Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII [5ª ed.]

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DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Laura de Mello e Souza

DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

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Ouro sobre Azul | Rio de Janeiro 2015

à memoria de Sérgio Buarque de Holanda

PR EFÁCIO À NOVA EDIÇÃO 9 AGR ADECIMENTOS 17 ABR EVIAÇÕES 17 INTRODUÇÃO

, Problemas e opções

I. O FALSO FAUSTO

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II. DA UTILIDADE DOS VADIOS 77

1 , O processo de desclassificação social no Ocidente 77 2 , Império Colonial, ergástulo de delinquentes 84 3 , Brasil: estrutura econômica

e processo de desclassificação social 87

4 , O processo de desclassificação nas Minas 96 5 , As várias formas da utilidade dos desclassificados 103 III. NAS R EDES DO PODER 131

1. , Administração e Estado 131 2. , As diferentes formas do exercício do poder nas Minas 144 3. , Oligarcas e potentados 197 IV. OS PROTAGONISTAS DA MISÉR IA 203

1. , Aspectos gerais da população 203 2. , A fluidez da camada 207 3. , Infratores e infrações: os casos individuais 4. , Infratores e infrações: aspectos de grupo CONCLUSÃO

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, A ideologia da vadiagem 295

1. , As metamorfoses do ônus e da utilidade 295 2. , A humanidade inviável 300 FONTES E BIBLIOGR AFIAS 307 CR ÉDITOS DAS ILUSTR AÇÕES 318

, PR EFÁCIO À 4 a. EDIÇÃO

Destinado à obtenção do título de mestre, Desclassificados do ouro foi escrito no início de 1980. O título foi concedido em outubro daquele ano, mas o livro só veio a público no final de 1982, e, desde então, ao longo destes 21 anos, teve algumas reimpressões. A presente edição não pode ser considerada como “revista”, pois, exceto por algumas correções formais, nada se alterou do conteúdo. O editor, entretanto, possibilitou o acréscimo de uma bela iconografia e deste Prefácio, onde, sustentando a argumentação central do livro, faço alguns esclarecimentos. Como já lembrei em outras ocasiões1Desclassificados foi concebido num contexto de hipertrofia do estado brasileiro nos seus aspectos mais nefastos e negativos. As liberdades individuais não existiam, o medo era constante e geral o desalento, pelo menos entre jovens que, como eu, saíam da adolescência. Meus trabalhos de pesquisa com vistas ao mestrado começaram em 1976, embalados pelo capitulo Vida Social , de Caio Prado Jr, em Formação do Brasil Contemporâneo, e pelas três ou quatro conferências de Michel Foucault no Departamento de Filosofia da USP, logo interrompidas, pelo seu protesto ante o assassinato de Wladmir Herzog e, mais tarde, sistematizadas na obra Histórica da Sexualidade – vol. 1 – A vontade de saber. Nos anos seguintes, foi – como boa parte de minha geração na USP – leitora assídua de Antonio Gramsci e, ainda, de obras sociológicas sobre a questão da força de trabalho. Havia na época, grande fascínio pelas formas alternativas de viver e de

1 , Entrevista dada a Luís Carlos Villalta, Renato Pinto Venâncio e Fábio Faversan para a LPH Revista de História, n.5, Ouro Preto: UFOP, 1995, p.5-12. Entrevista dada a José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego em Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p.363-82 (ver sobretudo p.373-4).

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pensar, as desconstruções parecendo bem mais promissoras do que se afigurariam depois. Estudar os vencidos, os de baixo, não era, no Brasil de então, mero modismo, mas forma de situar-se no mundo de divergir e buscar caminhos novos. Quando todos os meus companheiros mais chegados ou quase toda a minha geração estudava o escravismo, focalizando de várias formas os seus protagonistas principais – os escravos –, pensei poder contribuir à discussão pelo seu avesso, ou seja, trazendo à baila um vasto contingente humano afeito ao trabalho assistemático e esporádico: homens livres pobres, sempre prestes a se tornarem desocupados, habituados ao biscate e à incerteza de um eterno ser-e-não-ser. No mundo onde os extremos – senhores e escravos – eram bem definidos e capazes de definir, o homem livre pobre era, parecia-me o marginal entre os marginais. Apesar da repercussão favorável e da acolhida generosa que, no geral, o trabalho suscitou, surgiram, ao longo dos anos, algumas críticas e reparos. O avanço impressionante da pesquisa histórica em Minas Gerais, em grande parte tributária da consolidação dos cursos universitários e dos programas de pós-graduação, revificou a historiografia regional. Documentos que eram de difícil consulta, como o Códice Costa Matoso, receberam edições críticas cuidadosíssimas, facilitando o acesso dos pesquisadores a fontes primárias preciosas.2 Muitos estudos mais verticais e recortados trouxeram novo matriz à análise da sociedade mineira setecentista, a ênfase à agricultura e à constituição de um mercado interno tornando-se, de certa forma, os carros-chefes dessa renovação.3 Contribuições interes-

2 , Na publicação dessas fontes, ressalte-se o trabalho magnifico da Fundação João Pinheiro, que trouxe a público edições críticas de clássicos como José Joaquim da Rocha, Teixeira Coelho e Vieira Couto. Destaco aqui duas importantes publicações mais recentes: Códice Costa Matoso – edição coordenada por Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Belo Horizonte, Fundação Pinheiro, 1999, 2 v. Luís Gomes Ferreira, Erário Mineral. Edição organizada por Júnia Ferreira Furtado, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2002.

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3 , Carla Maria Carvalho de Almeida, Alterações nas unidades produtivas mineiras – Mariana, 1750-1850. Dissertação de Mestrado, Departamento de História, UFF, 1994. Francisco Eduardo de Andrade, A enxada complexa: roceiros e fazendei-

ros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX . Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG , Belo Horizonte, 1994. Ângelo Alves Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de Doutorado, Departamento de História – UFRJ , Rio de Janeiro, 1997. Cláudia Maria das Graças Chaves, Perfeitos negociantes – mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999. Júnia Ferreira Furtado, Homens de negócio – a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec 1999. José Newton Coelho de Menezes, O continente rústico: abastecimento alimentar na Comarca do Serro do Frio – 1750-1810. Belo Horizonte: Maria Fumaça, 1997. Sônia Maria de Magalhães, A mesa de Mariana – produção e consumo de alimentos em Minas Gerais (1750-1850). Dissertação de Mestrado, Departamento de História, Unesp/Franca1998. Flávio Marcus da Silva, Subsistência e poder – a política do abastecimento alimentar nas minas setecentistas. Tese de Doutorado, Departamento de História, FAFICH-UFMG : Belo Horizonte, 2002. Sobre aspectos mais gerais da sociedade, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, O avesso da memória – cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII . Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: EDUNB , 1993; do mesmo autor, Barrocas famílias – vida familiar em Minas Gerais no século XVIII . São Paulo: Hucitec 1997; Marco Antônio Silveira, O universo indistinto – estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808), São Paulo: Hucitec, 1997; do mesmo autor, Fama publica – poder e costume nas Minas setecentistas. Tese de Doutorado Departamento de História, FFLCH-USP, 2000; Júnia Ferreira Furtado, Chica da Silva e o contratador dos diamantes, São Paulo: Companhia das Letras, 2003; Luís Carlos Villalta, Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH-USP, 1999; Álvaro de Araújo Antunes, Espelho de cem faces; o universo relacional do advogado setecentistas José Pereira Ribeiro. Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG , 1999. Sobre urbanização, ver Maria Aparecida Menezes Borrego, Códigos e práticas – o processo de constituição urbana em Vila Rica colonial (1702-1748), São Paulo: Annablume, 2004, e Claudia Damasceno Fonseca, Des Terres aux Villes de l’Or. Pouvoirs et Territoires Urbains au Minas Gerais (Brésil, XVIII e siècle), Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2003. Sobre a questão indígena, ver Maria Leonia Chaves de Resende, Gentios Bra-

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santes também se verificaram na análise do escravismo, onde influência anglo-saxônica – com o apreço pela capacidade de os escravos conduzirem sua existência por meio dos poros e interstícios do sistema – se faz notar de modo especial. O estratagema, a negociação, a esperteza passaram a sobrenadar, relativizando a ideia da escravidão-cárcere, da qual era impossível sair.4 Eu mesma acabei por rever concepções que endossara antes, como a analogia entre o aumento das alforrias e o “sucateamento’ da força de trabalho.5 Estudos específicos mostraram, afinal, que a obtenção de alforrias constituíra um processo complexo, composto por variáveis como a sazonalidade, o gênero, a idade.6 Por fim, cabe destacar a relatisílicos – índios coloniais em Minas Gerais Setecentista. Tese de Doutorado, Departamento de História, Unicamp, 2003; ver ainda Hal Langfur, The Forbidden Lands: Frontier Settlers, Slaves, and Indians in Minas Gerais, Brazil, 1760-1830. Tese de 12

Doutorado, Universidade do Texas, 1999. Sobre o papel dos paulistas na formação dos currais de gado do médio São Francisco, ver Márcio Roberto Alves dos Santos, Bandeirante Paulistas no sertão do São Francisco e do Verde Grande – 1688-1732. Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG , 2004. Como obra de referência, ver Adriana Romeiro e Angela Viana Botelho, Dicionário Histórico das Minas Gerais – período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 4 , Eduardo França Paiva, Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII – estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. Do mesmo autor, Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2001. Julita Scarano – Negro nas terras do ouro – cotidiano e solidariedade – século XVIII , São Paulo: Brasiliense, 2002. Liana Maria Reis, Por ser público e notório: escravos urbanos e criminalidade na capitania de Minas (1720-1800). Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH-USP, 2002; Para as relações entre escravidão e protoindustrialização, já no século XIX , Douglas Cole Libby, Transformação e trabalho em uma economia escravista – Minas Gerais no século XIX . São Paulo: Brasiliense, 1988. 5 , Laura de Mello e Souza – Coartação: problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII , em: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.),

Brasil – colonização e escravidão, Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2000, p.275-95. 6 , Kathleen Joan Higgins, The Slave Society in Eighteenth-century Sabara: a com-

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vização do peso opressor do Estado, não apenas capaz de cooptar agentes locais como, também, de se mostrar rígido na letra mas ineficiente na execução. O trabalho de Júnia Ferreira Furtado sobre o Distrito Diamantino ressaltou justamente essa capacidade de ação cotidiana dos habitantes do Tijuco, que nenhum Regimento conseguiu, na prática, neutralizar.7 Em graus variáveis, muitos dos trabalhos acima citados relativizaram, pois, alguns pontos de Desclassificados do ouro. Tal é, afinal, o destino de todo estudo de História, e entendo que o fato deve ser visto como positivo: o contrário – a permanência de verdades inabaláveis – significaria estagnação desalentadora da vida intelectual do país. Por meio de um ou outro acréscimo, sobretudo nas notas, eu poderia ter incorporado, nesta edição, os reparos que considero significativos. Não o fiz porque acredito que um livro é também filho de seu temo, e não quis tirar-lhe este caráter. E resto, como afirmei em outro Prefácio, escrito para um outro livro meu, não sou mais capaz de escrever como então, e o tom geral do livro reflete uma juventude que já não possuo, expressa também na adjetivação e nos juízos de valor que, hoje, eu manejaria com maior prudência. Há pontos, contudo em que minhas posições foram mal compreendidas ou mesmo distorcidas. No limite, houve quem confessasse espanto por Desclassificados endossar “amplamente as considerações das ‘camadas dominantes’”, nada havendo que diferenciasse qualitativamente as análises de Gilberto Freyre, as de Caio Prado Jr. e a minha, sobretudo porque as fontes utilizadas, quase sempre munity study in colonial Brazil. Tese de doutorado, Universidade de Yale, 1987. UMI Dissertation Services, 1994. Laird W. Bergard – Slavery and the Demographic and Economic History of Minas Gerais, Brazil. 1720-1888. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. 7 , Furtado, Júnia Ferreira, O livro da Capa Verde. O Regimento Diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo: Anablume, 1996. Mais recentemente, ver, sobre as relações entre o âmbito público e o privado do poder político na capitania, Maria Veronica Campos, Governo de Mineiros – de como meter as Minas numa moenda e beber lhe o caldo dourado –

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de natureza oficial, se encarregaram de me trair.8 Em mais de uma obra sua, Carlo Ginzburg defendeu, muito melhor do que eu poderia fazê-lo, a posição de que os testemunhos – históricos, literários, iconográficos – podem e devem ser lidos ao revés.9 A meu ver, acreditar que fontes seriais propiciem abordagens mais “objetivas” ou democráticas seria, no primeiro caso, ingenuidade e, no segundo, uma certa demagogia. Por muito que me honre figurar ao lado de dois dos grandes “explicadores do Brasil”, acredito que Desclassificados do ouro, sem dúvida muito influenciado pela perspectiva analítica de Caio Prado Jr. – nos 1970, uma das mais oxigenadoras que havia -, problematizou de modo inovador a ambiguidade constitutiva do trabalho e do homem livre no mundo do escravismo colonial. Numa perspectiva histórica, a desclassificação – vocábulo que não apresenta qualquer caráter pejorativo, mas meramente analítico, ancorado na sociologia – fora abordada sobretudo para os contextos da industrialização. Vê-la no mundo do capitalismo nascente e antes do advento da indústria foi, a meu ver, um avanço. Por outro lado, associar a desclassificação social ocorrida na colônia com os processos mais amplos de pauperização do Ocidente destacando o papel neles desempenhado pelas colônias, amplificou o escopo e teve por objetivo mostrar que o recorte específico não deve, nunca, 1693 a 1737. Tese de Doutorado, Departamento de História, FLCH-USP, 2002; sobre o visionarismo político e a conflitualidade na capitania, ver Adriana Romeiro, Um visionário na corte de D. João V – revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo horizonte: Editora UFMG , 2001. Sobre a administração da capitania, Virginia Maria Trindade Valadares, A sombra do poder – Martinho de Melo e Castro e a administração da capitania de Minas Gerais (1770-1795). Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 1997, 2 vol. 8 , Sheila de Castro Faria, A colônia em movimento – fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998, p. 395-6. 9 , Entre outros: O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações , em: A micro-história e outros ensaios. Tradução Portuguesa, Lisbo:

Difel, 1991, p. 203-14 Estranhamento – pré-história de um procedimento literário , em: Olhos de madeira – nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Com-

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deixar de lado o enquadramento geral. Usando uma terminologia que, então, não se achava em voga, penso ser cabível dizer que Desclassificados do ouro ajuda a pensar a globalização da pobreza – objeto que não fazia parte das cogitações de Freyre e de Prado Jr. Por fim, parece não ter ficado claro para muitos que este livro aborda não apenas a constituição e o modo de vida dos homens livres pobres em Minas Gerais, mas também a ideologia da vadiagem, ou seja, o olhar raivoso e desqualificador que as elites – agora é delas mesmo que se trata – lançaram, séculos afora, sobre o mundo do não-trabalho e sobre os mestiços de vário matiz, que teimosamente se desejava branquear. Outra crítica recorrente diz respeito a uma possível hipertrofia que o setor aurífero recebeu neste trabalho.10 Minas não era só ouro: passadas as primeiras crises – terríveis, na virada do século XVII – havia, desde o início do povoamento, cultura de subsistência, muito alambique, monjolo, criação de porcos e currais de gado. Havia, igualmente, fortunas feitas no comércio de secos e molhados, na venda de carne, no transporte de mulas. Se é inegável a diversificação da estrutura econômica desde muito cedo no século XVIII , continuo acreditando que foi o ouro o grande dinamizador da economia das Minas, o elemento que lhe deu a cor e a especificidade. Os homens que abriram fazenda ao longo do Caminho Novo – uma das quais chegou até os dias de hoje, sempre na mesma família – não o fizeram porque achassem boas as terras dali, mas porque foram atraídas pela mineração.11 Os que, como aquele célebre Castro de panhia das Letras, 2001, p. 15-41; Os andarilhos do bem – feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII . São Paulo, Companhia das Letras, 1988. 10 , Veja, por exemplo, Liana Maria Reis e Carlos Magno Guimarães, Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700-50), em: Revista do Departamen-

to de História, Belo Horizonte, FAFICH-UFMG , n.2, 1986, p.7-36; Agricultura e caminhos de Minas (1700-50), em: Revista do Departamento de História, Belo

Horizonte, FAFICH-UFMG , n.4, 1987, p.85-99. 11 , Ver André Figueiredo Rodrigues, Um potentado na Mantiqueira: José Aires Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 2002.

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Sabará, morreram milionários com o comércio, foram ter às Minas para vender fazendas e comestíveis aos mineradores. Quando a mineração caiu irreversivelmente, ocorreu, por um lado, a diáspora mineira e, por outro, a ruralização profunda da região. A nomenclatura da capitania, depois província e hoje estado, acusa o nexo profundo da economia, e é bom lembrar que, no Brasil, só Minas Gerais derivou o nome da atividade econômica principal: a cana-de-açúcar, o café ou o gado não foram capazes de nomear as regiões onde mais se desenvolveram. O ouro, pois, marcou indelevelmente a velha capitania: mais do que à agricultura, é a ele que se deve a identidade colonial da região. A capitania de Minas Gerais foi um de meus principais objetos de estudo durante quase 30 anos. Protegida pelo âmbito regional, ensaiei os primeiros passos de historiadora e fui ganhando familiaridade com os problemas complexos que essa prática impõe. Entretanto, a fase aberta com Desclassificados foi-se fechando, e vejo-me agora envolvida com preocupações muito diferentes. Por todos esses motivos, deixo aqui o mesmo livro publicado em 1982. Cabe ao leitor julgar sobre o interesse que ele ainda possa ter, e suplantar as lacunas que ele certamente não preencheu.

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, AGR ADECIMENTOS

Este trabalho foi possível devido ao auxílio de amigos, de colegas, ao interesse que por ele manifestaram pessoas com as quais até então eu nunca tivera contato. As sugestões feitas por elas, o apoio recebido acham-se presentes nestas páginas, e a todas deixo aqui meu reconhecimento. Nos arquivos em que trabalhei, encontrei compreensão e espírito de solidariedade por parte dos funcionários; ao lado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que com uma bolsa de mestrado me possibilitou trabalhar dois anos e meio em regime de dedicação integral, eles foram os responsáveis pelas condições materiais que viabilizaram a pesquisa. Sem querer hierarquizar meus débitos, gostaria de mencionar especialmente cinco amigos: Fernando A. Novais, que durante todos esses anos me deu o privilégio de sua orientação; Maria Inês e Sílvio de Mello Carvalho, que com sua acolhida encantaram minhas estadias mineiras; Samir Curi Meserani, que abriu espaço em sua casa para que eu pudesse ali instalar um escritório de emergência; Sérgio Buarque de Holanda, que acompanhou a pesquisa com generosidade e o interesse que o caracterizavam, enriquecendo-a inestimavelmente com conversas e observações. A ele, este livro é dedicado.

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, ABR EVIAÇÕES

1. Arquivos APM \ Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte. Foram utilizados códices (= cód.) de duas seções: SC \ Seção Colonial CMOP \ Câmara Municipal de Ouro Preto AEAM \ Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Mariana. 2. Publicações ABN \ Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. DH \ Documentos Históricos, Rio de Janeiro. DI \ Documentos interessantes para a História e Costumes de São Paulo, São Paulo. HAHR \ Hispanic-American Historical Review. RAPM \ Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte. RBEP \ Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte. RH \ Revista de História, São Paulo. RHMC \ Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris. RIHGB \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. RIHGMG \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte. RSPHAN \ Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro.

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INTRODUÇÃO

, PROBLEMAS E OPÇÕES

Além de tantas outras viradas bruscas, os anos 1960 e 1970 do século XX revelaram um interesse súbito pelas minorias, pela marginalidade, pela exclusão – a tal ponto que, no futuro, ao lado da revolução comportamental, do movimento estudantil, da incorporação (latu sensu) do Oriente, talvez fique este súbito interesse dos estudos acadêmicos pelo louco, pelo criminoso, pelo mendigo, pelo migrante miserável que o capitalismo selvagem dos países latino-americanos despejou sobre os seus principais centros urbanos. Objeto de estudo recentemente incorporado ao repertório temático da Universidade, o marginal carecia, entretanto, de estatuto teórico. Como definir um elemento que pertence e não pertence à sociedade, que é parte e negação do sistema, enfim, que vive a cavaleiro de dois mundos, na encruzilhada de vários caminhos? No que difere dos outros, dos não-marginais, e no que lhes é semelhante? Os sociólogos latino-americanos debruçaram-se detidamente sobre a marginalidade – Nun, Quijano, Murmis, Veckemans, Kowarick, Berlinck, para citar apenas alguns –1 e algumas instituições 1 , Aliás, no conjunto da produção cientifica sobre marginalidade, é interessante destacar o papel e o vulto dos estudiosos latino-americanos, para quem o problema é especialmente vivo e doloroso. Alguns exemplos: Manuel Berlinck, Marginalidade social e relações de classe em São Paulo: Petrópolis, Vozes, 1975; Lúcio F. Kowarick, Capitalismo e marginalidade na América Latina, Rio de Janeiro: Paz e Terra 1975; José Nun, Superpoblación Relativa, Ejército Industrial de Reserva y Masa Marginal , em: Revista Latinoamericana de Sociologia, julho, 1969; Aní-

bal Quijano, Polo Marginal de la Economia y Mano de Obra Marginada , Lima, 1971; A. Quijano, Notas sobre el Concepto de la Marginalidad Social. Santiago, 1971; Roger Veckermans, Marginalidad y Pleno Empleo, Santiago, 1970; R. Veckermans, Una estrategia para la miseri ”, Santiago: DESAL , 1967 e ainda: Marginalidad, incorporación y integración, Santiago: DESAL , Boletin n.37, 1967.

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também privilegiaram esse campo de estudo, como a CEPAL e a DESAL . Além da questão do marginal na sociedade, surgiram debates cujo articulador comum foi a questão do “exército de reserva”.2 Por mais que surgissem discordâncias e aflorassem contradições, imprecisões e dificuldades, o conceito foi despido do psicologismo com que o revestiu um de seus progenitores, Stonequist,3 e tornou-se definitivamente dependente das formulações feitas por Marx em O Capital.4 Não era mais possível compreender o processo de marginalização sem pensar na expropriação, na acumulação primitiva, na constituição da mão-de-obra para a indústria e, uma vez configurada a sociedade industrial, na função do exército de reserva enquanto elementos de contenção salarial. A sociedade industrial contemporânea é, pois, o cimento comum de tantas interpretações diferentes. Entre os historiadores, o problema se delineou de modo diverso. Mendigos, vagabundos, marginais em geral têm sido estudados – ou pelo menos mencionados – já há muitos anos, mas só recentemente é que se tornaram uma espécie de febre acadêmica.5 Infelizmente, a indefinição do objeto é incomparavelmente maior entre os estudos de História do que entre os de Ciências Sociais, atingindo níveis quase insuportáveis. Os colóquios ou edições coletivas surgidos re2 , Fernando Henrique Cardoso, Comentário sobre os conceitos de superpopulação relativa e marginalidade , em: Sobre teoria e método em Sociolo-

gia, CEBRAP : São Paulo, 1971. 3 , E. V. Stonequist, O homem marginal, (1937), trad., São Paulo, 1948. 4 , Karl Marx, O Capital, Rio de Janeiro, 1975, livro 1, v.2, c. XXIII . 5 , Entre os precursosres nesse campo: Ribbon Turner, A History of Vagrants and Vagrancy, and Beggars and Begging, Londres, 1887; C. Paultres, De la Répression de la Mendicité et du Vagabondage en Frances sous l'Ancien Régime, Paris, 1907; W.H. Dawson, The Vagrancy Problem, Londres, 1910. Mais recentemente destacam-se as seguintes obras: Eric J. Hobsbawn, Primitive Rebels – Studies in Archaic Forms of Social Movement in the 19th and 20th Century. Londres, 1959; e ainda: Bandits, Londres, 1969; J. R. Poynter, Society and Pauperism – English Ideas on Poor Relief, 1795 – 1834, Londres-Toronto, 1969; José Luís Alonso Hernandez et al., Culture et

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centemente refletem essa indefinição, o conceito de marginalidade apresentando elasticidade suficiente para abrigar feiticeiras, alquimistas, loucos, seres monstruosos, autores tratados de oniromancia, pícaros, mendigos (falsos e verdadeiros), vagabundos, indígenas, “hippies”, “apaches”.6 De onde começa a surgir outra discussão: marginal seria antes o insólito, o exótico, do que o elemento vomitado por uma ordem incapaz de o conter? O marginal seria aquele que, deliberadamente, se coloca à margem, ou o que é colocado à margem? Mais ainda: porque não entender o marginal como o que está mal integrado na sociedade? Em outras palavras: o que está mal classificado? Atendo-se frequentemente ao estudo dos canais institucionais, dissociando marginalidade e pobreza, esses estudos pouca luz lançam sobre o conceito, e, se comparados aos estudos dos sociólogos, apresentam um nível de articulação bastante inferior, dada a heterogeneidade dos períodos abordados. Não há, para uni-los, um substrato comum, e o problema de especificidade histórica faz com que o elemento mal aceito num dado contexto possa perfeitamente sê-lo em outro. Daí a enorme gama de categorias abarcadas pelo conceito que, nessa variedade, acaba por se esvaziar e perder o sentido: um conceito que é tudo ao mesmo tempo acaba não sendo rigorosamente nada. Outro vicio curioso presente nos estudos historiográficos da marginalidade é a omissão constante – talvez, reMarginalités au XVI Siécle, Paris, 1973; Olwen H. Hufton, The Poor of Eighteenth Cenury France – 1750-1789, Oxford, 1974; Pierre Deyon, Le Temps des Prisions, Paris, 1975; Guy-H. Allard et al., Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d.; Douglas Hay et al., Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century England, Londres, 1975; Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens au XIV et XV siècles, Paris 1976; Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval,

Paris, 1976; Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978; vários, Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979. Há ainda inúmeros artigos nas revistas especializadas. 6 , G. Allard (org.), Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d. Vários, Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 10-18, 1979.

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cusa sistemática – em incorporar as boas contribuições dos estudos sociológicos modernos, o que os acaba levando a delírios empíricos pouco frutíferos. Nesse contexto, não chega a provocar assombro a constatação final de Michel Mollat, grande autoridade francesa em história da marginalidade que, de uma vez por todas, decidiu pela perenidade da Pobreza.7 A partir dessas constatações, o conceito de marginalidade usado pelos sociólogos ganha nova configuração: mesmo quando vago e impreciso, essas características não chegam a incomodar muito, nem a escamotear a verdadeira natureza do conceito, que é a sua historicidade. De fato, parece difícil – para não dizer impossível – dissociá-lo da sociedade industrial que o engendrou, e bastante problemático aplicá-lo a realidades históricas que não sejam as da industrialização, como é o caso deste trabalho, que tem por objeto os desclassificados sociais da mineração no período colonial. Já desclassificado social é uma expressão bastante definida. Remete, obrigatoriamente, ao conceito de classificação, deixando claro que, se existe uma ordem classificadora, o seu reverso é a desclassificação. Em outras palavras: uns são bem mais classificados porque outros não o são, e o desclassificado só existe enquanto existe o classificado social, partes antagônicas e complementares do mesmo todo. Nesse contexto, é impossível pensar em desclassificação social sem pensar na vinculação que esta oferece com o nível infra-estrutural, parte fundante do processo de desclassificação. Contrariamente ao que acontece com o conceito de marginalidade conforme tem sido empregado por historiadores, não há, neste modo de ver, amplitude ilimitada nem dissociação entre marginalidade e pobreza, entre o fenômeno e aquilo que o engendrou. Além disso, fica clara a

7 , A misericórdia pode mudar de nome e de face; sua natureza continua sendo a Caridade, perene como a Pobreza”, Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age, Paris, 1978, p.359. Ressalva seja feita aos excelentes trabalhos do historiador polonês Bronislaw Geremeck, dentre os quais destaca-se Les Marginaux Parisiens au XIVe et XVe siècles, Paris, 1976.

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orientação subjacente: não é qualquer não-inserção que conta – a da feiticeira, a do louco, a do oniromancista, todas elas circunstanciais e episódicas –, mas a não-inserção motivada por dados estruturais: a pobreza torna-se, assim, o primeiro – mas não o único – dentre os agentes desclassificatórios. Marginalidade pode ainda fazer pensar em algo que se separa de um todo uniforme, constituído, no caso, pela sociedade. Já desclassificação sugere a exterioridade ante a classificação e o distanciamento em face de um todo heterogêneo e diversificado. Outro ponto favorável ao emprego do conceito de desclassificação social como adequado ao tratamento da realidade colonial é o fato da sociedade de então apresentar-se definida em termos estamentais, ou seja, de status, de honra (o que remete a classificação) e de, ao mesmo tempo, atravessar um processo de constituição de classes (o que remete a desclassificação). Assim, os dois princípios antagônicos e convergentes da classificação e da desclassificação conviviam no seio da sociedade colonial. O objeto de estudo desta pesquisa será, pois, definido, de agora em diante, como desclassificado social. A sua dimensão espaço-temporal é a região de Minas Gerais no século XVIII . O objetivo máximo é a compreensão dos processos que levam ao seu engendramento e à sua posição no seio da sociedade colonial. O desclassificado social é um homem livre pobre – frequentemente miserável –, o que, numa sociedade escravista, não chega a apresentar grandes vantagens com relação ao escravo. Objeto de estudo bastante problemático, não costuma povoar as preocupações dos nossos pesquisadores. Excetuando-se o período republicano, – cujos estudiosos se voltam cada vez mais para a história da classe operária nacional –, torna-se difícil reunir títulos que tratem especificamente das populações pobres. O grande marco neste assunto continua sendo Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, estudo magistral sobre os homens livres do Vale do Paraíba nas suas relações com o poder e com a economia mercantil. E para frisar o atraso que apresentamos neste campo, é preciso não esquecer que foi Caio Prado Jr. Quem até hoje – tendo-

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-se passado quase 40 anos – melhor colocou o problema do papel da “camada intermediária” na nossa história.8 Como explicar essa ausência? Difícil não colocar a questão em termos ideológicos, mesmo porque o tratamento tangencial dado pelas grandes obras historiográficas às populações pobres assim o exige. Em seu clássico Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre fornece um exemplo modelar desse procedimento. Preocupado com a família enquanto unidade básica da colonização, nega a importância que porventura apresentasse a colonização por indivíduos – “os soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristãos-novos fugidos à perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira” –,9 afirmando não terem estes elementos deixado traço algum na “plástica econômica” do Brasil. Ora, entre muitos outros, Emília Viotti da Costa e Raymundo Faoro apontam a existência de elementos socialmente desclassificados desde os primórdios de nossa colonização; a primeira analisando as penas de degredo e relativizando a noção de crime; o segundo indicando a imagem paradisíaca da colônia que o estamento dominante em Portugal divulgava entre a arraia miúda como chamariz de gente.10 Essa extrema reserva com relação às camadas pobres encontram uma explicação – mesmo que esfarrapada – na natureza da documentação dos nossos arquivos, abundantes em fontes oficiais e extremamente pobres em fontes coletivas – as sources massives dos franceses. Realmente, são poucos e bastante danificados os documentos relativos a assentos de nascimentos, óbitos, casamentos – sem falar na documentação que, de uma forma ou de outra, deixava entrever o modo de vida dessa gente. Este problema se agrava para 8 , Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo, (1942), 13.a ed., São Paulo, 1973. Especialmente a parte intitulada Vida Social . 9 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala 9a ed. Rio de Janeiro, 1958, p.25. 10 , Emília Viotti da Costa, Primeiros povoadores do Brasil , em: Revista de História, n. 27, 1956, p.3-22. Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2a ed., Porto Alegre, 1974.

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o Brasil colonial, onde os indivíduos alfabetizados eram pouquíssimos e a situação social se achava bastante complicada pelo escravismo: como esperar registro escrito de mestiços miseráveis, de forros recém-egressos da escravidão, de “caribocas” e “carijós” que vagavam pelos engenhos e pelas lavras? O historiador só pode trabalhar com documentos que existem: não pode inventá-los, mas pode re-inventá-los, lê-los com novos olhos. Um documento oficial pode conter dados sobre camadas sociais que não entravam na cogitação das pessoas que, durante séculos, procuraram nele informações sobre administração ou política. Para esta pesquise, utilizei não só a documentação oficial – a correspondência administrativa das autoridades – como documentos que vem sendo publicados pela Revista do Arquivo Público Mineiro há quase cem anos. Consultei também documentos publicados por outras revistas, e uma grande parte desta pesquisa é composta por manuscritos lidos no próprio Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, e no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, em Mariana, onde, aceitando o desafio colocado pelo tema, procurei levantar as fontes coletivas disponíveis, trabalhando assim com assentos de prisões, autos de querelas e de devassas, estas tanto civis como eclesiásticas. As Memórias – publicadas, na sua maior parte entre os anos 80 do século XVIII e o início do século XIX –, as estatísticas e os escritos dos viajantes dos primeiros vinte anos do século XIX completam o quadro documental. A sugestão do cenário – economia do ouro – veio com a leitura de Caio Prado Jr, que associa o aumento da camada intermediária colonial à evolução “por arrancos, por ciclos, em que se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruina”,11 e que, sendo característica da história econômica da colônia, teria atingido sua dimensão mais catastróficas e profunda nos distritos da mineração. O ouro dominou todo o nosso século XVIII , lançando raízes no século XVII e apresentando ecos ainda no século XIX . Tratava-se, portanto, de um largo espaço de tempo, o que impunha de imediato 11 , Caio Prado Jr., ob. cit., p.286.

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o problema da periodização: como dar conta, numa pesquisa, de mais de cem anos? Já se tem dito com frequência que a periodização não deve ser apenas cronológica, mas também lógica. A história de um movimento social deve, dada a própria natureza do tema, apresentar uma circunscrição cronológica bastante rígida, permitindo, quando muito, uma margem de oscilação para o delineamento de seus antecedentes e de suas decorrências. Quando se trata, contudo, de traçar o painel de um processo, não há como evitar os largos espaços de tempo. O mesmo se dá para um trabalho que busca a compreensão de uma camada social em toda a sua complexidade, o que só pode ser conseguido através da compreensão do seu processo de constituição. Assim, a análise dos desclassificados sociais só poderá ser bem-sucedida se iluminada pela percepção do processo de desclassificação que os engendra. EM artigo intitulado “Periodização da História de Minas”,12 Francisco Iglésias propõe duas periodizações – uma, com ênfase no político, outra com ênfase no econômico – a serem cruzadas para se poder obter uma periodização final, mais correta. Com base no primeiro critério, distingue sete momentos – dos primórdios aos dias atuais –, dos quais apenas três dizem respeito ao período abrangido por esta pesquisa: dos primeiros tempos a 1693 – época das entradas para o sertão e dos primeiros descobertos do ouro –; de 1693 a 1720, quando impera a instabilidade da ordem, o aventureirismo e as rebeliões; de 1720 a 1822, período marcado pela urbanização, pela instalação da máquina administrativa e pelo pico e declínio da mineração.13 Levando em conta o segundo critério, a periodização se apresenta um pouco diferente: são quatro os momentos destacados, dos quais cabe mencionar os dois primeiros: 1693-1770, surgimento, esplendor e declínio da atividade mineratória, e 1770-1830, quando o declínio da mineração norteia a busca de outra atividade.14 12 , Francisco Iglésias, Periodização da História de Minas Gerais , in: Revista Brasileira de Estudos Políticos, v.29, julho de 1970. 13 , Ibid, p.188.

Retomando esta periodização, e levando adiante a sua proposta, o marco inicial adotado nesta pesquisa foi 1693, ano em que se criou a capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, sendo Antonio Pais de Sande designado para governá-la. 1805 foi a data escolhida para fechar aproximadamente o período, uma vez que a decadência da atividade mineradora e suas consequências já podiam ser então adequadamente avaliadas; aliás, 1804 e 1805 são os anos de publicação de duas memórias significativas sobre o estado da miséria da capitania: respectivamente, a de Azeredo Coutinho e Basílio Teixeira de Saavedra.15 Entre um e outro marco, alguns momentos se destacam como especialmente significativos pelas transformações estruturais que acarretam: 1709, término da Guerra dos Emboabas, nomeação de Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho para o governo da capitania e primeira grande investida da Coroa no sentido de estabelecer sua autoridade na zona mineradora, de que a separação entre as capitanias de São Paulo-Minas e Rio de Janeiro será uma consequência direta, como o seria também o início oficial do movimento urbanizador (1711); 1720, ano da revoltada frustrada de Felipe dos Santos, violentamente sufocada por Assumar que, então, se torna o primeiro governador da capitania independente de Minas, fechando o período conturbado dos primeiros descobertos e inaugurando a fase de autoridade consolidada; 1732-1736, marcado pelo apogeu aurífero que a festa do “triunfo Eucarístico” reflete, e pelo 14 , Ibid, p.192. 15 , Cf. J. J. Da Cunha de Azeredo Coutinho, Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil (1804), em: Obras economicas..., introd. de Sérgio Buarque de

Holanda, São Paulo, 1966, p.187-229. Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Gerais , em: Revista do Arquivo Público Mineiro, v.II , 1897. À

p.673, o seguinte trecho: “A capitania de Minas Gerais, que fez as grandes riquezas dos felizes Reinados do Senhor D. João o 5º e do Senhor D. José 1º de feliz memória, se acha em estado de pobreza, e de miséria; a abundancia das suas minas se fez sensível no abatimento do valor da moeda da Europa inteira, foi inveja de muitas nações, e este País se acha agora num extremo de miséria”.

