trabalho as expunham às intempéries e condições de trabalho adversas, além de interferir em seu processo educacional. 1

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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A esse respeito, segundo Chang (2012), no período entre o final do século XIX e início do século XX, quando as primeiras regulações de trabalho infantil foram implantadas nos EUA e na Europa, muitos defensores de um mercado livre de regulação argumentavam que tais legislações protetivas eram contrárias aos “princípios do livre mercado”. Em 1819, por exemplo, houve a tentativa de impor uma regulação do trabalho infantil – conhecida como “the Cotton Factories Regulation Act” – na Inglaterra. A proposta buscava banir o trabalho de crianças com menos de 9 anos (sic!). Todavia, crianças acima dessa idade poderiam trabalhar desde que houvesse uma restrição da jornada diária para 12 horas. A proposta causou alvoroço e controvérsia, os oponentes argumentavam que tal ato minava a santidade dos contratos e diziam que se as crianças querem e precisam trabalhar e os empresários querem contratá-las, pois então, qual o problema? Por isso, por diversas vezes a expressão trabalho precário foi utilizada para se referir aos trabalhadores de fábricas, cujas condições laborais eram associadas à a alta intensidade de trabalho, insegurança e danos à saúde do trabalhador. Logo, a precarização é epítome da relação de trabalho do modo de produção capitalista, em que as políticas de proteção aos mercados e à propriedade privada se sobrepõem às políticas sociais. Isso ocorre porque dentro do modo de produção capitalista, extrator de mais-valor, é necessário que haja, dialeticamente, uma constante afirmação da negação do trabalho, em que o valor deste – ele mesmo transubstanciado pela sua negação em mercadoria – é subsumido no valor de troca da mercadoria (Quinlan, 2012). Após o final da II Guerra Mundial os países capitalistas centrais promoveram uma reestruturação do capitalismo e um avanço da internacionalização

da

economia

com

base

no

binômio

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Taylorismo/Fordismo 4, que, conjuntamente com o plano Marshall, impulsionou a chamada “era de ouro do capitalismo”. A inversão de produção baseada no consumo para um cenário que induzia e criava demanda levou a uma explosão de produção e consumo sem precedentes na história da humanidade. Esse modelo atingiu seus limites por volta do fim da década de 1960, início da década de 1970. Período em que se iniciou uma crise estrutural de expansão do capital que resultou em um processo de demolição do chamado “Estado do bem-estar social”. Os novos arranjos sociais pós-crise da década de 1970 e os novos modos de produção pós-fordistas atuaram como forças endógenas e exógenas do sistema produtivo capitalista. O deslocamento da preocupação central do fordismo com a questão salarial (como forma de regulação social) se deslocou para as finanças e, destarte, novas formas institucionais surgiram para a coordenação dos novos arranjos produtivos e sociais (Harvey, 1992; 2014; Hobsbawm, 2015). No plano histórico-concreto de materialização das relações de poder e realização política, o processo de precarização do trabalho tem ocorrido em dimensões globais, acompanhado do enfraquecimento de instituições ligadas à proteção do trabalhador. Há evidências de que o enfraquecimento de sindicatos e outras instituições trabalhistas nas décadas de 1970 e 1980 tornaram o mercado de trabalho mais flexível e teve papel preponderante no aumento da desigualdade de renda e salários na Grã-Bretanha, por exemplo (Machin, 1997).

“O binômio taylorismo/fordismo, expressão dominante do sistema produtivo e de seu respectivo processo de trabalho, que vigorou na grande indústria, ao longo de praticamente todo o século XX, sobretudo a partir da segunda década, baseava-se na produção em massa de mercadorias, que se estruturava a partir de uma produção homogeneizada e enormemente verticalizada […] Esse padrão produtivo estruturou-se com base no processo parcelar e fragmentado” (Antunes, 2009a, p. 38-39).

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Não obstante que a precarização do trabalho não se configure como um fenômeno novo, há, entretanto, um conjunto de elementos que apontam para uma nova fase, historicamente recente e qualitativamente distinta, relacionada às alterações provocadas pelo paradigma produtivo pós-fordista e neoliberal, que solapou as bases do Estado do bem-estar social por meio da desregulação e flexibilização do mercado de trabalho, entre outras políticas, principalmente nos países capitalistas centrais (Antunes, 2018; Mészáros, 2007; Pochmann, 2009; Quinlan, 2012; Martins & Lima, 2016). No Brasil, os fenômenos da desregulação e da flexibilização têm enfraquecido as instituições relacionadas ao trabalho. Para impor a agenda desregulatória, os agentes políticos utilizam o discurso de um ciclo de austeridade, com a promessa de reestabelecer a confiança do mercado e a retomada do crescimento econômico e do emprego. Tal discurso, em constante (re) construção, sintetizado na promessa de “modernização” das relações de trabalho, está intrinsecamente ligado com os das reformas trabalhistas e previdenciárias que vêm sendo implementadas nos últimos anos. Nesse ponto, observamos que o discurso de modernização das relações de trabalho, também inclui, em sua composição, os verbetes empreendedorismo e meritocracia, palavras-chave do léxico neoliberal. A despeito das promessas efetuadas a respeito dos resultados milagrosos da reforma trabalhista, o que pode, de fato, ser observado, é que a reforma trabalhista brasileira tem sido sustentada no tripé i) flexibilização das relações de trabalho, ii) fragilização das instituições de proteção e iii) individualização dos riscos, objetivando o detrimento da proteção social dos trabalhadores (Costa, 2017; Krein & Colombi, 2019).

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Desse modo, observamos novas formas de esvaziamento da proteção do trabalho que foram institucionalizadas. Dentre elas citamos a Lei 13.467, em vigor desde 2017, que alterou regras concernentes às relações de trabalho – cujo discurso oficial foi o de simplificar as relações entre empregadores e trabalhadores – e institucionalizou formalmente e de maneira ampla, entre outras coisas, a flexibilização irrestrita do trabalho no Brasil (Brasil, 2017). A Lei 13.467/2017 alterou a regra do pagamento da contribuição obrigatória para optativa, estrangulando financeiramente os sindicatos. Frisa-se que a compulsoriedade datava de 1943 por meio da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que fez do imposto sindical o principal mecanismo de financiamento dos sindicatos brasileiros. Em seguida, foi editada a Medida Provisória 873/19, assinada pelo então presidente da república Jair Messias Bolsonaro, que forneceu um ingrediente adicional ao enfraquecimento da classe trabalhadora frente ao capital ao instituir o pagamento do imposto sindical mediante autorização do trabalhador por escrito (Agência Câmara de Notícias, 2019). Ademais, cabe destacar que há mais de 200 pontos referentes às alterações na legislação trabalhista – entre eles, o incentivo à remuneração variável, a despadronização da jornada de trabalho e novas formas de contratação como a jornada intermitente – que proporcionaram imensa liberdade para os empregadores em relação à forma e à demanda de utilização da força de trabalho, de acordo com as necessidades das empresas e do mercado (Krein; Colombi, 2019). Dessa forma, as reformas ocorridas no âmbito da legislação trabalhista trouxeram instabilidade e fragilidade para a ação coletiva, com a ameaça do desemprego no horizonte de trabalhos flexíveis e desestruturados, deixando os trabalhadores brasileiros expostos à precarização

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social. Contudo, a despeito do discurso da fatalidade econômica e da retomada do crescimento e de aumento de empregos, conforme demonstram Krein e Colombi (2019), o resultado das reformas tem sido um fracasso. Com efeito, o fracasso de políticas de austeridade não é um fenômeno especificamente nacional. Em um trabalho que analisou os determinantes e efeitos de curto prazo das reformas trabalhistas em 110 países no período de 2008 a 2014, Adascalitei e Morano (2016) evidenciaram que: a) a aprovação das reformas está positivamente associada com taxas de desemprego; b) há simultânea implementação de medidas fiscais; c) reformas nas legislações do trabalho foram as maiores intervenções implementadas pelos governos nos anos recentes para tentar combater os efeitos negativos da crise econômica e financeira global; e d) examinados os efeitos de curto prazo das reformas trabalhistas nas taxas de desemprego, os resultados revelaram que desregulamentações aumentaram o desemprego no curto prazo, quando feitas durante crises, e que não têm significância estatística quando são implementadas durante períodos de estabilidade ou de expansão econômica 5. Soma-se a esse cenário a crise sem precedentes criada pela pandemia da Covid-19. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que o equivalente a 345 milhões de empregos em período integral foram perdidos no terceiro quadrimestre de 2020. As mulheres e os jovens foram os que mais sofreram impactos referentes à contração econômica causada pela pandemia. Ademais, muitos trabalhadores passaram a trabalhar em suas casas – o que aprofundou a divisão de Com efeito, o boletim salariômetro de maio/21 da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE, 2021), informa que em abril deste ano 59,7% das negociações não repuseram a inflação medida pelo INPC – 6,9% – enquanto o reajuste mediano foi 6,0%. Informa também que depois da Reforma Trabalhista de 2017 nunca se negociou tanto quanto agora. 5

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trabalho por gênero, devido a fatores culturais, entre outros – fragilizando a relação de trabalho, visto que a maior parte dos países não possui um quadro legal adequado para lidar com esse tipo de relação trabalhista (ILO, 2020; 2021; OIT 2020). As mudanças ocorridas no mundo do trabalho e o novo processo de precarização oriundo das alterações dos arranjos produtivos revelam um processo histórico de enfraquecimento crescente da classe trabalhadora, assim como de perdas evidentes de seus direitos. Argumentam Antunes e Alves (2004) que entre os trabalhadores precarizados – trabalhadores desprovidos de direito e estabilidade – a alienação e o estranhamento assumem uma forma ainda mais intensificada e brutalizada, pautada pela perda da dimensão da humanidade dada pela separação da unidade que é encontrada na sociedade do trabalho. Dessa forma, entendemos como o discurso capitalista globalizante pode reproduzir os diversos modos do dizer e de fazer da precarização, e, ao reforçar esse modelo, o capital cria um sistema de controle sociometabólico dinâmico e destrutivo sob o disfarce de globalização. Sistema esse que elimina cruelmente a esmagadora maioria da humanidade do processo de trabalho (Meszàros, 2007). Por conseguinte, entendemos que os discursos organizacionais desempenham um relevante papel na construção social da realidade (Condor; Antaki, 1997) e não se limitam a apenas descrevê-la, mas também a criá-la (Potter; Wetherell, 1987; Grant et al., 1998). E isso ganha contornos ainda mais expressivos quando entendemos que o discurso é constituído socialmente ao mesmo tempo em que é socialmente constitutivo, pois produz objetos de conhecimento, identidades sociais e relações entre os sujeitos (Fairclough & Wodak, 1997).

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À vista disso, este ensaio tem a intenção de promover uma reflexão acerca das práticas discursivas organizacionais na (re) produção da “nova” precarização do trabalho a partir do aparato epistêmico da análise crítica do discurso. A concepção de discurso, de formação discursiva e de ordem do discurso em Foucault (2007) baseiam-se nos ideais marxistas que procuram apreender as transformações do capitalismo face à globalização e possuem características inter e transdisciplinares, comprometidas em analisar e des (re)velar a função do discurso na (re) produção da dominação social. Dessarte, elegemos a Análise Crítica do Discurso (ACD) de Norman Fairclough para a condução dessa reflexão, pois nela encontramos elementos que nos permitem compreender que os discursos colaboram na (re) construção das práticas organizacionais que exercem influências não só sobre discursos hegemônicos no contexto organizacional, mas também em relações de poder que não são consideradas pelas abordagens correntes. Assim, além de permitir enxergar fenômenos da linguagem na qualidade de dados disponíveis para análise de seu caráter ideológico no âmbito organizacional, o argumento central é que a teoria social faircloughiana do discurso pode ser explorada também em estudos sobre a construção da organização a partir de elementos da linguagem, a fim de superar limitações teóricas de estudos correntes que seguem restritos a abordagens que compreendem a organização enquanto sinônimo de discurso ou como formada a partir de processos de comunicação (Cooren & Taylor, 1997; Fairhurst & Putnam, 2004; Reed, 2000; Silva & Gonçalves, 2017).

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A (NOVA) PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: SEMÂNTICO OU A PRODUÇÃO DE SENTIDOS?

UM

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DESLOCAMENTO

De acordo com Martins e Lima (2016), o trabalho “precário” tem uma ligação inextrincável com o advento do capitalismo. O período de assalariamento e proletarização iniciado a partir do século XIX deu início a relações de trabalho marcadas pela exploração do trabalhador, jornadas intensas e ausência de direitos. Nesse período, o trabalho assalariado era anátema, símbolo de precariedade e identificação dos vulneráveis, aqueles que somente tinham a força de trabalho para vender, sem nenhuma tutela. Desse modo, é importante entender as transformações e os desdobramentos históricos no mundo do trabalhado, em especial o trabalho assalariado, como intrínsecas a uma situação de classe em condições desfavoráveis, desprezada, e em circunstâncias muitas vezes miseráveis. Ainda conforme Martins e Lima (2016), a palavra “precário” indica a qualidade daquilo que é frágil, inseguro, vulnerável, e que o assalariamento e a precariedade possuem uma história comum de longa data, em que a utilização do tempo emprego precário é possível de ter sua demarcação temporal identificada. Para Valenzuela (2015), a palavra “precário” deriva do latim precarĭus, que se refere a algo que se obtém por meio de pedido ou súplica, e, no direito romano, precarium designava um contrato em que o beneficiário arrendava um bem que podia ser reclamado de volta pelo dono a qualquer momento, portanto, um contrato com muito risco e insegurança para o arrendatário. O termo precário era utilizado regularmente nos documentos do parlamento inglês do início do século XIX até os anos 1930. O termo exprimia condição de insegurança no emprego. No século XX, alguns

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países buscaram impor limites à exploração do mundo do trabalho por meio de diversas proteções e leis sociais. O fim do século, contudo, viu renascer a discussão sobre precarização resultante da transformação tecnológica, da globalização neoliberal, da transferência de parte da atividade industrial via terceirização e subcontratação de mão de obra em países menos desenvolvidos, além da flexibilização – terceirização – dos contratos de trabalho. Há uma dimensão política, mediada por um discurso acerca de normas e valores relativos às relações de trabalho, gerados pela reestruturação produtiva ocorrida na segunda metade do século XX que contribuiu para a diminuição da capacidade de enfrentamento e contestação do trabalhador. Dessarte, é possível perceber que há dois momentos históricos em que se destaca a discussão sobre a precarização (Martins; Lima, 2016). Há uma relação direta entre precarização e condição de classe. Adverte Standing (2014) que embora a precariedade seja uma condição social, faz-se necessário nomear o sujeito que sofre a precarização, pois condição social não tem a capacidade de ação humana, condição social não age. Isso tem importantes desdobramentos políticos. Dessa forma, o autor cria o termo “precariado” para nomear o segmento da classe trabalhadora vítima do atual processo de precarização. De acordo com Valenzuela (2015), o neologismo precariado é uma conjunção das palavras precário e proletariado, aludindo a um estrato social particular que surgiu a partir dos regimes laborais desregulados e de trabalho flexível, como fenômeno consequente dos processos de globalização e neoliberalismo. Os termos trabalho precário, precariado e precarização ganharam maior notoriedade a partir dos anos 2000, quando o movimento EuroMayDay colocou o conceito de precariado na palestra política, tornando-

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o evidente em nível mundial e acendendo os debates no mundo acadêmico. Segundo Braga (2014), o precariado é formado pelo setor da classe trabalhadora pressionado pela ameaça de exclusão social e aumento da exploração econômica. De acordo com o autor, o precariado representa o trabalhador desqualificado ou semiqualificado submetido a altas taxas de rotatividade no trabalho, indivíduos na informalidade, trabalhadores sub-remunerados ou que estão inseridos em condições degradantes de trabalho. No período que compreende o fim da II Guerra Mundial até a década de 1970 houve o que Mészáros (2005) chamou de “consenso político pós-guerra”, um período de “euforia” chamado de “era de ouro do capitalismo” em que ocorreu uma espécie de “casamento entre liberalismo econômico e democracia social – ou, em termos estadunidenses, política do New Deal rooseveltiano –, com substanciais empréstimos teóricos da URSS, que fora pioneira na ideia de planejamento econômico” (Hobsbawm, 2015, p. 265). Esse consenso – marcado por políticas como a participação do Estado na economia, políticas sociais e de pleno emprego, entre outros, coordenadas nacional ou internacionalmente – atingiu seus limites a partir do final da década de 1960 e, principalmente, início da década de 1970, quando uma crise estrutural de expansão do capital se instalou. Tal crise teve como resultado o esvaziamento das políticas de conciliação de classe, além de fazer com que houvesse um solapamento das bases econômicas dos Estados por meio do redirecionamento e desterritorialização originados do processo chamado de “globalização da economia”, que tornou os EUA a grande e única força hegemônica no mundo (Hobsbawm, 2015).

