Direito ao esquecimento no Brasil [1 ed.]
 9788567141312

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DIREITO AO ESQUECIMENTO NO BRASIL

LUZ, Pedro Henrique Machado Direito ao esquecimento no Brasil Curitiba; GEDAI/UFPR, 2019. EDIÇÃO EM FORMATO PAPEL ISBN (Papel): 978-85-67141-31-2 1. Direito ao esquecimento. 2. Filosofia do esquecimento. 3. Internet. 4. Legislação Brasileira. PREFIXO EDITORIAL 67141 Suzana van den Tempel de Mendonça Diagramação e capa Mateus Lourenço Ribeirete Revisão As publicações do GEDAI/UFPR são espaços de criação e compartilhamento coletivo. Fácil acesso às obras. Possibilidade de publicação de pesquisas acadêmicas. Formação de uma rede de cooperação acadêmica na área de Propriedade Intelectual. Conselho Editorial Allan Rocha de Souza–UFRRJ/UFRJ • Carla Eugenia Caldas Barros– UFS • Carlos A. P. de Souza–CTS/FGV/Rio • Carol Proner–UniBrasil • Dario Moura Vicente–Univ. Lisboa/Portugal • Francisco Humberto Cunha Filho–Unifor • Guilhermo P. Moreno– Univ. Valência/Espanha • José Augusto Fontoura Costa–USP • José de Oliveira Ascensão– Univ. Lisboa/Portugal • J. P. F. Remédio Marques–Univ. Coimbra/Port. • Karin Grau-Kuntz–IBPI/Alemanha • Leandro J. L. R. de Mendonça– UFF • Luiz Gonzaga S. Adolfo–Unisc/Ulbra • Márcia Carla Pereira Ribeiro–UFPR • Marcos Wachowicz– UFPR • Sérgio Staut Júnior– UFPR • Valentina Delich–Flacso/Argentina Universidade Federal do Paraná – UFPR Faculdade de Direito Praça Santos Andrade, n. 50 CEP 80020 300 Curitiba – Paraná Fone: (55) 41 33102750 / 41 3310 2688 E-mail: [email protected]

Este obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
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AGRADECIMENTOS

Foi uma longa caminhada, embora esses dois anos de pós-graduação tenham passado em um sopro. O vazio sentido ao terminar a escrita de um trabalho que tomou tanto de mim se mistura com uma reacendida vontade de trilhar novos rumos e encontrar novos desafios. Inúmeras pessoas me ajudaram na escrita desta dissertação; tratando de um trabalho sobre memória e esquecimento, já exerço prévia defesa e peço escusas caso seja acometido por algum pecado da memória. Agradeço, inicialmente, aos que me deram todo o suporte emocional e material nesses 26 anos: meus pais e minha irmã. O amor que sinto por vocês três, aliado a vontade lhes deixar orgulhosos e felizes, fez com que, nos momentos mais tormentosos da vida, mesmo diante de incertezas, eu continuasse a estudar e buscar o melhor resultado possível. Agradeço o apoio e peço desculpas se nem sempre correspondi às expectativas. Dei meu melhor e, nas palavras da minha banda favorita: the best you can is good enough. Dedico o trabalho ao meu pai Américo, cujo trato gentil, atencioso e acolhedor com todas

as pessoas me ensinou mais do que qualquer aula de direito. À minha mãe Sara, cuja coragem, senso de humor, inteligência e empenho na profissão provocam a admiração dos que a conhecem. Dedico especialmente à minha irmã Carolina; espero que possamos cultivar uma contínua relação de companheirismo. Você é certamente a pessoa mais brilhante que já conheci. Terás o mundo em suas mãos. Do lado materno, não posso deixar de mencionar minha tia Débora, que enxergava em mim, antes de sequer entrar na faculdade, alguma predileção para tratar de temas relacionados à tecnologia. Dizia ela que eu seria matemático ou engenheiro, mas as pontes do rio da vida, como diria Nietzsche, me conduziram aos estudos jurídicos. Aos meus primos Amanda, Felipe e Guilherme. A vó Cecília e vô Borges (in memoriam) Do lado paterno, aos meus tios Ronald, Vanessa e Gilson. Em especial, a minha vó Nani, cujo amor me acompanhou desde a tenra infância, nas tardes que se arrastavam naquela simpática casa, jogando futebol e pescando. Ao meu orientador, Prof. Sérgio Said Staut Júnior, cujas virtudes são conhecidas e reconhecidas por todos os que foram seus alunos ou que com ele tiveram contato. Obrigado por me acolher em 2015, quando aventei a possibilidade de cursar o mestrado. Obrigado por sempre atender minhas dúvidas e frustrações, por me fazer buscar a excelência em todas as esferas da vida e pelo conhecimento transmitido. Agradeço ainda por permitir a experiência de acompanhar suas aulas na graduação com os estudantes do primeiro ano, naquelas noites de terça-feira em que a Teoria (ou teorias, como o professor gosta de falar) do Direito despertava em todos nós o mais

profundo encanto e admiração, menos por conta da matéria em si e mais pelo excelente docente e ser humano que és. Ao GEDAI e seu incansável líder: professor Marcos Wachowicz. Nunca esquecerei das tardes em que discutíamos os impactos da tecnologia no direito, a guerra de drones, o místico blockchain, o impacto da informação na sociedade informacional, os smart contracts, a propriedade intelectual entre diversos outros temas que engrandeceram minha formação e estão refletidos neste trabalho. Aos colegas de grupo Letícia Canut, Bibiana Virtuoso, Nicolas Fassbinder, Alexandre Pesserl, Rodrigo Otávio, Guilherme Coutinho, Rangel Trindade, Michele Hasstreiter, Roberto Pompeo, João Victor e Magna Vaccarelli, pelas sempre instigantes discussões e pelos eventos organizados. Mesmo que não sejam oficialmente do grupo, agradeço também a Edna Torres Felício Câmara, Ana Viana e ao Lucas Saikali, pela nossa inesquecível visita ao Google. Ao Biotec, grupo coordenado pelo Prof. José Antonio Peres Gediel. Mais do que professor e aluno, hoje nos tornamos grandes amigos, amizade essa que pretendo conservar por toda a minha vida. Devo dizer que seu brilhantismo, muito além do conhecimento absurdo que possui, que não se restringe ao direito, está na generosidade e humildade no trato com todos. À professora Adriana Espíndola, pesquisadora de gabarito que me fez sentir acolhido no grupo. Ao Rafael Cavichioli, pela seriedade com que trata a pesquisa. Externo meus agradecimentos e considerações também à Universidade Federal do Paraná, nas pessoas dos meus professores, dos servidores e terceirizados. Ao Prof. Daniel Wunder Hachem, pelo exemplo de comprometimento. Ao Prof. Luís Fernando Lopes Pereira, pelas aulas de metodologia e prática

de docência. Ao Prof. Ricardo Marcelo Fonseca, exemplo de docente e a quem desejo toda a sorte na condução dos rumos da Universidade Federal do Paraná. Aos servidores Eduardo Baran, Vanessa Sayuri, Valquíria e tantos outros, por sempre resolverem todos os problemas dos alunos e conduzirem com extrema competência os rumos do nosso programa de Pós-Graduação. Ao CEJUR, pelo convívio breve e profícuo na política acadêmica, nas pessoas da Fernanda Fujiwara, Rennan Ziemer, Taís Vella Cruz, Letícia Kreuz, Luzardo Faria, Anna Sandri e nosso outsider Rennan Gardoni. O último espaço de agradecimento vai aos amigos, afinal, há um ditado que diz: “sozinhos vamos mais rápido; juntos, vamos mais longe”. Lukas Ruthes e Maria Fernanda Battaglin Loureiro, pelos cafés, idas ao parque e conversas sem fim naquele primeiro ano de mestrado. Letticia Schaitza e Gustavo Trento, pela amizade e admiração que se alongou para além das escadarias do Prédio Histórico. Gustavo Dalpupo de Lara, Flávio Antonio da Cruz, Cristina Maksym e Sarah Linke, pelo companheirismo que refletiu na produção acadêmica. Maria Teresa Vasconcelos, Amanda Pozzobon, Bárbara das Neves, Caroline Godoi, João Pedro Kostin, Luiz Augusto da Silva e tantos outros colegas. Ao Geovane Silveira e ao Claudio Barbosa, pela viagem a Brasília, na qual tivemos a oportunidade de conhecer de perto o processo legislativo originado no Poder Executivo. A Bruna Nowak, pelos cafés maravilhosos e preciosas dicas. Ao Mateus Ribeirete, pela gentil revisão deste trabalho. Ao Evandro Leonel e ao Luidgi, pela amizade e pelos risos. Ao Rodrigo Busnardo, com muita admiração. A Fernanda Benini,

pelo apoio no processo seletivo. Ao Leonardo Silka, pelo auxílio na última parte deste trabalho. Aos meus grandes amigos que mantenho laços fora da faculdade: Diego Zulato, Pedro Kamizi, Rogério Luis, André Delavigne, Gabriel Mussiat, Eduardo Hey Martins, Bruno Ceccatto, Bruno Duck, Lucas Leite, Lukas Berbek, Leonardo Migdaleski, Stephanie Vendrusculo, Alexandre Gmyterco, Kim Marodin, Carolina Cotrim, Rodrigo Busnardo e Marcelo Rodrigues. Aos colegas da especialização Maria Eduarda Silva, Julia Santini, Fernanda Lück e Guilherme Villas. Finalmente, aos que buscam, contra o insistente percalço da perseguição eterna, a recomposição da própria vida.

PREFÁCIO

O papel de um professor no tempo atual foi redefinido pelas tecnologias presentes em nosso cotidiano. Se até vinte e poucos anos atrás, em um mundo ainda sem internet, o professor era o detentor do conhecimento a quem os alunos deveriam ouvir para aprender, hoje sua função é muito mais de um curador de conhecimento ou de um guia na viagem acadêmica. Por um lado, nunca foi tão fácil ensinar: a escassez de livros na biblioteca das universidades foi superada pela abundância de textos, vídeos e sites especializados, muitas vezes gratuitos e de qualidade. Contudo, aí se encontra também a raiz de toda a dificuldade que vivemos. O excesso de informação reconduz a missão de um professor a mostrar como se caminha, sem se perder, no meio de tanto conteúdo. E a verdade é que, assim, não resta muito ao professor senão estimular os alunos a fazer o que existe de mais essencial e importante: pensar por eles mesmos. Simples assim e igualmente complexo.

Acredito que é por isso que se diz, de modo generalizado, que a missão de um professor é ser superado por seus alunos. Quando acontece, ele cumpriu com o objetivo supremo: deu liberdade e ensinou a voar. Mas, é claro, isso não acontece todo dia. Afinal, não voa mais alto quem quer, voa mais alto quem pode. Por mais que um professor seja generoso e dedicado, do outro lado é indispensável que os alunos contem com talento e ousadia. O trabalho “Intermitências entre memória, esquecimento e direito: potencialidades de um direito ao esquecimento no brasil”, que você tem agora em mãos, é fruto da conclusão do mestrado de Pedro Henrique Machado da Luz, na Universidade Federal do Paraná, mas não apenas. É também o feliz encontro do talento e da ousadia que Pedro compartilha agora com todos nós. O talento é evidente: basta você ler este livro e não vou precisar convencer ninguém. Pedro vai além do Direito para buscar fundamentos na filosofia e na psicologia de modo a justificar o caminho que percorre. Sabemos, entretanto, que citar filósofos não torna um trabalho bom. Este poder está nas mãos de quem escreve com clareza e profundidade. E Pedro, que não se contenta com o óbvio, nos oferece um texto que é, além disso, agradável e belo. A ousadia é de outra ordem. Pedro escolheu um tema muito desafiador. O direito ao esquecimento já vem sendo estudado há algumas décadas, sem muito alarde, e seus fundamentos pareciam bem consolidados a partir da famosa decisão do Caso Lebach, ocorrido na Alemanha dos anos 1960. Sua influência é tão grande que repercutiu diretamente nas

decisões tomadas nos últimos anos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro. No entanto, tudo mudou a partir da decisão proferida pela Corte Europeia em 2014 envolvendo o Google e o espanhol Mario Costeja González. Nos últimos cinco anos o que vimos foi o alargamento do instituto, sua bipartição em direito à desindexação e o avanço da discussão a ponto de se tangenciar outros direitos, como proteção de dados pessoais. O debate ultrapassou as fronteiras europeias e se tornou global. O resultado é que o direito ao esquecimento está na moda e isso pode ser um problema. Especialmente porque, como costuma acontecer com temas da moda, as incertezas são muitas e há uma verdadeira disputa de narrativas. No caso do direito ao esquecimento, o debate começa em “o que é” e se estende até seus limites. Trata-se de um rio ainda sem fronteiras. E foi nesse rio que Pedro decidiu navegar. O resultado não poderia ser mais auspicioso. Com tanta produção bibliográfica sendo produzida sobre o assunto, e mesmo em se tratando de uma obra de mestrado, Pedro conseguiu encontrar sua voz para definir, a partir de sua pesquisa rigorosa e inspiradora, quais as potencialidades do direito ao esquecimento no Brasil. Eu, que não fui professor do Pedro, sinto-me honrado por ter tido o privilégio de participar de sua banca. Uma vez que eu próprio já tive a oportunidade de escrever sobre o tema de sua dissertação, não encontrei aqui a simples reprodução do que tem sido dito por aí. Nem tampouco a sistematização bibliográfica com que tantos se contentam a concluir seu curso de mestrado. O que eu ouvi ao ler seu trabalho foi a voz clara

e potente de um jovem talentoso e ousado, que decidiu dar suas respostas a alguns problemas ainda sem solução. Não é pouco. Que o Pedro continue tendo a coragem de desbravar os terrenos que outros deixaram virgens e de navegar para mais longe, onde os mapas não alcançam. Sérgio Branco

SUMÁRIO



INTRODUÇÃO

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1.ENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

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1.1 Apontamentos de Walter Benjamin sobre memória e narrativa

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1.2 Visões a partir de Nietzsche, Heidegger e Bergson

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1.3 Os sete pecados da memória

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2.DIVERSOS SIGNIFICADOS DE UM SIGNIFICANTE COMPLEXO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO

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2.1 A necessidade de uma concepção plural de privacidade

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2.2 Casos clássicos relacionados ao direito ao esquecimento

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2.3 A taxonomia dos direitos ao esquecimento e casos julgados nas Cortes Superiores brasileiras

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2.4 Direito ao esquecimento na internet: caso González vs Google Espanha e caso Promotora do Rio de Janeiro

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3. POTENCIALIDADES DE UM DIREITO AO ESQUECIMENTO NO BRASIL

148

3.1 Sociedade informacional e Efeito Streisand

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3.2 Aspectos gerais acerca da colisão entre direitos fundamentais



em matéria de direito ao esquecimento e a técnica da ponderação

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3.3 Um breve recorte de determinados direitos fundamentais usualmente presentes em decisões sobre o direito ao esquecimento

187

3.4 A mística do blockchain e o direito ao esquecimento na Lei Geral

de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018)

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CONCLUSÕES

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REFERÊNCIAS

INTRODUÇÃO

Recordar ou esquecer? Essa dualidade, à primeira vista antagônica, caminhou com o ser humano ao longo de sua história. O recordar está na ocasião de encontrar uma pessoa com um rosto familiar e lembrar seu nome dias depois. Está no ato de deslizar os dedos e, sem muito esforço, dispô-los de forma a tocar acordes de violão, de digitar uma senha para acessar a conta bancária, de transmitir conhecimentos e de contemplar, em grandes museus e arquivos públicos, obras que realçam momentos ou sentimentos que de alguma forma retratam um momento tido como relevante. De outro lado, o esquecimento encontra sua valia nos traumas soterrados na infância, nas situações vexatórias superadas, nas paixões que custosamente se apaziguaram, nas inúmeras informações cotidianas que não chegam a se tornar memórias e, bem por isso, nos fazem seguir adiante. Em suma, tanto o esquecimento quanto a capacidade de recordação desempenham, cada um a seu modo, um importante papel na constituição do ser.1

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Diferentes ramos do saber se debruçaram para compreender e sistematizar esses fenômenos. Representando um desses pontos possíveis de análise, o direito, principalmente a partir do final do século XIX, passou a conferir o status de direito fundamental à personalidade humana, compreendida como a pessoa tomada em si mesma e suas projeções na sociedade, ou ainda como uma “ossatura destinada a ser revestida de direitos”2. Os direitos decorrentes da personalidade (e a própria memória), suscetíveis a modificações provocadas pelos novos paradigmas tecnológicos, apresentam-se como desafios à compreensão de juristas, cuja racionalidade ainda pautada nos mitos da modernidade3 parece não apreendê-los com o devido aprofundamento. O objeto da pesquisa provém justamente de um desses desdobramentos da personalidade e de sua relação com a memória: o chamado direito ao esquecimento. Justifica-se a escolha do tema pois, embora exista uma quantidade crescente de artigos científicos, decisões e trabalhos acadêmicos que abordem, direta ou indiretamente, esse direito, são poucos os estudos que partem de uma perspectiva interdisciplinar. Observa-se que as obras jurídicas e decisões sobre o tema, por conta dessa e de outras incompreensões, são insuficientes para responder satisfatoriamente às demandas da personalidade humana na sociedade informacional. Ademais, não se localizaram, na bibliografia, estudos que estejam atento às possibilidades futuras, como por exemplo o impacto do blockchain na sistematização da informação e na produção da memória digital. CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Lisboa: Morais, 1961, p. 15. Para mais: VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Martins fontes, 2005. 2  3 

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A pesquisa caminha, no primeiro capítulo, na direção de outros saberes, para demonstrar que o esquecer e o recordar não são temas exclusivos da seara jurídica, encontrando na sua interdisciplinaridade com a história, com a filosofia e com neurociência e, por consequência, na sua complexidade, uma força que permite compreendê-los parcialmente, demonstrando assim a própria limitação de abordagens exclusivamente restritas ao ideário jurídico. Nessa linha, a delimitação do papel da memória e do esquecimento, pela múltipla visão de autores escolhidos pela relevância de suas obras nas respectivas áreas do saber, serve como uma importante caixa de ferramentas para a porvindoura discussão promovida pelo direito, realizada no segundo capítulo. O segundo capítulo tem um duplo propósito: apresentar o chamado direito ao esquecimento a partir de decisões judiciais tidas como paradigmáticas e provocar a discussão sobre os aspectos teóricos desse direito, em especial qual a sua relação com os demais direitos da personalidade, quais seus sentidos mínimos e suas particularidades contemporâneas. Os casos analisados partem de uma exposição do relatório das lides, seguidos dos resultados do julgamento e uma análise crítica. Primeiro, expõe-se os casos Melvin vs Reid e Lebach, a fim de se ter uma ideia geral do assunto. Em seguida, são feitas as considerações teóricas que permitem a aludida crítica das decisões. Escolhem-se também casos decididos pelas Cortes Superiores brasileiras e dois outros, um europeu e um brasileiro, sobre o direito ao esquecimento na internet. O terceiro capítulo evoca uma análise das potencialidades de aplicação desse direito no entrecho brasileiro. Antes, contudo, explora-se a noção de sociedade informacional e a

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consequente reconfiguração da memória coletiva e individual a partir das tecnologias da informação. Opta-se por esse caminho pois crê-se que quaisquer possibilidades de adoção do direito ao esquecimento devem levar em conta também aspectos fáticos, presentes tanto dentro quanto fora do direito. Entre esses aspectos, remete-se ao Efeito Streisand e à utilização da ponderação principiológica. Exploram-se ainda outros valores protegidos pelo regime de direitos fundamentais da Constituição de 1988 que impactam diretamente nas decisões sobre o tema, tais como o direito à memória, o direito à informação, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o acesso à informação. Finalmente, vislumbram-se possibilidades futuras desse direito pelas lentes do blockchain e pela Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), com olhar também atento ao recente regramento europeu sobre proteção de dados. Longe de oferecer respostas absolutas aos problemas colocados, almeja-se jogar luzes à melhor elucidação do tema, primando pela abordagem interdisciplinar, pela sistematização dos fundamentos do objeto de estudo e pelas potencialidades de sua aplicação atinentes às idiossincrasias da prática jurídica brasileira e dos novos paradigmas tecnológicos. Crê-se que, por essa abordagem múltipla, mais do que oferecer respostas a esse tema, será possível observar algumas limitações e lacunas que impactam o direito no geral e o direito ao esquecimento em particular, observando-se sempre possíveis problemas futuros. As considerações finais responderão se as hipóteses iniciais da pesquisa foram confirmadas.

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1.

ENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

O mundo pouco notará, nem irá se lembrar por muito tempo do que falamos aqui, mas nunca esquecerá o que eles [soldados] fizeram. Abraham Lincoln, 18634

O presente capítulo tem justamente o objetivo de provocar uma reflexão preliminar sobre a complexidade e dimensão do tema, que ainda passou por profundas transformações com, por exemplo, os novos estudo sobre a memória no campo da neurociência, a ressignificação dada ao tempo e à morte pela filosofia. As investigações preliminares não servem para exaurir o tema, até por conta de sua imanente vastidão e incompletude. Contudo, tais reflexões, de cunho teórico, são essenciais para se vislumbrar a memória e o esquecimento em sua faceta mais elementar e não menos complexa, relacionada com diversos fatores tais como o discurso, a noção de tempo, o corpo humano e as sociedades.

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Para tanto, será feita a divisão do capítulo em quatro subcapítulos, em que se almejará: (1.1) compreender a visão de Walter Benjamin sobre a memória, a narrativa e o discurso; (1.2) estudar a filosofia a partir do aporte de Friedrich Nietzsche, Henri Bergson e Martin Heidegger, especificamente na noção de esquecimento explorada nas principais obras dos autores; (1.3) investigar a obra do psicólogo Daniel Schacter, em especial acerca do funcionamento biológico da memória e do esquecimento. 1.1 APONTAMENTOS DE WALTER BENJAMIN SOBRE MEMÓRIA E NARRATIVA

Walter Benjamin, um dos condutores do que se convencionou chamar de Escola de Frankfurt, tratou, no ensaio “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, publicado em 1936, entre diversos temas, da narrativa invejável presente obra do autor russo5, na perspectiva de que Leskov seria um grande exemplo por conta de sua poderosa capacidade de transmissão de fatos. A preocupação de Benjamin, então, consistiria na crença de que a arte de narrar, aqui uma narrativa mais literária, estaria em vias de extinção: eis que, entre os resultados desastrosos da Primeira Guerra Mundial6, um dos principais seria a possibilidade de os soldados recém-retornados da guerra estarem silenciados e incapazes de promover o Nikolai Leskov, escritor russo nascido em 16 de fevereiro de 1831, foi o autor de obras como “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk (1865)” e “O Peregrino Encantado”. Curiosamente, essa última obra foi prefaciada justamente por Walter Benjamin. 6  Uma obra-prima da literatura do século XX que retrata precisamente a passagem de uma sociedade europeia fragmentada até seu momento máximo de cisão com a chegada da Primeira Guerra é A Montanha Mágica, de Thomas Mann, vencedora do prêmio Nobel de 1929. MANN, Thomas. A montanha mágica. Editora Companhia das Letras, 2016. 5 

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contato humano tão necessário para o advento de narrativas.7 Essa observação de Benjamin, longe de representar tão somente um clima de pessimismo instaurado pela guerra sanguinária do início do século passado, significou também a constatação de uma mudança de sintonia entre a memória adquirida pelas pessoas e aquela efetivamente transmitida por intermédio da narrativa na modernidade8. Para Jeanne Marie Gagnebin, esse Benjamin (de “O Narrador”) é aquele que se ocupa “da importância da narração para a constituição do sujeito [...] da retomada salvadora da palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento”.9 Devemos entender a narrativa, portanto, como uma prolongação da memória, uma rememoração que serve de antídoto a um indesejado esquecimento.10 A obra de Benjamin é resultado de sua inquietação com o fato de que estaríamos “privados de É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” BENJAMIN, Walter. O Narrador − considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 197-198. 8  “Se podemos assim ler as histórias que a humanidade se conta a si mesma como o fluxo constitutivo da memória e, portanto, de sua identidade, nem por isso o próprio movimento da narração deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria não só uma falha, um “branco” de memória, mas também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 3. 9  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 3. 10  Aqui é importante que a memória seja compreendida não como algo apartado da noção de esquecimento, mas sim como dois lados de uma mesma moeda. Afinal, Benjamin disserta sobre o ato de narrar (transmissão memória), mas se mostra extremamente pessimista com a incapacidade ou extinção dessa narrativa. Ou seja, para ele a narrativa, decorrente da memória, estaria sendo afetada pelo esquecimento. Essa relação imbricada entre memória e esquecimento seguirá por todo o capítulo. 7 

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uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”.11 E, ainda, que “a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”.12 Ademais, o autor já aduziu que o ato de narrar, na perspectiva literária, é uma “forma artesanal de comunicação”13. Da mesma forma que Heráclito de Éfeso dizia que um homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez que se banha nem o homem nem o rio são o mesmo, Benjamin alertava que a narrativa não pode ser vista como a transmissão do puro em si, mas do resultado entre as idiossincrasias do narrador com a coisa narrada, “como a mão do oleiro na argila do vaso”.14 Essa miscelânea entre as subjetividades do narrador e da narração impede, então, qualquer pretensão de que essa narrativa represente algo como a verdade pura, um quadro absolutamente preciso do passado. Também é interessante constatar na obra o papel do avanço da tecnologia e sua relação com a memória e com a narrativa. Para Benjamin, foram os romances, próprios de uma imprensa escrita, vinculada portanto à base física do livro, que acarretaram a morte da narrativa. Há, para o autor, dois terrenos muito distintos, praticamente incomunicáveis, que seriam o da tradição oral e o do romance. Ele explica que “o que distingue o romance de todas as outras formas de BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 198. 12  BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 200-201. 13  BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 205. 14  BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 205. 11 

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prosa – contos de fadas, lendas e até mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta”.15 Não seria o romance propriamente uma narrativa, pois este é fruto das divagações de um indivíduo segregado da troca de experiências com outrem – ou seja, de vivências. A ideia de experiência, por sinal, é basilar na obra do autor. Benjamin denunciou que as formas tradicionais pelas quais as experiências eram adquiridas estavam definhando no mundo moderno.16 A experiência pode ser definida como algo próximo à tradição coletiva, como os grandes ensinamentos ou provérbios, as histórias transmitidas de pais para filhos, ou ainda a sabedoria intercambiada entre os mais velhos e os mais novos.17 Em outro terreno muito menos desejado – pelo menos para o alemão – estaria a vivência, de viés instantâneo e individualista. Essa mudança de um mundo em que não existem mais experiências, mas apenas vivências, representa o fim da narrativa para o autor. Para Jeanne Marie Gagnebin, outro efeito dessa virada é o fato de esse novo ser, despido de experiências, passar a sofrer de uma “despersonalização generalizada e tenta remediar esta situação com uma apropriação pessoal de tudo o que lhe pertence na esfera privada”.18 Exemplo disso seria o hábito burguês de bordar as próprias iniciais em

BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 201. 16  Essa afirmação significa que, na óptica do autor, há uma nova relação entre memória e esquecimento. FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 151. 17  FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 151. 18  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 68. 15 

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lenços19, ou ainda a reconfiguração da noção de propriedade privada após as revoluções liberais.20 A obra “O Narrador”, portanto, trata dessa harmonia perdida e das novas agruras verificadas pelo autor na atividade da narrativa literária, mas não somente isso. Presta-se também a constatar, no ato de narrar, a salvação eterna contra o esquecimento pela apocatástase21, promovido tanto pelo bom narrador (como Leskov), quanto pelo “historiador materialista”, termo correntemente utilizado por Benjamin em suas teses.22 E se é certo que Benjamin não resolveu completamente a questão de qual seria essa narrativa salvadora e como ela se materializaria, pode-se dizer que o autor ao menos contribuiu para desatar esse nó górdio com o aporte de duas ideias: a de conselho e a ligação entre morte e narração. Para Benjamin, todo conselho advém de uma história contada, colocada em palavras, de cunho oral. Portanto, o narrador é aquele que sabe dar conselhos e que efetivamente conhece a história, pois os atos de narrar e aconselhar são indissociáveis; contudo, esse fio que os ligava rompeu-se, no que “Benjamin resiste (mais do que muitos de seus intérpreFONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 152. A propriedade, em sua acepção liberal, cuja justificação se deu com a teoria contratualista de John Locke, tem caráter inviolável e confere ao proprietário um poder absoluto sobre a coisa, respeitando apenas os direitos iguais de terceiros. As constituições americana e francesa, frutos dessas revoluções, alçaram a propriedade como fundamento expresso das constituições estatais. RENTERÍA, Pablo Valdemar; DANTAS, Marcus. In: ______. Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar; São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 667. 21  Para Walter Benjamin, a ideia de apocatástase está relacionada tanto com a forma narrativa de Nicolau Leskov, considerada invejável, quanto com o método histórico defendido pelo autor. SANTOS, Patrícia da Silva. Kafka, mestre de Walter Benjamin. In: III Seminario Internacional Políticas de la Memoria. RECORDANDO A WALTER BENJAMIN: JUSTICIA, HISTORIA Y VERDAD. ESCRITURAS DE LA MEMORIA., 2010. p. 8-9. 22  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 62. 19 

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tes) à tentação sedutora de afirmar, agora e imediatamente, a presença utópica e consoladora da salvação”.23 Benjamin aponta a moléstia, mas não nos ilude com a prescrição de uma panaceia. Em passagem bastante emblemática no 10º capítulo de “O Narrador”, Benjamin, remetendo a Paul Valéry, aduz, em tom sombrio, que “a ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa ideia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto”24. No decorrer do século XIX, a morte, entendida como processo social, sofreu profundas transformações. Benjamin aponta que as condicionantes dessa nova reconfiguração ou novo rosto da morte são as mesmas que culminaram na redução da comunicabilidade da experiência e, consequentemente, no certeiro e lento sepultamento da arte de narrar.25 Com a aludida redução de experiências, mudou-se a relação do ser com o tempo26, em que desaparece a antítese tempo-eternidade e busca-se sempre o novo.27 É a perda, nas palavras de Benjamin, da “onipresença” e “força de evocação” da ideia de morte, contudo a grande denúncia do autor cabe ao fato de a sociedade burguesa, do alto de seus confortos mundanos, em certa medida ter perdido o contato com a morte, pois GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 64. 24  BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 207. 25  BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 207. 26  Essas reflexões renderam à filosofia do início do século XX importantes obras, tal como o magnum opus de Martin Heidegger. Para mais, ver: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia S. Cavalcanti. Petrópolis: Editora Vozes, 1988. 27  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 62. 23 

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“antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém”.28 Um novo tipo de narrativa baseada na experiência demanda, enfim, uma nova relação do ser com a morte. Há também outro Benjamin – preocupado não somente com a narrativa literária, mas sobretudo com a narrativa histórica. A preocupação do autor centra-se, então, em uma questão que está longe de ter sido superada pela literatura ou pela história: afinal, o que é contar uma história? O que é contar “a” história? Por que às vezes somos incapazes de contá-la? Essas questões, longe de ficarem restritas apenas ao campo de estudo de historiadores, interessam em muito àqueles que se debruçam sobre as relações entre memória e esquecimento por tocarem justamente nas bases daquilo que é transmitido e recepcionado entre geraçõe29. Para Heródoto, tido como o primeiro historiador, a tarefa de contar a história representa uma luta contra o esquecimento.30 Adverte-se, contudo, que literatura e história não caminham separadas, o que permite que seja feita essa ligação entre a filosofia da história e a teoria literária de Walter Benjamin.31 Para Jeanne Marie Gagnebin: “Hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa, seja para ‘resguardar

BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 207. 29  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 2. 30  DOMINIQUE, Arnould. Hérodote, L’Enquête, livres I à IV. Tradução de Andrée Barguet. p. 51. 31  GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 3. 28 

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alguma coisa da morte’ (Gide) dentro da nossa frágil existência humana”.32 Em um de seus textos mais emblemáticos, “Sobre o conceito de História”, escrito entre 1939 e 1940, Benjamin rompe com a clausura outrora imaginada de um tempo corrente e mecânico, marcado pela lenta viragem dos ponteiros de um relógio. Essa ideia já vinha esboçada na obra “O Narrador”, principalmente na já explorada relação entre morte e narração, mas aqui alça-se à condição de tema central. A noção do tempo contínuo almejava nada mais do que representar uma noção de contínuo progresso das esquerdas, que finalmente culminaria na revolução do proletariado.33 Essas noções foram firmemente combatidas pelo autor, para quem essa lógica linear acabou por produzir uma história excludente, justamente por não conseguir reproduzir as diferentes perspectivas dos acontecimentos passados. Segundo Ricardo Marcelo Fonseca: “o efeito básico do discurso harmônico e linear é ser excludente, e ele é excludente porque é harmônico e linear. Com isto, o passado real e efetivo acaba sendo praticamente todo ele encoberto e velado [...]”.34 Novamente, aqui se trata da narrativa, dessa vez de um ponto de vista histórico, e de como há uma eminente complexidade e renúncia nesse ato de transmissão de fatos passados.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 3. 33  FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 153. 34  FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 155. 32 

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Essa noção de um passado discursivo e incompleto, visualizável tão somente nos instantes de perigo35 e não como algo pronto e acabado, resultado portanto de sua confluência com próprio presente, é de suma importância para o estudo do esquecimento em todas as suas facetas. Desse modo, questiona-se se determinado fato a ser esquecido, próprio de um quadro passado, foi realmente observado em sua inteireza ou, ao contrário, se caiu nas armadilhas da linearidade histórica oficial, afinal: “o historicista apresenta a imagem ‘eterna’ do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única”.36 Na esteira do que nos demonstra Benjamin, a principal lição que persiste seria de que devemos observar aquilo que foi esquecido pelos discursos oficiais da história, verificando sempre que a narrativa histórica não é um retrato fiel do passado, e sim uma atitude muitas vezes autoritária e que contém, em si, diversas outras narrativas, por vezes postas de lado. Segundo Benjamin: É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado, a parte “fértil”, “aus“A época presente demonstra a existência de uma série de ‘momentos de perigo’. A crise de legitimação do Estado (agravada pelo fato de que o próprio Estado, na sua atuação administrativa, se torna um dos maiores responsáveis pelo aviltamento jurídico), bem como sua crescente incapacidade de dar conta do ponto de vista normativo a toda a gama emergente de relações sociais e econômicas novas, bota a sua própria essência em cheque [....] É justamente nestes ‘momentos de perigo’ que o esforço de reflexão deve se socorrer da explicação histórica para buscar a solução de seus impasses. É neste momento que um pensamento radical, crítico e transformador deve impor o seu espaço.” FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 162. 36  BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 231. 35 

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piciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!), faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, até que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase histórica.37

O autor propõe um novo olhar sobre o passado, uma nova postura de estudo do passado histórico, em que o esquecimento desempenha um duplo papel: a) o de demonstrar como diversos discursos não oficiais acabam obliterados na narrativa histórica, portanto um esquecimento a ser combatido; b) o de movimentar uma releitura histórica “para que as vozes dos vencidos sejam reapropriadas”38, uma espécie de esquecimento a ser resgatado. Nesse instante de perigo presente, em que a tecnologia molda cada vez mais as relações sociais e se apresenta como uma nova mediadora da relação entre o ser e o mundo, faz-se necessária uma nova forma de encarar o esquecimento. BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução do alemão Irene Aron e do francês Cleonice Paes Barreto Mourão. Ed UFMG e Imprensa Oficial, Belo Horizonte e São Paulo, 2007, p. 499-530. p. 501. 38  FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Juruá, 2009. p. 162. 37 

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A conservação da memória pela narrativa literária histórica, o papel do esquecimento tanto como agente de exclusões quanto de propulsor de resgates nas narrativas, a relação do ser com a morte e o tempo, entre outros temas, estiveram na obra de Walter Benjamin e de seus leitores. Aqui não se quis exaurir a vasta bibliografia do autor, mas tão somente compreender alguns aspectos essenciais que permitem uma leitura mais robusta – e de certa forma inovadora – da história. Com isso, memória e esquecimento encontram novas possibilidades de ação em uma narrativa histórica que não é mais pacífica e incontroversa, mas viva e rica, no chamado “lado debaixo” a que apontava a literatura de Franz Kafka.39 A primeira parte deste estudo teve o condão de demonstrar, com o aporte de Walter Benjamin, como a relação entre memória e esquecimento fez parte de sua obra quando este tratou das narrativas, tanto de um ponto de vista literário quanto de um histórico. Além disso, o autor nos trouxe uma caixa teórica fundamental para compreendermos como o tempo e a história são efetivamente contados, servindo não como pintura precisa do passado, mas como propulsor de exclusões e remoções que, por desprezarem as mais diversas perspectivas e reproduzirem discursos unitários – de “vencedores” –, acabam por promover esquecimentos múltiplos. Ao mesmo tempo, devemos nos lembrar de que “a recuperação de dimensões do esquecimento configura exigência inexorável”.40

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 28. 40  SANTOS, Patrícia da Silva. Kafka, mestre de Walter Benjamin. In: III Seminario Internacional Políticas de la Memoria. Recordando a Walter Benjamin: Justicia, Historia y Verdad. Escrituras de la memoria, 2010. p. 9. 39 

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1.2 VISÕES A PARTIR DE NIETZSCHE, HEIDEGGER E BERGSON Incessantemente uma folha se destaca da roldana do tempo, cai e é carregada pelo vento – e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Então, o homem diz: “eu me lembro”, e inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite e extinguir-se para sempre. (Friedrich Nietzsche, 1874).