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início do Governo de Gomes Freire de Andrada, uma das maiores figuras do império colonial português; 1748-1752, quando a festa do “Áureo Trono Episcopal” marca o início da decadência, expressa também no fim do imposto da capitação e na isenção da penhora para os senhores de lavras com mais de 30 escravos; 1788-89, quando os colonos mineiros exprimem seu descontentamento ante a situação econômica e política através da Inconfidência. Composta a cronologia – sempre tão importante para qualquer trabalho de História –, é preciso ir além dela. E endossar, para a análise da desclassificação social nas Minas do século XVIII brasileiro, o procedimento teórico proposto por R. Nardeau e C. Panaccio na conclusão do colóquio canadense sobre marginalidade, e que os estudiosos do assunto raramente adotam: “Parece-nos importante reconhecer que a análise da marginalidade é sempre função de uma rede de relações, e que não poderia se limitar a uma simples descrição neutra de objetos empíricos reais tomados em si mesmos.”16

16 , R. Nardeau e C. Panaccio em: G. Allard, ob. cit., p.168.

I

, O FALSO FAUSTO E apesar de tudo o que se expõe, e que tanto conspira para se julgarem estas minas as mais pobres, e desgraçadas das que vivem em sociedade; não é tão fácil afirmar delas este conceito, não se olhando mais que para o seu desmarcado comércio de importação, e vendo ao longe por entre a escassa luz de narrações adulteradas o seu luxo descomedido. Mas se atentar qualquer para o modo por que vivem e comerciam os vassalos de Sua Majestade neste país, verá que o ordinário deles pensa mal, e olha tão-somente para uma falsa reputação, e trabalha por um falso brilhante no que pertence aos seus que início ­de ­s­­de­longe quer se lhe atribuam: pretendendo, à imitação dos cômicos e figuras teatrais, fingir com palhetas douradas ouro maciço, e com vidros lapidados preciosa pedraria. Representação da Câmara de Mariana, 1789.

, Em 1733, houve em Vila Rica uma festividade religiosa que re-

tirou o Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário e o conduziu triunfalmente para a Matriz do Pilar. O acontecimento ocorreu no dia 24 de maio, mas foi antecedido por um longo período de preparativos, desde a proclamação oficial da festa até os “seis dias sucessivos de luminárias” que precederam imediatamente a procissão. Esta se achava programada para ter lugar no dia 23, sábado, que amanheceu sereno e assim continuou até o momento em que a cerimônia deveria ter início. Foi então que, súbita e inexplicavelmente, “os desejos de todo o concurso” foram esvanecidos por uma chuva repentina, “muda voz do Céu” que provocou o adiamento da festa para o dia seguinte. As janelas foram adornadas com colchas de seda e damasco, e as ruas se enfeitaram com arcos, para além dos quais foi montado um altar “para descanso do Divino Sacramento, e deliberado ato da

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pública veneração”. Completavam o quadro muitas flores, aromas e uma verdadeira explosão cromática, tudo isto segundo o testemunho de Simão Ferreira Machado, autor do Triunfo Eucarístico, texto em que a trasladação é narrada. Parece não ter tido limites a pompa então presenciada por Vila Rica: danças, alegorias, cavalhadas, figuras a cavalo representando os Quatro Ventos, todos luxuosamente vestidos e enfeitados com pedras preciosas. O bairro de Ouro Preto, onde se situava a Matriz, também foi representado, ao lado da Lua, das Ninfas, de Marte, de Vênus, de Mercúrio, de Júpiter, do Sol, da Estrela d'Alva e da Vespertina, entre muitas outras figuras. O Conde das Galvêas, governador de Minas, assistiu às festas juntamente com “toda a Nobreza, e Senado da Câmara”, e Simão Ferreira Machado diz não haver lembrança “que visse o Brasil, nem consta, que se fizesse no América ato de maior grandeza”. E continua o autor se dentre os povos os portugueses se destacam pelos seus atos admiráveis, “agora se vêm gloriosamente excedidos dos sempre memoráveis habitadores da Paróquia do Ouro Preto”, que com “majestosa pompa e magnífico aparato” transladaram o Santíssimo da Igreja do Rosário para a nova Matriz do Pilar.1 Minas estava então no seu apogeu. Vila Rica era, “por situação da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas a pérola preciosa do Brasil”.2 Os diamantes tinham sido descobertos havia pouco, e em 1729 D. Lourenço de Almeida comunicara oficialmente à Coroa o seu achado. O Fisco lançava vistas gordas sobre o ouro e preparava o terreno para estabelecer a capitação, o que seria feito em 1735. Os primeiros resultados da ação do aparelho administrativo – cujas bases Antonio de Albuquerque Coelho de 1 , Cito a publicação fac-símile feita por Affonso Ávila em Resíduos Seiscentistas em Minas – textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Belo Horizonte, 1967, v.1. As passagens citadas encontram-se entre as páginas 131-283, sendo estas referentes à numeração original. 2 , Prévia Alocutória ao Triunfo Eucarístico, em: Affonso Ávila, ob cit. v.1, p.s25.

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Carvalho plantara em 1711 – começavam a aparecer, e a inquieta sociedade mineradora dos primeiros tempos já se apresentava mais acomodada. As festas e as procissões religiosas contavam entre os grandes divertimentos da população, o que se harmoniza perfeitamente com o extremo apreço pelo aspecto externo do culto e da religião que, entre nós, sempre se manifestou.3 Mais do que expressão de uma religiosidade intensa, a festa religiosa era um acontecimento que propiciava o encontro e a comunicação; aliás, este seu aspecto acabava, muitas vezes, por sobrepujar os eventuais anseios místicos, como deixa entrever o último bispo mineiro do período colonial, Frei Cipriano de São José, ao retratar a romaria do Senhor Bom Jesus de Matosinhos: “... tal era a confusão e tão descomposto o tumulto, que a capela de Matosinhos mais parecia praça de touros que Igreja de fiéis”.4 Atrelando-se à tradição exaltatória do mito edênico que caracteriza a crônica colonial,5 o Triunfo Eucarístico retrata muito bem o estado de euforia da sociedade mineradora numa festa “mais de regozijo dos sentidos do que propriamente de comprazimento espiritual”.6 O que está sendo festejado é antes o êxito da empresa aurífera do que o Santíssimo Sacramento, e nessa excitação visual caracteristicamente barroca, é a comunidade mineira que se celebra a si própria, esfumaçando, na celebração do metal preciso, as diferenças 3 , As festividades religiosas absorviam recursos extraordinários. Boxer diz que, como as Câmaras da Metrópole, as da colônia esbanjavam dinheiro nessas festas, ficando sem fundos para seus encargos costumeiros (conservação de estradas e pontes etc.). A Câmara de Lisboa teria ido à bancarrota com festa de Corpus Christi de 1719. The Portuguese Seaborne Empire, Londres, 1969, p.282-3. Portuguese Society in the Tropics – the Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda – 1510-1800, Madison, 1965, p.143. Para as festividades religiosas na Bahia, ver p.89-91 4 , Segundo José Ferreira Carrato, Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais, São Paulo, 1968, p.37. 5 , A observação é de Affonso Ávila em O lúdico e as projeções do mundo barroco, São Paulo, 1971, p.114. 6 , Affonso Ávila, ob. cit., p.117.

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sociais que separam os homens que buscam o ouro daqueles que usufruem do seu produto. A festa tem, assim, uma enorme congraçadora, orientando a sociedade para o evento e a fazendo esquecer da sua faina cotidiana; é o momento do primado do extraordinário – o sobrenatural, o mitológico, o ouro – sobre a rotina. No momento de sua maior abundância, é como se o ouro estivesse ao alcance de todos, a todos iluminando com o seu brilho na festa barroca. O ano de 1748 corresponde a outro grande momento de efusão barroca: a festa do Áureo Trono Episcopal, que celebra a criação do Bispado de Mariana. Na verdade, a criação se dera em 1745, sendo designado D. Frei Manuel da Cruz, então bispo do Maranhão, para ocupar o cargo pela primeira vez. O prelado deixaram a sua antiga diocese em agosto de 1747, empreendendo uma fantástica travessia dos sertões que só terminaria em outubro de 1748, “vencendo doenças, perigos e privações, confortando religiosamente as almas largadas no imenso vale do São Francisco, escassas populações que desconheciam a assistência regular da Igreja e que acorriam das partes mais remotas daqueles sertões em busca de bênçãos e sacramentos que o bispo ia distribuindo em sua passagem”.7 Sabendo que a sua chegada provocaria festividades e gastos excessivos, o bispo procurou evitar que se ventilasse a notícia, pois, segundo um cronista anônimo, o ouro já estava em decadência.8 Não se sabe se o bispo agiu assim por prudência ou se recebeu ordens das autoridades metropolitanas. O fato é que a festa não pôde ser evitada e, como a do Triunfo Eucarístico, foi extremamente luxuosa. 7 , Affonso Ávila, Resíduos seiscentistas..., p.27. 8 , “... mas foi com o desígnio oculto de não o avisar, senão na véspera de sua chegada, para não dar lugar aos excessivos gastos de pompa, e lustre, com que os habitantes daquele dourado Empório da América costumam ostentar-se em semelhantes funções, sem embargo de ser tanta a decadência do mesmo país, que por acaso se acha nele quem possa com o dispêndio necessário para a conservação da sua pessoa, e fábricas”. Áureo trono episcopal, p.35. O grifo é meu. Cito pela edição fac-símile de Affonso Ávila. 9 , Triunfo eucarístico, p.97.

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Se o texto da festa de 1733 fala de pretos e pardos enquanto integrantes de Irmandade próprias9, o Áureo Trono Episcopal, retratando os pajens mulatinhos, “iguais na estatura” e luxuosamente ataviados com sedas, fitas, ouro e diamantes, procura integrar esses elementos na sociedade, fazendo deles os acompanhantes de uma das figuras principais.10 Há ainda referência a uma dança indígena executada por mulatinhos, que assim faziam as vezes do gentio da terra.11 Mais do que o ouro, é aqui a sociedade mineradora o principal protagonista: uma sociedade que já se assentara razoavelmente e que passava a contar com sua própria sede eclesiástica. Mas se o caráter de acampamento aurífero não mais persistia, se as casas começavam a se requintar e as vilas ganhar edificações, o ouro escasseava. Neste mesmo ano de 1748, terminavam as obras do Palácio dos Governadores em Vila Rica, ampliava-se o antigo palácio do Conde de Assumar na cidade Mariana, onde também se construiria, no ano seguinte, o primeiro chafariz de repuxo, um e outro empreendimento fazendo parte da reformulação urbanística então sofrida pela cidade mineira.12 A capitação dos escravos e o censo das indústrias renderia, entre 1735 e 1751, pouco mais de 2.066 arrobas – 10 , Áureo tronco..., p.100-1 11 , “Seguia-se às sobreditas figuras uma dança de Carijós, ou gentio da terra. Era esta ajustada de onze mulatinhos de idade juvenil, nus de cintura para cima, a qual cingiam várias plumas cinzentas caídas até os joelhos, formando saiote; rodeavam as cabeças penachos das mesmas plumas, e outros cingidos de papel pintado, e latas crespas; nos braços e nas pernas tinham várias prisões de fitas, maravilhas, e guizos; na variedade das mudanças usavam de uns arcos, com que formavam diversos enleios, cantando ao mesmo tempo célebres toadas ao som de tamboril, flautas e pífaros pastoris, tocados por outros carijós mais adultos, que na grosseria natural dos gestos excitavam motivo de grande jocosidade.” – ob.cit., p.108-9. 12 , Dados levantados em Carrato, ob.cit. Mariana é a única cidade de Minas Gerais no século XVIII , as demais aglomerações urbanas sendo vilas e arraiais. 13 , Fonte: J.J. Teixeira Coelho, Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais , RAPM , v. VIII , p. 495.

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rendimento máximo até então alcançado –, 13 mas a decadência já era sensível e só por acaso encontraria o observador alguém capaz de arcar com o “dispêndio necessário para a conservação da sua pessoa e fábricas”.14 Tudo leva a crer ter sido este o momento em que se encerrou o apogeu e começou, lentamente, a decadência, que os anos 1770 presenciaram já evidente e palpável. As duas festas barrocas serviriam, assim, para periodizar o período áureo das Minas, constituindo uma e outra dois grandes monumentos ao luxo e à ostentação. Endossando-se a ideia de que a festa funciona como mecanismo de reforço, de inversão e de neutralização,15 teríamos no Áureo Trono a ritualização de uma sociedade rica e opulenta – reforço – que procura, através da festa, criar um largo espaço comum de riqueza – riqueza que é de poucos mas que o espetáculo luxuoso procura apresentar como sendo de muitos, de todos, desde os nobres senhores do Senado até o mulatinho e o gentio da terra. O verdadeiro caráter da sociedade é, aqui, invertido: a riqueza já começava a sumir, mas aparece como pródiga; ela era de poucos, e aparece como de todos. Por fim, a festa cria uma zona (fictícia) de convivência, proporcionando a ilusão (barroca) de que a sociedade é rica e igualitária: está criado o espaço da neutralização dos conflitos e diferenças. A festa seria, como o rito, um momento especial construído pela sociedade, situação surgida “sob a égide e o controle do sistema social”, e por ele programada.16 A mensagem social de riqueza e opulência para todos ganharia, com a festa, enorme clareza e força persuasória. Mas a mensagem viria como que cifrada: o barroco se utiliza da ilusão e do paradoxo, e, assim, o luxo era ostentação pura, o fausto

14 , Este documento foi citado à nota 8.

15 ,Cf. Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis, Rio de Janeiro, 1979, capítulos 1, 2 e 3. 16 , Roberto da Matta, ob.cit. p.56. 17 , José Veríssimo Álvares da Silva, Memória Histórica sobre a Agricultura Portuguesa , segundo Fernando Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo

Sistema Colonial, São Paulo, 1979, p.205. O autor citado faz estas considerações sobre a realidade metropolitana, na época dos descobrimentos.

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era falso, a riqueza começava a ser pobreza e o apogeu, decadência. “Em tal abundância, quem poderia ver, começamos a ser pobres”.17 Em 1789, a Representação da Câmara de Mariana acusava a percepção de que os espetáculos teatrais usam de artifícios para induzir o espectador a uma falsa consciência, fazendo as palhetas douradas passarem por ouro maciço e os vidros lapidados por preciosa pedraria. O que subjaz a este documento extraordinário é a ideia do paradoxo, do fausto que é falso, ideia que pode ser rastreada ao longo de todo o século XVIII mineiro. O grande paradoxo inicial é o signo da fome que marcou o nascimento das minas de ouro. O nobre metal – cuja “figura”, segundo Domingos Vandelli, aparece “em pó, em pequenas lâminas, em grãos angulares em cristais quadrangulares, octógonos, e piramidais, em laminas aplicadas às vezes uma em cima da outra; ou se acha também algumas vezes em pedaços, como fundidos” –18 provocou um afluxo formidável de gente, não só da Metrópole como das capitanias vizinhas. Da praça de Santos fugiam soldados em busca de riqueza das Minas, o mesmo acontecendo com os da guarnição do Rio de Janeiro, que, em troca da defesa da cidade, recebiam o soldo e uma ração diária de farinha.19 Durante os 60 primeiros anos do século XVIII , a corrida do ouro provocou na Metrópole a saída de aproximadamente 600 mil indivíduos, em média anual de 8 a 10 mil indivíduos.20 Em 1730, o governador do Rio de Janeiro 18 , Domingos Vandelli, Memória III. Sobre as minas de ouro do Brasil , ABN , XX , 1898, p.267.

19 , Carta da rainha ao governador da praça de Santos – 27-IX-1704, DI , n.XVI , 1895, p.37-8; Carta régia estabelecendo providências a fim de se

evitar a deserção de soldados da guarnição do Rio de Janeiro para as Minas – 28-III-1711 – DI , v.XLIX , 1929, p.20-2.

20 , Vitorino M. Godinho, A estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa, 1971, p.43-4. Sobre o assunto, diz Caio Prado Jr.: “...um rush de proporções gigantescas que relativamente às condições da colônia é ainda mais acentuado e violento que o famoso rush californiano do século XIX”. – História econômica do Brasil, 11ª ed., São Paulo, 1971, p.64.

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dava notícia de dois navios do Porto “com muita gente, que não se deve apartar deles, antes voltar para o reino, mas o seu desígnio é passar para as Minas, o que intentaram fazer por mil modos”.21 Na expressão já tão conhecida de Antonil, “a mistura” foi “de toda a condição de pessoas”, para desespero das autoridades, que tentavam, a todo custo, refrear a onda migratória.22 Em 1709, era 30 mil o número das pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrícolas e comerciais, sem falar dos escravos vindos da África e das zonas açucareiras em retração.23 Com os olhos voltados para o ouro, improvisando alojamentos numa região deserta – até então, país das “serranias impenetráveis, dos rios enormes, das riquezas minerais, das feras e dos monstros, uma espécie das Hespéridas antigas guardadas por dragões” –,24 pode-se imaginar a fome que assolou essas populações. Os anos de 1697-98 e 1700-01 foram os das maiores crises, quando, ainda na imagem popular de Antonil, os mineiros morriam à mingua “com uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento”.25 A 20 de maio de 1698, em carta ao rei, escrevia Artur de Sá e Menezes, governador da capitania do Rio, São Paulo e Minas:”... é sem dúvida que rendera muito grande quantia, se os mineiros tiveram minerado este ano, o que não lhes foi possível pela grande fome, que experimentaram, que chegou a necessidade a tal extremo, que se 21 , Carta do governador do Rio de Janeiro ao Capitão Francisco Mendes Galvão sobre a tentativa de deserção para as minas de muitos indivíduos recém-chegados do reino...”– 25-X-1730 – DI , v. XLIX , 1929, p.203.

22 , Muitos historiadores mineiros oscilam entre o privilegiamento do componente reinol (baianos) e o do paulista da formação inicial da população mineradora. Salomão e Sylvio de Vasconcellos adotavam a primeira posição, enquanto Diogo de Vasconcellos ressaltava nas suas Histórias o papel do paulista, seguindo a tradição de Cláudio Manuel da Costa. 23 , Boxer, A idade de ouro do Brasil, trad., São Paulo, 1969. 24 , Diogo de Vasconcellos, História antiga de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1904, p.85. 25 , Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas, introd. A. P. Canabrava, São Paulo, 2ª ed., s.d., p.267.

aproveitaram dos mais imundos animais, e faltando-lhes estes para poderem se alimentar a vida, largaram as minas e fugiram para os matos com seus escravos e sustentaram-se das frutas agrestes que neles achavam...”.26 Com a falta de alimentos, as Minas se transformaram no centro de inflação da colônia: o alqueire de milho era vendido por vinte oitavas de ouro; o de farinha, por 32, assim como o de feijão, a galinha alcançava 12 oitavas, e um gatinho ou cachorrinho chegavam a 32; o prato de sal custava 8 oitavas, e quem quisesse fumar teria de pagar 5 oitavas pela vara de fumo. Morria-se de fome, “tapanhunos e carijós, por comerem bichos de taquara, que para os comer é necessário estar um tacho no fogo bem quente, e aliás vão botando os que estão vivos logo bolem com a quentura, que são os bons, e se come algum que esteja morto é veneno refinado”.27 Estes anos foram aqueles em que a fome atingiu os seus limites extremos, e muito povoado foi deixado para trás pelos mineiros. Conhecem-se entre outros, os casos de abandono do Ribeirão do Carmo e da Serra do Ouro Preto, a deserção desta dando origem a muitos outros arraiais; até os fundadores debandaram: o Padre 26 , Segundo Diogo de Vasconcellos, ob.cit. Belo Horizonte, 1904. 27 , Documento do Códice Costa Matoso segundo Mafalda Zemella, O abastecimento da capitania de Minas Gerais, São Paulo, 1951, p.223. 28 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit. p.120 e segs. Para o autor do Diálogo das grandezas do Brasil (1618), o problema da mineração consistia, mais do que em encontrar metais, na dificuldade de alimentar os mineiros. Sugestão feita: “... o primeiro que se devia fazer antes de bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, e como os houvesse em abundância, tratar-se-ia da lavoura das minas; mas isto se faz pelo contrário, porque, se m terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura que tinham começado. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de si”. – Diálogos das grandezas do Brasil, introd. Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia, Rio de Janeiro, 1930, p.63. O autor não está se referindo às Minas Gerais, pois estas ainda não haviam sido descobertas.

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Faria foi para Guaratinguetá, Antonio Dias foi para São Paulo. Passou-se, a partir de então a cultivar roças conjugadas às lavras.28 Procurou-se também atentar mais cuidadosamente para o abastecimento da capitania, suprido pela Bahia – onde eram numerosos os currais – e, a partir da construção do Caminho Novo – terminado em 1725 –, pelas capitanias do Sul.29 A fome nunca mais chegou a ter tal alcance, pois a concentração de riquezas e a crescente estratificação social fizeram com que ela voltasse a atuar no seu círculo costumeiro: o da pobreza. Entretanto, apesar de superado parcialmente o fantasma da fome, apesar da imagem de uma sociedade rica, eufórica e democrática que chegou até nós pelas festas barrocas, tudo indica que as coisas se passaram diferentemente. Por certo, existiram nababos, e a historiografia tradicional fixou a imagem do capitão-mor Antonio Alves Pereira presenteando a Viscondessa de Condeixa – esposa do governador da capitania em 1808 – com uma terrina de canjica aurífera; do contratador dr. João Fernandes de Oliveira mandando construir um lago com navio e tudo para Chica da Silva que não conhecia o mar.30 Mas, em proporção aos que se viam privados dela, a riqueza era distribuída por um número limitado de pessoas.31 A sociedade 29 , Mafalda Zemella, ob.cit. c. III, passim. A autora arrola os gêneros consumidos em 4 categorias: 1) essenciais à subsistência (cereais, sal, açúcar, carne, toucinho); 2) essenciais ao trabalho nas Minas (utensílios de ferro e aço, pólvora, armas, escravos); 3) artigos para vestimenta, mobiliário e artigos domésticos, arreios para animais, cavalgaduras; 4) pinga e tabaco. Cf. p.189-90. 30 , João Domas Filho, O ouro das Gerais e a civilização da capitania, São Paulo, 1957, p.18-23. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1952, p.161-2. 31 , “A nobreza do oficio e a do dinheiro eram evidentemente uma minoria que se concentrava nas vilas ou em suas imediações, nas grandes propriedades rurais, enquanto a massa escrava e os libertos, brancos, pardos ou pretos, todos pés-rapados, constituíam uma imensa multidão de oprimidos pelas extorsões de todos os gêneros”. Augusto de Lima Jr. A capitania das Minas Gerais, 2ª ed., Belo Horizonte-São Paulo, 1978, p.82.

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era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do século XVIII tenham sido grandemente responsáveis por uma manipulação “autoritária” da estrutura social na medida em que uma das visões possíveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade, a que mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a visão de riqueza e de opulência. Dentre os historiadores mineiros, talvez tenha sido Eduardo Frieiro o primeiro a formular conscientemente a crítica a este equívoco, num artigo intitulado “Vila Rica, Vila Pobre”: “Uma das patranhas da nossa história, tal como usualmente se conta nas escolas, é a da pretendida riqueza e até mesmo opulência das Minas Gerais na época da abundância do ouro. Em boa e pura verdade nunca houve a tão propalada riqueza, a não ser na fantasia amplificadora de escritores inclinados às hipérboles românticas. (…) A realidade foi bem diversa. Nem riqueza, nem grandezas. Apenas o atraso econômico e a pobreza, como herança dum desvairamento fugaz, próprio de todas as Califórnias”.32 Na sociedade mineradora – como, de resto, nas outras partes da colônia –, eram privilegiados os elementos que tivessem maior número de escravos. Mais da metade das lavras estavam concentradas nas mãos de menos de 1/5 dos proprietários de negros; o próprio critério de concessão de datas assentava-se na quantidade de cativos possuídos, as maiores extensões indo para as mãos dos grandes senhores. Para estes, o luxo e a ostentação existiram de fato – não como sintomas de irracionalidade, conforme disseram muitos, mas como sinal distintivo do status social, como instrumento de dominação necessário à consolidação e manutenção do mando. Acumulação de escravos e luxo aparecem, aqui, como características de 32 , Eduardo Frieiro, Vila Rica , Vila Pobre , em: O Diabo na Livraria do Cônego – Como era Gonzaga? E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1957, p.164. Numa geração mais recente, Sylvio de Vasconcellos O ouro proclama riquezas, mas os mineradores continuam pobre s” – Mineiridade. Ensaio de caracterização,

Belo Horizonte, 1968, p.30. 33 , O capitalista experimentado controla o seu consumo pessoal. Ja o escravis-

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uma sociedade escravista especifica, própria ao sistema colonial, e indicam o seu caráter extremamente restritivo.33 Poucos foram, pois, nas Minas os grandes senhores de escravos e lavras. Sylvio de Vasconcellos cita documento que calcula em três a média de escravos dos senhores de Rio Acima, sendo que, dos 96 proprietários de São João del Rei, apenas 7 possuíam mais de 12 negros.34 A partir de dados como este, foram feitas inferências sobre a maior distribuição da riqueza na sociedade mineira, que, por sua vez, seria mais democrática. Tentarei mostrar que as coisas se passaram de modo diferente. Em análise recente, Wilson Cano35 contestou com brilho a associação entre a capacidade dinamizadora da economia mineira e a sua alta produtividade. Diz o autor que, apesar de ter gerado efeitos produtivos na economia do sul e desenvolvido a urbanização, o aparelho burocrático e o militar, o ouro não engendrou segmentos produtivos in loco, pois importava-se a maior parte dos meios de subsistência e quase não havia produção interna ou retenção local do excedente produzido. Por outro lado, a pequena necessidade de maquinário condicionou os investimentos maciços em mão-de-obra, originando uma economia de densidade elevada na qual o escravo, utilizado em larga escala, representava grande porcentagem de capital imobilizado. As relações entre os gastos com mão-de-obra e o total de ouro produzido seriam do seguinte teor: total de ouro produzido

644,1 t/ouro

gastos quantificáveis com mão-de-obra

331,2 t/ouro

saldo e gastos não quantificados

312,9 t/ouro

ta assume dividas crescentes, tornando-se dependente do mercador-usurário e se endividando. Jacob Gorender, Escravismo Colonial, São Paulo, 1978, p.432. É em Genovese que se encontra admiravelmente formulada a função do luxo e dos gastos suntuários na sociedade escravista patriarcal. Economia Política de la esclavitud, trad., Barcelona, s.d., p.24-5 34 , Sylvio de Vasconcellos, ob.cit. p.61. 35 , Economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII), em: Contexto n.3, São Paulo, 1977, p.91-109.

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A produção bruta de ouro foi elevada, e Minas representou 70% da produção da colônia no século XVIII (ver tabelas, p.70-5); entretanto, o sistema colonial fez com que o fisco, a tributação sobre os escravos, o sistema monetário implantado e as importações – que se faziam pelo exclusivo de comércio – consumissem a sua maior parte. Deduzidos pelos gastos de compra e manutenção da escravaria e os gastos não quantificáveis, o saldo se tornava negativo. Dado o baixo nível da renda, poucos foram, nestas condições, os que fizeram fortuna. Conforme rareava o ouro, os mineradores se viam impossibilitados de suportar o ônus dos custos de manutenção da escravaria, situação que o mínimo contingente de mão-de-obra voltada para a subsistência não podia contornar.36 Máquina dispendiosa, com pequena capacidade de produzir excedente para sua reprodução, o escravo certamente não seria capaz de engendrar o superexcedente necessário à compra de sua liberdade, o que implica uma revisão das análises das alforrias empreendidas normalmente: estas não teriam sido obtidas através de recompensas pagas a alguma gema ou pepita gigantesca que os escravos encontrassem eventualmente nas lavras, nem com o ouro que, artificiosamente, escondiam na carapinha;37 ela foi, isso sim, a saída possível para os empreendedores, a maneira encontrada para conservar parte do antigo capital. Assim, as alforrias não se deveram à capacidade apresentada pela escravaria em comprar a própria liberdade – o que só poderia ocorrer com a produção de um excedente –; não foram, portanto, conseguidas pelos escravos, e sim concedidas pelos senhores que, com sua decadência das atividades mineradoras, passaram a ter nos gastos com a reprodução da força de trabalho um encargo pesado demais. Como

36 , Segundo os cálculos de W. Cano, 80% da população se dedicava à mineração, os 20% restantes não dando conta da oferta alimentar. 37 , Esta tese é endossada, entre outros, por João Camilo de O. Torres, ob.cit. e Eschwege, Pluto Brasiliensis. 38 , W. Cano, ob.cit. p.103.

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decorrência desse estado de coisas, “sucateava-se compulsoriamente a 'maquina'!”.38 Conclui-se que a economia mineira apresentava baixos níveis de rende distribuídos de uma maneira menos desigual do que no caso do açúcar.39 Mas se a sociedade mineira foi das mais abertas da colônia, essa abertura teria se dado por baixo, pela falta – quase ausência – do grande capital e pelo seu baixo poder de concentração. Daí o número de pequenos empreendedores, daí o mercado maior constituído pelo avultado número de homens livres – homens esses, entretanto, de baixo poder aquisitivo e pequena dimensão econômica. Em suma, levando-se adiante essas considerações, a constituição democrática da sociedade mineira poderia se reduzir numa expressão: um maior número de pessoas dividiam a pobreza. “Copiosas de ouro para os desejos da cobiça”, dadivosas em riquezas, proporcionando a “felicidade da fortuna” e “afluência do ouro” a quem elas recorresse, heis como o Triunfo Eucarístico descreve as terras do ouro. Nelas os homens viviam “com as abundancias do

Maurício Goulart em A escravidão no Brasil – Das origens à extinção do tráfico, 3ª ed., São Paulo, 1975, apresenta interpretação convergente à de Cano: “À medida que perece a empresa, aumenta o número de libertos; já lhes vimos as porcentagens surpreendentes sobre a população, a partir de 1786. Seriam as consequências de problemas íntimos, de remorsos de última hora, de pavor do inferno como castigo da carne. Mas também o eram da situação financeira: valeria mais alforriar os cativos que sustentá-los. A explicação sentimental, decorrente das concubinagens, calha bem para os mulatos; pode chegar sem dissonância até as negras; não explica, porém, a magnanimidade para com os retintos. Atente-se, além disso, no número de forros em 1739 e 1786: lá, a situação próspera, mal passavam de 1,2% sobre a escravaria; eram agora, na vazante, mais de 35%. Não morreriam supersticiosos àquele tempo, seriam menos retas as consciências, ou menor o medo? Nada disso. Apenas, os acertos de contas eram mais onerosos. Gerando prole farta, a concupiscência fora fonte de pecúnia; e quando resgatar pecados ou mestiços chegava a custar 300 oitavas por arrependimento, os acordos com o céu deviam parecer menos urgentes”. p.169.

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ouro”: “os de Portugal pelo comércio participantes, os da América neste Brasil do manancial possuidores; uns e outros persuadidos, que depois das antigas, e sempre sucessivas glórias militares, começavam a contar séculos de riquezas”.40 As opulentas Minas haviam sido agraciadas com “tesouro de riquezas as mais finas”,41 mas os habitantes do Tijuco as viam, em 1738, com olhos diferentes: impedidos pela administração diamantina de minerarem ouro, achavam-se “arruinados e perdidos”; arcados sob o peso de “grandes prejuízos e ruinas”, começaram a desertar para as capitanias vizinhas. Muitos outros acabariam seguindo este exemplo, e, concluíam os autores de uma súplica dirigida a D. João V, “esta comarca, que era uma das mais abundantes e ricas, ficará reduzida a miserável estado”.42 Alusões à pobreza, à ruina, ao abandono a que ficavam relegadas as populações mineradores representam a tônica dominante dos documentos do século XVIII mineiro, sejam eles oficiais ou não. Os dois textos que descrevem as festas barrocas apresentam-se, portanto, como extremamente destoantes no concerto geral: quase que se poderia dizer constituírem os únicos registros que fazem menção à riqueza e à opulência. Mais um motivo, pois, para se acreditar na inversão ideológica operada através da visão que as festividades 39 , “... a economia da mineração, muito embora tenha apresentado um perfil distributivo menos desigual da renda, tal distribuição, na realidade, tem muito mais a ver com uma distribuição de baixos níveis de renda do que de níveis médios ou de altas rendas. Como certamente operou a custos elevados, provavelmente suas margens de lucro eram baixas para os medianamente bem-sucedidos, altas, para os pouco bem-afortunados, isto é, para aqueles de maior sorte no encontro do minério, e ínfimas, e até mesmo negativas, para muitos, para os malsucedidos”. – W. Cano, ob.cit. p.105-6. 40 , Cf. Prévia alocutória ao Triunfo eucarístico, p.15-20. 41 , Áureo trono episcopal, p.184. 42 , Súplica dos habitantes do Tijuco dirigida a D. João V, segundo Joaquim Felício do Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio, 1956; as passagens citadas acham-se respectivamente nas p.75, 76 e 78.

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conferiam à sociedade. Sendo, como já ficou dito acima, mecanismo de reforço, inversão e neutralização, a festa servia admiravelmente à perpetuação de um estado de coisas que interessava tanto ao lado metropolitano quanto à sociedade escravista colonial: em um e outro, é o mando que se legitima, igualando as diferenças e, ao mesmo tempo acentuando-as; é o poder que se faz autêntico por conferir um espaço às populações pobres – o mulato, o gentio da terra – e, simultaneamente, mantê-las a uma distância respeitosa que a pompa ajuda a delimitar. Tendo sido um dos temas preferidos pelos homens da época, é curioso que a pobreza mineira transparecesse tão pouco na historiografia, onde sempre foi escamoteada e substituída pelo tema da decadência, território vago que, na maior parte das vezes, aparece como definido na década de 1770. Foi no ano de 1763 em que a cota anual das cem arrobas pode ser preenchida pela última vez, mas tudo indica que a decadência vinha de antes, conforme se infere da preocupação de D. Frei Manuel da Cruz em esconder a data de sua chegada a Mariana. Mais frequente na medida em que avançava o século e a escassez passava a ser flagrante, o tema da opulência surge como referido a uma época remota, Idade de Ouro idealizada e posta a perder devido à incúria dos mineiros. Conforme já se disse, o período compreendido entre 1733 e 1748 correspondeu ao ápice da economia do ouro em Minas Gerais. O Conde das Galvêas e Martinho de Mendonça de Pina e de Proença – este, funcionário da Coroa que, de 1736 a 1737, exerceu interinamente a governança – receberam da Metrópole ordens expressas para instalar nas Minas a capitação e o censo das indústrias devido à “crescente prosperidade das minas e a generalização escandalosa dos extravios”.43 Ao nomear, em 1735, Gomes Freire de Andrada para o governo das Minas, a Metrópole tinha em mente tanto o incremento da defesa do sul – para o governante escolhido apresentava qualidades de sobra – como o estabelecimento de um sistema 43 , Diogo de Vasconcellos, História Média de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1917, p.65.

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fiscal que favorecesse mais intensamente a Coroa, contando em ambos os casos com firmeza e a autoridade deste general. No dizer de Affonso Ávila, assim como D. João V foi o rei da euforia do ouro, foi o Conde das Galvêas “o embaixador de sua pompa”.44 A demarcação do Distrito Diamantino e a criação da Intendência dos Diamantes ocorreram em seu governo, mas há quem já veja decadência nessa época, o período áureo sendo identificado a um momento anterior: “Veio o s.r. D. Lourenço de Almeida, que foi o tempo mais feliz que tiveram as Minas, porque corria o ouro em pó a 1320, muita moeda e dobrões de ouro e muita prata e cobre; mas, atrás da bonança veio a tormenta; porque veio o sr. Conde das Galvêas...”45 José Joaquim da Rocha partilha da mesma opinião e diz que, tendo Galvêas sido encarregado pelo rei de estabelecer a capitação, não o fez “por ver a decadência em que se achava já a capitania que lhe foi conferida para governar”.46 Na “Instrução” do desembargador Teixeira Coelho a periodização da decadência aparece ligeiramente alterada: “Este governador (Galvêas) tinha um grande talento, e luzes superiores: foi o prudentíssimo, e nunca seguiu a péssima conduta de fazer avultar os seus serviços à custa de lágrimas, e da substância dos povos. Governou pouco tempo, mas com acerto; e os mesmos povos lamentaram a sua retirada, que fixou a época da ruína de Minas”.47 André de Mello e Castro, conde das Galvêas, deixou o governo das Minas em 1736 para ser vice-rei do Brasil. Até aqui, ficou dito que, para os homens do século XVIII , a percepção da decadência se apresentava vaga e atemporal – espécie de consciência difusa e carente de contornos –, e que se opunha dia44 , O lúdico e as projeções do mundo barroco, p.205-6. 45 , Códice Costa Matoso, segundo Waldemar de almeida Barbosa, História de Minas, v.1, Belo Horizonte, 1979, p.151. 46 , José Joaquim da Rocha, Memória da Capitania de Minas Gerais , RAPM , v.II , p.486. 47 , J. J. Teixeira Coelho, Instruções para o governo da capitania de Minas Gerais , RAPM , v. VIII , p.473. O grifo é meu.