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A partir desse momento histórico ocorreram inovações e reformas político-institucionais e estruturais-econômicas que causaram um profundo impacto no mundo do trabalho, resultando em novas formas de precarização. Logo após a “era de ouro”, uma crise estrutural do capital – crise de acumulação do binômio Taylorismo/Fordismo – dá início a uma fase qualitativamente diferente de exploração do trabalho, calcada em novos arranjos produtivos e novas tecnologias (Antunes, 2018). A reestruturação produtiva iniciada nesse período é marcada por novas formas de controlar e organizar o trabalho, por meio do uso de novas tecnologias e modos de gestão. Para tanto, esse processo também demandava alterações profundas nas formas de organização social, ou ainda, em todo campo chamado de superestrutura, que compreende o Estado e suas instituições política e ideológica (Antunes, 2009a; Mészáros, 2007; Druck, 2011; Faria & Kremer, 2004; D’Arisbo et al., 2018). Com efeito, foi necessário, para que o capital pudesse continuar a se expandir, o enfraquecimento da proteção do trabalho mediante o esvaziamento dos Estados nacionais e a desregulação das relações trabalhistas, via superação de situações de rigidez institucionais, resultando em fragmentação da classe trabalhadora, aumento da informalidade e da desigualdade social. Essas alterações nas relações de trabalho – cujo principal elemento é a flexibilização, caracterizada por vínculos frágeis como o trabalho temporário, a terceirização, a suspensão temporária do contrato, o trabalho em tempo parcial, entre outros – resultaram em um quadro geral de precarização das condições de trabalho e da saúde do trabalhador (Antunes, 2009a; Mészáros, 2007; Druck, 2011; Faria & Kremer, 2004; D’Arisbo et al., 2018). Nesse sentido, Alves (2000) argumenta que a globalização do capital enfraqueceu o mundo do trabalho por meio de uma aceleração da lei

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geral de acumulação. Argumenta Wolff (2014) que a globalização da economia caminha paralelamente com políticas instrumentalizadas para que a classe trabalhadora sustente a acumulação capitalista, reforçando o processo de precarização do trabalho. Por seu turno, Mészáros (2007) afirma que mantendo seu impulso inexorável de auto expansão, o capital cria um sistema de controle sociometabólico dinâmico e destrutivo, sob o disfarce de globalização, que elimina cruelmente a esmagadora maioria da humanidade do processo de trabalho. Dessa forma, o conteúdo da nova precarização do trabalho é dado pela insegurança e fragmentação dos trabalhadores, além da destituição do conteúdo social do trabalho. Essa nova precarização é constituída dos seguintes elementos: a) vulnerabilidade das formas de inserção e desigualdades sociais; b) intensificação do trabalho e terceirização; c) insegurança e saúde no trabalho; d) perda das identidades individual e coletiva; e) fragilização da organização dos trabalhadores; e f) a condenação e o descarte do Direito do Trabalho (Druck, 2011). Outrossim, de acordo com Antunes (2018, p. 76), “há uma nova era de precarização do trabalho, em que é possível destacar”: a) a erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e sua substituição pelas diversas formas de trabalho atípico, precarizado e “voluntário”; b) a criação de “falsas” cooperativas, visando dilapidar ainda mais as condições de remuneração dos trabalhadores, solapando os seus direitos e aumentando os níveis de exploração de sua força de trabalho; c) o “empreendedorismo”, que cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado, fazendo proliferar as distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa; e d) a degradação ainda mais intensa do trabalho imigrante em escala global.

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Essa nova forma precarizante das relações de trabalho, a precarização neoliberal, produz efeitos e cria novas formas de exploração do trabalho, dentre os quais podemos destacar: a) a plataformização do trabalho: de acordo com André, Silva e Nascimento (2019, p. 15), o modelo de “trabalho em plataforma online foi criado para a ampliação do lucro do capital”. Portanto, não se trata de uma inovação tecnológica “inocente” que veio “naturalmente” para a resolução de “nossos problemas”, pois é parte de uma estratégia de acumulação do capital. Nesse modelo, o trabalhador não possui nenhum vínculo empregatício com a empresa e trabalha na condição de profissional autônomo, assumindo todos os riscos envolvidos na relação de oferta do serviço, recaindo sobre ele a totalidade dos meios de produção necessários à execução e responsabilidade integral pela atividade, atuando sem a proteção legal de relação trabalhista (André, Silva & Nascimento, 2019). A partir desse conceito, surgiu a expressão “uberização do trabalho” ou “plataformização do trabalho”, que representa, na verdade, um modo particular de acumulação capitalista, ao produzir uma nova forma de mediação do trabalhador que assume a responsabilidade pelos principais meios de produção da atividade produtiva (Franco & Ferraz, 2019). b) a mercantilização da educação: processo que transforma a universidade em empresa e a educação em um produto a ser vendido e consumido, alterando o seu objetivo principal para a simples obtenção financeira aos seus investidores (Ferreira, Nascimento & Salvá, 2014). Esse é um processo de massificação da prestação de serviço de educação de ensino superior, apoiado na flexibilização das leis de regulação deste setor e, consequentemente, da entrada crescente e competitiva da iniciativa privada. Recentemente o setor tem passado por uma reestruturação produtiva que pode ser categorizada em uma “financeirização” moldada pela ideologia neoliberal (Nogueira & Oliveira, 2015). E, nesse contexto, a educação como direito público, gratuito e garantido em lei, perde espaço para a educação privada, sendo reduzida a um produto a ser comercializado, com discursos públicos e políticos de naturalização dessa transformação. Criou-se, assim, um

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mercado globalizado cada vez mais oligopolizado e atuante (dependente) nas principais bolsas de valores do mundo, em que a última preocupação dessas organizações é a qualidade do principal serviço prestado: a educação. c) o fenômeno da pejotização – outra manifestação da precarização das relações de trabalho sustenta-se no discurso da terceirização irrestrita e da gestão de si, intensificando o movimento de pejotização que acompanha a flexibilidade e a volatidade. A pejotização se caracteriza pelo processo de prestação de serviços do trabalhador por meio da criação de uma empresa – pessoa jurídica (PJ) – em substituição ao regime de CLT. Nesse novo regime o trabalhador atua como uma empresa, emitindo nota fiscal para receber seus honorários, sendo obrigado a dispensar todos os direitos trabalhistas abrigados na relação de emprego. Essa prática tem ocorrido irrestritamente em diversos setores, mas principalmente na educação, com os docentes, e na saúde, com os profissionais da saúde. Isso tem fortalecido o ideal neoliberal, que se encontra escondido por trás da permissão legal da terceirização e no discurso da gestão de si (Druck, 2016; Gemelli, Closs & Fraga, 2020). d) a migração do trabalho - o fenômeno da migração pode ser definido pela mudança permanente ou semipermanente de residência e envolve múltiplos movimentos – contínuos, intermitentes ou circulares – que implicam na mobilidade de mão de obra, no caso da migração laboral. Além de uma busca pela melhoria do padrão de vida, seja financeiramente ou em busca de um lugar seguro, no caso de refugiados, a migração laboral pode ocorrer como forma de compensar o envelhecimento das populações e a baixa taxa de natalidade (Comin & Pauli, 2018). Embora o trabalho precário esteja presente para todos os trabalhadores e em diferentes situações, aquele enfrentado pelos trabalhadores migrantes parece possuir questões ainda mais complexas. Os efeitos da globalização nos mercados e na competitividade têm mostrado mudanças nos fluxos migratórios em diferentes países e, nesse processo, os trabalhadores migrantes se tornam vítimas de ambientes de trabalho precários de forma ampla, centrado na baixa remuneração, violação de direitos, ausência de legislações trabalhistas e práticas ilegais (Matias, Silva & Farago, 2020).

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É possível destacar, portanto, que há condições objetivas que podem ser observadas no que tange à nova precarização do trabalho, cujo relevo pode ser verificado no processo de corrosão do mundo do trabalho. A força motora desse processo está na terceirização das atividades da empresa, impactando em salários menores, maiores jornadas de trabalho e enfraquecimento ou anulação da legislação social que protege o trabalho, sendo essa a principal ferramenta social, política e econômica no processo de precarização. A terceirização é também uma forma utilizada para legitimar e legalizar a exploração e predação da força de trabalho, predação que é o centro da hegemonia do capital financeiro (Druck, 2011; Antunes, 2009a; 2009b; 2018). Nesse sentido, Mészáros (2007) denomina o processo de precarização em curso como “precarização flexível”, o qual também podemos chamar de precarização neoliberal ou de nova precarização do trabalho. Essa discussão fica ainda mais evidente quando pensamos que a desregulação do Estado – ou seja, o enfraquecimento de seu papel na falta de proteção social ao seu povo – e a desregulamentação dos mercados formam um fio condutor que é indissociável e articula a nova precarização do trabalho em suas diversas formas (desemprego, desregulação, flexibilização, adoecimento, perda salarial, fragilidade dos sindicatos). Mais do que um “precariado”, o que temos é um enorme “exército de reserva” – conceito elaborado por Marx e Engels – cuja função política é criar a divisão entre os próprios trabalhadores, criando concorrência entre eles para garantir a subsunção do trabalho ao capital. Assim se forma o consenso, na violência física, material (econômica) ou simbólica, fazendo os trabalhadores acreditarem que as mudanças são inexoráveis e fruto de um “novo espírito do capitalismo” (Druck, 2011).

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A EPISTÉME DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E O (NOVO) CAPITALISMO

A ACD é uma perspectiva teórica sobre a língua com ênfase em um objeto particular que é o papel diferenciado da linguagem no novo capitalismo, constituindo, dessa forma, um vasto objeto de pesquisa (Fairclough, 2012). De acordo com Misoczky (2005), os estudos críticos de discurso estão vinculados a um projeto amplo de crítica do momento contemporâneo do capitalismo, assim, “a abordagem crítica do discurso se caracteriza pela consideração das relações entre linguagem e sociedade, de modo a compreender as relações entre discurso, poder, dominação e desigualdades sociais”. Portanto, a ACD é um referencial teórico-metodológico diretamente relacionado com a crítica ao (novo) capitalismo e à sua ideologia, pois, conforme Fairclough (1999), as representações e construções particulares do mundo são instrumentos (parcialmente discursivos) de reprodução da dominação – ou de rupturas desta – que demandam pesquisas e críticas. Conforme Misoczky (2005, p. 128), “a linguagem e outros artefatos de discurso estão intrinsecamente ligados ao capitalismo tardio, sendo mais relevantes que nas etapas anteriores”. Dessa maneira, segundo Fairclough e Melo (2012), a própria ideia da economia baseada no conhecimento e na sociedade da informação induz à suposição de que conhecimentos mais ou menos valiosos são produzidos, trocados e consumidos como discursos. O que nos permite dizer que esse ciclo envolve, por um lado, a operacionalização de conhecimentos (discursos) como práticas sociais, como modos de agir e interagir; e, por outro, a inculcação de discursos como modos de produzir sentido sobre si mesmo e sobre o mundo, isto é, como modos de construção de identidades.

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No entendimento de Fairclough (2010, p. 230), há uma linguagem do novo capitalismo – “novos modos de coordenação econômica e crescente subsunção das relações extraeconômicas à lógica da acumulação de capital” – que colonizou as instituições. Todavia, tal processo ocorre de forma dialética, em que o discurso é recebido, apropriado e recontextualizado, podendo abrir brechas para a transformação das relações sociais. Desse modo, apoiando-se em Bourdieu (1979, 1998a), Fairclough entende que há novas relações nas redes de práticas, tanto nos campos econômicos quanto nos domínios não-econômicos em que estes estão sendo colonizados massivamente por aqueles. Portanto, na busca de concretização do projeto neoliberal, os discursos são parte significativa dos recursos empregados para esse fim (Fairclough & Melo, 2012). De acordo com Fairclough (2010), o modo de produção capitalista possui, além de sua tendência às crises, uma capacidade de renovação periódica de sua base de expansão econômica. Para tanto, opera rearticulando e reescalonando as relações entre as esferas econômica, política e social. É justamente esta renovação que está ocorrendo após a crise de acumulação do período pós-guerra, fundada no Fordismo Atlântico. O capitalismo vem sendo reestruturado e reescalonado com base em novas tecnologias importantes, em novos modos de coordenação econômica e na crescente subsunção das relações extraeconômicas à lógica da acumulação de capital (Fairclough, 2010, p. 230).

Dessa forma: Reescalonar pressupõe novas relações estabelecidas entre as diferentes escalas da vida social e entre as redes de práticas sociais nas diferentes

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escalas: global, regional, nacional e local. Desse ponto de vista, o fenômeno largamente conhecido como globalização não é simplesmente um movimento das organizações e processos econômicos de uma escala essencialmente nacional para uma essencialmente global: a globalização tem uma longa história e o que de fato está em jogo são as novas relações entre as escalas. Língua e semiose têm uma considerável importância na reestruturação e reescalonamento do capitalismo (Fairclough & Melo, 2012, p. 315).

Por conseguinte, Toda aquela ideia de uma economia baseada em conhecimento, na qual conhecimento e informação têm um novo e decisivo significado, é fruto de uma economia baseada no discurso: os conhecimentos são produzidos, circulam e são consumidos como discursos, os quais são operados como novas formas de agir e de interagir (inclusive como novos gêneros) e inculcados como novas formas de ser, novas identidades (inclusive com novos estilos). Um exemplo disso seria o conhecimento das novas maneiras de administrar organizações. A reestruturação e o reescalonamento do capitalismo é em parte um processo semiótico – a reestruturação e reescalonamento das ordens do discurso, envolvendo novas relações estruturais e escalares entre os gêneros, discursos e estilos (Fairclough & Melo, 2012, p. 315).

Esse processo de rearranjo produtivo e subsunção crescente das relações extraeconômicas à lógica de acumulação de capital necessita de discursos legitimadores. Esses discursos possuem uma expressão envernizada conhecida como “economia da informação, economia dirigida pelo conhecimento, globalização, crescimento de economias regionais”, ou ainda, “cidades empresariais, economia em rede, alianças estratégicas, governo sem governança, capitalismo turbo, compressão de tempoespaço, flexibilidade, economia de aprendizagem e cultura empresarial” (Fairclough, 2010, p. 230).

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A realização da reestruturação do novo capitalismo passa também pela linguagem. Bourdieu (1997) adverte que há um discurso de “fatalismo econômico” que busca disfarçar vontades políticas como algo inexorável e incontornável. Cientes dessa advertência, Fairclough e Melo (2012, p. 315) asseveram que “um aspecto particularmente importante do discurso neoliberal é o da representação da mudança na economia global difundida nas sociedades contemporâneas como inevitável e irresistível, sendo necessário apenas à adaptação e a convivência com ela”. Nesse sentido, “os discursos neoliberais são uma parte significativa dos recursos empregados na busca da concretização do projeto neoliberal”, projeto este que visa remover todo obstáculo à expansão do capital “tais como Estados com fortes programas de assistência social” (Fairclough & Melo, 2012, p. 315). Destarte, argumenta Fisher (2009), que há uma “ontologia empresarial” em que a lógica neoliberal tem como demanda a “alta performance” do sujeito de desempenho, em um discurso que defende que todas as partes da sociedade, incluindo saúde e educação, devem ser administradas como uma empresa, buscando naturalizar tal circunstância histórica como um “valor”, algo além de um “fato”. Dessa forma, parece ser natural a ideia de que tudo na sociedade “deve” ser administrado como em uma empresa. Assevera Fairclough (2010, p. 230) que essa colonização de todas as esferas sociais é assumida por governos de várias orientações políticas e em diferentes escalas, como “um simples fato da vida (embora um ‘fato’ produzido em parte por acordos intergovernamentais) que todos devam se curvar à lógica emergente de uma economia do conhecimento globalizada”. Nesse sentido, Fischer (2009), amparado em Harvey (2014),

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argumenta que o neoliberalismo é um projeto político que tem como objetivo a reafirmação do poder de classe. Assim, o novo capitalismo, sustentado no discurso neoliberal, assume uma lógica institucional e operacional. Trata-se de um projeto político que busca impor um capitalismo em nível global sem restrições, produzindo profundas mudanças nas relações socioeconômicas. Dessa forma: O domínio das empresas multinacionais estadunidenses e o Estado imperialista daquele país – no horizonte de interesses financeiros e industriais em toda parte e com o apoio do Estado Britânico – posicionaram o neoliberalismo no topo da agenda global. O neoliberalismo foi imposto às economias pós-socialistas como (supostamente) a melhor alternativa de transformação rápida do sistema, renovação econômica e reintegração na economia global […]. Com raras, mas importantes exceções, o neoliberalismo passou a dominar a cena política e tem resultado na desorientação e no desgaste das forças econômicas, políticas e sociais comprometidas com alternativas radicais. Tem contribuído, assim, para o fechamento do debate público e para o enfraquecimento da democracia (Fairclough, 2010, p. 230).

De acordo com Fairclough e Melo (2012), a ordem emergente do novo capitalismo é a ordem neoliberal globalizada. A ordem social é um inter-relacionamento de práticas sociais, ou mais especificamente, “a ordem social de educação de uma sociedade específica em um certo período de tempo”. Essa ordem social neoliberal global possui uma configuração específica que ordena a educação no tempo e no espaço de uma sociedade. Assim, uma “ordem de discurso é a estruturação social da diferença semiótica: um ordenamento particular das relações entre diferentes formas de produzir sentidos, como discurso, gêneros e estilos diferentes”.

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Essa ordem tem como “um dos seus aspectos a dominância: a existência de formas dominantes ou centrais, enquanto outras se opõem a elas, sendo marginais ou ‘alternativas’” (Fairclough, 2010, p. 227). A esse respeito, segundo Fairclough e Melo (2012, p. 310): Por exemplo, pode haver uma maneira dominante de conduzir uma consulta médica na Inglaterra. No entanto, há outras maneiras que podem ser adotadas ou desenvolvidas em maior ou menor proporção, em oposição àquela dominante.

A crítica da ordem do discurso está estreitamente ligada ao desvelamento da ideologia neoliberal presente nas estruturas de poder. Nesse sentido, o referencial teórico-metodológico da ACD relaciona-se diretamente com a crítica ao novo capitalismo e à sua ideologia, considerando que os instrumentos discursivos são veículos de reprodução da estrutura de dominação e, portanto, necessitam de pesquisas críticas (Fairclough, 1999). Ademais, Fairclough (2010) argumenta que os discursos podem ser utilizados como imaginários que inculcam novas identidades, novos modos de ser. Cada formação econômica e social demanda um tipo de sujeito. No taylorismo, por exemplo, o sistema de gerenciamento de produção demanda formas rígidas de identidade de trabalhadores. Assim, inculcar discurso visando “mudar o sujeito”, para Fairclough (2010, p. 228), inculcar “significa fazer com que as pessoas assumam discursos, posicionando-se dentro deles, agindo, pensando, falando e se vendo nos termos dos novos discursos”. O conteúdo do discurso neoliberal pode ser verificado, por exemplo, na peremptória declaração de Margareth Thatcher: “não há alternativa” – “there is no alternative”, em inglês, que gerou a sigla TINA, sigla essa que

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é utilizada de forma ampla desde então. Tal discurso evidencia o “capitalismo global na sua forma neoliberal geralmente construído como externo, imutável e inquestionável, um simples fato da vida com que devemos nos conformar” (Fairclough & Melo, 2012, p. 317). Dessa maneira, temos que o novo capitalismo é uma rede de práticas novas que se distingue pelo modo como a língua – seus gêneros, discursos e estilos – atua dentro dessa rede (Fairclough & Melo, 2012, pp. 315-316): a) Os gêneros reguladores da ação e da interação nas organizações (o tipo de linguagem que constitui o trabalho em equipe, a troca de ideias, as parcerias ou as avaliações); b) Os discursos da economia neoliberal (inclusive as representações da mudança) disseminados e impostos internacionalmente por organizações como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial de Comércio (com palavras-chave como “livre comércio”, “transparência”, “flexibilidade”, “qualidade”); c) E os estilos de figuras-chave que devem assumir na nova ordem, empresários, gerentes, líderes políticos, entre outros.