Em obra denominada “O Esquecimento Impossível”, Gianni Vattimo expõe-nos que uma reflexão sobre memória e esquecimento não pode prescindir de um estudo de duas teses tidas como decisivas sobre o tema: as de Friedrich Nietzsche e de Martin Heidegger, dois dos mais influentes filósofos dos séculos XIX e XX.41 Além dos notórios autores, serão trazidas as concepções de Henri Bergson, filósofo francês cuja obra perpassou os temas citados em seu célebre “Memória e Matéria”, de 1896. Diante disso, serão exploradas as contribuições desses autores no tocante ao tema, a fim de que o estudo sobre memória e esquecimento tenha um ponto de contato com a filosofia e, ainda, que se prolongue o fio costurado por Walter Benjamin. Eis que, como se verá, Nietzsche também se preocupou com as repercussões históricas do esquecimento.

VATTIMO, Gianni. O Esquecimento Impossível. In: ______. Usos do esquecimento: conferências proferidas no colóquio de Royaumont. Tradução de Eduardo Alves Rodrigues e Renata Chrystina Bianchi de Barros. Campinas: Editora da Unicamp, 2017. p. 99. 41 

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Antes, contudo, convém expor o pano de fundo no qual Nietzsche, o discípulo de Dionísio42, decidiu tratar de temas como a memória, o esquecimento e a história: trata-se do historicismo, que nas palavras de Rogerio Miranda de Almeida “é uma corrente compósita, típica da filosofia contemporânea, para a qual a realidade é essencialmente, intrinsecamente, histórica e, no caso do historicismo absoluto, a realidade é a própria história”.43 Na “Segunda Consideração Intempestiva”, de 1874, Friedrich Nietzsche denunciou um quadro em que o homem do século XIX estaria afetado por uma doença histórica44, imerso em um estado que o tornaria incapaz de criar e fazer a verdadeira história. A obra inicia com uma extensa comparação entre os seres humanos e os animais, revelando que esses viveriam “a-historicamente”45, ou seja, o rebanho pasta feliz sem se importar com o ontem e o hoje, usufruindo, por isso mesmo, de uma vida sem melancolia e sem dor. Já o ser humano “se admira de si mesmo por não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou: por mais longe Em sua biografia “Ecce Homo”, Nietzsche afirma: “Sou um discípulo do filósofo Dionísio, prefiro ser um sátiro a ser um santo”. Dionísio é, na tradição grega, o deus do vinho, do teatro e da loucura; é o único deus filho de uma mortal no panteão grego. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como se chega a ser o que é. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Editora Lusosofia, 2008, p. 7. 43   DE ALMEIDA, Rogério Miranda. Do recordar e do esquecer: a questão da memória em Agostinho, Nietzsche e Freud. Unisinos, 2011, p. 253-264. p. 257. 44  “Mas há um grau que impulsiona a história e a avalia, onde a vida definha e se degrada: um fenômeno que, por mais doloroso que seja, se descobre justamente agora, em meio aos sintomas mais peculiares de nosso tempo”. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 4. 45  NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 6. 42 

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e rápido que ele corra, a corrente corre junto”46. A história, apenas compreendida pelo ser, exerceria sobre ele um peso, oprimindo-o ou inclinando-o, rememorando-o ainda dos seus áureos tempos de criança em que ainda não tinha ciência do passado (do verbo “foi”).47 Mais ainda, para Nietzsche a própria definição de felicidade é a de um “poder-esquecer”, da possibilidade de se sentir “a-histórico” mesmo que por um pequeno instante: Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que é felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que torne os outros felizes. Pensem no exemplo mais extremo, um homem que não possuísse de modo algum a força de esquecer e que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesta torrente do vir-a-ser.48

Já em outra notória obra do filósofo, “Genealogia da Moral”, escrita 12 anos após a “Segunda Consideração Intempestiva”, Nietzsche assevera que o esquecimento não é apenas NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 6. 47  NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 6-7. 48  NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 7. 46 

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uma simples vis inertia (força de inércia), mas, muito além disso, também uma “faculdade de inibição ativa”49, em que todas as experiências vivenciadas pelo ser são absorvidas de forma inconsciente50 e permitem a experimentação do novo.51 Para o discípulo de Dionísio: Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não’ penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e as janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como DE ALMEIDA, Rogério Miranda. Do recordar e do esquecer: a questão da memória em Agostinho, Nietzsche e Freud. Unisinos, 2011, p. 253-264. p. 258. 50  FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, v. 7, p. 27-40, 1999. p. 28-29. 51  “Fechar temporariamente as portas e as janelas da nossa consciência – prossegue o filósofo – colocar-nos à margem dos ruídos e da luta subterrânea que travam os nossos órgãos, fazer um pouco de silêncio e de tábua rasa para darmos lugar ao novo e, assim, podermos governar, prever e decidir antecipadamente, tudo isso, conclui Nietzsche, constitui a utilidade do esquecimento, esta espécie de vigia e guardião da ordem psíquica, da tranquilidade e da etiqueta.” DE ALMEIDA, Rogério Miranda. Do recordar e do esquecer: a questão da memória em Agostinho, Nietzsche e Freud. Unisinos, 2011, p. 253-264. p. 258. 49 

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disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.52

O ser que não consegue experimentar o esquecimento é comparável a um dispéptico, ou seja, a alguém que não consegue ou tem dificuldade de digerir, que nunca se livra de nada e, por viver assombrado pelo fantasma do passado, não pode experimentar o novo, o presente.53 O filósofo alemão acaba por criar uma palavra no alemão (Einverseelung) para sua concepção de esquecimento. Traduzida, significaria algo próximo de “assimilação psíquica”54, demonstrando como essa comparação entre o processo digestivo e o esquecimento acompanhou a obra do filósofo. Nietzsche chega inclusive a fazer uma correlação entre a noção de justiça e o papel da memória e do esquecimento, apontando que o desenvolvimento do conceito de justiça teria advindo de um esquecimento. Em seu “Humano, Demasiadamente Humano”55, de 1878, o filósofo aproxima a justiça à ideia de troca, de equidade, desde que haja uma posição de paridade neste intercâmbio; contudo, no passar das gerações, os seres humanos esqueceram que a virtude da justiça está na troca, entendendo que a ação justa seria a ação caridosa ou NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1988. pg. 58. 53  FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, v. 7, p. 27-40, 1999. p. 31. 54  FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, v. 7, p. 27-40, 1999. p. 28-29. 55  NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: texto integral. Escala, 2006. 52 

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não egoísta56. A verdade filosófica, tão presente (mesmo como negação) na teoria de Nietzsche, também seria uma ilusão esquecida, fruto de um processo de desgaste, ou “moedas que perderam sua imagem e que são a partir de então consideradas não mais como moedas mas como metal”.57 A tônica do esquecimento para Friedrich Nietzsche, em síntese, teria um sentido alheio ao daquela expressão que denota o sentido etimológico do termo, de deixar algo cair ou se perder, sendo em verdade um processo vital que nos coloca ao mesmo tempo em contato e nos desconecta da história, possibilitando um estado de felicidade, pois “o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”58. Essa condição de uma sociedade incapaz de esquecer – que Nietzsche antevia já na sua época – demandaria, segundo a reconstrução de um esquecimento criador pela rememoração de forças salvadoras com poder eternizante: a arte e a religião. Esse ponto da teoria do alemão seria de alguma forma revisto com o desenvolvimento de sua teoria do retorno eterno59,

DE ALMEIDA, Rogério Miranda. Do recordar e do esquecer: a questão da memória em Agostinho, Nietzsche e Freud. Unisinos, 2011, p. 253-264. p. 259. 57  FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, v. 7, p. 27-40, 1999. p. 28. 58  NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 8. 59  Tal teoria, tratada em diversos textos do filósofo, trata de um eterno retorno do ser à própria vida, contudo essa interpretação da teoria de Nietzsche não é pacífica, visto que o autor deixou-a incompleta e, ademais, diversas traduções alteraram e reinterpretaram a teoria do eterno retorno, principalmente com Gilles Deleuze. D’IORIO, Paolo. O eterno retorno. Gênese e interpretação. Cadernos Nietzsche, v. 20, p. 69-114, 1997. p. 72. 56 

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assumindo ares de fatalismo e não mais passíveis de salvação por tais forças.60 A memória, também tematizada pelo autor, é em sua teoria uma “memória de vontade”, não mais enclausurada em um passado rígido, absoluto e imutável, mas um “ativo não-mais-querer-livrar-se” (ein aktives Nicht-wieder-los-werden-wollen), ou, na interpretação de Maria Cristina Franco Ferraz, “lembrar é um continuar querendo o já querido”.61 Finalmente, a memória corresponderia à própria possibilidade de projetar outro futuro, um “querer querer”. Talvez o exemplo mais elucidativo da visão do discípulo do Dionísio sobre tais temas esteja contida justamente na já citada “Genealogia da Moral”, principalmente na primeira dissertação, em que o homem do ressentimento seria aquele ser dispéptico, da má digestão, que tudo guarda e nada de novo cria. Diferentemente, o homem nobre não seria envenenado pelo ressentimento: ele o metabolizaria. Como no exemplo de Mirabeau62, que não rememorava os insultos e injúrias que recebia, porque “sofria” de um quadro de amnésia. O esquecimento, para Nietzsche, permitiria o “amor aos inimigos”, pois acabaria por relativizar tanto suas fraquezas como qualidades. O nobre conseguiria superar o remorso63, visto que tornaria qualquer um apto à boa digestão. VATTIMO, Gianni. O Esquecimento Impossível. In: ______. Usos do esquecimento: conferências proferidas no colóquio de Royaumont. Tradução de Eduardo Alves Rodrigues e Renata Chrystina Bianchi de Barros. Campinas: Editora da Unicamp, 2017. p. 100. 61  FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, v. 7, p. 27-40, 1999. p. 36. 62  Honoré Gabriel Riqueti de Mirabeau foi um jornalista e parlamentar francês do século XVIII. 63  Interessante notar que a palavra alemã para remorso é Gewissenbisse, “mordidas da consciência”. 60 

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A referência feita por Friedrich Nietzsche ao esquecimento, aproximando-o ao processo digestivo, permite ponderações acerca de diversos outros temas, tais como a memória, a temporalidade, a felicidade e a verdade. A obra do filósofo é rica, mas incompleta. Para os fins deste estudo, basta colocar como o esquecimento de Nietzsche é positivo e possibilita uma vida reaproximada ao novo. Prossegue-se no estudo da memória e do esquecimento com o aporte de Henri Bergson, filósofo francês laureado com o prêmio Nobel da literatura em 1927. De sua vasta bibliografia, sem dúvidas o texto que mais se aproxima da temática aqui estudada é “Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”. O principal objetivo do autor na obra, declarado logo em seu prefácio, é ressignificar as relações entre matéria e espírito, utilizando a memória como um “exemplo”64 para a compreensão dessa dualidade. Sua primeira tese é de que a memória (especificamente a lembrança) compõe o ponto de intersecção entre o espírito e a matéria65. Para Bergson, o estado cerebral representa apenas uma fração do estado psicológico, e entre ambos haveria uma relação complexa e inconstante. Como exemplo, ao pensarmos em algum acontecimento e formarmos uma imagem mental disso, como quando lembramos de cenas inteiras de uma peça de teatro: esse processo estaria ligado não exclusivamente ao

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 1. 65  Embora a obra de Bergson tenha repercutido entre os filósofos de sua geração, a sua teoria sobre matéria e espírito ainda é dualista. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 5. 64 

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estado cerebral, mas também ao estado psicológico, reduto próprio da formação dessas imagens. O segundo capítulo da obra se debruça com maior ênfase no funcionamento da memória, esta última definida pelo autor como reconhecimento, ou “a utilização da experiência passada para a ação presente”66. Esse funcionamento, para Bergson, dar-se-ia de duas formas distintas: na própria ação, pelo funcionamento completamente automático dessa memória; ou por um trabalho do espírito, que encontra no passado a direção do presente, ou seja, que busca representações ligadas à situação atual. A proposição do filósofo é de que “o reconhecimento de um objeto presente se faz por movimentos quando procede do objeto, por representações quando emana do sujeito”.67 Outra ideia é a de que eventuais lesões cerebrais não são capazes de destruir as imagens, mas apenas obstam que essas memórias se realizem sobre o real.68 Ao longo do capítulo, Henri Bergson desenvolve mais afundo aquilo que categorizou como as duas formas da memória. A primeira delas, que seria uma memória pelo hábito, é

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 84. 67  BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 84. 68  A terceira proposição de Bergson no segundo capítulo de “Matéria e Memória” é de que: “Passa-se, por graus insensíveis, das lembranças dispostas ao longo do tempo aos movimentos que desenham sua ação nascente ou possível no espaço. As lesões do cérebro podem atingir tais movimentos, mas não tais lembranças”. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 85. 66 

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trazida pelo autor com o exemplo de uma lição69 recitada de cor. Essa memória seria adquirida pela repetição de um mesmo esforço, exigindo uma decomposição do saber para chegar à recomposição da ação total; o hábito, na óptica do autor, trata-se de um constante estímulo a um impulso inicial, em um sistema de movimentos sucessivos e ordenados.70 Muito diferente disso seria a lembrança de alguma leitura ao se fazer uma lição, visto que aquela teria sido impressa de imediato na memória, e não teria a ver com o hábito. Ao elucidar a memória por lembrança (de segundo tipo) pelo exemplo da lição, Bergson explica que: Ao contrário, a lembrança de tal leitura particular, a segunda ou a terceira por exemplo, não tem nenhuma das características do hábito. Sua imagem imprimiu-se necessariamente de imediato na memória, já que as outras leituras constituem, por definição, lembranças diferentes. É como um acontecimento de minha vida; contém, por essência, uma data, e não pode consequentemente repetir-se. Tudo o que as leituras ulteriores lhe acrescentariam só faria alterar sua natureza original; e, se meu esforço para evocar essa imagem torna-se cada vez mais fácil à medida que o repito com maior frequência, a própria imagem, considerada “Estudo uma lição, e para aprendê-la de cor leio-a primeiramente escandindo cada verso; repito-a em seguida um certo número de vezes. A cada nova leitura efetua-se um progresso; as palavras ligam-se cada vez melhor; acabam por se organizar juntas. Nesse momento preciso sei minha lição de cor; dizemos que ela tornou-se lembrança, que ela se imprimiu em minha memória.” BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 85. 70  BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 86. 69 

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em si, era necessariamente de início o que será sempre.71

Colocando em termos mais simples, a memória pela lembrança – a memória por excelência, para o autor72 – seria uma representação ou uma intuição do espírito, ao passo que a memória de hábito se trataria não de uma representação, mas sim de uma ação. Outra diferença seria de que a memória da lembrança estaria situada no passado enquanto a memória pelo hábito se encontraria no presente, embora se utilizando do passado. Em termos bastante elementares, uma memória imagina e outra repete.73 Contudo, essas imbricações entre o que se chamou de memória de hábito e de memória de lembrança revelam que tal distinção nem sempre é cristalina, especialmente quando estamos falando de animais. Bergson cita o exemplo de um cachorro que acolhe seu dono com latidos; o animal tem uma representação de seu dono, ao mesmo tempo que acolhê-lo é um hábito na medida de que a simples percepção desse dono revela algo de habitual e corporal que prende o animal. O filósofo conclui que “para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo [...]”.74 As duas formas de memória estudadas por Henri Bergson estão situadas no que o autor nomina de “estado puro”, ou seja, um estudo particularizado de cada uma dessas formas. Com isso, visa a demonstrar que aqueles que o antecederam no manejo do tema apenas verificavam o fenômeno da memória BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 86-87. 71 

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em seu “estado impuro”, crendo erroneamente que haveria algo de mecânico no armazenamento de imagens e que o cérebro seria um órgão de representação.75 Como afirmado no início da apresentação de Bergson, a memória é utilizada pelo autor justamente como um exemplo da cisão entre matéria e espírito, em contraposição à filosofia de René Descartes. Isso porque a memória de hábito estaria ligada ao cérebro e, portanto, à matéria, enquanto a segunda memória, pela lembrança, seria propriamente um fenômeno do espírito residindo no passado ao mesmo tempo que contempla o presente. Aproveitando a sistemática de proposições contida ao longo da obra do filósofo, Bergson propõe um postulado simples para clarificar esse impasse: o agir habitual liga-se ao presente, ao material, enquanto as lembranças advêm dos confins do passado e estão irmanadas à consciência, embora atuem no presente.76 A filosofia de Bergson traz reflexões bastante originais sobre o funcionamento da memória e estão imbricadas por um viés filosófico e por outro que se entende mais neurocientífico. Contudo, deve-se ainda observar como Heidegger vislumbrou as relações entre memória e esquecimento. Martin Heidegger, um dos mais proeminentes filósofos do século XX, embora com uma carreira repleta de controvérsias – muito por ocasião de seu envolvimento com o regime nazista – tratou, em 1927, na obra “Ser e Tempo”, de temas que direta ou indiretamente se relacionam com o esquecimento, BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 99. 76  Para mais, ver: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 75 

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em especial o que pode ser tomado como o “esquecimento do ser”. As ideias deste filósofo emergiram no contexto da modernidade e de uma Alemanha devastada após a Primeira Guerra Mundial; muitos o colocam no recorte existencialista da filosofia, embora o próprio Heidegger nunca tenha assim se definido.77 Inicialmente, o autor apresenta a ideia de que o sentido do ser foi progressivamente esquecido e desprezado pela filosofia do mundo ocidental, ou pelo que ele chamou de metafísica. A tarefa primordial de “Ser e Tempo”, obra mais célebre de Heidegger, seria então a de reconstruir a determinação de sentido do ser, tudo em uma época em que o ser humano se via no seio do projeto moderno e subjetivista, percebendo-se finito e sem rumo78, mas ao mesmo nomeando os seres e as coisas com a utilização de uma racionalidade cada vez mais apegada aos objetos. A degradação do ser tem local, momento e causa certa: ocorre no mundo ocidental a partir de Platão. Já no frontispício de “Ser e Tempo”, Heidegger aponta: “no solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do ser como lhe sanciona a falta”79. Isso porque a tentativa da ontoROCHA, Flávia Yared; OSÓRIO, Luiz Camillo. Ter-lugar: O Espaço e a Arquitetura no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro, 2012. 97p. Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. p. 14. 78  Jorge Forbes trata de um “homem desbussolado” na modernidade, ou seja, colocado no centro de uma passagem de uma sociedade comunitária para outra extremamente individualista, em que essa radical transformação implica na desorientação. Para mais: FORBES, Jorge. A psicanálise do homem desbussolado: as reações ao futuro e o seu tratamento. Opção lacaniana, v. 42, p. 30-33, 2005. 79  HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 27. 77 

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logia filosófica, de Platão até Hegel, foi sempre a de definir o ser, o que para Heidegger constitui um erro do ponto de vista metodológico.80 A modernidade, por ocasião de um paradigma de conhecimento muito próprio, visa a objetivar o próprio ser, colocando-o no campo da pesquisa científica como algo a ser estudado e compreendido por fórmulas e conceitos.81 Tudo a demonstrar que para Heidegger a modernidade, pautada no império racionalista técnico-científico, teria aprofundado o esquecimento do ser em troca da “disponibilidade, da manipulação e da apropriação”82. Contrapondo essa lógica cientificista, o alemão coloca em xeque, na primeira parte da obra “Ser e Tempo”, a clássica separação que a filosofia promove entre o ser e o objeto na apreensão da verdade83, pois, para o filósofo, tanto a subjetivação quanto a objetivação foram responsáveis por diversas incompreensões na busca da essência do ser. Heidegger aponta que o niilismo, próprio de um mundo pautado no primado tecnocrata, resulta de um pensamento metafísico originário de Platão, cujo ápice deu-se com o racionalismo de Descartes84. O pensamento de tais filósofos teria Para o autor, o conceito de ‘ser’ é indefinível. Essa é a conclusão tirada de sua máxima universalidade. Haveria o campo do ser e o do ente, ambos imbuídos de lógicas muito distintas. 81  HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 38-41. 82  ROCHA, Flávia Yared; OSÓRIO, Luiz Camillo. Ter-lugar: O Espaço e a Arquitetura no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro, 2012. 97p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. p. 14-15. 83  Heidegger fala em uma “tradição ontológica” e da necessidade de sua destruição. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 56. 84  ROCHA, Flávia Yared; OSÓRIO, Luiz Camillo. Ter-lugar: O Espaço e a Arquitetura no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro, 2012. 97p. Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. p. 16. 80 

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cometido um pecado originário ao confundir as noções de “ente” e “ser”, visto que a metafísica, ao se referir ao ser, sempre o concebe de acordo com um objeto, em um algo, e esse algo está correlacionado ao ente – e não ao ser –, pois este último é o que há de mais universal e amplo, portanto não lhe cabe um espaço de definição. Para Flávia Yared Rocha e Luiz Camillo Osório: Podemos identificar que ao formular a simples questão “o que é?”, nessa experiência primeira, o ser já passa a ser pensado como algo e já começa a ser esquecido. Supor que o ser seja algo é, para Heidegger, a armadilha do pensamento metafísico, pois, ao tentar responder “o que é”, a filosofia coisifica o ser. Para ele, todos os filósofos, de Platão a Nietzsche, promoveram em seu pensamento a entificação do ser.85

Em síntese, o ser não é passível de compreensão pelo ente, embora dele se alimente. E esse é justamente o esquecimento que Heidegger denuncia. Na entificação de tudo, esqueceu-se o ser em sua universalidade e indefinição. Para rememorar esse ser esquecido, recobrando-lhe sua autenticidade, é necessária a libertação de um mundo regido por um pensamento calcado na ciência e em suas fórmulas, teorias e conceitos.

ROCHA, Flávia Yared; OSÓRIO, Luiz Camillo. Ter-lugar: O Espaço e a Arquitetura no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro, 2012. 97p. Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. p. 16. 85 

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A solução para esse impasse, ou seja, essa libertação se daria com o que Heidegger apresenta como Dasein (ser-aí)86, pedra angular de sua teoria ontológica. A definição desse termo necessita de alguma contextualização para melhor apreensão. Enquanto a metafísica promove o pecado primeiro de questionar o ente em relação a seu ser, objetivando-o, a essência do “ser-aí” não é algo passível de objetivação, portanto há uma cisão entre o ente e o “ser-aí”, embora os objetos componham o quadro do Dasein. Uma explicação mais elementar e afastada do hermetismo de Heidegger pode ser realizada sem que haja um absoluto afastamento de seus horizontes de sentido. Dasein (ser-aí) pode ser compreendido como “ser-no-mundo”. Decompondo essa nova expressão, Marco Antônio dos Santos Casanova elucida que “mundo” aponta “a amplitude total do horizonte a partir do qual o ser-aí incessantemente se relaciona com os entes intramundanos, com os outros seres-aí e consigo mesmo”.87 Ser-no-mundo é ter a exata noção da amplitude desse mundo ao mesmo tempo em que se adota uma postura experimentalista com o ser. Nossa cotidianidade nos afasta da experimentação, da sensação do ser-no-mundo, de verificar que estamos em unidade com nossos similares, com outros objetos e com o que mais nos cerca. Não surpreende, assim, que a crítica de Heidegger esteja focada principalmente na modernidade, cujas bandeiras individualistas são tidas como as principais causas Algumas edições da obra “Ser e Tempo” traduzem Dasein como “pre-sença”, como a que foi utilizada para fins de consulta no presente estudo. Contudo, optamos pela tradução mais literal do alemão, que referencia o Dasein como “ser-aí”. Todas as citações a seguir substituem, portanto, “pre-sença” por “ser-aí”. 87  CASANOVA, Marco Antonio dos Santos. Compreender Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 106. 86 

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desse afastamento, tanto de nós conosco quanto de nós com os outros – o que Heidegger denomina como o “impessoal”. Mais ainda, para Ida Elizabeth Cardinalli: Além de promover o distanciamento, a uniformidade e o nivelamento de todas as possibilidades de ser por meio do caráter público da interpretação do mundo e do ser-no-mundo, o impessoal retira a responsabilidade de cada ser-aí.88

A possibilidade de uma vida autêntica, instrui Heidegger, depende dessa compreensão do Dasein como ser-no-mundo e do abandono à impessoalidade por meio de uma analítica existencial. Esta analítica compreende e observa a totalidade na contramão de uma sanha individualista e racionalista. Talvez a maior contribuição do autor para o tema do esquecimento seja justamente a de que devemos nos lembrar de que, enquanto ser, não estamos sozinhos no mundo – e que nosso ser só existe em relação aos demais seres e objetos. Para o autor, somente uma nova postura existencialista permitirá a aproximação a si mesmo, apaziguando as dores tão próprias do viver irrefletido. 1.3 OS SETE PECADOS DA MEMÓRIA

Ocorre que, muito embora as sobreditas análises tenham provido novas configurações ao tema, foi com o avanço da neurociência que se pode compreender melhor a relação já antevista por Bergson entre o corpo – especificamente o sisCARDINALLI, Ida Elizabeth. Heidegger: o estudo dos fenômenos humanos baseados na existência humana como ser-aí (Dasein). Psicologia USP, v. 26, n. 2, p. 249-258, 2015. 88 

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tema nervoso – e a memória. O aporte teórico utilizado neste trabalho refere-se às obras “Princípios de Neurociências” de Eric Kandel, neurocientista vencedor do Nobel da Medicina de 2000, e “Seven Sins of Memory”, de Daniel Schacter, professor de psicologia da Universidade de Harvard. Tratam-se de textos consagrados e concebidos em um discurso de cunho científico, ou seja, construído por sentenças passíveis de verificação ou demonstração.89 Dessa forma, o método de análise aqui explorado difere do filosófico. Eric Kandel principia o capítulo sobre aprendizado e memória de seu “Princípios de Neurociências” com uma citação à obra “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, romance que narra os efeitos de uma praga que subtrai a memória das pessoas na fictícia vila de Macondo90. Após esboçar algumas particularidades da narrativa, Kandel conclui que “o aprendizado refere-se a uma mudança no comportamento que resulta da aquisição de conhecimento acerca do mundo, e a memória é o processo pelo qual esse conhecimento é codificado, armazenado e posteriormente evocado.”91 Haveria, para o autor, “diversos tipos fundamentalmente distintos de memórias”92, cada uma com propriedades cognitivas distintas, orientadas por sistemas encefálicos próprios. A Para maior aprofundamento, acerca da metodologia científica recomenda-se a clássica obra: POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix, 2004. 90  Para mais: MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969. 91  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1256. 92  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257. 89 

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memória pode ser cindida em dois grandes grupos: a) conforme o curso temporal do armazenamento (curto e longo prazo); b) pela natureza da informação armazenada.93 Tais grupos ainda sofrem diversas subdivisões, como será exposto a seguir. No que tange ao primeiro grupo, a memória de curto prazo, também chamada de memória de trabalho, “mantém representações atuais, embora transitórias, de conhecimentos relevantes para certos objetivos”.94 Essa memória se divide em dois subsistemas: um para a informação verbal e outro para informação visuoespacial. Kandel exemplifica o primeiro subsistema na ocasião em que repetimos mentalmente um número de telefone há pouco fornecido. Já o subsistema visuoespacial da memória de curto prazo “retém imagens mentais de objetos visuais e da localização dos objetos no espaço.”95 Há divergência entre pesquisadores quanto à possibilidade de este último subsistema ser dividido em outros dois – um referente ao conhecimento de objetos e outro para o conhecimento espacial. No que se refere à memória de longo prazo, desde 1950 descobertas relevantes da neurociência começaram a eclodir em pacientes que sofreram a remoção bilateral do hipocampo e de regiões vizinhas no lobo temporal medial, intensificando os conhecimentos sobre essa memória. Kandel narra um estudo realizado em Henry Molaison, paciente que apresentava um KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257. 94  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257. 95  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257. 93 

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quadro de epilepsia intratável havia mais de 10 anos por razão de um acidente de bicicleta sofrido aos sete anos de idade. Por conta desse quadro, o cirurgião William Scoville decidiu remover cirurgicamente o hipocampo, a amígdala e partes da área associativa multimodal do córtex temporal. O resultado da cirurgia foi a amenização das crises, que ficaram sob controle. Entretanto, o paciente apresentou um significativo déficit de memória.96 Esse déficit, contudo, ocorreu apenas na memória de longo prazo de eventos após a cirurgia97, visto que a memória de trabalho de Molaison permanecia plenamente operante. O que se perdeu com a cirurgia foi sua capacidade de transferir informações da memória de trabalho para a memória de longo prazo, como por exemplo o fato de que o paciente, embora capaz de se lembrar de um número de telefone fornecido poucos minutos antes (memória verbal de curta duração), esquecia-se de tal número imediatamente, caso sofresse qualquer distração. Embora notável, o caso de Molaison não foi único, porquanto todos os pacientes com similar lesão também apresentaram deficiências na memória de longa duração.98 A relevância do caso Henry Molaison foi justamente evidenciar a ligação entre a memória e o lobo temporal medial, KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257-1258. 97  “Lembrava de seu nome, do trabalho que executava e de eventos da infância, embora sua memória não fosse muito robusta para informações adquiridas nos anos imediatamente anteriores à cirurgia”. KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1257. 98  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1258. 96 

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o que inclui o hipocampo. Conclui-se que qualquer lesão a um dos componentes principais desse sistema pode ocasionar um efeito significativo sobre a memória de longa duração.99 Finalmente, Kandel finda a primeira parte do capítulo sobre aprendizado e memória esclarecendo que “a atividade aumenta no hipocampo direito quando uma informação especial é evocada, aumentando no hipocampo esquerdo quando palavras, objetos ou pessoas são lembradas”.100 Outro ponto observado no caso Molaison levou a neurociência a cindir a memória de longa duração em duas – memória explícita ou implícita. Embora o paciente tenha sofrido uma lesão no lobo temporal medial, ainda assim ele era capaz de reter certos tipos de memória durável, como aprender a desenhar uma estrela olhando-a em um espelho. Curiosamente, Henry não era capaz de se lembrar conscientemente que já havia realizado essa atividade.101 A memória implícita (também chamada de memória de procedimento) seria aquela inconsciente, manifestando-se de forma automática, sem que necessariamente haja um processamento pelo indivíduo, como por exemplo andar de bicicleta mesmo após anos sem exercer tal atividade. Diferentemente, a memória explícita (ou declarativa) é produto de “uma evo-

KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1259. 100  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1260. 101  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1260-1261. 99 

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cação deliberada ou consciente de experiências prévias”102. Enquanto esta memória é altamente flexível, aquela depende sobremaneira das condições originais em que se formou. Pode-se ainda dividir a memória explícita, pela natureza da informação armazenada, em outras duas: uma memória episódica, com cunho pessoal ou autobiográfico, e uma memória semântica, relativa a fatos e objetos. A memória episódica se manifesta ao lembrarmos de um dia importante de nossas vidas, ou de como nos sentimos na primeira vez em que vimos atentamente “A Noite Estrelada” de Vincent Van Gogh. Já a memória semântica tem sua utilidade evidenciada ao se aprenderem novas palavras ou conceitos. Kandel apresenta dois fatos importantes sobre essa memória: 1) não há, no cérebro, um local isolado de armazenamento das memórias de longa duração, pois essa conservação de informações se encontra distribuída em diferentes regiões encefálicas; 2) a memória explícita é mediada por quatro processos distintos: codificação, armazenamento, consolidação e evocação.103 A codificação é definida pelo autor como “o processo pelo qual novas informações são observadas e conectadas com informações preexistentes na memória”104. A motivação é um fator importante no processo de codificação. O armazenamento, por sua vez, refere-se ao processo que permite a retenção da KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1261. 103  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1261. 104  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1261. 102 

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memória por determinado período. Não há nenhuma indicação da neurociência de que haja um limite para o armazenamento da memória de longo prazo, em contrapartida à memória de trabalho, que é sabidamente limitada a poucos fragmentos de informação. A consolidação, por sua vez, é o processo que confere certa estabilidade à informação. Por fim, a evocação está relacionada a trazer novamente à mente certos tipos de informação. Esse processo de evocação se mostra mais eficiente à medida que “dicas” são dadas acerca da informação que se quer recordar.105 Referente à memória implícita, cita-se uma submemória chamada de priming, que se consubstancia na percepção ou detecção de uma palavra ou objeto após uma exposição prévia. Mesmo em pacientes amnésicos, o priming se operacionaliza de forma bastante eficaz, o que indica que seu funcionamento independe de estruturas do lobo temporal medial. O que deve ser ressaltado é que os mecanismos envoltos no priming diferem daqueles observados na memória explícita.106 Daniel Schacter, professor de psicologia citado por Kandel inúmeras vezes ao longo do capítulo sobre memória e aprendizado, aponta alguns defeitos – ou “pecados”107 – da memória. Afinal, alguns fatos são frequentemente esquecidos ou distorcidos em narrativas, e o objetivo do autor é justamente KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1261-1262. 106  KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1264-1265. 107  A obra utilizada para fins deste estudo fala em sete “pecados” da memória. SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. 105 

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desvendar as razões pelas quais isso ocorre. Kandel, ao referenciar Schacter, afirma que “o esquecimento e a distorção podem prover ideias importantes acerca de como funciona a memória”.108 Essa citação revela precisamente a relevância de se explorarem os sete pecados da memória, pois, como já dito, esquecimento e memória são termos indissociáveis, embora diferentes. O primeiro dos sete pecados da memória explorados por Schacter é o da transitoriedade. Para falar dessa falha, o autor inicia o primeiro capítulo do “Seven Sins of Memory” recordando o famoso julgamento de Orenthal James (OJ) Simpson, astro do futebol americano acusado de homicídio e posteriormente absolvido em júri. Schacter nos provoca com a seguinte indagação: “Você consegue se lembrar como você descobriu que Simpson havia sido absolvido?”109. Colocando a questão à prova, dias após o julgamento, um grupo de pesquisadores questionou universitários acerca de como eles souberam da absolvição de Simpson, no que quase todos os participantes conseguiram rememorar de forma satisfatória o dia em que tomaram conhecimento do veredito. Quinze meses depois, perguntados novamente sobre a absolvição, apenas metade dos participantes conseguiu narrar de forma precisa os detalhes da descoberta; três anos depois, menos de 30% (trinta por cento) dos universitários se recordavam.110 KANDEL, Eric et al. Princípios de Neurociências. Tradução de Ana Lúcia Severo. Revisão técnica de Carla Dalmaz e Jorge Alberto Quillfeldt. 5ª ed. Porto Alegre: Editora AMGH, 2014. p. 1270. 109  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 24. 110  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 24.