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metralmente a uma opulência mítica e igualmente desprovida de limites cronológicos. Como contrapartida desta imprecisão, o luxo das festas barrocas e a quantidade de ouro arrecadada pelos quintos são dados concretos. Foi no ano de 1725 que o quinto ultra passou, em Minas Gerais, os mil quilos, mas o pico absoluto foi alcançado no período que vai de 1737 a 1746, quando apenas uma vez – em 1744, ou seja, um ano antes da designação de D. Frei Manuel da Cruz para o bispado de Mariana – a produção não alcançou a casa dos 1,900 quilos.48 Feitas essas considerações, qual seria o significado profundo da noção de decadência conforme aparece nos textos do século XVIII? Analisando as considerações acima citadas, vê-se que no documento do códice Matoso o período do conde das Galvêas aparece como tormentoso, adjetivo que, obviamente, não pode se referir a falta de ouro, pois 1733 é o ano da grande subida na arrecadação do metal (ver tabelas ao final do capitulo). A tormenta poderia ser por outro lado, a constante ameaça do estabelecimento da capitação representada pela figura do conde, pois que com esse intento a Coroa o designara para o governo de Minas. Mais ainda: tormentosa seria, para o minerador ou garimpeiro do Distrito Diamantino, a proibição imposta em 1734 pela Coroa sobre a extração de ouro e diamantes na Demarcação – proibição essa intentada com vistas a impedir, ante o excessivo afluxo de pedras, a queda dos preços no mercado internacional. Já Teixeira Coelho louva a prudência do conde, prudência essa que deve ser creditada à sua atuação no episódio do estabelecimento da capitação. De fato, o governante, uma vez sondadas as opiniões dos homens bons, julgou desacertada a medida e inadequado o sis48 , Ver nas tabelas (p.65-70) que o período de 1733 a 1750 representa o ápice da produção das Minas Gerais. No cômputo geral, 1750-1755 representaria o período de maior produção devido ao ouro goiano. Os dados e as tabelas são de Virgílio Noya Pinto, O ouro brasileiro e o comércio anglo-português, São Paulo, 1979, p.71-5. 49 , O episódio é narrado, entre outros, pelo desembargador Teixeira Coelho, ob.cit. p.472.

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tema de tributação,49 o que comunicou à Coroa. Não procurou se enaltecer às custas da taxação extorsiva, é isto que quer dizer o desembargador da Relação do Porto. Sua retirada marcou “a época da ruina de Minas” porque veio Gomes Freire e estabeleceu a odiada capitação. A decadência assume agora feição totalmente nova, não mais referida ao decréscimo da produção, mas ao ônus crescente da tributação sobre os mineiros. Conforme aumentava a produção, mais lucro a Coroa procurava extrair do negócio, e mais violento se tornava o sistema fiscal. A coroa enriquecia, mas o mineiro ficava pobre. Resta ver a maneira pela qual a percepção da decadência/pobreza gradativamente cedeu lugar à constatação, por parte dos homens da época, dos motivos que a engendravam. Desde cedo se firmou a imagem de que o ouro, metal nobre por excelência, correspondia a uma riqueza enganadora, fátua e, no limite, falsa. O problema é complexo e tem vários desdobramentos, pois se tudo “conspira para se julgarem estas minas as mais pobres, e desgraçadas das que vivem em sociedade”, “não é fácil afirmar delas este conceito” porque a aparência – o luxo, a ostentação – encobre a essência, a pobreza que está por trás da “falsa reputação” e do “falso brilhante”.50 Em 1704, D. Álvaro da Silveira de Albuquerque – então governador do Rio, São Paulo e Minas – escreveu ao governador-geral mostrando extrema contrariedade ante a multidão de gente que afluía para as Minas, e desabafando: “Estas minas perdem todo este Brasil, 50 , Passagens da Representação citada na epigrafe deste capítulo, RAPM , VI , p.47. 51 , “Carta de D. Álvaro da Silveira de Albuquerque ao governador geral do Estado do Brasil sobre socorros para o Rio de Janeiro e para a colônia do Sacramento e sobre o rush para as Minas” – 5-V-1704 – DI , v.51, 1930, p.242. Os grifos são todos meus. Historiando o afluxo de gente às Minas, diz o Pe. Manuel da Fonseca: “... com a fama do ouro tinha concorrido tanto povo, não só de São Paulo e de todo o Brasil, mas passando além do mar a notícia de tão pernicioso metal, se abalaram também os europeus...” Manuel da Fonseca, Vida do venerável pe. Belchior de Pontes da Companhia de Jesus... (1752), São Paulo, s.d., p.204. O grifo é meu.

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e fora muito útil que Deus acabara, e se fosse no nosso tempo, ficariam este restante que na falta com mais algum sossego”.51 Antonil também ressaltaria o aspecto negativo das minas, prenunciando a fisiocracia: “... e depois de descobertas as minas de ouro, que serviram para enriquecer a poucos e para destruir a muitos, sendo as minas do Brasil os canaviais e as malhadas, em que se planta o tabaco”.52 Em meados do século, Alexandre de Gusmão apontava o engodo das minas, recriminando Portugal de “correr ignorantemente em seguimento da riqueza imaginária das Minas de ouro, que nos tem arruinado e empobrecido, quando nos pareceu encontrarmos ai toda a nossa fortuna”.53 Nota-se em todos estes textos a preocupação com os males que o “pernicioso metal” acarretava para a Metrópole e, secundariamente, para a sua colônia: “... as Minas são a ruína de Portugal, e o ouro a perdição das Minas “, observava o autor anônimo do Roteiro do Maranhão, hierarquizando os danos e, ao mesmo tempo, atrelando Metrópole e colônia na desgraça comum.54 Uma e outra se prejudicavam com o engodo do ouro.55 A percepção inicial de que a Metrópole se prejudicava pensando se beneficiar desdobra-se no desvelamento gradativo da verdadeira 52 , Cultura e opulência..., p.227. O grifo é meu. 53 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., p.151. O grifo é meu. 54 , Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania de Piauí , RIHGB , LXII , I , p.116. Segundo Godinho, a nobreza metropolitana de então se perdia em “facili-

dades irresponsáveis” que lhe emprestava o ouro e que acabara contaminando todo o povo de Lisboa, para onde as “falsas prosperidades do ouro” atraíam chusmas de marginais, Godinho, ob.cit. 55 , A dupla face do ouro transparece em um ditado que Diogo de Vasconcellos cita na sua História Média: “no Tocantins e nos Crichás, dizia-se que a riqueza vinha em um ano e a morte em seis meses.” – p.153. O tema do falso já pode ser detectado na história lendária de Fernão Dias Pais, que saiu para o sertão em busca de esmeraldas e encontrou pedras verdes sem valor, morrendo na ilusão de ter descoberto as famosas pedras preciosas. Carlos Drummond de Andrade tem uma passagem alusiva a este respeito:

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natureza da economia mineradora e na conscientização do estado de pobre da capitania de Minas, que passa a ser o foco principal das atenções. Pressionado, talvez, pelo Morgado de Mateus, então governador de São Paulo e ocupado em levantar dinheiro e tropas para as guerras do Sul, Luís Diogo Lobo da Silva revela ao colega de cargo a “palheta dourada” que todos acreditavam “ouro maciço”: O conceito, que a V. Exa. Deve esta capitania a respeito da opulência, que lhe considera, é igual ao que dela fazemos na Europa, e lhe julga todos os habitadores dos Governos da América (…). Porém logo que se conhecem a fundamento, e se entra na substancial inteligência da qualidade destas, sua substância, ramos de que dependem, e estado atual a que tem chegado, refletindo na preguiça dos seus habitantes, se vê com evidência o quanto é diferente a realidade, da opinião geral, que logra da riqueza, que não possui.56

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Assim, paradoxalmente, a famosa capitania seria na realidade “uma das capitanias mais pobres, que tem a América”, o que se devia em grande parte à diminuição dos jornais e ao desprezo pela

E as esmeraldas, Minas, que matavam de esperança e febre e nunca se achavam e quando se achavam eram verde engano?” As impurezas do branco, p.109 Comentando a pobreza da capitania de São Paulo, dizia o Morgado de Mateus ao futuro Pombal: “... sendo a riqueza do ouro que aqui ficou uma felicidade transitória para aqueles em cujas mãos estava, pois não podia permanecer não havendo em que se empregasse de sorte que o rendimento fizesse círculo, ou retrocedesse outra vez para seu próprio dono – Carta de 13-VIII-1765, DI , LXXII , 1952, p.71. 56 , Carta de 9-1 V, 1766, DI , v.14, 1895, p.177. O grifo é meu.

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agricultura, manufaturas e criação de gado. O motivo que leva a esse desprezo não é, entretanto, abordado. Uma vez detectada a pobreza e entendida as Minas como o seu cenário, elabora-se a formulação de que o fausto é falso, de que a natureza do ouro é intrinsecamente enganadora. Porém, conforme se configura a franca decadência das Minas, começa a surgir a necessidade de explicar esse estado de coisas e justificar a pobreza. Parte-se então para uma séria de racionalizações que, apesar de mais elaboradas, resvalam no problema sem dar conta da sua verdadeira natureza. Num primeiro nível – o mais elementar –, surge a explicação de que não há riqueza devido ao extravio e ao contrabando. De fato, há fortes indícios de que este existiu durante todo o período minerador, constituindo-se em preocupação central das autoridades coloniais. As medidas contra o extravio e os extraviadores atingiram intensidade máxima no Distrito Diamantino, onde as penas contra este crime eram violentíssimas e abrangiam uma gama de variações que ia desde a prisão até o degredo e a morte civil.57 Grupos poderosos chegaram a se envolver nessa atividade ilícita, como teria acontecido com o Padre Rolim e a família Vieira Couto.58 A explicação da decadência pelo extravio se articulou basicamente do lado do poder: são os bandos, são os governantes, é, mais do que ninguém, Martinho de Mello e Castro, o ministro de D. Maria I, para quem as “fraudes” constituíam as causas principais. Sobre esta certeza se assentou a sua Instrução Política para o Visconde de Barbacena, datada de 1788. É necessário atentar para o fato de, nesta concepção, riqueza se identificar com rendimento das quotas do 57 , Este assunto será tratado com mais vagar no capítulo 3. 58 , A sugestão é de Maxwell, que aponta também a possível participação dos altos funcionários coloniais no negócio. Conivente ou não, o próprio desembargador Gonzaga teria diamantes em sua casa: se o magistrado não exercia o ilícito comércio, pessoas chegadas a ele o faziam. Cf. A devassa da devassa, Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1977, p.121-2. 59 , “... durante maio século em que o rendimento baixou em Minas Gerais (…) de

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ouro, o que explica o ângulo privilegiado: é a riqueza da Metrópole que continua em questão.59 A partir dos estudos científicos levados a cabo pelos membros da Academia de Ciências de Lisboa – entre os quais, D. Rodrigo de Sousa Coutinho –, o extravio deixa de ser a explicação preferida e as atenções se voltam para a inadequação dos métodos utilizados na extração do metal. Galga-se assim um segundo patamar na tentativa de compreensão do problema. Em 1791, a Junta da Fazenda opinava sobre o estado da capitania e o decréscimo da arrecadação do ouro traçando o perfil do que fora, por todos aqueles anos, o procedimento adotado: aproveitamento do ouro aluvional e de fácil extração: [...] foi naquele tempo de abundância, e quando a extração do mesmo ouro era mais fácil e menos dispendiosa; pois que achava junto nos córregos aonde estava como depositado pelo decurso de longos anos pelas enxurradas que cotidianamente a conduzidos morros: hoje porém se acha somente no centro dos ditos morros dificultosos de se lavarem, não só pela situação, e falta de águas, como pelas poucas forças dos mineiros [...]60

Uma vez extraído o metal de aluvião, os veeiros de grupiara ou meia-encosta, os de galeria, enfim, os que adentravam pela terra apresentavam extração mais difícil, para a qual a técnica rudimentar dos mineiros das Gerais era bastante inadequada. Dentre

118 arrobas em 1754, máximo percebido, para 35 apenas, exatamente 50 anos depois, não ocorreu sequer uma só vez à administração outra explicação que a fraude”. Caio Prado Jr., História Econômica do Brasil, 11ª ed., São Paulo, 1969, p.61. Os dados de Caio Prado Jr. Não me parecem corretos; creio que o autor toma a produção total da colônia pela produção das Minas Gerais, onde o ano de maior arrecadação foi o de 1738. 60 , Ponderações da Junta da Fazenda sobre os meios de se ressarcir o prejuízo da Real Fazenda com a arrecadação do quinto do ouro , RAPM ,

v. VI , 1901, p.167.

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as memórias que estudaram o problema e se inserem no clima de reformismo ilustrado vigente na Metrópole a partir da década de 1790,61 tem-se a de Ferreira Câmara e as de Vieira Couto. Este, na sua primeira memória – a de 1799 – fala da necessidade da metalurgia do ferro na mineração. Mas é em Eschwege, anos depois, que o problema aparece claramente formulado. Segundo o mineralogista alemão, a pobreza dominava inúmeros arraiais auríferos: “Se se pergunta, nesses lugares, sobre a causa dessa decadência, obtém-se como resposta ter sido a escassez do ouro que impeliu uma parte da população a deixar o local e outra a cair na miséria, pelo abandono dos serviços de mineração. O observador superficial aceitará essa explicação como verdadeira, e, propagando-a, dará uma ideia falsa sobre um dos assuntos econômicos de maior importância para a capitania de Minas”.62 A região continuava rica nas profundezas, prossegue Eschwege, e apenas a riqueza superficial havia sido explorada: mas isto não sabiam os mineiros, pois eram ignorantes em matéria de mineração e adotavam os métodos os “mais inoportunos”.63 Em 1813, o Conde da Palma também acusava com clareza os motivos da decadência: “erram todos aqueles” que não apontarem as dificuldades dos trabalhos da mineração, advindas ou da “profundidade, em que se acham as formações do ouro com os entulhos corridos de outras lavras indiretamente trabalhadas, ou pela riqueza e obstáculos que se encontram nas montanhas, por onde atravessam os veeiros, e em que existem as matrizes, as quais não é possível 61 , O reformismo ilustrado é estudado no livro de Fernando A. Novais, já citado; Maxwell também estuda o problema em The generation of the 1790s and the Idea of Luso-Brazilian empire , em Dauril Alden, Colonial Roots of Modern

Brazil, Berkeley, 1973, p.107-44. 62 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, trad., São Paulo, 1944, p.241-2. 63 , A ideia da riqueza das camadas profundas parece não corresponder à realidade, pois, segundo Caio Prado Jr., não teríamos rochas matrizes. História econômica do Brasil, p.60. 64 , Correspondência do Conde da Palma 1810-1814”, RAPM , v.XX , 1924, p.356.

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descobrir sem grande risco das fábricas e sem muita perda de serviços pela falibilidade dos resultados”.64 Há memórias e documentos da época onde a contestação do extravio como categoria explicativa da decadência aparece associada à falta de braços: assim em Eschwege, assim no Conde da Palma. Num terceiro nível explicativo, surge a ideia de que a mineração é ilusória porque, na realidade, não é trabalho. Este, por sua vez, configura-se claramente como praga bíblica: penoso, demorado, difícil, é provação necessária para a obtenção final da felicidade; “uma riqueza achada de repente, e com facilidade, não nascida da indústria, ou de trabalho”, será sempre perniciosa.65 Sendo atividade extrativa, o ouro sempre acaba, não é eterno,66 mas atrai os homens devido ao seu “caráter mais imediato, e de primeira espécie”.67 Ninguém precisa encorajar os homens para a atividade mineradora, pois “o natural instinto, de que nos dotou a natureza, de caminharmos sempre pelo caminho mais curto à nos65 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Gerais” 1808, RAPM , v. II , 1897, p.674. No começo do século passado, Mawe se escan-

dalizava com a população mineira e formulava sua opinião: “A educação, hábitos, preconceitos hereditários os tornam inaptos para a vida ativa; sempre entregues à perspectiva de enriquecer subitamente, imaginam estar isentos da lei universal da natureza, que obriga o homem a ganhar o pão com o suro do seu rosto”. Viagens ao interior do Brasil, principalmente aos Distritos do ouro e diamantes, trad. Rio de Janeiro, 1944, p.177. 66 , Esta ideia acha-se presente na Memória sobre a utilidade pública em se extrair o ouro das Minas e os motivos dos poucos interesses que fazem os particulares, que mineram igualmente no Brasil , de Antonio Pires da

Silva Pontes Leme – RAPM, v.1, 1896, p.417-26. 67 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais e meios de remediá-lo, RAPM , v.II , 1897, p.317.

68 , J. Vieira Couto, Memória sobre as Minas da capitania de Minas Gerais. Suas descrições, ensaios, e domicílios próprio. À maneira de itinerário. 1801, RAPM , v.X , 1905, p.84.

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sa felicidade, fará que hajam sempre muitos mineiros”.68 Mas há que ter muito cuidado, pois nem sempre o caminho mais curto é o que, a longo prazo, traz a felicidade: na verdade, o ouro é riqueza aparente, “que não indo de par com os reais, desaparece de súbito”.69 Isto não impediu que o Estado português descurasse da agricultura e se voltasse exclusivamente para a mineração, continua o mineralogista do Tijuco; urge, pois, que se restaure aquela que é a verdadeira riqueza, a “que nos oferece a madre terra todos os anos, em sua renovada superfície”70 e que, para florescer, não precisa quebrar os montes nem revolver e arrancar as entranhas que a geraram. Mas fica uma pergunta no ar: “Donde vem tão fatal inércia? Donde tanta indiferença para a cultura de gêneros que cada um deles poderia fazer a felicidade de muita gente?” O reformismo ilustrado português caracterizou-se também por um revivescer fisiocrático, a “imaginária riqueza das minas” passando a ser encarada como um mal e a agricultura assumindo a feição de verdadeira riqueza.71 Na “Memória” datada de 1798, José Elói Ottoni comparava sua época com a “época venturosa” de D. Manuel: “Donde se deve concluir que infelizmente para o nosso Portugal se descobriram as Minas; pois que nos fizeram desprezar as verdadeiras riquezas da Agricultura para corrermos cansados após um fantasma de riquezas imaginárias.”72 O “Discurso sobre o estado atual das Minas do Brasil”, de Azeredo Coutinho, também se atrela a essa linha explicativa, Cavar ouro significava então cavar a própria ruína, pois já não se viviam mais os tempos do bullionismo, e a Inglaterra, onde em 1776 Adam Smith publicara a Riqueza das Nações, estava em franca fase de revolução industrial. Na obra 69 , Idem, ibid., p.83. 70 , Idem, ibid. 71 , Formulações essas desenvolvidas, entre outros, por José Veríssimo Álvares da Silva na sua Memória histórica sobre a agricultura portuguesa , citada por Fernando Novais, ob.cit. p.205. 72 , José Elói Ottoni, Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais , 1798, ABN , v. XXX , p.310-1.

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do bispo-economista, mais do que em qualquer outra, plantar surge como sinônimo de trabalho, enquanto minerar significa jogo e aventura; o agricultor, com o trabalho contínuo e a utilização de máquinas, aumenta a sua riqueza e a da nação: “Não é assim a respeito do mineiro: a maior extração do ouro não depende do seu braço, depende do acaso, e muitas vezes o que menos trabalha é o que descobre um tesouro mais rico”.73 Riqueza “casual”, “variável” e “caprichosa”, o ouro transferia essas virtualidades para o mineiro e para a nação mineradora, assim tornada “inconstante”: “uma nação sensata não deve imitar os desvarios de um jogador, deve estabelecer-se sobre bases mais sólidas e mais permanentes”.74 Estas são as proporcionadas pela agricultura, riqueza verdadeira, enquanto o ouro não passa de mera representação de riqueza. Muitas vezes pertinentes, estas formulações não chegaram ao cerne do problema, apesar de, uma vez ou outra, terem nele resvalado. Conforme vislumbrara a câmara de Vila Rica em 1751, não havia na colônia gênero algum que saísse “para fora mais do que o ouro”75 e este, uma vez em Portugal, logo passava para os países mais adiantados da Europa, pagando as importações do pequenino reino luso.76 “De fato”, constatava amargamente Pombal, “Portugal permitirá que seus tesouros fossem usados contra si mesmo e, por isto, as riquezas das minas eram quiméricas para ele”.77 Ante a miséria das Minas, Vieira Couto se consternava e dava o povo como fonte e princípio das riquezas de um país: para povo laborioso, riqueza; para povo rico, nação igualmente rica. Nesse caso, continuava, per73 , J. J. da Cunha Azeredo Coutinho, ob.cit. p.7. 74 , Idem. 75 , Carta da câmara de Vila Rica, 3, IV, 1751, cit. em Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit. p.199. 76 , O argutíssimo Antonil constatara este estado de coisas ao falar do descobrimento do ouro: “passa em pó e em moeda para os reinos estranhos; e a menor parte é a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil...” Antonil, ob.cit. p.304. 77 , Segundo Maxwell, ob.cit. p.24. 78 , Vieira Couto, Memória sobre a capitania de Minas Gerais, seu território, clima etc .” (1799), RIHGB , v.XI , 1848, p.325.

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plexo, o mineralogista, como explicar “um ente que não existe na natureza, um erário rico de uma nação pobre?”.78 As questões colocadas por Vieira Couto haviam começado a ser respondidas com nitidez durante o movimento da Inconfidência Mineira, mas delas não parecia o mineralogista fazer caso – talvez porque a desconfiança de sediciosa tivesse pesado sobre sua família. De fato, foi aquele o momento em que a percepção do estatuto colonial aflorou às consciências mais esclarecidas do Brasil, e não foi ocasional o fato destas terem primeiro se manifestado na capitania do ouro e do falso fausto. Durante todo o século XVIII , fora aquela a região mais lucrativa dos domínios portugueses de ultramar, teatro de violências fiscais e do autoritarismo ilimitado dos governantes. Aos poucos, a decadência da capitania – que, como se viu acima, fora alegada desde muito cedo – começou a assumir contornos precisos nas consciências: não apenas indefinida e atemporal, mas difícil de ser delineada devido ao fato de estar imersa na realidade colonial, e de corporificar a dependência. Não podia, pois, haver ouro que chegasse para a voracidade do fisco, e a maior quantidade de ouro encontrando não significava, obrigatoriamente, riqueza. Quase nada escapava às malhas do sistema colonial: fisco voraz, tributação sobre escravos, sistema monetário especifico e importações feitas pelo exclusivo de comércio eram os meios de que se servia a Metrópole para a retirada do ouro. Esse mecanismo gerava pobreza, implicando, para o colono, impossibilidade de comprar escravos; numa sociedade escravista, isto implicava mais pobreza. O círculo se fechava, e o verdadeiro tema – o mundo de pobreza em que se movia o mineiro – era, através dos tempos, recoberto pelo tema da decadência. A percepção da decadência do ouro provocou, do lado da Metrópole, medidas reformistas visando à preservação dos seus domínios. Não era a pobreza da colônia que se achava em questão, nem a percepção clara da pobreza da Metrópole, pois esta implicaria transformações radicais que levariam à supressão do sistema colonial e da 79 , Utilizo, de maneira esquemática, a análise da crise do sistema colonial em-

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dependência portuguesa ante a Inglaterra; daí o debate ter se centrado na decadência do ouro e nos meios de remediá-la.79 Na consciência do colono, o problema se encaminhou diferentemente. Mais do que a decadência, importava explicar a pobreza, concreta e palpável para o habitante das Minas. Não conta, neste caso, que os inconfidentes fossem membros da plutocracia local que Fanfarrão Minésio afastara do poder e do usufruto de suas benesses; tampouco é relevante o fato de Tiradentes ser o filho decaído de uma família que tivera melhores dias e que ansiava ascender socialmente. O que de fato interessa é a tomada de consciência do “viver em colônias” que então se verificou.80 Ao tenente-coronel Frâncico de Paula Freire de Andrada, dissera Tiradentes que, apesar de tanta riqueza, Minas era pobre “só porque a Europa, como uma esponja, lhe tivesse chupando toda a substância, e os Exmos. Generais de três em três anos traziam uma quadrilha, a que chamavam de criados, que depois de comerem a honra, a fazenda, e os ofícios, que deviam ser dos habitantes, se iam rindo deles para Portugal”.81 A ideia de que a riqueza, drenada para fora, engendrava pobreza, acha-se presente em tudo quanto de subversivo se imputou ao Alferes: teria abordado Antonio de Afonseca Pestana para convencê-lo de que “este país das Minas era fertilíssimo e riquíssimo em tudo; a não ir toda a riqueza para fora, seria a terra da maior utilidade...”;82 José Vasconcellos Parada e Souza o ouvira preendida por Fernando Novais no trabalho já citado. A percepção clara do dilema metropolitano ante a evasão do ouro para os centros hegemônicos aparece formulada em D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Cf. Novais, ob.cit. p.235-6. 80 , As considerações sobre a plutocracia mineira e sobre a procedência de Tiradentes foram tomadas de Maxwell, A devassa da devassa. A expressão “viver em colônias” é de Vilhena, e serve de título capítulo II do trabalho de Carlos Guilherme Motta, Atitudes de inovação no Brasil – 1789-1801, Lisboa, 1970. Nesta obra, a tomada de consciência dos “seres coloniais” é analisada com extrema propriedade. 81 , Segundo Maxwell, ob.cit., p.153. 82 , Segundo Waldemar de Almeida Barbosa, ob. cit., p.420. 83 , Ibid.

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afirmar que “este país de Minas era riquíssimo, mas tudo quanto produzia lhe levaram para fora, sem nele ficar cousa alguma...”.83 Segundo dissera ao tenente José Antonio de Melo, da Cavalaria Paga da Capitania, Tiradentes considerava desgraçado o seu lugar de origem “porque tirando-se dele tanto ouro e diamantes, nada lhe ficava, e tudo saía para fora e os pobres filhos da América, sempre famintos, e sem nada de seu”.84 Vinte anos após a Inconfidência, o viajante inglês Mawe registrava a observação que lhe haviam feito os habitantes de Vila Rica: Quando lhes falavam da riqueza da terra e da quantidade de ouro que lhe era reputada, eles pareceram satisfeitos de ter encontrado oportunidade para dizer-nos acreditarem ser todo o ouro enviado à Inglaterra, acrescentando que sua terra se deveria chamar atualmente Vila Pobre, em lugar de Vila Rica.85 60

A riqueza enganadora – apanágio de poucos, consagrada pela ritualização barroca da opulência, filha da fome de muitos e escamoteada, através dos tempos, pelo tema da decadência; palheta dourada que a ilusão transformava em pepita maciça e que o reformismo ilustrado procurava ultrapassar com paliativos – aparecia em toda a sua transparência, uma vez desvelada a sua verdadeira função: propulsionar a acumulação primitiva nos centros hegemônicos europeus, ou seja, desempenhar o papel máximo das colônias na época do Antigo Sistema Colonial. Como consequência, a pobreza das Minas e o aniquilamento das forças vivas do reino; onde, para Alexandre Herculano, a aventura marítima provocou um enriquecimento aparente, empobrecendo-o e “convertendo-o num grêmio social, cujas funções características foram por séculos o madraço e o mendigo”.86

84 , Ibid. 85 , Mawe, ob. cit., p.168-9. 86 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., p.197.

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II , DA UTILIDADE DOS VADIOS Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem muitas vezes legislado; porém as regras comuns relativas a este ponto não podem ser aplicáveis em toda a sua extensão ao território de Minas, porque estes vadios, que em outra parte seriam prejudiciais, seriam ali úteis. J.J. Teixeira Coelho.

1. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO SOCIAL NO OCIDENTE , A miséria, a vagabundagem, o desnível entre as condições de vida dos homens existiram desde cedo, dela escapando apenas as sociedades primitivas.1 A guerra, as grandes intempéries climáticas, as epidemias de doenças misteriosas sempre contaram entre os principais agentes causadores de indivíduos socialmente desclassificados: são as determinantes conjunturais, frequentes por exemplo na Alta Idade Média, e extremamente importantes para tornar compreensível o processo de desclassificação das populações. A Idade Média é um período especialmente elucidativo para quem estuda a marginalidade, pois em seu seio se verificaram as grandes transformações que marcaram a concepção moderna da pobreza. Durante séculos, o pobre havia sido o pobre de Cristo, o coitadinho que merecia ajuda e com o qual a população das vilas convivia sem escândalo. Para eles os mosteiros abriam suas portas e distribuíam seus grãos. Nunca deixou de haver quem alertasse para a diferença entre pobres válidos e pobres inválidos – os vadios e os vagabundos sendo, via de regra, olhados com desconfiança –, mas essa dicotomia só se tornou mais acentuada na Baixa Idade Média. Inicialmente, os braços de Cristo se abriam para todos – não indistintamente, mas para todos.2 1 , Ver a esse respeito Alexandre Vexliard, Introduction à la Sociologie du Vagabondage, Paris, 1956. 2 , Os vagabundos sempre foram os menos considerados. Em seu trabalho, Les

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Com suas grandes convulsões, com a urbanização e as transformações na economia monetária e na estrutura da propriedade rural, o século XII acusa a grande virada. Toda uma série de mudanças estruturais começavam a solapar irremediavelmente o sistema feudal, engendrando a pobreza e provocando uma transformação radical na concepção que dela se tivera por todos aqueles séculos: “A miséria é filha da estrada e da cidade”.3 Até então, não fora reconhecida como problema social, pois a humanidade medieval não buscava a igualdade; a pobreza era uma riqueza espiritual, e o pobre, um intermediário entre o rico e Deus: daí a enorme preocupação com as esmolas, “economia da salvação”.4 As transformações estruturais – a que se somou à ação de São Francisco de Assis – fizeram do pobre uma criatura deste mundo. As municipalidades e o poder público passaram a se encarregar das esmolas. De personagem do discurso dos doutores da Igreja e dos poderosos em geral, passou o pobre a ser ator do drama, protagonista real da História. Essa entrada definitiva em cena foi anunciada durante séculos pelos movimentos messiânicos, pelo hussismo, por John Ball, pela Jacquerie, pelas súbitas e rápidas “fúrias camponesas”. Afinal, no século XIV, sua presença explodiu por toda a Europa – uma Europa combalida pela Peste, pela Guerra e pela Fome. As leis inglesas e francesas de repressão à vadiagem e a de obrigatoriedade do trabalho foram a resposta mais imediata a esse estado de coisas, a legislação e as instituições de caridade se tornando, mais do que nunca, instrumentos dos poderosos no seu confronto com a miséria. A partir do século XIV, pois, a pobreza já não pode ser considerada como uma série de casos individuais, e os pobres se tornam nupauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978, p.158, Michel Mollat cita, entre outros, João de Friburgo, que “em nome da lei moral do trabalho, reprova os falsos pobres, os válidos preguiçosos e vagabundos”. A esmola, que deveria ser tirada do supérfluo, não deveria encorajar a preguiça. 3 , Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, Paris, 1976, p.72. 4 , A expressão é utilizada por Michel Mollat na obra já citada.

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merosos demais para serem ajudados, onerando Deus e o Estado. O trabalho e sua virtude redentora foram então exaustivamente lembrados, citando-se, como uma glosa, a vida dos santos. “O pobre, o miserável, os humilhados se confrontam, implacavelmente, com essa dualidade do bem e do mal: por um lado, representam o Cristo humilhado e, por outro, ameaçam a ordem social”.5 De enorme importância é o aparecimento, durante os séculos XIII e XIV, de um novo tipo de pobre: aquele a quem Mollat chama “pobre laborioso, o camponês expropriado que, trabalhador, não conseguia sustentar a família com o seu trabalho.6 Conforme avançava o processo de dissolução das relações servis e de acumulação primitiva, aumentavam os contingentes dessa nova camada social, cuja característica mais importante era a pauperização crescente.7 5 , Goglin, ob.cit. p.135. Analisando as miniaturas da Bíblia moralizante do duque de Borgonha Filipe, o Audaz. Goglin observa que os rostos dos pobres retratados “lembram estranhamente os de carrascos, de malvados e de brutos”: é a pobreza aparecendo como aspecto degradante da condição humana, “forma de humilhação e de infâmia, com peso de maldição”. – p.139. 6 , “Tradicionalmente, a pobreza resultava da impossibilidade de ganhar seu pão devido à incapacidade (idade, doença), ao desemprego, ao fracasso de uma atividade, à perda de capital. Ora, eis que surge um grupo numeroso de pessoas exercendo uma atividade regular e no entanto insuficiente para fazê-los viver decentemente.” – Mollar, ob.cit., p.200. Na sociedade feudal, hierárquica ao extremo, não havia terra sem dono, nem servo sem senhor. Christopher Hill cita um diálogo de uma peça de Middleton extremamente elucidativo a respeito das transformações verificadas ao fim da Idade Média – Whose man art thou?, pergunta uma personagem, ao que a outra responde: I'm a servant, yet a masterless man, sit.– How can that be?, exclama, incrédulo, o interlocutor. Os masterless men se multiplicaram durante o fim da Idade Média, atingindo o número de 13 mil no norte da Inglaterra, em 1569. Christopher Hill, The World Turned Upside Down, Londres, 1975, cap. Masteless Man, p.39. Sobre o assunto, ver também Maurice Dobb, A evolução do capitalismo,

trad., 3ªed. Rio de Janeiro, 1973, c.n., p.49-108 7 , Analisando o movimento de emigração que se verifica a partir das propriedades senhoriais, diz Dobb ter ele se constituído numa “deserção maciça por parte

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O aparecimento dessa pobreza laboriosa colocou em cheque as formulações até então elaboradas sobre a miséria. Nela, não havia nada que lembrasse o “repúdio à vida” do tempo dos eremitas nem a boemia tolerada dos goliardos e dos clérigos vagabundos, estudantes extravagantes e, como François Villon, poetas inconformados. O homem pobre expropriado não era inválido, e almejava ter acesso ao trabalho, mas muitas vezes não o conseguia: mais do que nunca, eram claras as condições estruturais que faziam delem um desocupado, um biscateiro intermitente e, no limite, um mendigo, um vagabundo, um criminoso. Verificando-se no seio de uma formação social produtora de valores de uso, a expansão do setor mercantil provocava a dissolução gradativa dos laços servis e libertava um número de pessoas superior à capacidade de absorção do sistema. Tornaram-se fluidas as fronteiras entre o mundo do crime e o mundo do trabalho: trabalho obrigatório para todo homem pobre válido, integrante não mais da legião dos “coitadinhos de Cristo”, mas da “classe perigosa” que começava a assombrar as cidades e os burgos no outono da Idade Média.8

dos produtores, que se destinava a retirar do sistema seu sangue vital e provocar a série de crises nas quais a economia feudal iria achar-se mergulhada nos séculos XIV e XV. A fuga dos vilões que deixavam a terra muitas vezes assumia proporções

catastróficas tanto na Inglaterra quanto em outros lugares, e não apensa servia para aumentar a população das cidades crescentes, como e principalmente no continente contribuía para a continuação das quadrilhas de proscritos, da vagabundagem e jacqueries periódicas”. – Dobb, ob. cit., p.64-5. 8 , Sobre essa fluidez das fronteiras, diz o historiador polonês Bronislaw Geremeck: “... as pesquisas sobre criminalidade fazem parecer uma espécie de 'fronteira' social, de franja da sociedade organizada, onde o trabalho se mistura com o crime. A passagem para a marginalidade se realiza segundo um dégradé de cores; não existem barreiras entre a sociedade e suas margens, entre os grupos e os indivíduos que observam as normas estabelecidas e os que as violam”. – Criminalité, Vagabondage, Paupérisme: la Marginalité à l' Aube des Temps Modernes , em: Revue

d'Histoire Moderne et Contemporaine, XXI , julho-setembro, 1974, p.346.