Ademais, Fairclough e Melo (2012, p. 316) ressaltam que deve ser considerado como “esses gêneros, discursos e estilos são disseminados internacionalmente, reescalonados e reestruturados em meio às áreas da vida social. O discurso e o gênero de negociação, por exemplo, fluem na vida familiar, militar, política e econômica”. Aduz Fairclough (2010) que o novo capitalismo é, uma ordem socioeconômica que também é “dirigida pelo discurso”, tendo a linguagem um papel muito significativo no aprofundamento da exploração de classe. Dessa forma, a análise de discurso tem papel fundamental de crítica e pode trazer grandes contribuições para pesquisas de cunho emancipatório. Nesse sentido, a importância desse papel:

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não passou despercebida por pesquisadores sociais. Bourdieu e Wacquant, por exemplo, apontam para uma “nova vulgata planetária” que caracterizam como um vocabulário (globalização, flexibilidade, governança, empregabilidade, exclusão, etc.) “dotado do poder performativo de forjar as realidades que afirma descrever”. No caso, o projeto político neoliberal de remover os obstáculos à nova ordem econômica é orientado/dirigido pelo discurso (Fairclough, 2010, p. 231).

No entanto, prossegue Fairclough (2010, p. 231) que a abordagem dos autores citados a respeito do discurso neoliberal e sua efetividade extrapola a limitação dos métodos de pesquisa sociológica daqueles autores: Não basta caracterizar a “nova vulgata planetária” como uma lista de palavras, como vocabulário. É preciso analisar textos e interações para mostrar como são produzidos alguns dos efeitos que os autores identificam (como fazer com que as transformações socioeconômicas do novo capitalismo e as políticas governamentais para facilitá-las pareçam inevitáveis; representar desejos como fatos, representar imaginários de interesses políticos como o modo pelo qual o mundo realmente é) […] Não são apenas análises de textos e interações que os analistas de discurso podem trazer para a pesquisa social no novo capitalismo, mas a teorização da dialética de discurso.

Como exemplo, Fairclough (2010, p. 232) cita a disseminação do discurso de gerenciamento que colonizou (apropriação dialética, pois envolve diferentes formas de como tal discurso é recebido, apropriado e recontextualizado, tornado impossível prever os resultados de tal processo) as instituições públicas e as universidades: “o reescalonamento das ordens de discurso diz respeito às mudanças na constituição de redes de elementos discursivos de práticas sociais em níveis diferentes das organizações: globais, regionais, nacionais e locais”. A título de exemplo:

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cabe destacar a permeabilidade aumentada e acelerada de práticas sociais locais (governo, pequenas indústrias e mídia) aos discursos disseminados para todo o mundo por organizações como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Incorporando a abordagem da transformação do capitalismo, feita por Jessop, no quadro da teoria dialética do discurso, temse um referencial teórico para a pesquisa do poder de penetração global da “nova vulgata planetária” a que se referem Bourdieu e Wacquant, bem como para a compreensão dos seus limites (Fairclough, 2010, p. 232).

Por fim, argumenta Fairclough (2010) que a utilização da linguagem nas mudanças socioeconômicas contemporâneas tem uma importância qualitativamente diferente das transformações anteriores no capitalismo. Dessa forma, há uma necessidade urgente de estudos sobre linguagem, de análise de discurso, em que a contribuição dos analistas não fique circunscrita às análises de textos, assumindo uma dialética de discurso para superar as limitações teórico-metodológicas do campo. PRÁTICAS (DISCURSIVAS) ORGANIZACIONAIS E A ACD

A ACD é uma perspectiva teórico-metodológica de análise crítica das relações entre poder, sociedade, linguagem e ideologia que oferece subsídios para estudos dos fenômenos sociais organizacionais e interorganizacionais. Nessa perspectiva, o discurso é socialmente condicionado e constituído, ao mesmo tempo em que é constitutivo dessa sociedade (Misoczky, 2005; Onuma, Zwick & Brito, 2015). Esclarece Van Dijk (2001) que a ACD é orgulhosa de ser tendenciosa e que passa ao largo de se arvorar como ciência neutra, pois defende abertamente uma posição social e política, a saber: a solidariedade com os oprimidos na luta contra a desigualdade social, em uma atitude de

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dissenso e oposição contra os que buscam estabelecer, por meio do texto e da conversação, a confirmação ou a legitimação de seu abuso de poder. Para Van Dijk (2001), a ACD possui uma ética explícita que está especialmente interessada na dimensão discursiva dos abusos do poder, como, por exemplo, em termos de violação de direitos sociais e humanos, sejam formulados no nível macro por grupos ou nações, seja no nível micro. Assim, a ACD busca demonstrar as histórias enviesadas de jornais – ou outras formas de mídia – em relação a grupos minoritários, assim como busca também demonstrar e explicitar o jogo de legisladores que buscam engendrar “políticas neoliberais que fazem com que os ricos fiquem mais ricos e os pobres mais pobres” (Van Dijk, 2001, p. 379). A ACD é uma abordagem que se coloca como uma perspectiva teórico-metodológica que procurar analisar criticamente a relação entre linguagem, poder, ideologia e sociedade, não sendo apenas, portanto, uma metodologia (Onuma, Zwick, Brito, 2015). Desse modo, Van Dijk (2001, p. 353) afirma que a ACD é uma perspectiva – crítica – de produção do conhecimento: análise do discurso “com uma atitude”. Foca-se em problemas sociais, em especial no papel do discurso na produção e reprodução do abuso do poder ou da dominação. Sempre que possível, ocupa-se dessas questões a partir de uma perspectiva coerente com os melhores interesses dos grupos sociais dominados.

Em uma perspectiva ampla, o discurso é um evento comunicativo que inclui texto, fala, interações conversacionais, expressões faciais, corporais, imagens ou qualquer outra semiose, o triângulo discursocognição-sociedade é um fenômeno ao mesmo tempo cognitivo e social (Van Dijk, 2001). É necessário assumir, também, que “grande parte do que se passa na organização é um tipo de discurso” (Van Dijk, 2016, p.

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710). Dessa forma, a ACD pode contribuir para a compreensão de como o discurso científico é utilizado para legitimar a ideologia neoliberal. O lócus par excellence das práticas e processos de precarização são as organizações e, consequentemente, a legitimação de tais processos passam pelo campo de estudo da Administração. Tragtenberg (1971) advoga que há no campo dos estudos administrativos teorias cuja finalidade é a de legitimar as relações de classe, utilizando conceitos como “eficiência” e “controle” para mascarar suas reais intenções. Outrossim, Veblen (1965), Guerreiro Ramos (1989) e Motta (1992) advertem que os aparelhos ideológicos que submetem o trabalhador à ideologia dominante têm como lócus o campo da administração. Dessa forma, o processo de precarização neoliberal passa pelo discurso, incluindo o científico. Com efeito, de acordo com Bourdieu (1998), há um discurso que busca mascarar o processo de degradação das condições sociais e de trabalho como uma “fatalidade econômica”. No sentido de tal fatalidade, o processo de degradação da relação de trabalho necessita de sustentação em teorias econômicas. Nestas, o trabalho não é objeto de análise e a precarização do trabalho esconde sua substância assumindo a forma aparente de “contratos”. Destarte, os novos processos de trabalho, apoiados na flexibilidade, em novos setores de produção, novos serviços financeiros, novos mercados e inovação comercial e tecnológica, abriram espaço para novas formas de pensamento econômico (Hobsbawm, 2015; Harvey, 1992). Esses novos mercados flexíveis tornaram comum a subcontratação de empresas. Surgiram novas técnicas e, por conseguinte, novos arranjos organizacionais e institucionais que, por sua vez, trouxeram dificuldade para explicações teóricas no campo da economia. As políticas keynesianas e as teorias de equilíbrio neoclássica estavam em xeque.

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Nessa conjuntura, era necessária uma teoria que desse lastro às novas formas de relação capital-trabalho. A descentralização em formas contratuais desafiava as lentes ortodoxas liberais e demonstrava que a teoria econômica ortodoxa possuía brechas. Surgia assim o que Bourdieu (1998) denominou de “empresa flexível” e tal evento criou a necessidade de remendos na tessitura da ideologia liberal. Posicionado nesse cenário, Williamson defendeu que era necessário um sistema de funcionamento legal baseado em acordos com leis contratuais, ao invés de apenas uma lei geral de contratos, e advogava que uma nova forma teórica era necessária à economia. Dessa forma, os anos 1970 abriram espaço para a Economia de Custos de Transação (ECT), cujo foco de análise é a governança das relações contratuais (Williamson, 1988; 2000). Nesse sentido, cabe destacar que Kleinberg-Levin (2005), parafraseando Adam Smith, aponta para a invisibilidade da mão do trabalhador em algumas discussões teóricas. Com efeito, no âmbito da Economia dos Custos de Transação (ECT) – que, por sua vez é parte de uma área teórica ampla, na Nova Economia Institucional (NEI) – a empresa, campo de forças e de conflitos da relação capital versus trabalho, é vista como um arranjo institucional – nexo de contratos – ou uma administradora de transações (Williamson, 2002; Zylbersztajn, 2005), em que o local da troca de mercadorias, o mercado, é anterior 6 à própria mercadoria, livre de início e de qualquer formação histórica. Entendemos que há uma incompletude no tratamento do fenômeno da precarização do trabalho em alguns campos de estudo, bem como do papel de discursos teóricos – a exemplo da ECT e das

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“No início era o mercado” (Williamson, 1975, p. 20).

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abordagens funcionalistas-positivistas no campo da administração 7 – de legitimação de decisões políticas defendidas como fenômenos incontornáveis, construindo consenso, ou seja, campo simbólico comum, as “regras do jogo” 8, para o processo de precarização do trabalho. Com efeito, há certa visão da terceirização do trabalho em manuais de administração que a defendem como o que há de mais moderno em termos de prática de administração. Tal visão fornece uma agenda positiva ao processo de degradação do trabalho, visto como algo “eficiente” (Costa, 2017). Dessa forma, entendendo que o processo de precarização também passa pelo discurso, fica evidenciado o potencial de contribuição da ACD na exposição dos mecanismos de produção e reprodução de práticas exploratórias. Há várias lacunas a serem consideradas no que diz respeito a trabalhos que contemplem a ACD e que abordem a ontologia das organizações em certas escolas teóricas do campo econômico que defendem a universalidade da instituição “contrato” em detrimento de instituições sociais, e que veem a economia como um processo a-histórico que opera fora e acima da sociedade. Entendemos que a ACD pode fornecer aportes teóricos importantes que demonstrem as “afinidades eletivas” entre a ECT – que tem se consolidado como arcabouço teórico nas pesquisas nacionais –, e a ordem neoliberal do discurso. Tal entendimento pode ser evidenciado, por

No campo dos estudos organizacionais, campo este disputado pelas abordagens neoinstitucionais, destaca-se a crítica pioneira feita por Guerreiro Ramos aos pressupostos iluminista e contratualista das organizações. Sua crítica à racionalidade instrumental e ao indivíduo hobbesiano têm sustentado um conjunto considerável de pesquisa sobre organizações e racionalidades substantivas, das quais se destacam o objeto economia solidária e gestão social (Paula, 2008).

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No campo teórico do neoinstitucionalismo de vertente econômica, que abrange a ECT, instituições são, de acordo com North (1991), restrições concebidas humanamente que visam estruturar as relações políticas e socioeconômicas, são as regras do jogo.

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exemplo, na defesa que fazem Rezende e Zylbersztajn (2012) de contratos privados da agricultura brasileira em relação à função social do contrato, presente no Código Civil do Brasil, que, segundo os autores, trazem instabilidade econômica e aumento nos custos de transação, bem como a adoção de sanções econômicas. Igualmente nos cabe o questionamento: em que sentido os discursos de lideranças empresariais, midiáticos ou de manuais de Administração (re) produzem conteúdos hegemônicos que relacionem a empresa flexível – que segundo Bourdieu (1998b) é o sonho patronal, um arcaísmo travestido de modernidade que busca instituir a regularidade das desregulações –, o processo de precarização de trabalho, e a defesa da ordem neoliberal? Ou ainda como o discurso científico pode ser utilizado como substrato para uma agenda positiva das terceirizações? Em tal sentido, Costa (2017) fornece exemplos de manuais de Administração e de importantes formadores de opinião na área econômica do país que defendem com argumentos persuasivos a terceirização como um “um diferencial estratégico”. Além das possibilidades elencadas por Costa (2017), podemos destacar como exemplo a entrevista de Benjamin Steinbruch ao jornal Folha de São Paulo (2014), em que o entrevistado defende, entre outras coisas, a flexibilização das leis trabalhistas e a possibilidade de o funcionário não parar para almoçar 9. Desse modo, entendemos que com esse pano de fundo, a ACD pode contribuir para revelar como certos discursos contribuem para a

“Aqui a gente tem uma hora de almoço. Normalmente, não precisa uma hora do almoço, porque o cara não almoça em uma hora. Você vai nos Estados Unidos, você vê o cara almoçando, comendo o sanduíche com a mão esquerda, e operando a máquina com a direita. Tem 15 minutos para o almoço, entendeu?”.

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Fábio Melges; Georgiana Luna Batinga; Elcio Gustavo Benini

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construção de um pensamento hegemônico que considere inevitável e “natural” relações de trabalho precarizadas e flexíveis. ENCAMINHAMENTO REFLEXIVO

Esse ensaio teve a intenção de promover uma reflexão acerca das práticas discursivas organizacionais na (re) produção da “nova” precarização do trabalho a partir do aparato epistêmico da análise crítica do discurso. Dessa forma, assim como o discurso é um modo de ação constitutivo do sujeito e de sua história, de igual modo, as condições de produção discursivas nos remetem diretamente às relações de forças constitutivas da prática discursiva, representadas pelos lugares sociais e suas representações. Nesse sentido, Fairclough (2001) entende discurso como uma prática social reprodutora e transformadora de realidades sociais. O autor acredita na relação dialética entre sociedade e sujeito, que se moldam e se transformam, ideológica e linguisticamente, por meio de práticas discursivas de reprodução, contestação, reestruturação, dominação e suas formações discursivas; seja resistindo, seja ressignificando, seja reconfigurando. É dessa forma que observamos os diferentes modos de manifestação da precarização do trabalho ao longo de décadas de estudos acerca do mundo do trabalho. Seria então a “nova” precarização do trabalho uma versão atualizada da já conhecida “velha’ precarização, agora com uma roupagem nova? Fairclough considera as ações discursivas, que privilegiam certos discursos em detrimento de outros, como fundamentais para a sustentação e constituição de relações de poder. Seja na visão das organizações como ancoradas em práticas e formas discursivas (Cooren; Taylor, 1997;

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Fairhurst; Putnam, 2004), na abordagem que vislumbra as organizações como construídas por sistemas verbais formados por discursos polifônicos (Hazen, 1993), como comunidades discursivas (Bragd et al., 2008), que enxergam a comunicação como constituinte da organização, a partir da abordagem da CCO (Cooren et al., 2011; Galleli & Marchiori, 2015; Koschmann, 2013; Leitzke & Marchiori, 2015), que entendem as organizações como constituídas a partir da TAC de Jürgen Habermas (Lima, Carvalho & Lima, 2010; Lima, Zattar & Maia, 2013), ou, ainda, como a imbricação de domínios discursivos dos quais emerge a identidade organizacional (Taylor, 2011), o que se observa é o estabelecimento de relações determinísticas entre elementos linguísticos – como o discurso ou a comunicação – e a construção das organizações. A crise de acumulação do capital a partir do final da década de 1960 deu início a uma reestruturação produtiva que impulsionou uma nova forma de exploração do trabalho, qualitativamente distinta, baseada, mormente, na flexibilidade dos processos, novas tecnologias e modos de gestão. Tal reestruturação causou profundas alterações na forma de organização social, compreendendo o Estado e diversas outras instituições. De acordo com Standing (2014), a nova grande transformação do capital pretende tornar a instabilidade um hábito do mundo do trabalho, diferente do desejo anterior do capital (no fordismo) de que o núcleo do proletariado estivesse habituado a uma vida estável e “pertencente” a uma certa estrutura empresarial. No entanto, Colombi (2016) ressalta que a efemeridade, incerteza ou instabilidade do mundo do trabalho é comum a qualquer contexto histórico e é a normalidade dentro do sistema capitalista, pois é necessário que haja uma população supérflua – exército de reserva – para que a classe trabalhadora seja explorada.

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Além disso, destaca o autor, que não somente os trabalhadores são precarizados, mas, também todos aqueles que não se encontram empregados e dependem do próprio trabalho. As novas relações de produção do período neoliberal são compostas das mais diversas práticas sociais que visam enfraquecer a luta coletiva do trabalho. Essas práticas contemplam a desregulação de legislações trabalhistas, enfraquecimento dos Estados, manipulações tecnocráticas, discursos ideológicos do tipo “empreendedorismo”, ou “liberdade flexível”, enfraquecimento dos sindicatos, intensificação do ritmo de trabalho, entre outras. Para legitimar essas práticas é necessário um discurso que as defendam como algo “natural”, inevitável. Nesse sentido, é possível perceber o potencial crítico/emancipatório da ACD, pois o novo capitalismo possui uma linguagem que lhe é peculiar, e busca naturalizar relações de dominação por meio de diversos estratagemas de linguagem que buscam dissimular os aspectos ideológicos e simular um certo fatalismo econômico/social. Dessa forma, a ACD é um referencial de caráter transdisciplinar que busca por meio do desvelamento dos discursos, contribuir para a emancipação dos que são oprimidos. REFERÊNCIAS

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10 ANÁLISE ESTRUTURALISTA DO DISCURSO E HISTÓRIAS DE VIDA: ENCONTROS E DESENCONTROS Luiz Alex Silva Saraiva

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Matheus Arcelo Fernandes Silva

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INTRODUÇÃO

Embora adotando em comum uma posição epistemológica antipositivista, as diversas formas pelas quais se dá a construção do conhecimento baseada em uma perspectiva qualitativa enfrenta muitos desafios internos, entre os quais a questão da incomensurabilidade paradigmática (Burrell & Morgan, 1979). Ainda que este problema date pelo menos da década de 1980, quando foram publicadas vigorosas críticas à obra de Burrell e Morgan, como os trabalhos de Hassard (1993), Deetz (1996), Hassard, Kelemen e Cox (2008), Hassard e Cox (2013), Callaghan (2016) e Paula (2016), as possibilidades efetivas de conversação permanecem controversas. Circula na teoria organizacional ainda certo “purismo”, em princípio caraterizado como “coerência” entre outros termos, que procura caracterizar a possibilidade de conversações entre possibilidades epistêmico-metodológicas distintas como algo pouco rigoroso e fora do que se espera na construção de um trabalho acadêmico de qualidade. Para contribuir para este debate apresentando uma possibilidade multiparadigmática a partir da articulação entre prismas distintos de 1

Universidade Federal de Minas Gerais.