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Esses fatos, para Schacter, demonstram a correlação entre a passagem do tempo e o esquecimento. A transitoriedade, portanto, é um pecado silencioso e contínuo da memória. O esquecimento se dá com maior incidência a respeito de detalhes específicos de eventos, tais como as pessoas que lá estavam, sua data específica, o clima e o dia da semana. Ao tentar reconstruir os detalhes dessas memórias, muitas vezes somos acometidos por outro pecado: o da “predisposição”. A combinação da transitoriedade com a predisposição gera um grande problema pois resulta na formação de memórias distorcidas ou completamente falsas.111 A transitoriedade afeta tanto a memória de longa duração quanto a memória de trabalho (quando, por exemplo, esquecemo-nos do que iríamos falar). Recentes descobertas da ciência relacionam a memória de trabalho com uma parte do cérebro chamada de “laço fonológico”112, localizada no córtex pré-frontal esquerdo. Um fator determinante para que uma experiência se transforme em memória de longa duração é “o que acontece nos segundos seguintes quando uma memória nasce”113. Schacter pondera que os seres humanos são contadores de histórias natos, inclusive de histórias pessoais (a já citada memória episódica). Falar e pensar sobre experiências passadas auxilia

SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 30-31. 112  Para mais: GALERA, Cesar; GARCIA, Ricardo Basso; VASQUES, Rafael. Componentes funcionais da memória visuoespacial. Revista Estudos Avançados.  São Paulo ,  v. 27, n. 77, p. 29-44, 2013. 113  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 51. Tradução nossa. 111 

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em sua proteção contra a transitoriedade114, ao passo que as experiências não contadas se esvaem mais rapidamente.115 É claro que algumas experiências são mais memoráveis por sua própria natureza ou especificidade, como por exemplo o atentado de 11 de setembro, o nascimento do primeiro filho, o primeiro beijo ou até mesmo o primeiro dia da faculdade. Contudo, isso não invalida – apenas corrobora – o argumento inicial de que quanto mais se fala e pensa sobre uma experiência, maiores são as chances de esta se tornar uma memória de longa duração. Arremata o autor: “pensar e falar sobre experiências cotidianas é a melhor forma de guardá-las”.116 Menciona-se ainda a importância de sugestões ou “dicas” para a lembrança de experiências, principalmente aquelas relacionadas com o exato momento em que codificamos inicialmente uma memória. Neste grupo, as mais poderosas são as visuais, em que se associa um evento a uma imagem.117 Embora dicas possam fazer memórias ressurgir, Schacter explica que investigações

É possível fazer aqui uma correlação com o que Walter Benjamin escreveu sobre as narrativas e sua “morte”. Isso porque a rememoração pela narrativa é capaz de combater a transitoriedade e preservar a memória. Dito de outro modo, a morte da narrativa é a morte da memória coletiva. 115  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 52. 116  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 53. Tradução nossa. 117  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 55. Tradução nossa. 114 

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recentes da neurociência118 mostram que algumas memórias de fato podem ser inteiramente perdidas. O segundo pecado da memória é a distração. Schacter define a distração como “lapsos de atenção que resultam na falha em rememorar informações que ou nunca estiveram codificadas propriamente (se é que estiveram) ou que estiveram disponíveis na memória mas foram esquecidas no tempo em que precisávamos delas”.119 O autor declara que existem basicamente duas maneiras de nos lembrarmos de experiências passadas: pela “lembrança” ou pela “familiaridade”. A lembrança envolve recoletar à mente alguns detalhes de experiências passadas, tais como o lugar ocupado dentro de um ônibus, o tom do cobrador na interação e o destino do veículo. Já a familiaridade revela um senso mais primitivo de saber que algo já aconteceu, muito embora sem recordar precisamente os detalhes desse ocorrido, como por exemplo ao observar a face de uma pessoa por alguns instantes sabendo que a conhece, mas sem recordar seu nome ou a ocasião de seu primeiro contato. Estudos da neurociência apontam que a divisão da atenção no processo de codificação da memória pode ser a principal causa da distração; essa divisão tem um efeito bastante Citam-se os estudos conduzidos pelo psicólogo Willem Wagenaar. Por 4 anos, Wagenaar produziu um diário de suas memórias com o maior número de detalhes e dicas possíveis; quem estava com ele, por quanto tempo e em que hora do dia. Após esses 4 anos de escrita, Wagenaar releu seu diário e começou a tentar se recordar dos eventos passados. O psicólogo descobriu que essas dicas serviram como forte incentivo a fim de que resgatasse lembranças. Contudo, mesmo com dicas muito precisas, alguns eventos não lhe causavam nenhuma reminiscência. O tempo é capaz de alterar a força das conexões dos neurônios. SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 54-56. 119  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 67. 118 

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notório na lembrança, ao passo que não afeta a familiaridade, pois essa última necessita apenas de frações rudimentares da memória para funcionar.120 Um estudo empírico conduzido pelos psicólogos Fergus Craik e Larry Jacoby revelou que, no caso de idosos, a atenção dividida pode ter se tornado uma condição crônica. Isso porque a atenção de adultos acima de sessenta anos, quando totalmente focados, têm resultados similares com a de jovens cuja atenção encontra-se dividida no processo de codificação.121 A maneira mais eficaz de se combater a distração é com o auxílio de “ajudas de memória externa”. A campeã mundial de memorização de 1999, Tatiana Cooley, revelou que, embora tivesse uma memória prodigiosa para eventos, datas históricas e informações gerais, ainda assim dependia de post-its na recordação de atribuições diárias. Isso revela a diferença entre transitoriedade e distração; Tatiana sofria pouco da primeira e excessivamente da segunda. As ajudas de memória externa seriam o exemplo do post-it, também uma “dica” externa que auxilia na elaboração e preservação de lembranças.122 O alerta sonoro às 22 horas para nos lembrar de tomarmos determinado medicamento também funciona como uma ajuda de memória externa. Ressalta-se ainda as relações existentes entre a memória e um novo paradigma societário cunhado de sociedade informacional; frisa-se que a distração parece se potencializar nesse novo paradigma, pois SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 73. 121  Para mais: CRAIK, Fergus IM; JACOBY, Larry L. Aging and memory: Implications for skilled performance. Aging and skilled performance: Advances in theory and applications, v. 4, p. 113-137, 1996. 122  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 93-94. 120 

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a quantidade de informações (muitas vezes falsas) que o ser recebe causam um notório desvio de atenção. O terceiro pecado explorado por Schacter é o do bloqueio. A sensação impotente de possuir um determinado conhecimento e ele “não vir” no exato momento em que se almeja tê-lo é corriqueiro. Esse pecado, para o autor, “envolve uma espécie de esquecimento diferente da distração e da transitoriedade”123, pois, diferentemente da distração, a informação foi efetivamente codificada e armazenada e, de modo diverso da transitoriedade, a informação não se esvaiu da memória. Schacter explora um bloqueio específico e que aponta conclusões mais gerais, qual seja aquele que acarreta na incapacidade de rememoração do nome (e de nomes próprios no geral) de determinada pessoa, explicando que tal barreira tem uma lógica de funcionamento muito própria, relacionada ao chamado Paradoxo de Baker. São mostradas fotografias de rostos masculinos não familiares a dois grupos distintos de participantes, um por vez. O primeiro grupo se ocupa em associar um nome a cada uma das faces, enquanto o segundo grupo lhes dá uma ocupação ou profissão. O cerne do experimento consiste em atribuir aos nomes próprios e às ocupações (nomes comuns, portanto) a mesma palavra. Isso fica mais facilmente visualizável no inglês, com palavras como baker (padeiro) ou potter (oleiro), que servem tanto para designar nomes como profissões. Quando, mais tarde, foram reapresentadas as faces, a taxa de rememoração das ocupações foi muito superior à dos nomes. Por que então, com palavras de SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 96. 123 

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escrita idêntica, nos recordamos mais de ocupações do que de nomes? Essa é a síntese do paradoxo de Baker.124 A explicação dessa incongruência já tinha sido antevista pelo filósofo utilitarista John Stuart Mill há mais de 150 anos.125 Em seus estudos sobre lógica, o inglês defendia que um nome não carrega em si uma conotação.126 Saber que alguém se chama João da Silva não diz nada sobre a pessoa, a não ser o fato de que tal indivíduo detém um nome comum na língua portuguesa. Por outro lado, saber que sua ocupação é de um ferreiro se mostra uma informação mais qualificada, pois confere um senso geral de sua rotina de trabalho, das ferramentas que usa e da classe social que integra.127 Para Schacter: “No experimento Baker, as pessoas conseguem utilizar com maior facilidade associações preexistentes e conhecimentos para codificar e lembrar a ocupação baker em detrimento do nome Baker.”128 A justificativa, portanto, do bloqueio em relação aos nomes, dá-se pelo fato de que eles carregam pouco ou nenhum conteúdo semântico, não apresentando correlações com conceitos ou conhecimentos anteriores. Ressalta-se que essa condição dos nomes é mais observada na cultura ocidental, SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 98-99. 125  MILL, John Stuart. A System of Logic: Ratiocinative and Inductive, Honolulu: University Press of the Pacific, 2002. 126  Aponta-se outro estudo relevante sobre o tema: MĂRĂȘOIU, Andrei. The insufficient connotation of proper names. Annals of the University of Bucharest-Philosophy Series, v. 55, n. 1, 2006. 127  Outros exemplos são apresentados por Schacter. SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 99. 128  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 99. 124 

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pois é comum que outras culturas nominem pessoas e coisas atribuindo-lhes uma gama de sentidos. Nessas culturas, o problema de bloqueio em relação aos nomes tende a ocorrer em menor grau.129 Uma estratégia apontada por Schacter para a memorização de nomes próprios consiste na associação entre o nome próprio e um nome comum. Por exemplo, se o seu gerente de banco se chama André Real e você o vê apenas duas vezes por ano, as chances de bloqueio são altas; contudo, associando o sobrenome real à moeda corrente no país, impressa exclusivamente pelo Banco Central, chega-se à associação entre a pessoa André Real e a coisa banco.130 O quarto pecado apresentado no livro é o da atribuição incorreta, também chamado de “paramnésias”, “falsas memórias” ou ainda a ilusão de deja vu131. Após detalhar uma série de pesquisas que almejaram compreender a estranha e corriqueira sensação de “eu já estive aqui” ou “esse local me é familiar”, Schacter conclui que: “[o] Deja Vu acontece em uma razão relativamente infrequente, e ainda não há uma explicação convincente de precisamente quais características de uma experiência atual que produziriam esses erros de julgamento”.132 Mesmo assim, não raras vezes o ser humano se lembra de eventos que nunca ocorreram, ou ainda atribui SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 99-100. 130  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 122. 131  Um dos primeiros relatos descritivos de um fenômeno de deja vu foi feito por Dante Gabriel Rosetti no poema “Sudden Light” (luz súbita), que aqui se reproduz parcialmente direto do inglês: “I have been here before\ But when or how I cannot tell\ I know the grass beyond the door\ The sweet keen smell\ The sighing sound, the lights around the shore [...]”. Disponível em: . Acesso em 31/08/2018. 132  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 138. Tradução nossa. 129 

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determinado fato a um local ou data imprecisos. Esse é um grave pecado da memória, pois “a atribuição incorreta pode alterar nossas vidas de maneiras estranhas e inesperadas”.133 Por conta desse lapso, criminosos são potencialmente criados e inocentes se veem condenados. A primeira espécie de atribuição incorreta pode ser chamada de “transferência inconsciente”. Essa atribuição fica mais visível justamente nos casos em que testemunhas identificam equivocadamente autores de crime. Ao atribuir erroneamente o rosto de alguém a um fato (no caso, um crime), a pessoa transfere de forma inconsciente a memória de um indivíduo de um contexto para o outro. Uma das possíveis explicações para essa falha é de que experiências traumáticas resultam na imperfeição do processo de formação de memórias. Estudos recentes da neurociência demonstram a importância do hipocampo nesse processo chamado de “ligação de memória”, que nada mais é do que juntar diversos componentes de uma experiência em um bloco unitário.134 Uma maneira de se combater este pecado é encorajando as pessoas a reconstruir suas memórias com muito cuidado, evitando ao máximo a reminiscência pela familiaridade. Um exemplo ajuda a elucidar esse cuidado: um estudo conduzido pelo psicólogo Gary Wells, da universidade de Iowa, demonstra que é possível reduzir o número de atribuições errôneas em filas de suspeitos de uma maneira bastante singela. Ao invés de se colocarem os suspeitos perfilados, sugere-se que eles SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 139. Tradução nossa. 134  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 143. 133 

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sejam apresentados um a um para quem os irá reconhecer; assim, o reconhecedor deverá sinalizar ora com o polegar para cima, ora com o polegar para baixo. Feito dessa maneira, o reconhecimento evita o máximo a familiaridade e se baseia em uma(s) lembrança(s) construída(s) de forma mais arguta.135 O quinto pecado exposto por Schacter é o da sugestibilidade. Em 1992, um acidente aéreo na Holanda vitimou 43 pessoas quando um avião se chocou com um edifício em Amsterdã. Dez meses depois do fato, psicólogos holandeses perguntaram a pessoas da comunidade acadêmica se elas haviam assistido ao vídeo do acidente. 55% responderam que sim, lembrando-se ainda da velocidade e ângulo do avião e de outros detalhes. Ocorre que o acidente jamais fora gravado. Diferentemente do quarto pecado, em que pode haver produção de falsas memórias, a sugestibilidade acontece com a participação de terceiros. Para Schacter, “sugestibilidade da memória refere-se à tendência de um indivíduo em incorporar informações imprecisas de fontes externas em memórias pessoais”. Novamente, esse é um pecado perigoso por ocasionar falsas identificações de testemunhas e, inclusive, fenômenos como a alienação parental.136 A fim de minimizar os efeitos da sugestibilidade na identificação de testemunhas oculares, pesquisadores têm adotado a chamada “entrevista cognitiva”, técnica pautada em descobertas e ideias obtidas em estudos controlados da memória, evitando o uso de perguntas sugestivas. A entrevista WELLS, Gary et al. Eyewitness identification procedures: Recommendations for lineups and photospreads. Law and Human Behavior, v. 22, n. 6, p. 603, 1998. 135 

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cognitiva se aporta em quatro componentes: I) solicitar à testemunha a narração de tudo que lembra acerca dos fatos, evitando questões sugestivas, geralmente feitas pela polícia, tais como “qual era a cor da camisa do assaltante?”; II) o segundo componente refere-se à tentativa de “vasculhar” mais a fundo a memória de quem depõe, requisitando que essa pessoa tente restabelecer mentalmente o contexto ou cenário em que o incidente ocorreu; III) ainda, as testemunhas são solicitadas a recordar os eventos em diferentes ordens temporais: começando do final até o início e vice versa; IV) finalmente, é pedido para que a testemunha se coloque na posição de outra vítima ou até mesmo do suposto autor do crime, a fim de que nenhum detalhe passe despercebido.137 Se comparada às técnicas usuais adotadas pela polícia, a entrevista cognitiva apresenta resultados mais satisfatórios na questão da recordação de testemunhas.138 Outro tema diretamente ligado ao pecado da sugestibilidade é o das falsas confissões. Em 1908, o psicólogo Hugo Münsterberg chamou a atenção da comunidade científica com um estado chamado “On the Witness Stand”139, em que relata casos de confissões de pessoas inocentes que realmente acreditavam terem cometido um crime. Uma alta carga de estresse emocional combinada com pressão social e sugestibilidade foram apontados como os principais motivos dessa insólita distorção da memória. Comparada aos outros pecados SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 179-180. 138  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 180. 139  Ou, em português: “Do ponto de vista da vítima”. Tradução nossa. MÜNSTERBERG, Hugo. On the witness stand: Essays on psychology and crime. New York: Doubleday, 1908. 137 

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da memória, esse, especialmente na sua feição de falsas confissões, parece distante de nossas vidas cotidianas. Todavia, é preciso atentar-se às suas potenciais repercussões. Em tom de síntese desse capítulo, Daniel Schacter explica que: Os efeitos perniciosos da sugestibilidade atestam a ideia de que lembrar o passado não é meramente uma questão de ativar ou acordar um traço ou figura dormente na nossa mente, mas envolve, de outro modo, uma interação muito mais complexa entre o ambiente presente, o que alguém espera recordar, e o que é mantido do passado. As técnicas de sugestibilidade inclinam a balança entre estes fatores para que as influências do presente tenham um papel muito maior na determinação do que é lembrado comparado ao que efetivamente ocorreu no passado.140

O antídoto para esse pecado é justamente adotar uma postura omissiva, principalmente de psicólogos e policiais, para que saibam o que não perguntar, ou seja, evitar questões sugestivas, produzindo um questionamento mais fiel aos fatos e que minimize sua afetação pela sugestibilidade. O sexto e penúltimo pecado é o da predisposição, muito similar ao pecado da sugestibilidade. A predisposição revela como nosso presente tem influência sobre o passado, como exemplificado no já citado adágio de Heráclito de Éfeso: na segunda vez que o ser se banha no rio, nem o ser nem o rio são os mesmos. Schacter define a predisposição como “distorcer as influências do presente acerca dos nossos conhecimentos, SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 194. 140 

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crenças e sentimentos sobre novas experiências ou as memórias sobre elas”141. No romance distópico “1984”, George Orwell revelou como um governo autoritário seria capaz de expandir o alcance de seu poder ao controlar o presente e, portanto, o passado142, revelando assim a relação desse pecado com a manutenção do poder político. Conforme se verá a seguir, um dos grandes perigos de um direito ao esquecimento é justamente a possibilidade de que ele desnature fatos passados, ou ainda que o titular desse direito não esteja completamente alinhado com as experiências passadas, pois pode ter sido vitimado por alguns dos pecados já citados. Ao nos lembrarmos, por exemplo, de nossa infância, muitas vezes resgatamos memórias positivas, de um tempo repleto de felicidades. Contudo, essas memórias podem estar afetadas por predisposição, porquanto os sentimentos que de fato eram próprios da infância poderiam ser bastante negativos, como solidão, angústia, raiva e ansiedade. No primeiro subcapítulo, Benjamin já alertava como as narrativas históricas resultam de processos absolutamente excludentes e, por que não, predispostos – relegados ao esquecimento quando se chocam com a “história oficial”. Essa memória incompleta ou predisposta pode ser bem exemplificada no discurso das nações vencedoras de guerras, cronologia que por vezes recai em um maniqueísmo vazio e enviesado. Em suma, a memória não é um dado, mas um construído, em que SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 207. 142  “Quem controla o passado, dizia o lema do partido, controla o futuro: quem controla o presente controla o passado”. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25. 141 

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passado e presente se interligam e a consciência daquela que recoleta a memória influencia na sua formação. Ao final do capítulo sobre a predisposição, Schacter pontua que estudos recentes da neurociência demonstram que o hemisfério esquerdo do cérebro é o grande responsável pela interpretação de fatos passados, fazendo-o em um processo contínuo.143 Por sorte, o hemisfério direito é capaz de balancear as predisposições provocados pelo seu vizinho: “felizmente para nossa espécie, contudo, o cérebro detém um sistema engenhoso de freios e contrapesos que quedaram ausentes na visão pessimista de Orwell”.144 Finalmente, o autor aponta que a melhor maneira de se contornarem os percalços da sugestibilidade seja justamente por intermédio da compreensão de que o presente tem influência nas recordações do passado. Propugna-se, então, um exercício de vigilância, que reconheça a falibilidade das fontes que geram convicções sobre presente e passado. Só assim será possível “reduzir as distorções que surgem quando a memória funciona como um peão a serviço de seus mestres”.145 O sétimo e último pecado da memória é o da persistência, definido por Schacter como o mais devastador dos pecados. Aduz o autor: “em oposição à transitoriedade, à distração e ao bloqueio, pautados no esquecimento de informações ou eventos que se pretendiam recordar, a persistência envolve SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 237. 144  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 238. Tradução nossa. 145  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 239. Tradução nossa. 143 

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lembrar aquelas coisas que você gostaria de esquecer”.146 Por vezes, a persistência é um mero incômodo, como quando insistentemente nos recordamos da melodia viciante de uma música desagradável. Em outras ocasiões, pode ser um problema devastador para a vida de alguém. A persistência está intimamente conectada com as relações entre memória e emoção. O primeiro fato relevante dessa conexão é que a produção de memórias em situações de extrema emoção se revela muito mais poderosa e duradoura do que memórias produzidas em situações corriqueiras.147 Estudos da psicologia apontam para algo chamado de “foco de arma”, relativo ao fato de que, ao nos depararmos com uma experiência que cause grandes emoções, tendemos a nos lembrar bem do seu ponto central, ao passo que detalhes periféricos dessa situação são esquecidos. O exemplo que inclusive dá o nome a esse efeito é o de um assalto a um banco, em que as vítimas, movidas pelo intenso medo provocado pela ocasião, concentram toda sua atenção na(s) arma(s) utilizada(s) no crime, perdendo o foco em outros detalhes, tais como a feição dos assaltantes.148 Por conta desse efeito tão próprio dos seres humanos, as emoções intensificadas – tanto as positivas quanto as negativas – são lembradas inclusive involuntariamente. Um estudo conduzido por Kevin Oschner149 e James Gross revelou aspectos SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 241. Tradução nossa. 147  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 243. 148  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 244-245. 149  OCHSNER, Kevin N.; GROSS, James J. The cognitive control of emotion. Trends in cognitive sciences, v. 9, n. 5, p. 242-249, 2005. 146 

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interessantes sobre os efeitos e as diferenças entre memórias positivas e negativas. Após mostrar fotos positivas, neutras e negativas para estudantes, como por exemplo bebês sorrindo, faces desfiguradas ou construções normais, os condutores do teste pediram para que os participantes se recordassem das fotos recém-mostradas. A primeira conclusão foi de que as fotos tidas como neutras raramente eram recordadas. Ademais, quando as pessoas se recordavam das imagens positivas, diziam que elas lhes eram familiares. Já no que toca às negativas, os participantes conseguiam relatá-las com riqueza de detalhes, externando como eles se sentiram e o que pensaram quando viram tais imagens pela primeira vez.150 Os efeitos de memórias negativas tendem a se dissipar com o tempo. Contudo, em alguns casos, o fato é relembrado tantas vezes que esse processo natural de esquecimento regenerativo é dificultado, ou acaba por não acontecer.151 Tem-se como exemplo hipotético disso um jogador de futebol que erra um pênalti em um jogo decisivo para seu time. Diante dessa falha, a mídia e os torcedores certamente não deixarão que o jogador se cure dessa experiência amarga. No entanto, é preciso dizer que os efeitos dessas mazelas também dependem de idiossincrasias de cada pessoa; afinal, alguns jogadores podem reagir bem à perda do pênalti, enquanto outros lançarão de modo mais forte sobre si os flagelos do erro.152 Afirma Schacter:

SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 245. 151  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 247. 152  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 250-251. 150 

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Para algumas pessoas, a força de eventos traumáticos é tão grande que elas ficam “presas” no passado. Estudos em veteranos da Guerra do Vietnã e vítimas de abusos sexuais indica que indivíduos que permanecem focados no passado por anos após um evento traumático exibem um maior grau de estresse psicológico comparado àqueles que focam no presente e no futuro. Níveis elevados de estresse psicológico estimulam um foco ainda maior no passado, estabelecendo assim um ciclo destrutivo de autoperpetuação de lembranças [...]153

Finalmente, substância químicas podem ser agentes potentes para combater os efeitos da persistência. Daniel Schacter cita o propranolol, um betabloqueador utilizado por trabalhadores de emergências para inibir a criação de memórias intrusivas em operações de resgate. Todavia, os betabloqueadores apresentam perigos, podendo inclusive fazer com que as memórias traumáticas sejam ignoradas. E esse é justamente o aspecto positivo da persistência: alguns eventos que precisam ser confrontados vêm à mente com uma enorme força, o que permite que se possa atuar de maneira a evitá-los, afinal “o sétimo pecado – assim como os outros seis – não é meramente um inconveniente ou um incômodo, mas é senão um sintoma de uma das grandes forças da mente humana”.154 O pecado da persistência permite que se faça uma conexão com o chamado direito ao esquecimento, fruto de análise do próximo capítulo. Conforme se verá, tal direito, em algumas SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 261. 154  SCHACTER, Daniel Lawrence. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers. Houghton Mifflin Harcourt, 2002. p. 272. 153 

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de suas acepções, relaciona-se justamente com a possibilidade de que memórias passadas, pessoais ou coletivas, sejam retiradas do alcance de outras pessoas por fundamentos tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) ou a privacidade (art. 5º, X, CF/88). Foram aqui colocados os possíveis efeitos traumáticos e devastadores de uma memória persistente. Todavia, a temática do esquecimento deve ser manejada com cuidado, pois a completa falta de uma memória, ou até mesmo uma memória predisposta ou sugerida, ao que nos mostram outros pecados estudados por Schacter, também produz um efeito devastador. Portanto, conclui-se que existem diversos pecados da memória, e que esta é extremamente complexa. Observa-se também que, em maior ou menor grau, os processos e pecados da memória estão relacionados com o direito ao esquecimento.

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2.

DIVERSOS SIGNIFICADOS DE UM SIGNIFICANTE COMPLEXO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO

O entrelaçamento dos temas tratados no primeiro capítulo permitiu o vislumbre da memória como um fenômeno complexo, fruto de uma imbricação de processos distintos. A historicidade, as idiossincrasias ontológicas do ser e até mesmo o funcionamento neurológico do cérebro e áreas adjacentes influenciam as duas pontas da memória individual, ou seja, desde sua codificação até a posterior lembrança, influenciando também na memória coletiva. O direito, na sua acepção de conjunto de normas aptas a regular a vida em sociedade, almejou, por meio de seus institutos, apreender e disciplinar as relações entre o ser e sua personalidade, considerada, nas palavras de Carlos Alberto Bittar, como “os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada

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em si mesma e em suas projeções na sociedade”.155 Nesse sentido, o chamado direito ao esquecimento é colocado ora como direito autônomo da personalidade, ora como desdobramento da privacidade, sendo por certo um ponto de interligação entre a memória e o direito. Longe de ser matéria nova, tal direito tem raízes no início do século XX. Conforme se verá, existiram e existem diversos “direitos ao esquecimento” focados em bens jurídicos distintos, havendo confusão conceitual inclusive na doutrina. Todos parecem, contudo, estar de alguma forma relacionados a alguma das diferentes acepções da privacidade, embora haja três teorias sobre a natureza jurídica desse direito. A investigação dos significados desse significante é fundamental, portanto, a fim de que se faça um posterior contraponto ao que se vem entendendo pelos juristas e pela doutrina como o direito ao esquecimento, delimitando, assim, o objeto do estudo. O primeiro subcapítulo tratará das concepções plurais acerca da privacidade, trazendo, de início, o celebre artigo “The Right to Privacy”, publicado no final do século XIX, que traz a primeira noção de privacidade como “um direito de ser deixado só”. Além disso, serão exploradas suas outras acepções, até se chegar na noção contemporânea de privacidade como controle de dados pessoais. Em seguida, serão trazidas outras configurações do direito ao esquecimento (2.2) para enfim estudarem-se os casos clássicos (2.3 e 2.4) que relacionam o tema, mostrando e criticando o entendimento das Cortes Superiores brasileiras e estrangeiras. Frisa-se que tais casos BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 29. 155 

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foram escolhidos pela relevância dos argumentos utilizados pelos julgadores ou propriamente pelo impacto das decisões. 2.1 A NECESSIDADE DE UMA CONCEPÇÃO PLURAL DE PRIVACIDADE

Enfrenta-se agora uma necessária delimitação terminológica do chamado direito ao esquecimento; afinal, como alerta o título do capítulo, trata-se de um significante capaz de espraiar uma gama de significados inconciliáveis.156 Essa delimitação será construída ao longo desse trabalho, inaugurando a investigação da temática com o aporte de uma questão fundamental: quando nos referimos a determinado direito ao esquecimento, o que exatamente (qual bem) visamos a proteger? Diversas expressões representaram a pretensão de, por intermédio de instrumentos jurídicos, dificultar o acesso de determinada informação a outrem ou propriamente postular a remoção dessa informação, geralmente por prestígio aos direitos da personalidade e por noções ligadas à dignidade da pessoa humana. Apenas na tradição anglo-saxã, fala-se em: right to forget (direito de esquecer), right to be forgotten (direito de ser esquecido), right to be let alone (direito de ser deixado em paz), right to erasure (direito ao “apagamento”), right to delete (direito de apagar) e right to oblivion (direito à obliteração).157 Usualmente, a doutrina faz pouca distinção entre essa plêiade

Essas diferentes acepções são analisadas por PARENTONI, Leonardo Netto. O direito ao esquecimento (right to oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coords.). Direito & Internet — Tomo I: Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) — São Paulo: Quartier Latin, 2015. pgs. 539-618. 157 

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de direitos distintos,158 tratando todos eles com o nome geral de direito ao esquecimento, apresentando suas variações em um bloco unitário, como se o processo histórico tivesse apenas aperfeiçoado ou modificado esse direito uno. Entre essas variadas formas, concentra-se inicialmente no tema da privacidade e em sua relação com o esquecimento, até porque, como se verá no estudo de casos clássicos, as primeiras formulações desse direito estavam relacionadas ao valor da privacidade em sua acepção primeva como “o direito de ser deixado em paz”, havendo ainda outros autores que vislumbrem na autodeterminação informativa um desdobramento hodierno da privacidade, o fundamento contemporâneo do direito ao esquecimento.159 Para Joana Machado e Sergio Negri, “as diversas dimensões históricas da privacidade representam respostas ao desenvolvimento das tecnologias de comunicação”.160 Essa é uma premissa a ser seguida até se chegar na sociedade informacional. O objetivo desse estudo é o de responder a indagação: qual é a relação da privacidade com o direito ao esquecimento? Marcel Leonardi aponta que a noção de privacidade hoje é bastante ampla, o que já é possível vislumbrar na multiplicidade de termos que a doutrina utiliza para se referir a Esse ponto será melhor explorado no terceiro subcapítulo, em que se utilizará a designação de direitos ao esquecimento. 159  “Tratando-se a privacidade contemporânea como ‘a possibilidade do controle sobre dados pessoais’, em cujo debate se inserem fortemente conceitos como consentimento para coleta e tratamento de dados e sua finalidade, parece-nos que a definição é suficiente para abarcar o que se considera como direito ao esquecimento”. BRANCO, Sergio. Memória e esquecimento na internet. (Pautas em Direito) (Locais do Kindle 3203-3217). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 160  MACHADO, Joana; NEGRI, Sergio. Ensaio sobre a promessa jurídica do esquecimento: uma análise a partir da perspectiva do poder simbólico de Bourdieu. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Brasília, v. 7, nº 3, 2017, p. 367-382, p. 370. 158 

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ela, como por exemplo “vida privada”, “intimidade”, “segredo”, “sigilo”, “recato”, “reserva”, entre outros.161 O fato de a Constituição Federal brasileira de 1988 e o Código Civil de 2002 não tratarem expressamente de “privacidade” não é por acaso; de fato, a expressão é de difícil conceituação, tida como uma “palavra-cameleão”, sendo utilizada para os mais diferentes e conflitantes fins, tais como a confidencialidade de informações e autonomia reprodutiva.162 A privacidade se encontra em uma região de penumbra, tratando-se de um conceito jurídico indeterminado tal qual a dignidade da pessoa humana, o interesse público, a justiça, entre outros. O grande malefício dessa falta de clareza no conceito é a dificuldade de formulação de políticas públicas e a resolução de casos práticos, muitas vezes deixando definição e delimitação do que seja a privacidade na mão de juristas (tanto doutrinadores quanto juízes) – o que pode gerar verdadeira insegurança jurídica. Essa mutabilidade do conceito de privacidade não é um problema restrito ao direito brasileiro ou ao Civil Law. Na obra “Three Concepts of Privacy”, o professor da Yale Law School, Robert Post, classifica a privacidade como “um valor tão complexo, tão emaranhado em dimensões contraditórias e conflitantes, que às vezes eu duvido se ela pode ser utilizada adequadamente de algum modo”.163 Leonardi ressalva que uma diferenciação necessária é a de que, enquanto na tradição da LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 45. 162  LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 46. 163  POST, Robert Charles. Three concepts of privacy.  Georgetown Law Journal, v. 89, p. 2087-2098, 2000. p. 2087. Tradução nossa.

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Civil Law o termo aparece mais ligado à noção de dignidade, na tradição anglo-saxã da Common Law a privacidade se encontra mais alinhada à liberdade.164 Entretanto, isso não invalida o argumento inicial referente à celeuma que é definir a privacidade globalmente. Haveria mérito em tentar defini-la? Não sofreriam as definições de excessiva vagueza ou excessiva restrição? A doutrina e a jurisprudência já tentaram produzir conceitos unitários de privacidade, divididos, para Marcel Leonardi, em quatro grandes grupos: 1) o direito de ser deixado só (the right to be let alone); 2) o resguardo contra interferências alheias; 3) o segredo ou sigilo; 4) controle sobre informações e dados pessoais. 1) O direito de ser deixado só: Uma das obras com maior impacto na doutrina nacional e estrangeira no que toca à temática, tida como a primeira publicação nos Estados Unidos que advogou a possibilidade de um direito à privacidade, foi escrita em 1890, por Samuel Warren e Louis Brandeis, publicada na Harvard Law Review e denominada “The Right to Privacy” (o direito à privacidade). Logo no frontispício do estudo, os autores advertem: Que o indivíduo deva receber proteção total em sua pessoa e em sua propriedade é um princípio tão velho quanto a common law; todavia mostra-se necessário que, de tempos em tempos, se redefina a natureza e extensão de tal pretensão. Mudanças políticas, sociais e econômicas impendem o reconhecimento de novos direitos, e a common law, em sua LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 49. 164 

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eterna juventude, amadurece para atender às demandas da sociedade.165

Os autores têm como um dos grandes méritos de sua obra essa construção da ideia de que a privacidade não seria de forma alguma um valor estanque, absoluto, insuscetível a mudanças diante das novidades trazidas pelo tempo. A privacidade se amoldaria diante de novas circunstâncias da sociedade, como pelo avanço nas tecnologias de impressão e de cópia que haviam levado fatos pessoais às primeiras páginas dos jornais escritos. Segundo a célebre frase da obra, “aquilo que é sussurrado no quarto será declamado dos telhados”.166 Warren e Brandeis, citando o juiz Cooley, concatenavam a privacidade como sinônimo do right to be let alone (direito de ser deixado em paz).167 O raciocínio que os fez concluir por um direito de ser deixado em paz relaciona-se ao fato de que, à época, a privacidade estava estritamente ligada à propriedade privada. Todavia, ao proteger apenas aquele que produzia determinada obra, o direito não provia o mesmo resguardo àquele que não queria a publicação ou divulgação de determinada obra (right to prevent publication).168 Seguindo essa linha, haveria, então, um princípio natural integrante do patrimônio jurídico do particular que o conferiria uma proteção contra invasões, garantindo-lhe a possibilidade de ser deixado só. WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard law review, p. 193-220, 1890. p. 193. Tradução nossa. 166  WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard law review, p. 193-220, 1890. p. 194. Tradução nossa. 167  WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard law review, p. 193-220, 1890. p. 205. 168  WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard law review, p. 193-220, 1890. p. 206. 165 

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Em síntese, o grande mérito da obra foi de ressignificar a privacidade como uma tutela jurídica conectada à inviolabilidade da personalidade, e não mais exclusivamente à propriedade privada. Contudo, a ideia de privacidade transmutada na máxima de “estar só” ou “ser deixado em paz” é vaga “e não serve como guia para definir o que está ou não incluído no seu âmbito de proteção”.169 A bem da verdade, esse conceito de privacidade implica um isolamento do ser perante o mundo, desprezando a carga de solidariedade social presente no direito, sobretudo na contemporaneidade.170 E essa é precisamente a visão da jurisprudência europeia. No caso Niemietz vs Alemanha, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a corte asseverou que: “respeito à vida privada também deve compreender, em certo grau, o direito de estabelecer e desenvolver relacionamentos com outros seres humanos”.171 2) O resguardo contra interferências alheias: A segunda possibilidade de entendimento da privacidade consubstancia-se no resguardo do indivíduo contra interferências alheias. Diferentemente do direito de ser deixado em paz, aqui não há um isolamento total da pessoa, que escolherá quais fatos devem ser mantidos para si e quais outros serão colocados sob a lente pública.172 A doutrina costuma se referir a essa feição LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 54. 170  Para mais: ROSSO, Paulo Sergio. Solidariedade e direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Revista Eletrônica do CEJUR, v. 1, n. 2, 2007. 171  EUROPA. Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Caso Niemietz v. Alemanha (72/1991/324/396). Julgado em 16 de dezembro de 1992. 172  Não é desconhecida a teoria dos círculos proposta por Henkel e Hubman. Contudo, por tal teoria ser alvo de críticas e objeções da doutrina, ela não será delineada aqui. 169 

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da privacidade como o direito à intimidade.173 Para Carlos Alberto Bittar, a intimidade seria uma subdivisão dos direitos psíquicos da personalidade, definindo-a como: [...] elisão de qualquer atentado a aspectos particulares ou íntimos da vida da pessoa, em sua consciência, ou em seu circuito próprio, compreendendo-se seu lar, a sua família e a sua correspondência.174

Já para René Ariel Dotti, a intimidade seria “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”.175 Desdobramentos desse direito estão espalhados no catálogo de direitos fundamentais dispostos pela Constituição Federal de 1988, como por exemplo no sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, ou na necessidade de decisão judicial para se determinar a quebra do sigilo bancário para fins de investigação penal.176 A conceituação apresentada também não está imune a críticas, principalmente acerca de sua vagueza e amplitude. A partir desse conceito, não é possível delimitar com precisão quando uma intromissão invade ou não a privacidade do indivíduo, ou seja, “não há parâmetros claros para definir os limites Podemos encontrar essa aproximação nas obras de: LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 56 e MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1ºa 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 128. 174  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 175  DOTTI, Rene Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 69. 176  Constituição da República Federativa do Brasil (1988): “Art. 5º. [...] XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” 173 

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que estipulam quais interferências são ou não razoáveis”177. Ademais, essa definição não estaria atualizada com os problemas enfrentados na sociedade informacional, porquanto os dados e informações armazenados, tratados e coletados pelos principais players dessa sociedade estariam fora do âmbito de proteção da intimidade. Por exigir que o seu destinatário tome uma postura ativa de “se proteger”, há ainda o problema da falta de efetividade desse direito, pois muitos sequer valorizam a própria intimidade, e outros, querendo tutelá-la, não dispõem dos meios adequados, como no exemplo da pessoa que quer se opor a termos de uso abusivos no tocante ao tratamento de dados, mas, ao fazê-lo, não pode utilizar determinado serviço. 3) Segredo ou sigilo: Uma outra conceituação seria a de tratar a privacidade como o segredo ou sigilo de determinadas informações em relação a uma pessoa. Aqui, esclarece Leonardi, parte-se de uma diferenciação entre as esferas pública e privada. Tudo que for privado e por qualquer motivo for revelado a público é tido como violação da privacidade.178 A primeira crítica que se faz é a identidade quase total com a subdivisão anterior. Afinal, resguardar-se contra interferências alheias é também proteger o segredo. A diferença apontada consiste em o segredo ser mais restritivo. Enxergar a privacidade por essa óptica implicaria uma proteção apenas ao segredo, o que diminui sensivelmente a tutela ao indivíduo. A Constituição Federal de 1988 trata o segredo ou sigilo como um meio de proteção e não como a privacidade em si. LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 61. 178  LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 62. 177 

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Exemplos disso são a proteção do sigilo bancário ou o segredo profissional. Entretanto, outros problemas do reconhecimento da privacidade como sigilo ou segredo residem no fato de que essa distinção binária entre público e privado nem sempre é tão clara quanto aparenta. Ademais, é possível que o titular de determinadas informações, mesmo as já publicizadas, queira que elas sejam resguardadas e voltem a remansar na esfera privada. Muitos casos relacionados ao chamado “direito ao esquecimento” partem justamente dessa problemática. Marcel Leonardi elucida: Esse conceito de privacidade, portanto, equipara a ideia de segredo a um sigilo absoluto, erga omnes, e não relativo e seletivo, ignorando que, ao compartilhar certas informações privadas, nem sempre o indivíduo almeja mantê-las em segredo, mas apenas deseja confidencialidade. Ou seja, tem a expectativa de que as informações privadas compartilhadas com um grupo selecionado de pessoas não serão divulgadas a terceiros fora desse círculo de confiança.179

Por todos esses motivos, crê-se que a identificação do conceito de privacidade com o sigilo ou segredo não é possível, seja pela dificuldade em se definir o que é público ou privado (uma mãe que amamenta o seu bebê em uma praça pública está em qual dessas esferas?), seja pela excessiva e injustificável restrição que essa aproximação implica. 4) Controle sobre informações e dados pessoais: Tida como uma das conceituações mais influentes sobre a LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 65. 179 

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privacidade, o controle sobre informações e dados pessoais detém especial importância na sociedade informacional e, particularmente, no que se entende contemporaneamente como direito ao esquecimento. Por esse viés, “o atributo básico do direito à privacidade seria, portanto, a capacidade de o indivíduo controlar a circulação de informações a seu respeito”.180 O modelo econômico que se expande a partir dos anos 1970 nos EUA, e que alcança contornos globais, é o da chamada “economia informacional”181, em que, ineditamente, os dados não estão mais esparsos, mas concentrados. O tema ganhou contornos mais acentuados a partir do embate envolvendo lei alemã do censo de 1983. A partir desse diploma legal, o Estado alemão pretendia, a partir de 160 perguntas, comparar dados obtidos pelo censo com os constantes no registro civil dos cidadãos alemães. As perguntas tocavam em pontos pessoais sensíveis, tais como aspirações profissionais, práticas religiosas e políticas, sem falar da possibilidade de transferência desses dados para repartições públicas sem anuência de seu titular. Diante disso: Surgiu, então, um generalizado sentimento de insegurança, temendo-se a criação de um Estado superinformado, e se iniciou um processo que terminou com a sentença da Corte Constitucional, suspendendo provi-

180  LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 67. 181  CASTELLS, Manuel. A economia informacional, a nova divisão internacional do trabalho e o projeto socialista. Caderno CRH, v. 5, n. 17, 2007.