Foi sobre esse contingente humano heterogêneo que incidiram violentamente os esforços então empreendidos no sentido de generalizar a prática do trabalho: “O trabalho, reabilitado após ter sido desprezado como consequência do pecado original, torna-se um dos valores de uma sociedade que se lança no crescimento econômico, e a partir do século XIII , as expressões vadio (oisif) e mendigo válido tornam-se etiquetas injuriosas atribuídas e certos marginais”.9 “Tolerava-se o mendigo, mas odiava-se o vagabundo”, diz Mollar, referindo-se a esse momento histórico em que começava a se esboçar uma lei moral do trabalho.10 Definida como ausência de domicílio ou como o morar em toda a parte, a vagabundagem e a itinerância eram incômodas numa sociedade em que as relações pessoais ainda tinham muito peso e para a qual o fato de o indivíduo não poder se ligar a ninguém e por ninguém poder ser reconhecido eram sinais extremos de isolamento.11 Elemento irregular e instável, carente de vínculos, o vagabundo “trabalha às vezes, mendiga com frequência, rouba se aparece a ocasião, e pode ser incidentalmente arrastado para a criminalidade e delinquência, mas ele não é nada disso de uma maneira estável”.12 9 , Jacques Le Goff, Les Marginaux dans l'Occident Médiéval , em: Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p.23. 10 , Mollar, ob.cit., p.299. 11 , A análise é de Mollat, ob.cit. 12 , Vexliard, ob.cit., p.220-1. No artigo já citado, Geremeck chama a atenção para a extrema mobilidade existente nas sociedades pré-industriais, mobilidade essa que, entretanto, é sempre regulamentada, obedecendo a trajetos pré-traçados: migrações de companheiros e escolares, migrações camponesas ligadas aos grandes movimentos de colonização, peregrinações. Nenhum desses movimentos apresentava perigo: era a mobilidade não controlada ou individual que inquietava e ameaçava as sociedades tradicionais. Geremeck, ob.cit. E mais adiante: “Ao mesmo tempo em que a sociedade pré-industrial, com seu corpo organizado, não pode tolerar o indivíduo isolado, procurando enquadrá-lo em instituições e solidariedades corporativos, nos laços de famílias, nas estruturas eclesiásticas – no que diz respeito a seus marginais, ela se inclina a não suportar senão indivíduos sem ligações de grupos ou de solida-

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Estabelecendo-se uma cronologia sumária das medidas tomadas contra mendigos, vagabundos e desocupados, pode-se notar a sua concomitância em diferentes pontos da Europa. Em 1308, Fernando IV de Castela ordenava que os mendigos aptos ao trabalho deixassem Burgos, mas foi Pedro I quem, em 1351, aperfeiçoou a repressão. 1311 foi o ano em que o arcebispo de Ravena estabeleceu a distinção entre os pobres que recebiam publicamente as distribuições e as esmolas, e os poveri vergognosi. Entre 1346 e 1348, surgia o Notatenbuch, de Dithmas de Merckenbach, o mais antigo dos glossários e descrição de um meio marginal. Em 1349, numa Inglaterra ainda combalida pela Peste Negra, surgia o Statute of Labourers; no ano seguinte, a mendicância passava a ser permitida aos incapazes de trabalhar e aos que tivesse mais de 60 anos. Na França, em 1351, a ordenação de João II, o Bom, marcou o início da caça aos errantes; fez-se então um apelo aos pregadores e monges para que só encorajassem a caridade em favor dos inaptos ao trabalho, os desocupados devendo deixar Paris sob pena de 4 dias de prisão e, em seguida, marcação com ferro quente e banimento; em 1367, o preboste de Paris convocou os vadios para cavarem fossos e consertarem as fortificações da cidade, numa política já nítida de utilização do trabalho forçado que, nos séculos posteriores, se tornará comum. Em 1388, a lei inglesa obrigava o pobre a se fixar no local de nascimento ou residência, procedimento lembrado novamente em 1405 e em 1509. A utilização compulsória da força de trabalho aparece também em Castela, em 1395, quando os particulares são autorizados a prender vagabundos e fazê-los trabalhar em suas terras por um mês, sem que por isso recebam salário. Ao fazer com que os vagabundos e delinquentes embarcassem à força nas galeras, Jacques Coeur introduzia, em 1453, o que a partir de então seria o castigo clássico desses indivíduos: as galés.13 riedade. Em um indivíduo sem laços, ela se prontifica a ver um mendigo válido; em dois errantes, ela vê vagabundos temíveis”. – p.359. 13 , Os dados foram extraídos dos seguintes trabalhos: Bronislaw Geremeck, Les marginaux parisiens aux XIV et XV siécles, Paris, 1976, p.30; Mollat, ob.cit.; Goglin, ob.cit.

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Como no resto da Europa, foi no século XIV que as preocupações das autoridades e dos governantes portugueses acerca da obrigatoriedade do trabalho se cristalizaram em leis repressivas que, também como nos outros lugares, visavam sobretudo aos mendigos e aos vagabundos. É preciso, de início, estabelecer uma diferença que diz respeito ao termo empregado para estes últimos: vagabond e vagrancy são as expressões que a legislação inglesa utiliza para indicar o sujeito e a sua ação; em francês, os mesmos são designados com vagabond e vagabondage; vagabund e vagabundieren para a língua alemã, e vagabundo e vagabundagen para o espanhol, todos, portanto, se referindo a expressão latina: vagativu. É evidente que existem muitas nuances e variações: o errant, tanto para o inglês como para o frances, o oisif francês, e uma infinidade mais de palavras específicas a cada língua. O interessante é que, existindo a palavra em português – vagabundo –, e tendo dela o mesmo sentido que as suas equivalentes em outras línguas, é ao vadio e à vadiagem que mais dizem respeito às leis portuguesas, apesar das menções ao vagabundo e à vagabundagem. A especificada assumida pelo termo na legislação portuguesa parece, assim, acusar uma preocupação que se volta sobretudo para o combate à ausência de trabalho (vadiagem), o perigo representado pelo caráter andejo do desocupado (vagabundagem) passando para segundo plano. Já no início do século XIII , um diploma régio mandava perseguir os vadios, proibindo os desprovidos de bens de raiz, de senhor ou de ocupação idônea de habitarem o reino.14 Em 1349, quando governava Portugal o rei Afonso IV, foi expedido, a 3 de julho, um documento que procurava limitar o número de ociosos e impedir os abandonos de trabalho, a vadiagem e a mendicância de que se queixavam as cidades; estas deveriam expulsar os vadios, proibindo-lhes o acesso aos hospitais e punindo os que os acolhesse. Este soberano fixou ainda um limite superior para os salários.15 Alguns anos depois, em 14 , Rui d'Abreu Torres, Vadiagem , em: Joel Serrão (org.), Dicionário da história de Portugal e do Brasil, Porto, Iniciativas Editoriais, s.d., v. IV, p.239. 15 , Mollat, ob.cit., p.246.

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1371, as Cortes de Lisboa se queixavam de abandono dos trabalhos do campo, da exigência de altos salários e da vadiagem.16 Por fim, em 1375, vinha à luz a célebre Lei das Sesmarias, coroamento do esforço então dispendido por D. Fernando para incrementar a agricultura e aumentar o número dos trabalhadores rurais em Portugal. Para esse fim, compelia ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e os mendigos válidos.17 Com relação a estes últimos, a legislação era bastante dura: “se os achassem ter algum aleijão, mas não tal, que os impedisse poderem servir com outros membros do corpo”,18 os juízes os obrigavam a trabalhar. Os ociosos que se recusassem a exercer qualquer atividade seriam, na primeira vez, açoitados e, quando reincidentes, “seriam açoitados com pregão, e ultimamente lançados fora do reino, porque El Rei mandava e queria que ninguém no seu reino fosse vadio”.19 Com sua legislação, D. Fernando visava acudir a esses males, mas os resultados foram poucos: “Faltou uma elite, que as fizesse cumprir (as leis). As herdades continuavam incultas e desertas, os lavradores não arrotearam terras de novo, mas largaram as que possuíam, e os matos invadiram mais fazendas desamparadas pelos senhorios. O êxodo dos campos levava assim as energias para as terras de beira-mar, para o tráfico marítimo...”.20 Seria, na concepção de Antonio Sérgio, a “política de transporte” levando a melhor sobre a “política de fixação” – o que sugere que, ao invés de serem absorvidos pelos trabalhos agrícolas, os desclassificados o foram pela aventura marítima.

16 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit. 17 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p. 239. Antonio Sérgio, Breve interpretação da história de Portugal, Lisboa, 1972, p.29. 18 , Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p.18. 19 , Rui d'Abreu Torres, Mendicidade , em: Joel Serrão, ob.cit., v. III , p.18. 20 , Antonio Sérgio, ob.cit., p.29. Ver também As duas políticas nacionais , em: Ensaios II , Lisboa, 1972, p.63-91.

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2. O IMPÉR IO COLONIAL , ERGÁSTULO DE DELINQUENTES , De fato, as conquistas marítimas tiveram um papel muito importante na absorção dos mendigos e vagabundos da metrópole, muitas vezes recrutados à força para fazerem serviço militar nas possessões de além-mar. A jurisprudência selvagem de Portugal no Antigo Regime sentenciava multidões de pequenos larápios e outros infratores com prisão e exílio: todo navio que partia para o Brasil, Índia ou África trazia, sobretudo a partir do século XVII , a sua quota de degredados.21 “As possessões ultramarinas foram sempre para Portugal o ergástulo de seus delinquentes”, disse o historiador português Costa Lobo. Formaram-se importantes correntes migratórias para as colônias, sendo a da Índia particularmente intensa entre os anos de 1497-1527, quando 80 mil homens deixaram a Metrópole.22 Pelo alvará de 6 de maio de 1536, D. João III determinava que os moços vadios de Lisboa que andavam “na Ribeira a furtar bolsas e a fazer outros delitos” fossem desterrados para o Brasil.23 Nas Cortes de Almeirim de 1544 pediram os procuradores de Lisboa que o monarca mandasse fazer de seis em seis meses “correição de patifes e homens 21 , Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire – 1415-1825, Londres, 1969. Sobretudo o c. XIII , Soldiers, settlers and vagabonds . A respeito da pouca gravidade, aos olhos da justiça contemporânea, dos delitos então castigados com degredo, ver Emília Viotti da Costa, “Primeiros povoadores do Brasil , em: Revista de História, 1956, XIII , n.27. Segundo as Ordenações Manuelinas, em trechos citados pela autora, o degredo podia ser imputado aos “que fazem assuadas ou quebram portas ou as fecham de noite por fora”, e ainda aos “que compra colmeias para matar as abelhas”. – p.3. 22 , A. De Souza Silva Costa Lobo, História da sociedade em Portugal – no século XV, Lisboa, 1904, p.49. Apenas 1/10 dos que embarcavam voltavam a Portugal: “Dos

embarcados, uma grande parte constava de criminosos, que haveriam de morrer na forca, ou de terminar uma parte ou resto de seus dias no degredo da África ou nas cadeias.” –ob.cit., p.48-9. 23 , Dr. José vieira Fazenda, Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro, RIHGB , v.149, 1924, p.53. Devo esta indicação a Leila Mezan Algranti.

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vadios, sem ofício nem senhor com que viviam, e sejam presos e embarcados para o Brasil”.24 Já em pleno desenvolvimento do Império Colonial português, o alvará de 1570, expedido sob o reinado de D. Sebastião, estabelecia a diferença entre a pena administrada aos peões, que se caracterizava pelo fato de poderem ser açoitados, e a destinada às pessoas de mor qualidade, castigada muito frequentemente com o degredo. Isto não quer dizer que os peões não fossem afetados pelo degredo, mas a recíproca não era verdadeira: uma pessoa de mor qualidade nunca seria açoitada; esta última categoria era degredada preferencialmente para a África, ao passo que os peões eram expedidos para fora de Lisboa, mas continuavam no país.25 As Ordenações Filipinas reforçaram, no Livro V, título 68, as disposições que, trinta anos antes, fizera D. Sebastião: 70

Dos vadios. Mandamos que qualquer homem que não viver como senhor, ou com amo, não tiver ofício, nem outro mester, em que trabalhe, ou ganhe sua vida, ou não andar negociando algum negócio seu, ou alheio, passados 20 dias do dia que chegar a qualquer cidade, vila ou lugar, não tomando dentro dos ditos 20 dias amo, ou senhor, com quem viva, ou mester em que trabalhe e ganhe sua vida, ou se tomar, e depois o deixar, e não continuar, seja preso e açoitado publicamente. E se for pessoa, em que não caibam açoites, seja degredado para África por um ano.26

Se vadios, mendigos e toda espécie de pobres pulularam em Portugal no período compreendido entre a consolidação da dinastia de Avis no poder e o florescer do Império Colonial, as condições internas do pequeno reino não favoreceram a sua diminuição. No século XVIII , ao se referir às naus que partiam, dizia o cronista Luís Montez Matoso que “já se vai prendendo para a Índia”;27 em 1667, 24 , Segundo Rui d'Abreu Torres, Vadiagem ” p.239. 25 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.116-7. 26 , Ibid., p.172-3. 27 , Ibid, p.156.

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a Coroa promulgou uma série de editos violentamente repressivos, ordenando o sentenciamento sumário de pessoas que ainda esperavam julgamento. Culpados de crimes como vagabundagem eram sentenciados ao degredo para Mazagão, no Marrocos, enquanto os envolvidos com ofensas mais graves seguiam deportados para o Maranhão, Brasil e Cachéu.28 A partir do momento em que existiram colônias, o estado mercantilista europeu se encarregou de propulsionar seu povoamento com uma grande parcela de elementos socialmente desclassificados. Por toda a Europa presenciou-se o recrutamento forçado dessa gente, emigração que, no dizer de Eric Williams, “condizia com as teorias mercantilistas da época que preconizavam vigorosamente que se pusesse o pobre no trabalho industrioso e útil e se favorecesse a emigração, voluntária ou involuntária, a fim de aliviar a proporção de pobres e achar ocupações mais proveitosas no estrangeiro para os ociosos e vagabundos da metrópole”.29 EM 1664, a Inglaterra baniu para as colônias uma enorme quantidade de vagabundos, vadios, desocupados, ladrões e ciganos; nos anos que antecederam o Toleration Act (1689), os distúrbios políticos e religiosos engrossaram a emigração, que arrastou, entre outros, muitos dos prisioneiros irlandeses de Cromwell.30 A deportação de criminosos chegou a proporcionar lucros, negociantes e juízes instrumentalizando a lei para aumentar o número de criminosos deportados para as suas plantações antilhanas de açúcar: “Aterrorizavam os pequenos transgressores com a perspectiva de enforcamento e depois os induziam a solicitar deportação”.31 28 , Boxer, ob.cit., c. XIII : “Era comum que algumas semanas antes da partida anual para as Índias, circulares oficiais forem enviadas a todos os corregedores da Comarca lembrando-os de reunir e prender os criminosos efetivos ou potenciais, a fim de que fossem sentenciados ao degredo para a Índia”. – p.314. 29 , Eric Williams, Capitalismo e escravidão, trad., Rio de Janeiro, 1975, p.14. 30 , Ibid, p.16-7. 31 , Ibid, p.19.

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Parte considerável da mão-de-obra recrutada para o povoamento das colônias norte-americanas foi abarcada pelo sistema de servidão temporária; o indivíduo assinava um contrato em que se comprometia a trabalhar por tempo determinado (entre 5 e 10 anos), recebendo, em troca, a passagem, a manutenção de sua subsistência e, no fim do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em dinheiro.32 O tratamento dispensado a esses infelizes praticamente não diferiu do que receberia, anos depois, os escravos negros. Ainda para Eric Williams, a servidão branca teria sido o sistema sobre que se montou o tráfico de escravos: “base histórica em que se ergueu a escravidão negra”.33

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3. BR ASIL: ESTRUTUR A ECONÔMICA E PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO SOCIAL , Até aqui, foi rapidamente analisado o processo de pauperização crescente que atingiu em cheio a Europa, sobretudo, a partir do século XIV. Mais ainda, os mecanismos de que lançava mão o Velho Continente para, uma vez descoberto o Novo Mundo, minorar o ônus representado pelos pobres improdutivos e, simultaneamente, povoar as colônias que se iam formando. Procurou-se também mostrar como Portugal, às vésperas de 32 , “Os esforços realizados principalmente na Inglaterra, para recrutar mão-de-obra no regime prevalecente de servidão temporária, se intensificaram com a prosperidade do negócio. Por todos os meios procurava-se induzir as pessoas que haviam cometido qualquer crime ou mesmo contravenção a vender-se para trabalhar na América em vez de ir para o cárcere. Contudo, o suprimento de mão-de-obra deveria ser insuficiente, pois a prática do rapto de adultos e crianças tendeu a transformar-se em calamidade pública nesse país”. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, 7ª ed., São Paulo, 1969, p.26. 33 , Eric Williams, ob.cit., p.24. Para esse autor, a escravidão “faz parte desse quadro geral do tratamento cruel das classes desprivilegiadas, das insensíveis leis dos pobres e severas leis feudais, e da indiferença com que a classe capitalista ascendente estava “começando a calcular a prosperidade em termos de libras esterlinas e... acostumando-se à ideia de sacrificar a vida humana ao imperativo sagrado do aumento da produção”. – p.9.

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se tornar metrópole colonizadora, inseria-se no movimento geral europeu. Assim, processo de pauperização e utilização dos pobres e desclassificados como povoadores das colônias adquiriram feição de dois grandes movimentos que marcaram a história do Ocidente no período compreendido entre os séculos XIV e XVII; tê-los como ponto de referência é imprescindível para se poder compreender as raízes do fenômeno de desclassificação tal como se processou no Brasil colonial, mas não é o bastante: a compreensão das condicionantes estruturais que propiciaram entre nós o aparecimento de uma vasta camada de homens livres pobres e expropriados só poderá ser satisfatória na medida em que, considerando o que há de comum e genérico, buscar a ultrapassagem: procurar o específico e o particular. Colônia americana de uma metrópole europeia que o pauperismo atingira desde o século XIV, o Brasil fazia parte do Império Colonial português, inserindo-se portanto no que ficou conhecido como Sistema Colonial da Época Mercantilista. Mas, antes de surgir nas colônias norte-americanas, nas colônias do Mar das Antilhas ou nas do mundo hispânico, foi na colônia portuguesa da América que se enraizou a escravidão. Mais ainda: enquanto o sistema de entrepostos e feitorias que marcou o comércio com a Ásia ainda propiciava lucros a Portugal, no Brasil já se plantava cana e comercializava o açúcar, permitindo, assim, que se fale, já para meados do século XVI , de uma agroindústria voltada para a exportação de gêneros comerciáveis no mercado externo. Colônia da época mercantilista, seu objetivo máximo era dar lucros à Metrópole e nela propulsionar a acumulação de capital através do exclusivo de comércio e do tráfico negreiro, constituindo-se em “retaguarda econômica da Metrópole” e lhe garantindo a autonomia.34 A adoção do trabalho escravo se deveu, nesse contex34 , Utilizo aqui a análise de Fernando Novais no trabalho já citado, sobretudo o capitulo 2, “A crise do antigo sistema colonial”, no qual é examinada a colonização moderna como elemento acelerador da acumulação primitiva: “... a colonização do Novo Mundo na Época Moderna apresenta-se como peça de um sistema, instru-

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to à necessidade de maximizar os lucros através, por um lado da superexploração de uma forma de trabalho compulsório-limite – pois eram apropriados o trabalho e o trabalhador –, e, por outro, às grandes vantagens comerciais que advinham do tráfico.35 Assim, a exploração colonial se apoiou, desde o início, na grande propriedade agrícola de cunho comercial e no escravismo. Resta saber como um e outro elemento atuaram no processo de formação de desclassificados sociais. Partindo-se da análise da estrutura econômica da colônia, pode-se constatar que havia condições favoráveis à proliferação de desclassificados: nas suas linhas gerais, tratava-se de uma colônia de exploração destinada a produzir gêneros tropicais cuja comercialização favorecesse ao máximo a acumulação de capital nos centros hegemônicos europeus. Uma economia de bases tão frágeis, tão precárias, centrada na grande propriedade agrícola e na exploração em larga escala, estava fadada a arrastar consigo um grande número de indivíduos, constantemente afetados pelas flutuações e incertezas do mercado internacional.36 Ao mesmo tempo, impedia que os desmento de acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil. (…) Completa-se, entrementes, a conotação do “sentido profundo da colonização: comercial e capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo moderno”. – p.70. 35 , Para Fernando Novais, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão colonial, e na “preferência pelo africano se revela a engrenagem do sistema mercantilista de colonização, que visava promover a acumulação primitiva na metrópole: ora, o tráfico negreiro, isto é, o abastecimento das colônias com escravos, abria um novo e importante setor do comércio colonial, enquanto o apresamento dos indígenas era um negócio interno da colônia. Assim, os ganhos comerciais resultantes da preação dos aborígenes mantinham-se na colônia, com os colonos empenhados nesse 'gênero de vida'; a acumulação gerada no comércio africano, entretanto, fluía para a metrópole, realizavam-na os mercadores metropolitanos, engajados no abastecimento dessa 'mercadoria'. Esse talvez seja o segredo da melhor 'adaptação' do negro à lavoura... escravista”. – p.105. 36 , Celso Furtado chama a atenção, na obra já citada, para a enorme capacidade

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providos de cabedal tivessem acesso às fontes geradoras de riqueza. Por sua vez, o escravismo desempenhava neste processo um papel igualmente importante, bloqueando na maior parte das vezes as possibilidades de utilização da mão-de-obra livre, limitada assim aos interstícios que, por um motivo ou por outro, não podiam ser ocupados pelo trabalho escravo. Mais ainda: esteio da economia e princípio articulador da sociedade, o escravismo gerava uma desqualificação do trabalho aos olhos do homem livre, e provocava, no escravo recém-egresso do cativeiro, uma situação bastante peculiar e que não raro assumia as características de um verdadeiro deslocamento. Mesmo assim, o número dos homens livres e libertos aumentou muito no decorrer o período colonial. Essa população livre teve, entretanto um papel extremamente peculiar no nosso contexto colonial. Inicialmente, conforme viu com propriedade Caio Prado Jr., a sociedade foi definida basicamente pelos extremos: os senhores e os escravos, que os portugueses conheciam e exploravam desde o século XV;37 as funções socioecoda indústria açucareira em resistir aos fluxos e refluxos do mercado internacional; refere-se entretanto ao maquinário, aos bens de capital. Parece evidente que a população pobre e mesmo remediada muito sofreu com essa instabilidade, conforme observa outro autor: “... já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que se resume a história econômica do Brasil colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência. Passará a vegetar à margem da ordem social”. – Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo (1942), 13ª ed., São Paulo, 1973, p.286. Semelhante é a posição de Sérgio Buarque de Holanda: “Os próprios vícios do sistema econômico de produção tinham criado, em todo o Brasil colonial, uma imensa população flutuante, sem posição social nítida, vivendo parasitariamente à margem das atividades regulares e remuneradoras”. – Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2. 37 , Em A escravidão africana no Brasil – das origens à extinção do tráfico, Maurício Goulart fornece um painel geral dos primeiros tempos do escravismo em Portugal e suas colônias. Cf. c.I, p.7-28.

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nômicas eram, então, bem definidas. No decorrer do processo de colonização, os extremos da escala social continuaram a ser claramente configurados, mas a estrutura da sociedade foi se tornando mais complexa devido ao aumento da “camada intermédia”, cuja indefinição inicial foi, aos poucos, assumindo o caráter de desclassificação.38 A camada dos desclassificados ocupou todo o “vácuo imenso” que se abriu entre os extremos da escala social, categorias “nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização”.39 Ao contrário dos senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico, incerto e aleatório.40 Ocupou as funções que o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (ca38 , “Mas formaram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema produtivo da colônia. Apesar disto, seus contingentes foram crescendo, crescimento que também era fatal, e resultava do mesmo sistema da colonização. Acabaram constituindo uma parte considerável da população e tendendo sempre para o aumento. O desequilíbrio era fatal”. – Caio Prado Jr. ob.cit., p.360. 39 , Caio Prado Jr., ob.cit., p. 281. 40 , “Para este setor, não se pode nem ao menos falar em 'estrutura social', porque é a instabilidade e a incoerência que se caracterizam, tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desagregação social, tão salientes e características da vida brasileira e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização”. – Caio Prado Jr., ob.cit., p.34. Em Circuito fechado, diz Florestan Fernandes: “Entre esses dois extremos situava-se uma população livre de posição ambígua, predominantemente mestiça de brancos e indígenas, que se identificava com o segmento dominante em termos de lealdade e de solidariedade, mas nem sempre se incluía na ordem estamental. Onde o crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência mas condenando-se a condições permanentes de anomia social”. Circuito fechado, São Paulo, 1976, cap. A sociedade escravista , p.32.

pitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio). No Brasil, como no Ocidente moderno, o trabalho decente e honrado é o que se relaciona à praga bíblica: “amassarás o pão com o suor do teu rosto.” Mas há diferenças básicas entre a concepção de desclassificado na Europa pré-capitalista e no Brasil colonial: lá, a inadaptação a formas sistemáticas de exploração do trabalho pode ser explicada pelo nascimento da sociedade capitalista que desestruturou o trabalho de caráter coletivo dos servos feudais; aqui, são o escravismo e a necessidade da superexploração os principais responsáveis pelo aviltamento do trabalho, aviltamento esse que torna impossível a compreensão e a persistência das formas primitivas comunitárias e assistemáticas de trabalho, como foram a africana e a indígena. Nas metrópoles e nas colônias, é o momento da gestação do capitalismo; entretanto, apesar de complementares, conexas e até mesmo indissociáveis, são diversas as formas com que se apresenta em um e noutro ponto do mundo. É nessa unidade contraditória do fenômeno que se explica a especificidade do processo histórico em cada uma das partes. A noção de trabalho vigente na colônia é importante para a compreensão de outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nós assume a expressão vadiagem e a categoria vadio. Mais do que na Europa pré-capitalista, o vadio é aqui o indivíduo que não se insere nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato, a designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e atividades esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição objetiva desta categoria social. Atentando-se para algumas das conotações que a palavra assume no trabalho do jesuíta Antonil, pode-se ter uma ideia dessa multiplicidade de acepções, aqui referentes a fins do século XVII e inícios do século XVIII , já que a Cultura e opulência surgiu em 1711: “Para vadios, tenha enxada e foices, e se se quiserem deter no engenho, mande-lhes dizer pelo feitor que trabalhando, lhes pagarão seu jornal. E, desta sorte, ou seguirão seu caminho, ou de vadios se farão jornaleiros”.41 O vadio é aqui o indivíduo não inserido na estrutura 41 , André João Antonil, ob.cit., p.168.

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de produção colonial, e que pode, de um momento para o outro, ser aproveitado por ela. Mais adiante, Antonil opõe vadio a homem de cabedal: “Convidou a fama das minas tão abundantes do Brasil homens de toda a casta e de todas as partes, uns de cabedal, e outros vadios”.42 Vadios, nesta passagem, é por extensão todo homem desprovido de dinheiro. E ainda em Antonil, a palavra adquire nova cor: “Os vadios que vão às minas para tirar ouro não dos ribeiros, mas dos canudos em que o ajuntam e guardam os que trabalham nas catas, usaram de traições lamentáveis e de mortes mais que cruéis, ficando estes crimes sem castigo”.43 Este vadio é portanto, criminoso e ladrão. Identificados genericamente aos infratores são os vadios de que fala a correspondência entre Gomes Freire de Andrada e o governador interino Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, quando tratam dos motins ocorridos no sertão do rio São Francisco em 1736 e que, segundo Diogo de Vasconcelos, constituíram-se numa típica rebelião de potentados locais contra o fisco, ou seja, contra a autoridade organizada:44 “No sertão houve duas assuadas, uma contra o juiz de Papagaio que ia tirar uma devassa na barra do rio das Velhas, outra nos confins da capitania para a parte do rio das Velhas, digo rio Verde, contra o comissário André Moreira de Carvalho, encarregado da cobrança da capitação, e suposto que só constassem de vadio que como diziam não queriam que se tirasse devassa aonde nunca se tirou, nem se cobrasse direito algum real aonde só se devia dizimo a Deus...”.45 Estes vadios são, portanto, indivíduos que, ao que parece, formulam com clareza a sua resistência ante o Estado, insistindo na persistência do localismo. Podem, neste contexto, ser opositores bem situados socialmente, mas um trecho que segue na 42 , André João Antonil, ob.cit., p.303 43 , Ibid. 44 , Diogo de Vasconcellos, História média de Minas Gerais, capítulo Motins no sertão.”

45 , Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 29-VI-1736, em: Motins no sertão e outras ocorrências em Minas Gerais , RAPM , v.1, 1896, p.649.

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mesma carta faz pensar que sejam mandatários de potentados: “... mandando logo prender Antonio Tinoco Barcellos, que por cartas de pessoas que reputo zelosas e verdadeiras, me constava fomentar os vadios que fizeram as assuadas”.46 Em carta de 24 de julho de 1736, Gomes Freire, ocupado com negócios no Rio de Janeiro, congratulava o governador interino pelas “admiráveis providências que tem tomado para o sertão a extinção dos vadios”, aqui claramente identificados a revoltosos.47 Trabalhadores esporádico, homem desprovido de dinheiro, criminoso, ladrão, sublevado, revoltoso e até mesmo potentado dissidente, eis algumas das conotações assumidas pela personagem do vadio colonial. Apesar de imprecisão pode-se, na maior parte das vezes, identificar vadio e homem pobre expropriado, mesmo que para isto seja necessário uma leitura cuidadosa das fontes. O que se torna flagrante a partir dessa leitura é, entretanto, o destaque especial dado ao termo como designativo da infração e da desclassificação, o que já fora apontado acima quando se constatou o uso que dessa palavra se faz nas leis portuguesas. Por um motivo ou por outro, por mais variada e fluida que tenha sido a “camada intermédia” nos tempos coloniais, não parece pequeno o papel nela desempenhado pelo que se convencionou chamar vadio, expressão que, de agora em diante, será frequentemente usada neste trabalho como sinônimo de desclassificado social. Elemento vomitado por um sistema que simultaneamente o criava e o deixava sem razão de ser, vadio poderia se tornar o pequeno proprietário que não conseguia se manter à sombra do senhor de engenho; o artesão que não encontrava meio propício para o exercício de sua profissão; o mulato que não desejava mourejar ao lado negro – pois não queria ser confundido com ele – e que não tinha condições de ingressar no mundo dos brancos; vadio continuava muitas vezes a ser o que já viera de além-mar com esta pecha: o cri46 , Ibid, p.650. 47 , Das cartas do exmo. sr. Gomes Freire de Andrade , em RPHG , v. XVI , II , p.246

48 , Antonil, ob.cit., p.264.

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minoso, o ladrão, o degredado em geral. À sua volta formava-se um círculo vicioso: a estrutura econômica engendrava o desocupado, impedindo-o de ter atividades constantes; o desocupado, desprovido de trabalho, tornava-se oneroso ao sistema. Aparentando-se com os componentes do exército industrial de reserva, o desclassificado se engastava, entretanto, num contexto próprio: o do escravismo.

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4. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO NAS MINAS , Personagem presente na nossa história desde os inícios da colonização, a gênese e desenvolvimento do vadio tiveram características gerais comuns a toda a colônia. Tentei traçar acima as componentes estruturais gerais de seu engendramento, passando, a partir de agora, a examinar as peculiaridades que envolveram a sua presença na zona mineradora. Como já foi visto no capítulo anterior, a mineração se estabeleceu sob o signo da pobreza e da conturbação social, marcando-a sobretudo o enorme afluxo de gente que acudiu ao apelo do ouro e cuja composição social se apresentava bastante heterogênea. Mais do que em qualquer outro ponto da colônia, foi grande nas Minas a instabilidade social, a itinerância, o imediatismo, o caráter provisório assumido pelos empreendimentos. Os arraiais auríferos foram, nos primeiros tempos, “freguesias móveis como os filhos de Israel no deserto”.48 O autor do diário da viagem do conde de Assumar às Minas se espanta com o aspecto de São João del Rei, que podendo ser das mais bem plantadas vilas das Minas, era, entretanto, uma das piores, “por ter quase todas as casas de palha, e umas mui separadas das outras e juntamente pelas lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem, amanhã as botam em terra para trabalhar, o que causa toda irregularidade...”.49 De fato, a empresa mineira era transitória e itinerante, ca49 , Diário da jornada que fez o Exmo. sr. d. Pedro desde o Rio de Janeiro até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, no ano de 1717

– Revista do SPHAN , n.3, p.313. 50 , Para essa itinerância da empresa e o baixo teor de capital fixo, ver Celso

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racterizando-se pelo baixo teor de capital fixo e pela capacidade de deslocamento em tempo relativamente curto. A exploração aurífera obedecia, no seu desenvolvimento ao lucro mais imediato: voltava-se inicialmente para o ouro depositado no fundo dos rios (aluvião), depois para o ouro depositado nas encostas (grupiaras) e, finalmente, para os veios subterrâneos (galerias). Nesse contexto, era a fase inicial a que maiores lucros apresentava. A população acompanhava os trabalhos da exploração aurífera no seu itinerário, canalizando para a mineração todos os seus esforços e deixando de lado as outras atividades. Os resultados imediatos desse procedimento eram, por um lado, o desenraizamento constante da população e, por outro, a fome que, conforme se viu no capítulo anterior, assombrava a empresa mineradora.50 As pessoas tendiam a ver como provisório e intermitente tudo que as cercava; as primeiras minerações, situadas ao longo dos rios, sujeitavam o ritmo do seu trabalho à alternância dos períodos de chuva e de seca. A fixação do homem à terra só se estabilizava um pouco mais quando a exploração se fixava nos aluviões de meia encosta, as grupiaras ou catas altas.51 A itinerância e o senso do provisório persistiram por muito tempo, a ponto de, em 1808, Mawe captar seus ecos: “... os agricultores pareciam agir como se o arrendamento, em virtude do qual possuíam as terras, estivessem prestes a ser anulado: tudo em torno deles parecia anunciar criaturas que vivem de expedientes”.52 Explicadas Furtado, ob.cit., p.82. 51 , Miran de Barros Latif, ob.cit., p.91. Entretanto todo o período minerador, parece ter sido maior o prestigio da mineração aluvional. Na sua “Memória” de 1799, Vieira Couto dá um motivo possível: “O horror de se soterrar um homem em uma mina por todo um dia, de se despedir ao nascer do sol de sua brilhante luz, e de só se guiar pelo fraco clarão de uma candeia, de ouvir estalar a cada instante a montanha sobre a cabeça, e esperar a cada passo pela morte, parece que estas coisas foram desgostando pouco a pouco os homens do trabalho das minas, e enfim os determinaram por uma vez para a mineração dos rios.” – ob.cit., p.303. 52 , Mawe, ob.cit., p.154-5. 53 , Caio Prado Jr. Considera os deslocamentos de população como ensaios e tentativas caracteristicamente brasileiros de procura de melhores condições: “No

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nas Minas por uma série de fatores ligados ao caráter da exploração aurífera, essas peculiaridades são, no seu conjunto, clarificadas pelo próprio sentido da exploração colonial, assentada na aferição rápida e imediata do maior lucro possível.53 Uma série infindável de ditados populares refletem esse estado de coisas, que empresta suas características também à formação social da colônia, profundamente marcada pela instabilidade: “Por fora muita farofa, por dentro molambo só”, citado por Gilberto Freyre e que apresenta outra variação: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”, um e outro refletindo a ideia do falso fausto que já foi explorada atrás; “Pai rico, filho nobre, neto pobre”, também mencionado pelo sociólogo pernambucano, é um ditado que, nas Minas, assume cor local – “Capitão Tomé ouro só, neto molambo só” – e que no sul do Brasil se apresenta como “Pai taverneiro, filho cavaleiro, neto indigente”;54 registre-se ainda “Avô ladrão, filho barão, neto mandrião”. Há também os curiosos ditos coletados por Aires da Mata Machado na região do arraial da Chapada, e que, mesmo quando posteriores à época de ouro da mineração, são extremamente significativos como reminiscências: “Mineração e eleição, só depois da apuração”, claramente a alusivo à fraude eleitoral, numa comparação entre o caráter Brasil, este fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização, aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao analisar a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará o algodão ou o café: simplesmente oportunidade de momento...” – ob.cit., p.73. Há a esse respeito uma bela passagem de Guimarães Rosa: “Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-giro no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: O Zé -Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: 'Zé-Zim, porque que é que você não cria galinhas d'angola, como todo mundo faz?' 'Quero criar nada não...' – me deu resposta: 'Eu gosto muito de mudar...'” – Grande sertão: veredas, 12ª ed., Rio de Janeiro, 1978, p.35. 54 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, respectivamente p.331, 356 e 86. 55 , Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais, Rio de Janeiro, s.d., p.32.

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incerto do resultado das eleições e o da faina mineradora; “Serviço de muita ganga, entra vestido e sai de tanga”, onde fica expresso o perigoso representado por investimentos de vulto em algo tão aleatório como a mineração. E, por fim, ante todos os aspectos adversos desta atividade, o conformismo do mineiro: “O que há de ser meu está debaixo da terra”, onde o duplo sentido liga inexoravelmente o homem ao seu trabalho até que sobrevenha a morte.55 Na mineração, como de resto em qualquer atividade primordial da colônia, a força de trabalho era basicamente escrava, havendo entretanto os interstícios ocupados pelo trabalho livre ou semilivre.56 Dificilmente o homem livre destituído de recursos vultuosos poderia se manter como proprietário, sobretudo em Minas, região que, apesar de tida tradicionalmente como rica e democrática, apresentava possibilidades favoráveis apenas a um pequeno número de pessoas. A análise empreendida no capítulo anterior tentou mostrar este aspecto restrito da riqueza, e os documentos relativos à desigualdade e injustiça na distribuição das datas minerais glosam essa análise. De início, pelo Regimento de distribuição das lavras, nota-se o caráter restritivo e eminentemente escravista da mineração: as datas seriam concedidas conforme o número de escravos que cada um possuísse, donde parece ficar descartada a possibilidade, para o homem livre pobre, de possuir lavra sua.57 Mesmo que se tome como ponto de partida a afirmação corrente que diz ter sido muito raro o homem livre que, mesmo pobre, não possuísse escravos, defronta56 , Florestan Fernandes, A sociedade escravista , ob.cit., p.20-1. 57 , A primeira data cabia ao descobridor do ribeiro, que tinha o direito de escolher o local; a segunda ia para a Fazenda Real, sendo vendida em hasta pública pelo maior preço; a terceira também era dada ao descobridor para que a minerasse; as demais eram distribuídas aos pretendentes conforme o número de escravos de cada um: “Se o pretendente tivesse 12 ou mais escravos, ganharia uma data de 30 braças em quadra (cerca de 66m²); se o mineiro possuísse menos de 12 escravos, receberia terra mineral na proporção de 2 braças e meia por escravo (cerca de 5,5m²) – Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit., v.I , p.54.