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Fundação João Pinheiro.

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referência, neste capítulo propomos uma discussão que promova uma interseção entre duas abordagens de pesquisa que, embora antipositivistas, se situam em paradigmas distintos: história de vida e análise estruturalista do discurso. Tomando como base a pesquisa empreendida por Colomby et al. (2016), as estratégias de análise mais utilizadas quando se tratam de histórias de vida são a análise de conteúdo, seguida da análise de discurso. Os autores apontam que “a utilização da Análise do Discurso e da Análise Interpretativa permite um maior detalhamento das histórias narradas bem como suas relações com o tempo e o espaço do sujeito preservando deste modo o seu protagonismo” (Colomby et al., 2016, p. 36). O fato é que a densidade e a profundidade esperadas no recolhimento de histórias de vida normalmente implica a necessidade de alguma forma de enfrentamento dos dados produzidos em um campo que é particularmente rico. Embora não haja um padrão no número de entrevistados, Colomby et al. (2016) identificaram que existem pesquisas que chegam a 66 entrevistas. Porém, as investigações que contaram com mais de 10 participantes, em sua maioria, utilizaram entrevistas semiestruturadas e não a concepção das Histórias de Vida em sua essência. Seguindo com as discussões acerca das pesquisas que utilizam histórias de vida, esse texto irá apresentar o percurso de construção d de uma investigação, trazendo elementos que marcam a construção epistemológica do trabalho, seguido pela discussão e a definição sobre qual história de vida estamos falando, trazendo também os elementos que marcam a escolha pela análise estruturalista do discurso e sua sistematização e, por fim, as considerações finais, tecendo comentários sobre as aproximações possíveis entre essas abordagens em uma pesquisa.

Luiz Alex Silva Saraiva; Matheus Arcelo Fernandes Silva

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A DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA DA PESQUISA

Um primeiro elemento a ser observado para a discussão acerca da possibilidade de utilização da análise de discurso em uma pesquisa com histórias de vida é a discussão epistemológica. A partir do trabalho de Burrell e Morgan (1979), muitas questões surgiram sobre a discussão epistemológica com base nos paradigmas apresentados nos estudos organizacionais. Os autores apontaram em seu trabalho uma separação didática para quatro principais paradigmas a partir dos critérios de objetivismo e subjetivismo, somados à ideia de ordem e mudança, são eles: Humanismo radical (com orientação mais subjetiva/ e ênfase na mudança), Interpretativista (subjetivo/ ordem), Estruturalista radical (objetivo/ mudança) e Funcionalista (objetivo/ ordem). A forma endereçada pelos autores é a proposição, a partir de uma perspectiva de paradigma de Thomas Kuhn, de uma convergência entre possibilidades sociológicas de análise organizacional. Uma pesquisa, assim, assume um espectro que procura alinhar todos os movimentos da investigação em uma mesma tipologia, de forma que epistemologia, teoria e método se encaixam na mesma perspectiva. As possibilidades de pluralidade a partir da combinação entre paradigmas distintos não existem: isso seria incoerente e, além disso, não deixaria claras as contribuições para o avanço do conhecimento. A própria perspectiva de “desenvolvimento” enquadra essa possibilidade analítica em uma forma de pensamento que premia o ordenamento e a ideia de “evolução”, o que não é assumido por central em nenhuma das abordagens além do positivismo. Pensar em alternativas à forma hegemônica de produção de conhecimento, assim, significa rejeitar, em princípio, este compromisso com o avanço. A desconstrução do vigente e sua complexificação, assim,

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integram a pauta de perspectivas não pautadas pelo paradigmatismo na análise. Bispo (2010) destaca que a discussão que se desenvolveu nos estudos organizacionais levou a uma polarização entre positivistas e interpretativistas. O autor defende que essa polarização limita as possibilidades na área, apontando para a possibilidade de se tratar uma aproximação entre os paradigmas. Vergara e Caldas (2005), assim como Paula (2016), também ressaltam que essa ideia gerou um embate entre os pesquisadores, acirrando a rivalidade entre os paradigmas estabelecidos, por mais que tenha avançado ao apresentar possibilidades além do paradigma funcionalista hegemônico. Concordamos com os autores que criticam a abordagem de Burrell e Morgan (1979), que se assenta em uma base kuhniana considerando a lógica da incomensurabilidade dos paradigmas. Acreditamos também que essa visão pode limitar estudos, sendo necessária a possibilidade de diálogo entre os paradigmas para o avanço do conhecimento. Ou pelo menos para um avanço mais plural, com mais possibilidades, embora Vergara e Caldas (2005, p. 67) destaquem que: Para os funcionalistas, as organizações são objetos tangíveis, concretos e objetivos. Para os interpretacionistas, as organizações são processos que surgem das ações intencionais das pessoas, individualmente ou em harmonia com outras. Elas interagem entre si na tentativa de interpretar e dar sentido ao seu mundo. A realidade social é, então, uma rede de representações complexas e subjetivas

Para Burrell e Morgan (1979), o interpretativismo não era uma corrente única, representando diversas possibilidades, com o elemento comum de “tentar compreender e explicar o mundo social a partir do

Luiz Alex Silva Saraiva; Matheus Arcelo Fernandes Silva

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ponto de vista das pessoas envolvidas nos processos sociais” (Vergara & Caldas, 2005, p. 68). É neste ponto que nosso trabalho converge com essa perspectiva, porém, também se afasta na medida em que Burrell e Morgan (1979) apontam para uma dicotomia entre subjetivo e objetivo, uma questão que, ao trabalhar com a vertente de histórias de vida que escolhemos se torna superada, na medida em que utilizar as histórias de vida significa pensar em um processo dialético. Nesse sentido, quando se pensa a realidade social apenas como uma rede de representações complexas e subjetivas, uma vez que admitimos a existência de estruturas sociais concretas, como o racismo, que são mediadas pelos sujeitos, modificando-os e sendo por eles modificadas. É também nesse sentido que acreditamos ser possível a utilização da análise estruturalista de discurso, uma vez que a partir dessa perspectiva o discurso também se projeta na história (Fiorin, 2003). Quando falamos da compreensão dos fenômenos sociais, tratamos da ideia de que a análise parte de um movimento de “ir e vir” entre a experiência e a teoria, o vivido e o conceitual, as estruturas que se apresentam e a subjetividade do indivíduo (Gaulejac & Hanique, 2012). A história de vida de um sujeito, nesse sentido não marca a descrição objetiva do vivido, mas o ato de contar se torna uma constante construção e reconstrução dessa história, se tornando um mecanismo complexo, uma vez que o sujeito possui sua própria historicidade, mas, na mesma medida em que produz sua própria história, também é produzido por ela (Carvalho & Costa, 2015). A especificidade do método biográfico implica ultrapassar o trabalho lógico-formal e o modelo mecanicista que caracteriza a epistemologia cientifica estabelecida (...) devemos procurar os fundamentos epistemológicos do método biográfico noutro lugar, na razão dialética capaz de

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compreender a práxis sintética e recíproca que governa a interação entre o indivíduo e o sistema social (Ferrarotti, 1991, p. 171).

Ainda segundo Ferrarotti (1991), é a partir dessa razão dialética que é possível ter acesso ao geral (sociedade) a partir da individualidade singular de um determinado homem. Ao assumir a perspectiva de histórias de vida desse trabalho que se alinha à psicossociologia, se faz necessário compreender os fenômenos sociais como multidimensionais, pois não se abarca apenas o coletivo, mas também a dimensão individual. Além disso, é importante compreender a valorização de um saber que muitas vezes não é tido como científico, ao apresentar as histórias de vida: Não é defendida a hierarquização dos saberes, com o saber científico como o mais adequado na compreensão de uma situação. Ao contrário, a postura clínica constrói-se pela escuta e pela valorização do saber relacionada à experimentação, considerando também o conhecimento que os atores sociais têm de seu mundo social (Carvalho & Costa, 2015 p. 27).

Tal discussão epistemológica se torna fundamental para a compreensão das escolhas metodológicas para o trabalho. A necessidade de superação de uma univocidade forçada é imanente ao trabalho com um real que se apresenta de forma complexa e multifacetada. O “CONTAR HISTÓRIAS”: SUA HISTORICIDADE E “PONTE” ENTRE INDIVIDUAL E COLETIVO

Os trabalhos de Franco Ferrarotti e Daniel Bertaux, ainda no início da década de 1970, marcaram esta retomada de pesquisas qualitativas no âmbito das histórias de vida. Já em meados desta década, Vincent de Gaulejac, Michel Bonetti e Jean Fraise se destacaram por produzir discussões e trabalhos no âmbito da sociologia clínica, buscando a

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mediação de fatores econômicos, históricos, psicossociais e ideológicos nas trajetórias individuais, dentro de um campo de estudos pluridisciplinares. No âmbito sociológico brasileiro, a abordagem biográfica, com foco no sujeito ou grupo que narre sua história, passou a ter um maior interesse em um período recente. Em muitos campos, ainda é difícil empreender uma pesquisa a partir de histórias de vida, devido ao fato de ser reconhecida por muitos como demasiadamente subjetiva e “pouco científica” (Barros & Lopes, 2014). Parte dessa representação de subjetividade e de baixa cientificidade advém da grande confusão conceitual associada ao método biográfico. A heterogeneidade do campo demanda que apontemos algumas distinções dentro do chamado método biográfico, que se alinha à perspectiva da história oral e também da história de vida. As pesquisas que se valem de dados biográficos podem utilizá-los em diversas dimensões, todas elas se inserem no quadro das pesquisas qualitativas, com um núcleo central formado na “dimensão do contar e da narrativa” (Barros & Lopes, 2014, p. 41). Fernandes (2010, p. 18) também aponta como fator de convergência entre as perspectivas que os sujeitos pesquisados pela história oral colocam em relevo os “esquecidos pela história”. Destaca que a utilização de fontes orais não é apenas uma comodidade para atingir pessoas que não dominam a escrita, mas uma forma de construir uma nova visão acerca da realidade. É nesse sentido que define a história oral como: “brisa renovadora que nos obrigou a repensar muita coisa, ampliando perspectivas de captação da realidade social”. Barros e Lopes (2014) destacam ainda que a diversidade de abordagens e pontos de vista presentes nas possibilidades trazidas pelo “contar história” geram certa confusão, com autobiografias, biografias,

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Discursos e Organizações

narrativas pessoais, trajetórias, depoimentos e diários, recebendo todos o rótulo de histórias de vida, mesmo com métodos e pressupostos epistemológicos distantes, mas sempre com a convergência na dimensão do contar e na preocupação com a compreensão do sujeito em seu mundo. Entre esta diversidade de possibilidades e abordagens, Campos (2004) destaca quatro principais tipos de pesquisa biográfica: história oral; biografia; autobiografia; e história de vida. Para auxiliar na compreensão das distinções entre os métodos biográficos, Silva et al. (2007) sistematizaram o seguinte quadro: Quadro 1 – Principais características e distinções entre abordagens biográficas Metodologia

Características

Métodos

Abordagens Biográficas História Oral

Biografia

- elaboração de um projeto; - definição prévia de um grupo de pessoas a serem entrevistadas; -planejamento da condução das gravações; - transcrição e conferência do depoimento; - inexistência da preocupação com o vínculo.

- utilização de diversas fontes; - recolhimento enviesado dos dados; - irrelevância da falta de relação entre pesquisador e sujeito pesquisado.

Autobiografia

História de Vida

- discurso direcionado ao leitor; - preocupação com a sequência temporal; -intencionalidade.

- preocupação com o vínculo entre pesquisador e pesquisado; - há uma produção de sentido tanto para o pesquisador quanto para o sujeito: “saber em participação”; - história contada da maneira própria do sujeito; - ponte entre o individual e o social.

Fonte – Silva et al. (2007).

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No quadro 1 podemos identificar as principais características e distinções de cada um dos tipos de pesquisa biográfica, compreendendo os limites e as possibilidades em adotar cada um destes métodos. Neste ponto, vamos analisar mais detidamente a história oral e suas diferenças da história de vida. A história oral possui larga utilização em pesquisas históricas, envolvendo o estudo do sujeito em sua singularidade (Silva et al., 2007). Campos (2004) complementa esta visão ao trazer que não é objetivo da história oral compreender a ressignificação do indivíduo a partir de sua narrativa, em seu ambiente coletivo; o objetivo principal é conseguir depoimentos sobre a história cotidiana contada pelos sujeitos. Queiroz (1988), por sua vez, compreende a história oral como uma metodologia de quadro amplo, abarcando tudo aquilo que é narrado oralmente com o objetivo o recolhimento de relatos de um indivíduo ou grupo, estando a história de vida inserida neste cenário. A diferença é que nas histórias de vida é o narrador que comanda a entrevista, enquanto em depoimentos é o entrevistador que possui essa função. Não existe, portanto, uma unidade de compreensão acerca destas definições. Porém, fica clara a principal distinção entre adotar a perspectiva da história oral e da história de vida, sendo a preocupação com o vínculo entre entrevistado e entrevistador aspecto fundamental para as histórias de vida, além do aspecto coletivo, considerado importante para esta perspectiva. Já a biografia tem como objetivo compreender a história e o percurso de vida de uma determinada pessoa, valendo-se das mais diversas fontes, tais como documentos, fotos, cartas, e não apenas relatos orais, e mais uma vez sem levar em consideração a relação entre entrevistador e entrevistado. Em seu turno, a autobiografia se apresenta como um

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discurso voltado ao leitor, muitas vezes sem a reflexão acerca do vivido, com uma grande preocupação com a sequência temporal (Silva et al., 2007). Dadas estas distinções e as discussões pertinentes aos Estudos Organizacionais, este estudo adota a história de vida, que se enquadra no campo da Psicossociologia, enfocando a relação entre o entrevistador e o entrevistado, o que a torna uma alternativa interessante, como o exemplo do trabalho realizado por Lopes (2013). Considerando a história de vida em sua dimensão psicossociológica, Carvalho e Costa (2015) definem da seguinte forma o campo da Psicossociologia Clínica, em sua concepção da relação entre as histórias de vida e a sociedade, de uma forma mais ampla: Pode-se acessar o processo de constituição de uma sociedade quando se conhece o processo de constituição de uma História de Vida, pois ambos ocorrem simultaneamente, um atravessando e influenciando o outro e sendo modificado por esse outro (Carvalho & Costa, 2015, p. 25).

Ao pensar a dimensão das histórias de vida nessa perspectiva, deve-se compreender o movimento dialético entre o individual e coletivo, considerando que aspectos subjetivos interferem no contexto social e que a dimensão coletiva produz efeitos na experiência individual (Rhéaume, 2009). Nesta medida, a Psicossociologia irá atuar principalmente na investigação das reciprocidades entre o individual e o coletivo, entre o psíquico e o social (Lhuilier, 2011). Pinto, Carreteiro e Rodrigues (2015, p. 945) apontam também para esta relação, considerando que o sujeito não pode ser analisado ignorando os inúmeros fatores que o atravessam: “a análise é sempre dialética, apreendendo o

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peso das condições sociais nas condutas humanas, e levando em conta a singularidade do trabalho psíquico”. Essa metodologia deve ser considerada, portanto, em sua complexidade, sendo uma possibilidade muito rica de apreender a relação dos sujeitos e o mundo, o real que lhes é apresentado, observando a maneira como negociam suas condições sociais que os constroem, ao mesmo tempo, em que por eles são construídas (Barros & Lopes, 2014). Esta escolha traz consigo dimensões fundamentais da escolha epistemológica e a forma como as diversas variáveis da pesquisa são consideradas em seu aspecto sócio histórico, sendo importante não apenas trazer à superfície a história destas pessoas, como também compreender a relação dialética que exercem com o coletivo e o social. Queiroz (1988) coloca as histórias de vida em um quadro mais amplo da história oral, porém vê como grande potencialidade sua capacidade de aproximação entre o individual e o social. Uma importante questão destacada por Barros e Lopes (2014, p. 42) que se reflete na concepção do real é o fato de que as histórias de vida estão longe de ser o trunfo do individualismo. Elas recolocam o ser humano no centro da cena, frente ao seu próprio desenvolvimento especular: Ou seja, o que se manifesta através do relato e nele se reconstrói é o campo da subjetividade, com seu caráter individual, singular, único, construído concretamente na experiência do coletivo. Estão presentes aqui os três polos que dialogam no contar a vida: as condições objetivas, a maneira como se vive e a maneira como se narra. Dialética entre realidade material e realidade subjetiva.

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É a partir dessa questão que consideramos as histórias de vida uma “ponte” entre o individual e o coletivo. Em outras palavras, a história de vida se apresenta como uma maneira de reinserir o sujeito no contexto social e histórico, considerando a maneira como faz a história, modelando a sociedade e por ela sendo modelados (Lopes, 2015). Nesse sentido, um elemento importante para se levar em conta ao adotar esse método é a historicidade, isto é, o sujeito não se torna um espelho da realidade social que o precede, ele faz mediações, filtra e retraduz para a dimensão de sua própria subjetividade. Gaulejac (2004/2005) complementa essa dimensão da historicidade apontando que ela se vincula à relação entre indivíduo e sociedade, sendo a capacidade desse sujeito se inscrever em um passado e se projetar para um futuro diferente do presente. Lopes (2015, p. 70), ao resgatar estudos de Gaulejac, aponta que “a função da historicidade significa a possibilidade de o indivíduo analisar e compreender os elementos que o constituem como sujeito histórico, reconstruindo sua relação com a história”. É assim que se pode dizer que o “homem é história”, ao se inserir na lógica dialética que o coloca como produtor de sua própria história, bem como produzido por um dado contexto histórico. Na sociologia clássica, há uma concepção de que a subjetividade é a interiorização da objetividade. Nessa concepção, não há espaço para a reflexividade, dimensão fundamental de ser considerada, uma vez que, sem esse aspecto, não seria possível ao sujeito a ação de se repensar e transformar sua relação com o mundo (Lopes, 2015). Nessa direção, ele não pode fazer uma abstração de sua subjetividade, não pode fazer uma abstração desse social, mas isso não significa que ele sofra passivamente nesta relação: ele reinventa esse social a cada instante (Ferrarotti, 1990).