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soriamente o censo e, posteriormente, julgando-o inconstitucional182

Os argumentos utilizados pela Corte Constitucional alemã para invalidar trechos da lei pautaram-se no direito do cidadão de conhecer as finalidades pelas quais seus dados são coletados. Surgiu, assim, o direito à autodeterminação informativa, relacionado à liberdade do indivíduo em escolher quais informações gostaria de disponibilizar para os outros. Contudo, alguns problemas nessa acepção merecem destaque. O primeiro deles é que não há um aspecto singular que o coloque como um conceito uno e possível referente à privacidade. De certo modo, o resguardo contra interferências alheias já prevê uma autodeterminação do indivíduo contra ingerências “externas”. Além disso, muitos aspectos privados pouco têm a ver com informações, como por exemplo os próprios pensamentos pessoais. Ademais, o conceito é vago e contém certo individualismo. É sabido que a privacidade, alçada à categoria de direito fundamental no pós-positivismo184, tem tanto um aspecto subjetivo quanto um objetivo. Afinal, o indivíduo não pode tudo, dado que a privacidade de suas informações e dados pode ser relativizada para outros fins, tais como a segurança pública. Conforme aduz José de Oliveira Ascensão: 183

RUARO, Regina Linden; RODRIGUEZ, Daniel Piñeiro. Nada a esconder? O direito à proteção de dados frente a medidas de segurança pública e intervenção estatal. Revista Âmbito Jurídico, v. 89, p.05, 2011. 183  ALEMANHA, BVerfGE 65,1 (Volkszählungsurteil). 184  Para uma melhor definição do que seja pós-positivismo e sobre as críticas que o termo recebe, consultar: CELLA, José Renato Gaziero; RODRIGUES, Renê Chiquetti. Neoconstitucionalismo ou paleoconstitucionalismo? Apontamentos acerca da compreensão do fenômeno jurídico contemporâneo. Revista do Direito Público, v. 9, n. 2, p. 93-114. 182 

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[...] instalou-se uma espécie de histeria, provavelmente de origem demagógica, na proteção de dados pessoais. As proibições multiplicam-se e excedem-se; e há particularmente um recurso desproporcionado ao direito penal. Procedendo assim, perde-se com facilidade a bússola substantiva que justifica esse regime. O que há de essencial é a defesa da personalidade. Mas as leis contentam-se com uma defesa exterior da pessoa, indiferente a valores, de modo que é o egoísmo de cada um que é realmente assegurado.185

Uma última crítica feita por Leonardi é de que uma tutela total dos dados e informações de alguém é tarefa impraticável. Nesse contexto de enorme circulação, coleta e transmissão de dados e informações, acreditar que o indivíduo terá condições de controlá-las inteiramente a seu belprazer é desprezar a complexa arquitetura das redes, pautadas na replicação infinita. Para Leonardi, “afirmar que o indivíduo deve exercer controle total sobre todas as informações e dados a seu respeito é, para dizer o mínimo, quixotesco”.186 Essa última acepção guarda notória aproximação com o chamado direito ao esquecimento. Afinal, a pretensão de que determinadas informações sejam retiradas ou escondidas da óptica pública está em seu cerne. Como já visto, esse controle do indivíduo sobre seus próprios dados não pode ser total, sem amarras, pois, além de o direito à autodeterminação informativa não ser absoluto – devendo, portanto, ser cotejado com ASCENSÃO, José de Oliveira. Criminalidade informática. Direito da sociedade da informação, v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 210-211. 186  LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 75. 185 

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demais valores constitucionais eleitos pelo nosso ordenamento –, existem outros problemas de ordem prática na consecução de uma ordem de esquecimento. Antes de desenvolver essa ideia, contudo, propor-se-á uma definição plural de privacidade que nos auxilie a vislumbrá-la de uma forma mais condizente com suas particularidades. Por plural, compreende-se que a noção de privacidade deve abarcar a possibilidade dessas quatro definições, sem, contudo, esgotar-se em alguma delas. Sendo um direito fundamental complexo, pode assumir mais de uma função em cada caso. A definição mais condizente com essa visão plural da privacidade é apresentada por Stefano Rodotà, que a define como: “o direito de manter o controle sobre as próprias informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada”.187 Uma das correntes doutrinárias que estuda o direito ao esquecimento coloca a privacidade não como gênero do qual decorre esse direito, mas promove operação diversa: para a aludida corrente, o direito ao esquecimento na internet tem como um dos seus três fundamentos a privacidade, mas nela não se esgota.188 2.2 CASOS CLÁSSICOS RELACIONADOS AO DIREITO AO ESQUECIMENTO

A opção por uma análise jurisprudencial do tema se justifica por alguns motivos. O primeiro deles é o de que não há uma legislação ou disposição constitucional que discipline especificamente o direito ao esquecimento. Nos últimos cinco 187  188 

RODOTÁ, Stefano. Tecnologie e diritti. Bologna: Mulino, 1995. Verificar subcapítulo 2.3.1.

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anos, duas importantes leis relacionadas à disciplina da proteção de dados pessoais e da internet foram aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro e ratificadas pela Presidência da República: trata-se do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Contudo, em nenhum desses diplomas há menção ao direito ao esquecimento. A bem da verdade, tal direito foi trazido ao Brasil, na 6ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, precisamente em seu enunciado 531189. Esse enunciado foi redigido por juízes, a comprovar a necessidade de uma análise jurisprudencial da origem do direito ao esquecimento, visto que ele é fruto do próprio Judiciário. Não apenas isso, como se verá, a noção de direito ao esquecimento trabalha com categorias bastante abstratas ou conceitos jurídicos indeterminados, tais como interesse público, dano, dignidade da pessoa humana, tempo e a já explorada privacidade. Acaba sendo o juiz, portanto, que ante as particularidades de cada caso verifica a extensão com que

Do enunciado, lê-se que: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.” A justificativa dada pelo coordenador da comissão de trabalho, Desembargador Rogério Meneses Fialho Moreira, foi de que “os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.” BRASIL. Conselho da Justiça Federal. VI Jornada de Direito Civil. Enunciado 531. Enunciados, 2013. 189 

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essas categorias estão presentes, e como elas se relacionam com a pretensão de esquecimento.190 Outro motivo de fundo, relacionado ao primeiro, é o fato de que os argumentos despendidos nas decisões analisadas, em suma a ratio dos julgados, são no geral mais facilmente verificáveis e criticáveis do que as razões políticas. Com isso, quer-se dizer que a metodologia de análise de jurisprudência é o caminho mais fácil para a construção do aludido estado da arte do direito ao esquecimento. Como afirmam Roberto Freitas Filho e Thalita Moraes Lima: Chamamos de Análise de Jurisprudência, a metodologia consistente em coletar as decisões de um ou diversos decisores, sobre um determinado problema jurídico, com o objetivo de identificar um momento decisório, realizar um retrato do “estado da arte” sobre o assunto. A Análise de Jurisprudência permite a identificação da posição dos decisores em relação ao problema e/ou a suas eventuais inclinações em relação às demais possibilidades de solução que porventura não tenham sido adotadas.191

Primeiramente (2.2), serão estudados os casos clássicos internacionais referentes ao direito ao esquecimento. Em Não se quer aqui dizer que esse modelo seja o mais escorreito ou democrático. A lei tem justamente um caráter de generalidade e abstração, motivo pelo qual o direito legislado ainda trabalha com esses significantes vazios. Uma particularidade dos séculos XX e XXI é uma reconfiguração dos poderes dos juízes. Para Daniel Sarmento: “De poder quase ‹nulo›, mera ‹boca que pronuncia as palavras da lei›, como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo”. SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 113-146, 2009. p. 116. 190 

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seguida (2.3), serão investigados julgados proferidos pelas Cortes Superiores brasileiras, para então se chegar propriamente no direito à desindexação com o julgado Costeja González vs Google Espanha, cuja importância para nosso objeto de estudo demanda um subcapítulo próprio. A metodologia da análise consistirá, inicialmente, na construção do(s) relatório(s) do(s) caso(s) prático(s) sob a óptica dos tribunais, para então passar-se à investigação da decisão judicial adotada pelos julgadores. Ao final, será feita uma análise crítica do teor das fundamentações esposadas em tais julgados, verificando a compatibilidade entre as noções apresentadas no primeiro capítulo e os julgados estudados, com óbvia atenção ao quadro geral que os direitos de personalidade (e em especial a privacidade) gozavam à época. Portanto, são dois os objetivos principais do segundo capítulo deste estudo: i) verificar brevemente o estado da arte das decisões envolvendo a pretensão de esquecimento, tanto na internet quanto em outros contextos, como por exemplo o televisivo; ii) realizar uma análise crítica das decisões, verificando a compatibilidade da fundamentação lançada pelos julgadores com o que se vem entendendo como direito ao esquecimento ou com o regime dos direitos da personalidade. (I) Melvin vs. Reid: O primeiro leading case que será foco de análise refere-se ao caso Melvin vs. Reid, julgado em 1931 pelo Tribunal Norte Americano do Estado da Califórnia. Relatório: Em 1925, Gabrielle Melvin foi exposta a uma situação vexatória quando o cineasta Wallace Reid decidiu produzir um filme192 baseado em fatos pretéritos de sua vida A SUBLIME REDENÇÃO. Produção de Mrs. Wallace Reid. Los Angeles: Fine Arts Studio, 1925. Filme mudo (77 min): preto e branco. Legendado 192 

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sem a sua anuência. Esse filme explorava a imagem de Gabrielle como sendo uma assassina e prostituta.193 Quanto à pecha de assassina retratada na película, ressalta-se que Melvin foi posteriormente inocentada das acusações acerca desse crime. Nessa senda, o embate jurídico envolvia, de um lado, o direito de produtores de filmes em explorar fatos relacionados às histórias de outras pessoas e, de outro, um direito geral à privacidade baseado na superação de um passado traumático. Lake aponta que o que estava em jogo, em última análise, era uma nova noção do direito à privacidade lastreado no direito individual de buscar e obter a felicidade, pautado na já explorada aproximação desse direito com noção elementar de ser deixado a só.194 A argumentação trazida pelos advogados de Gabrielle na inicial era de que a Constituição da Califórnia, em evidente sintonia com a Declaração da Independência dos Estados da América, trazia como um de seus fundamentos a busca pela felicidade. In casu, a felicidade estaria atrelada à necessidade de permitir que os cidadãos deixassem seus erros para trás.195 Foi debatida ainda a questão da propriedade intelectual de LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. 194  LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 187. 195  Sustentavam os advogados da autora: “Quem entre nós, em nossa infância, se não depois, não fez algo... que, caso descoberto, dramatizado e publicizado em filmes e afins, não apenas nos humilharia e envergonharia, mas nos traria ao ridículo e destruiria nosso futuro? Isso não seria uma notícia ou interesse público... Se não houvesse proteção contra tais atos, ninguém poderia corrigir-se ou viver com o menor dos erros. Nós seríamos trazidos sempre para nosso pior ser, com nenhuma esperança de erguermo-nos com equidade a nós mesmos. [...]”. Tradução nossa. LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 188. 193 

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Melvin sobre suas vivências – em suma, o argumento de que quem viveu as situações retratadas tem direito sobre elas tanto quanto aqueles que a materializaram em filmes.196 Decisão adotada pelo(s) julgador(es): Muito por conta dos fortes argumentos trazidos pela parte autora relacionados à sua privacidade e à possibilidade de modular a divulgação dos “erros” de seu passado, visto que os fatos referentes a sua história não deteriam interesse público – em muito devido à absolvição pelo crime de homicídio –, a Corte julgou a ação parcialmente procedente. Segundo Lake, embora alguns juízes tenham reconhecido que é papel do Estado assistir os mais necessitados – e não desprezá-los, provendo-lhes a possibilidade de buscar a felicidade –, não foi possível concluir se essa premissa estaria atrelada a um direito à privacidade, dado que a corte foi omissa em fixar essa tese.197 Quanto à ideia de propriedade do autor sobre suas vivências, Lake aponta: Tais argumentos ameaçavam a premissa básica da lei de copyright: de que a proteção é dada apenas por ser uma expressão (uma coisa tangível), não às ideias ou a substância contida nessa expressão. Ademais, o copyright proveria todos os direitos ao criador daquela expressão e não aos sujeitos dela.198 LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 191. 197  LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 191. 198  LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 191-192. 196 

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Embora este tenha sido um caso com diversas questões de fundo, o principal argumento vencedor apresentado pela parte autora foi justamente o direito à busca pela felicidade plasmado na Constituição da Califórnia, restando inconclusivo se isso seria, na óptica da corte, um desdobramento do direito à privacidade. Em vista desse argumento, que acabou por tornar-se o ponto central da fundamentação dos julgadores, foi reconhecida a reparação pecuniária à autora.199 Análise do caso: Apesar de assentar as bases do chamado direito ao esquecimento, relativo a superação de situação passadas que afetem a personalidade da autora pela retirada de determinados fatos da lente pública, ressalta-se que seria demasiado forçosa uma aproximação entre tal direito e o caso em questão. Parece mais escorreito relacionar o julgamento de Gabrielle com a noção de privacidade plasmada na acepção do direito de ser deixado a só. O caso Melvin vs Reid é emblemático sobretudo por trazer a ideia de que, para se atingir uma vida feliz e digna200, é necessário que o Estado confira a possibilidade de que o indivíduo supere alguns fatos pretéritos de seu passado, como LAKE, Jessica. Hollywood Heroes and Shameful Hookers: Privacy Moves West. In: ________; The Face That Launched a Thousand Lawsuits: The American Women Who Forged a Right to Privacy, Yale University Press, New Haven; London, 2016, pp. 182–222. p. 193. 200  Adota-se com ressalvas a noção de dignidade da pessoa humana, pois o termo pode se tornar excludente justamente por se limitar aos seres humanos e por ser, novamente, um conceito jurídico indeterminado, capaz de justificar atrocidades. Não obstante, a dignidade da pessoa humana é o centro do constitucionalismo contemporâneo, advindo das noções kantianas de consideração do ser humano como um fim em si mesmo e adotado a partir do pós-guerra. No Brasil, por exemplo, Sarlet aponta que a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da Constituição Federal de 1988, sendo “ponto de partida e fonte de legitimação de todo o sistema jurídico pátrio”. SARLET, Ingo Wolfgang; FERSTEINSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 2, n. 3, p. 69-94, jul./dez. 2007. p. 71. 199 

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se desse à pessoa uma segunda chance. Com isso, não se está a dizer que todo pedido referente a superação de um passado vexatório ou lesivo tenha de necessariamente ser atendido, mas apenas que, atento às particularidades de um caso concreto, é possível afastar uma sanha injustificada, como no caso estudado no caso, de obtenção de lucro pela exposição das chagas de uma pessoa. (II) Caso Lebach: O segundo precedente analisado é o nominado caso Lebach, julgado em 1973 na Alemanha pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) Relatório: Em 1969, no vilarejo de Lebach, na Alemanha, ocorreu um crime em que quatro soldados foram brutalmente assassinados durante a noite. Além do assassinato desses quatro oficiais do exército alemão, uma quinta pessoa ficou ferida; houve ainda o roubo de diversas armas e munições que se encontravam no local. Em agosto de 1970, os dois principais mandantes dos crimes foram condenados à prisão perpétua, enquanto um terceiro partícipe foi condenado a seis anos de reclusão. Após o caso ter causado grande repercussão midiática, o canal ZDF (Zweites Deutsches Fernesben) decidiu veicular um documentário que trazia uma reconstituição do crime, com menção expressa a nomes e fotos dos envolvidos – inclusive do partícipe. Trazia, também, simulações de supostas relações sexuais entre os criminosos. O referido documentário seria exibido em data muito próxima à soltura do terceiro condenado, cuja conduta fora apenas acessória na prática dos crimes. Diante disso, o partícipe decidiu entrar na justiça alemã, pleiteando medida liminar de proibição da transmissão. A pretensão do autor quedou

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desprovida em todas as instâncias.201 Por conta disso, o pleiteante decidiu ingressar com uma reclamação constitucional no Tribunal Constitucional Federal Alemão, alegando que: a) a transmissão do documentário acarretaria danos irreversíveis ao reclamante em seus direitos da personalidade; b) o autor já havia sido condenado e a pretensão de veiculação prejudicaria sua possibilidade de ressocialização, pois já havia cumprido dois terços da pena e em breve seria libertado.202 Do outro lado, a empresa televisiva alegava que uma eventual interrupção na veiculação do documentário incorreria em violação à liberdade de expressão, especificamente no acesso à informação e liberdade de imprensa.203 A reclamada apontava que: a) as alegações eram verídicas; b) haveria interesse público na informação; c) não haveria opinião ou crítica da emissora quanto aos fatos narrados. Decisão adotada pelo(s) julgador(es): O Tribunal Constitucional Federal Alemão precisou lançar mão da técnica de ponderação entre direitos fundamentais204, valorando no “Inicialmente, a corte do distrito de Mainz rejeitou o pedido do autor alegando que o autor era, naquele momento, personagem da história contemporânea e, assim, não poderia ver protegido seu direito de personalidade naquele caso específico. A corte de apelação de Koblenz confirmou a decisão anterior pela ponderação dos interesses envolvidos, que abrangiam o direito de personalidade de um indivíduo de um lado e, de outro, a liberdade de informação pela veiculação de programas televisivos”. BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Arquipélago Editorial Ltda, 2017. Paginação irregular (Kindle). 202  MENDES, Gilmar. Colisão de direitos individuais: anotações a propósito da obra de Edilson Pereira de Freitas. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Brasília, v. 18, jan/1997, p. 388. 203  Maiores detalhes sobre o caso podem ser encontrados no artigo: MOREIRA, Thiago. Breves reflexões sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações entre particulares – liberdade de informação x direitos da personalidade – um estudo de direito comparado. Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. 14, n. 24, jan-jun.2015, p. 245-274. 204  Para mais: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. 201 

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caso concreto se deveria prevalecer a violação aos direitos de personalidade do autor ou a liberdade de expressão da emissora televisiva. O resultado do julgamento foi pela procedência da reclamação apresentada, pois a exibição do documentário acarretaria danos latentes à personalidade do condenado. A Corte determinou, portanto, que a emissora não poderia identificar de forma ostensiva o partícipe, devendo omitir seu nome e não reproduzindo fotos suas ou quaisquer atributos que o identificassem. Na decisão, há menção expressa a três institutos contemporâneos bastante utilizados na seara no direito constitucional, quais sejam a ponderação, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade. Extrai-se da ementa traduzida: 2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual Artística (Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung) da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da pro-

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porcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (re-socialização). A ameaça à re-socialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura.205

Pode-se dizer, portanto, que a Corte tentou balancear os interesses em jogo de forma que não privasse totalmente a liberdade de imprensa da emissora (dado que o documentário foi ao ar) e nem ferisse os direitos de personalidade do autor (porquanto seu nome e demais informações foram omitidos na obra). Análise do caso: Segundo Sergio Branco, o estudo do caso Lebach pode ser “extremamente relevante para a compreensão do ordenamento jurídico brasileiro atual”.206 E ainda Tradução retirada de: MOREIRA, Thiago. Breves reflexões sobre a incidência de direitos fundamentais nas relações entre particulares – liberdade de informação x direitos da personalidade – um estudo de direito comparado. Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. 14, n. 24, jan-jun.2015, p. 245-274. p. 260. 206  BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet (Pautas em Direito). (Locais do Kindle 2270). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 205 

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que “por tratar-se de um conflito universal, tanto lá como aqui, a composição entre liberdade de expressão e direitos de personalidade tem desafiado os intérpretes do direito.”207 É nítido o reconhecimento pelo Tribunal de que, estando em confronto os já mencionados valores, nesse caso concreto, com suas particularidades, deu-se prevalência parcial aos direitos de personalidade, o que materializou-se com uma obrigação de não fazer imposta à emissora, que não poderia identificar o autor da demanda no documentário veiculado. Bem por isso, a liberdade de expressão do canal não fora totalmente suprimida, mas apenas restringida. Como é típico também da assim chamada colisão entre princípios, nenhuma norma foi expurgada do ordenamento, preservando-se a existência dos dois princípios supramencionados.208 Interessante notar, entretanto, que não havia apenas o argumento da liberdade de expressão. Havia ainda, em favor da reclamada, o interesse público na informação acerca de um crime. Contudo, a Corte entendeu que não haveria como justificar uma prevalência do interesse público sobre os direitos da privacidade no caso. Isso decorreria da desproporcionalidade209 da medida pretendida pela emissora, tendo em vista BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet (Pautas em Direito). (Locais do Kindle 2271-2273). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 208  DUQUE, Marcelo Schenk. Curso de direitos fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 207-235; 287-305. 209  O exame de proporcionalidade, segundo Virgílio Afonso da Silva, implica uma análise tripla, sucessiva e obrigatória: da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da medida. Bem por isso, seria uma regra, pois implica em um comando definitivo que o intérprete deverá seguir ao proceder na solução de conflitos principiológicos. No caso Lebach, há nítida desproporcionalidade na medida, pois poderia ter sido substituída por outra menos gravosa e atentatória a direitos fundamentais, como a que o próprio Tribunal Constitucional Federal Alemão determinou. Sucumbe, portanto, no segundo quesito, o da necessidade. O exame da proporcionalidade será realizado na terceira parte desta obra. 207 

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o modo com que esta pretendia veicular o documentário – nominando expressamente os envolvidos e reproduzindo cenas sem qualquer pertinência com o interesse público próprio da divulgação de um fato criminal. Muito embora não tenha havido menção ao direito ao esquecimento, é inegável que a pretensão formulada pelo autor assemelha-se à ideia de superar o passado por intermédio da deferência à dignidade da pessoa, bem como sua ressocialização pela prevalência da tutela de direitos da personalidade em geral e a privacidade (ampla) em particular. Ainda que não seja no contexto da internet – o grande nó górdio contemporâneo em matéria de direitos da personalidade –, a decisão é riquíssima em profundidade e criatividade na criação de métodos e conceitos para solucionar o recorrente conflito entre liberdade de expressão e direitos da personalidade, que geralmente está em jogo quando se fala em esquecimento, embora possa se dizer que esse método, por vezes, recai em uma dose de subjetivismo dos julgadores.210 Em tom conclusivo, conforme aduz Sergio Branco, referindo-se ao caso Lebach e a outros casos brasileiros relacionados ao tema211: “Em todos os casos, há a vontade de ter sua imagem atual desvinculada do passado [...] o que se busca, nas situações descritas, é que os efeitos desse passado não interfiram na vida presente.”212 Questiona-se, contudo, em que medida a Para mais: STRECK, Lenio Luiz; DE PAULO BARRETTO, Vicente; DE OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da constituinte”. Revista de estudos constitucionais, hermenêutica e teoria do direito, v. 1, n. 2, p. 75-83, 2010. 211  Decidimos pelo recorte de jurisprudência nas cortes superiores, mormente pelo seu papel estabilizador e vinculante, portanto o caso Xuxa, por exemplo, não será objeto de estudo. 212  BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet (Pautas em Direito) (Locais do Kindle 2343-2346). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 210 

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expressão “direito ao esquecimento” pode ser entendida. Uma melhor delimitação terminológica será empreendida no início do próximo subcapítulo (2.3). 2.3 A TAXONOMIA DOS DIREITOS AO ESQUECIMENTO E CASOS JULGADOS NAS CORTES SUPERIORES BRASILEIRAS

A questão relativa à terminologia do assim chamado “direito ao esquecimento” revela-se como um ponto central de investigação.213 Conforme se verá, existem diversas possibilidades de conceituação e divisão desse direito, especialmente no tocante à cisão entre sua concepção para mídias tradicionais e a internet. Parte-se da seguinte indagação: será que todos os casos estrangeiros que se colocam na pecha de “direito ao esquecimento” podem ser colocados na mesma categoria? Haveria um núcleo comum que os unisse ou, ao contrário, diferenças de origem e de significado implicariam em uma concepção múltipla desse direito? Poder-se-ia falar em um direito ao esquecimento para algumas hipóteses e outras designações às outras?

Segundo Bruno de Lima Acioli e Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhadrt Júnior: “Alguém que venha a pesquisar mais a fundo o que a doutrina nacional e estrangeira tem escrito sobre o direito ao esquecimento nesses últimos cinco anos perceberá que persiste, ainda, relativa indefinição sobre o total significado e real alcance desse direito. No Brasil, em especial, muito se fala sobre o reconhecimento da compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro, mas, ainda, pouca doutrina foi produzida sobre – as balizas de – sua aplicação”. DE LIMA ACIOLI, Bruno; JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt. Uma agenda para o direito ao esquecimento no Brasil. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, n. 3, 2018. p. 385. 213 

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2.3.1 Compreensões possíveis do(s) direito(s) ao esquecimento(s)

Os dois casos internacionais abordados permitem que se faça uma prévia delimitação do que se pode compreender pelo significante “direito ao esquecimento”. Diversas obras214 introduzem o estudo dessa temática por intermédio da exposição de casos práticos, como aqui se fez. O objetivo dessa abordagem é trazer problemas palpáveis que despertem curiosidade e inquietação, mostrando ainda o relevo jurisprudencial do tema. Prefere-se falar, aqui, em “direitos” ao esquecimento, na exata medida em que há diferenças tão latentes entre os casos explorados e suas repercussões, entre suas origens e as pretensões buscadas ora pelos autores, ora pelos réus, ou seja, na medida em que apresentam particularidades tão distintas que colocá-las todas na mesma pecha acarretaria a incompreensão do termo. A busca por um núcleo duro comum, presente em todas as diversas concepções de algum termo, também importa em confusões, como adverte Wittgenstein.215 Há casos cujos autores das demandas se valeram do direito a ser deixado só, como se viu no julgado Melvin vs Reid. Outros, como o caso Lebach, evidenciam uma pretensão ligada à ressocialização criminal e à reinserção do demandante na sociedade. Ao tratar de nomenclatura e etimologia do direito ao esquecimento, Leonardo Parentoni conclui que, para o ambiente digital, a melhor expressão seria, do inglês, a do 214  Cita-se: BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet (Pautas em Direito). (Locais do Kindle 2271-2273). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle; MAYER-SCHONBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. 215  WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações filosóficas. São Paulo: Loyola, 2015. p. 71.

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right to oblivion (direito à obliteração).216 O autor, atento às diferenças entre pedidos de remoção de conteúdo baseados na privacidade em diferentes meios, adere à corrente que coloca, de um lado, o right to forget ou right to be forgotten para pretensões de remoção em qualquer meio (inclusive televisivo e jornais) e, de outro, o right to oblivion para o tratamento informatizado de dados pessoais; “ou seja, o right to oblivion seria a modalidade contemporânea desse direito, surgida em virtude do desenvolvimento tecnológico [...]”.217 Por ora, adota-se como correta a premissa de que, ao se falar em uma pretensão de superação do passado fora do ambiente da internet, estaríamos lidando com o direito ao esquecimento propriamente dito, enquanto na internet haveria algumas particularidades que o distinguiriam dessa primeira categoria. Todavia, essa mera cisão do termo em dois grupos não parece oferecer maiores respostas quanto ao seu conteúdo mínimo. Afinal, abandonando a busca de um núcleo duro que o caracterize, é necessário ao menos que haja um sentido “mínimo” capaz de caracterizar esses direitos ao esquecimento e diferenciá-los de outras categorias, tais como direitos autorais e criminais. Tratando desse segundo grupo (direito ao esquecimento na internet), no artigo científico “Definição de um conceito PARENTONI, Leonardo Netto. O direito ao esquecimento (right to oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cintia Rosa Pereira de (coords.). Direito & Internet III – tomo I: marco civil da internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 546. 217  PARENTONI, Leonardo Netto. O direito ao esquecimento (right to oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cintia Rosa Pereira de (coords.). Direito & Internet III – tomo I: marco civil da internet (Lei n. 12.965/2014). São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 547-548. 216 

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plural de direito ao esquecimento na internet”, Bruno Moutinho e Pastora Leal atestam que: [...] as definições encontradas na literatura de direito ao esquecimento na internet focam em aspectos diferentes do esquecimento, assim, cada definição analisa apenas alguns pontos, imaginando que tais pontos são a parte central do problema, deixando de fora outros pontos que não se encaixam no conceito apresentando.218

Primeiramente, os autores ressaltam que para se falar em direito ao esquecimento, é fundamental que a informação seja verdadeira e que sua divulgação tenha sido realizada de forma lícita, caso contrário a eventual exclusão dessa informação estaria lastreada não em um direito ao esquecimento, mas sim na violação de outros direitos, como por exemplo os autorais ou demais direitos da personalidade.219 Moutinho e Leal concluem, após investigação empírica pelo método de revisão integrativa, que o direito ao esquecimento na internet pode ser fundamentado de três formas: a) controle de dados pessoais: estritamente relacionado ao conceito de sociedade informacional ou sociedade de dados. Nessa óptica o direito ao esquecimento objetiva “evitar que a informação fique eternamente disponível na internet sem

MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. 219  MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 129. 218 

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nenhuma regulamentação”220, o que seria possível pelo controle (coleta, armazenamento, meios de publicação e finalidade) que o usuário exerceria sobre seus dados; b) privacidade: embora este estudo já tenha tratado das relações entre privacidade e esquecimento, os autores apontam que há violação ao direito ao esquecimento quando uma informação privada é publicada sem autorização do seu titular. Alguns autores defendem que o direito ao esquecimento decorre da privacidade; em sintonia com o que foi dito antes, coloca-se apenas que um conceito plural de privacidade relaciona ao direito ao esquecimento, mas que com esse não se confunde, sendo necessário preservar uma autonomia entre tais categorias. Conforme apontam os autores, “é importante considerar a privacidade e o controle de dados pessoais como diferentes e autônomos, mas ambos como fundamento do direito ao esquecimento na internet”221; c) identidade pessoal: outro fundamento do direito ao esquecimento seria a identidade pessoal, definida por Korenhof e Koops como “o direito de ter aparência e ser representado na vida social, especialmente nas mídias sociais”.222 Essa noção estaria ligada a uma certa exposição do usuário perante o público nas redes, “buscando criar ou manter uma representação virtual de seus atributos

MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 132. 221  MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 133. 222  KORENHOF, Paulan; KOOPS, Bert-Jaap. Gender identity and Privacy: Could a Right to be Forgotten Help Andrew Agnes Online?. Publicado em 05/09/2013. Disponível em: . Acesso em 09/11/2018. Tradução nossa. 220 

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de personalidade, ou seja, sua identidade virtual”.223 O que se almeja, em suma, é a coerência e contextualização da história de vida de quem se expõe. Quando determinada informação é utilizada fora de seu contexto inicial, não mais representando essa história de vida, aí então o direito ao esquecimento pode ser utilizado. Desse modo, embora haja divergência nesses pontos mais conceituais pela doutrina, pode-se dizer com certa segurança que a privacidade estará sempre presente no próprio cerne do direito ao esquecimento, a justificar a investigação mais delongada promovida anteriormente. Para Sergio Branco, seu ponto de partida seria a autogestão ou controle de dados, ligada a uma definição contemporânea de privacidade. Segundo o autor, essa noção de privacidade esgotaria os sentidos do direito ao esquecimento. Por conta dessa identificação, cunha-se o nome de teoria una. Já Leal e Moutinho enxergam essas duas categorias – privacidade e controle de dados pessoais – como autônomas, e ainda elencam a identidade pessoal como caracterizador de um direito ao esquecimento, podendo ser chamada de teoria tríplice. Além disso, fração minoritária da doutrina coloca esse direito em uma categoria independente integrante dos direitos da personalidade224, ou teoria autônoma do direito ao esquecimento. De qualquer modo, o que une todas é o fato de que esse direito tem caráter implícito, relacionado à proteção da personalidade MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 133. 224  Cita-se: MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao Esquecimento: A Proteção da Memória Individual na Sociedade de Informação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 80. 223 

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da pessoa. Nenhuma das definições, portanto, afasta o aludido direito da categoria dos direitos de personalidade. Outro debate candente se refere a quem pode solicitar (sujeito ativo) o direito ao esquecimento. Apresenta-se, inicialmente, a visão adotada por Moutinho e Leal225, para quem apenas pessoas naturais podem valer-se de uma pretensão de esquecimento, porque apenas essas – e não pessoas jurídicas – detêm em seu patrimônio jurídico os atributos da privacidade, identidade pessoal e dados pessoais. Para os autores, é certo que as pessoas jurídicas titulam certos direitos da personalidade, mas a eventual informação lesiva que atente contra esses direitos seria tutelada não pelo instituto do direito ao esquecimento, mas por outras possibilidades, embora não as especifique.226 Não obstante concorde-se que o marco legislativo do Código Civil de 2002 seja, até pela temporalidade de seu advento, insuficiente na regulação e na sistematização do tema, não oferecendo respostas plausíveis sobre os sujeitos ativos dos direitos da personalidade, subsistem possíveis objeções à limitação do seu escopo exclusivamente para pessoas físicas. Afinal, as pessoas jurídicas encontram tutela legal ao seu patrimônio imaterial, composto de direitos da personalidade, com crivo MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 134. 226  Esse entendimento vai contra aquilo que defendeu Ingo Sarlet. O que se busca aqui, além da coerência com os institutos apresentados, é que a delimitação terminológica do direito ao esquecimento coloque esse direito não como um “guarda-chuva” que comporte um sem número de pretensões, mas sim que seu escopo seja bem definido. SARLET, Ingo Wolfgang. Tema da moda, direito ao esquecimento é anterior à internet. Publicado em 22/05/2015. Disponível em: . Acesso em 09/11/2018. 225 