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mo-nos com uma situação de injustiça e desigualdade, refletida até nos documentos oficiais. Essa situação acha-se descrita em carta do Ouvidor-Geral da Comarca do rio das Mortes, datada de 1733: Senhor. Na forma do capítulo 5º, e 20 do Regimento das terras mineiras, é V.M servido ordenar se repartam estas, segundo o número de escravos, que os mineiros tiver e, repartindo-se as datas, braças e ainda palmos, sendo necessário, para que todos, assim ricos, como pobres, fiquem acomodados, e extraiam ouro, o que se tem praticado tanto pelo contrário nestas Minas, que os ricos fizeram, e tem feito seleiros das terras mineirais, em prejuízo dos Reais Quintos de V.M ., e da observância do capítulo 7º do mesmo Regimento, porque as não lavram, e de dos pobres (sic), que não tendo onde trabalhar se sujeitam a meter os escravos nas lavras daqueles só pelo terço do ouro que extraem, ou lhas compram por exorbitantes preços, ficando os pobres sem terras para lavrar, havendo-as em poder dos ricos e poderosos, de cuja desordem nascem mortes, demandas e dissenções... Os grandes responsáveis por esse estado de coisas seriam, segundo o Ouvidor, os Guardas-Mores, que “por sua própria autoridade” davam todas as lavras aos poderosos e deixavam os pobres “sem lhe repartirem uma tão só braça”. O magistrado pedia solução para as injustiças e uma repartição mais racional das terras, de maneira a que ficassem “assim ricos, como poderosos, e pobres todos acomodados, e extraiam ouro, e paguei quintos a V.M .”.58 O rei, D. João V, respondeu com uma provisão dirigida ao conde das Galvêas, ordenando-lhe que se manifestasse sobre a “desordem” a que aludia o Ouvidor. A preocupação que movia as autoridades no sentido de procurarem uma distribuição mais justas das datas 58 , Carta do ouvidor-geral da comarca do rio das Mortes, e superintendente, Francisco Leite Tavares – 20-VII-1733, em: Terras Minerais – Relação das ordens sobre terras minerais, que, por cópia, foi enviada a Conselho Geral da Província de Minas Gerais – RAPM , I, 1896, p.699-700.

59 , Bastante lúcida para a época é a formulação de Diogo de Vasconcellos no grande livro que é a História média: “As duas principais causas que impediram a

não era a situação de penúria em que se encontravam os mineiros modestos, com quem, de fato, pouco se importavam a Coroa e seus prebostes; o verdadeiro interesse em jogo era o pagamento adequado dos Reais Quintos, a que devia concorrer a maior número possível de pessoas.59 A principal resposta do homem livre pobre ante a situação foi, ao que tudo indica, o garimpo e a faiscarem, que mal davam para a subsistência. Os “homens faiscadores” trabalhavam nos rios com uns poucos escravos, e muitos deixavam esse tipo de atividade por não poderem se manter, nem a seus negros.60 A situação continuou difícil para o pequeno minerador durante todo o período. Se a empresa exigia algum serviço mais custoso, o mineiro não tinha condições de arcar com as despesas.61 Não era,

organização econômica das indústrias eram as minas de ouro e a escravidão. Como bem se adivinha, estas causas deixavam os moços sem emprego, ainda que quisessem empregar-se; e, como nem todos podiam receber a educação moral suficiente, não era para se estranhar que os povoados se enchessem de libertinos e turbulentos”, p. 212-3. 60 , “... a maior parte deles são os que andam perdidos, porque não tiram as pedras, que bastem para que o seu valor lhe dê o sustento para os seus negros – Carta de D. Lourenço de Almeida a S. Mjde. Sobre providências a tomar na extração dos diamantes . – 11-VI-1730, RAPM , v.VII , 1902, p.266.

61 , “... sendo-me constante a grande decadência em que estão as lavras desta capitania por serem limitadas às faisqueiras dos serviços em que se trabalha e por não terem os mineiros as posses necessárias para fazerem alguns serviços custosos, que poderiam ser de grande utilidade” – Bando de D. Antonio de Noronha – 15-III-1776. APM , S.C ., cód.50, fls. 68v. Diz o desembargador Teixeira Coelho: “Os mineiros, que

se acham faltos de cabedais e onerados com muitas dívidas, não podem fazer serviços custosos; contentam-se pela maior parte, por causa da indigência, em serem simples faiscadores. Sabem que em alguns sítios das suas terras se ocultam ricas formações, e veeiros de ouro; porém como para o extraírem lhes é preciso fazer serviços que excedam suas possibilidades, não se animam a entrar na execução de obra que não tem proporção com as suas forças”. – p.499-500. 62 , “...como mortais, estão os escravos sujeitos à velhice, à doença e À morte; e esta muitas vezes se acelera ou debaixo das ruínas de uma cata profunda, ou no cerco dos rios, que uma imprevista cheia ou outro algum incidente arrombara”. – José

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assim, de admirar que muitos caíssem na miséria, sobretudo quando a mineração começou a declinar. Não se minerava sem escravos, e estes eram custoso, além de morrerem em grande número no serviço insalubre das lavras.62 Carentes de mão-de-obra, os mineiros com frequência faziam os trabalhos de maneira inadequada, entulhando canais que ainda poderiam ser ´pauteis: “Deste modo as terras de mineração em poucos anos se tornam inúteis; e os mineiros sucumbem aos miseráveis efeitos da indigência”.63 Até os filhos de antigos e ricos mineiros, empenhados e falidos, caíam na miséria, e desesperançosos da mineração, escondiam-se nos matos e nas roças.64 No início do século XIX , os viajantes traçarão o retrato trágico de homens miseráveis que vegetavam nas fímbrias do sistema, voltados para um agricultura de subsistência mesquinha e esporádica que, muitas vezes, mal conseguia impedir com que morressem de fome. 5. AS VÁR IAS FOR MAS DE UTILIDADE DOS DECLASSIFICADOS , Somando-se aos aventureiros do ouro e aos desclassificados que Portugal despejava nas Minas, toda uma camada de gente decaída e triturada pela engrenagem econômica da colônia ficava aparentemente sem razão de ser, vagando pelos arraiais, pedindo esmola e comida, brigando pela estrada e pelas serranias, amanhecendo morta embaixo das pontes ou no fundo dos córregos mineiros. Muitos morriam de fome e de doença, mestiços desraçados que, não bastassem a desclassificação social e econômica, traziam estigmatiElói Ottoni, Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais – 1798 – ABN , v.XXX , p.304. 63 , José Elói Ottoni, ob.cit., p.305. 64 , Vieira Couto, Considerações sobre as duas classes ..., RIHGB , v.XXV, 1862, p.421. 65 , A ideia curiosa da desclassificação racial foi, de certa forma, desenvolvida por Mário de Andrade num dos mais belos ensaios que se escreveram no Brasil: “Que os mulatos eram façanhudos, não tem dúvida que sim. Mas eram porém, pelo simples fato de formarem a classe servil numerosa, mas livre. É tantas vezes a classe

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zada na pele a desclassificação racial.65 Sua presença inquietava os administradores coloniais e todos aqueles que escreveram sobre as Minas; dentre estes, cabe destacar o desembargador Teixeira Coelho. A sua Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais (1780) é um documento precioso e indispensável à compreensão do século XVIII mineiro. Nela, o magistrado se estende sobre os vadios, origem e causa de toda a espécie de desordens, e adota uma posição extremamente peculiar em face do problema que representam: “Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem muitas vezes legislado; porém as regras comuns relativas a este ponto não podem ser aplicáveis ao território de Minas; porque estes vadios, que em outra parte seriam prejudiciais, são ali úteis”.66 Negros forros e mestiços na sua maior parte – mulatos, caboclos, carijós –, serviam para povoar locais distantes como Cuieté, Abre Campo e Peçanha, onde se iam estabelecendo presídios; engrossavam os contingentes que entravam mato adentro destruindo quilombos e prendendo foragidos; cultivam plantações de subsistência, enfim, realizavam uma série de tarefas que não podiam ser cumpridas pela mão-de-obra escrava. Os vadios – e eis aqui esta palavra servindo para designar toda a camada dos desclassificados sociais – existiam em todos os países,

que desclassifica os homens... (…) Os mulatos não eram nem melhores nem piores que brancos portugueses ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação particular, desclassificados por não terem raça mais. Nem eram negros sob o bacalhau escravocrata, nem branco mandões e donos livres, dotados duma liberdade muito vazia, que não tinha nenhuma espécie de educação, nem meios para se ocupar permanentemente. Não eram escravos mais, não chegavam a ser proletariado, nem nada”. – O Aleijadinho (1928), em: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, São Paulo, s.d., p.19-20. 66 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.479. O grifo é meu. 67 , Cf. Michel Foucault, Histoire de la Folie à l' Âge Classique, Paris, 1972, 1ª parte, c.II , p.56-91; Pierre Deyon, Le Temps des Prisons, Paris, 1975, c.II , p.31-48; Christian Paultre, De la Répression de la Mendicité et du Vagabondage em France sous l'Ancien Régime (1906), Genebra, 1975 (reimpressão, 3ª parte, p.137-310.

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eram parte constitutiva do momento histórico, e contra eles incidia toda a legislação repressiva que, tendo florescido com especial vigor nos séculos XVI e XVII , entrava pelo século XVIII . Em toda parte, eram motivo de preocupação para as autoridades, que os fechavam em workhouses, em hospícios, em instituições de caridade.67 Geremeck narra as hostilidades que, já nos séculos XIV e XV, existiam contra os marginais, e que se traduziam muitas vezes em expressões linguísticas. Dá o exemplo de um vagabundo auxiliar de pedreiro que aparece condenado com a sentença de morte por ser inútil ao mundo.68 Veredicto pronunciado em relação a um vagabundo, Geremeck o considera como expressão da opinião corrente sobre os marginais, chegando mesmo a afirmar que “o desprezo de que são objeto constitui o cimento dessas categorias tão diversas, tão diferentes quanto à sua gênese e às funções que assumem”.69 A ideia de inutilidade de que se reveste esta categoria social aparece, assim como caraterística da consciência coletiva de um momento histórico: o do surgimento do capitalismo. Acha-se estreitamente associada, creio podê-lo afirmar, ao ônus que representa a reprodução desta gente. É a esse ônus que Teixeira Coelho opõe a utilidade dos vadios mineiros, que não eram característica exclusiva da colônia portuguesa setecentista, mas podiam ser encarados sob um ângulo 68 , Textualmente, a sentença dizia: Estoit digne de mourir comme inutile au monde, c'est assavoir d'estre pendu comme larron. B. Geremeck, Les Marginaux Parisiens aux XIV et XV Siècles, c.IX , Les limites du monde marginal , p.329. 69 , Geremeck, ob.cit., p.340. Por ocasião da interpretação do edito de Carlos IX , de 1566, um jurista lionês define vagabundo da seguinte forma: “Vagabonds sont gens oiseux faits-neantz, gens sans aveu, agens abandonnez, gens sans domicile, sans mestier et vacation, et comme les appelles l'ordonnance de la police de Paris, gens qui ne servent que de nombre, sunt pondus inutilae terrae”. Segundo Geremeck, “Criminalité, vagabondage, paupérisme”, p.349. 70 , Aristides de Araújo Maia, Memórias da província de Minas Gerais , em: RAPM , VII , 1885, p.42.

71 , RAPM , v.VI , p.145-6. 72 , Carta do conde de Valladares Ao Morgado de Mateus – 10-III-1770 –em: DI ,

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especial, que desvendava a sua peculiaridade. É nesta peculiaridade que reside a questão. De fato, o que está por detrás da afirmação de Teixeira Coelho é uma ideia de uma mão-de-obra alternativa à escrava, de uma espécie de exército de reserva da escravidão. Era assim que a vadiagem, a desclassificação social, se atrelava a um novo contexto, no qual a utilidade ganhava destaque mas convivia também com o ônus. A documentação permite que se constate com segurança a existência dos desclassificados sociais mineiros, mas não responde à incógnita da sua reprodução, ou seja, as condições concretas de sua subsistência. Como comia e procriava uma “casta de gente” que vivia de expedientes e de biscates esporádicos? Quem arcava com o ônus da reprodução de uma “gente ociosa que só servia para consumir viveres”,70 quem suportava “o peso enorme da parte dos vadios”? 71 A ideia da utilidade dos vadios no século XVIII mineiro se cruza, assim, de modo quase inextricável com a ideia do ônus representado pela vadiagem. Em 1770, escrevia o conde de Valladares, governador de Minas, a seu colega Luís Antonio de Souza, Morgado de Mateus e então capitão-general da capitania de São Paulo, recém-recriada: “De mulatos, cabras e mestiços abunda esta capitania, fazendo-se muitos deles pela sua vadiação, e ociosidade dignos de se fazerem sair desta capitania e de se empregarem em cousas úteis”.72 A eliminação dos vadios pela sua expulsão da capitania significava a supressão de uma gente onerosa e desejável, mas esta possibilidade aparecia imediatamente associada ao emprego dos desclassificados em algo útil, mostrando muito bem a oscilação em que se viam envolvidas as autoridades. O mesmo Valladares, que como se verá adiante teve na tentativa de solucionar o problema dos vadios um v.XIV, 1895, p.272. O grifo é meu. 73 , Para o capitão-mor Manuel Antunes (...) – 10-I-1773, em: APM , SC , cód.199, fls.6V-7. Basílio Teixeira de Savedra sugeria que se estabelecessem novos presídios “para que os presos possam trabalhar nas obras públicas, possam alimentar-se do seu trabalho” – Informação , p.678.

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dos pontos de honra de seu governo, insistia junto aos capitães-mores para que os empregassem: “À minha presença tem chegado que no Distrito da Campanha há várias pessoas ociosas, que cometem suas travessuras, com as quais causam perturbações aos moradores, no que tem grande culpa o comandante daquele Distrito, por não cuidar na forma das minhas ordens, em os pacificar e repreender, ao qual deve admoestar de Ordem Minha, para que reprima os ociosos, e vadios, fazendo que todos cuidem em empregar-se nos seus ofícios, para que vivendo em paz não me venha representações...”73 Não fica explicito qual o caráter desses ofícios, mas está claramente formulada a necessidade de associar a repressão à utilidade. O ônus eventualmente representado pelos desclassificados convertia-se, através do castigo, em trabalho, e portanto, em utilidade. Várias eram as alternativas para a utilização da mão-de-obra desclassificada: constituição dos corpos que se aventuravam pelo sertão em entradas; a guarda, defesa e manutenção dos presídios; o trabalho nas obras públicas e na lavoura de subsistência; a formação de corpos de guarda e polícia privada; a composição de corpos de milícia e de outros recrutados esporadicamente para fins diversos; a abertura e povoamento de novas áreas, as fronteiras.74 74 , A utilização dos vadios nessas funções foi, como já se disse, comum a toda a colônia: “... essa população livre pobre representava uma espécie de 'argamassa paramilitar', usada como um aríete na defesa das povoações, na penetração dos territórios desconhecidos e na conquista de novas fronteiras” – Florestan Fernandes, “A sociedade escravista”, em: Circuito fechado, São Paulo, 1976, p.33. Em são Paulo também se aproveitaram desclassificados, conforme diz Sérgio Buarque de Holanda: “Em muitos lugares, tais elementos podiam ser aproveitados com vantagem, e de fato o eram, na formação de corpos militares destinados à fronteira, na organização de povoações novas, no desbravamento de sertões desconhecidos, como os de Ivaí e Guarapuava. Mas nos distritos vizinhos do porto de embarque das monções, uma grande parte do pessoal disponível tinha de ser absorvido no serviço das canoas”. – Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2. Com os vadios da capitania formavam-se as tripulações das monções que partiam de Porto Feliz (então Araritaguaba) para Cuiabá, e se fundo um capitão-mor daquela localidade, “Por isso esta gente de alguma maneira devem ser respeitados (sic) por sua habilidade no trabalho do

A , Entradas , O devassamento do sertão das Minas e o estabelecimento dos primeiros arraiais auríferos se fizeram sob o signo do aproveitamento dos desclassificados sociais nas bandeiras que entravam pelo mato. Antes mesmo de se procurar ouro no território que depois ficou chamado Minas Gerais, Gabriel Soares, na última década do século XVI , recebeu ordens reais para “tirar das prisões os condenados a degredo, que fossem oficiais mecânicos e mineiros; a estes seria contado como da pena o tempo da expedição”75 Agostinho Barbalho Bezerra, que em 1664 foi encarregado pelo rei do “descobrimento e entabolamento das Minas de Paranaguá”, no então distrito do Rio de Janeiro, recebeu instruções semelhantes: “E porque pode acontecer que pelas capitanias e sertões por onde fizer jornada ao descobrimento das ditas minas andem algumas pessoas retiradas por crimes, ou casos por que a justiça seja parte e rio” – cit. p.72. Em Desterro, atual Florianópolis, havia carência de mão-de-obra por ocasião da pesca das baleias, não bastando os lavradores pobres que então se faziam jornaleiros: “Os trabalhadores voluntários não eram, todavia, suficientes por toda parte. As armações recorriam, por isso, aos circeres, mobilizando sentenciados a trabalhos forçados e até mesmo requisitavam ordenanças das milícias, no que o monopólio real das armações contava com a colaboração das autoridades. Sob ameaça de prisão, também se recrutavam vadios, frequentadores de tavernas, motivo pelo qual muita gente fugia ao se aproximar a temporada da captura da baleia”. – Jacob Gorender, ob.cit., p.229. 75 , Aristides de Araújo Maia, Memória da província de Minas Gerais , em: RAPM , v.VII , 1902, p.26.

76 , Traslados e excertos de alguns escritos com relação à empresa de Agostinho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com algumas observações e anotações – Provisão de 20-V-1664 em: RAPM , v.II ,

1897, p.531. 77 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p.429. 78 , Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da província de São Paulo, São Paulo, 1954, v.I , p.380. 79 , José Manuel Sequeira, Memória , publicado em: Sérgio Buarque de Holanda,

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não hajam outros: hei por bem que sendo necessário aproveitar-se o dito Agostinho Barbalho das ditas pessoas para algumas notícias ou informações do que se pretende neste descobrimento, lhe possa perdoar e perdoe em meu nome o tal crime, que tiver cometido...”.76 A bandeira não vingou devido à morte de Agostinho Barbalho, e nada mais se sabe sobre estes possíveis informantes a serem utilizados pela expedição. Mas a mesma ideia de informantes de condição social indefinida aparece na narrativa que José Joaquim da Rocha faz da bandeira de Fernão Dias Pais, que entrou para o sertão levando com bastardos: estes, às margens do Vupubuçu, foram expedidos “a fim de examinar a finalidade das terras circunvizinhas a este lago, a ver se achavam alguma língua, que melhor ao informasse do que buscavam”;77 bastardo podia então designar tanto o filho natural como o mestiço, sendo certamente esta a acepção a que diz respeito a passagem citada. De qualquer forma, tratar-se-ia de elementos de mísera condição, arregimentados para engrossar a empresa arriscada do sertanista. D. Rodrigo de Castel Blanco – estranho aventureiro que morreu em condições trágicas, envolvendo Borba Gato como possível criminoso – também levou, ao que tudo indica, a sua quota de desclassificados; pelo menos é o que sugere o “Bando mandado publicar na vila de São Paulo e em rodas as mais da capitania, dando perdão aos criminosos que andavam foragidos (exceto os de Lesa-Majestade) para que se apresentassem a fim de fazer parte da força com que D. Rodrigo de Castel Blanco tinha de entrar para o sertão em descoberto de minas”.78 Ao tratar do estímulo que julgava merecerem as expedições voltadas para a procura de pedras preciosas, ouro e outros metais de valor econômico, José Manuel Sequeira também sugere o aproveitamento dos desclassificados: “O único meio de que me lembro (se é Monções, p.137. 80 , Licença de d. Brás Baltazar da Silveira a Lucas de Freitas de Azevedo” – 29-V-1717, APM , SC , cód. 9, fls. 49 V-50.

81 , Descobrimento de Minas Gerais – relação circunstanciada , RIHGB ,

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licito um simples vassalo indicar meios que só competem ao soberano) era o de um decreto real pelo qual se perdoassem todos e quaisquer delitos antes cometidos que não forem de Lesa-Majestade aos facinorosos, que vivem prófugos e foragidos, e que espontaneamente se apresentarem dentro de certo tempo para serem ocupados no exercício do sertão pelo tempo que merecer a gravidade do delito”.79 As diligências de Lucas de Azevedo no sentido de procurar esmeraldas receberam, por “serem em tanta utilidade ao de arregimentarem desclassificados: “... licença para poder haver a si todos aqueles chamados gentios forros de mamelucos, mulatos, negros, índios e bastardos que achar e tiver notícia tirando-os de qualquer parte onde estiverem para o ajudarem nos ditos descobrimentos...”.80 É claro o motivo que norteia a doção dos desclassificados como componentes adequados para entradas e expedições sertanistas: o enveredar pelo mato apresentava enorme tentação para os cativos, que, em situações semelhantes, buscavam a fuga e a liberdade. Além disso, era oneroso à economia colonial afastar um negro minerador de sua faina diária. Assim, dentro da colônia setecentista, as Minas apresentaram feição peculiar: situadas na região central, foram, de certa forma, o resultado das entradas e bandeiras, que levavam um grande número de desclassificados. A desclassificação seria, pois, particularmente intensa naquela região, que se constituiu assim numa amostragem privilegiada do fenômeno ao mesmo tempo em que aliviou outras regiões dos seus elementos indesejados, funcionando como uma “válvula interna”. B , Presídios , Os presídios foram, em grande parte, mantidos e desenvolvidos às custas do trabalho de desclassificados. Localizavam-se em terras remotas, as conquistas, e foram feitos para comv.XXIX , t.1, p.5-114. 82 , Diz José Joaquim da Rocha: “Dos sertões penetrados naquele tempo, era o mais notável, o da Casa da Casca nome que se deu a uma aldeia de gentio situada no lugar hoje denominado Cuieté, ao meio dia do Rio Doce em distância de 5 léguas”. – ob.cit., p.426-7

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bater o extravio do ouro, para inspecionar e impedir o avanço dos índios, sobretudo botocudos.81 Em muitos deles viviam gentios catequizados e pacíficos, e era frequente possuírem campos de lavoura cultivados pelos criminosos e desocupados. Os mais citados são o de Abre campo, o do Peçanha, o do Cuieté, que ao que tudo indica é a mesma localidade que algumas vezes surge designada como Casa da Casca ou Casca.82 Situada no lado Sul do rio Doce, era cortada por vários córregos, ribeiros e rios menores, e em suas margens encontrava-se outro; mas havia um grande problema: índio bravo, botocudo. Esta conquista havia sido promovida por Luís Diogo Lobo da Silva, pelo conde de Valadares e por D. Antonio de Noronha. Este último procurou torná-la produtiva, para lá se dirigindo em pessoa a 12 de setembro de 1779.83 O presídio de Abre Campo fora desenvolvido pelo conde de Valadares, e sua conservação fora considerada de enorme utilidade pelo mesmo D. Antonio de Noronha: “... porque além de haverem nele Minas donde se extrai ouro, serve de embaraço ao gentio para penetrar aquele sertão, e hostilizar as muitas fazendas, que se achavam povoadas e cultivadas nas vizinhanças do rio Casca.”.84. O envio de vadios para os presídios e conquistas foi medida adotada por praticamente todos os governantes nas décadas de 1760, 1770 e até mesmo 1780. As Cartas Chilenas criticam a arbitrariedade de Fanfarrão Minésio e de seus prebostes no trato com essa gente:

83 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.487, 488 e 489. 84. , Carta de D. Antonio de Noronha citada em Teixeira Coelho, ob.cit., p.509. 85 , Carta 3ª, versos 164-169, em: Tarquínio J.B. De Oliveira, As Cartas Chilenas – fontes textuais, São Paulo, 1972, p.92. 86 , Diogo de Vasconcellos, História Média.., p.237. 87 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.237. Segue-se nas p.238-9, uma curiosa passagem: “… os vadios, que em todos os países formaram a classe mais inútil e nefanda, em Minas, dizia D. Antonio de Noronha, eram um elemento neces-

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Os nossos comandantes, que conhecem A vontade do Chefe, também querem Imitar deste Cabo o ardente zelo: Enviam para as pedras os vadios, Que na forma das ordens mandar devem Habitar em desterro novas terras.85

D. Rodrigo José de Menezes pensou em aproveitar economicamente o Cuieté com atividades outras que a mineração: a extração de madeiras e o cultivo de algodoeiros. Para tal, ordenou aos comandantes distritais que enviassem os vadios que conseguissem apanhar para a cadeia de Vila Rica, onde, na formulação feliz de Diogo de Vasconcellos, “escolheriam ou a farda para o Rio Grande, ou a foice para o Cuité”.86 O historiador mineiro considerava ótimo o sistema de utilização deste tipo de mão-de-obra: Porque, primeiro, separava da sociedade sã a parte corrompida que pervertia a mocidade; segundo, utilizava os ociosos em matéria de serviço público; terceiro, aumentava as receitas da coroa, aliviando em geral as quotas da derrama.87

sário para o povoamento e cultivo das colônias, devendo-se lhes em grande parte a segurança da parte civilizada contra os índios ferozes, que eles continham nos remotos presídios.” Confrontada com o trecho de Teixeira Coelho, dá margem a duas hipóteses: 1) A formulação de que os vadios, ódio de todas as nações civilizadas, eram úteis nas Minas é de D. Antonio de Noronha, de quem Teixeira Coelho era grande admirador; 2) Diogo de Vasconcellos leu mal Teixeira Coelho e atribuiu a frase do desembargador ao governante. De qualquer forma, a ideia da utilidade dos vadios mostra a sua presença marcante. 88 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais e meio de remediá-lo, em: RAPM , v.II , 1897, p.314-5.

89 , Requerimento que a S.Exa. Faz sobre datas de terras minerais e sesmarias o alferes João Pereira (…), alferes da ordenança do destacamento dos forros”– 19-X-1770, em: APM , SC , cód. 186, fls. 78-79 V.

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Antes de Diogo de Vasconcelos, D. Rodrigo também deixou expresso o seu conceito sobre o aproveitamento dos vadios no incremento do presídio do Cuieté: Encarreguei a direção desta obra a um homem muito perito, e capaz de dar conta de si, e para nele trabalharem mandei por toda a capitania prender os vadios, que se encontrassem, e remetê-los para aquele sítio, fazendo deste modo com pouco despesa aquela importante obra, e purgando também a sociedade civil dos perturbadores dela.88

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Os presídios e as conquistas remotas eram locais pouco acolhedores. Segundo um artigo integrante de várias expedições às conquistas – inclusive da que, no tempo de Luís Diogo Lobo da Silva, se enviou ao Abre Campo – os indivíduos que lá se viviam passavam “várias fomes e calamidades”, e sofriam constantes investidas dos índios puris, ficando muitos mortos pelos matos.89 Já no século XIX , um senhor pedia comutação ou alteração da pena que coubera a um seu escravo, degredado para o Cuieté: ... é um lugar no centro desta capitania, pouco povoado, pouco sadio e infestado pelo antropófago botocudo, para o qual costumam ser remetidos em muitas ocasiões alguns réus de crimes menos graves...90

De fato, a documentação não indica transgressões graves como motivo de degredo para os presídios: Manuel Lopes Pena, Dionísio Pereira Brandão e Joaquim, de Almeida Pinto, presos pelo coman90 , Para a Mesa do Desembargo do Paço – 21-III-1812, em: RAPM , v.XVII , 1913, cód. 199, fls. 8 V-9. 91 , Para o capitão-mor Manuel Furtado Leite de Mendonça – 21-I-1773, APM , SC , cód. 199, fls. 8V-9.

92 , Conforme decreto de 4-IX-1755, os mendigos e os vagabundos deveriam trabalhar nas obras de Lisboa, Rui d'Abreu Torres, Mendicidade, p.19. Na França, durante o inverno de 1516, procurou-se empregar os vagabundos nos trabalhos destinados a elevar fortificações; quando este não podia ser executado devido ao nível alto das

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dante de São Gonçalo do Rio Abaixo, só seriam remetidos para o Abre Campo caso ficasse flagrante a sua vadiagem, pois caso contrário – “tendo os ditos ofícios, e trabalhando-os” – cumpririam sete dias de prisão e seriam soltos a seguir. O bastardo José Moreira, preso por embriaguez, deveria se apresentar de três em três meses com uma certidão de bem-viver – sem o que, sua sorte seria o Cuieté.91 Pode-se assim imaginar a quantidade de infrações insignificantes que jaziam detrás de muitos dos moradores daquelas paragens. C , Obras públicas e lavoura , Para o trabalho em obras públicas sempre foi comum o emprego de desclassificados.92 Devido ao terrível depoimento das Cartas Chilenas, ficou famosa a construção da Casa da Câmara e Cadeia de Vila Rica empreendida por Luís da Cunha Menezes, o Fanfarrão Minésio.93 Há notícia de vadio trabalhando na abertura de picadas e caminhos durante o governo de D. Rodrigo José de Menezes,94 e o trabalho nas lavouras dos presídios não deixa de ter caráter de obra pública. D. Antonio de Noronha refere-se à agriculturação dos campos do Cuieté como “ofício útil ao público”.95 A utilidade da lavoura não vinha apenas do fato de águas do Sena, empregavam-se vagabundos para remover a lama e o lixo das ruas. Geremeck, Criminalité, vagabondage, paupérisme..., p.351. Na região do Vale do Paraíba, os homens livres pobres eram utilizados para “resolver o crônico problema de construção e conservação de estradas”. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, 2ª ed., São Paulo, 1974, p.97. 93 , As cartas Chilenas, fontes textuais, carta 3ª, p.88-95, e carta 4ª, p.101-10. 94 , Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit., p. 202 e p. 369. 95 , Bando sobre a limpeza de negros calhambolas; taberneiros; mascates de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas vadias – e regularidades de capitães-do-mato, e pedestres – 8-IV-1764, em: APM , SC , cód. 50, fls. 91 V.

96 , Este aspecto foi abordado no capítulo anterior. 97 , Ordem de 24-XI-1734, Coleção sumária das próprias leis, cartas régias, avisos e ordens , em: RAPM , v. XVI , p.450.

98 , “Administração Diamantina – Traslado dos autos de inquirição

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ser a capitania das Minas abastecida em sua maior parte por gêneros vindos de fora, mas está sobretudo ligada ao fato de o trabalho da terra ser, a partir de uma determinada época, encarado como o trabalho por excelência, a base sólida sobre que deveria se apoiar a economia.96 Sendo assim, nada melhor do que ele para redimir o desocupado do vício da ociosidade. Em 1734, o conde das Galvêas lançava uma ordem segundo a qual os vadios não seriam consetidos, obrigando-se lhes “a servir na cultura das terras” mediante pena de expulsão da capitania.97 No Distrito Diamantino, ordenou certa ocasião o Intendente que se fizesse a circunvalação dos campos lavrados “por dez ou doze miseráveis apenados sem paga, sem ferramenta, e sem alimentos”.98 Em 1807, o governador D. Pedro Maria de Ataíde e Mello cogitava da navegação do rio Doce e do devassamento de seus sertões, dizendo que “muitos vadios, gentalha a mais perigosa da sociedade, seriam obrigados a povoar e agricultar estas terras”, e que, nessa empresa, seriam auxiliados pelo gover-

que mandou V. Exa. Proceder sobre as condutas do Intendente dos Diamantes João Inácio do Amaral Silveira e do Fiscal João da Cunha Soto Maior, assim como sobre a importante administração, que lhe está encarregada . – RAPM , v. II , 1897, p.154. Dentre as causas da decadência da agricul-

tura portuguesa arroladas em 1792 pelo Intendente-Geral da agricultura, D. Luís Ferrari de Mordau, a oitava era “Muita gente pobre e muita preguiça”, e a décima, “Muitos vadios, muitos criados, muitos ociosos e muitos soldados extraídos da lavoura”. Entre outras proposições para o solucionamento do problema, estava a mobilização para o trabalho dos “vadios, licenciados, e pobres de profissão, por outro modo, vagabundos, e mendicantes, e mulheres públicas de má vida.” segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.195. 99 , Sobre a navegação do rio Doce , carta de 14-IX-1807, em: RAPM , v. XI , 1906, p.300. 100 , Carta de 14-XI-1818, em: Originais de ordens régias e avisos – 1817-1818, APM , SC , livro 377, n.52.

101 , Segundo Xavier da Veiga, Efemérides Mineiras (1664-1897), Ouro Preto, 1897, v. IV, p.3 51-6.

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no.99 Em 1818, já no fim do período colonial, José Inácio do Coito Moreno enviou ao rei um plano para melhorar a agricultura da capitania e nela empregar os vadios.100 O Conselho Geral da Província continuaria a perseguir a ideia do aproveitamento dos vadios na agricultura, conforme consta no projeto que, nesse sentido, foi apresentado a 15 de dezembro de 1831.101 Nada consegui saber sobre a execução prática de todos esses projetos. D , Polícia privada , Tem-se lembrado exaustivamente a presença dos desclassificados nos corpos de guarda pessoal e de polícia privada. Nos documentos sobre os levantes ocorridos no sertão do São Francisco em 1736 fica clara a participação dos vadios como corpo pessoal dos potentados do lugar. De fato, era frequente ver-se um poderoso com sua guarda pessoal, “brancos de ruim conduta, mulatos e negros com armas de fogo, catanas e porretes” como os que serviam a um certo Manuel José, apaniguado do Ouvidor do Serro.102 Como os desclassificados em geral, esses indivíduos eram, na sua maior parte, mestiços: o Tenente-Coronel Amador de Souza foi morto em 1738 por um Antonio Francisco e seu irmão que, escorados em carijós por eles armados, pretendiam matar ainda outras pessoas, lançando os habitantes de Congonhas na maior consternação.103 102 , A justiça na capitania de Minas Gerais – correspondência de D. Rodrigo José de Menezes com o ministro Martinho de Mello e Castro e com o Ouvidor do Serro Frio Joaquim Manuel de Seixas Abranches, in: RAPM , v. IV, 1899, p.14. 103 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód. 69, fls. 5 V. 104 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.172. Em São Paulo, o Morgado de Mateus se queixava ao primeiro-ministro de D. José 1 dos vadios-capangas que haviam matado um capitão de ordenanças eu escrivão de Taubaté: “E porque de ordinário estes delitos são executados por homens vadios e mandados para este fim por pessoas que atraiçoadamente se pretendem vingar por estes meios, ficando desta sorte oculto o que manda, e fugindo o que executa, pela facilidade com que se passam pelo matos a outras terras, e com que ficam no mesmo mato vivendo pelas roças e pelos chamados sítios, de que há grande quantidade sem se saber nunca,

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Diogo de Vasconcellos aventa uma hipótese segundo a qual os desclassificados empregados como guarda pessoal ou como agentes da repressão fomentariam a paranoia da classe dominante para justificarem a sua função: “Para bem compreendermos o enredo daqueles tempos, convém lembrar que a bruta classe numerosa de feitores, capangas e capitães-do-mato viviam de explorar o medo dos senhores, para se tornarem necessários. Inúmeros vadios, que eram parasitas nas fazendas, tinha-se por guarda-costas e espias dos proprietários. Essa grande caterva tinha todo interesse, pois, de criar boatos e exagera-los.104 Não considera, entretanto, o outro lado da moeda: que num sistema escravista cujo alicerce da economia eram os escravos, muito mais numerosos do que a gente branca de posses, a manutenção de uma polícia pessoal era extremamente necessária para a continuidade da dominação. A paranoia existia; não era criada de fora para dentro, mas correspondia a algo profundo, inerente ao sistema. Essa paranoia real poderia ser alimentada pelos capangas, mas nunca inventada por eles que, dada as condições acima apontadas, eram úteis e necessários. E , Fronteiras e expansão territorial , Numa colônia cujas fronteiras ainda eram móveis e provisórias, cujos limites só seriam traçados em 1777 – mas que, até o século XX , seriam redefinidos –, a expansão e as frentes do povoamento eram extremamente importantes. O aventurar-se num sertão inóspito, desconhecido e cheio dos nativos da terra era uma empresa arriscada; muitos o faziam nem se poder averiguar aonde param estes delinquentes, para poderem ser castigados como merecem os seus delitos”. – Carta do Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras – 21-IX-1765 – em: DI , v. IXXII , 1952, p. 94-5. 105 , “Tenho notícia que entraram nestas Minas grande número de ciganos que o sr. Vice-Rei fez despejar do distrito da Bahia, e ainda que já se fazem algumas queixas deles, e aqui haja um bando do sr. Conde das Galvêas para não viverem no distrito das Minas; contudo por ora me parece acertado, castigando aos que cometerem algum insulto, não intender com os mais, porque não suceda juntarem-se em alguma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas

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tendo em vistas a riqueza rápida que daí poderia advir, recrutando vadios, criminosos e toda a sorte de infratores para engrossarem a expedição. Por outro lado, dada a dificuldade de lá chegar o braço da Justiça, a paragem longínqua era atraente ao perseguido pela lei. Sob coação ou por livre e espontânea vontade, os desclassificados – eles mesmos, fímbria da sociedade – se localizaram com frequência na fronteira geográfica, nas zonas remotas que, muitas vezes, eram alvo da disputa de duas ou mais capitanias, que brigavam pela sua jurisdição. Magotes de ciganos ficavam de tocaia nas bordas dos caminhos, lançando-se sobre os viandantes e sobre suas cargas, roubando cavalos e mantimentos; caso as autoridades vissem nesses elementos a possibilidade de serem úteis, agrupavam-no e os enviavam para o Sul, grande sorvedouro de desclassificados por todo o século XVIII devido a questão fronteiriça da colônia do Sacramento e, por algum tempo, dos Sete Povos de Missões.105 “Prender para Montevidéu”, para a “Nova Colônia”, para o rio da Prata, ou genericamente para o Sul são expressões correntes na documentação por todo o período. As zonas novas recebiam grande afluxo de vadios. Quando surgiram os descobertos do Paracatu, o governador comentou com o ouvidor-geral do Sabará sobre a necessidade de ter dragões a postos em Vila Rica para poder mandá-los de uma hora para outra àquela região, “porque conheço que a sua assistência conservará em resconsequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos os dragões deste presídio; se porém a V.E. Parecer que esta gente pode ser útil para o rio da Prata com o 1º aviso se passarão ordens circulares para os prenderem as ordenanças, e se remeterão a essa cidade”. – Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire 13-I-1737 – Das cartas do Exmo.sr. Gomes Freire , em: RAPM , v. XVI , 2, p. 394.