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E as histórias de vida se tornam uma dimensão importante, pois, ao contar sua história, o sujeito tem a possibilidade de trabalhá-la, ressignificá-la e mudar sua relação com a história. O homem carrega em si historicidade (Barros & Lopes, 2014). Isso quer dizer que o homem não é somente produto da história, ele é também portador de uma história que ele busca e sobre a qual constrói significação; valendo-nos da argumentação de Gaulejac (2004/2005), há, portanto, um sentido da História, que é dado pelo homem em sua vivência. É esse movimento da historicidade que explica o motivo pelo qual, sob condições de existência similares, a tomada de consciência dos indivíduos ocorre por vezes de forma tão distinta (Gaulejac, 2004/2005). As histórias pessoais não são redutíveis a jogos afetivos de questões psíquicas: são confrontadas por questões sociais, sendo uma ponte entre a história individual e a história coletiva, religando o nível individual ao nível geral de análise. Por meio de suas histórias, os sujeitos apresentam efetivamente uma cultura, um esquema de valores e ideologias como membros de uma coletividade – família, organização, classe social, raça, gênero – encontrando-se constantemente em interação com estes aspectos (Barros & Lopes, 2014). É importante destacar que o que se busca com um relato de vida não é um espelho do social, mas o modo como pelo qual o indivíduo dele se apropria, projetando a sua subjetividade, é compreender o universal ao qual faz parte, a partir de seu ponto de vista – sua subjetividade em relação aos fatos sociais: o sujeito é que ocupa o lugar central do que conta (Lopes, 2013). Fundamental também para este estudo é a compreensão do papel central do sujeito que se conta, uma vez que suas interações sociais podem ser apreendidas apenas por aqueles que participam a vivenciam, oferecendo elementos que muitas vezes escapam à análise fria dos

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dados que remontam a desigualdades ou à análise sócio-histórica, que embora possa fornecer indicativos de elementos de exclusão, não apontam como são vividos e mediados pelos indivíduos. E é nesse sentido que as histórias de vida se distanciam das histórias oficiais, uma vez que vão além da simples sucessão de fatos cronológicos, que remetem a uma noção ossificada da realidade social. Também se distanciam das histórias contadas pelos vencedores, das histórias das elites (Decca, 2004; Barros & Lopes, 2014). É, portanto, nas palavras de Ferrarotti (1990), uma “história não historicista”. Não se quer com isso desqualificar a história, muito pelo contrário. Mas é necessário ampliar a noção histórica a fim de incorporar mais do que o relato grandioso do passado. Nessa linha, a contribuição da École des Annales é notável, pois permite que se incorpore a memória e a história do homem comum na composição do passado, como o fazem Saraiva e Machado (2007). Estes autores sustentam que: “a história é também uma interpretação, já que aos que cabem escrevê-la ou representá-la, no caso dos curadores de museus, recai o ônus de decidir o que deve ou não ser mostrado, o que deve ou não ser lembrado” (Saraiva & Machado, 2007, p. 12). Carvalho e Costa (2015) complementam essa visão ao destacarem que todo sujeito é um ser histórico na medida em que é possui uma singularidade e uma capacidade de reescrever sua história, por mais que seja programado por ela. É nesse contexto que a historicidade se apresenta, segundo os autores, como a função que permite ao sujeito distanciar-se de sua história e tomar consciência de como outros fatores influenciam sua trajetória, sejam de raça, classe, gênero, entre outros. Também é nessa medida que compreendemos o conceito de

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historicidade e o consideramos um elemento fundamental para a escolha desse método específico de histórias de vida. Outra questão importante acerca das histórias de vida é o caráter terapêutico que eventualmente ganham as narrativas, trazendo a possibilidade de o narrador refletir e interpretar sua própria história. Adiciona ao valor individual um valor sociológico, não sendo uma complementação para outras metodologias, tampouco existindo a pretensão de demonstrar leis, buscar provas empíricas, ou mesmo encontrar causas únicas. Diante destas questões, não é possível para as histórias de vida uma produção de dados sem o envolvimento do pesquisador, sendo fundamental seu envolvimento, pois estas histórias não irão emergir a partir de simples entrevistas (Barros & Lopes, 2014). Além disso, há a possibilidade de ampliação do escopo da pesquisa, com a consideração de disciplinas distintas favorecendo a compreensão dos fatores que permeiam as histórias de vida: Como instrumento, a história de vida permite uma escuta ampliada, onde a emergência de diferentes pontos pode ser iluminada por teorias e disciplinas distintas. O uso de várias fontes de conhecimento favorece a elucidação de fatores históricos, sociais, políticos e econômicos (Pinto, Carreteiro & Rodrigues, 2015, p. 972).

Considerando estes elementos, como podem ser tratadas as histórias que foram recolhidas em processos de intensa interação social com os sujeitos? É aí onde compreendemos a possibilidade de diálogo com a análise do discurso, mas especificamente com a perspectiva estruturalista, conforme discutiremos a seguir.

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A ANÁLISE ESTRUTURALISTA DE DISCURSO E SUAS POSSIBILIDADES

A análise do discurso trata-se de uma perspectiva teórica e metodológica que considera também aspectos sociais de produção do discurso, sendo a palavra, conforme aponta Bakhtin (2006, p. 99), o “produto da interação entre o locutor e o ouvinte”. Consideramos que o discurso não é de forma alguma neutro, sendo necessário ir além da simples categorização dos dados, identificando e analisando os discursos enunciados explicitamente, implicitamente ou mesmo silenciados (Fiorin, 2003). Ao tratar das histórias de vida, Carvalho e Costa (2015 p. 28) destacam que “a fim de compreender a relação que o indivíduo possui com sua história, é imprescindível que se analise o sistema social ao qual integra, o tempo em que se encontra e o espaço que ocupa, condicionandoo como ser histórico-social”, questão que consideramos fundamental para optar pela análise estruturalista ou análise francesa do discurso, por considerar que ela auxilia nessa compreensão, a partir dos pontos de análise que propõe. A perspectiva apresentada por Bakhtin (2006) é uma das influências dessa vertente de análise de discurso e a considera em seu sentido dialético, uma vez que não existe um enunciado isolado. Fiorin (2003, p. 77) destaca que “as determinações últimas do texto estão nas relações de produção”. Tendo em vista esse sentido dialógico, o enunciado é elaborado em função do ouvinte, sendo o discurso uma prática social. Mais uma vez, aparece aqui a importância do momento da entrevista, pois a relação criada nesse momento também influenciará o modo como o discurso que envolve a narrativa vai se desenvolver.

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A análise de discurso da vertente francesa não considera, portanto, o discurso de forma isolada, pois se torna um elemento da realidade social, construindo e sendo construído de forma dialética. Nesse ponto, acreditamos que exista uma convergência em relação às histórias de vida, possibilitando o uso dessa análise de discurso, mesmo considerando seu caráter estruturalista. Para Fiorin (1998, p. 78), a análise de discurso deve desfazer “a ilusão idealista de que o homem é senhor absoluto de seu discurso”. A utilização da análise de discurso pode se dar com o objetivo de complementar as histórias de vida, uma vez que sua análise não se esgota no próprio discurso, projetando-se na história (Fiorin, 2003). Para uma compreensão mais ampla dessa zona de convergência, reproduzimos as palavras de Ferreira (2003, p. 40): O sujeito do discurso vai, então, colocar-se estratégica e perigosamente entre o sujeito da ideologia (pela noção de assujeitamento) e o sujeito da psicanálise (pela noção de inconsciente), ambos constituídos e revestidos materialmente pela linguagem. Como se vê, a Análise do Discurso ao construir a categoria teórica do sujeito o faz, desde o início, pautando-se por uma singularidade que a torna muito peculiar. O sujeito do discurso não é apenas o sujeito ideológico marxista-althusseriano, nem apenas o sujeito do inconsciente freudo-lacaniano; tampouco, não é apropriado afirmar que esse sujeito seja uma mera adição entre essas partes. O que vai fazer a diferença desse sujeito é o papel de intervenção da linguagem, na perspectiva de materialidade lingüística e histórica que a AD lhe atribui.

O sujeito, assim, não está excluído na análise do discurso; é impossível que esta perspectiva emerja sem um sujeito que possa objetivamente realizá-la. Todavia, há atravessamentos coletivos, estruturais, que nessa abordagem preponderam sobre a forma como se manifesta o discurso. É certo que nem sempre é possível ao sujeito

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enunciar discursivamente sua vivência, razão pela qual aspectos como silêncios e implícitos discursivos integram o processo discursivo. Com isso queremos dizer que há um limite para as possibilidades enunciativas, o que por princípio não desqualifica as possibilidades do discurso, apenas o desafia a novas modalidades e formas de enunciação. Isso em parte explica porque a análise do discurso tem avançado para além do estruturalismo linguístico e se tornado um campo crescentemente polifônico e capaz de diálogos com múltiplos signos, objetos e perspectivas, em uma concretização do multiparadigmatismo a que nos referimos na primeira parte deste texto. SISTEMATIZANDO A ANÁLISE ESTRUTURALISTA DO DISCURSO

Da mesma forma como o conceito de estrutura se presta a muitas leituras, uma das correntes de análise do discurso que chama para si o adjetivo estruturalista se sujeita a muitas possibilidades de abordagem. Em comum, elas assumem “os discursos como práticas socialmente embasadas, que apresentam, explícita ou implicitamente, as marcas da ideologia que os constitui, não sendo, portanto, neutros” (Saraiva et al., 2009, p. 12), o que implica ser necessariamente o discurso uma produção ideológica, associada às idiossincrasias do enunciador e em com o propósito de busca de adesão do enunciatário. Para isso, o discurso é composto de uma série de estratégias discursivas de persuasão ideológica que atuam tanto no plano da sintaxe (estrutura da linguagem) quanto no da semântica (possibilidades de interpretação). Um texto, assim, repousa sobre a forma do que é enunciado, e sobre os significados do que é enunciado, um processo que envolve ativamente o enunciador e os enunciatários em uma dinâmica

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aberta e construída coletivamente. Em parte isso ocorre porque a própria língua é oriunda de uma produção estrutural: a ela nos submetemos quando, por exemplo, não escolhemos nossa língua materna. Além disso, o agir linguageiro faz com que o que é dito em muitos casos adquira um sentido não comportado pelo que é estritamente enunciado. Isso implica o discurso ser passível de interpretação e, assim, abrigar interpretações possíveis, intimamente ligadas a um contexto de produção social da linguagem. Analisar o discurso, assim, tem uma parte técnica, por assim dizer, que nos aproxima da Linguística enquanto campo de conhecimento, e uma parte não-técnica, que abre as possibilidades de compreensão dos enunciados. Isso não significa que haja um rigor menor no tratamento das questões semânticas, mas que elas abrem espaço também para a intuição. O hoje aposentado Professor Doutor Antônio Augusto Moreira de Faria, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais apresentava ao longo de suas disciplinas, diversos procedimentos sistemáticos pelos quais se pode enfrentar um discurso. Os principais pontos foram sistematizados por Saraiva (2009, p. 90), e podem ser empregados em conjunto ou separadamente, de acordo com o que for enunciado e conforme o propósito dos analistas. Esses pontos serão detalhados em seguida. O primeiro ponto tratado é a “identificação e análise dos principais aspectos da análise lexical”, que se refere ao exame do vocabulário empregado. É a partir da escolha do vocabulário que se desenvolvem os demais aspectos linguísticos, como os personagens e temas (Faria, 2009). Dando continuidade à análise, o segundo ponto se trata da “identificação e análise dos principais temas e figuras (explícitos ou implícitos) dos discursos”, respectivamente os aspectos mais abstratos e mais concretos do discurso. A partir desses temas e figuras, são

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estruturados os “percursos semânticos” (terceiro ponto), que correspondem “à recorrência, ao longo do discurso, de elementos semânticos subjacentes” (Faria, 1998, p. 142). Ele complementa dizendo que “[...] a noção de percurso semântico engloba os conceitos greimasianos de percurso temático e percurso figurativo, correspondentes à recorrência de elementos semânticos mais abstratos ou mais concretos, respectivamente” (Faria, 1998, p. 150). Como quarto ponto, Saraiva (2009, p. 91) apresenta a identificação e análise dos “principais aspectos interdiscursivos”. Conforme Mainguenau (1998, p. 86), “[...] pode-se chamar interdiscurso um conjunto de discursos. [...] Se consideramos um discurso particular, podemos também chamar interdiscurso o conjunto das unidades discursivas com as quais ele entra em relação”. “[...] A identidade de um discurso depende de sua relação com outros, isto é, que ele não se constitui independentemente a outros discursos, para, em seguida, pôr-se em relação com eles, mas se constrói, de maneira regrada, no interior dessa oposição, definem-se nos limites dessa relação polêmica” (Fiorin, 1999, p. 231). O quinto ponto elencado é a identificação dos principais aspectos da “sintaxe discursiva”, sendo esse a forma como discurso é construído estruturalmente, podendo incluir figuras de linguagem. Outro ponto de análise se refere à identificação dos principais “aspectos refletidos e refratados” nos discursos. De acordo com Saraiva (2009, p. 90), refração linguística é uma estratégia discursiva analisada por Bakhtin (2006), que parte da ressignificação dos temas nos discursos. Todo aspecto é, ao mesmo tempo, refletido linguisticamente, preservando seu sentido socialmente estabelecido, e refratado, isto é, reinterpretado conforme os referenciais os enunciadores. Um discurso, assim, reproduz (ou reflete) as

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condições sociais em que é produzido, e modifica (ou refrata) determinados aspectos, de acordo com as ressignificações de seus enunciadores.

Saraiva (2009, p. 91) ainda aponta como sequência da análise do discurso a “identificação dos principais aspectos das condições de produção dos discursos”. O que aqui se busca é a definição das condições sociais sob as quais o discurso foi produzido. Segue a esse passo, a identificação dos principais “discursos presentes no texto”. Discurso, nesse sentido, é compreendido como a produção social de textos. Tendo em vista que não há discurso neutro, o passo seguinte é a identificação dos principais “aspectos ideológicos defendidos nestes discursos” e também dos principais “aspectos ideológicos combatidos nestes discursos”. Por fim, Saraiva (2009, p. 91) propõe a identificação da “proposição do discurso hegemônico em cada um dos textos em relação aos discursos hegemônicos na sociedade em que se situa”, com o intuito de verificar se esse discurso se apresenta alinhado ao que é dominante em termos sociais ou se apresenta como marginal. HISTÓRIA DE VIDA E ANÁLISE ESTRUTURALISTA DO DISCURSO: UM ENCONTRO POSSÍVEL?

Neste capítulo o objetivo foi propormos uma discussão que promovesse uma interseção entre duas abordagens de pesquisa que, embora antipositivistas, se situam em paradigmas distintos: história de vida e análise estruturalista do discurso, o que foi feito mediante a caracterização e análise detalhada de cada abordagem e como pode haver interseções. Ao longo do texto, defendemos a complementaridade entre as perspectivas não como forma de descaracterizar suas proposições

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originais, mas como meio de reforçá-las em conjunto, aumentando sua potência teórico-metodológica. Sustentamos que essas perspectivas se complementam porque da mesma forma que faltam à história de vida referenciais para além da subjetividade, falta a uma perspectiva estruturalista da análise do discurso considerações sobre o sujeito. Isso sugere a possibilidade de encontro e de contribuições mútuas na combinação das duas perspectivas. Por um lado, isso significa incorporar elementos de maior concretude para o tratamento das histórias de vida. Isso não implica qualquer tentativa de “objetivar” as subjetividades captadas ao longo de uma história de vida; mas de lhes fornecer aspectos estruturais com os quais possam dialogar e aumentar a sua potência. Quando uma pessoa descreve a tensão e o medo que sentia em um contexto de ditadura militar, por exemplo, o que está relacionado a uma experiência de vida específica, a análise de discurso pode fornecer subsídios para a compreensão de que a o discurso é uma prática produzida socialmente e que havia repressão e violência reais contra os sujeitos, razão pela qual há uma adição de possibilidades de compreensão tanto das condições em que aquela história de vida aconteceu, quanto das nuances que o contexto vigente na época pode adquirir em histórias singulares. Voltando ao título deste texto, será possível promover este encontro entre as histórias de vida e a análise do discurso? Acreditamos, definitivamente, que sim. Mas isso só poderá se concretizar se houver movimentos efetivos de aproximação entre pesquisadores para além das barreiras paradigmáticas e disciplinares dos que lidam com ambas as perspectivas. Isso implica se despirem de posições arraigadas acerca do real e considerarem as possibilidades de construção de conhecimento que transcenda as limitações que criamos para lidar com a

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complexidade do conhecimento que, como pesquisadores, só começamos a entender. REFERÊNCIAS

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11 NARRATIVAS DE VIDA DE TRABALHADORES TERCEIRIZADOS: IMAGINÁRIOS SOBRE A PRECARIEDADE DO TRABALHO E (RE) INSCRIÇÃO DA VIDA EM NOVOS PROJETOS DE EXISTÊNCIA Cláudio Humberto Lessa Juliana Pacheco 2

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INTRODUÇÃO

O sonho de trabalhar de carteira assinada, de se aposentar e de viver em um sítio, de desempenhar uma atividade laboral por prazer, de ter o contrato renovado em uma empresa terceirizada, de voltar a estudar, de se formar, de fazer um curso superior e de exercer uma profissão valorizada no mercado de trabalho. Esses são alguns dos exemplos da expressão de desejos e de uma vontade de (re) inscrever a vida em novos projetos futuros que podem ser encontrados nas narrativas de vida dos (as) trabalhadores (as) terceirizados (as) do CEFET-MG, compiladas no livro Narrativas de vida dos trabalhadores terceirizados do CEFET-MG, resultado do primeiro ano de ações de um projeto de educação popular intitulado A Escrita de si. Essa coletânea constitui o corpus 3 a partir do qual objetivamos analisar de que maneira esses (as) trabalhadores (as) mobilizam

imaginários

sócio-discursivos

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Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

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Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

que

constroem

Esse corpus constitui o objeto da pesquisa em andamento, intitulada: “Trabalho e educação sob a ótica de trabalhadores tercerizados de uma instituição de educação profissional e tecnológica – narrativas de si”, realizada pela pesquisadora Juliana Pacheco junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica (PPGET) e que aqui, apresentamos somente uma parte dos relatos sendo analisados a partir de outros vieses teóricos não contemplados neste artigo.