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no artigo 52 do Código Civil227. Em artigo recém-publicado, Deborah Regina Lambach Ferreira da Costa e Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi elucidam: A Constituição Federal não faz discrímen entre pessoa física ou jurídica, sendo que protege tanto uma quanto a outra contra os danos à imagem nos incisos V e X do artigo 5º, por exemplo. O Código Civil, em seu artigo 52, também recepciona os comandos da norma constitucional. A jurisprudência editou a Súmula nº 227 do Superior Tribunal de Justiça admitindo a reparação dos danos morais aos entes coletivos [...] de modo que, sendo o direito ao esquecimento um direito de personalidade autônomo, recebe proteção constitucional e infraconstitucional, abarcando tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica.228

Pensando-se, por exemplo, num caso em que dirigentes pratiquem condutas que violem o direito à imagem de determinada pessoa jurídica, os autores defendem que não se pode afastar subitamente a eventual possibilidade de reparação com aporte do chamado direito ao esquecimento. Ademais, ao caracterizarem esse direito como por intermédio da teoria autônoma, entendem que haveria possibilidade de seu exercício por pessoas jurídicas. Por outro lado, pensando-se em uma teoria mais restritiva, aportada apenas no controle de dados pessoais, não faria sentido estender o alcance de seu exercício Código Civil (Lei nº 10.406/2002): “Art. 52 - Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.” 228  DA COSTA, Deborah Regina Lambach Ferreira; DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro. O DIREITO AO ESQUECIMENTO (OU DE SER ESQUECIDO) E A PESSOA JURÍDICA. Revista Argumentum, v. 18, n. 2, p. 431-455, 2017. 227 

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dessa forma. As duas posições são possíveis e carregam argumentos atentos à ordem jurídica brasileira. O terceiro capítulo trará de modo mais detido quais informações potencialmente estão sujeitas ao esquecimento, especialmente tendo como parâmetro o ordenamento jurídico brasileiro. Por ora, basta que se saiba a complexidade da delimitação do significado do direito (ou direitos) ao esquecimento, e quem pode exercê-lo. Antes, contudo, de passar aos casos nacionais julgados pelas Cortes Superiores, o ponto atinente a “o que significa esquecer uma informação?” será levantado. Partindo dessa questão, Moutinho e Leal elencam três possibilidades de sentido na exclusão de uma informação na internet: a) exclusão da informação: um dos pontos mais controvertidos em matéria de direito ao esquecimento, significa a retirada de determinada informação de algum lugar, postura que acaba por limitar outros direitos229; b) esquecimento social: neste sentido de esquecimento, o que se busca não é a exclusão da informação, mas que ela tenha uma menor repercussão, permitindo com que seu titular tenha seus direitos de personalidade devidamente tutelados; c) quadro limpo (clean state): seria a possibilidade de recomeçar, de deixar para trás os erros passados, de poder reescrever a própria história. Essa concepção também é muito criticada no Brasil.230 Já Bruno de Lima Acioli e Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt, partindo do estudo sobre as diferentes concepMOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 136. 230  MOUTINHO, Bruno Martins; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Definição de um conceito plural de direito ao esquecimento na internet. Revista Paradigma, v. 26, n. 1, p. 124-146, 2017. p. 137. 229 

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ções de direito ao esquecimento de Gregory Voss e Céline Castets-Renard231, elencam cinco possíveis significados para o aludido termo: 1) direito à reabilitação, como possibilidade de esquecer um passado criminal de quem já tenha cumprido sua pena ou tenha sido absolvido, como no caso Melvin vs Reid; 2) direito ao apagamento, definido como a retirada da óptica pública de determinadas informações pessoais232; 3) direito à desindexação, na esteira do caso González vs Google Espanha, uma nova modalidade protetiva aos direito da personalidade baseada na manipulação de resultados em provedores de busca; 4) direito à obscuridade, que surge como uma vaga promessa de tornar dados e informações difíceis de serem encontrados na rede, sem que sejam apagados ou desindexados233; 5) direito ao esquecimento digital, tratando de uma proposta de que haja um “prazo de validade” para os dados coletados na internet.234 2.3.2 Cortes Superiores e o direito ao esquecimento no contexto televisivo: casos Chacina da Candelária e Aida Curi VOSS, Gregory; CASTETS-RENARD, Céline. Proposal for an International Taxonomy on the various forms of the “Right to be Forgotten”: A study on the convergence of norms. Colorado Technology Law Review, Boulder, v. 14, n. 2, p. 281-344. 232  Cita-se, aqui, o exemplo de uma lei norte-americana chamada de Children’s Online Privacy Rule (COPPA rule) que permite com que os pais de crianças de até 13 anos de idade possam requerer o apagamento de informações relacionadas a seus filhos. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Children’s Online Privacy Protection Act of 1998. Disponível em: . Acesso em 18/01/2019. 233  BRILL, Julie. Why you have the right to obscurity. The Christian Science Monitor. Boston, 2015. Disponível em: . Acesso em 18/01/2019. 234  Todas essas divisões estão mais detalhadas no artigo: DE LIMA ACIOLI, Bruno; JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt. Uma agenda para o direito ao esquecimento no Brasil. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, n. 3, 2018. p. 394-398. 231 

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Promove-se uma breve incursão pelos principais julgados em matéria de direito ao esquecimento nas cortes superiores e na Europa, a fim de que seja vislumbrado o estado da arte no qual o conceito é atualmente compreendido. (I) Chacina da Candelária: O primeiro exemplo de julgado mencionando expressamente a expressão direito ao esquecimento em cortes superiores brasileiras foi o REsp 1.334.097-RJ, conhecido como “Chacina da Candelária” e julgado em 28 de maio de 2013 pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão. Relatório: A Chacina da Candelária foi um massacre arquitetado por policiais militares. Ocorreu no Rio de Janeiro, na noite de 23 de julho de 1993, e resultou na morte de oito pessoas235, em sua grande maioria menores de idade sem-teto. Jurandir Gomes de França foi indiciado como coautor desse crime, todavia, após submissão a júri popular, acabou absolvido de todas as acusações por unanimidade dos membros do Conselho de Sentença. Entretanto, isso não impediu que, em junho de 2006, a Rede Globo exibisse um programa televisivo intitulado “Linha Direta – Justiça” que apontou o envolvimento de Jurandir na chacina236. Alega o autor da ação que a exibição do programa reascendeu na comunidade onde morava a imagem de “chacinador”, trazendo-lhe prejuízos tanto no orbe ANISTIA INTERNACIONAL. 20 anos da Chacina da Candelária. Disponível em . Acesso em 16/11/2018. 236  O relatório do Recurso Especial aponta ainda o curioso fato de que, anteriormente, a ré tentou entrevistar o autor da ação, o qual se negou por desinteresse em ter sua imagem explorada. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. 235 

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pessoal quanto profissional, além de ter sido obrigado a sair do local em que residia por medo de ser vítima de justiceiros. Entendendo que a conduta do canal televisivo causou-lhe abalo moral, o autor pleiteou a indenização no valor de 300 salários mínimos. Em primeiro grau, a demanda foi julgada improcedente, após ponderação entre o direito à memória e o direito ao anonimato ou esquecimento. Já em sede recursal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu reformar a sentença do Juízo a quo, mencionando a existência de um “Direito de Ser Esquecido”, derivado da dignidade da pessoa humana. Com isso, deu provimento ao recurso e condenou a emissora ao pagamento de R$ 50.000,00 a título de indenização. Sobreveio, então, recurso especial, em que a Globo alegou inexistir dever de reparação por danos morais: a) por inexistir ilicitude em sua conduta, visto que a ideia do programa “Linha Direta – Justiça” é comum a programas policiais tanto no Brasil quanto no exterior; b) pelo fato de que os eventos noticiados eram públicos e notórios, o que evidenciaria a não invasão à privacidade do autor; c) o interesse público dessa informação; d) a ausência de ofensa à pessoa do autor, com expressa menção de que ele havia sido inocentado; e) a impossibilidade de narrar os fatos sem efetuar menção ao autor, por tratar-se de peça chave para o deslinde dos fatos.237 Decisão adotada pelo(s) julgador(es): Após superadas questões formais de fundo, envolvendo principalmente o

237 

Esse argumento também se repete no caso Aida Curi.

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cabimento ou não do recurso especial para o caso em tela238, justificado pelo relator pela necessidade de harmonização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o ministrou apontou que a tese do autor envolvia o reconhecimento, em seu favor, do direito ao esquecimento, “um direito de não ser lembrado contra sua vontade”239. Mencionou ainda a evolução na discussão desse tema no país, sobretudo após aprovação do Enunciado n. 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, bem como os novos contornos que tal direito ganhou após diretivas da União Europeia. Ademais, explicou a importância no tema no contexto da internet, mas advertiu que o caso em sobejo estava restrito às publicações na mídia televisa. Enfrentando a questão de eventual violação à liberdade de imprensa, que sequer foi diretamente alegada pela parte ré, o relator elucidou que embora esse seja de fato um valor importante para sociedades democráticas, toda ação dos meios de comunicação deve ser pautada numa atuação informativa conformada por regras e princípios, como a dignidade da pessoa humana. Apresentou, também, que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto, e convive com diversos outros Cita-se trecho relevante: “Nesse passo – e já avançando para a questão de fundo –, a controvérsia ora instalada nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito de valores e direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento jurídico, mas que as transformações sociais, culturais e tecnológicas encarregaram-se de lhe atribuir também uma nova feição, confirmando a máxima segundo a qual o ser humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito legislado.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 13. 239  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 14 238 

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direitos plasmados na Constituição Federal de 1988, como os direitos da personalidade constantes no artigo 5º, X. Ademais, argumentou que, em abstrato, a Constituição parece atribuir maior relevância à pessoa humana do que às pretensões de meios de comunicação, tais como a liberdade de expressão e comunicação. Isso ocorreria por força do disposto no artigo 1º, III, porta de entrada axiológica da Constituição Federal. O julgador adotou, ainda, a noção kantiana de dignidade da pessoa humana relacionada à consideração do ser humano como um fim em si mesmo.240 Combatendo um dos pontos aguerridos pela emissora de TV, o ministro Salomão ponderou que, embora a história da sociedade seja de fato um patrimônio imaterial do povo, isso não constitui óbice intransponível para o reconhecimento de direitos como o esquecimento, e que “o reconhecimento do ‘direito ao esquecimento’ pode significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia”241. E arrematou afirmando que, diante do caso concreto, a historicidade, considerada como princípio, pode ser ponderada e superada. De modo semelhante, considerou que o interesse público já estava consagrado na publicização do processo, e não deveria confundir-se com o interesse do público, que em grande parte reveste-se de pretensões revanchistas. SARLET, Ingo Wolfgang; FERSTEINSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, v. 2, n. 3, p. 69-94, jul./dez. 2007. p. 70. 241  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 28. 240 

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No ponto “10” do acórdão, há enfrentamento direito à tese de aplicação do direito ao esquecimento. Neste momento, o ministro Salomão citou242 os já referidos casos Melvin vs Reid e Lebach (subcapítulo 2.1). Discorreu, após a análise desses precedentes, que: Assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também extraído diretamente do direito positivo infraconstitucional.243

Ressaltou que, no âmbito do direito civil, a prescrição é um grande indicativo que o sistema jurídico tenta estabilizar as relações após a passagem do tempo. Não obstante, o direito penal garante a possibilidade de reabilitação do condenado, com remoção dos registros de condenação no Instituto de Identificação e sigilo das folhas de antecedentes, cuja previsão encontra-se tanto no Código Penal quanto no artigo 202244 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84). Unindo direito BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 31. 243  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 33. 244  Cuja redação é a seguinte: Art. 202, Código Penal: “Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.” 242 

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ao esquecimento à noção de direito à esperança, o ministro asseverou: Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, a meu juízo, além de sinalizar uma evolução humanitária e cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa óptica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, afirmando-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.245

Desse modo, após despender longa fundamentação, recheada de elucubrações, o julgador voltou-se ao caso concreto e decidiu manter a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, condenando a ré ao pagamento de indenização no montante de R$ 50.000,00. Análise do caso: O julgado ora apresentado é exaustivo em suas fundamentações e, em matéria de direito ao esquecimento, traz contribuições bastante notórias para o assentamento de algumas premissas, embora se discorde em grande medida da compreensão que a Corte teve acerca do tema. Interessante notar que, das 42 páginas do voto do relaBRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. 28 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 38. 245 

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tor, apenas as duas últimas voltam-se ao caso concreto246. Isso demonstra, a um, que o foco principal da decisão foi construir noções gerais aplicáveis a diversos casos, como evidenciado na aceitação do recurso especial, ou seja, visou-se à construção de uma jurisprudência. A dois, aponta que a fundamentação apresentada foi bastante abstrata, com emprego de técnicas e conceituações absolutamente abertas e indefinidas, tais como dignidade da pessoa humana e “direito à esperança”, além da própria noção de “direito ao esquecimento” que abarcou tanto aspectos penais, quanto de direito civil (prescrição) e de direito constitucional. Não há como deixar de mencionar a similitude entre essa situação e o caso Lebach, visto que ambos: a) tratavam de um caso relacionado à violação dos direitos de personalidade de um particular por uma emissora televisa; b) mencionavam, em algum momento, a ressocialização do apenado e seu liame com o direito ao esquecimento; c) o resultado foi pelo reconhecimento da pretensão de esquecimento. A única diferença consistiu no fato de que, enquanto no caso Lebach foi imposta uma obrigação de fazer à emissora, na presente ação a reparação deu-se com a indenização do autor a título de danos morais. O grande demérito do voto, contudo, além da notória e já apontada incorreção no uso dos termos, está no fato de que, por afastar-se sobremaneira do caso concreto, a ponderação realizada pelo intérprete foi bastante deficitária, dado seu inteiro norteamento por abstrações, com menção de pesos Uma explicação para isso é de que o Superior Tribunal de Justiça não é o órgão judiciário que, em tese, avalia aspectos fáticos das decisões.BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 7. In: _____. Súmulas. Disponível em . Acesso em 29/05/2017. 246 

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arbitrariamente atribuídos a valores constitucionais tais como liberdade de imprensa, liberdade de expressão e direitos da personalidade. Em verdade, diante de uma situação que trouxe uma pretensa colisão principiológica, não houve uma ponderação como a que se defende na doutrina constitucional contemporânea, promovida pelo instrumental da lei de sopesamento.247 Apesar da falta de rigor metodológico no voto, o simples reconhecimento de um direito ao esquecimento no contexto televisivo por uma Corte Superior evidenciou o pioneirismo da decisão. (ii) Caso Aida Curi: A emissora Globo encontrou-se novamente como ré em uma pretensão de direito ao esquecimento, dessa vez no REsp 1.335.153-RJ, julgado em junho de 2013 e cuja relatoria novamente ficou com o ministro Luís Felipe Salomão.248 Relatório: Aida Jacob Curi foi vítima de homicídio em 14 de julho de 1958, no Rio de Janeiro. Tal crime ficou conhecido nacionalmente pela sua brutalidade, pois consistia em atos de violência sexual seguidos de homicídio, praticados por dois jovens e um terceiro partícipe. Longo tempo após os fatos, a Rede Globo, então ré na ação do Superior Tribunal de Justiça, decidiu realizar uma reconstituição do caso no programa “Linha Direta – Justiça”. Por conta disso, os irmãos de Aida ingressaram na justiça do Rio de Janeiro a fim de pleitear indenização por danos morais, argumentando que o programa havia reaberto feridas há muito esquecidas pelos ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 171. 248  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. 247 

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autores. Pediram ainda danos materiais e à imagem, tendo em vista a exploração comercial da tragédia. Em primeiro grau, o Juízo considerou os pedidos improcedentes, tendo a sentença sido mantida em grau de apelação. Os argumentos apresentados pelos julgadores foram de que os fatos expostos no programa televisivo eram de conhecimento público, salientando que o esquecimento não é uma panaceia para todos os males individuais e, neste caso, deveria prevalecer a pretensão da ré. O recurso especial foi admitido no Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, foi dada repercussão geral ao caso no Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 1010606/2016. Decisão adotada pelo(s) julgador(es): Inicialmente, na análise dos requisitos formais249 que ensejaram o recebimento do recurso, a fundamentação trazida pelo relator foi idêntica à apresentada no caso Chacina da Candelária. Citou, novamente, que as revoluções tecnológicas trouxeram uma nova dimensão ao fenômeno jurídico que, por ser estático250, não consegue se adaptar à medida desses avanços. Ressaltou também que a liberdade de imprensa não é absoluta e apontou que o conflito in casu envolve, de um lado, a liberdade de informação e, de outro, os direitos da personalidade, visto que novamente foi proclamado o direito ao esquecimento. A partir de então, ao enfrentar os aspectos gerais desse direito, a decisão reiterou

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 3-10. 250  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 11. 249 

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ipsis litteris o padrão251 seguido no precedente Candelária, tratando da evolução do tema no país com crivo em enunciado já citado, da noção kantiana de dignidade da pessoa e sua adequação aos direitos da personalidade, e também da prevalência abstrata conferida pela Constituição Federal de 1988 entre esses direitos da pessoa em face da liberdade de expressão e comunicação dos meios midiáticos. Apenas a partir do ponto 11 em diante, com o enfrentamento das particularidades fáticas do caso, houve inovação no acórdão. O relator salientou que havia, na demanda, a formulação de dois pedidos: a) o pleito de indenização pela ressurreição de dores passadas causadas pela parte ré (irmãos da vítima), relacionado ao direito ao esquecimento; b) o pedido atinente ao uso comercial da imagem da falecida. De pronto, o julgador afirmou que o direito ao esquecimento não é conferido apenas aos supostos autores de crimes, condenados ou não, mas também às vítimas e seus familiares, mormente quando a lembrança dos fatos reavivarem “inesquecíveis feridas”252. Fixou-se, assim, a possibilidade de exercício desse direito para além dos titulares diretos. Quanto à ponderação entre o direito das vítimas e a historicidade do fato, o Ministro asseverou que não seria possível falar do caso Aida Curi sem menção expressa ao nome da vítima, tendo em vista que o crime tomou grandes proporções, detendo, portanto, Os pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 são idênticos ao julgado anteriormente citado. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 12-37. 252  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 37. 251 

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interesse público. Ademais, apontou não ter havido artificiosidade ou abuso na cobertura do crime pela ré, afastando-se a pretensão indenizatória por ausência de abalo moral. Em breve referência à ponderação e a proporcionalidade, arrematou: No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, o que me faz concluir que não há o abalo moral. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança.253

Por fim, ao debruçar-se sobre o segundo pedido, o Ministro Salomão julgou que não houve desrespeito ou degradação à imagem da vítima, ora representada por seus irmãos, pois o foco do programa veiculado pela emissora foi o crime em si, e não a imagem de Aida Curi, exposta uma única vez. Tais

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.335.153-RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2013. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 39. 253 

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argumentos colacionados pelo Ministro Relator foram seguidos por unanimidade na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Brevemente, menciona-se que foi reconhecida, em novembro de 2014, por maioria, a repercussão geral deste caso no Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, cuja argumentação se deu nas seguintes linhas: Entendo que as matérias abordadas no recurso extraordinário, além de apresentarem nítida densidade constitucional, extrapolam os interesses subjetivos das partes, uma vez que abordam tema relativo à harmonização de importantes princípios dotados de status constitucional: de um lado, a liberdade de expressão e o direito à informação; de outro, a dignidade da pessoa humana e vários de seus corolários, como a inviolabilidade da imagem, da intimidade e da vida privada. Assim, a definição por este Supremo Tribunal das questões postas no feito repercutirá em toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social. Manifesto-me, portanto, pela existência de repercussão geral da matéria constitucional versada no apelo extremo.254

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ. Relator: Ministro Dias Toffoli. Pesquisa de Jurisprudência. Novembro de 2014. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. p. 7-8. 254 

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Ainda houve parecer da Procuradoria Geral da República , em sua atuação como custus legis, no sentido de manter a decisão proferida pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Análise do caso: Saltam aos olhos, à primeira vista, os diversos pontos de contato entre este julgado e aquele anteriormente estudado. Afinal: a) a ré é a mesma; b) o programa televisivo, cerne do conflito, é o mesmo; c) o relator para os dois casos foi o Ministro Luís Felipe Salomão; d) das 42 páginas que cada julgado teve, 35 são absolutamente idênticas. Por que houve, então, divergência nos resultados? Uma das hipóteses trabalhadas e que de modo indireto sustenta o voto do Ministro Salomão foi de que, no caso Chacina da Candelária, o autor era a própria vítima de exposição do programa “Linha Direta – Justiça”, ou seja, quem diretamente sofreu as dores da exploração de sua imagem, enquanto no caso Aida Curi eram os irmãos da vítima; lembra-se, ainda, que o recorrente havia sido absolvido por unanimidade das acusações de participação nos crimes. Já no segundo julgado ora analisado, foi levado em conta o tempo transcorrido entre o crime e a pretensão de esquecimento. Fazendo uma espécie de medição de dor em cada caso, o intérprete concluiu que neste último, pelo lapso temporal transcorrido entre os fatos e a exibição do programa, houve uma carga emotiva muito menor aos afetados. Nessa senda, os pontos de contato entre as duas demandas são semelhantes apenas em primeira análise, mas algumas particularidades os distinguem. 255

BRASIL. Procuradoria Geral da República. Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ. Procurador Geral da Repúlica: Rodrigo Janot Monteiro de Barros. Pesquisa de Jurisprudência. Julho de 2016. Disponível em: . Acesso em 16/11/2018. 255 

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A decisão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça apresentou alguns problemas de ordem argumentativa. Isso porque apesar de apresentar novamente as noções de ponderação e proporcionalidade, a metodologia adotada foi absolutamente arbitrária, sem que houvesse atenção ao já citado instrumental próprio desses institutos. Ao afirmar que a pretensão dos autores era desproporcional, deveria, por óbvio, ter procedido ao exame sucessivo da: a) adequação; b) necessidade e, ao fim, pela ponderação per si ou proporcionalidade em sentido estrito. Por não ter sequer mencionado este supedâneo lógico da proporcionalidade, não tendo ao menos explicitado de qual proporcionalidade se tratava256, a decisão quedou de extrema nebulosidade, evidenciando a incipiencia de tais temas pela jurisprudência nacional. A decisão de conferir repercussão geral à matéria no Supremo Tribunal Federal é relevante, todavia destaca-se que essa questão envolve o direito ao esquecimento no contexto televisivo, o que, na sociedade informacional, deixa de ser o foco, pois adquire relevo muito maior na internet, tema do próximo subcapítulo. 2.4 DIREITO AO ESQUECIMENTO NA INTERNET: CASO GONZÁLEZ VS GOOGLE ESPANHA E CASO PROMOTORA DO RIO DE JANEIRO

Os dois últimos casos estudados referem-se a uma feição bastante particular do chamado “direito ao esquecimento”, qual seja sua potencialidade de aplicação no ambiente da internet. Regra com comando definitivo, princípio com comando prima facie ou método interpretativo. 256 

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(i) Caso González vs Google Espanha: Esse é tido, para o contexto europeu, como o caso mais importante e emblemático de direito ao esquecimento na internet. Relatório: Em 5 de março de 2010, o Sr. Costeja González, advogado espanhol, ingressou com uma reclamação judicial (ato inaugural do processo) em face do La Vanguardia Ediciones SL, jornal impresso e digital de grande circulação na região da Catalunha. Ainda no mesmo processo, acionou judicialmente as empresas Google Spain e o Google Inc. A ação teve como motivação o fato de que, ao buscar seu próprio nome no provedor de busca Google, os resultados traziam para Costeja González duas páginas do referido jornal La Vanguardia, datadas de 19 de janeiro e 9 de março de 1998, nas quais o nome de González estava colocado como relacionado a procedimentos de execução fiscal de débitos de seguridade social espanhola257. Na argumentação exposta no processo, o reclamante apontou que tal dívida havia sido quitada havia anos, portanto a informação veiculada pelo jornal estava no mínimo desatualizada. Os pedidos da reclamação tiveram duas principais frentes: a) a remoção ou alteração dessas páginas, pelo jornal La Vanguardia, a fim de que os dados pessoais relacionados ao nome do autor não mais aparecessem; b) na remoção ou omissão dos dados de busca envolvendo seu nome no mecanismo de busca Google Spain e Google Inc. Na esfera administrativa, em 30 de julho de 2010, a Agência Espanhola de Proteção de Dados rejeitou o pleito do autor, consignando que, no tocante ao pedido (a) dirigido ao EUROPA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-131/12. Pesquisa de Jurisprudência. 13 de maio de 2014. Acórdão disponível em: . Acesso em 16/11/2018. 257 

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La Vanguardia, a publicação estava juridicamente justificada, pois se deu após ordem do Poder Executivo espanhol, mais especificamente do Ministro do Trabalho e Justiça Social, que intentava, à época, dar a maior publicidade possível aos débitos sociais. Todavia, atinente ao pedido (b), a referida agência sustentou que motores de busca como o Google estão sujeitos aos ditames das leis de proteção de dados, visto que são responsáveis pelo processamento de dados e atuam como intermediários da informação na sociedade informacional. Em seu argumento arrematador, o órgão administrativo externou a visão de que poderia requerer a retirada de dados e a proibição de acesso a determinados dados por motores de busca quando localização e disseminação de tais dados atentassem contra o direito fundamental de proteção de dados e a dignidade da pessoa lato sensu. O mecanismo para atingir esse fim não seria necessariamente a remoção dos dados, mas sim a desindexação dos resultados das buscas. Irresignado com a decisão, o Google Spain e a Google Inc. ajuizaram recursos na Audiência Nacional, um órgão judiciário espanhol com competência sobre todo o território do país258. Em sua argumentação defensiva, apontavam que o Google não faz tratamento de dados nas aplicações de internet259 em relação a terceiros. E, mesmo que tratasse diretamente desses dados, a reclamada não poderia ser responsabilizada pelo seu teor, pois não teria conhecimento e nem controle sobre eles. Seria o equivalente ao Superior Tribunal de Justiça no Brasil. RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Direito de apagar dados e a decisão do tribunal europeu no caso Google Espanha. 2014. Disponível em . Acesso em 16/11/2018. 259  Uma definição de aplicações de internet pode ser encontrada no artigo 5º, VII, do Marco Civil da Internet: “aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. 258 

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Por entender que a matéria de fundo do julgamento envolvia a interpretação da Diretiva 95/46260, a Audiência Nacional declinou sua competência e devolveu o processo ao Tribunal de Justiça da União Europeia, órgão europeu de cúpula para tratar da uniformização de questões na União Europeia. Decisão adotada pelo(s) julgador(es): A ação foi finalmente julgada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 13 de maio de 2014. Os objetos de análise foram especificamente os artigos 2º, alíneas b e d, também o artigo 4º, inciso 1, alíneas a e c, o artigo 12, alínea b, e finalmente o artigo 14, §1º, alínea a, todos da já citada Diretiva 95/46/CE, bem como do artigo 8º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. A principal discussão, portanto, seria se motores de busca como o Google realizam tratamento de dados e, caso assim considerado, se haveria responsabilidade por parte da empresa do controle desses dados, mediante exegese da diretiva alhures. Neste ponto, o órgão decisório consignou: Assim, deve ser considerado que, por explorar a internet de forma automática, constante e sistemática em busca da informação que é publicada lá, o operador de um mecanismo de busca ‘coleta’ tal data que é subsequentemente ‘recuperada’, ‘registrada’ e organizada na estrutura de seus programas de indexação, Tal diretiva, datada de 24 de outubro de 1995, tem aplicação sobre todos os países da União Europeia e refere-se à proteção de pessoas naturais no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Interessante notar, portanto, que os países integrantes da União Europeia tem regramento próprio sobre o tema desde 1995, enquanto o Brasil apenas em agosto de 2018 editou uma legislação específica acerca da proteção de dados pessoais. Ademais, a Espanha, como já citado, tem na estrutura de sua administração pública uma autarquia, a Agência Espanhola de Proteção de Dados, incumbida dessa matéria. Notório o déficit brasileiro no tema. Diretiva disponível em: . Acesso em 20/11/2018. 260 

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também ‘guardada’ em seus servidores e, dependendo do caso, ‘divulgada’ e ‘disponibilizada’ para seus usuários na forma de listas com resultados de pesquisa. De modo que tais operações constam expressamente e incondicionalmente no artigo 2º, alínea b, da Diretiva 95/46, elas devem ser classificadas como ‘tratamento’ no sentido daquela provisão, independente do fato de que o operador dos mecanismos de busca também realiza essas mesmas operações no tocante a outros tipos de informação e não realiza a distinção entre o último e os dados pessoais.261

Desse modo, o primeiro ponto assentado na decisão foi de que o Google realiza comercialmente o tratamento de dados nos moldes do texto previsto na Diretiva 95/46/CE. No atinente à responsabilidade da empresa por esse tratamento, o Tribunal de Justiça da União Europeia asseverou, no ponto 33 das questões prejudiciais, que: [...] é o operador do motor de busca que determina as finalidades e os meios dessa atividade e, deste modo, do tratamento de dados pessoais que ele próprio efetua no contexto dessa atividade e que deve, consequentemente, ser considerado ‘responsável’ por esse tratamento por força do referido artigo 2.°, alínea d).262

EUROPA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-131/12. Pesquisa de Jurisprudência. 13 de maio de 2014. Acórdão disponível em: . Acesso em 16/11/2018. Tradução nossa. 262  EUROPA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-131/12. Pesquisa de Jurisprudência. 13 de maio de 2014. Acórdão disponível em: . Acesso em 16/11/2018. Tradução nossa. 261 

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Não obstante, pelo fato de que as atividades dos motores de busca podem afetar sobremaneira os direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados pessoais, aquele que opera este motor deve assegurar que sua atividade esteja em acordo com o disposto na Diretiva 95/46. Consequentemente, concluiu o tribunal que haveria responsabilidade do motor de busca na formatação de dados pessoais, mormente pela possibilidade latente de que sua atividade viesse a afetar direitos fundamentais263. Superadas tais questões, passa-se ao eixo decisório central, que guarda maior pertinência com o estudo: o reconhecimento ou não da existência um direito à desindexação ou exclusão de referências ou links nos mecanismos de busca264. Estava-se a julgar se a conduta de indexação dos resultados de busca envolvendo o nome de González, relacionando-o a informações descontextualizadas, seria ilícita, ou apenas a divulgação da notícia do La Vanguardia que mereceria atenção do direito. O argumento trazido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia foi de que, ao explorar economicamente a informação265 por intermédio de listas de resultados, haveria uma especificidade na atuação do Google em comparação com o La Vanguardia. Foi levantado também o argumento de Esse é um caso interessante para se estudar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito europeu, apesar desse não ser o foco do presente trabalho. 264  SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agencia Espanhola de Proteção de Dados. 2015. Disponível em: . Acesso em 30/05/2017. 265  A informação ocupa papel central na sociedade informacional, por ser a principal commodity ou a principal matéria-prima produtiva. Ademais, por constituir-se como a base material dessa nova sociedade, o modelo negocial de diversas empresas como o Facebook e o Google baseiam-se na coleta e sistematização de dados. Para mais: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 1999. p. 51. 263 

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que a desindexação das buscas figura como ação muito menos restritiva do que a remoção de determinada página da internet, ou seja, que seria uma forma menos lesiva de ação do direito, tendo como parâmetro os direitos fundamentais, sobretudo de liberdade de imprensa e de liberdade de expressão. Desse modo, o órgão decisório, de forma inédita, determinou ao Google a desindexação dos resultados de busca relacionando o nome de Gonzáles ao débito já saldado. Análise do caso: A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito do caso González vs Google Espanha suscitou posições majoritariamente favoráveis. Para Ingo Sarlet: Que a decisão do TJUE está destinada a provocar não apenas reações críticas, mas também aplausos (como, aliás, já vem ocorrendo), resulta evidente. Independentemente de se emitir aqui um juízo positivo ou negativo, chama a atenção que os motores de busca como o Google não são um nicho imune a controle e sobre o qual não recai nenhuma responsabilidade, como se de meros intermediários se tratasse, e nisso nos parece, salvo melhor juízo, que o TJUE acertou, o que está inclusive determinando ajustes não apenas na esfera das diretivas da União Europeia como também nas legislações internas dos Estados que a integram.266

SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agencia Espanhola de Proteção de Dados. 2015. Disponível em: . Acesso em 22 de novembro de 2018.

266 

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Já Sérgio Branco, ao comentar sobre o julgado, ponderou que “há vários problemas surgindo da implementação do direito ao esquecimento na Internet”.267 Em seguida, ele apontou diversas questões inquietadoras sobre o tema, como por exemplo “quem deveria decidir se o direito ao esquecimento é aplicável? Entidades privadas, como o Google, ou apenas tribunais?”.268 O mais interessante, contudo, antes de serem feitas as considerações sobre tais visões, é observar os impactos que o julgado teve para situações futuras de lesão a direitos da personalidade na internet. Segundo o relatório Transparency Report269, publicado pelo próprio Google, desde 29 de maio de 2014, quando foi aberta a possibilidade de desindexação de resultados por intermédio do preenchimento de um formulário, foram feitos mais de 700.000 (setecentos mil) pedidos à empresa, sobretudo por cidadãos da União Europeia270. Desse enorme montante, 56% foram efetivamente concedidos, o que representa uma economia processual bastante relevante, visto que os pedidos são extrajudiciais. Do número total de solicitantes, 88,6% eram pessoas não públicas. Entre os sites com maior número de pedidos de desindexação de resultados de busca, constam o Facebook (46.018 solicitações), o Twitter BRANCO, Sergio. Nove perguntas sobre o “Direito ao esquecimento”. ITS Rio. Disponível em: . Acesso em 22/11/2018. 268  BRANCO, Sergio. Nove perguntas sobre o “Direito ao esquecimento”. ITS Rio. Disponível em: . Acesso em 22/11/2018. 269  Disponível em: . Acesso em 22/11/2018. 270  Ressalta-se que o relatório apenas contempla os pedidos realizados por cidadãos de países integrantes da União Europeia. 267 

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(25.724 solicitações), o Google Plus (33.098 solicitações) e o Youtube (26.516 solicitações). Ademais, a decisão proferida no caso González é de importância monumental para as futuras discussões acerca dos temas esquecimento, direitos da personalidade na internet e responsabilidade dos provedores de busca. Como já salientado, tratou-se de uma postura ao menos inovadora do Tribunal europeu, que buscou equilibrar diversos valores importantes presentes no patrimônio jurídico, tanto da parte autora quanto da ré. A desindexação figura como potencial mecanismo de proteção à personalidade na internet, sendo inclusive um meio menos restritivo se comparado, por exemplo, à obliteração de determinada informação ou dado, pois não há supressão material, mas apenas constrói-se uma barreira artificial ao acesso. Outro ponto merece destaque: esquecimento completo na internet é tarefa que beira o impossível, pois sua própria arquitetura271 e estrutura de armazenamento de dados e informações, com potência de replicação infinita, dificulta a execução de uma pretensão de esquecimento; o que pode ser feito, a depender de forte ônus argumentativo e ponderação com demais princípios, é a desindexação ou obliteração de determinada informação a fim de protegerem-se os direitos da personalidade, como houve no caso presente. Nada garante, entretanto, que esses expedientes serão eficientes, visto que tanto a desindexação quanto a obliteração apresentam problemas práticos. Por exemplo, no caso da obliteração ou remoção de conteúdo, o Judiciário brasileiro, mais especificamente o

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Para mais: LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. New York: Basic Books, 2006.

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Superior Tribunal de Justiça272, tem adotado o entendimento de que é necessário que o autor de determinada ação dessa natureza indique já na petição inicial todas as páginas ou URLs (Uniform Resource Locator) que pretenda remover. Contudo, essa exigência revela-se excessivamente problemática, pois é impossível que o autor saiba precisamente quais e em quantas páginas encontra-se todo o conteúdo a ser removido; mesmo que soubesse, nada impede que, tempo após a remoção, páginas com o conteúdo voltem a surgir, caso alguém o tenha armazenado. Já no que toca à desindexação, igualmente alguns problemas de efetivação surgem. O primeiro deles é que o Google não é o único buscador existente na internet, embora concentre a maioria das buscas. Portanto, uma ordem realmente efetiva de desindexação teria que centrar-se em provedores de busca além do Google. Ademais, outro problema é que, no caso apresentado, descobriu-se que a notícia atinente à dívida de Costeja não fora desindexada em todos os domínios do Google, visto que no Google francês era possível encontrar tal notícia já na primeira página. Assim, seria necessário desindexar as informações de todos os domínios do Google? Mesmo que a resposta seja positiva, ainda assim é possível burlar essa manobra com um simples VPN (Virtual Private Network). Outro ponto a ser discutido acerca do julgado: será que este seria propriamente um caso de direito ao esquecimento, ou algo novo que pouco guarda similaridades com os julgados SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Indicação de URL para remoção de conteúdo na internet deve ser restrita a conteúdo julgado. Disponível em: . Acesso em: 10/12/2018. 272 

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clássicos referentes a esse tema? Fato é que a informação do débito e sua divulgação teriam se tornado ilícitas com: a) a quitação da dívida; b) a passagem de tempo e a mudança de postura do Governo espanhol. Contudo, existem imensas dificuldades presentes no caso que criam mais uma barreira entre o direito à desindexação e sua efetivação a fim de proteger os direitos da personalidade. O terceiro capítulo trará uma análise mais detida da relação entre a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) e o direito à desindexação. Por ora, salienta-se que muitos princípios ou fundamentos da lei podem ser utilizados de forma a justificar uma pretensão de desindexação no Brasil. Entretanto – e essa é uma preocupação explicitada no diploma legal – esse novo instituto deve aderir às temperanças de nossa realidade, cujas possibilidades de exercício autoritário para atender a fins políticos estão sempre à espreita. Seria possível utilizar a desindexação e a obliteração no caso de fatos relacionados a pessoas públicas? E a pesquisas acadêmicas? Será trazido um último caso que pode servir de paradigma indicativo da tendência que as Cortes Superiores pretendem adotar nessa temática. (ii) Caso Promotora Rio de Janeiro: Esse caso recente angariou a atenção da doutrina brasileira em matéria do assim chamado “direito ao esquecimento”. A decisão foi tomada em 8 de maio de 2018 pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ e quebrou alguns paradigmas outrora determinados pela Corte, tendo como placar um conflitante 3 a 2 em desfavor do recurso.