106 , Para o Ouvidor-Geral do Sabará Simão da Costa e Mendanha , 21VIII -1744, em: APM , SC , cód.84, fls.46 V-47.

107 , Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971, p. 45. 108 , Carta da comarca de Tamanduá acerca dos limites de Minas Gerais com Goiás, 10-VII-1793, em: RAPM , v. II , 1897, p.372 e 382 respectivamente.

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peito a coleção de vadios que vão a estabelecer-se naquele descoberto...”.106 Os primeiros moradores do arraial do Araxá sofreram os inconvenientes de um povoado em pleno sertão, longe das autoridades, para onde afluíam vadios e aventureiros de toda espécie.107 Os desordeiros que se estabeleceram na região de Tamanduá, termo que durante muito tempo provocou disputas entre as capitanias de Minas e Goiás, foram alvo constante das queixas das camaristas junto aos governantes. Segundo diziam aqueles, os vadios estavam interessados em confundirem os limites e as jurisdições para ficarem isentos dos castigos de que seriam merecedores, fazendo do local um couto para criminosos. Os camaristas são extremamente rigorosos no juízo que fazem dos indivíduos aventureiros, introjetando, de certa forma, a ótica oficial ante o problema: “homens foragidos, vagabundos, insidiosos, inimigos da paz, das repúblicas, cheios de impetuosas malaversações populares”, “feras racionais e irracionais”.108 F

, Milícias e corpos militares , As milícias coloniais lançaram

mão com muita frequência do recrutamento de desclassificados. Segundo um historiador mineiro, “o aproveitamento mais útil desses viciosos foi na organização de verdadeiros corpos de tropa”.109 Na Em 1798, a câmara reiterava suas queixas: Informação da Câmara de São Bento do Tamanduá sobre divisões entre esta e a capitania de Goiás” em: RAPM , v. XI , 1906, p. 429-430. 109 , Flamínio Corso, Terra do Ouro, Ouro Preto, 1932, p.138. A utilização dos vadios nas tropas não foi peculiaridade mineira: o grosso das unidades regulares da Bahia era recrutada entre os vagabundos itinerantes e mulatos da terra. Ver Boxer, The Portuguese Seaborne Empire. Na Idade de Ouro do Brasil, o mesmo autor fala da predominância de fora-da-lei dentre a população rio-grandense no século XVIII , muitos deles colonos que vinham da Bahia e que eram na maior parte, vadios convocados nas cidades para o serviço de dragões (c.IX). Fala também da utilização que fizeram os senhores de engenho de elementos desclassificados na Guerra dos Mascates, e que ficaram conhecidos por Tunda-Cumbés (c.v.). 110 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 239.

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mesma linha, Diogo de Vasconcellos chega a dizer que, em meio às dificuldades apresentadas para o recrutamento de vadios – dificuldades essas devidas a disputas entre autoridades –, a declaração de que tal se fazia para o serviço militar simplificava imediatamente os complicados trâmites que nos outros casos, envolviam o dito recrutamento.110 Este, muitas vezes, se fazia às pressas para o desempenho de alguma função específica, como é o caso das tropas que se constituíam para combater e arrasar quilombos. Neste sentido, o interino José Antonio Freire de Andrade ordenou, em 1741, que o sargento-mor João da Silva Ferreira apenasse “todos os capitães-do-mato, carijós, negros forros e mulatos que não tiverem ofício ou fazenda em que trabalhar” para que compusessem um corpo destinado a enfrentar os quilombos que então proliferavam nos distritos de Sussuí e Paraopeba, ambos na comarca do Rio das Mortes.111 Luís Diogo Lobo da Silva também lançou mão de “pardos e negros livres” miseráveis para enfrentar “os negros do mato, a que vulgarmente chamam de calhambolas”.112 Com o objetivo especial de prender os carijós assassinos e desordeiros que andavam pondo em alvoroço a população de Congonhas, e dos quais já se falou acima, ordenou o governador que se arregimentasse quantos carijós fosse possível sob “pena de proceder contra quem se escusar de obedecer ao suplicante na dita diligência”.113 Assim, os carijós que, a mandado de terceiros, haviam cometido assassinato, seriam atacados por carijós pagos pelo Estado. Nas desordens e na repressão, de um e de outro lado do poder, atuavam os protagonistas da miséria.

111 , Ordem – 28-IV-174, em: APM , SC , cód.69, fls. 23 V. 112 , Bando , em: APM , SC , cód. 50, fls. 90-90 V. 113 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód.69, fls. 5 v. 114 , Xavier da Veiga, ob.cit., v.IV, p. 228. 115 , Diogo de Vasconcellos, p. 212-3. 116 , Carta da Comarca de Tamanduá..., p. 377.

117 , Dando notícia do movimento dos espanhóis no sul e pedindo-lhe o auxílio de alguma força , 18-I-1773, em: DI , v. XXV, 1901, p. 37.

118 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 26-XI-1775, in: DI,

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A 18 de novembro de 1773, era expedida uma ordem aprovando a organização de uma tropa de pedestres destinada a reprimir os ataques de botocudos e prender escravos fugidos; compunham-na vadios e facinorosos.114 Parece ter havido certa receptividade à pratica de se recrutarem vadios, talvez por colaboração de interessados; a “parte sossegada e laboriosa que os vadios inquietavam”115 e que, uma vez afastados os infratores, respirava aliviada sem se preocupar com os motivos das infrações. Foi este o caso da mesma Câmara de Tamanduá acima citada que se regozijou ante a determinação de uma empresa destinada a “alistar e matricular a aqueles facinorosos habitantes fazendo entre eles um corpo de milícia auxiliar e ordenanças a fim de os civilizar na obediência às Leis Divinas de Vossa Majestade, que até então só conheciam as da impiedade”.116 É numa das formas do recrutamento que se pode analisar o movimento através do qual a utilidade se torna ônus, e este se transforma novamente em utilidade: o episódio que envolve o envio de tropas para o sul no ano de 1777. Já em 1773, o Morgado de Mateus escrevia ao conde de Valladares falando do movimento das tropas espanholas no sul pedindo que lhe mandasse “toda a gente que lhe for inútil para ser empregada com aproveitamento naquela fronteira”.117 São Paulo funcionava então como ponto de convergência das tropas de Minas, Mato Grosso, Goiás e Rio, recrutando também em suas aterras os soldados que deveriam seguir para o sul. Em 1775, Lavradio dizia Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador de São Paulo, que os homens disponíveis para as tropas do sul deveriam seguir da maneira que fosse possível, sem grandes preocupações com a sua vestimenta precária, com a falta de armamentos ou de disciplina. A carta é extraordinária como registro da ótica oficial ante o aproveitamento dos homens livres pobres e desocupados: “... importa muin.17, 1895, p.44-5. O grifo é meu. 119 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 20-III1777, em: DI , n. 17, 1895, p. 285-7, e Para o capitão-general de Minas Gerais, sobre os socorros que de lá vem para o sul , 2-IV-1777, em: DI , v. 42, 1903, p.

222-3. 120 , Para o mesmo vice-rei, sobre a remessa de notícias dos inimigos,

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to pouco que o regimento de voluntários vá menos bem regulado; antes pelo contrário esta qualidade de gente, e aquela tropa tira as suas maiores vantagens da própria irregularidade”. E mais adiante, comentando a ação dos antigos paulistas desbravadores: Nunca foram vestidos regularmente; eram armados à sua fantasia; alguns iam calçados; a maior parte deles descalços: as selas de seus cavalos eram uns couros; assim atravessando os pântanos, os rios; subiam e desciam as serras; atacavam os inimigos, e se faziam formidáveis. Sempre que estes homens foram chamados ao Rio Grande nas Companhias Aventureiras, iam quase em igual desordem; assim trabalhavam; e alguma coisa que por lá se fez boa, quase sempre se lhe deveu a eles. (sic) A experiência deste ser o caráter de semelhantes homens, e que sempre toda a tropa ligeira, em toda parte do mundo, foi no seu princípio formada desta forma, faz que eu insista a V.Exa. Para que eles marchem ainda que não estejam preparados em toda regularidade”.118

Difícil encontrar texto onde melhor se exprimam as vantagens advindas do emprego, por parte do estado, de uma mão-de-obra miserável que pela sua própria miserabilidade tornava-se extremamente útil. Por fim, em 1777, a manutenção de tropas no sul tornou-se mais premente devido a intensificação das hostilidades. O governador de São Paulo pediu então a D. Antonio de Noronha que enviasse forças, e este conseguiu arrebanhar 4000 homens que Martim Lopes deveria fazer ao chegar ao sul, onde serviram sob as ordens do tenente-general João Henrique de Bohm, chefe das tropas lá sediadas.119 Em fins de março começaram a chegar de São Paulo os primeiros corpos das Minas, e Martim Lopes se consternou ante seu estado, prisão de traidores e chegada de tropas vindas de Minas Gerais, 23-IV-

1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 245. 121 , Para o capitão general de Minas Gerais, dando-lhe notícia da chegada das forças de Minas e do mau estado em que vieram. 14-IV-1777,

em: DI , v 42, 1903, p. 247-8. 122 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de

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pois vinham praticamente nus – “sem mais que umas ceroulas e camisas” – e desarmados – “com muito poucas armas particulares, e estas desconcertadas”120 Pediu ao colega de Minas que enviasse mantimentos ou auxílio pecuniário para a alimentação dos soldados, pois achava que o dinheiro de que dispunha não cobriria os gastos com alimentação daquela tropa.121 Ao receber de Lavradio o aviso de que as tropas estavam a caminho, o governador do Viamão, brigadeiro Marcelino de Figueiredo intuiu o tipo de gente que estava para chegar: “... eu não sei que gente será: porém é certo que paisana, e bisonha, não pode cá servir, que de confusão, e falta de dinheiro, e mantimentos, e consequentemente impossibilitar a subsistência das tropas...”.122 Os desclassificados onerosos à capitania de Minas haviam, ante o episódio das guerras do sul, se tornado úteis em outro contexto; mas a sua miséria e o seu despreparo poderiam torná-los onerosos novamente, e prejudiciais aos soldados melhor preparados que com eles se veriam obrigados a repartir sua ração. O brigadeiro teria suas apreensões confirmadas por carta de Martim Lopes: ... eu não me posso dispensar de mandá-las (as tropas), ainda que conheço pouca ou nenhuma utilidade deste socorro; porque além de ser da mais útil gente daquela capitania, vir descalça, nua e miserável, o seu armamento consiste em uns paus com um ferro na ponta, a que não lhe sei dar o nome.123

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha , 16-IV-1777, em: DI , n. 17, 1895,

p. 297. 123 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, enviando-lhe notícias sobre as forças espanholas e sobre a imprestabilidade das tropas de Minas Gerais e pedindo sua proteção para um afilhado. 30-IV-1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 253-4.

124 , Para o vice-rei do Estado, sobre algumas necessidades das tropas desta capitania e imprestabilidade das forças vindas de Minas Gerais .

3-V- 1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 255. 125 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de

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Na medida em que as tropas iam alcançando São Paulo, Martim Lopes passava-lhes revista para retirar “os quebrados, aleijados e idosos, de 60 até 100 anos” e que, por incrível que pareça, eram muitos.124 Com a chegada das tropas ao sul confirmaram-se os temores do brigadeiro, consternado ante o quadro de miséria que tinha sob os olhos: “... o Exército tem custado muito a sustentar neste país, quanto mais tanta gente paisana, que não valerá o que comem pela maior parte...”.125 Quando as queixas dos comandantes do sul e de Martim Lopes chegaram a Lavradio, este deu mostras de estar, desde o início, ciente do tipo de homem que Minas forneceria, e que, apesar de tudo, era útil à sua maneira, ou seja, servia para fazer número ante o exército inimigo: “Este socorro das Minas nunca o considerei corpo que formasse linha com o exército, mas sim corpo de homens capazes para o mato, que junto com as nossas tropas irregulares pudesse fazer um peso ou estrago sobre os nossos inimigos, e este é o maior serviço de que eu os julgo capazes, nem o general se servirá deles por outro modo”.126 A posição de D. Antonio de Noronha era análoga à de Lavradio:

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha . 8-V-1777, em: DI , n.1 7, 1895,

p. 302. 126 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 2-V-1777, em: DI , n. 17, 1895, p. 248. O grifo é meu. 127 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 13-V1777, em: DI , XIII , 1895, p. 290-1. 128 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 22-V-1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 251-2. 129 , Carta de João Henrique de Bohm a Martim L. L. De Saldanha, 12-VI-1777, em: DI, v. 17, 1895, p. 324-5. 130 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, sobre a volta das

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Queira V.Exa. Refletir em que o Ilmo. E Exmo. s.r. Marquês Vice-rei me não ordenou que eu formasse um corpo de tropa regular; mas somente que fizesse expedir para o Rio Grande 4 mil homens, assim brancos, como mestiços, mulatos e negros: estes quatro mil homens não reputo eu como tropa que possa entrar em ação, e só como recruta, para completar as praças que faltam nos regimentos do Exército, e para se empregarem nos diferentes trabalhos do campo em que os quiser ocupar o general do mesmo exército.

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D. Antonio dizia ainda que não tinha condições de gastar dinheiro com uniformes e armamentos para esta gente, pois “semelhante qualidade de homens, como não têm estímulos de honra, e se conduzem por violência poderão desertar em grande parte antes que cheguem ao lugar do seu destino”, levando consigo os fardamentos ou arrebentando-os completamente no decorrer da viagem, o que tornava sesse tipo de despesa absolutamente inútil.127 Por fim, ante a avalancha de protestos levantados pela tal tropa em toda parte por onde passou, Lavradio ordenou que se desse um sumiço nos elementos inaproveitáveis pelo exército, já que deles, no dizer das autoridades, não se poderia tirar nenhuma utilidade, e mantê-los significava arcar com as despesas inúteis.128 “Multidão de gentes sem armas, sem vestidos e sem disciplina”,129 que “só para o consumo tem préstimo”,130 capazes de causar mais danos do que os próprios-castelhanos131 pela sua vagabundagem e mal proceder,132 forças de Minas, socorro a Laguna e prisão de traidores , 5-VI-1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 284.

131 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão a Martim L.L. De Saldanha: 5-VI-1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 304. 132 , “Eu que nenhuma utilidade lhe achei tomei a resolução de fazer retroceder os ditos destacamentos, e os remeti para a sua respectiva capitania, para me livrar da fome, que causaria nesta terra tanto homem vagabundo, sem nenhum serviço mais do que aumentar neste continente um tão grande bando de ladrões, e malfeitores”. Ofício sobre a partida de Minas Gerais para São Paulo de um corpo de 4 mil homens . 2-VIII-1777, em: DI , v. XXVIII , 1898, p. 344.

133 ,Carta de José Marcelino de Figueiredo a Martim L. L. De Saldanha. 13-III-

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os pobres farrapos humanos serviram contudo para muita coisa. Após tripudiar sobre eles, as autoridades encontraram por fim uma maneira de transformar o ônus da sua subsistência em utilidade para o Estado: o governador de Viamão ficou com 140, que vestiu e armou em duas companhias de caçadores;133 capitão-mor regente da vila de Lages escolheu 200 e os enviou como socorro para Laguna, e Martim Lopes sugeriu o aproveitamento de mais uns cem nos trabalhos de “uma dilatada roça” feita com intuito de alimentar as tropas.134 Nesta complicada relação entre o ônus e a utilidade representados pela existência dos desclassificados, examinei os diferentes aspectos que se reveste a utilidade, e a maneira como custeia, com frequência, o ônus. Por sua vez, este costuma ser, de maneira geral, associado aos custos de reprodução e subsistência da população desclassificada. Se os povos dão a seu rei “a utilidade conforme o uso do seu viver”, há que atentar para os vadios, “que de alguma forma são perniciosos ao Estado”.135 Os homens laboriosos – a quem se opõem os desclassificados – não podiam suportar “o peso enorme da parte dos vadios” – “gente volante, ou, como lhe chamam, de pé ligeiro” –, que por incomodar a manutenção e romper equilíbrio dos negócios, devia ser posta para trabalhar.136 Só assim se poderia evitar 1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 308. 134 ,Para o mesmo vice-rei, sobre o retrocesso das forças de Minas, fatura de roças no caminho do sol... 3-VI-1777, em: DI , v. 42, p. 275-6.

135 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 507. 136 ,Representação da Câmara de Mariana, p. 145 e 50 respectivamente. “Porque é muito grande o número de gente ociosa, e de grande peso para os trabalhadores o contribuírem estes tão somente com o quinto de S.Mjde”. – ibid, p. 150 e 151. 137 , Quintos do ouro em: RAPM, v.LII , 1898, p.75. 138 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob.cit., p. 674. 139 , Cf. Fernando Henrique Cardoso, Classes sociais e História..., p. 113.

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que o ócio sobrepesasse o trabalho,137 perturbando o funcionamento da economia, o rendimento dos quintos, o sossego da sociedade. A gente forra e pobre, estigmatizada pela escravidão, poderia ter “a louca opinião” de que não devia trabalhar,138 mas logo lhe caíam em cima os agentes do recrutamento, os potentados em busca de asseclas, os proprietários de fazendas em busca de jornaleiros, as autoridades administrativas que, para maximizar os lucros metropolitanos, superexploravam tanto o trabalho escravo como o trabalho livre. “Ruína dos Estados”, “canalha indômita”, “gente ociosa que só servia para consumir víveres”, a Coroa entretanto se lembrava deles nas horas de aperto, tivessem sessenta ou até cem anos. E lá iam eles, nus, doentes, mancos, sujos, alquebrados, argamassa necessária à consolidação das fronteiras, à continuidade do mando, à manutenção do sistema colonial. Mais do que em qualquer outro ponto da colônia, foram numerosíssimos nas Minas, onde condições específicas, tanto infra-estruturais – analisadas neste capítulo – como superestruturais – que serão tratadas a seguir – favoreceram a sua proliferação e, ao mesmo tempo, os deixaram sem razão de ser. O seu número assustador pesava por sobre a “parte não corrompida” da sociedade, que assim se via compelida a encontrar uma utilidade para aquele enorme manancial de mão-de-obra livre. A estrutura da economia mineira, mais aberta e diversificada, propiciou condições – mesmo que limitadas – para o aproveitamento desses homens, fazendo com que o ônus dos vadios se metamorfoseasse em utilidade. Essa metamorfose não era, entretanto, irreversível: de um momento para outro, podia-se novamente sentir o peso dos vadios, aproveitados quase sempre em tarefas secundárias; a exploração colonial seguia sem eles, mas eles faziam parte da exploração colonial, eram por ela gerados e colaboravam para a sua manutenção.

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Assim, não se pode dizer que fossem dispensáveis a persistência da produção e da sociedade escravista:139 imbricados em seu seio, preenchendo os interstícios deixados pelo trabalho escravo, contribuíram para a construção, manutenção e derrocada do mundo colonial. Negação do trabalho, trabalharam. Negação da revolta, revoltaram-se com frequência e alimentaram quase todos os movimentos regenciais. Negação da Ordem, embrenharam-se pelos matos no encalço de quilombolas e de índios bravos. Camada fluida, indefinida, fugidia, imprecisa, espalhou contudo os seus borrões no seio de uma sociedade estamental, e espraiando-lhe os contornos, só nela pôde existir. Longe de ser pacífica, essa existência teve grandes percalços, um dos maiores tendo sido a inimizade constante das autoridades coloniais, do Poder Constituído que, através de medidas altamente repressivas, nunca deixou de envolver os vadios com suas redes tentaculares.

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III

, NAS R EDES DO PODER A sombra, quando o sol está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seu ministro. Mas quando chegam àquelas Índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens. Padre Antonio Vieira 113

1. ADMINISTR AÇÃO E ESTADO

Amigo Doroteu, se acaso vires Na Corte algum Fidalgo pobre, e roto, Dize-lhe, que procure este governo; Que a não se acreditar, que há outra vida, Com fazer quatro mimos aos rendeiros,

Há de à Pátria voltar, casquilho, e gordo.1

, Critilo, ressentido com Luís da Cunha Menezes e ainda marcado

pelos graves desentendimentos que entre eles houvera, aproveitava para deixar expresso o conceito que fazia da administração portuguesa nas Minas, e que é, para certos autores, extensivo à administração colonial como um todo. Em The Portuguese Seaborne Empire, Boxer aponta a participação ativa que, apesar das proibições metropolitanas, os administra-

1 , Cartas chilenas, ob.cit., carta 8ª, versos 360-5, p. 177.

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dores coloniais tinham no comércio, e que tornava mais toleráveis os baixos salários pagos a esses funcionários, fechando por isso os olhos da Coroa ante as irregularidades. Como, de outra forma, compensar as rudezas e os perigos da vida nas colônias distantes?2 As fraudes atingiam grandes proporções, e, comentando-as, dizia Afonso de Albuquerque a D. Manuel: “As pessoas na Índia têm a consciência bastante elástica, e quando roubam pensam estar fazendo uma peregrinação a Jerusalém”.3 A maior parte das fortunas construídas no comércio colonial eram empregadas por seus proprietários na compra de casas, terras e na formação de morgados em Portugal, para onde retornavam “casquilhos” e “gordos”. Assim, o spoils system tolerado por Portugal seria uma componente necessária à manutenção do Império, que para Boxer teria como pontes básicos de apoio as Câmaras Municipais e as Santas Casas de Misericórdia. Já Raymundo Faoro transcende a explicação assentada apenas no nível institucional, e atribui papel de destaque à centralização precoce e à formação de um corpo de leis que, desde o século XIV, caracterizaram o pequeno Estado europeu. Pioneiro na iniciativa colonizadora, Portugal soube transpor com sucesso o sistema administrativo metropolitano para as colônias. Através do estamento burocrático, criatura e instrumento do estado patrimonialista português, a metrópole iniciou a obra centralizadora a partir do Governo-Geral, acirrando pouco a pouco os mecanismos de poder 2 , Apesar da nomeação para os cargos de governadores e capitães-mores não ultrapassar o período de 6 anos (século XVIII), um grande número de administradores passou de 20 a 30 anos no Brasil, ocupando diversos postos. Essa longa permanência se dava frequentemente a contragosto, obedecendo apenas ao interesse que tinham pela carreira administrativa. Suas cartas são ladainhas de queixas contra o clima, os alojamentos, os subalternos, a comida. A volta era ansiosamente esperada. Cf. Dauril Alden, Royal Government in Colonial Brazil – with special reference to the Adminstration of the Marquis of Lavradio, Viceroy – 1769 - 1779, Berkeley, 1968, c.II , item The Delimitation of the Autority of the Governors-General . 3 , Segundo Boxer, ob.cit., p. 336

e repressão, valendo-se de caudilhos e bandeirantes, fazendo deles prepostos seus e espichando, assim, os braços até o sertão longínquo. Sistema coeso e racional em que o rei – “senhor de tudo, das atribuições e das incumbências”4 – a tudo provia, a administração portuguesa reduzia o funcionário colonial à dimensão de mera sombra. Por detrás das câmaras, das nomeações locais, do comércio, divisava-se a presença do Estado, o grande empreendedor da aventura ultramarina. Como consequência mais profunda, a Lei subordinava a Realidade, descolando-se dela com frequência e com frequência não a conseguindo exprimir: A ordem pública portuguesa, imobilizada nos alvarás, regimentos e ordenações, prestigiada pelos batalhões, atravessa o oceano, incorrupta, carapaça imposta ao corpo sem que as medidas deste a reclamasse. O Estado sobrepôs-se, estranho, alheio, distante à sociedade, amputando todos os membros que resistissem ao domínio (…) Nenhuma comunicação, nenhum contrato, nenhuma onda vitalizadora flui entre o governo e as populações: a ordem se traduz na obediência passiva ou no silêncio. (..) O Estado não é sentido como o protetor dos interesses da população, o defensor das atividades dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário. (…) Ao sul e ao norte, os centros de autoridades são sucursais de Lisboa: o Estado, imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece integro, reforçado pela espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper a casca do ovo que a aprisiona.5

Valorizando de forma extrema a racionalidade da ação estatal, Faoro deixa entretanto uma fresta à contestação: é quando se refere ao funcionário colonial como mera sombra. Citando Vieira, lembra 4 , Raymundo Faoro, ob.cit., 2ª edição, p. 171. 5 , Ibid, p. 164-5. 6 , Ibid, p. 172.

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logo em seguida que a sombra é pequena sob o sol a pino, e longa quando este se acha no ocaso, o mesmo sucedendo com os governantes ultra-marinos.6 Ora, se estes fogem ao controle, o mesmo pode acontecer com as leis e determinações que o Estado os incumbe de cumprir. Quem leva esta linha de raciocínio às últimas consequências e envereda, portanto, em argumentação oposta é Caio Prado Jr, cuja Formação do Brasil Contemporâneo precedeu de mais de quinze anos a publicação da primeira edição de Os donos do poder. Em poucas páginas surge a imagem de um sistema administrativo assentado na confusão, na irracionalidade e transposto para o Brasil devido à falta de imaginação que, nos administradores portugueses, aliou-se à incapacidade de criar algo novo para a colônia americana. Aqui, este aparato arcaico, inadequado e frequentemente emperrado não pode fazer face à realidade do dia a dia: como consequência, a realidade que a lei não cobria passou a agir sobre a própria lei, determinando pequenas modificações que acabaram por se constituir em diferenças ante o modelo transplantado. Para a confusão do sistema administrativo, continua Caio Prado Jr., muito contribuía o fato de não existir então a ideia de divisão dos poderes, a monarquia portuguesa aparecendo como um todo uno e indivisível e a legislação refletindo esse estado de coisas: após as Ordenações Filipinas (1603), não teria havido senão uma enorme quantidade de cartas de lei, alvarás, provisões régias, ordens para reger a vida da colônia, nunca se cogitando o entrosamento entre as partes, as leis sendo muitas vezes – como no caso das medidas fiscais – criadas ao sabor das circunstancias. Daí haver frequente contradição entre elas, o que dava vez à desobediência: A complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competência; a ausência de método e clareza na confecção das leis, a regulamentação esparsa, desencontrada e contraditória que a caracteriza, acrescida e complicada por uma verborragia abundante em que não falta às vezes até dissertações literárias; o excesso de burocracia dos órgãos centrais em que se acumula um funcionalismo inútil e numeroso, de caráter mais deliberativo, enquan-

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to os agentes efeitos, os executores, rareiam, a centralização administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única em negócios passados a centenas de léguas que se percorrem em lentos barracos a vela; tudo isto, que vimos acima, não poderia resultar noutra coisa senão naquela monstruosa, emperrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial. E com toda aquela complexidade e variedade de órgãos e funções, não há, pode-se dizer, nenhuma especialização. Todos eles abrangem sempre o conjunto dos negócios relativos a determinado setor, confundindo assuntos os mais variados e que as mesmas pessoas não podiam por natureza exercer com eficiência.7

Essencialmente divergentes, as interpretações de Faoro e Caio Prado Jr., acerca da administração colonial apresentam grande utilidade quando confrontadas. Para o primeiro, a colonização se realiza sob a égide do Estado, que com suas leis consegue envolver a colônia enorme e dar conta do duro recado que era a administração colonial; aliás, foi a presença marcante do Estado e do seu corpo legislativo que tornaram possível preservar a colônia por tantos séculos, moldando a realidade a seu gosto, e a ela sobrepondo a lei. Assim, apesar de monstruoso, o Estado português empreendeu com sucesso a tarefa colonizadora. Já para o segundo, o Estado teimosamente centralista gera uma máquina burocrática ineficiente, introduzindo a irracionalidade e a desordem no funcionamento do sistema administrativo como um todo. Não se trata, para ele, de analisar o Estado – que conta muito pouco no seu esquema analítico, voltado basicamente para o sentido da colonização portuguesa no Brasil e para a formação de uma nacionalidade –, mas de ressaltar as sequelas advindas de um sistema de colonização inadequado.8 A realidade é a mais viva e mais rica do que a Lei, a quem acaba muitas vezes por modificar e até mesmo por criar, como no caso da 7 , Caio Prado Jr., ob.cit, p. 333. 8 , A preocupação nacionalista de Caio Prado Jr. Me foi sugerida por Silvia Lara, que a esse respeito elaborou um artigo, ainda inédito. Em Formação do Brasil contemporâneo, ela aparece de modo implícito, mas não deixa de estar presente. 9 , Os portugueses retiraram ouro da África, onde as minas – subterrâneas na

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legislação fiscalista característica das minas de ouro e diamantes. Analisando-se o caso específico da administração mineira à luz de uma e outra interpretação, desvelam-se alguns aspectos interessantes de sua estrutura mais profunda. Tomando-se premissa de Faoro como verdadeira, pode-se notar que, de fato, ela se adapta admiravelmente ao caso mineiro: talvez nunca as leis tenham, na colônia, precedido a fixação das populações com tanta intensidade quanto nas Minas. Mal se tinha certeza da existência de ouro, e já surgia o Regimento de Datas (1702); as esmeraldas eram apenas um boato, e o rei investia Agostinho Barbalho e Fernão Dias em seus prepostos; os arraiais auríferos não contavam ainda com meia dúzia de anos, e a urbanização levada a cabo pelo Estado tomava conta da zona mineradora. Por outro lado, a presença do ouro e das pedras preciosas eram uma realidade impar para a metrópole, que nunca se vira às voltas com sua exploração sistemática.9 As Minas criaram, assim, a necessidade de um sistema fiscal adequado, como diz Caio Prado Jr. Um outro exemplo interessante na oposição entre o critério norteado pela realidade e o critério norteado pela lei aparece no confronto entre Gonzaga e Cunha Menezes, que as Cartas Chilenas refletem. Refiro-me ao episódio das tropas: escorado na lei, o Ouvidor contesta violentamente a validade dos atos do governante, que, mais permeável à realidade da terra, compõe os corpos militares com os elementos de que dispõe, ou seja, os mestiços e forros pobres.10 Tu sabes, Doroteu, que as nossas Tropas De Infantaria são; porém montadas: Que as leis do nosso Reino não consentem, Que estas montadas Tropas se componham sua maioria – eram trabalhadas por nativos. Cf. Vitorino Magalhães Godinho, L'Économie de l'Empire Portugais aux XV et XVI Siécles, Paris, 1969, c. IV, p. 248 e segs. Ver também c.III , p. 173-217. 10 ,Cartas chilenas, ob.cit., 9ª, versos 223-34, p. 217-8. 11 , Entre outros, Assumar – que depois fez carreira brilhantíssima nas Índias,

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De membros, que não tenham certas rendas, Com que possam manter os seus cavalos. Hora houve, Doroteu, quais são as posses Dos míseros paisanos, que se alistam Nos fortes Regimentos. Quase todos Um sendeiro não têm, e muitos deles Gemeram nas prisões, por não poderem Ajeitar uma grossa, e curta farda.

A importância da exploração aurífera no contexto mercantilista da época fazia de Minas o centro das atenções metropolitanas, que durante um século não se desviaram daquela região centra, perdida no coração da América e atravessada pela Serra do Espinhaço. Mais do que em qualquer ponto de seus domínios, o Estado – sol no seu zênite – esteve presente nas Minas, como acusa a correspondência meticulosa estabelecida entre os ministros portugueses, o próprio rei e os administradores locais. Estes foram, ao que tudo indica, escolhidos a dedo, tendo sido sempre homens da maior confiança do rei.11 Mas se a exploração aurífera despertava a cobiça do Estado, por que não provocaria sentimentos semelhantes nos homens? Longe da Metrópole, longe até mesmo do litoral e das frotas, as Minas excitavam os ânimos e propiciavam toda a sorte de infrações. Não fotornando-se Marquês de Alorna –, Galvêas – que D. João V escolhera dez anos antes para representar o seu governo no Vaticano e que, logo após entregar o governo das Minas, tornou-se vice-rei do Brasil – Bobadela, o administrador colonial que maiores poderes reuniu durante todo o século XVIII; Valadares, a respeito de quem Diogo de Vasconcellos faz o seguinte comentário: “Deve ter sido muita a consideração de que D. José (José Luis de Menezes Abranches Castelo Branco e Noronha) gozava na corte para se lhe confiar o governo mais importante da Monarquia, sem ter feito ainda aos seus 24 anos de idade. D. João III , a quem lhe estranhava ter confiado o governo de Ceuta a um Menezes de 20 anos, respondeu: “Estes meus parentes de Vila Real já nascem emplumados”. – Diogo de Vasconcellos, História média...., p. 195. 12 , O governante alegava ser a única autoridade secular a merecer incenso. En-

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ram poucos – como sugere Maxwell e como já se disse no capítulo 1 – os administradores que se envolveram com contrabandistas e negócios ilegais, os funcionários da Intendência que se entregaram à fraude, os governantes que se desmandaram em arbitrariedades inconcebíveis – sobretudo no tocante ao milionário Distrito Diamantino, conforme se verá adiante. Antonio Carlos Furtado de Mendonça ficou na História como administrador desvairado, que criou em Vila Rica um clima de hostilidade devido ao fato de o bispo ter incensado na missa, além de sua pessoa, outro magistrado.12 Se, como disse Vieira, a sombra dos funcionários se alongava quando longe do sol metropolitano, as Minas foram um dos pontos do Império onde ela amis se encompridou, os funcionários coloniais procurando e muitas vezes conseguindo distender as redes do poder em proveito próprio. Assim, engolfada em contradições, a administração mineira apresentou um movimento pendular entre a sujeição extrema ao

tre muitas outras loucuras, quando ia montado “de jornada ou passeio, obrigava a todos, que se apeiem e algumas vezes com pancadas, que dão os da sua comitiva”. – em: Violências de um governador (1774), RAPM , VI , 1901, p. 187-8. 13 , Na Instrução dirigida a seu irmão, dizia Bobadela: “e assim se faz preciso misturar o agro com o doce, em tal forma que se conheça, incontestável, que o vosso ânimo só respira a defensa da razão, e da justiça, enquanto for pelo seu caminho”. – Instrução e Norma que deu o Ilmo. E Exmo. sr. Conde de Bobadela a seu irmão o preclaríssimo sr. José Antonio Freire de Andrada para o governo de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu irmão, quando passou ao sul , em: RAPM , IV, 1899, p. 729. A formulação do “bater-e-soprar” é de

Sylvio de Vasconcellos: “O soberano vê-se coagido a negociar sua autoridade com os súditos, com muito tato e habilidade, cedendo quando necessário. Autoridade consentida, frágil, muito diferente do absolutismo implantado em todo o resto do reino. Fere, suplicia quando pode. Perdoa a seguir. Bate e sopra, como diz a gíria popular”, em: Mineiridade, p. 68. O autor anula a autoridade metropolitana em nome de um autonomismo mineiro, no que não tem razão. 14 , Motins no sertão..., em: RAPM , I , 1896, p. 670-1. 15 , Regimento ou instrução que trouxe o governador Martinho de

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Estado e a autonomia. Por esse motivo, entre outros, o governo das Minas foi sempre uma empresa difícil e delicada, exigindo a mistura do agro com o doce e a adoção da prática do bater-e-soprar.13 Não era portanto, serviço que qualquer um pudesse desempenhar a contento, como dizia Martinho de Mendonça em sua correspondência com a metrópole: “Repetidas vezes tenho dito a V. Exa. Que as Minas não é governo em que se possa ocupar um escudeiro de aldeia, sem esplendor, ainda que com sangue ilustre, talento e fidelidade. As aparências exteriores da autoridade são o primeiro predicado que se deve buscar para o governo das Minas, para que os povos lhe tenham grande respeito, os poderosos lhe obedeçam com menos repugnância, e os ministros se persuadam que S. Majestade faz dele justa confiança...” Martinho de Mendonça, ilustrado da primeira geração, não era qualquer um, mas, “escudeiro de aldeia”, sentia-se incapaz para o duro exercício do mando no sertão hostil das Minas. É certo que estava desejoso de voltar a Portugal, como é certo também que tinha razão ao apontar Gomes Freire – a quem substituía interinamente – como a pessoa ideal para a administração da tumultuada capitania: “tudo concorre na pessoa do General estando a memória fresca de que foi General Seu Pai, e mais ascendentes próximos.”14 A ideia de que cumpria misturar o agro com o doce também se acha expressa na instrução que a Coroa dirigiu ao próprio Martinho de Mendonça: “Confio de vós que usareis sempre daquela moderação, e suavidade que é conveniente, e que nos casos em que for necessário, mostreis todo o vigor e resolução”.15 Havia, pois, que fazer sentir a presença do Estado e, ao mesmo tempo, evitar que ela se tornasse importuna e odiosa, pois as distâncias e a morosidade do aparelho administrativo colocavam a Metrópole em situação delicada. Tudo devia ser feito de modo a que o mando se revestisse de brandura, passando quase despercebido e, se possível, introjetandoMendonça de Pina e de Proença , em: RAPM , III , 1898, p. 88.