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Cláudio Humberto Lessa; Juliana Pacheco

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representações a respeito de diversos aspectos de suas atividades laborais; dentre os quais escolhemos priorizar para este artigo: i) o trabalho informal, terceirizado e as desigualdades sociais vividas/sofridas no ambiente de trabalho e ii) a relação entre o projeto A Escrita de si, a perspectiva de volta aos estudos e a (re) inscrição da vida em novo projeto existencial de formação. Para que pudéssemos analisar esses relatos e propor possíveis interpretativos 4, efetuamos um diálogo entre os seguintes domínios de conhecimento: i) os estudos acerca de narrativas de vida propostos nos âmbitos da Sociologia, por Bertaux (2006); ii) da Sociologia Clínica, a partir de Rhèaumme (2002); iii) da epistemologia da educação, focalizando as abordagens de Pineau (2006) e de Delory-Momberger ( 2009; 2012; 2016); iv) da Sociologia do trabalho, especificamente, as reflexões de Beckenkamp Vargas (2017) sobre os sentidos possíveis que podem ser atribuídos à precariedade do trabalho; e por fim, v) a Análise de Discurso de linha francesa e dos Estudos da Linguagem, a partir das teorizações de Charaudeau (1983; 2006; 2009; 2011) que nos forneceram as principais ferramentas teórico-metodológicas para a formulação de hipóteses interpretativas para os atos de linguagem subjacentes às narrativas de vida, a partir do que Charaudeau (2006) chama de signos-sintoma de imaginários sócio-discursivos. Tais signos são indiciados na maneira como os sujeitos comunicantes discursivizam suas experiências e suas O conceito é de Charaudeau (1983) para quem a atividade de interpretação de textos e de discursos é efetuada pelo sujeito a partir da inter-relação que ele estabelece entre uma dimensão explícita – a materialidade textual, a cadeia sintagmática que organiza os itens lexicais e uma dimensão implícita – constituída pelas Circunstâncias de Discurso que abarcam a situação comunicativa, as intencionalidades do ato de linguagem, os conhecimentos partilhados entre os interlocutores, as expectativas de sentidos, os rituais de intercâmbio linguageiro; assim sendo, interpretar consiste em formular hipóteses quanto às possíveis significações intencionadas pelo sujeito comunicante; os sentidos dos termos usados no texto são atribuídos a partir dessas Circunstâncias de Discurso, de acordo com os contextos em que são empregados.

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Discursos e Organizações

vivências, a partir de atividades de referenciação (operações de nomeação, de qualificação, de marcação de tempo e de espaço), manifestadas em escolhas lexicais, que encerram avaliações de si, do mundo e dos outros – figuras parentais, patrões, colegas de trabalho, relações de trabalho, condições de trabalho, remuneração, legislação trabalhista, conjuntura econômico-política, entre outros aspectos. Buscamos mostrar como essas narrativas de vida (em suas manifestações orais e escritas) resultaram de um projeto de extensão, hoje programa, que tem características semelhantes àqueles desenvolvidos no âmbito da Sociologia Clínica, pois visam atender a demandas socais de grupos e de instituições e propor reflexões que levem os sujeitos a vivenciarem um processo de empoderamento; nessa perspectiva, adotamos e defendemos uma perspectiva de investigação nas Ciências Sociais que se fundamenta em um processo de construção de conhecimento científico baseado nos conhecimentos, nas vivências, nas experiências e nos pontos de vista de sujeitos integrados em uma coletividade e em uma práxis social que partilham determinados imaginários sócio-discursivos e vivenciam algum tipo de desigualdade social. Trata-se, assim, de considerar um novo paradigma de pesquisa no domínio das Ciências Humanas. Para analisarmos essas narrativas desses sujeitos que padecem os efeitos da terceirização e da precariedade do trabalho, desdobramos este texto nas seguintes seções: i) na primeira, apresentamos uma visão panorâmica do projeto Escrita de si, seus objetivos, suas metodologias, com a caracterização dos sujeitos que dele participam; ii) na segunda, refletimos sobre o campo epistemológico associado às narrativas de vida, sobre sua emergência nos estudos das Ciências Humanas, sobre o conceito de narrativa que adotamos e sobre a adoção dos gêneros que

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integram a escrita de si nas análises do texto e do discurso, em seu diálogo com a Sociologia; iii) a partir de um diálogo com a Sociologia do Trabalho, buscamos inquirir sobre os possíveis sentidos do termo “precariedade do trabalho” e por fim; iv) definimos o conceito de imaginários sócio-discursivos e apresentamos uma análise dos possíveis sentidos que os (as) trabalhadores (as) constroem acerca das duas dimensões associadas a sua vida laboral: i) o trabalho terceirizado e as desigualdades sociais e ii) o papel do projeto Escrita de si e a possibilidade de vislumbrar novos horizontes, de reinscrever as vidas em novos projetos existenciais. O PROJETO A ESCRITA DE SI: BUSCANDO IMPLEMENTAR UMA EDUCAÇÃO POPULAR, LIBERTADORA E EMANCIPADORA

Em sua formulação, o projeto foi elaborado para proporcionar um olhar diferenciado acerca da métrica de letramento de sujeitos inseridos em seu espaço de trabalho, utilizando- se de ferramentas que a própria instituição (na qual prestam serviços) emprega para a formação de seu público-alvo. Na primeira aprovação, o projeto contemplava somente o campus I do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). No primeiro ano de execução do projeto, o livro, corpus deste artigo, foi concebido; e, no ano seguinte, o projeto se tornou Programa de extensão estendendo sua atuação para outros quatro campi da Instituição. O programa de extensão A Escrita de Si constitui-se como uma iniciativa filiada às concepções de educação como prática da liberdade (Freire, 1997) e centra-se em narrativas de vida como parte de práticas de letramento crítico junto a trabalhadores (as) terceirizados (as) que atuam na área de limpeza e serviços gerais do CEFET-MG (Cestari,

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Discursos e Organizações

Pacheco & Claudino, 2021). Tal ação tem foco em uma prática questionadora das parcialidades que reforçam os sistemas de dominação (como o racismo e o sexismo) e que têm moldado as práticas pedagógicas, buscando

proporcionar

estratégias

diferentes

para

partilhar

o

conhecimento com grupos diversificados de alunos (Hooks, 2017). Considerando as históricas desigualdades classistas, raciais e sociais brasileiras, a vivência, neste processo de letramento, proporciona aos alunos a possibilidade de ampliar seus conhecimentos, aplicá-los em atividades que lhes deem novas opções tanto pessoais quanto profissionais, além de incentivar e de valorizar a produção autoral, a fim de externar e compartilhar o direito à fala, conferindo mais visibilidade a esse grupo no espaço institucional. As turmas são compostas em sua maioria por mulheres e negros (as) com histórias recorrentes de exclusão durante sua escolarização. Para início das atividades, fizemos o levantamento através do preenchimento de formulário de inscrição, foram preenchidos 44 formulários e 38 trabalhadores informaram interesse em retomar os estudos, mesmo que de forma informal. No Programa, as dinâmicas em sala de aula têm formatos cooperativos e horizontais para o ensino e aprendizagem. Os alunos vivenciam um ambiente em que o aprendizado vem atrelado a debates que proporcionam pensar sobre a própria realidade, sobre o trabalho e sobre as relações sociais, a partir de uma prática que visa articular entre a leitura da palavra e a leitura do mundo. Nossa posição é a de intencionar uma pedagogia libertária e questionadora das assimetrias sociais, seguindo os princípios de Paulo Freire; assim sendo buscamos implementar uma abordagem didático-pedagógica que seja pautada em uma educação pelo diálogo, visando proporcionar a leitura

Cláudio Humberto Lessa; Juliana Pacheco

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da palavra na relação com a leitura do mundo - muito mais do que decodificar, uma vez que ler é interpretar o mundo e a si mesmo Na busca de contemplar o coletivo de estudantes, circulamos entre os alunos textos, vozes e variedades linguísticas historicamente marginalizados nas instituições escolares e buscamos fazer propagar a produção dos educandos para além dos limites da sala de aula, em direção às práticas dos letramentos de (re) existência. (Cestari, Pacheco & Claudino, 2021). Para Souza (2011), os letramentos de reexistência são capazes de capturar a diversidade social e histórica dos padrões de linguagem e por isso são sui generis, uma vez que contribuem para a desestabilização do discurso de que práticas validadas socialmente são somente as aprendidas na escola formal. Ao participarem do projeto, os trabalhadores se questionam sobre os lugares sociais que ocupam e aqueles que lhes são interditados. As relações permeadas por desigualdades de gênero, raça, classe, nível de escolaridade, origem geográfica, geração, etc. são objeto das aulas em um movimento dialógico no qual o sujeito interpreta a si mesmo e a realidade social. AS NARRATIVAS DE SI, SUA EMERGÊNCIA NOS DOMÍNIOS DAS CIÊNCIAS HUMANAS E A SUA APROPRIAÇÃO COMO NOVO OBJETO DE PESQUISA NA ANÁLISE DO DISCURSO

O projeto Escritas de si, na medida em que busca se pautar em uma concepção de educação entendida como prática de libertação, baseada no desenvolvimento de uma prática pedagógica que visa implementar práticas de letramento crítico ou de (re)existência, tendo como eixo central a leitura e a produção de narrativas de vida, constitui um exemplo de prática de ação universitária que testemunha a emergência de um novo paradigma de fazer científico nas Ciências Humanas, marcado

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Discursos e Organizações

pela valorização das práticas (inter) subjetivas, dos saberes, das vivências e das experiências narradas pelos sujeitos. Diversos autores identificam a afirmação desse novo paradigma a partir da década de 1980, tais como Bertaux (1980; 2006), Pineau (2006) e Delory-Momberger (2009; 2012; 2016). A partir desse marco temporal é possível, assim, observar inúmeras formas de pesquisa, de metodologias e de intervenção social que têm como objeto relatos ou narrativas de vida tais como i) a abordagem etnossociológica de Bertaux (1980; 2006), quem cunhou conceito récit de vie 5, a partir de uma investigação de relatos de padeiros artesanais 6, na França; ii) a corrente de pesquisa-ação-intervenção existencial, teorizada por Pineau (2006), que visa implementar processos formativos baseados em atividades que levem os sujeitos a refletir sobre a vida, sobre suas próprias vidas e sobre seus processos de autoformação, podendo; assim, vir a reinscrever suas vidas em um novo projeto; iii) o relato de vida coletivo, abordagem que, segundo Rhéaume (2002), situase entre prática investigativa, formativa e de intervenção, visando criar condições para o empoderamento de sujeitos e de grupos; e, por fim, iii) a Sociologia Clínica, também praticada por Rhéaume (2002) e por Delory-Momberger (2009; 2012; 2016). O autor afirma que propôs o sintagma com o termo “narrativa” e não “história de vida” a fim de mostrar que quando alguém conta sua história a outrem (pesquisador ou não), este sujeito produz uma possível reconstrução do eventos que viveu na e pela linguagem, na e pela narrativa; nesse processo, atuam mediações, esquemas de percepção e de avaliações que concorrem para que o sujeito produza uma possível “versão de si”, uma “totalização de sua experiência” mais ou menos reflexiva de parte de sua trajetória de vida.

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Bertaux (2006) mostra de que maneira, a partir das narrativas de vida, é possível entender traços das determinações socioculturais, morais, éticas; enfim, de todo um habitus que constituem matrizes de conduta nas famílias, nos processos formativos resultantes da escolarização; além disso, por meio dos relatos dos sujeitos em relação ao mundo laboral, é possível compreender lógicas do percurso de vida laboral dos atores sociais e dinâmicas internas das organizações, de determinado ramo profissional em sua longa duração; Bertaux defende que cada empresa constitui um microcosmos de trabalho e de vida, regulado por normas tácitas, regras, hierarquias e relações de poder.

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Essa diversidade de abordagens, como ressalta Bertaux (1980), contribuiu para se afirmar a potencialidade dos relatos de vida para que as pesquisas pudessem buscar compreender aspectos psicossociais a partir de uma perspectiva dita “de dentro”, considerando os pontos de vista dos sujeitos, de suas singularidades e de suas vivências; contudo, os autores supracitados ressaltam, cada um à sua maneira, que, qualquer que seja a corrente de investigação de narrativas de vida, é preciso considerar a indissociabilidade e a dialética entre a singularidade e a coletividade, uma vez que as subjetividades resultam de um intersubjetividade, da inscrição do sujeito em inúmeros grupos de pertença que partilham crenças, valores e posicionamentos político-ideológicos. Delory-Momberger (2012; 2016) apresenta um panorama elucidativo que nos permite entender os parâmetros epistemológicos e metodológicos que fundamentam as pesquisas biográficas. Essa autora inquire acerca de quais seriam a natureza do saber, do objeto e dos objetivos que visam tais pesquisas, assim como quais seriam seus pontos de partida. Segundo essa pesquisadora, as abordagens biográficas buscam entender os processos de individuação e de subjetivação que resultam dos processos intersubjetivos vividos pelo sujeito, a partir de um exame das dimensões antropológica, cognitiva, psicossocial e semiótica; trata-se de analisar como o sujeito discursiviza suas vivências e experiências que são determinadas pelos aspectos psicossociais e históricos. Essa narrativização de vivências, de acordo com a supracitada autora, pode ser entendida como um processo contínuo de elaboração acumulativa, integrativa e interpretativa de experiências; DeloryMomberger (2012; 2016) denomina esse processo de biografização, que é definido como um mecanismo pelo qual cada um de nós inscreve sua

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experiência em um esquema temporal a partir de uma “razão”, de uma “lógica” narrativa, pela qual construímos sentidos para nossas ações, para os eventos e os fatos que vivenciamos cotidianamente; o que nos permite dar uma forma própria a nós mesmos, termos um sentimento de unidade e projetarmos, assim, uma identidade narrativa, conceito de Ricouer (2014). Delory-Momberger (2012; 2016) ressalta que, entre as diversas formas de biografização, aparência física, maneiras de se comportar, de se vestir, de falar, de se relacionar no espaço social, a atividade linguageira, especificamente, a narrativa constitui a modalidade mais elaborada, uma vez que ela testemunha a dimensão temporal das experiências e do agir humano; constitui, pois, uma atividade hermenêutica prática que permite ao sujeito elaborar um quadro de estruturação-significação contínuo de suas vivências e de suas experiências. Essas reflexões da supracitada autora acerca do caráter estruturador da narrativa, a ênfase na capacidade da mise en intrigue (do enredamento) no processo de construção de significação para as ações, para os fatos e para os eventos cotidianos é também destacada por Bruner (2004) e por Bertaux (2006) foi o que permitiu que a Análise do Discurso viesse a dialogar com tais campos de investigação, efetuando uma interdisciplinaridade focalizada 7. Assim como na Sociologia e na Psicologia, os Estudos do Texto e do Discurso, qualquer que seja sua corrente, consideram sempre a língua e a linguagem relacionadas às condições psicossociais e históricas nas quais os atos de linguagem são produzidos.

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Termo de Charaudeau (2009; 2011).

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Assim sendo, tanto os autores supracitados quanto a Análise do Discurso adotam um conceito construcionista de narrativa; esta é definida como um processo de construção de sentidos pelo qual os sujeitos representam o mundo, por meio de atividades de categorização e de simbolização da realidade; como mostra Charaudeau (1983), trata-se de construir a realidade em um real significante. No processo de narrativização, de biografização da existência, como ressalta DeloryMomberger (2016), o sujeito deixa marcas das determinações de crenças, de valores, de afetos, de imaginários, e, completamos, de posicionamentos político-ideológicos, na constituição de sua subjetividade, dimensão que analisamos na quarta seção deste artigo. O projeto Escritas de si apresenta semelhanças com as abordagens implementadas e teorizadas por Pineau (2006), por Rhéaume (2002) e por Delory-Momberger (2009); os diversos atores sociais que o integram (docentes e trabalhadores (as) terceirizados (as)) buscam implementar um processo formativo centrado nas narrativas de vida, que visa permitir com que eles e elas reflitam sobre a vida, sobre suas vidas e possam vir a reinscrever suas existências em um novo projeto; a ênfase no letramento crítico, de (re) existência visa levar esses sujeitos a vivenciar um possível processo de empoderamento; objetivo que motiva os projetos de pesquisação e de intervenção à luz da Sociologia Clínica, cuja postura metodológica, como como ressalta Rhéaume (2002), considera inseparável o relato da intervenção; e ainda, a preocupação com o outro, a busca por compreender os sentidos que os sujeitos atribuem a suas aspirações, a seus medos e a seus projetos pessoais. Essa abordagem busca ser útil aos grupos e responder a demandas sociais vislumbrando levá-los a um empoderamento.