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Relatório273: A promotora de justiça Denise Pieri Nunes ajuizou ação de obrigação de fazer em face de Google, Yahoo e Microsoft, pleiteando a desindexação, nos resultados de busca desses provedores, de notícias trazendo seu nome em decorrência de suspeitas de fraude no XLI Concurso da Magistratura do Rio de Janeiro, em especial pela suspeita de que a autora teria obtido um gabarito da prova oral de Direito Tributário antes dos demais candidatos. À época, a promotora foi reprovada no concurso. Em investigação conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a instituição pública entendeu que não havia elementos suficientes para atestar a fraude, embora tenha criticado algumas práticas adotadas pela comissão do concurso. A autora alegou na inicial que tais notícias274 feriam sua dignidade e sua privacidade. Assim, sua pretensão foi, na esteira do julgado González vs Google Espanha, de que tais provedores promovessem uma verdadeira filtragem nos resultados de pesquisa contendo o conteúdo lesivo (no caso, o parâmetro seria o nome da autora). Ressalta-se que a ação foi proposta em agosto de 2009, portanto antes do julgamento final do paradigmático caso espanhol, o que permite ponderar que não houve influência direta do precedente na formulação do pedido inicial do caso estudado. A maior parte do relatório foi obtida diretamente do julgado. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. 274  CONJUR. Concurso para juiz no Rio está sob suspeita de fraude. 2007. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018; FOLHA. OAB suspeita que gabarito da prova para o TJ-RJ tenha vazado. 2007. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. 273 

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Em primeiro grau, a medida liminar pretendida pela autora foi deferida, porém o pedido principal foi julgado improcedente pelo juízo por entender que as aplicações de internet não são responsáveis pelo conteúdo das notícias encontradas, entendimento que se baseou em pretérita posição do Superior Tribunal de Justiça. Já em sede de apelação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu provimento ao recurso sob o fundamento de que as partes que compunham o polo passivo da ação não comprovaram objetivamente a impossibilidade de realizar a filtragem de resultados em provedores de busca. Por outro lado, a autora trouxe aos autos documentos que comprovavam a possibilidade dos apelados excluírem esses resultados. Ademais, em ponderação principiológica pouco aprofundada, o órgão decisório consignou que, no caso, o direito à imagem, à personalidade e ao esquecimento prevaleceria sobre o direito à informação. Finalmente, determinou-se que não seria necessário indicar todas as URLs que continham o conteúdo, impondo severa multa diária na monta de R$ 3.000,00 para os recorrentes. Em recurso especial, Google, Yahoo e Microsoft alegaram violação aos artigos 3º, 48, 267, IV, 395, V, 461, §4º e 6º, 458, 459, 472, 535 do CPC/73, do artigo 14 do CDC e do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942). Sustentaram ainda dissídio jurisprudencial. Decisão adotada pelo(s) julgador(es): No voto da relatora Ministra Nancy Andrighi, após enfrentar e rejeitar todas as preliminares de mérito das recorrentes, a julgadora teceu considerações acerca do direito ao esquecimento. De início, trouxe o precedente González vs Google Espanha para

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concluir que “não se pode olvidar que o Tribunal de Justiça da União Europeia parte de pressupostos legais muito distintos daqueles existentes no País”.275 Em seguida, trouxe o fato de que não possuíamos, até a época do julgamento, uma lei geral de proteção de dados. Ato contínuo, configurou o direito ao esquecimento como “direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, foi inocentado”.276 Na conclusão de sua breve fundamentação, a ministra decidiu seguir entendimento já consolidado da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não seria possível impor a provedores de pesquisa a supressão de resultados de buscas. Em linhas gerais, a julgadora reconheceu a existência do direito ao esquecimento, mas não vislumbrou a possibilidade de aplicá-lo para casos envolvendo tais provedores. No tópico seguinte, a ministra analisou o Marco Civil da Internet e atestou que o artigo 7º, I e X do referido diploma “vem a preencher parcialmente essa ausência legislativa, referente aos contornos do mencionado direito ao esquecimento”.277 Desse modo, concluiu que a exclusão de dados pessoais é um BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 10-11. 276  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 12. 277  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 15. 275 

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direito subjetivo que pode ser exercido sem qualquer condicionamento em relação a provedores de aplicação, excetuados os casos de guarda legal, mas não a provedores de pesquisa. Portanto, na parte dispositiva do acórdão, conheceu do recurso e deu provimento para restabelecer a sentença do Juízo de primeiro grau, que julgou improcedente o pedido da autora. Esse, contudo, não foi o voto vencedor. O ministro Marco Aurélio Bellizze, em suas considerações iniciais, abriu a divergência e trouxe o fato de que a normativa europeia que pautou o julgamento do caso González vs Google Espanha não difere muito das normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras. Isso porque a Diretiva 95/46/CE, utilizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia como fonte direta para solução no caso, seria endereçada a questões mais amplas do que a internet e a provedores de busca, pois teria sido editada em um contexto de internet incipiente, sem a existência do provedor de busca Googl.278 A primeira discrepância em relação ao voto da relatora foi no ponto de que não haveria base legal para apoiar eventual pedido de restrição no tratamento de dados. Entendendo também que provedores de busca são espécie do gênero provedores de aplicação, o ministro elucidou que: Esse entendimento, contudo, não equivale a impor aos provedores de aplicações, em especial, àqueles dedicados exclusivamente à disponibilização de ferramentas de busca, o ônus de retirar do meio digital conteúdo inserido por terceiros, tampouco de imputar-lhes BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 26. 278 

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a função de um “verdadeiro censor digital”, mas tão somente de não afastar do Poder Judiciário, peremptoriamente, a apreciação de casos concretos excepcionais em que se denote a ausência de razoabilidade na exibição dos resultados. Essa desproporcionalidade pode advir do conteúdo cujo interesse seja essencialmente privado e particular, de modo a escapar ao interesse coletivo de informação. Assim, também, pode resultar do longo prazo decorrido desde o fato que deu ensejo à inclusão dos dados pessoais apontados na busca.279

Em seguida, consignou que não se trata de impugnar resultados de pesquisa, mas o cerne da lesão à autora estaria “restrita ao apontamento de seu nome, como critério exclusivo, desvinculado de qualquer outro termo, e a exibição de fato desabonador divulgado há mais de dez anos entre as notícias mais relevantes.”280 Estaria, então, justificada a atuação do Poder Judiciário “para assegurar à pessoa em causa a quebra dessa vinculação eternizada pelos sites de busca, a fim de desassociar os dados pessoais do resultado cuja relevância se encontra superada pelo decurso do tempo.”281 A saída adotada BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 28. 280  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 30. 281  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 30. 279 

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pelo ministro, segundo sua óptica, seria uma via conciliadora entre o livre acesso à informação e o legítimo interesse individual da promotora. Afirmou que, diante da excepcionalidade do caso, conclusão outra não restaria que não divergir do voto da relatora, empatando o julgado em 1 a 1. Relatando brevemente o aditamento de voto trazido pela ministra relatora, sua fundamentação trouxe o princípio da colegialidade282 para afirmar que o caso da autora não era excepcional e não ensejaria uma mudança de entendimento da Corte. Disse ainda que em nenhum momento a autora arguiu que o resultado das buscas foi capaz de causar dano à sua pessoa, até porque ela havia logrado êxito em concursos subsequentes. Citou também a pouca utilidade da prestação jurisdicional por conta do Efeito Streisand, que será tratado em subcapítulo próprio, mas que, em breve síntese, pode ser descrito como um efeito adverso trazido ao pleiteante do direito ao esquecimento que, ao almejar se desvincular de fatos passados por intermédio de processos judiciais, apenas atrai a atenção para esses fatos, obtendo resultado diametralmente oposto àquele inicialmente pretendido. Trouxe ainda o já citado fato de que os três provedores de busca não são os únicos a indexar os resultados e, finalmente, de que o pedido da autora é demasiado genérico ao não indicar as URLs que pretende desindexar. Dentre os votos-vista dos ministros Moura Ribeiro e Ricardo Villas Bôas Cueva, busca-se para estudo e discussão apenas este último, por trazer noções interessantes e úteis Para mais: MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2014. 282 

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para o entendimento do caso. Em seu voto, o ministro Villas Bôas acompanhou a relatora dando provimento ao recurso especial dos recorrentes entendendo que, pela exegese do artigo 19, §1º, da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), a responsabilidade dos provedores de aplicação depende de indicação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. Afirmou, ainda, que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, eivado por motivos nobres de proteção a valores integrantes da Constituição Federal de 1988, havia ignorado esse texto legal. Além disso, pontuou que o caso em julgamento divergia do precedente espanhol na medida em que nesse houve “remoção de conteúdo específico”, pois a tutela obtida por González foi no sentido de suprimir links que remetiam ao interessado.283 O voto de desempate foi proferido pelo ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. A decisão pautou-se em um precedente de direito ao esquecimento (no contexto televisivo) do Superior Tribunal de Justiça: o já explorado caso Chacina da Candelária. O julgador ponderou que o Marco Civil da Internet teria consubstanciado tal direito em seu artigo 7º, X. Ao mencionar o caso González vs Google Espanha, apontou que “se impôs a empresa Google o dever de remover de seus resultados de busca os links que remetiam a páginas com informações pessoais de um cidadão espanhol”284, elucidando BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 74. 284  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 86. 283 

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que, em sua óptica, o feito em julgamento “se trata de um emblemático caso de aplicação do right to be erasure [sic] em favor de um cidadão contra uma reconhecida multinacional”285. Considerou também que não seria uma exigência necessária da parte autora a indicação das URLs a serem desindexadas, pois não se busca a responsabilização civil das recorrentes, mas apenas uma obrigação de fazer. Arrematou que “na tensão que se coloca entre o direito fundamental à informação e as liberdades públicas dos cidadãos, ao meu ver, o primeiro deve ceder”.286 Após todas as longas considerações, pedidos de vista e aditamento dos votos, o placar final indicou o resultado de 3 a 2 em favor de autora, a fim de desprover os recursos especiais das empresas recorrentes e manter o acórdão proferido em segundo grau. Análise do caso: As possíveis críticas ao teor dos votos dos ministros não retiram o louvável esforço de pesquisa realizado pelos julgadores, que por diversas vezes citaram artigos científicos e precedentes de relevo, tais como Chacina da Candelária e González vs Google Espanha. Contudo, um ponto inicial que chama a atenção é justamente a falta de cuidado na utilização do termo direito ao esquecimento, pois, como já dito, existem múltiplas concepções do termo, e muitas delas não dialogam entre si. Por exemplo, o caso Chacina da CandeBRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 88. 286  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.660.168 - RJ. Relatora: Nancy Andrighi. Pesquisa de Jurisprudência. Maio de 2018. Disponível em: . Acesso em 12/12/2018. p. 93. 285 

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lária oferece pouco ou nenhum aporte para a solução de lides envolvendo o sobredito direito em sua aplicação na internet, o que não impediu que ele compusesse a fundamentação de um dos votos. A definição trazida pela ministra relatora, vinculando o direito ao esquecimento a casos criminais cujo resultado quedou em absolvição, revela-se por demais vaga e imprecisa, visto que nem sempre a natureza dos casos envolvendo esse direito será criminal, como no exemplo do próprio caso González vs Google Espanha, citado mais de uma vez pela ministra. Ademais, o próprio caso julgado não seria de natureza penal, pois houve apenas julgamento na esfera administrativa. Não se nega que essa seja uma definição possível, mas, como já estudado, a busca por um núcleo de sentido próprio ao chamado direito ao esquecimento, por decorrência lógica, não poderia conduzir a uma conceituação tal qual a exarada pela ministra. Outro ponto passível de discussão presente no voto de vários ministros é a ideia de que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) tenha trazido o direito ao esquecimento no artigo 7º, X. Em verdade, o texto legal expressamente fala em “relação entre as partes”, o que denota a existência de um contrato prévio entre usuários e provedores de aplicação, condição não presente nos casos estudados. Ademais, o artigo fala em “exclusão definitiva dos dados pessoais”, condição diametralmente oposta à desindexação, na qual não há supressão material do dado, mas tão somente uma mudança forçada na exibição de dados em listas de resultados. No caso em análise, está a se falar em um direito à desindexação de dados pessoais, instituto bastante diferente do direito à obliteração. Conforme atesta Sergio Branco:

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O Marco Civil da Internet, que regula a internet brasileira, prevê em seu art. 7o, X, o direito do usuário à “exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei”. Há quem chame esse dispositivo de “direito ao esquecimento de dados pessoais”, embora pareça mais adequado incluí-lo apenas entre as previsões de proteção de dados pessoais derivadas da concepção contemporânea de direito à privacidade.287

Repete-se também um truísmo: o exercício de uma pretensão de esquecimento na internet não pode ser considerado um direito subjetivo do titular dos dados, que os exclui sem condicionamentos em face dos provedores de aplicação, concepção fruto de leitura apressada do aludido artigo 7º, X. Existem diversas situações que poderão impedir, sim, que dados ou informações sejam “esquecidas”; um exemplo bastante singelo é o referente a pesquisa acadêmicas e fatos históricos, como por exemplo crimes políticos. Nesses casos, há interesse público na informação ou no dado, portanto sua divulgação escapa à seara estritamente privada de seu titular. A proposta conciliadora trazida pelo ministro Marco Aurélio Bellizze – de retificação do nome da autora nas notícias desabonadoras – parece de fato apaziguar possíveis críticas à aplicação da pretendida tutela pela autora. Mas seria o resultado útil da lide propriamente uma desindexação? Crê-se que BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Locais do Kindle 2716-2719 Arquipelago Editorial Ltda, 2017. 287 

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não. Ao retificar o nome da autora nas notícias, não se estaria desindexando resultados em provedores de busca, mas sim alterando ou reescrevendo o teor dessas notícias, o que hoje é possível em alguns casos segundo a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), que em seu artigo 18, III, menciona a possibilidade de “anonimização, bloqueio ou eliminação de dados incompletos, inexatos ou desatualizados” requeridos pelo seu titular. Entretanto, à época do julgamento a referida lei não havia ainda sido editada e sancionada pelo Presidente da República, carecendo ainda de vigência. A premissa de que a tutela seria inefetiva na medida em que existiriam provedores de busca além dos recorrentes (Google, Yahoo e Microsoft) é em si mesma verdadeira, mas desconsidera um fator importante: a maior parte das buscas na internet é realizada no site Google; os outros dois provedores concentram o restante das pesquisas. Para se ter ideia da dimensão do alcance do Google, uma notícia de 2013 do jornal O Globo apontou que 90% das pesquisas de internet no Brasil era feita no Google.288 Tudo a dizer que o pleito da autora é legítimo e busca a maior efetividade possível na prestação da tutela jurisdicional, pautando-se nos buscadores com maior número de acessos. O entendimento outrora adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser necessária, na inicial, a indicação precisa de todas as URLs do conteúdo lesivo a fim de desindexá-las, é compreensível para que haja maior efetividade na decisão, porém o precedente González vs Google Espanha O GLOBO. Ferramenta de busca Google é usada em 90% das pesquisas no Brasil. 2013. Disponível em: . Acesso em 16/12/2018. 288 

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demonstra que os provedores de busca de fato detêm os meios para efetuar a desindexação sem que seja obrigatória a ciência prévia das URLs. Isso é feito, por exemplo, pelo filtro ao nome da autora ou a determinadas palavras-chave, como requerido pela recorrida. Aliás, de um ponto de vista mercadológico, é evidente o motivo pelo qual o Google se opõe veementemente a pretensões de desindexação ou as categoriza como demandas impossíveis de serem cumpridas: isso ocorre pois o modelo de negócios dos provedores de busca baseia-se na indexação de resultados. No caso do Google, com o aporte da plataforma Adwords, as empresas contratam os serviços da empresa a fim de que determinados resultados apareçam no topo das pesquisas. A imposição, pelo Poder Judiciário, de critérios na indexação que outrora era monopolizada pela empresa, apresenta certo desconforto a esse modelo. Ainda na esteira do voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, cumpre mencionar a confusão que alguns ministros fizeram entre os institutos da exclusão de dados pessoais (obliteração) e da desindexação em matéria de direito ao esquecimento na internet. Em verdade, a tutela obtida por González – citado no voto – foi no sentido de desindexar links, e não de suprimi-los, como afirmou o ministro, embora de fato o autor tenha requerido esses dois pedidos. Finalmente, o voto do ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino adota a nomenclatura right to erasure, a qual não se compreende como a mais aderente ao caso julgado, pois não se pretendia o apagamento das páginas contendo informações lesivas a autora, mas apenas a desindexação dessas notícias. A análise dos principais casos relacionados ao chamado “direito ao esquecimento” nas cortes superiores e no contexto

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europeu permitiu apontar o estado da arte no qual o tema se encontra: repleto de incompreensões e visões discrepantes entre julgadores na sua aplicação. Esse fato, contudo, é plenamente justificável pelo seu ineditismo, que provoca uma readaptação ou até mesmo uma desconstrução de institutos modernos do direito. Além disso, a imensa carga de casos com os quais o Judiciário precisa lidar faz com que não seja possível a tecnicidade irretocável nesses julgamentos, embora seja louvável o esforço dos ministros na busca pela elucidação por meio da leitura de artigos, precedentes internacionais e obras brasileiras. O terceiro capítulo tratará de forma mais aprofundada sobre as possibilidades de aplicação desse(s) direito(s) no Brasil, apresentando, se não respostas para estes conflitos, pelo menos alguns caminhos de trabalho.

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3.

POTENCIALIDADES DE UM DIREITO AO ESQUECIMENTO NO BRASIL

Apresentada a notória complexidade do tema, seguida do estado da arte em que o direito ao esquecimento se coloca na óptica da jurisprudência e da prática jurídica brasileira, o último capítulo visa a promover considerações mais amplas sobre as possibilidades de adoção e aplicação do que vem sendo entendido como o direito ao esquecimento. Algumas considerações e ressalvas preliminares precisam, contudo, ser assentadas. Afinal, a (re)discussão do tema tem razões que vão além do direito. Um novo paradigma tecnológico e societário, cunhado por Manuel Castells como “sociedade informacional”, pode prover pistas de por que, contemporaneamente, temas ligados à privacidade e personalidade ressurgem e trazem novos desafios para o direito moderno, tão calcado no dogma da completude, em que se pretendia prover respostas pré-fabricadas para todos os problemas.

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Sem pretensão alguma de esgotar uma temática tão complexa, colocar-se-á a questão da ponderação de princípios e como ela vem sendo aplicada em matéria de esquecimento, a problemática do chamado Efeito Streisand e como o sigilo de justiça pode auxiliar na proteção da personalidade de quem almeja uma tutela de esquecimento e, finalmente, como uma nova tecnologia de armazenamento da informação – no caso, o blockchain – pode trazer novos contornos para a exclusão ou desindexação de dados pessoas e informações na rede. Por intermédio da união entre uma análise teórica do objeto de pesquisa, da apresentação de seu estado na arte no entrecho brasileiro e de apontamentos acerca de sua possível adoção e aplicação no contexto jurídico brasileiro, crê-se que será possível tornar o trabalho tanto dogmático e revisionista quanto prospectivo, servindo como uma caixa de ferramentas para futuras aplicações do chamado direito ao esquecimento. O caminho adotado tem, portanto, foco em contribuições passadas, compreensão do cenário presente e potencialidades futuras. 3.1 SOCIEDADE INFORMACIONAL E EFEITO STREISAND

As potencialidades de um direito ao esquecimento têm como chave de entendimento uma explicação mais ampla sobre as novas conformações da sociedade contemporânea ocidental, sobretudo com os novos paradigmas tecnológicos das últimas décadas. Segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells, aporte teórico fundamental para a compreensão dessa nova realidade, foi no último quarto do século XX que ocorreu

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uma verdadeira revolução tecnológica289 que acabou por reverberar em outros campos do saber. Sua vasta obra, cujo extrato mais famoso é a trilogia traduzida como “A era informação: economia, sociedade e cultura”290, publicada no final da década de 1990, é marcada pela análise de temas como tecnologia, informação, globalização e economia informacional. Entre diversos termos presentes na obra do espanhol, o que mais interessa para fins de estudo da memória e do esquecimento é o conceito de sociedade informacional. Ressalta-se que a citada trilogia, escrita no findar do século passado, mesmo em suas edições mais recentes, mostra-se insuficiente (ou até mesmo desatualizada) para que seja traçado um diagnóstico preciso da sociedade contemporânea, especialmente a ocidental. Por isso mesmo, após o assentamento das bases dessa nova sociedade, o estudo da memória utilizará também como aporte teórico a obra “Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age”291, de Viktor Mayer-Schönberger, professor da Universidade de Oxford. Afinal, o que seria essa sociedade informacional – chave essencial para a compreensão das potencialidades de um direito ao esquecimento – e no que ela diferiria dos outros arquétipos de sociedade previamente estudados? Tal expressão advém de um jogo de palavras promovido por Manuel Castells, comparando-a com a sociedade industrial. Se na revolução industrial Aponta o autor que: “[...] podemos dizer, sem exagero, que a revolução da tecnologia da informação propriamente dita nasceu na década de 1970, principalmente se nela incluirmos o surgimento e difusão paralela da engenharia genética mais ou menos nas mesmas datas e locais”. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 91-92. 290  CASTELLS, Manuel; ESPANHA, Rita. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Paz e terra, 1999. 291  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. 289 

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iniciada na Inglaterra do século XVIII o centro de toda a produção estava na indústria – por isso mesmo “industrial” – a sociedade informacional teria como núcleos a informação e a tecnologia para seu armazenamento e difusão. Castells, ao explicitar os objetivos de seu livro, aponta que “essa nova estrutura social está associada ao surgimento de um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo, historicamente moldado pela reestruturação do modo capitalista de produção, no final do século XX”.292 Quais processos históricos nos levaram em direção a essa sociedade informacional? Castells elucida que a partir da Segunda Guerra Mundial, diversas descobertas na área da eletrônica prepararam o terreno desse novo paradigma. Citam-se como exemplos o primeiro computador programável (a máquina de Turing) e o transistor ou chip. Contudo, respondendo à questão formulada nesse parágrafo, o autor defende que foi apenas a partir dos anos 1970 que “as novas tecnologias da informação difundiram-se amplamente, acelerando seu desenvolvimento sinérgico e convergindo em um novo paradigma”.293 No início dos anos 1970, com a crise do petróleo e com o abandono do padrão ouro, o modelo capitalista de acumulação então existente foi progressivamente substituído por uma outra espécie de capitalismo, chamado de informacional ou flexível, que buscava uma produção a nível global com a busca por novos mercados em que, com custos de produção mais baratos, havia leis trabalhistas mais simpáticas às empresas e sindicatos mais “dóceis”. José Eduardo Campos de Oliveira 292  293 

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 51. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 76.

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Faria aponta como grandes motores de mudança do século XX “a) a desvinculação do dólar ao ouro, em 1971; b) a flutuação das moedas por volta de 1973, depois do primeiro choque do petróleo, em 1972 [...]”.294 Também foi a partir desse período, principalmente com o surgimento e desenvolvimento de novas empresas “incubadoras” do Vale do Silício, que a capacidade de armazenamento e velocidade de processamento da informação galgou novos horizontes. Exemplo mais sabido dessa revolução foi o microprocessador, inventado pelo engenheiro da Intel Ted Hoff em 1971. Em breve síntese, este invento possibilitava agrupar um computador295 em um chip. Ademais, grandes empresas que hoje dominam o mercado tecnológico surgiram precisamente a partir dos anos 1970, em especial Apple e Microsoft. Embora tais invenções tenham reverberado com propriedade nas relações entre comunidade e informação, a revolução propriamente dita que culminou nessa quebra de paradigmas, para Castells, ocorreu com o advento da internet. O autor pondera que: Cada grande avanço em um campo tecnológico amplifica os efeitos das tecnologias da informação conexas. A convergência de todas essas tecnologias eletrônicas no campo da comunicação interativa levou à criação da

FARIA, José Eduardo Campos de Oliveira. O Estado e o direito depois da crise. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 61. 295  Manuel Castells aponta que o primeiro computador eletrônico, o ENIAC, de 1946, pesava 30 toneladas, foi construído sobre estruturas metálicas com 2,75m de altura, tinha 70 mil resistores e 18 mil válvulas, ocupando a área de um ginásio e, quando ligado pela primeira vez, fez as luzes da Filadélfia piscarem. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 78-79. 294 

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internet, talvez o mais revolucionário meio tecnológico da Era da Informação.296

A origem da internet é sabidamente militar e ocidental, originada por atuação da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América. A primeira rede de computadores que se utilizou das tecnologias empreendidas pela ARPA se chamava ARPANET, e entrou em funcionamento em 1º de setembro de 1969, operando inicialmente em quatro universidades norte-americanas.297 Após um esgotamento do modelo inicialmente público da internet – visto que se tornava cada vez mais difícil a separação entre seus possíveis usos militares e de comunicação para fins pessoais – a ARPANET encerrou suas atividades em 1990. Cinco anos mais tarde, houve a privatização da internet com a abertura da arquitetura outrora desenvolvida para redes privadas.298 A contextualização do surgimento e desenvolvimento da internet permite finalmente chegar a uma definição do que seja a sociedade informacional. Trata-se, em suma, da conjugação de dois pontos principais: 1) a centralidade da informação nos modos de produção do capitalismo flexível, aspecto observável no modelo de funcionamento de empresas dominantes do mercado, como Google e Microsoft, que coletam, agrupam, indexam, qualificam e comercializam

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 82. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 83. 298  Para mais detalhes sobre como ocorreu o surgimento da internet, desde sua origem como instrumento militar até sua reconfiguração em redes domésticas e de fácil acesso, consultar: CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, negócios e a sociedade. Zahar, 2003. 296  297 

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dados (não apenas dados pessoais)299, modelo bastante distinto daquele burguês clássico de produção e comercialização de bens ou serviços tangíveis; 2) o uso inédito da informação não apenas como um meio do processo de produção para a obtenção de um fim, mas também o seu uso para o aprimoramento da própria memória, por intermédio de tecnologias que melhorem a capacidade de armazenamento e processamento da informação.300 Para o autor: O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.301

Em algumas obras, Castells parece abandonar o uso do termo sociedade informacional e adotar o significante sociedade em rede. Parece-nos, contudo, que não há cisão entre essas duas designações de sociedade, mas acoplamento e até mesmo atualização por parte do autor. Esclarecendo um pouco mais detidamente essa relação, o que ocorre, observando-se a obra do sociológico, não é um completo abandono da terminologia “informacional”; em verdade, Castells continua apontando a informação como centro da nossa sociedade. Entretanto, a A diferença básica entre informação e dado é que enquanto a informação é uma interpretação que se faz de um dado, este, em si, não carrega uma carga semântica. A frase “Paris é bonita” é uma informação composta por três dados: “Paris” (a capital da França), “é” (verbo de ligação) e “bonita” (adjetivo). 300  Por exemplo: novos hardwares e capacidades maiores de hard disk drives. 301  CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 69. 299 

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característica nova da sociedade é justamente o veículo dessa informação, que seriam as redes.302 O que mais interessa no estudo de um direito ao esquecimento é de fato compreender como a sociedade informacional reconfigurou a temática da memória (tanto coletiva quanto individual) e do esquecimento. A primeira grande mudança é a de que, nesse novo paradigma, a falibilidade da memória humana – explorada quando tratados os pecados da memória – é reduzida, pois são desenvolvidos aparatos de auxílio ou de “memória externa”. Com isso, o padrão de esquecer que sempre acompanhou a humanidade é substituído pela facilidade em recordar. Para Viktor Mayer-Schönberger, “a memória externa é uma extensão da nossa própria memória

Atesta o autor: “Frequentemente, a sociedade emergente tem sido caracterizada como sociedade de informação ou sociedade do conhecimento. Eu não concordo com esta terminologia. Não porque conhecimento e informação não sejam centrais na nossa sociedade. Mas porque eles sempre o foram, em todas as sociedades historicamente conhecidas. O que é novo é o fato de serem de base microeletrônica, através de redes tecnológicas que fornecem novas capacidades a uma velha forma de organização social: as redes. As redes ao longo da história têm constituído uma grande vantagem e um grande problema por oposição a outras formas de organização social. Por um lado, são as formas de organização mais flexíveis e adaptáveis, seguindo de um modo muito eficiente o caminho evolutivo dos esquemas sociais humanos. Por outro lado, muitas vezes não conseguiram maximizar e coordenar os recursos necessários para um trabalho ou projeto que fosse para além de um determinado tamanho e complexidade de organização necessária para a concretização de uma tarefa. Assim, em termos históricos, as redes eram algo do domínio da vida privada, enquanto o mundo da produção, do poder e da guerra estava ocupado por organizações grandes e verticais, como os estados, as igrejas, os exércitos e as empresas que conseguiam dominar vastos polos de recursos com um objetivo definido por um autoridade central. As redes de tecnologias digitais permitem a existência de redes que ultrapassem os seus limites históricos. E podem, ao mesmo tempo, ser flexíveis e adaptáveis graças à sua capacidade de descentralizar a sua performance ao longo de uma rede de componentes autônomos, enquanto se mantêm capazes de coordenar toda esta atividade descentralizada com a possibilidade de partilhar a tomada de decisões.” Aqui se buscou uma edição mais recente da obra para fins de complementação. CASTELLS, Manuel; MAJER, Roneide Venâncio; GERHARDT, Klauss Brandini. A sociedade em rede. Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 17-18. 302 

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humana”.303 A utilização dessa memória, ressalta-se, não é nova; basta pensar nas pinturas rupestres, datadas de mais de 30 mil anos. O problema dessa forma elementar de armazenamento de memória externa é que ela era lenta, custosa e suscetível à fácil destruição.304 A própria escrita, surgida em cerca de 3000 anos A.C com os pictogramas da Mesopotâmia também teve seu advento como uma memória externa, especificamente para o registro de trocas. Contemporaneamente, as tecnologias relacionadas à memória externa são muito mais sofisticadas e acessíveis. No final dos anos 1930, H. G. Wells escreveu sobre um “cérebro mundial” capaz de “permitir que toda a memória produzida pelo homem fosse acessada por cada indivíduo”305. Pouco mais de meio século depois, Gordon Bell, líder da Digital Equipment Corporation, uma das empresas pioneiras na indústria de computadores, alcançou o feito imaginado por Wells: Gordon criou uma memória externa em formato de máquina capaz de armazenar e acessar todos os aspectos de sua vida em questão de segundos.306 Para Schönberger: “Nós movemos da era analógica para a era digital. A tecnologia moderna fundamentalmente alterou qual informação pode ser lembrada, como ela pode ser lem-

MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 28. Tradução nossa. 304  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 30. 305  Retirada da obra de: ZACHARY, Gregg Pascal. Endless Frontier: Vannevar Bush, Engineer of the American Century. New York: Free Press, 1997. p. 265. Tradução nossa. 306  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 51. Tradução nossa. 303 

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brada e a que custo”.307 Estudos já do ano de 2002 apontavam que mais de 90% da informação escrita existente estava na forma digital308. Há uma estimativa de que hoje existam 2.7 zettabytes de dados no universo digital – cada zettabyte corresponde a 10²¹ bytes. Além disso, a cada minuto são criados 3.3 milhões de postagens no Facebook, e 3.8 milhões de buscas são realizadas no Google. A cada dois anos, o número de dados criados pelos usuários da internet duplica. E se esses dados não causam consternação, nota-se um último ponto: dessa imensidão de dados e informações, apenas 0,5% são de fato analisados e utilizados por terceiros para fins comerciais ou pessoais. Em suma, existe um verdadeiro universo de informações que se perdem ou ficam “esquecidas” nas redomas do ambiente digital.309 Essa relação entre memória, esquecimento e um novo paradigma de sociedade pode ser compreendida pelo estudo de três características ou viragens: armazenamento barato, recuperação fácil e alcance global. O armazenamento barato de informações é explicado com as seguintes constatações: se nos anos 1950 o custo para se armazenar 1 megabyte beirava a casa dos U$ 70.000,00, no início dos anos 2000 esse custo já era de 1 cent por megabyte. Em 2008, o custo foi reduzido para um centésimo de cent. No ano de 1965, Gordon Moore, MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 52. 308  LYMAN, Peter; VARIAN, Hal. How much information?. Disponível em: . Acesso em 19/10/2018. 309  Os dados aqui apresentados foram obtidos pela conjugação de dois estudos: REGALADO, Antonio. The data made me do it. Massachusetts Institute of Technology (MIT), 2013. Disponível em: . Acesso em 19/10/2018; NODEGRAPH. Big Data Facts - How much data is out there?. Disponível em: < https://www.nodegraph.se/big-data-facts/>. Acesso em 19/10/2018. 307 

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cofundador da Intel, previu com acerto que a complexidade dos transistores dobraria, pelo mesmo custo, a cada 18 meses, o que ficou conhecida como a Lei de Moore. Schönberger adverte que “essa superabundância de armazenamento disponível tornou fácil para mudarmos nosso padrão de comportamento acerca da memória externa do esquecimento para a memória”.310 Além do baixo custo, essas informações apresentam alta rentabilidade, dado que, como já afirmado por Castells, as próprias empresas – a maioria delas gigantes tecnológicos, como o Google e o Facebook – utilizam as novas tecnologias de armazenamento para coletar, tratar e indexar dados e informações, pautando o modelo de negócios por excelência da sociedade informacional. Já no que concerne à recuperação fácil, que também implica um acesso mais veloz à informação, um exemplo pode ser bastante esclarecedor: todos os que utilizaram listas telefônicas conhecem as agruras de encontrar um número naquele verdadeiro mar de informações. Hoje, com os smartphones, o acesso a um número de uma lista está a apenas alguns cliques e segundos de distância. Outro exemplo: quando se quer recordar um trecho da obra “Os Lusíadas”, de Camões, duas situações podem ocorrer: ao ter o livro físico, a consulta se dá primeiro pela leitura atenta do índice, seguida pelo folhear de algumas páginas e pela observação atenta de cada parágrafo para que finalmente se encontre o trecho pretendido. Já com a obra digitalizada, basta uma rápida busca por termos contidos no trecho, o que não demora mais do que MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 68. Tradução nossa. 310 

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alguns segundos. Viktor-Mayer Schönberger, atento ao novo paradigma da memória, salienta que: A diferença comparada à era analógica é gritante: pela recuperação fácil, vastas quantidades de informações – centenas de centenas de gigabytes – não são mais um mar de bits em que nós nos arriscamos afogar, mas uma poderosa, versátil, e ágil extensão à memória humana.311

Embora existam de fato aspectos positivos na fácil recuperação da memória, Schönberger aponta que essa presteza pode trazer alguns perigos, como por exemplo a descontextualização da informação, gerando uma falsa compreensão do todo em contraposição ao processo quase artesanal de análise das informações (como olhar o índice e cuidadosamente navegar pelas páginas), que por algum tempo foi o padrão.312 Isso é especialmente relevante em uma era de notícias falsas ou fake news. A democratização do acesso às informações, um avanço na memória coletiva e na produção e difusão do conhecimento humano313, também serviu como propulsor de desinformação e manipulação, como revelou o jornal The Guardian acerca

MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 77. Tradução nossa. 312  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 78-79. 313  Autores como Lorenzetto e Clève defendem que a possibilidade de acesso à informação é um desdobramento do direito fundamental à liberdade de expressão. Ver: CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Dimensões das liberdades de informação e de expressão: elementos do discurso público. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 17, n. 1, p. 83-98, 2016. 311 