16 , Cartas do governador da capitania de Minas Gerais D. Rodrigo José de Menezes acerca da administração da justiça na mesma capitania ,

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-se nas consciências a ponto de se tornar uma necessidade profunda. “Sempre me persuadi”, dizia o ponderado Conde de Cavaleiros já na década de 80, “de que uma bem calculada e dirigida prudência seria suficiente em quem governa, para ganhar os corações dos homens e obrigá-los com uma força voluntária a cumprirem as suas obrigações, sem que aparecessem conduzidos mais que pela própria vontade, e sem que percebessem mão Superior e estranha que desse os movimentos às suas ações”.16 O que esse governante pregava não era sertão a transformação das necessidades do Estado em segunda natureza, poder pulverizado que, dentro de cada indivíduo, o compelisse a agir conforme as disposições da Metrópole.17 Seria este o coroamento do exercício do mando, o momento supremo de perfeição atingido pelas redes do poder. Mas as forças contrárias agiam no sentido de dissolver essas malhas, de atenuar a força do Estado, de privilegiar localismos. Uma delas é apontada pelo próprio D. Rodrigo, e coincide com a análise de Caio Prado Jr.: é o funcionamento moroso da “monstruosa, emperrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial”, é “a ausência de método e clareza na confecção das leis”. No pequeno prazo de três anos, o governante se via compelido a resolver os mais diversos problemas, na sua maioria subordinados ao parecer das Secretarias de Estado que, por sua vez, sucumbiam sob o peso da quantidade de negócios que por elas passava. O Conselho Ultramarino não tinha condições de funcionar adequadamente: “A multidão de ordens em: RAPM , IV, p. 5. 17 , A respeito das “microestruturas de poder”, ver os trabalhos de Michel Foucault, principalmente as conferências realizadas na PUC/RJ e publicadas sob o título de A verdade e as formas jurídicas, Cadernos da PUC/RJ: Rio de Janeiro, 1974; Surveiller et Punir – Naissance de la prison, Paris, 1975; História da sexualidade – v.1 – A vontade de saber, Paz e Terra: São Paulo, 1977. 18 , Cartas do governador da Capitania de Minas Gerais ..., em: RAPM, IV, p. 7.

19 , Foram numerosos os levantes havidos nas Minas contra a tributação: os de Pitangui, o de Vila Rica, os do sertão do rio São Francisco, para citar apenas alguns.

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depois expedidas pelo mesmo Conselho a esta Capitania fazem um corpo informe e contraditório, sendo cada uma delas ditada pelas inclinações da ocnjuntura”.18 Por outro lado, há que considerar a natural inclinação de um povo que, tendo sob seus olhos a riqueza que ali se gerava, ansiava por maior liberdade. Em outros pontos da colônia, autonomismo e extrema dependência apareciam separados: no Nordeste, esta faceta se fazia sentir, enquanto no Sul manifestava-se aquela de modo predominante. Nas Minas, os dois aspectos aparecem juntos, fazendo desta região, ainda uma vez, a amostragem privilegiada da colônia. Feitas essas considerações, creio não ser arriscado dizer que a administração nas Minas funcionava de modo contraditório: para cobrar o imposto, o Estado deveria ser firme e incisivo; mostrando-se presente demais, provocava descontentamentos, e consequentemente atrapalhava as cobranças.19 Para ser governador das Minas, era preciso ser zeloso dos interesses reais; uma vez na colônia, a É necessário lembrar também os cuidados que envolveram o estabelecimento da Casa de Fundição e, posteriormente, o do imposto da capitação. Quando pacificava os ânimos ainda exaltados pelo conflito emboaba, dizia Antonio de Albuquerque ao rei: “... tendo entendido que seria melhor e mais seguro o recorrer aos meios brandos e suaves para se mudarem estes movimentos entre uns e outros vassalos, do que aos meios rigorosos, de que poderiam nascer algumas perturbações que não teriam à depois fácil composição”. Segundo Diogo de Vasconcellos, em: História antiga..., p. 262. Assumar também se exprimiu admiravelmente sobre as contradições do mando: “Vejo que nada se logra com o meu gênio, que é muito diferente do destas gentes, que por caminho nenhum se pode governar; só deixando-os à lei da Natureza, que é o que até agora não lhes tenho consentido, e nem enquanto eu puder lhe o hei de permitir; mas, a experiência me vai mostrando, que cada dia posso menos; porque como nas matérias, em que devo usar de força, me descobrem a fraqueza, e impossibilidade, ficam por este modo inúteis as minhas diligências”. – Segundo Faoro, ob.cit., 1ª ed., p. 89. 20 , Faoro, opbcit., 1ª ed., p. 58. 21 , Ibid., p. 77.

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pressão dos spoils system agia em sentido contrário, muitas vezes levando a melhor. Para que tudo funcionasse adequadamente, era essencial que se mantivesse estreita a subordinação a Lisboa, mas a distância e a complexidade da máquina burocrática iam, aos poucos, dissolvendo os laços entre Metrópole e Colônia. Não é pois de admirar que, ante as contradições do aparelho administrativo das Minas, as explicações de Faoro e Prado Jr. Possam caber com igual justeza. O Estado foi um dos sustentáculos da política econômica do sistema colonial – Estado absolutista que, como tal, não podia prescindir do poder e da violência nas suas múltiplas facetas: centralismo administrativo, fisco, arbitrariedades de governantes e de potentados. Mas, sem nunca esquecer a sua presença, é preciso não deixar de lado o contexto específico das Minas, que acabou por gerar situações diversas no tempo e no espaço. Assim, os diferentes momentos da repressão. Assim também o balancez que se delineou entre uma política que utilizava os desclassificados e uma política que se recusava a arcar com o seu ônus. Como já sugeri, utilidade e ônus são duas faces de uma mesma moeda, como a sombra curta e a sombra espraiada são duas realidades concomitantes da administração nas Minas. 2. AS DIFERENTES FORMAS DO EXERCÍCIO DO PODER NAS MINAS A

, A preocupação normalizadora Tamanho era o empenho de obedecer às ordens metropolitanas que as vilas se criavam antes dos povoados, a organização administrativa precedia à fixação das populações. Começava-se, com isso, uma prática que iria marcar a história da colônia: a criação da realidade pelas leis e ordens régias,

diz Raymundo Faoro.20 De fato, foi sôfrega a investida da iniciativa urbanizatória sobre as terras minerais, o que se explica pela neces22 , Esses elementos seriam, para Faoro, “um ramo do estamento burocrático, o

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sidade premente de normalizar a população heterogênea e inquieta das Minas e enquadrá-la dentro das normas administrativas da Metrópole. Essas medidas constituíam a condução necessária para a implantação do sistema fiscal, que drenaria as riquezas para a Corte de D. João V. Antes de se proceder à urbanização e à montagem do aparelho administrativo, os indivíduos turbulentos e facinorosos foram frequentemente utilizados pelo Estado. Isso não quer dizer que, a partir de então, não se utilizassem marginais, e este ponto foi bastante discutido no capítulo anterior. O que fica claro é que, como atitude deliberada, a utilização desses desclassificados em funções diretamente ligadas ao Estado foi mais rara após os primeiros tempos. Nessa época, eram mais fluidas as fronteiras entre o potentado e o infrator, o que torna às vezes difícil distinguir esta categoria especial de criminoso da dos desclassificados propriamente ditos. Durante todo o século XVII , o sertão foi convulsionado pela ação dos caudilhos, para cujos desmandos e tropelias a Coroa fazia vistas grossas. Na política oficial ante esses indivíduos, Faoro detecta três momentos: inicialmente, o que se caracteriza pelo estímulo franco da Coroa; a seguir, o momento de simples transigência, “suportando os arranhões da autoridade”; por fim, já no final do século, o aberto desentendimento, fruto do choque entre a “voracidade fiscal da Coroa e a privatização do poder dos potentados”.21 Na aventura aurífera, detecta-se assim, um movimento contraditório: investidos de poder, os caudilhos – paulistas na sua maior parte – se lançaram à procura das riquezas minerais almejando a premiação com que lhes acenava a Coroa; uma vez encontrado o qual, com a propriedade territorial, tenderia a privatizar-se”. – ob.cit., 1ª ed., p. 84. A empresa, mesmo quando encetada por particulares, deveria tomar o caráter de trabalho público, a soberania real delegando poderes aos bandeirantes: “Seus atos eram sacramentados e formalizados com rígido aparato burocrático, acompanhado de escrivães e meirinhos”. – ibid. p.83. 23 , Registro de um bando que se lançou na vila de Itu e de Sorocaba, para acudirem todos para prenderem ou matarem Lourenço Leme da Sil-

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minério, a recompensa vinha mas logo se desencadeava a ruptura entre as duas partes, fruto da necessidade de consolidação do Estado fiscalista.22 Na fase de conformação do território das Minas, aventureiros, assassinos e bandidos conviveram com “homens bons”, muitas vezes tornando-se um deles enquanto estes, por sua vez, se perdiam em desmandos e acabavam perseguidos pela justiça. Não foi outro o caso de Borba Gato, a que a Coroa fechou os olhos. Entretanto, o mais típico dos episódios que ilustram a indefinição entre os criminosos e os “homens bons” é o caso dos irmãos Leme. Membros da camada dominante paulista, eram conhecidos na sua vila natal pelos desmandos a que se entregavam; apesar disso, quando resolveram se lançar na conquista das minas do Cuiabá, contaram com as graças da Coroa. Em janeiro de 1723, ao saber da sua chegada a São Paulo, o então governador Rodrigo Cesar de Menezes chamava-os à sua presença para deles – que reputava “pessoas principais desta capitania” – obter certas informações. Alguns meses depois, Lourenço Leme voltava a Cuiabá com um regimento que estabelecia a cobrança dos quintos por bateia; entre os potentados e o governo, o fiscalismo se insinuava para lançar a discórdia. Em setembro, o va e João Leme da Silva – 15-IX-1723, em: DI , XIII , 1901, p. 118. Ver também: Regimento de um seguro, que se mandou a Lourenço Leme da Silva e João Leme da Silva para virem a esta cidade – 27-I-1723; Registro do regimento que levou Lourenço Leme para se estabelecer a cobrança dos quintos por bateia nas minas de Cuiabá – 10-VI-1723; Registro do regimento que levou para as novas minas do Cuiabá, o Mestre de Campo Regente João Leme da Silva – 30-VII-1723, em: DI , XII , 1901, respectivamente p. 78-9; 87-98; 98-110.

Ainda sobre este assunto, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Nobiliarchia paulistana histórica e genealógica, tomo III , São Paulo, 1954, p. 30-5; Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos Históricos Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo, tomo II , São Paulo, 1954, p. 70-83. Estes dois autores, concordando acerca dos crimes de que os irmãos eram evidentemente culpados, dizem que a causa de sua morte foi uma intriga urdida por um familiar do governador, Sebastião Fernandes do Rego. 24 , “Em o novo descobrimento das minas de Cuiabá assistiam dois homens, ir-

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governante convocava gente para prender ou matar os irmãos Leme, que passam a ser designados como autores de “mortes, roubos e insolências”.23 Em outubro de 1723, o Capitão-General comunicava à Coroa os crimes dos dois irmãos.24 Lourenço Leme foi morto no Cuiabá, e João Leme foi remetido à Relação da Bahia, onde pereceu degolado. Nesse episódio fica clara a utilização deliberada dos bandidos por parte da Coroa, que ignorou seus desmandos enquanto foi interessante mantê-los na cabeça da região, liquidando-os quando, uma vez fixados o povoamento e a exploração aurífera, começaram a desafiar o poder central.25 A situação é peculiar por serem os irmãos em questão indivíduos de destaque, a quem não se pode propriamente chamar desclassificados; ilustra porém o comportamento ambíguo da Coroa em relação ao aproveitamento da violência e do banditismo nos primeiros tempos da mineração.26 “Bem se pode considerar o estado em que se achavam as Minas por todo este tempo, em que só o despotismo e a liberdade dos facinorosos punham e revogavam as leis a seu arbítrio”, comenta José mãos ou para melhor dizer duas feras, que assim o merecem as tiranias de que usaram...” – carta de 29-X-1723, segundo Azevedo Marques. p. 80. 25 , “... os crimes dos irmãos Leme foram esquecidos, impetrando para eles Rodrigo Cesar o perdão, a fim de que não fosse prejudicado o interesse que o Governo esperava tirar das minas, sujeitando-se até à imposição dos Lemes”. – Azevedo Marques, op.cit., p. 76. Ver também Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.I, p. 124. 26 , No descobrimento das minas de Caeté, verificado por volta de 1701, teve papel de destaque o emboaba Bento do Amaral da Silva, que cometera vários crimes no Rio e em São Paulo. Apoiara-se no prestígio do sogro, Antonio de Godói Moreira, amigo do governador Artur de Sá e Menezes, e fora para Caeté, onde se estabeleceu e “se tornou homem abastado e opulento”. Waldemar de Almeida Barbosa, op.cit., I, p. 123. 27 , José Joaquim da Rocha, op. cit., p. 431. 28 , Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 17 e sgs. Os fundadores destes arraiais foram quase todos mineiros que fugiam da grande fome que então se alastrou pelas minas, conforme foi mencionado no capítulo 1 deste trabalho.

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Joaquim da Rocha, que dá especial destaque ao movimento urbanizatório das Minas.27 Urgia, pois, encetar a urbanização e a normalização das populações. Nos últimos anos do século XVII , Artur de Sá e Menezes começou o policiamento das Minas; sua iniciativa não teve continuidade. Um surto urbanizatório incipiente foi esboçado ainda por essa época, quando se fundaram alguns arraiais, entre eles os de Camargo, Cachoeira, São Bartolomeu, Casa Branca, Rio das Pedras.28 A eclosão do conflito entre paulistas e emboabas tornou ainda mais complexa a situação das Minas, e para procurar solucioná-la a Coroa nomeou aquele que, para Dauril Alden, foi um dos maiores administradores coloniais de todos os tempos: Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho. A carta em que era designado vinha datada de Lisboa, 9 de novembro de 1709, e o cerne das preocupações reais era, com toda a clareza, a questão relativa a paulistas e emboabas. O documento apresenta grande interesse por refletir a estreita relação entre o estabelecimento da justiça, da administração

29 , São particularmente significativas as seguintes passagens: 1) a que alude à normalização e à necessidade de fundar cidades: “... pondo em execução que se fundem algumas povoações para que as pessoas que assistem nas Minas viviam reguladas, e na subordinação da Justiça... 2) a que fala da premiação: “... e vos encarrego muito façais entender aqueles vassalos que este Regimento não é para os conquistar, porque estou certo na obediência, que têm, a fidelidade que devem Guardar ao seu Príncipe, mas que é para os defender de violências, e conservar em paz, e justiça, que é a primeira obrigação do Rei, e os persuadireis a se abstraírem dos delitos, que cometem, e viverem como católicos, obedecendo as minhas ordens, e aos Meus Ministros, por quem lhes mando administrar justiça, que os hei de premiar, e honrar muito conforme o seu merecimento, e aos que obrarem em o Meu Serviço, e os que mais se sinalaram nele ficarão na Minha Real Lembrança de que sereis obrigado informar ele muito particularmente”. “Nomeação de Antonio de Albuquerque”, in: RAPM , XI , 1906, p. 684 e 686.

30 , Para esses episódios, ver a síntese de Charles R. Boxer em A idade de ouro do Brasil, c.3, p. 83-105. 31 , José Joaquim da Rocha, ob. Cit., p. 435.

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e das primeiras cidades, retratando também o sistema de prêmio e recompensa com que o Estado recrutava os seus auxiliares no trabalho de consolidação do poder.29 Empreendendo uma peregrinação pelas zonas conturbadas, Albuquerque conseguiu impor a autoridade real, cedendo e contemporizando com os revoltosos na medida do possível. Por fim, para colocar um termo às insatisfações que ainda persistiam, São Paulo foi elevada à categoria de cidade e a capitania do Rio de Janeiro foi desmembrada, criando-se em 1710 a capitania de São Paulo e Minas do Ouro.30 Naqueles tempos difíceis, Albuquerque teria sido “o primeiro que susteve com desembaraço as rédeas do governo; que pisou em Minas com luzimento, e firmeza do caráter que em El-Rei pusera, que promulgou as leis do soberano e fez respeitar neste continente o Seu Nome”.31 Abria-se um novo período, norteado pela ação mais racional do Estado, empreiteiro, a partir de então, do movimento urbanizatório e do estabelecimento do aparelho administrativo. A construção de cidades sempre foi um instrumento importantíssimo da dominação, como viu muito bem Max Weber;32 se não teve para nós a projeção e o alcance que a caracterizou entre os hispano-americanos – ladrilhadores meticulosos –, é incontestável que, no caso mineiro, correspondeu a uma política deliberada e sistemática. Mesmo que, nos primeiros tempos, os arraiais tenham sido semeados ao léu, acompanhando os trabalhos da mineração, é importante ressaltar que, a partir do governo de Albuquerque, o Estado tomou as rédeas do processo. Isto não fez com que as cidades mineiras fossem melhor ordenadas – nem de longe lembrariam os quadriláteros carac32 , Max Weber, Economia y Sociedad, trad. Esp., México, 1944, tomo III , p. 217-38. 33 , A respeito da oposição entre a atividade urbanizadora de portugueses e espanhóis na América, ver Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. O semeador e o ladrilhador , p. 61-85.

34 , Gilberto Freyre chega mesmo a sugerir que as Minas, fator de renovação na colônia, teriam contribuído para a derrocada do patriarcalismo. “Minas Gerais”, diz este autor, “foi outra área colonial onde cedo se processou a diferenciação no

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terísticos dos planos urbanos da América Espanhola –, e no entanto serviram muito bem ao propósito que as criara: a consolidação do poder metropolitano no seio do sertão das Minas.33 A intensa vida urbana das Minas constituiu uma experiência ímpar na colônia predominantemente agrícola e rural que ainda era o Brasil no século XVIII . Assim sendo, os resquícios patriarcalistas de nossa formação – tão acentuados em outros pontos – nunca tiveram, ali, maior significado.34 O período mais intenso deste processo urbanizatório foi o compreendido entre 1711 e 1715, e que Albuquerque inaugurou com a fundação de Mariana, Vila Rica e Sabará. D. Brás Baltazar da Silveira continuou a obra: em 1713, São José del Rei; em 1714, Caeté e Serro; em 1715, Pitangui. 1714 foi também o ano da criação das três primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes. Este primeiro período foi encerrado por Assumar em 130 sentido urbano. Em Minas, o século XVIII é de diferenciação intensa, às vezes em franco conflito com as tendências para a integração no sentido rural, católico, português”. Sobrados e Mucambos, São Paulo, 1936, p. 35. 35 , As datas precisas destas fundações, e os nomes que então tiveram as vilas são os seguintes: 8-IV-1711: Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo (Mariana); 8-VII-1711: Vila Rica de Albuquerque, logo mudada para Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar; 17-VII-1711: Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará; 8-XII-1713: São João del Rei; 19-I-1714: Vila Nova da Rainha (Caeté) e Vila do Príncipe(Serro); 6-II-1715: Nossa Senhora da Piedade do Pitangui; 17-I-1718: São José del Rei (Tiradentes). Para uma síntese da fundação das primeiras vilas, ver Diogo de Vasconcellos, História antiga...; José Joaquim da Rocha, ob.cit.; Floriano Peixoto de Paula, Vilas de Minas Gerais no período colonial , em: RBEP, XIX , junho de 1965,

p. 275-84; Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1971; Sérgio Buarque de Holanda, Metais e Pedras Preciosas , em: HGCB , II .

36 , Cf. João Camilo de Oliveira Torres, ob.cit., p. 78. 37 , Cf. Flamínio Corso, Terra do Ouro, cap. O palácio dos governadores , p. 29. 38 , Cf. João Camilo de Oliveira Torres. O homem e a montanha, p. 46. Apesar da

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1718, com a criação da vila de São José del Rei.35 As vilas mineiras foram, por muito tempo, reunião de pequenos arraiais situados nos vales, onde se ajuntava o ouro de aluvião.36 Vila Rica formou-se a partir dos arraiais de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, Padre Faria e Antonio Dias, situados em três vales contíguos do fundo dos quais começaram a subir pelas encostas dos morros.37 Pode-se imaginar como eram rústicas essas vilas, com o aspecto alongado de caminhos que as casas de barro e de pau-a-pique costeavam. O ímpeto urbanizador trouxe como uma de suas consequências um convívio entre populações muito mais íntimo do que em qualquer outro ponto da colônia. Essa intimidade não só favoreceu a emergência dos conflitos como propiciou a aplicação de medidas punitivas. Normalizar a população e cobrar impostos tornaram-se necessidades prementes, e os acampamentos de faiscadores da véspera foram subitamente assaltados por uma legião de burocratas portugueses.38 Reduzir os moradores à obediência, ao sossego, à união era indispensável para que os trabalhos auríferos se fizessem com sucesso, possibilitando à Coroa a auriferação de lucros maiores. Não era outro o tom da carta com que o rei louvava o trabalho pacificador de Antonio de Albuquerque, e não foi outra, por todo o período, a preocupação básica dos governantes das Minas, sempre alertas ao perigo latente que a população de escravos, índios, forros e mestiços representava para a Coroa39 – situação característica de um urbanização ter correspondido, nas Minas, a uma política deliberada do Estado, é preciso não esquecer que a atividade mineradora, pelo seu próprio caráter, propicia a formação de núcleos urbanos. 39 , Carta ao rei de Antonio de Albuquerque – 25-II-1711, em: DI , XIV, 1895, p. 267-8. 40 , Parece ter sido longa a tradição portuguesa no sentido de normalizar os povos para deles tirar proveito: “O povoamento obedece à conveniência de congregar populações dispersas e vagabundas, mamelucos, índios forros, que tumultuam, em regiões sem lei, o sossego da agricultura e do pastorei. Fiéis à escola de D. Sancho I ,

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contexto absolutista em que o Estado nada tem de representativo, descolando-se muitas vezes da maioria dos súditos para se investir em defensor dos interesses de uma camada restrita.40 Assim, uma vez urbanizada a capitania e criadas as condições de funcionamento do aparelho administrativo, os governantes passaram a se preocupar com a gente que morava nas Minas. Assumar foi o primeiro a quem essa questão inquietou com especial intensidade. Mais do que em qualquer dos administradores que o antecederam e até mesmo mais do que nos que vieram depois dele, nota-se no conde uma grande animosidade em relação aos habitantes das Minas, assim como um pânico incontrolável de que ocorressem sublevações escravas. Para ele, o espírito de rebelião era quase que uma segunda natureza da “gente das Minas”, e caro custava estirpa-lo.41 A própria paisagem parecia incitar ao motim aquela “gente intratável, sem domicilio”, que, apesar de estar em “contínuo movimento”, era “menos inconstante que os seus costumes; os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre. (…) a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; desfilam liberdade os ares; vomitam insolências as nuvens; influem o Povoador, os reis visavam vantagens fiscais, com a cobrança dos preciosos dízimos, que se obteriam se a autoridade fosse organizada em núcleos, sedes de fiscais e administradores”. Faoro, ob.cit., 1ª ed., p. 85. 41 , “... o estar tão radicado o amotinar-se a gente das Minas, que muitos tinham por brio entrar voluntariamente nos motins”. – Segundo Sylvio de Vasconcellos, Mineiridade, p. 24. 42 , Segundo Sylvio de Vasconcellos, ob. cit., p. 25. Quando da sua nomeação, ao passar por São Paulo a caminho de Minas, Assumar se horrorizou com o aspecto das tropas que o foram recepcionar: “... eles vinham tão ridículos cada um por seu modo”, diz o escrivão da jornada, “que era gosto ver adversidade (sic) das modas, e das cores tão esquisitas porque havia casacas verdes com botões encarnados, outras azuis agaloadas por uma forma nunca vista e finalmente todas extravagantes, vinham alguns com as cabeleiras tão em cima dos olhos, que se podia duvidar se tinham frente, traziam então o chapéu caído para trás, que faziam umas formosas

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desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno”.42 A mestiçagem era tida como uma das principais responsáveis pelos defeitos de uma população composta “de tão más gentes”. Avessos ao sossego e à sujeição, dizia Lavradio que aqueles povos – “gentes da pior educação, de um caráter o mais libertino, como são negros, mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhantes” – tornavam impossível o exercício do governo.43 Ao tratar da criação de escolas, D. Lourenço de Almeida advertia o rei que os esforços poderiam ser infrutíferos: “...recreio que estes (os rapazes da terra) tomem pouca doutrina por serem filhos de negras que não é possível que lhes aproveite as luzes, conforme a experiência, que é em todo este Brasil...”.44 Por si só um mal considerável, a mestiçagem tinha a agravante de contagiar os brancos com seus defeitos dissolvedores do caráter e da vontade: “... os filhos de homens de bem” – dizia um dos delatores da Inconfidência, que a ideologia dos governantes parece ter aliciado com sucesso em todos os níveis – “que tiveram a desgraça de nascerem e serem criados no Brasil, não herdam os estímulos de honra, mas adotam de boa vontade os costumes dos negros, mulatos, gentios e mais gente ridícula que há nesta terra”.45 No início dos anos 1730, estudando as possibilidades de se estabelecer nas Minas o imposto da capitação, a Coroa dirigiu ao governador Conde das Galvêas uma série de cartas ordenando que se examinassem as vantagens e desvantagens da alforria. O Conde respondeu que, apesar de serem ordinariamente atrevidos, os forros figuras principalmente aqueles que abotoavam as casacas muito acima”. – Diário da jornada que fez ..., RSPHAN , p. 302.

43 , Relatório do marquês do Lavradio, em: RIHGB , v.IV, p. 424. 44 , Segundo José Ferreira Carrato, ob.cit., p. 97. 45 , O indivíduo é Basílio de Britto Malheiro. Segundo Carrato, ob.cit., p. 101. 46 , Carta régia dirigida ao Conde das Galvêas sobre negros forros, 17-VI-1733, em: APM , SC , cód. 18. Ver também a carta de 20-V-1732, no mesmo códice.

47 , Cf. Julita Scarano, Devoção e escrivão, São Paulo, 1975, p. 116-7.

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trabalhavam nas lavras e apresentavam utilidade aos reais quintos, como contribuintes que eram. Já os mulatos forros eram bem mais insolentes, “porque a mistura que têm de brancos, os enche de tanta soberba e vaidade que fogem ao trabalho servil, com que poderiam viver, e assim vive a maior parte deles, como gente ociosa”. O rei alarmou-se ante essas informações, pedindo que Galvêas opinasse sobre a necessidade de se “dar alguma providência acerca dos mulatos forros, que vivem também em grande liberdade”.46 Aqui, mais uma vez cruzam-se o ônus e a utilidade representada pelo indivíduo mal situado na ordem social. Elementos ameaçadores, os forros podiam entretanto apresentar utilidade à Coroa. Como viu Julita Scarano, Lisboa parece, neste episódio, bastante perplexa quanto à atitude que deveria tomar, buscando no parecer do governante uma possível solução.47 Empurrados para as fímbrias do sistema que os criava e os deixava sem espaço próprio, os mestiços e os forros foram com frequência equiparados aos quilombolas, a ponto de conviverem até hoje nas páginas de um códice do Arquivo Público Mineiro.48 Malvistos pelos habitantes, queixaram-se junto às autoridades, como na petição dirigida ao rei em 1755, onde falam da sua impossibilidade de defesa ante a má-fé dos brancos, que os exploravam “sem mais temor a Deus e às Justiças como é vulgar naquele país onde o pobre preto e preta libertos não tem que os auxilie”.49 Através dos tempos, foram cerceadas as menores tentativas que empreenderam no sentido de se organizarem como uma categoria social: em ordem de 27 de janeiro de 1728, a Coroa determinava que a Patente recém-concedida a 48 , Registro de cartas do governador concernentes à repressão de quilombos , em: APM , SC , cód. 199.

49 , Segundo Julita Sacarano, p. 124. A autora alcança o ponto alto de seu livro quando aborda o problema dos homens forros, no capítulo 3, item O forro e o pardo , p. 115-29.

50 , Ordem de 27-I-1728, em: RAPM , XVI , 1, p. 342. 51 , Ordem de 13-I-1731, ibid, p.3 43. 52 , Para ser publicado em Ribeirão Abaixo, 6-III-1715, em: APM , SC , cód.

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Francisco Gil de Andrade, “capitão de infantaria da ordenança dos homens pardos e bastardos forros da vila de Sabará” fosse invalidada, “porque não convém, que semelhantes homens sirvam obrar em tal caso, era misturá-los com os mais corpos das ordenanças dos homens brancos, para ficarem mais sujeitos e obedientes”.50 A medida foi reforçada três anos depois, quando se determinou que as companhias fossem distritais, os brancos e os pardos forros se misturando para maior “aquietação e sossego dos povos”.51 Proibições sucessivas lhes tolheram o porte de armas de fogo, toleradas nos homens brancos e “nobres” sobretudo quando “fossem a alguma viagem ou diligência”,52 mas nunca em negros, carijós, mulatos e bastardos, que as não podiam usar “nem curtas, nem compridas sob pena de se lhe tomarem por perdidas, e ter os dias de prisão que me parecer”.53 No que diz respeito às sublevações escravas, a paranoia dos governantes e dos potentados não teve limites durante todo o período colonial.54 Mesmo quando não havia situação concreta que pudesse provocar receio de insulto, diz um documento, “contudo da plebe bárbara, sempre se devia acautelar...”.55 Conforme aumentava a população escrava – nas Minas, em muito superior à branca –, o temor 9, fls.3 9. 53 , Sobre o uso das armas , 10-IX-1713, em: APM , SC , cód. 9, fls. 2. 54 , “Como em regra quem oprime se sente mal, imaginando a cada passo a revolta dos oprimidos, assim viviam os brancos, cujo duende era o ódio dos negros”. Em: Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 211. 55 , Documentação referente a Minas Gerais existente nos Arquivos portugueses , carta de 5-VIII-1738, em: RAPM , XXVI , p. 178.

56 , Diogo de Vasconcellos, História antiga, p. 322. Leur multitude dans le Brésil ferait craindre un soulèvement, funeste aux portugais, diz um documento anônimo. Manuel Cardozo, A French Document in Rio de Janeiro, 1748 , em: HAHR , XXI , ag.1941, p. 430. 57 , Carta de Assumar ao Ouvidor-Geral da Comarca do Rio das Velhas , 21-XI-1719, em: APM , SC , cód. 11.

58 , Carta de Assumar ao rei de Portugal , carta de 20-IV-1719, em: RAPM ,

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crescia, “independente de qualquer assanho daqueles infelizes”.56 Para evitar as situações de fuga e revolta, Assumar chegou a sugerir as medidas as mais cruéis, como o corte do tendão de Aquiles dos cativos, buscando inspiração confessa no “Code Noir”. Para o Conde, os negros eram “os que podem pôr em maior cuidado este governo”, e o seu modo de vida não podia ser qualificado adequadamente de escravidão, pois viviam nas Minas numa “liberdade licenciosa”.57 O pior, dizia ainda D. Pedro de Almeida, é que “se lhes não podem tirar os pensamentos e os desejos naturais de liberdade”, assim como não se pode exterminá-los todos, “sendo tão necessários para a subsistência do país”.58 A “negraria” das Minas parecia-lhe particularmente inclinada à sublevação, e o governador reputava esta matéria de suma importância por dela depender “a conservação ou Ruína deste país”.59 Para evitar que acontecesse o pior – algo semelhante “aos Palmares de Pernambuco” –, urgia aplicar “os Remédios Violentos, como tão preciosos a uma canalha tão indômita”.60 Os numerosos bandos e cartas sobre a repressão dos quilombos apresentam sempre a mesma terminologia para designar os malefícios advindos da ação dos quilombolas; os negros aparecem aí como os grandes inimigos da Ordem, do sossego dos povos, do trabalho e da liberdade.61 Mal necessário a uma sociedade escravista, o Estado tentava de todas as formas reduzir o âmbito de suas ações, esterilizá-las e, se possível fosse, extirpar de suas consciências o desejo v.III . 1898, p. 265-6. 59 , Carta de 13-VII-1718, em: RAPM , III , p. 251-2. 60 , Ibid. 61 , "Recebi a carta que V. Ms. Me escreveram na data de 18 do corrente Mês pelo motivo da grande perturbação que causam ao sossego público destes povos os pretos fugidos, a que dão o nome de calhambolas com as suas desordens...” Carta à Câmara de Vila Rica, da parte de Luís da Cunha Menezes”, 16-VI-1784, em: APM , SC , cód. 240, fls. 19 V-20. Os documentos neste teor são inúmeros.

62 , “... e que desta escandalosa liberdade tem não poucas vezes resultado não só violentamente e de mão armada tirarem mulheres brancas dos mesmos povoados, mas levarem igualmente pretas e escravos, com que reforçam as tropas dos seus

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incontrolável da liberdade – uma liberdade que não lhes cabia de direito, “escandalosa” quando por eles usufruída, pois era privilégio dos brancos e do seu mundo, do qual, diziam as autoridades, os negros a desejavam tolher.62 Esta ideia surge claramente configurada num bando do tempo de Luís Diogo Lobo da Silva, onde os quilombolas aparecem como os agentes da opressão, numa inversão curiosa que escamoteia a natureza do regime escravista.63 Este deveria ser preservado a todo custo, e para tal, nele não podiam caber os anseios de liberdade do cativo.64 parciais...” “Bando sobre a limpeza dos negros calhambolas; taberneiros; mascates de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas vadias – e regularidades de capitães-do-mato, e pedestres”, em: APM , SC , cód. 50, fls. 91 V. 63 , “... na ideia de se constituírem de maior terror ao público, e de dificultarem a destruição destas prejudiciais quadrilhas, e desejando aliviar os povos de semelhante opressão e dissipar por uma vez as raízes que se podem adiantar de se não atalharem vigorosamente tão crimináveis excessos...” – ibid. 64 , “... a vista do perigo grande que correm estas minas pela forma em que nelas vivem os escravos mais como livres que como cativos...” – Sobre as mortes e roubos constantes na comarca do Rio das Velhas que cometem os negros dos quilombos . Em: APM , SC , cód. 4, fls. 742.

65 , Em 1773, escrevia o governador para o capitão-mor Manuel Antunes: “Recebi a sua carta de 7 do passado com as representações que lhe fez José (Vieira?) de Almeida, e a mulher de Daniel Dias Cabeça, Quitéria da Cunha Pontes, sobre a má vista que esta tem do dito seu marido, por respeito de uma mulata, e a dissipação total que faz dos bens, ficando ela extorquida dos que levou: pelo que respeita a dissipação, ela que requeira ao juiz de órfãos para lhe dar a justa providência na forma da lei; e pelo que toca aos maus-tratos que costuma dar à mulher por causa da mulata, ordene V.M ., ao comandante de ordem minha, chame ao dito Cabeça, e o repreenda severamente, admoestando-o que se não viver como deve com sua mulher, apartando-se (sic) a ocasião, que o há de prender e remeter-me a esta capital na forma das ordens, indagando sempre o dito comandante se o dito (…) Cabeça pratica o contrário, a fim de livrar que não mate a mulher porém caso prossiga nos meus péssimos costumes, nunca o comandante o deve logo prender, sem me dar parte para eu resolver o que entender justo, mas o que ameace e o atemorize”. – Car-

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Ante o perigo difuso representado pela população, a Coroa tentava medidas saneadoras; procurava prover a tudo, regulando relações conjugais e brigas de vizinhos;65 contava com o apoio das Devassas Eclesiásticas, que a partir de 1721 esquadrinharam a vida das populações mineiras, reprovando suas relações ilícitas e o seu modo de vida; premiava os agentes que se lançavam na repressão dos elementos incômodos e incentivava as câmaras e fazerem o mesmo. A leitura das cartas patentes concedidas pelos governadores revela esta preocupação com a recompensa ante serviços prestados na consolidação da Ordem. Paulo Rodrigues Durão, pai do futuro Frei Santa Rita Durão, foi nomeado sargento-mor de Mato-Dentro por ter auxiliado Assumar na repressão a quilombos.66 Tomás do Lago de Medeiros recebeu patente de coronel de Paracatu e foi instituído da guardamoria e do privilégio de distribuição das datas daquelas terras mineiras; como contrapartida, deveria zelar pela boa composição do povoamento a ser estabelecido naquelas paragens: “... terá grandíssimo cuidado de que na gente com que entrar na dita Conquista haja toda a quietação e sossego, para o que aproveitara muito não levar em sua companhia criminosos, nem malfeitores antes pessoas que vão só a ela, não por fugirem à justiça, mas por buscar a conveniência dos descobrimentos...”.67 Manoel de Barros Guedes Madureira foi agraciado com a patente de capitão de dragões por ter sido encarregado “da guarda de um facinoso (sic) que o governador mandou arrastar pelas ruas e esquartejar para horror dos mais réta de 10-I-1773, APM , SC , cód. 199, fls. 7-7 V. 66 , “Carta patente de 17-X-1722”, “Cartas Patentes”, RAPM , IV, 1899, p. 101. 67 , Patente de coronel do Paracatu e conquista concedida a Tomás do Lago Medeiros , 26-I-1722, em: Cartas atentes, RAPM , IV, 1899, p. 106.