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Discursos e Organizações

Rhéaume (2002) elenca algumas dimensões desse processo de busca de empoderamento; este visa ao desenvolvimento: i) de estima de si; ii) de competências; de consciência social e crítica; iii) de participação nos quadros sociopolíticos; são ações que vislumbram a redução de desigualdades sociais. Nesse mesmo sentido, Delory-Momberger (2016) afirma que as pesquisas biográficas apresentam uma dimensão ética e política, pois ao assumir atitude de abertura, de escuta e de cuidado em relação ao outro, ao buscar fazer emergir saberes e pontos de vista “do interior” dos indivíduos, contribui, assim, para a afirmação de discursos contra-hegemônicos e para a possível instauração de práticas de governança democrática. Ne sequência, a fim de buscar entender melhor os sentidos acerca do trabalho precarizado e das desigualdades sociais que são construídos no e pelo processo de biografização vivido no desenvolvimento do projeto Escritas de si e que são discursivizados nas narrativas de vida, dialogamos com a Sociologia do Trabalho, inquirindo os possíveis sentidos sobre a noção de trabalho precarizado. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS SENTIDOS POSSÍVEIS ATRIBUÍDOS À NOÇÃO DE PRECARIEDADE DO TRABALHO

Como já salientamos, pesquisas em Ciências Sociais que têm como eixo central as narrativas de vida, permitem que acessemos um conhecimento a partir da perspectiva dos sujeitos, dos sentidos que eles constroem para suas vivências e para suas experiências. Beckenkamp Vargas (2017) busca refletir sobre a precariedade do trabalho a partir de um ponto de vista multidimensional e construtivista, que nos leva a entender tal noção como categoria social resultante das interações sociais e de determinações sóciohistóricas. Esse autor afirma que essa

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categoria pode ser observada tanto a partir do estatuto social do emprego ou da ocupação exercida quanto a partir da relação entre as dimensões objetiva e subjetiva, quando se considera o trabalho como atividade que visa a fins econômicos e que é exercida em condições que apresentam vulnerabilidade, degradação ou risco. A primeira dimensão permite analisar as condições de trabalho tais como o local, o ambiente, os meios e os instrumentos de trabalho; a segunda, a consciência, as experiências dos sujeitos, suas ações e suas representações em circunstâncias concretas de existência. É justamente essa dimensão subjetiva que, acreditamos, as narrativas de vida que constituem o corpus deste nosso artigo nos permitem analisar, uma vez que os (as) trabalhadores (as) terceirizados (as) constroem sentidos e mobilizam imaginários sócio-discursivos acerca de diversas dimensões do trabalho e de sua precarização que parecem confirmar algumas das definições que Beckenkamp Vargas (2017) propõe para os termos. Segundo esse pesquisador, podemos entender o trabalho: i) como ofício, como profissão aprendida e dotada de uma dimensão concretaabstrata; nesse nível, a precariedade pode ser aferida objetivamente por meio do exame de jornadas, dos níveis de segurança e, também, pelas representações que os sujeitos elaboram em relação às suas condições de trabalho, considerando, ainda, doenças físicas e/ou mentais como índices de precariedade; ii) como atividade social situada, passível de reconhecimento social e de retribuição material e simbólica em relação a um sistema institucionalizado de relações; trata-se de levar em conta uma atividade laboral pela qual o sujeito pode se reconhecer e ser reconhecido; assim sendo, constitui fator de sua formação identitária. Nessa segunda acepção, afirma Beckenkamp Vargas (2017), o nível de precariedade pode, também, ser pensado em sua dupla dimensão

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objetiva e subjetiva; a primeira leva-nos a refletir sobre os critérios que estabelecem direitos, tipo de vínculo empregatício e formalidade; a segunda considera como o sujeito representa os mecanismos institucionais de proteção e de reconhecimento; nesse nível, por exemplo, o sujeito pode sentir-se inseguro devido à não proteção previdenciária e à não assinatura de sua carteira. Quanto à questão do reconhecimento, o supracitado autor salienta que pode haver reconhecimento, valorização, um reconhecimento insuficiente e mesmo uma desvalorização completa. Como veremos na próxima seção, as narrativas de vida que analisamos revelam um sentimento de insegurança devido à falta de estabilidade quanto ao vínculo empregatício e, também, o impacto em suas subjetividades do não reconhecimento e de desvalorização de sua atividade laboral na Instituição por determinados atores sociais. Beckenkamp Vargas (2017) também reflete sobre os diversos critérios sociológicos que nos permitem pensar os sentidos da noção de precaridade do trabalho; assim, este autor passa em revista concepções de Marx, de Durkheim e de Weber, além de apresentar pontos de vista de outros estudos sobre o fenômeno, tais como o de Castels e de Paugam, por exemplo. Devido aos limites deste trabalho, iremos salientar somente algumas pontuações que nos ajudaram a analisar os sentidos que os (as) trabalhadores (as) sinalizaram em suas narrativas de vida. Esses relatos apresentam algumas recorrências que nos permitem pensar alguns dos sentidos atribuídos ao trabalho e à precariedade elencados por Beckenkamp Vargas (2017), como por exemplo: i)

o trabalho entendido como atividade metabólica sobre a natureza, pela qual o homem reproduz suas condições materiais de existência;

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ii) o processo de precarização que se deu em função de uma “ruptura do trabalho estável”, considerado como forma adequada, fundamentada nos critérios do direito e da seguridade social, como teoriza Castel; segundo Beckenkamp Vargas (2017), Castel mostra que tal ruptura levou os trabalhadores a terem de ocupar “formas atípicas de emprego”, fenômeno que tem como marco os anos 1990, durante os quais foi possível observar um processo profundo de fragilização do trabalhador e do estatuto do emprego, associado à precarização social; assim, foi a crise do capitalismo que concorreu para instaurar um modelo de trabalho e de regulação social calcado na flexibilização de produção e de relações trabalhistas; iii) por fim, Beckenkamp Vargas (2017) cita Paugam, quem pensa a precariedade do trabalho a partir do estatuto do emprego e das relações subjetivas do indivíduo com o trabalho (laços de pertença, sensação de que se é útil à organização, sentimento de reconhecimento material e simbólico, estabilidade e segurança econômica); Paugam, explica Beckenkamp Vargas (2017), propõe considerar a satisfação do indivíduo com o trabalho a partir de três dimensões, o que confirma a necessidade de se levar em conta a relação subjetiva do trabalhador com seu trabalho: i) a dimensão do homo economicus: permite relacionar a satisfação a fatores tais como o salário, a carreira e o trabalho; que, nessa dimensão, é visto como meio para o alcance do bem estar material e para um estilo de vida; ii) dimensão do homo faber: aponta para o prazer do sujeito com o ofício desempenhado; nesse âmbito a satisfação é também aferida pelo grau de autonomia e pela liberdade de iniciativa e iii) dimensão do homo sociologicus: em que a satisfação pode ser medida analisando-se as relações que os sujeitos estabelecem entre si na organização.

Foram essas reflexões teóricas que nos permitiram compreender os diversos sentidos que os sujeitos trabalhadores (as) terceirizados (as) construíram sobre os tipos de trabalho que realizaram ao longo de suas trajetórias de vida, sobre as desigualdades vividas/sofridas no ambiente de trabalho, sobre as relações trabalhistas, sobre o reconhecimento ou não de seus ofícios, entre outras dimensões. Ainda ancorados em

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Beckenkamp Vargas (2017), salientamos que é preciso destacar que, no caso brasileiro, comumente, relaciona-se a precariedade à informalidade e ao trabalho não protegido; vivemos em um país periférico, que possui camadas de sua população à margem do desenvolvimento econômico, como argumenta o supracitado autor; não chegamos a viver em uma sociedade salarial; assim, partilhamos imaginários fundamentados em outros padrões normativos de referência quanto ao trabalho, tais como o imaginário do emprego autônomo, do empreendedor, dos pequenos negócios, do “viver de bico”; o emprego instável no Brasil, pontua Beckenkamp Vargas (2017), é institucionalizado ao lado do assalariado. Vejamos, então, na última seção deste artigo, quais imaginários e sentidos os (as) terceirizados (as) do CEFET-MG constroem em relação às suas experiências e vivências com o trabalho, com a precarização do trabalho e com as desigualdades sociais. IMAGINÁRIOS SÓCIO-DISCURSIVOS ACERCA DO TRABALHO TERCEIRIZADO, DA PRECARIEDADE E DOS IMPACTOS DO PROJETO DE FORMAÇÃO ESCRITAS DE SI NAS SUBJETIVIDADES

Como apresentamos na seção II desse artigo, o processo pelo qual os sujeitos biografizam suas vivências e suas experiências deixam marcas em suas narrativas, da dialética entre o individual e social; o que constitui suas subjetivações; assim, é possível que o (a) pesquisador (a) faça inferências sobre as crenças, sobre os posicionamentos políticoideológicos e sobre os imaginários que determinam as maneiras de ser, de parecer, de julgar/avaliar e de se comportar nos diversos grupos e esferas sociais, nos diversos domínios de atividade prática nos quais os sujeitos se engajam em interações comunicativas. Uma das correntes

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em Análise do Discurso 8 que nos possibilita analisar narrativas de vida baseia-se nas teorizações do linguista francês Charaudeau (1983) que, como definimos na Introdução, define o ato de linguagem como resultante de uma relação indissociável entre uma dimensão psicossocial e histórica e uma dimensão discursivo-linguística. A dimensão psicossocial (externa) abarca as Circunstâncias de discurso (determina as finalidades do ato de linguagem, os papeis sociais e linguageiros a serem exercidos, as temáticas, os gêneros de discurso que devem ser empregados em uma situação comunicativa, os saberes e os imaginários sócio-discursivos partilhados pelos sujeitos); a dimensão discursivo-linguística (interna) refere-se à materialidade do dizer, ao texto resultante da interlocução, do processo enunciativo, no qual e pelo qual um sujeito comunicante projeta imagens de si, a partir de um sujeito enunciador e de destinatários ideais; procedendo, assim, a uma semiotização do mundo, a partir do agenciamento de signos verbais e não verbais e organizando as categorias da língua, a fim de materializar suas intenções (in) conscientes, suas estratégias discursivas por meio da mobilização de procedimentos enunciativos, descritivos, narrativos e argumentativos. As teorizações de Charaudeau (2009; 2011), como mostra Machado (2016), permitem-nos realizar uma interdisciplinaridade focalizada com outros campos do conhecimento; trata-se de integrar, à análise de discursos, categorias e ferramentas advindas de outros campos do saber;

Falamos em “análises de discursos” porque, desde seu surgimento no contexto francês nos anos 1960, surgiram diversas outras correntes e foram propostas pesquisas de diversos discursos além do político; refiro-me: i) à análise de discurso de talhe pêcheutiano que visa analisar posicionamentos ideológicos a partir de uma perspectiva materialista; ii) à Análise Crítica do Discurso, a partir das teorizações de Fairclough; iii) análises de discurso à luz das reflexões teóricas do filósofo russo Mikhail Bakhtin, para citar somente algumas.

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porém, sem se perder a especificidade do ponto de partida que governa os Estudos do Texto e do Discurso. Nesse sentido, Machado (2016) e outros (as) estudiosos (as) têm realizado um frutuoso diálogo com os estudos da etnossociologia de Bertaux (1980, 2006) que, como vimos na Seção 2, definiu o termo récit de vie, a fim de salientar que uma narrativa de vida resulta de processos de narrativização de experiências e de vivências, pelos quais o sujeito que se conta (ao pesquisador ou a uma outra pessoa) busca reconstruir suas vivências, atribuindo-lhes um possível sentido e avaliando-as; esse processo de discursivização de si, de biografização, vimos, produz, assim, uma possível versão que um sujeito constrói para sua vida ou parte de sua trajetória de vida segundo um objetivo de pesquisa e em uma determinada instância de enunciação. Tanto as teorizações de Charaudeau (2006; 2009) quanto as de Bertaux (1980; 2006) enfatizam a importância para a pesquisa com narrativas de que seja considerada uma dimensão sociossimbólica que é constitutiva das subjetividades. Bertaux (1980) defende que é preciso que seja superada a cisão, nos estudos sociológicos, entre um enfoque socioestrutural (estudo de classes, de modos de vida, de ciclos, de aspectos materiais de uma cultura) e um enfoque sociossimbólico (estudo de fenômenos simbólicos, com observação de formas e de estruturas particulares, indagando crenças, valores, representações circulantes); de forma semelhante, Charaudeau (1999) define um método de análise de discurso chamado de representacional-interpretativo, a partir do qual o pesquisador parte de um corpus empírico, realizando recortes, determinadas operações de (des) construção, de busca de recorrências de signossintoma de possíveis imaginários sócio-discursivos. Charaudeau (2006) definiu esse conceito a partir de uma interdisciplinaridade focalizada com a Psicologia Social, refletindo sobre o

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conceito de representações sociais, de Serge Moscovici, e com a Sociologia, incorporando o conceito de imaginário, de Castoriadis 9. De maneira sucinta, a fim de não extrapolarmos os limites deste artigo, podemos definir os imaginários sócio-discursivos como significações que os grupos e os diversos domínios de prática social constroem sobre o mundo, sobre os seres, sobre os objetos e os sobre fenômenos. Esses imaginários resultam da mecânica de produção de representações sociais (processo de simbolização mais geral que constrói a realidade em real significante) que produzem conhecimentos e saberes sobre o mundo (do tipo científico, de experiência e de crenças – ideologias, doutrinas, opiniões). Charaudeau (2007) salienta que as representações e os imaginários tais como concebidos pela Antropologia identificam-se a discursos de racionalização que concorrem para a organização social sendo manifestados em rituais, em lendas e em mitos. De maneira geral, podemos dizer que os imaginários sócio-discursivos engendram um processo de simbolização de ordem afetivo-racional que cria valores; estes justificam as ações e determinam visões de mundo, maneiras de avaliar e de comportar dos sujeitos; assim sendo, os imaginários constituem a base para a formação de um cimento garantidor do laço social e da identidade de um grupo. Charaudeau (2006) salienta que eles são de natureza discursiva, uma vez que se materializam em elementos linguageiros – signos verbais e não verbais. Os diversos domínios de prática social exercem a função de filtros axiológicos na criação de representações e de imaginários sócio-discursivos; assim, ao se descrever, ao se nomear e ao se qualificar determinado

Para uma visão aprofundada de como o autor procede a essa interdisciplinaridade, remetemos o leitor ao texto Charaudeau, P. (2007). Les stéréotypes, c’est bien, les imaginaries, c’est mieux. In H. Boyer (Dir.). Stéréotypage, stereotypes: fonctionnements ordinnaires et mises en scène (pp. 49-63). Paris: L’Harmattan.

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objeto, ser ou fenômeno, predicando-o com traços semânticos positivos ou negativos, cria-se um determinado signo-sintoma de um imaginário 10. Essas teorizações nos levaram, então, a propor as interrogações que guiam nossa análise neste artigo: i) quais seriam os signos-sintoma de imaginários sócio-discursivos que os trabalhadores (as) terceirizados (as) do CEFET-MG, Campus I, mobilizam em suas narrativas de vida sobre o trabalho precarizado; dito de outro modo, quais as significações e quais valores esses sujeitos constroem acerca do trabalho terceirizado e das desigualdades sociais que vivem/sofrem nesta Instituição e ii) quais imaginários eles mobilizam sobre o projeto Escritas de si e sobre as possibilidades de (re) inscrever suas vidas em novo projeto de existência? Como vimos, com Beckenkamp Vargas (2017), é possível analisar os sentidos possíveis que podem ser atribuídos ao trabalho precarizado a partir tanto de uma dimensão objetiva quanto subjetiva. As narrativas de vida que constituem o corpus de análise deste artigo permitem-nos, como dissemos, observar significações que nos revelam ambas as dimensões teorizadas pelo supracitado autor; permitem-nos, assim, verificar como tal categoria resulta de uma construção do sujeito trabalhador. Em diversos relatos, foi-nos possível inferir o que podemos chamar de um imaginário sócio-discursivo do trabalho como relação metabólica com a natureza, definido como uma atividade que permite

O autor salienta que um mesmo imaginário pode ser positivo para um determinado domínio de prática e negativo para outro; por exemplo, o imaginário da tradição pode ser avaliado positivamente nos domínios religioso e político, mas negativamente, nos domínios econômico e tecnológico; no caso que analisamos, é possível observar que empresários e determinados políticos constroem imaginários positivos sobre o trabalho terceirizado; o contrário de sindicalistas e de outros atores sociais que atribuem traços negativos a essa modalidade de contratação.

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ao homem a reprodução de suas condições materiais de subsistência; nesse sentido, segundo Marx, como explica Beckenkamp Vargas (2017), podem ser atribuídos sentidos ao trabalho como atividade garantidora da manutenção das condições de sobrevivência pessoal e coletiva; além disso, podemos observar traços da dimensão do homo economicus, segundo Paugam, citado por Vargas (2017 ); consideramos que podemos abstrair os possíveis signos sintoma de tal imaginário nos seguintes trechos: (1) Minha mãe é diarista, sempre batalhou para nos criar. (ALINE SILVA SANTOS) (nossos os grifos) (2) Passamos por muitas dificuldades, mas não desistimos de lutar. Minha mãe foi uma guerreira. Não tive, então, na minha infância, nenhuma oportunidade, como a que estou tendo agora. A minha vida era só trabalhar, trabalhar, não tive tempo de estudar, porque, quando meu pai morreu, tive que sair da escola, para ajudar minha mãezinha nas batalhas do dia a dia, para acabar de criar meus irmãos, mas, mesmo assim, sou muito feliz. Peço a Deus que abençoe minha mãe e meus irmãos para sempre. (ONOFRE LOPES DA COSTA) (nossos os grifos) (3) Me chamo Wesley Gondinho dos Santos, nasci em 25 de novembro de 1993, em um hospital localizado em Eunápolis, Bahia. Lembro que minha mãe não tinha condições de ficar cuidando de mim, por isso ela me deixava com minha avó para ir trabalhar e, assim, me manter. (WESLEY GONDINHO DOS SANTOS) (nossos os grifos)

Como pode ser observado, nos trechos acima e em outros que constam do corpus, os sujeitos enunciadores mobilizam índices que mostram que eles atribuem significações que constroem representações da atividade laboral que exerceram como sendo de natureza precarizada, uma vez que muitos sujeitos sofreram com o trabalho infantil ou exercido na adolescência a fim de garantir o sustento da família. Os diversos signos

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sintoma usados para referenciar tais atividades e seu impacto no processo

de

construção

da

subjetividade

carreiam

sentidos

axiologicamente negativos: “batalhar”; “muitas dificuldades”; “muito aperto”, entre outros. Outro imaginário sócio-discursivo que pode ser inferido é aquele que é associado à necessidade de ter de desempenhar formas atípicas de emprego ao longo de sua trajetória de vida, como define Castel, citado por Beckenkamp Vargas (2017); tais formas, explica este autor, são caracterizadas pela precarização em função da perda de direitos, de seguridade social e de estabilidade; trata-se de uma consequência da mudança de um modelo calcado na convivência entre competitividade e segurança trabalhista, com estado de bem-estar social, para um estado de desarticulação da classe trabalhista, de seus sistemas protetivos, a partir do recrudescimento do neoliberalismo. No Brasil, salienta Beckenkamp Vargas (2017), estabeleceu-se um estado de precariedade estrutural do trabalho. Essa desarticulação a que se refere o autor contribui para reforçar as desigualdades sociais no ambiente de trabalho, sentimento vivido/sofrido e relatado pelos (as) trabalhadores (as) terceirizados (as). Vejamos alguns signos-sintoma que parecem sinalizar como o sujeito tem sido obrigado a desempenhar tais formas atípicas de labor: (4) Tive muitas experiências de trabalho: casa de família, balconista de barzinho e, até, em colheita de café. Há 11 anos meu esposo faleceu e resolvi vir para Belo Horizonte, onde meus pais e irmãos moram. Não foi fácil deixar minha cidade. Arrumei um trabalho em uma empresa e trabalhei durante dois anos. Saí, porque a empresa havia perdido o contrato. Fiquei muito triste, pois gostava muito de trabalhar lá. Achei que não encontraria outro trabalho como aquele, mas me enganei, porque Deus me deu um outro muito melhor, na

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família Conservo. Gosto muito de trabalhar aqui no CEFET, gosto dos alunos, dos professores, das pessoas que trabalham aqui pela educação e com carinho. Tenho muito orgulho de fazer parte, de certa forma, do CEFET, agradeço pela oportunidade oferecida de poder aprender um pouco mais. Agradeço a todos que estão nessa caminhada comigo. Espero continuar no CEFET por muitos anos, pois gosto muito daqui. (ELIANA DE OLIVEIRA) (5) Quanto à vida profissional, me senti muito importante quando tirei minha carteira de trabalho. Meu primeiro emprego, com apenas 17 anos de idade, era temporário, por contrato em época de natal, e exerci a função de balconista na antiga Lojas Brasília. Acabei ficando lá por dois anos. Depois fui balconista de padaria na rua da Bahia. Trabalhei também em restaurantes, fui babysitter, faxineira, cuidei de idoso e, agora, estou no CEFET. Aqui é muito prazeroso, sou amiga de todos, gosto dos meus encarregados, que me aconselham. Sempre aprendo bastante com eles. (CLAUDETE DA SILVA) (6) Os meus planos para o futuro são: continuar aqui com meus amigos e, Deus abençoando, ter o contrato renovado, ter mais surpresas, como uma futura esposa e, quem sabe, casar mesmo, constituir família. (RONALDO OLIVEIRA MENDES)

Como podemos observar, nos trechos (4) e (5), ambas as trabalhadoras relatam a necessidade de terem tido necessidade de passar por diversos empregos, onde desempenharam diversas funções, ao longo de suas trajetórias de vida; em (4), a enunciadora avalia negativamente a perda do contrato que a permitiria continuar trabalhando em uma empresa onde se sentia bem, ela usa o grupo nominal “muito triste” para predicar a experiência que viveu diante do processo de não renovação à época; em (5), também, relata-se a vivência da rotatividade quanto ao trabalho. Em (6), o enunciador sinaliza o quão importante é manter o contrato laboral a fim de se poder almejar uma vida de estabilidade financeira e familiar, para vislumbrar o acalento de fazer projetos futuros.