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do escândalo da Cambridge Analytica nas eleições americanas de 2016314 e o Caso Jair Bolsonaro no Brasil.315 A última característica é a do alcance global. Para Schönberger, “as redes digitais globais eliminam a necessidade da presença física. Para recuperar informações de uma base de dados de uma rede global digital, basta estar conectado a essa rede.”316 Com esse funcionamento pautado em redes, o principal ganho se dá em relação ao tempo. A maior velocidade nas conexões e o funcionamento global da internet ressignificaram o tempo e o espaço. Hoje é possível fazer uma visita virtual aos corredores do Museu do Louvre317 apenas com o acesso à internet, não importando o horário de funcionamento do museu, e sem a necessidade da compra de ingressos. Schönberger explica que alguns fatores foram responsáveis pelo avanço no alcance global dos dados e informações, em estrita relação com a internet. O primeiro deles é o funcionamento comutado por pacotes da internet. Quando duas pessoas realizam uma ligação telefônica, a comunicação é direta e carrega apenas um tipo de informação, no caso a voz dos Esse tema é de especial importância e revela alguns dos males dessa sociedade informacional. Para mais: CADWALLADR, Carole; GRAHAM-HARRISON, Emma. Revealed: 50 million Facebook profiles harvested for Cambridge Analytica in major data breach. The Guardian, v. 17, 2018. Disponível em: . Acesso em: 19/10/2018. 315  O caso, ainda sem julgamento, refere-se ao uso do aplicativo WhatsApp por empresários para a compra e disparo de mensagens ofensivas e inverídicas acerca da candidatura de seu concorrente Fernando Haddad. A prática constituiria, em tese, abuso de poder econômico e doação empresarial não declarada. Uma matéria completa pode ser encontrada em: TEIXEIRA, Matheus. Juristas cobram providência do TSE sobre ação do PT contra Bolsonaro. JOTA, 2018. Disponível em: . Acesso em 22/10/2018. 316  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 79. Tradução nossa. 317  Disponível em: . Acesso em 22/10/2018. 314 

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participantes. Já a internet funciona em uma lógica diferente, em que pacotes contendo diferentes tipos de dados ou informações encontram a maneira mais rápida de fazer a conexão entre destinatário e destino. Segundo, um grande avanço na própria infraestrutura da conexão começou a ocorrer a partir de 1999, com as conexões por banda larga e, mais recentemente, de fibra óptica. Do final dos anos 1990 até a década passada, a velocidade de navegação manteve o desempenho de dobrar a cada 15 meses, ritmo ainda mais impressionante do que os transistores na Lei de Moore. Esses avanços, contudo, podem significar a exclusão de muitos, principalmente dos que vivem em países em desenvolvimento. Para Castells: A influência das redes baseadas na Internet vai além do número de seus usuários: diz respeito também à qualidade do uso. Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras redes de computadores. De fato, ser excluído dessas redes é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e em nossa cultura.318

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística319 trazidos a público em 2018 apontam que, até 2016, o Brasil contava com 116 milhões de usuários conectados à internet, CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, negócios e a sociedade. Zahar, 2003. p. 8. 319  INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal, 2016. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/17270-pnad continua. html?edicao=19937&t=sobre>. Acesso em 22/10/2018. 318 

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o que equivale a 64,7% da população acima de 10 anos. Esse número, contudo, não deve ser comemorado, pois os dados podem trazer conclusões equivocadas, visto que esta porcentagem revela apenas aqueles que, em algum momento do ano objeto da pesquisa, utilizaram a internet ora por meio de celular e afins, ora por meio do computador pessoal. Portanto, ainda há um contingente significativo de pessoas excluídas, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, em que as taxas de acesso foram, respectivamente, de 52,3 e 54,3%. Ademais, esse acesso avaliado não é habitual. A conjugação das três características citadas torna a informação digital um bem de imenso valor na sociedade informacional. Conforme explica Schönberger, uma das principais diferenças entre a produção de bens clássica e a produção baseada na informação é que, nesta última, o custo de produção é significativo apenas na primeira peça, visto que o custo para se fazer uma cópia e comercializar é diminuto. Pensando em um exemplo concreto, o custo para se fazer um filme blockbuster como o clássico Titanic é bastante acentuado, porém o dispêndio para se produzirem cópias, hoje, é pífio. Já os custos de produção de sapatos da mesma qualidade serão em geral similares. A coleta maciça de dados, bem como o próprio valor da informação – aspectos próprios de um ambiente cunhado de big data320 –, “contribui para a reversão do esquecimento que nós humanos havíamos nos acostumado por milênios”.321

MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big data: A revolution that will transform how we live, work, and think. Houghton Mifflin Harcourt, 2013. 321  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 83. Tradução nossa. 320 

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São dois os principais fatores a dificultar o esquecimento na internet: o primeiro é o fato de que, uma vez que a informação é compartilhada, aquele que compartilhou perde o controle sobre ela. Caso alguém dissemine para amigos uma foto vexatória, tal pessoa deve obrigatoriamente confiar que esses amigos não irão compartilhá-la para fora do seu círculo de amizades. Na era analógica, a capacidade de disseminação da informação era bastante reduzida, justamente por envolver a dificuldade na produção de cópias. Além disso, pelo fato de a cópia ser basicamente idêntica à versão original na sociedade informacional, encontrar a fonte do vazamento se torna uma tarefa quase impossível.322 O vazamento de dados tornou-se um problema bastante comum nesse novo paradigma, como restou evidente no caso Cambridge Analytica, em que dados de pelo menos 87 milhões de usuários do Facebook foram parar indevidamente na mão de empresas privadas. Outro caso famoso de vazamento ocorreu com o acesso, pelo sistema da bolsa Nasdaq, a mais 160 milhões de números de cartões de crédito e débito entre os anos de 2005 e 2012 e ainda no recentíssimo Quora Breach, em que 100 milhões de usuários tiveram seus dados comprometidos.323 O segundo motivo pelo qual não possuímos mais o controle da informação, o que torna o esquecimento uma tarefa quase impossível, é de que toda navegação deixa rastros ou cookies, em alusão ao conto em que João e Maria deixavam trilhas de pão no chão para se lembrarem do caminho de casa. É comum que um acesso a um site de compras de passagens MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 86-87. 323  Para mais: . Acesso em 22/10/2018. 322 

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resulte em propagandas direcionadas para esse tema nas semanas subsequentes. Na grande maioria dos casos, os usuários não sabem que estão sendo “seguidos” na rede e, se soubessem e se opusessem a isso, teriam a capacidade de navegação reduzida, pois seriam privados do acesso a inúmeros sites e funcionalidades da internet.324 Em suma, novas tecnologias que surgiram sobretudo a partir dos anos 1970 em países desenvolvidos facilitaram a difusão e a replicação da informação. Esse paradigma, contudo, também trouxe novos problemas, como uma acentuada exclusão de alguns, a facilidade técnica em manipular e distorcer informações e a impossibilidade de que algumas dessas informações saiam da memória coletiva. Além disso, há notória dificuldade, mesmo para os mais atenciosos, em descobrir o contexto das informações que nos perpassam, como se, na alusão do índice do livro, a página inaugural estivesse borrada. Deixar pegadas na internet pode significar, em uma perspectiva mais elementar, deixar rastros para a eternidade, atendendo ao anseio do ser em combater o esquecimento. O avanço dos aparatos controladores e armazenadores da memória, na internet, pode atender esse anseio, e “o resultado é um mundo que está propenso a lembrar, e tem pouco ou nenhum incentivo de esquecer”.325 Vislumbram-se, assim, problemas de ordem técnica na concreção prática de uma ordem de esquecimento. Primeiramente, pela falta de controle no destino da informação que MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 88 325  MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton University Press, 2009. p. 91. 324 

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trafega pela rede; em segundo, pelos rastros que essa informação deixa, espraiando-se em incontáveis websites, nuvens e demais meios de armazenamento. Ainda outro problema na seara técnica é chamado de Efeito Streisand, tema de interesse sobretudo de jornalistas326. Trata-se, em suma, de um grande obstáculo na consecução de uma ordem de esquecimento. Ele pode ser descrito como um efeito colateral daquele que pretende esquecer uma informação quando, ao tentar fazê-lo, apenas capta uma atenção maior do público, resultando na superexposição do fato. Carlos Affonso Pereira de Souza, em audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao esquecimento, em junho de 2017, apontou o Efeito Streisand como um dos dez dilemas sobre esse direito, a evidenciar seu relevo.327 A origem desse efeito remonta a 2003, quando a California Coastal Records Project, uma base de dados online de fotos da costa da Califórnia, tornou pública, em uma das fotos, a mansão da atriz Barbra Streisand. A celebridade decidiu processar o fotógrafo responsável pelo registro e um site de venda de fotos, requerendo o valor de 50 milhões de dólares de reparação por violação de sua privacidade. Antes de entrar com esse pedido na justiça norte-americana, a foto havia sido acessada apenas 6 vezes, duas delas pelos seus advogados; após

A doutrina jurídica sobre o tema ainda é escassa. Encontraram-se artigos sobre o tema mais atinentes ao saber da comunicação. 327  SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Dez dilemas sobre o chamado direito ao esquecimento. Disponível em: < https://feed.itsrio.org/dez-dilemas-sobre-o-chamado-direito-ao-esquecimento-b0ba9ff83357 >. Acesso em 18/01/2019. 326 

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a demanda, a foto se tornou um hit virtual, recebendo 420.000 visualizações no período de um mês.328 Errôneo acreditar, contudo, que esse efeito ocorre apenas com pessoas famosas. Um exemplo disso é o de Phillip Bonaffini, que ingressou na justiça em desfavor do hospital Bridgeport, de Connecticut, argumentando que, em 1997, sua mulher havia contraído uma doença infecciosa ao realizar uma cirurgia cardíaca no hospital, vindo a óbito. As partes logo entraram em um acordo. Uma das condições era que Phillip não poderia tornar público esse caso. Entretanto, em 2002, Bonaffini contou a história ao jornal Chicago Tribune, causando um novo processo judicial, dessa vez tendo o hospital como autor. A atitude do hospital causou revolta, recebendo atenção da mídia americana, que a julgou insensível. Em seguida, o hospital decidiu retirar a demanda.329 Ademais, embora a maioria das discussões e casos acerca do Efeito Streisand ocorram no contexto da internet – até pela facilidade que sua arquitetura proporciona para o alastramento desse efeito – essa não é uma relação necessária, conforme fica claro no exemplo acima. Evgeny Morozov pontua: A lógica por trás do Efeito Streisand não tem muito a ver com a internet. Ao longo da história, dificilmente houve uma maneira mais eficaz de garantir que as pessoas falem sobre algo do que banir discussões sobre o assunto. Herostratus, um jovem grego que em 356 aC incendiou o Templo de Ártemis 328  JANSEN, Sue Curry; MARTIN, Brian. The Streisand Effect and Censorship Backfire. International Journal of Comunication, 2015, p. 656-671. p. 656-657. 329  JANSEN, Sue Curry; MARTIN, Brian. The Streisand Effect and Censorship Backfire. International Journal of Comunication, 2015, p. 656-671. p. 658.

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em Éfeso, pode ser o primeiro caso documentado do mundo do efeito de Streisand. O castigo final de Herostratus – isto é, além de ser executado – foi por seu ato ser esquecido, sob ordens estritas das autoridades de Éfeso, que proibiram qualquer um de mencionar seu nome.330

O direito dispõe de alguns meios para minimizar a repercussão do Efeito Streisand. Um dos mais notórios e singelos é o segredo de justiça, uma possibilidade de que os atos processuais estejam afastados da apreciação pública, claramente uma exceção à regra de publicidade dos processos judiciais, consagrada no artigo 5º, LX, da Constituição Federal de 1988.331 Contudo, a redação do dispositivo excetua a publicidade aos casos de defesa da intimidade, devendo tal significante ser entendido de modo amplo, como, em verdade, defesa da personalidade lato sensu. O novo Código de Processo Civil disciplinou o segredo de justiça no artigo 189, I a IV, interessando mais ao tema o inciso III332, sendo a decisão que decreta o segredo irrecorível333. Luiz Manoel Gomes Junior e Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira aduzem que essa possibilidade trazida pelo inciso III é uma inovação na lei infraconstitucional. Para os autores: MOROZOV, Evgeny. The net delusion: The dark side of internet freedom. New York, NY: Public Affairs, 2011. p. 121. Tradução nossa. 331  Constituição da República Federativa do Brasil (1988): “Art. 5º, LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. 332  Código de Processo Civil (2015): “Art. 189 - Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade;”. 333  Extrai-se tal conclusão pelo fato de não estar presente, no rol taxativo de hipóteses de agravo de instrumento do artigo 1015, a decisão que decreta o segredo de justiça. 330 

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O novo Código de Processo Civil (art. 189, III), inovou o sistema processual ampliando as hipóteses em que deve haver a tramitação do processo em segredo de justiça. Se a Constituição Federal protege a intimidade, a honra e o nome da pessoa, adequado que haja a possibilidade de evitar constrangimentos decorrentes da indevida publicidade do processo.334

A possibilidade de viabilização do segredo de justiça como um escape ao Efeito Streisand parece, de fato, promissora, embora tal expediente não deva ser utilizado de modo absoluto e automático em todas as demandas envolvendo o direito ao esquecimento. O raciocínio a se fazer, porém, é o de que a proteção à personalidade na sociedade informacional demanda um cuidado especial do aparato judiciário a fim de que, ao final do processo, seja atingido o resultado útil que se espera e não uma superexposição do demandante. 3.2 ASPECTOS GERAIS ACERCA DA COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM MATÉRIA DE DIREITO AO ESQUECIMENTO E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO

Apontados os obstáculos atinentes à esfera técnica, passa-se agora à menção de outros problemas de ordem jurídico-material na consecução do chamado direito ao esquecimento na internet. O mais evidente deles, de início, é a questão da colisão entre direitos fundamentais com caráter principiológico. Não se está a dizer que essa técnica seja a mais acertada ou a que melhor se alinhe com uma sólida teoria do direito. Está-se a afirmar, de outro modo, que a utilização da ponde-

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ração, sobretudo entre direitos fundamentais com caráter de princípios constitucionais, é expediente recorrente em decisões judiciais, conforme foi possível aferir anteriormente ao longo das decisões paradigmáticas sobre o tema. Objetiva-se qualificar o debate com o apontamento de valores que, às vezes implícitos, deveriam de alguma forma integrar essa operação de ponderação e que, no mais das vezes, são olvidados pelos aplicadores do direito, sobretudo juízes. Utilizam-se, para compreensão inicial da técnica de ponderação, as obras de Robert Alexy e Humberto Ávila; no caso do primeiro autor, em especial sua “Teoria de Direitos Fundamentais”, visto que tal livro repercutiu com vigoroso impacto no imaginário dos juízes brasileiros. Já na bibliografia de Ávila, encontra-se a obra “Teoria dos Princípios”. A matéria-prima primordial de um ordenamento jurídico são as normas.335 A primeira diferenciação a ser feita, no que atine ao tema, é entre as normas e os textos normativos. Assim, a doutrina336 leciona que a norma necessariamente passa pelo processo interpretativo, enquanto o texto ou dispositivo é apenas um emaranhado de significantes337 sem sentido a

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico; apresentação Tércio Sampaio Ferraz Júnior; trad. Maria Celeste C. J. Santos; rev. téc. Cláudio De Cicco. Brasília: Editoria Universidade de Brasília, 6ª ed., 1995. p. 31. 336  ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 22. 337  A título exemplificativo, o Código Civil e o Código Penal são apenas textos e deles não se extraem, antes do processo interpretativo, comandos deônticos normativos, ou seja, que impliquem um dever-ser. 335 

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priori. 338 Seguindo nessa via, existem normas desassociadas de um texto, como por exemplo a segurança jurídica, que não encontra suporte em um dispositivo específico339, mas origina-se da confluência entre diversos textos constitucionais. Não obstante, pode ocorrer que um único dispositivo resulte em diversas normas, como é o exemplo do art. 6º da Constituição Federal de 1988, que produz uma plêiade de direitos sociais com diferentes repercussões práticas, tutelando mais de um bem jurídico tido pelo constituinte como digno de uma proteção jusfundamental.340 A distinção mais relevante, dentro do universo das normas jurídicas, ocorre entre as regras e os princípios. Para Alexy, “essa distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais”341. Tanto regras quanto princípios são espécies normativas pois expressam um dever-ser ou, em termos mais técnicos, constituem comandos deônticos342. O critério clássico de distinção entre regras e princípios é o da

No século XVIII, sobretudo, os juristas acreditavam que a lei era uma representação da vontade geral, portanto a interpretação seria vedada aos juízes – vistos, portanto, apenas como la bouche de la loi. Foi com a viragem linguística do século XX, após a publicação da obra “Tractatus logico-philosophicus” de Wittgenstein, que o paradigma do texto com sentido em si foi deixado de lado. Hoje, contudo, grande parte dos operadores do direito ainda acredita que a aplicação da lei consiste em um ato mecânico e que não engloba as subjetividades do aplicador. Para mais: HESPANHA, Antonio Manoel. O Caleidoscópio do Direito: O Direito e a Justiça nos Dias e no Mundo de Hoje. Lisboa: Almedina, 2007; GROSSI, Paolo. Primeira lição de direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. 339  ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 22. 340  Para entender melhor as diversas funções de uma norma de direito fundamental, verificar capítulo 1.3 desta obra. Ver também: HACHEM, Daniel Wunder. Tutela administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma implementação espontânea, integral e igualitária. Curitiba, 2014. 614 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná. 338 

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generalidade343, que coloca os princípios em um grau maior de abstração se comparado às regras. Por esse pensamento, a dignidade da pessoa humana, ao apresentar pouca concretude, estaria no rol dos princípios, enquanto a inviolabilidade dos parlamentares conferida pelo artigo 29, VIII, da Constituição Federal de 1988, ou a definição de Brasília como a Capital Federal, alocada no artigo 18, §1º, comporiam o rol de regras jurídicas. Outra diferenciação cunhada por alguns doutrinadores diz respeito ao grau de importância344 das normas, no sentido de que os princípios são originalmente superiores ou mais importantes para os objetivos de um povo do que as regras. Essa última distinção, contudo, padece de extrema vagueza e não soluciona na problemática de quais normas são mais ou menos importantes em nosso ordenamento jurídico. Alexy aponta, entretanto, que a principal distinção entre as duas espécies normativas reside no fato de que “princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”345. Seriam, portanto, mandamentos de otimização, ao passo que as regras operam em lógica distinta, visto que serão sempre satisfeitas ou não.346 Diferentemente, para Ávila os princípios expressam um estado de coisas.347 RAZ, Joseph. Legal Principals and the Limits of Law. Yale Law Journal 81 (1972): p. 823-854, 1972. 344  LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 5ª. Edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. 345  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017.p. 90. 346  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 91. 347  ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 55. 343 

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Outro ponto fundamental na aludida separação entre os dois tipos normativos só pode ser verificado quando há colisão ora entre regras, ora entre princípios, ou seja, quando duas regras ou dois princípios incidem em um único caso. Assim, para solucionar um conflito entre duas ou mais regras, deve-se ou inserir uma cláusula de exceção348 ou declarar a invalidade de uma das regras conflitantes por meio dos critérios clássicos para a solução de antinomias.349 O resultado desse conflito antinômico importará na exclusão de uma das regras do ordenamento. Seguindo lógica diversa, a colisão entre princípios deverá ser pacificada com a prevalência pontual de um princípio em contraposição ao outro colidente, sem que jamais haja a exclusão de algum deles do ordenamento350 e nem que seja edificada uma cláusula de exceção, como ocorre na colisão de regras.351 Portanto, na análise do caso concreto será conferido um peso maior ou menor a um dos princípios colidentes, procedimento conhecido como sopesamento352 ou ponderação, sendo imperativo que o julgador tente preservar ao máximo tais princípios, para que incidam em sua amplitude máxima dentro das possibilidades fático-jurídicas apresentadas. Ilustra um caso hipotético em que, na portaria de determinado órgão público, exista uma placa determinando a proibição da entrada de animais no recinto. Caso uma pessoa com deficiência visual ali chegue junto de um cão-guia, haverá, por um lado, uma regra proibindo a entrada e, de outro, um dever de acessibilidade aos deficientes visuais. Para solucionar tal impasse, seria necessário inserir uma cláusula de exceção à primeira regra, dispondo que, na hipótese da entrada de um deficiente visual com um cão-guia, não haveria sua incidência. 349  Esses critérios são o temporal, o hierárquico e o especial. 350  Essa constatação serve apenas para o caso dos princípios explícitos. 351  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 93. 352  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 95. 348 

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Neste ínterim, ressalta-se que o sopesamento foi utilizado, por exemplo, para solucionar o já citado Caso Lebach, em que de um lado da balança estava o princípio da liberdade de expressão alegado pela ré, e, de outro, os direitos da personalidade atrelados ao princípio da dignidade da pessoa humana de um condenado que já havia cumprido sua pena. No referido conflito, a liberdade de expressão cedeu aos direitos da personalidade, todavia não houve exclusão daquele e nem a inserção de uma cláusula de exceção. Como resultado do sopesamento empenhado pelo Tribunal Constitucional Alemão, criou-se uma norma de direito fundamental atribuída353 com estrutura de regra354, válida exclusivamente para aquele caso (embora possa influenciar outros), cujo conteúdo impunha à ré não identificar ostensivamente o partícipe do crime na veiculação do programa. Uma última distinção relevante entre regras e princípios proposta por Alexy é a de que os princípios são mandamentos prima facie355, ou seja, não há determinação prévia de seu conteúdo, que só será construída por intermédio da já citada norma de direito fundamental atribuída, com estrutura de regra, arquitetada no caso concreto. De modo diverso, as regras têm um caráter definitivo356, embora o próprio autor reconheça que, quando houver a inserção da supracitada cláusula de exceção, a regra perderá essa definitividade. Todavia, nessa ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 102. 354  Portanto, com um comando definitivo de (não) fazer. Essa regra criada após o sopesamento não integra o ordenamento e vale apenas para o caso analisado. A não ser que estejamos diante da construção de precedentes, tema deveras espinhoso que não é o foco da pesquisa. 355  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 104. 356  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 104. 353 

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hipótese, isso não significa que a regra terá se transmutado em um princípio por ostentar um caráter prima facie, visto que, ainda assim, a feição prima facie de uma regra se distingue e muito se comparada à de um princípio.357 Superado o primeiro problema conceitual, ainda importa mencionar que, no que tange aos princípios, a doutrina358 e a jurisprudência359 parecem concordar que, no atual estágio do constitucionalismo, queda incabível a concepção de princípios absolutos. Alexy aponta que: É fácil argumentar contra a existência de princípios absolutos em um ordenamento jurídico que inclua direitos fundamentais. Princípios podem se referir a interesses coletivos ou a direitos individuais. Se um princípio se refere a interesses coletivos e é absoluto, as normas de direitos fundamentais não podem estabelecer limites jurídicos a ele. Assim, até onde o princípio absoluto alcançar não pode haver direitos fundamentais. Se o princípio absoluto garante direitos fundamentais, a ausência de limites desse princípio levaria à seguinte situação contraditória: em caso de colisão, os direitos de cada indivíduo, fundamentados pelo princí357  Para entender melhor esse ponto, ver: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 106-110. 358  ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 111. 359  Cita-se como exemplo o HC 93250/MS, de relatoria da ministra Ellen Gracie, em que a magistrada afirma que: “Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93250/MS. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Pesquisa de Jurisprudência. Junho de 2008. Disponível em: . Acesso em 23/06/2017.

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pio absoluto, teriam que ceder em favor dos direitos de todos os indivíduos, também fundamentados pelo princípio absoluto. Diante disso, ou os princípios absolutos não são compatíveis com direitos individuais, ou os direitos individuais que sejam fundamentados pelos princípios absolutos não podem ser garantidos a mais de um sujeito de direito.360

E anota-se que nem mesmo a dignidade da pessoa humana pode ser tida como um princípio absoluto, visto que até mesmo ela, após sopesamento, pode ceder diante de algum outro princípio que tenha maior peso no caso analisado.361 Ressalta-se que o próprio legislador por vezes relativiza a dignidade da pessoa humana para dar prevalência a algum outro valor tido como fundamental. É o caso, a título exemplificativo, da prisão cautelar362 e das restrições das liberdades individuais provocadas pela decretação do estado de sítio ou de intervenção federal em Estados, entre diversos outros exemplos. Na verdade, apesar de ser cediço o fato de que o ordenamento brasileiro é manifestamente incompatível com a ideia de princípios absolutos, isso não significa que alguns princípios não demandem um ônus argumentativo maior para serem superados; é exatamente neste plano que se situa a dignidade da pessoa humana. Ou, dito de outro modo, alguns ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2017. p. 111. 361  Alexy exemplifica isso apontando o caso BVerfGE 34, 238 (245), em que o Tribunal Constitucional Alemão, em nome do princípio da proteção do Estado, relativizou a dignidade da pessoa humana a fim de possibilitar a monitoração de suspeitos por escutas telefônicas. 362  Para mais, ver: GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim; LUZ, Pedro Henrique Machado da. A efetividade da aplicação da nova lei de medidas cautelares pessoais (Lei nº 12.403/11) pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná, v. 1, p. 185-203, 2017. 360 

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princípios sagraram-se vencedores de tantos sopesamentos ou ponderações que, para serem superados no caso concreto, o julgador deverá atentar-se a uma fundamentação verticalizada363, com argumentação capaz de superar um princípio tido como “forte”, até por exigência do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. Não é o caso ainda do chamado direito ao esquecimento, que, pelo menos em sede de Cortes Superiores, ainda não enfrentou colisões suficientes que justifiquem uma posição de maior ou menor necessidade de ônus argumentativo. Partindo deste norte de que não existem princípios com caráter absoluto, o tema da colisão em matéria de esquecimento merece apontamentos. Quando uma pretensão de esquecimento na internet pautada na obliteração ou na desindexação colide com, por exemplo, a liberdade de expressão, a solução não pode ser dada antes da análise do caso concreto. Ora, inexistindo prevalência inata a um dos lados, a resolução do conflito só poderá ocorrer após: a) determinação e investigação minuciosa dos fatos que pautam a lide; b) atenção ao histórico de sopesamentos realizados pela jurisprudência em casos parecidos, a serem determinados após a identificação dos princípios colidentes e ao item “a”; c) análise da restrição empenhada ao direito fundamental “perdedor” pela regra de proporcionalidade. Passando brevemente pelo último item, a proporcionalidade também integra a teoria de Alexy e baliza casos em que

Os fundamentos necessários de uma decisão judicial podem ser encontrados na seguinte obra: PUGLIESE, William. Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo código de processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. 363 

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haja restrições a direitos fundamentais.364 Sendo os direitos fundamentais uma restrição ao agir do poder Estatal e até mesmo de particulares365, diz-se que a proporcionalidade é um “limite dos limites”.366 A sua aplicação, conforme explica Virgílio Afonso da Silva, é pautada em três sub-regras sucessivas e subsidiárias367 ou, nas palavras de Carlos Bernal Pulido, em um processo “sucessivo e escalonado”.368 Sinteticamente, analisa-se a adequação da medida restritora de direitos fundamentais, ou seja, se ela produz ou fomenta determinados fins pretendidos. Em seguida, observa-se a necessidade da medida, verificando se não há outra opção possível que seja menos ruidosa para os direitos fundamentais em jogo e, finalmente, coloca-se sob atenção a proporcionalidade em sentido estrito, que seria propriamente a ponderação, em que se sopesam os princípios colidentes, dando-se prevalência a um deles sem extirpar o outro do ordenamento.

Outro instituto de origem tedesca frequentemente utilizado em decisões judiciais no Brasil. Para um detalhamento maior acerca de sua origem e aplicações em julgados, consultar: DUQUE, Marcelo Schenk. Curso de direitos fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 365  Acerca do tema eficácia horizontal dos direitos fundamentais, consultar: CLÈVE, Clémerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista Crítica Jurídica, v. 22, p. 17-29, 2003. 366  Para mais: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 68-70; SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 91, n. 798, 2002. p. 24. 367  SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 91, n. 798, 2002. p. 35. 368  BERNAL PULIDO, Carlos. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007. p. 693. Tradução nossa. 364 

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Em casos envolvendo direito ao esquecimento, parece necessário que o julgador utilize a regra de proporcionalidade e de suas sub-regras (adequação e necessidade) antes de adentrar na ponderação. No caso, por exemplo, do julgado de Aida Curi, a proposta de exibição do programa sem veiculação do nome da vítima seria um empenho nesse sentido, pois preservaria tanto a liberdade comunicativa da emissora quanto a proteção à personalidade de Aida Curi. Embora, à época, a pretensão tenha sido rechaçada, é necessário que o julgador sempre busque soluções mais pacíficas para a resolução dos casos, em atenção especial à sub-regra da necessidade. Na seara do direito ao esquecimento na internet, por exemplo, a remoção de páginas (URLs) – a assim chamada obliteração – quase nunca é desejável, visto que existem meios menos gravosos e mais práticos para atingir os fins de proteção da personalidade. Tendo em vista as premissas apresentadas, algumas discussões trazidas em matéria de esquecimento empenhadas principalmente por seus críticos369 tornam-se inócuas. De nada adianta dizer, por exemplo, que os direitos da personalidade devem ceder à liberdade de imprensa ou vice-versa.370 Essa afirmação, sem ter em mente qual é a extensão dos direitos conflitantes no caso concreto e quais fatos caracterizam o caso, é ou inteira falsa ou incompleta. Incorrem em equívoco, ainda, aqueles que afirmam que as figuras públicas não gozam do direito de serem esquecidas ou que esse direito detém Ver: LUCENA, Claudio. Direito à desindexação. 2014. Disponível em: . Acesso em 16/01/2018. 370  “Na análise de tais parâmetros, deverá sempre ser observado o caso concreto, não sendo possível, em termos apriorísticos, afirmar-se que o direito de informação possa ou deva sobrepor-se ao direito à privacidade, até porque o próprio interesse público deverá ser aferido pontualmente’: MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri: Novo Século Editora, 2017. p. 94. 369 

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menor âmbito protetivo para tais figuras.371 Na verdade, a única implicação deste atributo (ser pessoa pública) é o de que, para que seja conferida, por exemplo, a possibilidade de obliteração ou desindexação de determinada informação no caso concreto, faz-se necessário um forte ônus argumentativo, muito mais robusto do que para uma pessoa comum. A proteção conferida pelo direito da personalidade continua estritamente a mesma, e o que precisa ser superado é uma barreira argumentativa – o que não é de todo simples e depende de um olhar para decisões passadas e para eventuais implicações futuras. A análise de decisões paradigmáticas das Cortes Superiores brasileiras serviu para expor os parâmetros gerais considerados pelo Superior Tribunal de Justiça na apreciação do direito ao esquecimento. Alguns pontos-chave, de modo explícito ou implícito, formaram a ratio decidendi372 da decisão para o reconhecimento ou não do aludido direito. Por exemplo, a particularidade de o autor da ação ter sido absolvido no caso conhecido como Chacina da Candelária implicou a procedência da ação com o dever de indenização; de outro vértice, no caso Aida Curi, o tempo373 entre o fato e o ingresso da ação foi decisivo para dar ganho de causa à ré. Outra posBRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet (Pautas em Direito). (Locais do Kindle 2445-2456). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 372  PUGLIESE, William. Precedentes e a civil law brasileira: interpretação e aplicação do novo código de processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 79. 373  Viviane Nóbrega Maldonado traz interessante definição do direito ao esquecimento que o liga com o fator tempo. Aponta a autora: “Nesse sentido, para os fins da doutrina do Direito ao Esquecimento, tem-se que é justamente a contemporaneidade a pedra de toque que justifica o interesse público, haja vista que, com o passar do tempo, aquele é capaz de esvanecer até seu completo desaparecimento”: MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri: Novo Século Editora, 2017. p. 95. 371 

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sível razão implícita do resultado dos julgados foi o fato de que, no Caso Chacina da Candelária, aquele que teve o seu direito violado foi o próprio autor da ação, enquanto, no outro julgado, foram os irmãos de Aida, afetados indiretamente, a ingressar com pretensão em juízo. A técnica da ponderação, já integrante do imaginário jurídico brasileiro, deve ser manejada com extremo cuidado, no mínimo respeitando os atributos que seu autor, Robert Alexy, propõe. Ademais, deve-se sempre buscar soluções menos lesivas aos direitos fundamentais em jogo, tendo a regra da proporcionalidade um papel importante na consecução deste objetivo. Novamente, não se está a concordar ou discordar dessa ou de outras teorias, mas apenas se está problematizando a prática cotidiana dos órgãos decisores. O que se observou nos casos de direito ao esquecimento julgados pelas Cortes Superiores brasileiras foi uma ponderação sem técnica, o que é ainda mais grave pois o Poder Judiciário, seu praticante recorrente, precisa, por intermédio da fundamentação de suas decisões, garantir sua legitimidade democrática como Poder da República.

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3.3 UM BREVE RECORTE DE DETERMINADOS DIREITOS FUNDAMENTAIS USUALMENTE PRESENTES EM DECISÕES SOBRE O DIREITO AO ESQUECIMENTO

Explorar-se-ão determinados direitos fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988 que estão usualmente colidindo com pretensões envolvendo direitos fundamentais. Apesar de não ser possível traçar um guia estanque para futuras decisões sem que haja um olhar para as particularidades de cada caso, a compreensão geral desses direitos pode servir como caixa de ferramentas para uma melhor elucidação do tema. Escolheram-se esses valores com base principalmente no parecer emitido pelo jurista Daniel Sarmento por ocasião de consulta realizada pela Globo Comunicação e Participações S/A referente aos casos Chacina da Candelária e Aida Curi. (i) Direito à memória: Segundo Daniel Sarmento, a memória coletiva pode ser definida como: “uma construção social, feita de informações, mitos e narrativas socialmente compartilhadas, que integram a cultura e formam um senso de identidade”374. Mesmo que indiretamente, sem utilizar propriamente o termo “memória coletiva”, Benjamin problematizou as narrativas históricas, que teriam um viés extremamente excludente, sendo necessário reescrever a história a contrapelo, dando voz àqueles que estiveram à margem das narrativas oficiais. A memória coletiva é, portanto, extremamente volátil, sendo difícil determinar precisamente seu objeto. Não obstante a celeuma em delimitar seu conteúdo, há literal proteção dela no texto constitucional, em especial no artigo 216, que trata

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da tutela do patrimônio cultural.375 Portanto, demandas que envolvam pretensões pautadas em um direito ao esquecimento sobre fatos que integrem a memória coletiva de determinada população – no caso deste estudo, a preocupação é com a realidade brasileira – necessitam de um ônus argumentativo robusto para serem consideradas procedentes. Discorda-se de Daniel Sarmento, para quem “a universalização do direito ao esquecimento é o potencial aniquilamento da memória coletiva”376. A frase, proferida com tons de fatalismo e grave exagero, desconsidera o fato de que, na maioria das vezes, as lides de direito ao esquecimento não estão conectadas com a memória coletiva. Ou ainda, mesmo quando estejam indiretamente, interessa à memória coletiva tachar de culpadas pessoas inocentadas por crimes, como no caso Chacina da Candelária? Um exemplo é bastante elucidativo: no primeiro capítulo da obra “Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age”, Viktor Mayer-Schönberger apresenta a situação real de Stacy Snyder, estudante americana que não teve seu título de bacharel pela Millersville University porque, em 2006, havia colocado em sua rede social MySpace uma fotografia consumindo álcool – curiosamente cunhada de “Pirata bêbada”. Diante disso, Stacy decidiu ingressar na justiça norte-americana contra sua universidade, a fim de conseguir o título e, então,

Constituição da República Federativa do Brasil (1988): “Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]”. 376  SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 15. 375 

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exercer a carreira almejada.377 Há algum resquício de memória coletiva na divulgação de uma foto em uma rede privada social, especialmente de pessoa com idade o suficiente para ingerir álcool? Ou o caso da Promotora do Rio de Janeiro: se a demandante já foi inocentada pelo Judiciário, não haveria, por certo, uma distorção da memória coletiva em manter notícias associando-a ao fato? É certo que, de outro modo, alguns casos detêm um traço tão marcante da memória coletiva de um povo que não seria possível exercer o esquecimento para eles. A título exemplificativo, imagina-se que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, já cansado da exposição midiática própria do exercício de seu cargo passado, queira que todos os documentos, biografias, filmes e menções à sua presidência sejam sumariamente retiradas de circulação. Nessa senda, os fatos que hipoteticamente o ex-presidente almejasse “esquecer” na verdade são tão próprios da história do Brasil que sobre eles não seria possível exercer a aludida pretensão. Ou ainda, na esteira do que Stefano Rodotá chama de “direito à verdade”378, seria possível simplesmente esquecer os crimes bárbaros cometidos no período da ditadura militar brasileira? Afinal, é obrigação do Estado demonstrar essas

Stacy perdeu em todas as instâncias. MAYER-SCHONBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. p. 1-4. 378  RODOTÀ, Stefano. O direito à verdade. Civilística: Revista eletrônica de Direito Civil, v. 2, n. 3, p. 1-22, 2013. 377 

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violações a fim de que elas não se repitam posteriormente.379 Esses dois exemplos trazem atributos evidentes de memória coletiva, valor jusfundamental que, pelo menos nesses casos, deveria prevalecer sobre pretensões de esquecimento. A grande celeuma é justamente delimitar essa linha tênue entre o que integra (ou não) a memória coletiva, balanceamento nem sempre evidente. Contudo, não se pode, na esteira do parecer, apressadamente afastar a possibilidade de esquecimento, dado que nem todos os fatos passados comporão tal memória. (ii) Direito à informação: Seria truísmo repetir a relevância da informação da contemporaneidade. Além de pautar o modelo empresarial das maiores empresas de tecnologia do mundo, ela ainda é tida como atributo fundamental das democracias.380 O habeas data, presente no artigo 5º, inciso LXXII, da Constituição Federal de 1988381, surge no Brasil justamente como resposta a uma prática ditatorial de retenção de informações sobre os cidadãos por parte de autoridades públicas.382 Tem-se ainda, na Constituição, a vedação à censura estatal383, que garante a possibilidade de circulação de informações. Outros diplomas, como a chamada Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), também consagram proteção a esse valor.

Para Flavia Piovesan: “O direito à verdade assegura o direito à construção da história e da memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.” PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro. Revista anistia política e justiça de transição, n. 2, p. 176-189, 2009. 383  Constituição da República Federativa do Brasil (1988): “Art. 220, §2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”. 379 

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Para Clèmerson Merlin Cleve e Bruno Lorenzetto, o direito à informação englobaria a liberdade de expressão, visto que o exercício dessa última pressuporia existência e aceitação daquela, em especial do direito a informar.384 Daniel Sarmento, seguindo nessa via, aponta que o direito à informação teria três desdobramentos: a) o direito de informar, representado pela liberdade de expressão e de imprensa; b) o direito de se informar, irmanado ao acesso à informação e c) o direito de ser informado, que preza tanto pela possibilidade da imprensa informar, quanto do próprio Estado, trazendo ao debate público temas de interesse da coletividade.385 O autor ainda critica, com razão, uma concepção do direito de informar que estaria ligada à veracidade do fato, rechaçando essa condição ao aduzir que “do ponto de vista epistemológico, quem transmite uma informação necessariamente o faz a partir dos seus pontos de vista e perspectivas”.386 Portanto, a aproximação da informação à verdade e da liberdade de expressão à opinião é no mínimo perigosa, pois considera possível uma verdade como representação integral de um passado e despreza a imbricação entre o fato supostamente verdadeiro e a visão pessoal de quem o relata, como se fosse inteiramente possível cindir o sujeito do seu objeto. O perigo residiria, ainda, em haver uma “verdade oficial”, na linha da crítica já alinhavada por Benjamin. As informações, assim, devem concorrer em um “mercado de ideias”, cabendo CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Dimensões das Liberdades de Informação e de Expressão: Elementos do Discurso-. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 17, n. 1, p. 83-98, 2016. p. 89. 385  SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 7-8. 386  SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 8. 384 

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à população informada escolher quais devem, ou não, ser aceitas; ao Estado, basta dar espaço para que esse mercado de ideias seja livre e protegido.387 No tocante ao tema central do estudo, não se pode negar que diferentes informações integram a difusa e imprecisa categoria do interesse público388. Contudo, assim como ocorre com o direito à memória, não se podem dar respostas pré-determinadas antes de serem conhecidas as particularidades de cada caso envolvendo o direito ao esquecimento. A informação é pressuposto para que o cidadão exerça seu papel democrático de fiscalização e participação na condução do bem público. A pergunta que se coloca, então, é se o fator tempo teria o condão de relativizar o interesse público de determinadas informações. Percebe-se aqui que tanto o direito à memória quanto o direito à informação, relacionados com o chamado direito ao esquecimento, parecem estar estritamente coligados. Em certos casos, como por exemplo no julgado Chacina da Candelária, a informação prestada pela emissora Globo à coletividade estaria eivada de manipulação ao criminalizar, em rede nacional, pessoa absolvida pela acusação narrada no documentário. Já no caso Costeja González, a quitação da dívida do advogado espanhol teria feito com que a notícia publicizando seu débito tivesse se tornado imprecisa. O caso limítrofe, porém, é justamente o de Aida Curi, por não haver fator externo (como absolvição por crime ou quitação da dívida) tendente a possibilitar uma resposta mais simplória ao conflito. CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Dimensões das Liberdades de Informação e de Expressão: Elementos do Discurso-. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 17, n. 1, p. 83-98, 2016. p. 89. 388  Para mais, consultar o trabalho: HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Editora Fórum, 2011. 387 

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O tempo – somente ele – poderia justificar o esquecimento de um crime? Aqui, concorda-se com Daniel Sarmento389, para quem os crimes constituem, de alguma forma, informações relevantes para o debate público, embora essa conclusão não possa ser adotada como uma premissa universal para todos os crimes, como se por uma simples dedução fatos relacionados a crimes não pudessem estar escudados por uma pretensão de esquecimento, estando a análise sobredita restrita apenas ao caso de Aida Curi. Daniel Sarmento pontua que [...] apesar das significativas variações nacionais e regionais, um denominador comum na experiência transnacional sobre o “direito ao esquecimento” é que as cortes, para reconhecê-lo ou refutá-lo, sempre levam em consideração as liberdades de expressão, imprensa e informação, bem como o interesse na preservação da História e da memória coletiva.390

Alguns desses valores estão de fato presentes na maioria dos casos já explorados. Problematiza-se a conclusão seguinte de Daniel Sarmento, para quem haveria, no Brasil, uma posição preferencial das liberdades comunicativas em relação ao direito ao esquecimento de fatos contendo interesse público.391 Não “A veiculação de reportagem sobre um crime ocorrido no passado, por exemplo, além de proporcionar conhecimento histórico para a audiência, pode trazer à tona discussões relevantes sobre mazelas persistentes da nossa sociedade e sistema de justiça. Pode contribuir para a formação e desenvolvimento da personalidade dos expectadores, auxiliando-os a formarem suas convicções sobre temas importantes.” SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 31-32. 390  SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 38. 391  SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na ordem constitucional brasileira — Parecer. 2016. p. 48. 389 

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se nega um recente histórico de violações a direitos humanos ocorrido em um período ditatorial extinto há apenas 34 anos; não é possível discordar, ainda, que o uso indiscriminado desse instituto possa interessar aos “donos do poder”. De fato, fatos com notório interesse público ostentam prioridade prima facie em relação a pretensões de esquecimento. Contudo, o problema aqui reside na semântica do termo “interesse público”. A quem cabe determinar quais fatos detêm, ou não, essa qualidade? Seria tão evidente, nos casos Chacina da Candelária ou Aida Curi, um interesse público na divulgação dessas informações, ou haveria, de outro modo, uma extensa nebulosidade pairando sobre eles? Crê-se que as soluções não são fáceis quanto aparentam. No choque entre direito à informação, suas espécies (liberdade de expressão, imprensa, acesso à informação e outros) e o direito ao esquecimento, as decisões devem estar atentas aos aspectos particulares de cada caso, pois nem sempre será nítida a faceta de interesse público de determinados fatos. O fundamental é evitar generalizações que coloquem uma proteção insuficiente a qualquer dos lados da balança, ora implicando censura, ora exposição destrutiva da personalidade alheia, visto que ambos os valores são, direta ou indiretamente, protegidos pelo nosso ordenamento. 3.4 A MÍSTICA DO BLOCKCHAIN E O DIREITO AO ESQUECIMENTO NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LEI Nº 13.709/2018)

Finalmente, cabe tratar de dois temas cuja relevância e ineditismo projetam indagações futuras à concretização da

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proteção da personalidade para além da sociedade informacional. Tratar-se-á, inicialmente, dos contornos mais amplos do blockchain e de sua relação com o chamado direito ao esquecimento. Apesar de haver cada vez mais materiais de estudo sobre o tema, muitos deles são excessivamente técnicos ou confusos quanto aos componentes dessa tecnologia. Almeja-se, assim, a elucidação das características que o permeiam. Em estudo denominado “Blockchain Demystified”392, professores dos departamentos de ciência da computação e do direito exploram o tema amiúde, promovendo um estudo aprofundado e ao mesmo tempo acessível, o qual demonstra o grau de interdisciplinaridade da matéria. A mística que envolve o tema atine, na concepção de Mario Silva Filho, para designar o oculto, o não conhecido. Parte-se do pressuposto, portanto, de que o ineditismo e a acentuada tecnicidade do blockchain o mistificam.393 A primeira definição que temos é do blockchain como um tipo de base de dados, por ser um amontoado estruturado de informações que utiliza algumas funções criptografadas para atingir dois requerimentos: integridade de dados e autenticação de identidade (maior segurança). No tocante às duas características do blockchain, são os valores hash os responsáveis por prover a integridade dos dados. Estes nada mais seriam do que uma sequência de dígitos única BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. 393  Para uma definição extensa do termo “místico”, consultar: SILVA FILHO, Mario. A mística islâmica em terrae brasilis: o Sufismo e as Ordens Sufis em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2012. p. 19. 392 

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e com baixíssimas chances (quase 0) de replicação. Tem-se ainda os hash pointers que, como o nome informa, indicam o caminho para se ter uma sequência hash por meio da combinação de valores hashs. Isso gera uma cadeia inviolável de dados, garantindo uma segurança digital muito maior se comparada ao atual armazenamento em hard drives.394 O próprio nome blockchain origina-se do fato de que essa tecnologia, por razões de eficiência, grava um número grande de transações pelo agrupamento de transações individuais em “blocos”, usando os citados hash pointers para criar uma corrente/cadeia (chain). O bloco é dividido em duas partes: o corpo, com o registro das transações; a cabeça ou cabeçalho, que inclui o hash do bloco anterior e alguns metadados como a demarcação temporal. A ligação desses blocos por meio dos hash pointers conduz então a uma cadeia de blocos (blockchain).395 O grande escudo, então, da tecnologia blockchain, é a chamada Public Key Infrastructure (PKI), responsável por gerar um par de chaves consistente em uma chave privada, uma pública, uma assinatura algorítmica e uma função de validação para checar se a assinatura digital está correta. Uma analogia pode ser feita: imagine a maçaneta de uma porta que só poderia ser aberta por aquele que tenha duas chaves diferentes; é exatamente disso que se está a tratar, pois a BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 6-7. 395  BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 7. 394 

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fechadura pública só pode ser aberta em conjunto com a chave privada e vice-versa.396 Partindo para o design dessa tecnologia, os autores apontam as duas principais criptomoedas – Bitcoin e Ethereum – como plataformas que foram configuradas para atingir requerimentos a fim de criar uma moeda online segura, que todos pudessem acessar (trustless environment). Isto significa que não há uma autoridade central guardando as informações das transações, mas que cada participante é um nó com uma cópia dos registros. As tecnologias hash e PKI já existem desde os anos 1950, mas foi apenas em 2008 que Satoshi Nakamoto (nome fictício) combinou essas duas vertentes para criar a tecnologia blockchain. O ambiente é chamado de trustless, porque cada componente é um nó que detém cópia do blockchain e pode propor novos blocos. A tendência, segundo os autores, é de que no futuro haja a centralização do controle das informações por meio das Trusted Third Parties (TTP), função exercida pelos provedores de acesso na atual arquitetura da rede.397 O que interessa para o tema em relevo é justamente o papel dos nós, determinados usuários que guardam cópias locais do blockchain, ou, dito de outro modo, que armazenam

“A chave privada de cada usuário é seu meio de acesso à plataforma blockchain. Se perderem sua chave privada, a plataforma não poderá mais autenticar sua identidade e negará acesso a ela.” (tradução livre). BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 10. 397  Recomenda-se a leitura da obra clássica sobre o tema: LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. New York: Basic Books, 2006. 396 

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informações relevantes.398 No atual estágio dessa tecnologia, já existem mais de 10.000 nós.399 Essa realidade tem saído da seara apenas das criptomoedas, visto que Estados nacionais já demonstram interesse no blockchain para, por exemplo, promover o registro de terras.400 Em resumo, o modelo de armazenamento de informações proposto pela tecnologia blockchain – sua maior virtude e perigo – é tido como fechado, em que a alteração dessa informação dependeria em uma modificação ampla em todos os nós.401 É como se a internet fosse um grande livro de registros (ledger); hoje, é possível manipular um registro específico por intermédio, por exemplo, da desindexação. No caso de informações armazenadas por blockchain, isso demandaria uma “Os nós armazenam uma cópia local do blockchain. Nós “completos” armazenam uma cópia de todo o blockchain, enquanto os nós “light” abrigam apenas um subconjunto do blockchain para verificar as transações.” (tradução livre) BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 11. 399  BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 12. 400  HIGGINS, Stan. UK Land Registry Plans to Test Blockchain in Digital Push, 2017. Disponível em: . Acesso em 19/01/2019. 401  É didática a explicação do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações: “Toda operação ou transação dentro da ledger é protegida por tecnologias criptográficas de assinatura digital, inclusive para identificar os nós emissores e receptores das transações. Quando um nó deseja adicionar ao ledger um fato novo, é necessário um consenso entre todos ou alguns nós previamente determinados da rede, para decidir se o fato vai poder ser registrado no ledger. Havendo consenso, o fato será escrito e nunca mais poderá ser apagado, em tese, um processo levemente semelhante à escritura e registro de um imóvel no Brasil.” (grifo nosso). CENTRO DE PESQUISAS E DESENVOLVIMENTO EM TELECOMUNICAÇÕES. Blockchain. Disponível em: . Acesso em 19/01/2019. 398 

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modificação em todos os mais de dez mil nós, cenário possível apenas em um evento generalizado de quebra de segurança. Segundo Marcelo Creimer, “um dos pilares do blockchain é justamente a imutabilidade dos dados gravados”.402 O especialista propõe, assim, três alternativas que promovam a proteção de dados pessoais em um contexto de aplicação do blockchain: 1) Os dados do cliente podem estar sim no blockchain, mas quem detém a “guarda” destas informações é o próprio cliente; através da sua chave privada só ele permite a consulta, consegue alterar ou excluir seus dados. Se ele quiser que seus dados sejam permanentemente excluídos, basta que o cliente “perca” sua chave privada. A rigor a informação ainda está lá, mas criptografada e inacessível a todos, de forma irrecuperável; 2) Os dados pessoais do cliente estarem em um banco de dados convencional, sendo referenciado por um hash no blockchain. Estando em banco de dados, a opção de apagar os dados do cliente é um procedimento comum; 3) A regra de negócio que fornece acesso aos dados pessoais em um blockchain, implementadas através de um smart contract, pode conter uma lógica que permita ao dono da informação restringir a todos o acesso aos seus dados, evitando a partir de então a visualização dos seus dados.403 CREIMER, Marcelo. O Blockchain e o direito de ser esquecido. Disponível em: < http://www.ezly.com.br/blog/2018/09/28/o-blockchain-e-o-direito-de-ser-esquecido/>. Acesso em 19/01/2019. 403  CREIMER, Marcelo. O Blockchain e o direito de ser esquecido. Disponível em: < http://www.ezly.com.br/blog/2018/09/28/o-blockchain-e-o-direito-de-ser-esquecido/>. Acesso em 19/01/2019. 402 

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E conclui: Na verdade, o blockchain tem um papel bastante positivo e importante em relação à proteção de dados pessoais.  Ele permite a descentralização na guarda dos dados, equilibrando o poder de fogo entre as partes, já que o dono da informação pode fazer parte da rede diretamente. Além disso, informações criptografadas pelo próprio dono da informação ajudam em muito contra vazamento de dados.404

O potencial da tecnologia blockchain é muito maior do que originalmente se imaginou, e não se restringe apenas às criptomoedas, repercutindo em diversos outros temas de interesse da tecnologia.405 A realidade do blockchain hoje está muito mais ligada a transações comerciais do que ao armazenamento de informações tuteladas juridicamente, como direitos da personalidade. Contudo, uma realidade desafiadora se avizi-

CREIMER, Marcelo. O Blockchain e o direito de ser esquecido. Disponível em: < http://www.ezly.com.br/blog/2018/09/28/o-blockchain-e-o-direito-de-ser-esquecido/>. Acesso em 19/01/2019. 405  “O blockchain pode ser aplicado de várias maneiras para criar plataformas com diferentes propriedades e recursos.” Tradução nossa. BACON, Jean; MICHELS, David Johan; MILLARD, Christopher; SINGH, Jatinder. Blockchain Demystified: an introduction to blockchain technology and its legal implications. Queen Mary School of Law Legal Studies Research Paper no 268/2017. p. 1-50. Disponível em: . Acesso em 19/01/2018. p. 4-5. 404 

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nha406, em que velhos institutos modernos como contratos407, propriedade408, privacidade409 e outros são ressignificados. Há pouca doutrina sobre o assunto410, e a legislação em matéria de dados pessoais não parece estar atenta a esse novo paradigma. Finda-se o capítulo investigando justamente uma recente lei atinente à proteção de dados pessoais – a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) – e como (se é que) ela disciplina a possibilidade um direito ao esquecimento nos moldes apresentados neste estudo, com atenção especial ao princípio da finalidade. Não se abordará exaustivamente o também importantíssimo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) por dois motivos: 1) o produto brasileiro em matéria de proteção de dados pessoais, no caso a LGPD,

Verificar o seguinte artigo científico, em que pesquisadores alemães afirmam terem encontrado pornografia infantil registrada no blockchain: MATZUTT, Roman et al. A Quantitative Analysis of the Impact of Arbitrary Blockchain Content on Bitcoin. In: Proceedings of the 22nd International Conference on Financial Cryptography and Data Security (FC). Springer. 2018. 407  Outro tema relacionado ao blockchain diz respeito aos chamados smart contracts, transações que não necessitam de uma terceira parte para “garantir” o contrato, reduzindo custos e facilitando esse intercâmbio. Para mais: CHRISTIDIS, Konstantinos; DEVETSIKIOTIS, Michael. Blockchains and smart contracts for the internet of things. Ieee Access, v. 4, p. 2292-2303, 2016. 408  Especialmente com os novos contornos da propriedade intelectual. Ver: LILLA, Paulo Eduardo. Propriedade Intelectual e Direito da Concorrência. São Paulo: Quartier Latin, 2014. 409  Basta recordar a acepção de propriedade como controle de dados pessoais, apresentada no item 2.1. 410  Motivo pelo qual a maioria das referências utilizadas proveio de websites. 406 

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tem nítida inspiração no regulamento europeu411, portanto explorar um é, de certo modo, investigar preliminarmente o outro, principalmente pelo fato de que a proteção de dados em solo europeu aproxima-se mais ao valor dignidade humana do que à liberdade, opção semelhante à brasileira e contraposta à norte-americana; 2) o capítulo tem como escopo as potencialidades de um direito ao esquecimento no Brasil, portanto foi necessário um recorte atento ao estudo do diploma legal brasileiro, embora certamente serão trazidas conceituações e qualidades da lei europeia, em especial do seu artigo 17. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), sancionada em 14 de agosto de 2018, veio para suprir uma longa lacuna na legislação brasileira atinente à proteção de dados pessoais. Enquanto países europeus já tinham legislações específicas ou pelo menos uma preocupação mais acentuada com o tema desde pelo menos os anos 1980, o direito à proteção de dados no Brasil detinha, nas palavras de Anderson Schreiber, detém tutela meramente reflexa, sendo tangenciado pelo artigo 3º, III, do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), pelos artigos 43 e 44 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), pela Lei do habeas data (Lei nº 9.507/1997) e pelo Entre as principais semelhanças, citam-se, brevemente: 1) seu aspecto extraterritorial, produzindo relações jurídicas para além do território brasileiro, como no caso González vs Google Espanha, em que o Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que o Google, empresa com sede na Califórnia, estava sujeito à diretiva 95/46, justamente por oferecer seus serviços e explorá-los economicamente para usuário de outros países; 2) o relevo dado ao consentimento do usuário em ambas as leis, que deve ser informado e apresentar uma finalidade quando da coleta de seus dados pessoais, especialmente os chamados dados sensíveis; 3) a possibilidade de imposição de multas altíssimas para empresas que não se conformem a esses regulamentos; 4) o timing da edição dos diplomas, que se deu no ano de 20188. Para mais sobre o tema extraterritorialidade, ver: HOUSER, Kimberly; VOSS, Gregory. GDPR: The End of Google and Facebook or a New Paradigm in Data Privacy? Rich. J. L. & Tech. vol. 1, 2018. p. 40-45. 411 

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tautológico artigo 21 do Código Civil (Lei nº10.406/2002), que apenas replica o comando constitucional do artigo 5º, X.412 Para Schreiber, os motivos que levaram à sanção da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira foram basicamente dois: a edição de importantes obras nacionais no campo doutrinário413 e um empenho político bem-sucedido de diversos atores, impulsionado por recentes escândalos de vazamento de dados em escala global, como o caso Cambridge Analytica.414 A exemplo do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) inicia sua redação com normas sobretudo de caráter principiológico, ou seja, com pouca concreção prática (artigos 1º ao 6º). Entre os princípios explícitos da lei (artigo 6º), são elencados: a finalidade, a adequação, a necessidade, o livre acesso, a qualidade dos dados, a transparência, a segurança, a prevenção, a não discriminação e a responsabilização e prestação de contas, normas de certo modo também previstas na legislação europeia. No tocante ao direito ao esquecimento, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados europeu despende um artigo inteiro (artigo 17)415 acerca do right to be forgotten, apontando SCHREIBER, Anderson. Proteção de Dados Pessoais no Brasil e na Europa. Carta Forense, 2018. Disponível em: . Acesso em 20/01/2019. 413  A obra precursora sobre o tema foi: DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. O autor ainda cita: MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor. Editora Saraiva, 2014. 414  GRANVILLE, Kevin. Facebook and Cambridge Analytica: What You Need to Know as Fallout Widens. The New York Times, 2018. 415  EUROPA. Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados 2016/679. Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia, 2018. Disponível em: . Acesso em 21/01/2019. 412 

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desde possibilidades de aplicação (artigo 17, 1), exigências técnicas para os controladores de dados – a fim de concretizar esse direito –, e até mesmo hipóteses restritivas de sua aplicação (artigo 17, 3). Dentre tais restrições, cita-se o cotejo com a liberdade de expressão e direito à informação, a proteção de dados para fins de compliance com instituições públicas, a garantia do interesse público, a proteção de fatos científicos, de pesquisas históricas, estatísticas e, por fim, o exercício da defesa judicial. A lei brasileira não emprega especificamente o termo direito ao esquecimento, embora determine a exclusão dos dados após o término do seu tratamento, colocando duas principais hipóteses: a perda da finalidade específica almejada com os dados e o exercício de revogação do consentimento (artigos 15 e 16). Quanto à finalidade, redigida expressamente como princípio na nova lei (artigo 6º, I)416, Danilo Doneda aponta que [...] Este princípio possui grande relevância prática: com base nele fundamenta-se a restrição da transferência de dados pessoais a terceiros, além do que se pode, a partir dele, estruturar-se um critério para valorar a razoabilidade da utilização de determinados dados para certa finalidade (fora da qual haveria abusividade);417

Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018): “Art. 6º - As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios: I - finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades.” 417  DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico Journal of Law [ELLJ], v. 12, n. 2, p. 91-108, 2011. p. 100. 416 

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Os possíveis propósitos dos dados pessoais podem não se esgotar em sua função primária, sendo necessários, por exemplo, para fins outros, como a instrução de ações judiciais, procedimentos administrativos ou para a preservação da história.418 Todas essas hipóteses, ressalta-se, estão presentes na lei europeia e encontram guarida no artigo 7º da Lei Geral de Proteção de Dados. Portanto, este princípio, positivado na legislação nacional, detém notória relação com o chamado direito ao esquecimento na internet, embora não seja propriamente sua consagração, segundo Anderson Schreiber.419 Contudo, é possível que as futuras decisões sobre o tema se inspirem neste e em outros princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), visto que a solução de conflitos nessa seara não encontra nas regras jurídicas um caminho seguro para a oferta de respostas. Acerca da segunda hipótese, o consentimento fornecido pelos usuários aos controladores de dados ocorre de maneira expressa, cabendo ao último grupo o ônus da prova demonstrar que ele foi obtido segundo o disposto na lei (artigo 8º, §2º). Ademais, os temas consentimento e finalidade ligam-se intimamente pelo disposto no artigo 8º, §4º e artigo 11, I, ao determinar que as autorizações genéricas para tratamento de dados são nulas e que o consentimento deve observar finalidades específicas. Ademais, o consentimento pode ser revogado pelo titular dos dados a qualquer momento, mediante BRANCO, Sergio. Memória e esquecimento na internet. (Pautas em Direito) (Local do Kindle 3203). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 419  SCHREIBER, Anderson. Proteção de Dados Pessoais no Brasil e na Europa. Carta Forense, 2018. Disponível em: . Acesso em 20/01/2019. 418 

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manifestação expressa, por procedimento gratuito e limitado, desde que esses dados não sejam mais exigidos para outros fins (artigo 8º, §5º). Essa revogação é especialmente relevante ao direito ao esquecimento, pois o decurso do tempo é fator passível de alteração da personalidade. Finalmente, após a elucidação sobre o referido princípio, o direito ao esquecimento na internet pode ser entendido, na conjugação das doutrinas de Sergio Branco420 e Anderson Schreiber, como um direito não positivado decorrente da privacidade – em sua acepção de controle de dados pessoais – e da identidade pessoal do indivíduo, havendo ainda a hipótese incipiente e debatível de aplicação para pessoas jurídicas. Em todos os casos, relaciona-se, contemporaneamente, com a própria finalidade com que esse dado fora originariamente coletado ou à necessidade de sua correção, a fim de que reflita corretamente um estado real da personalidade. Não é possível saber de antemão os futuros efeitos da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), e se os seus princípios serão de fato levados em conta e bem sopesados pelos operadores do direito – preocupação exarada quanto se tratou da técnica de ponderação. Sua inegável virtude é a de ressaltar aos cidadãos a importância de uma cultura positiva na proteção da personalidade humana, no geral, e nos dados pessoais, em particular, reacendendo a discussão de temas como consentimento, privacidade e valor da informação. Alguns pontos nebulosos, como a recente criação, por medida

BRANCO, Sergio. Memória e esquecimento na internet. (Pautas em Direito) (Local do Kindle 3209). Arquipélago Editorial. Edição do Kindle. 420 

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provisória421, de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados vinculada à Presidência da República, de fato parecem possibilitar um panorama perigoso, “pois o Poder Público, não raro, é um dos grandes violadores da privacidade dos cidadãos”422 – sem contar a possibilidade de que isso ocorra também por práticas empresariais. Entretanto, uma tutela insuficiente, tanto para os dados pessoais quanto para o direito ao esquecimento – mesmo oriundas uma legislação (e por que não de um direito?) atrasada –, é mais desejável do que nenhuma proteção, tendo em vista que esta ao menos indica os caminhos a serem trilhados.

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CONCLUSÕES

A memória423, um tema complexo, é alvo de diferentes ramos do saber, dividindo-se, inicialmente, em coletiva e individual. Este tema recebe influências da história, da filosofia, da neurociência e, mais recentemente, busca-se compreendê-la na disciplina do direito. Walter Benjamin preocupa-se com a questão da narrativa, e de como ela pode ser manipulada em favor dos discursos oficiais ou vencedores. Para o autor, não é possível a separação rígida entre aquele que narra e o fato narrado. A narração histórica é, desde a tradição grega de Heródoto, uma forma de combate ao esquecimento. A obra de Benjamin atenta-se a um duplo viés do esquecimento, o qual consiste em uma denúncia contra um passado prenhe de esquecimentos excludentes, e que por isso leva a um segundo esquecimento – o do resgate à memória –, provocando uma releitura a contrapelo da história.424 A análise filosófica da memória e do esquecimento teve o aporte teórico de três autores. Friedrich Nietzsche entende que a principal distinção entre os seres humanos e os animais

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é de que esses vivem “a-historicamente”, deslocados da própria memória e alheios aos acontecimentos mundanos, enquanto os seres humanos carregariam a sina da incapacidade de esquecer, justamente por viverem conscientemente na história. Para o discípulo de Dionísio, o esquecimento seria um processo vital que possibilitaria a felicidade. Henri Bergson cinde a memória em dois tipos – por hábito e por lembrança –, colocando-as como o ponto de intersecção entre o espírito e a matéria. Ademais, Martin Heidegger trata, em sua obra “Ser e Tempo”, do chamado “esquecimento do ser”. A modernidade, pautada no império racionalista técnico-científico e em seu imaginário individualista, teria provocado o afastamento tanto de nós conosco quanto de nós com os outros, tempos em que “todo mundo é outro e ninguém é si próprio”425, sendo necessário o resgate desse ser. De uma matriz neurocientífica, explorou-se a memória por intermédio da bibliografia de dois cientistas, Eric Kandel e Daniel Schacter. Kandel apresenta a memória como o processo de codificação, armazenamento e evocação do conhecimento, dividindo-a pelo seu decurso temporal do armazenamento (curta e longa duração) e pela natureza da informação (explícita e implícita). Daniel Schacter investiga sete falhas ou pecados da memória, elencando a transitoriedade, a distração, o bloqueio, a atribuição incorreta, a sugestibilidade, a predisposição e a persistência. De todos os pecados, a persistência é a que mais se relaciona com o chamado direito ao esquecimento, na medida em que uma memória negativa persistente causa

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. p. 181. 425 

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percalços à personalidade, bem jurídico tutelado pelo ordenamento brasileiro. Ao final do primeiro capítulo, concluiu-se que não apenas a memória individual, mas também a coletiva estão em constante mutação e reconfiguração, sofrendo influências da historicidade, da cosmovisão de quem recorda, das particularidades do ambiente e de processos neurocientíficos, como falhas ou pecados inevitáveis. Em suma, não é possível compreendê-la na condição de uma mera retratação de um passado certo, mas, na analogia de Heráclito, como a pessoa que se banha no rio e, ao fazê-lo, modifica-o e modifica a si. O segundo capítulo tratou do significante privacidade e de suas principais concepções, como o direito de ser deixado só, o resguardo contra interferências alheias, o segredo ou sigilo e o controle de dados pessoais. A conclusão a que se chegou, portanto, do estudo das inúmeras concepções de privacidade, foi que nenhuma das quatro definições apresentadas revela-se suficiente para a compreensão do termo na contemporaneidade. Propõe-se, enfim, na esteira do que afirma José Afonso da Silva, que a privacidade seja compreendida “num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade”.426 Em seguida, estudaram-se decisões específicas sobre o direito ao esquecimento. A primeira delas foi o chamado caso Melvin vs. Reid, julgado em 1931 pelo Tribunal Norte Americano do Estado da Califórnia, cuja resolução, em favor de uma ex-prostituta americana vítima de uma superexposição no cinema, foi inspirada na noção de privacidade como SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 206. 426 

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o direito de ser deixado a só, trazida pelo artigo denominado “The Right to Privacy”. Ademais, o caso Lebach, pautado na possibilidade de esquecimento pela mídia televisiva, jogou luzes sobre o persistente conflito entre liberdade de expressão e os direitos da personalidade. Sobre a delimitação terminológica do chamado direito ao esquecimento na contemporaneidade, foi possível verificar três movimentos da doutrina: a primeira teoria, chamada de una, posiciona esse direito como desdobramento de uma única concepção da privacidade, qual seja a de controle de dados pessoais. Outra teoria, categorizada como tríplice, vê três fundamentos autônomos para o direito ao esquecimento: a privacidade, o controle de dados pessoais e a identidade pessoal. Finalmente, há uma terceira via, cunhada para fins didáticos de teoria autônoma, que vê esse direito como uma categoria apartada inserida nos direitos da personalidade. Foram estudadas decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos casos Chacina da Candelária e Aida Curi, referentes à mídia televisiva. Embora com resultados opostos, verificou-se uma tendência de padronização nas decisões e a importância de alguns quesitos para a concessão, ou não, do referido direito, tais como o tempo entre o fato e o pedido e a autoria processual. Recorda-se que o caso Aida Curi ainda está pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral reconhecida. Contudo, por estar restrito ao âmbito televisivo, crê-se que haverá pouca utilidade na resolução dos casos atuais de direito ao esquecimento, exponencialmente mais complexos por conta da arquitetura da rede.

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Enfim chegou-se a conflitos envolvendo o direito ao esquecimento na internet, com longo relevo conferido ao caso González vs Google Espanha, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e que inaugurou a possibilidade de ampla utilização da desindexação dos resultados de busca em oposição à obliteração de informações. Eivada de efeitos positivos na proteção da personalidade, a decisão apresenta perigos principalmente se adotada de forma acrítica e sem atenção às particularidades de cada caso e de cada país. Já em sede nacional, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, em apertado resultado – muito inspirado pela decisão europeia –, também concedeu uma ordem de desindexação baseada em caso de violação da personalidade. Quedaram evidentes diferentes concepções entre os ministros e ministras sobre o direito ao esquecimento, a demonstrar um quadro de incompreensão sobre o tema. Com o aporte de Manuel Castells e Viktor Mayer-Schönberger, elucidaram-se os principais contornos da sociedade informacional, em que a informação adquire significativo relevo e a memória é armazenada de forma quase absoluta e pouco custosa. O que caracteriza essa sociedade consiste, em síntese, em três pontos: o armazenamento barato da informação, sua recuperação fácil – que promove uma maior possibilidade de acesso e difusão –, e, finalmente, o alcance global – que minimiza a necessidade da presença física para que se possam acessar informações produzidas em todas as partes do mundo. Decorrente desse novo paradigma, apresentou-se o Efeito Streisand, um perigo de superexposição aos que almejam utilizar desse direito, fruto da curiosidade humana, sugerindo-se

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que, para minimizar seus efeitos, seja aventada a utilização do segredo de justiça em lides dessa natureza. Acerca da ponderação, técnica amplamente adotada em decisões judiciais que envolvem colisão entre normas jurídicas de cunho principiológico, com origem tedesca e tida como produto da obra de Robert Alexy, conclui-se que esse exercício não pode ser arbitrário, mas pautado em algumas premissas, tais como a identificação precisa dos valores colidentes, na necessária fundamentação exaustiva em sua aplicação, na observação de que não existem princípios absolutos na ordem jurídica brasileira e na correta utilização da sub-regra da proporcionalidade e de seus três passos, para que soluções menos lesivas aos direitos fundamentais em jogo sejam adotadas. Os principais direitos fundamentais colidentes nessa matéria são o direito à memória e à informação, desdobrando-se em direito à liberdade de expressão, imprensa, acesso à informação, à verdade, entre outros, cujos contornos são também redefinidos na sociedade informacional. Longe de esgotar esse ou tantos outros temas conexos com o direito ao esquecimento, as premissas básicas de cada um desses bens jurídicos fundamentais, presentes em nosso ordenamento, permitem uma discussão mais qualificada para solucionar conflitos e compreender certos limites. Sobre a tecnologia blockchain, embora possivelmente ela resulte em maiores discussões nessa matéria – visto que um de seus princípios é a imutabilidade do dado –, o especialista Marcelo Creimer acredita que, em verdade, a aludida tecnologia, se bem utilizada, poderá quebrar os paradigmas atuais de tutela da personalidade e apresentar algo novo. No atinente à regulamentação legal do direito ao esquecimento,

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a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), muito inspirada pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) europeu, não consagra especificamente esse direito, mas serve de farol para guiar futuras aplicações desse instituto, em especial ao positivar o princípio da finalidade e a exigência de consentimento expresso, livre e informado daquele que cede ou comercializa seus dados pessoais para um controlador. O tema, fruto de diversos conflitos e de visões divergentes – que vão desde a apreensão do seu sentido, suas hipóteses de aplicação, até mesmo à sua concretização prática em uma sociedade que, de forma inédita, mais lembra do que esquece –, reacende discussões que não se limitam a uma área determinada do direito. Ademais, não se limitam ao próprio direito, adentrando no terreno da filosofia, da sociologia, da história, da medicina e outros. Portanto, qualquer possibilidade de apreensão deve ser feita de maneira interdisciplinar, atenta também às temperanças próprias dos anseios sociais de cada realidade em matéria de proteção à personalidade. É o que se buscou fazer ao limitar o espaço ao Brasil. Novas tecnologias trarão incertezas para o direito, que desde a modernidade pautou-se no dogma de que conseguiria pacificar todos os conflitos sociais por intermédio da lei ou, mais recentemente, pela atuação dos juízes.427 É possível que o tema adquira contornos ainda mais complexos em brevíssimo espaço de tempo, desafiando mitos Segundo Antonio Manuel Hespanha: “Esta profunda modificação na natureza do direito contemporâneo implica uma modificação, igualmente profunda, na sua teoria e na sua dogmática, não sendo mais possível continuar a utilizar conceitos e fórmulas que foram cunhados num período de monopólio legislativo do direito para descrever um direito que se afasta progressivamente da lei.” HESPANHA, Antonio Manuel. HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do Direito: o Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. Almedina, 2009. p. 29. 427 

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jurídicos, tais como a territorialidade, o grau de proteção exigido pela personalidade humana e a própria completude do direito. É possível, ainda, que as incertezas tecnológicas tornem esse problema obsoleto nos próximos anos, ou que surjam outros tantos ainda mais espinhosos. Contudo, são nesses espaços e momentos de destruição, em que o direito moderno parece desnorteado, e a velocidade tecnológica, superlativa um estado caótico de indefinição, que se mostra possível construir um direito novo, talvez mais atento às suas próprias limitações.

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