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Em oposição a esse tipo de formas atípicas de empregos, avaliadas negativamente pelos sujeitos, há alguns (as) trabalhadores (as) que mobilizam o imaginário sócio-discursivo da carteira assinada ou do “trabalho fichado”, o qual recebe predicações positivas, que indicam a valorização da manutenção de direitos de seguridade social entre outros. Vejamos: (8) Formei e, até os 22 anos, trabalhei como autônomo. Estava doido para trabalhar fichado, para começar a pagar o INSS. Nessa época, a gente já tinha essa preocupação, foi quando conheci um encarregado de uma empresa chamada Plantar. (JULIMAR RODRIGUES DOS SANTOS) (nossos os grifos) (9) Em relação ao salário, em comparação ao que eu recebia antes – quando o salário mínimo era 500 reais –, agora eu estou bem melhor. A gente lutou para receber periculosidade e insalubridade e agora a gente já recebe. O tempo que eu mais tenho de Carteira de Trabalho assinada é aqui no CEFET, onde fiz 16 anos de trabalho. Os demais empregos devem dar mais uns cinco anos de trabalho fichado. Eu penso que, se eu tivesse começado mais cedo a trabalhar com carteira, ficava mais fácil para eu me aposentar. Mas, na época, não tinha esses projetos de menor aprendiz, então eu trabalhei de ajudante de pedreiro e serralheiro. (RONALDO OLIVEIRA MENDES) (nossos os grifos)

Até aqui, é possível verificar como as narrativas de vida sinalizam recorrências quanto às significações que os sujeitos constroem para a relação que mantêm com o trabalho, para as relações interpessoais e para a precarização do trabalho, bem como para as relações de desigualdade que vivem e sofrem em decorrência desta modalidade laboral, vejamos: (10) Em 1998, o Luís Claudio me chamou para trabalhar no CEFET. Quando comecei a trabalhar havia uma rejeição em relação aos terceirizados. Eles falavam assim: vocês vão tomar banho aqui? Lugar de vocês tomarem banho é junto com

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os terceirizados. A gente ficava meio triste, mas isso foi superado. Hoje, o relacionamento é bom, mas ainda tem uma certa diferença: uns são estatutários e outros não. Por exemplo, os que trabalham no CEFET tiram folga, mas os que trabalham na Vale não podem. Tirando isso, não vejo nada que precisa melhorar. Não tenho nada que reclamar do CEFET nem da Conservo. Os equipamentos de segurança e materiais chegam certinho. Pensando nos pontos positivos trabalhar no CEFET é bom pela convivência com o pessoal, com os alunos. A gente anda meio na sombra, mas faz parte, existe essa separação em todo lugar, não ia ser diferente aqui. De negativo, só o salário mesmo, se desse para ganhar mais, ajudaria bastante. (PAULO SANTOS CRISÓSTOMO) (nossos os grifos) (11) Trabalho em uma escola que abriu as portas para quem não sabe nem escrever o nome. Trabalho no CEFET há muito tempo e me sinto muito bem aqui. Peço a Deus para só sair daqui quando pegar minha carta de aposentaria, meu sonho! Me sinto feliz trabalhando no CEFET, prestando o meu serviço, fazendo aquilo que gosto, que é fazendo a limpeza. Muita gente não vê com bons olhos o serviço de limpeza, mas eu me vejo com bons olhos, vejo que sou capaz de fazer um bom serviço. (VERA LUCIA LOPES DOS SANTOS) (nossos os grifos)

Nesses dois últimos trechos, os enunciadores denunciam as desigualdades vividas/sofridas em ambiente de trabalho; cada um, à sua maneira, biografiza como viveu/vive o processo de desqualificação profissional e de precarização que impõe uma ruptura do trabalho estável e testemunha, de forma contundente, a divisão sociotécnica do trabalho, geradora de estratificação e de hierarquização social, como teorizou Marx, como explica Beckenkamp Vargas (2017). Em (8), o enunciador narrativiza um sentimento de “rejeição” dos trabalhadores qualificados de “estatutários” em relação aos “terceirizados”; marca, em seu dizer, o distanciamento entre um “nós”, do ponto de vista do trabalhador terceirizado quem discursiviza suas vivências, e um “eles”, os trabalhadores estáveis, pertencentes aos quadros da Instituição

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Federal; em (9), a enunciadora, também, marca a distinção entre um “eu”, que exerce a função de limpeza geral e um “eles”, lexicalizado pelo grupo nominal “muita gente”, o qual avalia negativamente a pessoa que exerce tal tipo de serviço. Em (8), o enunciador, utilizando, também, o pronome “a gente”, que remete a todo o coletivo de terceirizados (as) do CEFET-MG, afirma “a gente vive na sombra”; trata-se de uma metáfora, entre outras, que parece constituir um signo-sintoma que muitos desses (as) profissionais têm consciência da situação de invisibilidade que vivem/padecem na Instituição. Nos excertos (4), (5), (8) e (9), é possível identificar outros signossintoma que são recorrentes nas narrativas de vida de trabalhadores (as) terceirizados (as) do CEFET-MG, quais sejam, signos que expressam sonhos e desejos de uma vida melhor no futuro, de (re) inscrever sua vida em novos projetos de vida e em novos projetos laborais; identificamos, assim, uma rede de significações que se relacionam ao imaginário sócio-discursivo que pode ser associado à ideia do homo faber, de Paugam, que exprime sentimentos de satisfação do sujeito com o ofício desempenhado e com a autonomia em relação à atividade laboral. Nesta última parte de nossa análise, refletimos, então, sobre os impactos do projeto Escritas de si na vida desses sujeitos e os sentidos que eles constroem sobre essa experiência de educação popular. Em diversas narrativas, é muito recorrente a mobilização de um imaginário sócio-discursivo do ensino ou do acesso ao ensino como possibilidade de ascensão social e/ou de exercício de uma função laboral prazerosa, como podemos ver nestes trechos seguintes:

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(12) Tenho dois sonhos: ter uma casa e fazer um curso de confeiteira. Eu quero ser confeiteira, porque gosto de fazer bolos, pães e doces. Sempre, no final do ano, faço um almoço especial para todos. (CLEUZA MARIA DIAS LOPES) (13) Pretendo tirar minha carteira de motorista e fazer um curso de Engenharia Mecânica ou Gastronomia, para conseguir um serviço melhor na área que eu gosto. (ALINE DA SILVA SANTOS) (14) Desejo futuramente ser uma psicóloga, tentar descobrir, desvendar a mente do ser humano, apesar de achar que eu nunca vou descobrir o que se passa na cabeça de uma pessoa que pensa diferente. Quanto ao projeto “A escrita de si”, o acho maravilhoso, eu admiro muito a equipe e acho que a gente não está correspondendo tanto à dedicação que a equipe tem com a gente. O projeto tem ajudado a despertar meu interesse pela leitura, tem me ajudado a procurar ouvir mais e falar menos. O projeto está me moldando, me ensinando como ser mais tolerante no trabalho. Gostaria de deixar uma mensagem: que haja outros projetos como esse. Agradeço a todos por se interessarem em nos ensinar. Desejo continuar estudando para, no futuro, fazer uma faculdade de Psicologia, aí, sim, tudo terá valido a pena! (PATRÍCIA ISABEL OLIVEIRA)

Nestes últimos trechos, além de observarmos a presença de signossintoma do imaginário que nos remete à ideia do homo faber, como teoriza Paugam, os sujeitos narrativizam e avaliam o impacto do projeto Escritas de si em seu processo de formação e em suas subjetividades. As três trabalhadoras nos mostram como um projeto de educação popular, baseado na filosofia de um letramento crítico, de (re) existência, como pontuam Cestari; Pacheco; Claudino (2021), pode contribuir para que os sujeitos reflitam sobre a vida, sobre suas vidas e as (re) inscrevam em novos projetos de existência pessoal ou profissional. Tanto em (10) quanto em (11), as trabalhadoras afirmam que, futuramente, pretendem exercer atividade laboral que lhes dê mais prazer; em (11), a enunciadora, ao utilizar o grupo nominal “serviço melhor”, implícita seu desejo de melhorar as condições de trabalho e de vida, após ter sido levada a

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desempenhar diversas formas atípicas de trabalho, como teoriza Castel, citado por Beckenkamp Vargas (2017); em (10), observamos índice do desejo de se fazer uma passagem de uma atividade laboral entendida somente como garantidora do sustento para um trabalho que pode ser fonte de satisfação pessoal e de prazer. Finalmente, em (12), a trabalhadora constrói significações que carreiam traços positivos e concorre, assim, para a construção de um imaginário sócio-discursivo da formação e da educação como possibilidade de ascensão profissional e como atividade que forma o caráter do sujeito, possibilitando o desenvolvimento de habilidades não só de cunho técnico, mas humano e psicossocial, como a enunciadora afirma quando diz: “o projeto está me moldando, me ensinando como ser mais tolerante no trabalho”. Há inúmeros outros aspectos que gostaríamos de analisar para este artigo, contudo, deixemos para outros textos e para a dissertação que terá como corpus esse conjunto de narrativas de vida; passemos, então, às nossas considerações finais. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos analisar os possíveis sentidos e imaginários sócio-discursivos que trabalhadores (as) terceirizados (as) do CEFET-MG, campus I, construíram, em suas narrativas de vida, sobre suas experiências laborais, sobre as desigualdades sociais vividas/sofridas nesta Instituição e sobre os impactos do processo de precarização e de flexibilização do trabalho que vivenciam (ram) ao longo de suas trajetórias de vida, e, também, sobre os impactos do projeto de educação popular Escritas de si em suas subjetividades. Para alcançar tal objetivo, guiamo-nos por um procedimento de interdisciplinaridade focalizada,

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proposto por Charaudeau (2009) que nos permite dialogar com outros campos disciplinares sem perder a especificidade da disciplina a qual nos filiamos; assim sendo, buscamos mostrar que tanto a Etnossociologia de Bertaux (2006), os estudos sobre as narrativas de vida nos campos da Educação e da Sociologia Clínica quando a abordagem representacional-interpretativa de Charaudeau (2009; 2011) propõem análises que nos possibilitam investigar uma dimensão sociossimbólica subjacente à produção de significações resultantes dos processos interacionais vivenciados nos diversos domínios de prática sócio-discursivos; entre eles, focalizamos o domínio organizacional de uma empresa que fornece serviços terceirizados para uma instituição federal. As análises feitas parecem confirmar os estudos da Sociologia do Trabalho, especificamente, as reflexões de Beckenkamp Vargas (2017), que nos serviram de suporte para fundamentarmos nossas inferências quanto aos sentidos e imaginários possíveis que os (as) trabalhadores (as) construíram sobre o trabalho, sobre relações de trabalho precarizadas e sobre os efeitos do projeto Escritas de si em suas vidas. Foi recorrente nas trinta e quatro narrativas de vida publicadas na coletânea a mobilização de imaginários sócio-discursivos que projetam significações axiologicamente negativas quanto à necessidade de ter de desempenhar formas atípicas de emprego, resultantes do processo de precarização e de flexibilização do trabalho, que, segundo, Beckenkamp Vargas (2017), no contexto brasileiro, possui caráter estrutural; este imaginário é oposto àquele associado ao vínculo empregatício por meio de carteira assinada, avaliado como garantidor de direitos e de seguridade social pelos trabalhadores (as). Como pôde ser observado, nos relatos, há a presença de signos que parecem implicitar uma denúncia quanto às desigualdades sociais e quanto à invisibilidade vivida/sofrida

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na Instituição, causada pelos efeitos da terceirização e da divisão social do trabalho. Apesar da vivência dessas relações de desigualdade e dos impactos dos processos de precarização e de flexibilização do trabalho em suas subjetividades, os (as) trabalhadores (as) constroem imaginários dotados de significações axiologicamente positivas que são associadas às ações propostas pelo projeto Escritas de si, fundamentado em uma concepção de letramento crítico e de (re) existência. A partir desse processo formativo, os (as) participantes vislumbram permanecer nos estudos, buscar outros cursos que lhes possam levar a vivenciarem satisfação no trabalho, com um ofício que lhes dê prazer e no qual possam gozar de autonomia, uma das dimensões que, segundo Paugam, citado por Beckenkamp Vargas (2017), pode constituir parâmetro para avaliar o grau de satisfação do sujeito com sua atividade laboral. As narrativas de vida que sinalizam esse desejo de mudança, de (re) inscrição da vida em novos projetos existenciais nos motivam, nós pesquisadores (as), trabalhadores (as) em Educação, a continuar neste projeto que, agora, estendeu-se a quatro campi do CEFET-MG; são esses relatos que sinalizam superação, resiliência, consciência crítica que nos levam a continuar a propondo ações pedagógicas que contribuam para o desencadeamento de processos de empoderamento, de desenvolvimento de consciência social e crítica, o que constitui a dimensão ética e política das pesquisas biográficas, como pontua Delory-Momberger (2016). REFERÊNCIAS

Beckenkamp Vargas, F. E. (2017). Trabalho, emprego, precariedade: dimensões conceituais em debate. Caderno CRH, 29(77), 313-331.

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Bertaux, D. (2011). La perspectiva biográfica: validez metodológica y potencialidades. Acta Sociológica, 56, 61-93. Bertaux, D. (2006). Le récit de vie (2ème ed). Paris: Armand Colin. Bruner, J. S. (1987). Life as narrative. Social Research, 54(1), 11-32. Cestari, M., Pacheco, J., & Claudino, E. (2021). A escrita de si: uma proposta de educação antirracista. Anais do XI Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as, Curitiba, Brasil, XI. Charaudeau, P. (2011). Dize-me qual é teu corpus, eu te direi qual é a tua problemática. Diadorim: Revista Científica do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 10, 1-23. Charaudeau, P. (2009). Análisis del discurso e interdisciplinariedad en las ciências humanas y sociales. In L. Puig (Ed.). El discurso y sus espejos (99-133). México: Universidad Nacional Autónoma de México. Charaudeau, P. (2006). Discurso político (2a ed). São Paulo: Contexto. Charaudeau, P. (1999). Análise do discurso: controvérsias e perspectivas. In H. Mari, S. Pires, A. R. Cruz, & I. L. Machado (Orgs). Fundamentos e dimensões da análise do discurso (pp. 27-43). Belo Horizonte: Carol-Borges/UFMG/FALE/Núcleo de Análise do Discurso. Charaudeau, P. (1983). Langage et discours. Paris: Hachette. Delory-Momberger, C. (2016). La recherche biographique ou la construction partagée d´un savoir du singulier. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica, 1(1), 133-147. Delory-Momberger, C. (2012). Abordagens metodológicas na pesquisa biográfica. Revista Brasileira de Educação, 17(51), 523-536. Delory-Momberger, C. (2009). Recit de soi et formation. Revista @mbienteeducação, 2(2), 9-21. Freire, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Hooks, B. (2017). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes.

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Machado, I. L. (2016). Reflexões sobre uma corrente de análise do discurso e sua aplicação em narrativas de vida. Portugal: Grácio. Pineau, G. (2006). As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial. Educação e Pesquisa, 32(2), 329-343. Rhéaume, J. (2002). El relato de vida colectivo y la aproximación clínica em ciências sociales. Perfiles Latinoamericanos, 10(21), 99-115. Ricoeur, P. (2014). O si mesmo como um outro. São Paulo: WMF Martins Fontes. Souza, A. L. (2011). Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop. São Paulo: Parábola.

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Alexandre de Pádua Carrieri Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Cláudio Humberto Lessa Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor EBTT do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Elcio Gustavo Benini Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor Adjunto da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Elisângela de Jesus Furtado da Silva Doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais. Fabiane Louise Bitencourt Pinto Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Substituta da Universidade Federal da Bahia. Fábio Melges Doutorando em Administração pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Felipe Fróes Couto Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Montes Claros.

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Fernanda Mitsue Soares Onuma Doutora em Administração pela Universidade Federal de Lavras. Professora Adjunta da Universidade Federal de Alfenas. Georgiana Luna Batinga Doutora em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora EBTT da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Helena Kuerten de Salles Doutora em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina. Joelma Soares da Silva Doutora em Administração pela Universidade Estadual do Ceará. Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará. José Henrique de Faria Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo. Professor Titular Sênior Aposentado da Universidade Federal do Paraná. Professor Visitante da Universidade Federal Tecnológica do Paraná. Juliana Pacheco Mestranda em Educação Tecnológica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Assistente em Administração do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Luiz Alex Silva Saraiva Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Marcelo de Rezende Pinto Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Sobre as Autoras e os Autores

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Maria Carmen Aires Gomes Doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Titular da Universidade de Brasília. Matheus Arcelo Fernandes Mestre em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Minas Gerais. Viviane Vieira Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília. Professora Associada da Universidade de Brasília.

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