68 , Carta patente nomeando Manuel de Barros Guedes Madureira capitão da terceira tropa de dragões . 30-VII-1735, em: Cartas Patentes”, RAPM ,

p. 116-7. 69 , Carta patente confirmando a nomeação de Francisco Rodrigues Vilarinho, no posto de Capitão de Cavalos da Companhia de Ouro Branco , 5-I-1739, ibid., p. 127.

gulos e acompanhando-o até o lugar do suplício com soldados armados pelo receio que havia de que o povo intentasse embaraçar o tal castigo...”.68 O régulo facinoroso era, no caso, Felipe dos Santos. Por ocasião das modificações que introduziu no Regimento Militar, criando quatro regimentos de cavalaria de ordenança por comarca e visando uma organização militar que melhor respondesse em casos de ataque inimigo, Gomes Freire de Andrada nomeou Francisco Rodrigues Vilarinho para o posto de capitão de cavalos do Regimento de Vila Rica; Vilarinho dera mostras de si na repressão aos levantes havidos no governo de Assumar, “fazendo rondas de dia, e de noite, e metendo guardas nas parte mais suspeitosas, para evitar tumultos, ajudando a prender os cabeças do motim, e muitos ociosos e vagabundos para Montevidéu”.69 No penoso trabalho de arrancar os “terríveis espinhos” que continuavam infeccionando o país “tanto contra o serviço de Sua Majestade como de (sic) República”,70 a Coroa premiava os agentes da normalização também com tabelionatos e ofícios de juiz de órfãos – atividades das mais lucrativas naqueles tempos. Foi esta a recompensa recebida por Domingos Alves Ferreira, fiel servidor real que se engajou por conta própria na repressão dos motins do Sertão, tendo em represália a sua casa pilhada e incendiada pelos revoltosos, que o chamaram de “traidor do povo”. Domingos Alves foi ainda nomeado capitão-mor do Acari, e sua conduta foi tomada como modelo. A premiação era nestes casos, exemplar: “... serviria de incentivo para que em outras semelhantes ocasiões, houvesse vassalos 70 , Trecho de uma carta de Gomes Freire a Martinho de Mendonça, 12-VI-1736, em: Documentos – Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade... para o senhor Martinho de Mendonça de Pina e de Proença”, em: RAPM , XXVI , 2, p. 243.

71 , Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire, 19-XII-1736, em: Motins do Sertão , RAPM , I , p. 654.

72 , Segundo Diogo de Vasconcellos, Pombal “tinha em Minas um corpo de secretas que se misturavam com o povo e lhe remetia as delações”. História média, p. 215. 73 , Consulta da capitania de Minas , em: RAPM , XVI , p.261.

que com igual zelo se interessassem no Serviço de Sua Majestade”.71 Este caso ilustra admiravelmente o aproveitamento de elementos avulsos por parte da Coroa, que assim estendia as malhas da dominação aos recônditos mais afastados colônia, comprando a adesão com a mercê. É curioso como, neste episódio, honra e privilégio encontramos presentes: a patente de capitão e o cargo lucrativo do tabelionato. Tornado norma, este procedimento desencadeava nos habitantes mais bem situados socialmente uma verdadeira fúria normalizadora.72 As câmaras foram disto o melhor exemplo: as representações que enviavam à Metrópole pediam com frequência adoção de medidas repressivas contra os quilombos, contra criminosos e infratores de um modo geral. No início da década de 1780, os oficiais da câmara de vila Nova da Rainha requisitavam um juiz de fora para a região. O magistrado se tornara necessário, diziam, para “coibir a maldade da maior parte dos habitantes, que vendo-se tão longe das Justiças, e sem quase nenhuma sujeição, cometiam continuamente crimes horrorosos, e escapavam quase sempre à inútil vigilância de comandantes de distritos, tão remotos”.73 Em 1768, os moradores do arraial de Carijós queixavam-se da “oprimição” que viviam sofrendo por causa dos ciganos – “levantados e quebrantadores das leis” – e pediam auxílio oficial para combatê-los.74 De trinta anos antes é uma petição dos moradores do Morro do Ouro Fino, em Vila Rica, onde pedem licença ao governador para

74 , “Petição dos moradores do arraial dos Carijós contra os ciganos Manuel Cortes e seus filhos Simão da Costa e Pedro da Costa, e outro Manuel Cortes, Francisco da Costa seu cunhado e outro que andam na mesma companhia que pelo nome não percam...”, 25-I-1768, em: APM , SC , cód. 103, fls. 43 V-44. 75 , Petição sobre calhambolas , 6-XII-1738, em: APM , SC , cód. 59, fls. 32 V-33. 76 , Bando sobre quilombolas (Assumar), 20-XII-1717, em: APM , SC , cód. 11, fls. 269. 77 , Este assunto será examinado no próximo capitulo. 78 , “Tendo D. Brás trazido a sua mulher e filhos, a essa família ilustre e virtuo-

poderem investir contra os negros armados que, de noite, apareciam por aquelas paragens. Tudo indicava serem quilombolas, diziam os moradores, que pediam também a isenção de penas para suas pessoas no caso de morrerem alguns negros, e a desobrigação de, em tais casos, pagarem aos senhores deles. O governador despachou favoravelmente, permitindo-lhes que atacassem os quilombolas e, ante a resistência destes, disparassem suas armas de fogo. Os casos de morte – se estas ocorressem – seriam julgados conforme as ordens de Sua Majestade “para semelhantes casos de negros quilombolas”.75 O poder, pulverizado, se difundia, e tinha na relatividade da Justiça uma atenuante para suas eventuais arbitrariedades. Entretanto, nunca o procedimento oficial no sentido de purgar a sociedade da sua parte corrompida parece ter sido tão objetivo e transparente como no bando sobre quilombos lançado por Assumar a 20-XII-1717. Determinava este que “toda pessoa de qualquer qualidade ou condição” que quisesse agir por conta própria e atacar os quilombos teria franco apoio do governo, que, sozinho, parecia não conseguir arcar com a repressão. Os negros que resistissem teriam suas cabeças cortadas e levadas ao governante; os que pudessem ser presos vivos, seriam justiçados exemplarmente, e tanto num caso quanto no outro, os senhores deles não tinham o direito de reclamar, “visto o dano público que fazem a todo o comum”. E os tentáculos do poder não se detinham aí: “toda pessoa que lhes der alojamento ou souber onde estão os ditos quilombos, e o não avisar, sendo branco será açoitado pelas ruas públicas, e degradado para Benguela, e sendo negro ou carijó, terá pena de morte”.76 A falta de laços familiares da população foi outro fantasma que perseguiu as autoridades, e sanar este mal tornou-se um dos pontos básicos da política normalizadora então levada a cabo. Ao contrário do que sugere a visão da sociedade colonial nucleada na família, esta foi, nos tempos coloniais, exceção: os elementos que para cá se síssima se deve em grande parte a nobilitação dos lares cristãos e a vida religiosa da Vila”. História Antiga... p. 305. 79 , Segundo Julita Scarano, ob.cit., p. 117. 80 , Segundo Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, p.59.

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dirigiram eram solteiros e desenraizados, e muitos se ressentiram da falta de mulher branca. Aos poucos, foram se formando famílias ilegais, à margem do vínculo do matrimônio. Contra a difusão do concubinato, muito se bateu a Igreja, conforme refletem as Devassas Ecelsiásticas.77 Mas os governantes também deixaram registradas as medias que nesse sentido se esboçaram e se cumpriram. Segundo Diogo de Vasconcellos, D. Brás Baltazar da Silveira exerceu importante função normalizadora sobre a população, dando-lhe o exemplo da vida familiar, pois ao contrário da maior parte dos governantes coloniais, trouxe para as Minas sua mulher e seus filhos.78 Num documento da Irmandade do Convento de São Domingos de Lisboa, datado de 6 de novembro de 1646, já aparecia uma ideia que, posteriormente, alcançaria grande voga entre os nosso dirigentes coloniais: a de que a falta de base familiar interfere funestamente no rendimento do trabalho. Assim, urgia normalizar a população através do casamento não apenas para melhor governá-la, como também para mais proveito se extrair dela; segundo rezava aquele documento, a Coroa devia zelar para que não faltasse trabalho aos “homens pretos forros e mulheres que não fossem casados, não tivessem ofícios e que andam pela terra vadios”.79 Quase cem anos mais tarde, D. João V aperfeiçoaria a formulação, associando o pouco caso pelo trabalho à desobediência das ordens reais que se notava entre os colonos solteiros, que por isso e para melhor servirem às necessidades da Coroa, deviam encontrar uma companheira oficial: … por este modo ficarão mais obedientes às minhas reais ordens, e os filhos que tiverem do matrimônio os farão ainda mais obedientes e vos ordeno me informeis se será conveniente mandar eu que só casados possam 81 , Segundo Boxer, A Idade de Ouro do Brasil, p.184. 82 , RAPM , VI , p.146. 83 , Em 1732, o rei ordenava ao governador das Minas que impedisse a saída de mulheres para o Reino, medida reiterada no ano seguinte com uma retificação: a lei ficaria improcedente caso as ditas mulheres estivessem acompanhadas de seus

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entrar na governança das câmaras das vilas, e se haverá suficiente número de casados para se poder praticar essa ordem... e mostra a experiência nos poucos casados que há nesta terra, que são muito maiores trabalhadores em desentranharem o ouro da terra, que estes solteirões que só lhes leva o tempo a se ocuparem em extravagâncias...80

Na mesma época, D. Lourenço de Almeida – governante aquém se destinava a carta acima citada – explicava o comportamento dos solteiros dizendo que nada tinham a perder nas terras mineiras “por ser o seu cabedal pouco volumoso, por consistir todo em ouro, nem mulher, nem filhos que deixar, não só se atrevem a faltar à obediência e às justiças de V. Majestade, se não também em cometerem continuamente os mais atrozes delitos, com estão sucedendo nas minas”.81 Mais para o final do período minerador, chegou a haver sugestões no sentido de premiar os casados e punir os opositores do matrimônio, “pois que olhando mal o estado do matrimônio, não se interessam em se entrelaçar uns com os outros, nem buscam a união de forjas tão proveitosas para fazer mais sólida, permanente e lucrativa a laboração de qualquer gênero que seja”. Os bens não se transmitiam de pai para filho, “acabando com a primeira vida de qualquer proprietário a roça, a lavra, a tenda etc.”82 A Coroa tinha grande interessa na manutenção da propriedade e, portanto, na realização de matrimônios que evitassem o degringolar das fortunas. Havia ainda um problema gravíssimo para o pequeno reino colonizador: a Metrópole não podia suprir a sua colônia de gente, e no entanto esta necessitava de um povo que a defendesse, que a fizesse funcionar e render. Era inviável uma colônia sem povo, e solteiros não deixavam frutos. Uma das soluções seria aceitar os casamentos mistos e a sua consequência: uma população de mestiços. Mas, como já se viu, a mestiçagem inspirava medo, como medo inspiramaridos. Cf. “Ordem de 14 de abril de 1731” e “Ordem de 20 de fevereiro de 1733”, em: RAPM , XVI , p.461-2; Carta régia ao conde das Galvêas , 20-II-1733, em: APM , SC , cód. 18, fls.

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va o forro, um e outro representantes de uma humanidade nova, desconhecida, frequentemente identificada à animalidade. As leis que proibiam a volta de mulheres sozinhas para o reino de Portugal foram uma tentativa de contornar este problema, como o foram também as leis pombalinas que incentivavam os casamentos mistos entre brancos e índias.83 Em 1751, o ministro de D. José I dirigiu a Bobadela uma carta “secretíssima” onde estes problemas eram discutidos em primeira mão: “E como este grande número de gente que é necessário para povoar, guarnecer e sustentar uma tão desmedida fronteira não pode humanamente sair deste reino e ilhas adjacentes; porque ainda que as ilhas e o reino ficassem inteiramente desertos isso não bastaria para que esta vastíssima raia fosse povoada”, era preciso “abolir toda a diferença entre portugueses e tapes, privilegiando os primeiros quando casarem com as filhas dos segundos; declarando que os filhos de semelhantes matrimônio serão reputados por naturais deste reino e nele hábeis para ofícios e honras...”.84 Essas leis não foram feitas em nome do respeito à população mestiça da colônia. Pombal visava, antes de mais nada, a preservação do patrimônio colonial que a presença permanente do castelhano ameaçava. Como diria mais tarde Martinho de Mello e Castro, “as principais forças que hão de defender o Brasil, são as do mesmo Brasil”.85 Para esse fim – cuidar da defesa –, a Coroa aceitaria, por con84 , “Carta secretíssima de Carvalho e Mello para Gomes de Andrada, para servir de suplemento às instruções que lhe foram enviadas sobre a forma da execução do tratado preliminar de limites, assinado em Madri a 13 de janeiro de 1750” – segundo Maxwell, op.cit., p. 31. 85 , Instrução de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vasconcellos e Souza acerca do governo do Brasil , in: RIHGB , XXV, 1862, p.481.

86 , A partir dos fins do século XVI , o Estado espanhol interveio na luta contra o desenvolvimento do pauperismo, então considerado como séria ameaça ao equilíbrio e à segurança da população. Cf. Bartolomé Bennassar, L'homme espagnol – attitudes et mentalítés du XVI au XIX siècles, Paris, 1975, p. 112. De autor anônimo, diziam, em 1665, as “Considerations concerning Common Fields and Enclosures”: “The poor increase like fleas and lice, and these vermin will eat us up unless we en-

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veniência, a população estranha e ameaçadora, que aqui vivia. Mas, de fato, ela jamais seria aceita, e para enquadrá-la e mantê-la nos trilhos da Ordem, os vigilantes aparelhos repressivos nunca deixaram de ser acionados. Se era comum a todos os governos o cuidado despertado pelos pobres e pelo pauperismo,86 o escravismo e a mestiçagem faziam com que a nossa colônia apresentasse um quadro bem mais complexo. Não havia que compreendê-lo: a ameaça interna, a Coroa dar-se ia por satisfeita se o seu controle fosse eficaz.87 B , O cumprimento da lei e o exercício da violência , A Justiça foi uma das facetas do Poder que melhor contribuíram para a manutenção do sistema colonial. Nas Minas, mais do que em qualquer parte, a violência, a coerção e a arbitrariedade foram as suas características principais. “Rara é a lei que se não repute por violenta, e com especialidade nas partes donde falta a coação para ser por meio dela executada”,88 escrevia Assumar o vice-rei Vasco Fernandes Cesar de Menezes, definindo qual deveria ser o caráter da Justiça naquelas partes da colônia. Os ministros que a exerciam gozavam de bastante independência, sendo que, no caso dos ouvidores, pode-se mesmo close”. Segundo Christopher Hill, The World Turne Upside Down, p. 52. 87 , A situação era, pois, extremamente contraditória: “de um lado, a metrópole pequena e pobre; de outro, a colônia, grande e cheia de riquezas: se a balança demográfica pendesse para o domínio ultramarino, romper-se-ia o equilíbrio, e desorganizar-se-ia o sistema”. Fernando A. Novais, ob.cit., p. 143. 88 , Carta que escreveu ao Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar o Excelentíssimo Senhor Vasco Fernandes Cesar de Menezes , Vice-Rei e Capitão-General-de-mar-e-terra deste Estado , 17-XI-1720, em: DH , LXX ,

1946, p. 106. 89 , Instrução..., RAPM , IV, 1899, p. 731. 90 , “Era assim que frequentemente os Ministros, não tendo perto o corretivo de suas arbitrariedades, prendiam a quem quisessem perseguir, por meio de seus oficiais; e até que de Lisboa viessem provimentos a vítima ficava encarcerada meses e anos”. Diogo de Vasconcellos, Linhas gerais da administração colonial – Seu exercício – Capitães-Mores, Donatários, Governadores, Capitães-

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falar de uma grande autonomia em relação aos governadores, que guardavam certa reserva ante estes magistrados. “Tratai aos Ouvidores com uma muito particular atenção”, recomendava Gomes Freire a seu irmão José Antonio, “porque são os primeiros cargos do governador e os que têm mais emoção no espírito dos povos pela extrema subordinação e império que neles têm”.89 A autonomia e o prestígio faziam pois do Ouvidor uma figura destacada na capitania, e não foram poucos os choques entre eles e os capitães-generais, o mais célebre deles tendo sido o que abalou as relações de Tomás Antonio Gonzaga com o governador Luís da Cunha Menezes. Era pois frequente que as regalias de que gozavam estes magistrados abrissem caminho à iniquidade.90 Em muitas partes, sobretudo nas mais retiradas, a figura que dominava o exercício da Justiça era a do capitão-mor das ordenanças, verdadeiro delegado de polícia que punia criminosos e prevenia infrações. Exercia, nesses casos, “uma autoridade plenária e absoluta, resumindo em suas mãos todo o poder de julgar e punir discricionariamente”.91 -Generais, Vice-rei, Capitães-Mores de Vilas e Cidades”, RAPM , I , XIX , 1921,

p. 119-20. “Ficou célebre o juiz de fora (também ouvidor) de Paracatu dr. José Gregório de Moraes Novarro, executando obras à custa direta do povo, inclusive grande parte do calçamento da vila”. Em: Floriano Peixoto de Paula, ob.cit., p. 281. 91 , Diogo de Vasconcellos, artigo citado, p. 122-3. 92 , “O sistema judiciário e o aparelho policial são, antes de tudo, dirigidos contra os escalões inferiores da hierarquia social: são eles que se deve vigiar, que criam o perigo, que estão em contato permanente com o crime. Entre eles, a infração parece ser um fenômeno endêmico a que só as penas severas podem conter”. Bronislaw Geremeck, Les marginaux parisiens..., p. 19. 93 , Para Roberto da Matta, a violência é um recurso hierarquizador utilizado quando os outros recursos estão impotentes. Cf. “Você sabe com quem está falando?”, p. 165-6, em: Carnavais, malandros e heróis. 94 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 74 e segs. 95 , Miran de Barros Latif, ob. Cit., p.170. 96 , O lúdico e as projeções do mundo barroco, p. 170.

De maneira geral, a violência da justiça se refletia nas prisões, nos castigos exemplares e na aplicação da pena de morte. Como em toda parte, afetava especialmente os pobres e os destituídos de propriedade, confirmando assim o seu papel de consolidadora do poder de uma camada social ou, em outras palavras, revelando o seu caráter instrumentalizador.92 Apontava sobretudo para a extrema necessidade de hierarquização, atuando sempre que esta se via ameaçada ou enfraquecida.93 Os presos por crimes comuns – “presos do conselho” – iam para a cadeia da câmara, que sustentava os réus pobres, e diferiam essencialmente dos presos do rei – os que atentavam contra a Sua Pessoa ou contra o regime político – e dos presos do bispo, que iam para o aljube. Nos lugares em que não houvesse prisão do rei nem do bispo, os culpados iam para a mesma cadeia que os presos comuns, sendo entretanto sustentados pelos remetentes.94 A presença dos presos na mesma casa em que os camaristas exerciam suas funções teve repercussões sobre os povos: “... as cadeias públicas, tornaram-se os maiores edifícios entre o casario, estampando suas janelas gradeadas sobre a praça principal. E como funcionem nestes mesmos edifícios os governos das comarcas e das câmaras, o povinho não tarda em confundir os atos do governo com tudo o que seja coerção e violência”.95 Nem todos os presos eram alojados na cadeia, muitos sendo enviados para longe, para serviços militares e presídios. A sorte dos que ficavam não era invejável: antes de ocupar o prédio que hoje se conhece e que, para Afonso Ávila, é a expressão arquitetônica do 97 , Carta de 15-II-1730, em: Documentação referente a Minas Gerais existente nos arquivos portugueses”, RAPM , XXVI , 1975, p. 173. 98 , “... porque esta cadeia anda todos os anos arrendada em mais de 8 mil cruzados a homens de tão pouco e ser e vil nascimento, que para tirarem o que dão de renda fazem negócios com os presos, e ultimamente fogem com eles...” Carta de D. Lourenço ao rei, 23-V-1726, segundo Feu de Carvalho, Reminiscência de Vila Rica – Sobre a casa da cadeia”, em: RAPM , XIX , 1921, p. 284-5.

99 , Carta de 8-III-1773, em: APM , SC , cód. 199, fls. 12 V.

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absolutismo portugês,96 a cadeia de Vila Rica era precária, de barro e pau-a-pique, “as paredes podres pela tenuidade de materiais de que se compõem”.97 Os presos fugiam com grande frequência, em maio de 1726 já o tendo feito três vezes naquele ano. A precariedade do prédio não era entretanto o único motivo, contando muito a demora em se sentenciarem os infratores e o entendimento havido entre os presos e os indivíduos que arrendavam a cadeia.98 As fugas continuaram se verificando através de anos, e em 1773 eram atribuídas a um motivo tão curioso quanto o que foi citado acima: a resistência dos escrivães em aprontarem os processos dos criminosos por serem estes muito pobres, e não poderem lhes pagar, o que resultava em longuíssimas estadas na cadeias, interrompidas, afinal, pelas fugas.99 Muitas vezes amontoados em lugares pequenos onde mal podiam respirar, os pobres presos sofriam de “extremosas fomes e misérias”, como os cinquenta que o capitão-mor da Vila do Príncipe, Liberato José Cordeiro, conservava na cadeia sem julgamento.100 Alguns eram assassinos, como um tal Domingos José, que juntamente com Manuel de Tal cometera uma morte no Rio das Velhas, passando depois para a comarca de Vila Rica, onde mataram um negro que guardava arreios.101 Havia os ladrões de cavalos como Manuel Ribeiro, que após seis anos de prisão conseguira fugir,102 e havia tam100 , Carta de Joaquim Manuel de Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Menezes, 15-VII-1782, em: APM , SC , cód. 223, fls. 5-5 V. 101 , Carta de 22-III-1773, em: APM , SC , cód. 199, fls. 13 V. 102 , Carta de 8-III-1773, ibid, fls. 12 V. 103 , Alvará de 8-X-1758, em: RAPM , XVI , p. 357. 104 , Cf. Carta já citada de Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Menezes. 105 , Segundo Quilombos em Minas Gerais , em: RIHGMG , VI , 1959, p. 442. 106 , ibid., p.440. 107 , Carta de Manuel Joaquim Pedroso a D. Rodrigo José de Menezes, 7-XI-1781, em APM , SC , cód. 223, fls. 12 V-13. 108 , Há uma excelente passagem de Lavradio acerca do exemplo dado pela pu-

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bém os escravos, cujo sustento era diariamente pago aos carcereiros segundo a orientação do Ouvidor.103 Prendiam-se ainda vadios e indivíduos de mau procedimento, como os recolhidos à cadeia de Vila do Príncipe no ano de 1782. Entretanto, estes eram quase sempre enviados para lugares distantes.104 Não se mediam os meios para efetuar uma prisão, a justiça se mostrando onipotente. Para prender negros, mestiços e forros que estavam sob suspeita de minerarem clandestinamente, o governador interino José Antonio Freire de Andrade ordenou a Paulo Correia, cabo do Milho Verde, que entrasse pela roça que havia sido de Luís Coelho, cercasse suas casas e senzalas e prendesse todos que achasse suspeitos, “como também o Pai e filho, senhores de roça, e todos os instrumentos de minerar, e armas que se lhes acharem...”.105 O mesmo foi ordenado ao alferes José dos Santos Pereira, que deveria invadir de madrugada as “lavrinhas do Mendoim, e Batatal”, vasculhando, como no caso anterior, as casas e senzalas.106 Quando transportados de um local para outro, os presos eram postos em correntes e grilhões e iam acompanhados de força militar. A justificativa para tal procedimento era rebuscada o suficiente para acabar revelando sua verdadeira natureza: alegava-se que essas medidas eram tomadas em nome da segurança dos presos, mas o que de fato buscavam era evitar as fugas e desordens que poderiam vir a cometer.107 Guardiãs da Ordem e do Privilégio, a justiça vestia no entanto a roupagem de defensora dos povos, indiscriminadamente. nição. O Vice-rei se descontentou com um advogado de nome José Pereira, por ele feito juiz de sesmarias. Mandou buscar o homem e outros seus asseclas, “tive-os por muitos meses reduzidos a uma aspérrima prisão, macerei-os até o último ponto, e com este meu procedimento se intimidaram todos os mais; e depois de estar tudo em sossego, tornei-lhe a permitir que voltassem para que pudessem contar aos outros o que lhes tinham sucedido...” – Relatório..., p. 423. A partir da segunda metade do século XVIII – quando surge o Tratado dos delitos e das penas (1764) de Beccaria – “a punição deixa, pouco a pouco, de ser uma cena”, e “tenderá a se tornar a parte a mais escondida do processo penal”, deixando “o domínio da percepção quase

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Tanto a prisão como a pena de morte tinham caráter de punição exemplar, esta última sendo comumente aplicada a indivíduos socialmente instáveis ou desclassificados.108 Se a sujeita e doença eram causas de morte para os pobres, a lei também contribuía grandemente.109 Até 1730, nenhuma autoridade tinha atribuições para sentenciar de morte – ao que tudo indica, nem mesmo os casos de escravos que matavam senhores –, e os réus eram remetidos para a Bahia, onde o Tribunal da Relação os julgava.110 Entretanto, em 1726 o governador pedia que os quatro ministros das comarcas compusessem uma junta que pudesse dar a sentença de morte, “porque só assim remedeia-se tanto dano”, como eram as incursões de negros matadores e salteadores que assombravam os caminhos e que deveriam ser executados “para exemplo dos mais negros...”.111 Em 1730, o governante dirigia um ofício ao rei onde falava dos “distúrbios”, “delitos” e “toda casta de insultos” que continuavam cometendo os negros, a causa sendo o fato de nas Minas não se lhes dar “o ultimo suplicio; que os intimide”112 – o que era um subterfúgio bastante cômodo para explicar a agitação e o mal-estar social. A resposta não cotidiana para ingressar no da consciência abstrata”. Michel Foucault, Surveiller et Punir, p. 14-5 e sgs. 109 , No final do século XVI , 2 mil pessoas eram anualmente executadas na Inglaterra, principalmente entre os pobres. Cf. Christopher Hill, Reformation to industrial Revolution, Londres, s.d., p. 46-7. 110 , Cf. Diogo de Vasconcellos, História Antiga..., p. 370 e sgs. Assumar lançou bandos que ameaçavam as populações pobres com a pena de morte, mas esta atitude não era legalmente sancionada. 111 , Carta de 20-VI-1726, segundo Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 369. 112 , Ofício de 10-VI-1730, ibid, p. 370. 113 , Carta régia de 24-II-1731, em: DI , XIV, 1895, p. 251-2. 114 , Junta de Justiça para a execução e imposição da pena de morte aos negros, bastardos, mulatos e carijós . Em: RAPM , IX , 1904, p. 347-8.

115 , Ordem de 31-XII-1735, em: RAPM , XVI . 116 , O caráter violentamente classista da Justiça é apontado em todos os artigos do livro Albion's Fatal Tree, onde vários autores ingleses analisam as diversas infra-

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tardou: a 24 de fevereiro do ano seguinte, o rei concedia o direito de julgar os delitos cometidos por ‘” bastardos, carijós, mulatos e negros” com a pena máxima. O julgamento deveria ser dirigido por uma junta composta pelos Ouvidores das quatros comarcas – Ouro Preto, Sabará (ou rio das Velhas), Rio das Mortes e Serro do Frio –, pelo juiz de fora da Vila de Ribeirão do Carmo e pelo Provedor da Fazenda. Em caso de ocorrer empate entre os seis ministros, caberia ao governador, com o seu voto, desempatar.113 O bando de 12-VI1731 publicou a lei com todo o aparato, fazendo saber aos “negros, bastardos, mulatos, carijós e peões” que os seus “atrozes crimes” seriam, a partir de então, julgados, a pena máxima sendo o enforcamento, “Pois que só com o exemplo do castigo de morte natural poderá deixar de haver a atrocidade de crimes, que repetidas vezes se cometem...”.114 A Real Piedade do monarca ordenara que a lei se fizesse pública para alertar aquela “casta de gente” que, “pelo temor do castigo”, talvez se contivesse nos seu crimes. Em 1735, uma nova ordem determinava que, dada a dificuldade de se juntar os seis ministros para formar a Junta da Justiça, esta poderia ser composta por apenas quatro ministros:115 a Justiça se simplificava com as vistas à presteza da execução e à necessidade do exemplo que muitos destes casos exigiam. Sobre os pobres, os ções que se puniram com o enforcamento da Inglaterra do século XVIII . De grande interesse são os artigos de Peter Linebaugh e E.P. Thompson, respectivamente The Tyburn Riot against the Surgeons” e The crime of anonimity. No primeiro,

o autor analisa a prática desenvolvida entre os cirurgiões de roubarem cadáveres de enforcados para estudos anatômicos, e que acabou culminando com uma revolta popular. Já o estudo de Thompson se volta para o crime das cartas anônimas, punido com a forca. Numa sociedade baseada em relações paternalistas de dominação e subordinação, inúmeros eram os motivos que levavam as pessoas a buscarem o anonimato quando reivindicavam algo ou quando se insurgiam contra uma ordem de coisas. Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century England, Londres, 1975. Em outro trabalho, o mesmo Thompson trata da lei sangrenta que punia as pequenas infrações dos caçadores furtivos nas florestas reais. E.P. Thompson, Whigs and Hunters – The Origins of the Black Act, Londres. 1975.

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mestiços, os negros, a “casta da terra”, abatia-se implacável a pena da forca, que só em casos gravíssimos – como o de Lesa-Majestade – seria aplicada aos homens brancos melhor situados socialmente.116 Estes continuariam a ser julgados na Bahia.117 Só em 1175 é que se criaria em Minas uma Junta de Justiça para sentenciar “todos os réus que cometerem delitos”: oficiais e soldados pagos ou das companhias de ordenanças que desobedecessem aos superiores, desertores, rebeldes, homicidas, fossem eles “europeus, ou americanos, e ainda africanos ou livres ou escravos.” Quase 45 anos depois de estabelecida para os desclassificados é que a pena máxima alcançava os demais habitantes da região do ouro.118 Dentre a categoria dos homens livres pobres, expropriados, mestiços ou negros, as negras quitandeiras e os vadios foram aqueles sobre que mais incidiu a legislação mineira na forma de bandos e instruções repressivas. As negras quitandeiras dispunham em taboleiros doces e comestíveis para vendê-los aos mineiros e escravos que trabalhavam nas lavras. Eram, por isso, também conhecidas como negras de taboleiros. Sua zona de ação era constituída pelos ribeiros e morros em que se processavam os trabalhos auríferos. Muitas delas parecem ter sido escravas que os donos colocavam no comércio para deste negócio auferirem lucros; outras, livres, agiam por conta própria, visando a sua subsistência. Constantemente acusadas de desordeiras, prostitutas, descaminhadoras de ouro e coniventes de quilom117 , Em 1720 – antes, portanto, de estabelecida a pena de morte – ao sentenciar Filipe dos Santos, Assumar viu-se às voltas com uma situação extremamente delicada, porque irregular. Cf. Diogo de Vasconcellos, História Antiga..., p. 370. 118 , Carta régia sobre a Junta da Justiça , em: RAPM , XVI , 1911, p. 471-2. 119 , Sobre as negras não andarem vendendo pelas lavras , 4-II-1714, em: APM , SC , cód. 9, fls. 6 V.

120 , Ordem de Assumar à Câmara de Vila Rica – 24-XI-1720, em: APM , SC , cód. 11, fls. 249-249 V. 121 , Segundo Augusto de Lima, Um município do ouro – Memória Histórica , em: RAPM , VI , 1901, p. 327-8.

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bolas, essas mulheres foram sistematicamente perseguidas pela legislação durante todo o período minerador. Nos tempos de D. Brás Baltazar da Silveira já se proibia a circulação de qualquer “negra ou parda, fosse escrava ou livre”, que andasse negociando comestíveis nas zonas auríferas “sob pena de castigo severo e, se fosse escrava, pagaria a seu senhor 40 oitavas de ouro, metade para fazenda real e metade para o denunciante” – o que incentivava o hábito da delação119 Assumar impedia-lhes o acesso às lavras, mas pedia à Câmara que lhes reservasse um local em que pudessem negociar em quitandas.120 D. Lourenço de Almeida legislava contra o comércio das negras e mulatas, escravas ou forras, que subissem o Morro das Congonhas, em Sabará, para vender seus quitutes, quando seriam presas, açoitadas cem vezes, privadas dos comestíveis e bebidas que andassem vendendo e remetidas para a cadeia local, onde permaneceriam detidas por três meses, em cujo termo deveriam pagar a soma de 20 oitavas de ouro. Caso fossem escravas, esta quantia seria desembolsada por seus senhores; destinava-se, em um e outro caso às despesas da Câmara.121 As penas impostas a este tipo de infração apareceriam ligeiramente modificadas no tempo de Gomes Freire de Andrada, quando, para os brancos, a prisão seria diminuída para vinte dias e a pena pecuniária subiria para quarenta oitavas, enquanto os negros, mulatos e carijós teriam oito dias de cadeia, as mesmas quarenta oitavas de multa e ainda cinquenta açoites em praça pública.122 Sobre a cabeça dos miseráveis, a Justiça se fazia, invariavelmente, mais pesada: em 1754, as negras quitandeiras e os comissários volantes que andassem vendendo nas lavras deveriam 122 , Sobre os inconvenientes que resultam as negras de taboleiros que há nos morros de Vila Rica e Mata Cavalos – 1-III-1736, em: APM , SC , cód.

1, fls. 184-184 V. 123 , Bando sobre a limpeza dos negros calhambolas. .. – APM , SC , cód. 50, fls. 93 V. 124 , Ordem de 24-XI-1734, segundo Coleção sumária das próprias leis ..., RAPM , XVI , p. 450.

125 , Ordem de 28-IV-1741, Segundo Quilombos em Minas Gerais , em: RIHGMG , VI , p. 436.

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ser presos e pagar multa. Mas havia uma ressalva, que agravava o castigo: “Sucedendo porém que algumas destas (negras) sejam tão miseráveis que se lhes impossibilite fazê-lo se lhes dobrará o tempo da prisão, findo o qual se soltará, ficando na inteligência de que repetindo o referido delito se lhes triplicará e na quarta reincidência se procederá na forma das reais ordens praticando-se igualmente a mesma pena a respeito do dobro, e tresdobro da condenação nas que forem escravas”.123 Já a legislação e as medidas contra os vadios não foram tão generalizadas como as referentes às negras de taboleiros. Nos primeiros tempos, praticamente inexistiram, pois o tumulto então reinante não permitia que se diferenciassem dos assassinos e facinorosos que a Ordem tolerava. Além disso, foi com o acirramento de um sistema econômico injusto e de uma superestrutura de poder iníqua que os vadios e desocupados proliferaram. As condições de seu engendramento correram pois paralelas à normalização e à estabilidade que a zona aurífera alcançou a partir da década de 1730, pois eram o seu reverso. Assim sendo, a primeira medida legal adotada em relação a esta gente data de 1734, quando ficava aprovada a providência que dera o Conde das Galvêas no sentido de ordenar a prisão e o degredo para a Colônia de “negros e mulatos forros, ociosos e vagabundos”; a mesma ordem determinava “que não consentisse vadios, e que os obrigasse a servir na cultura das terras, em minerar e nos ofícios mecânicos, e que sejam expulsos de Minas os que não tomarem este modo de vida”.124 Por ocasião das medidas punitivas contra quilombolas, que tiveram especial intensidade nos anos de 1741, 1746 e 1757-1759, os desocupados surgiram como alternativa de mão-de-obra a ser utilizada 126 , Documento avulso, APM , SC , cód. 50, fls. 81 V. 127 , RAPM , XVI , I , p. 451-2. 128 , Instruções pelas quais se devem regular os capitães-mores e comandantes dos Distritos desta capitania de Minas Gerais nas prisões e procedimentos contra os vadios e facinorosos remetidos pelo Ilmo. e Exmo. sr. Conde de Valadares governador e capitão-general desta ca-

nas expedições repressivas. Apenavam-se então os “negros forros e mulatos” que não tivessem “ofício, ou fazenda em que trabalhar” e deles se faziam soldados.125 Por vadios entendia-se então “todas as pessoas que não tiver fazendas suas, ou alheia (sic), que não tiver ofício em que trabalhe, ou amo a que sirva”, e se lhes dava o prazo de vinte dias para “tomar amo, ou ofício”. Em ordem de 11 de março de 1757, o rei atribuía aos capitães dos distritos a responsabilidade pelos delitos dos vadios, que deveriam ser punidos pelas justiças ordinárias.126 Para as últimas décadas do século, agravou-se o problema representado pelo ônus da vadiagem, pois a capitania esgotava as suas potencialidades e, mais do que nunca, via-se impossibilitada de arcar com os custos de reprodução daquela gente. Foi então – 1766 e 1769 – que se verificaram duas investidas consideráveis contra os desocupados: a carta régia de 22 de julho de 1766 e as “Instruções” acerca dos vadios. Dirigida a Luís Diogo Lobo da Silva, o teor da carta régia era o seguinte: Sendo-me presente em muitas e repetidas queixas, os cruéis, e atrozes insultos, que nos Sertões dessa Capitania têm cometido os vadios; e os facinorosos, que neles vivem, como foram separados da Sociedade civil, e Comércio humano: sou servido ordenar que todos os homens que nos ditos Sertões se acharem vagabundos, ou em Sítios volantes, sejam logo obrigados a escolherem lugares acomodados para viverem juntos em Povoações Civis, que pelo menos tenha de cinquenta fogos para cima com Juiz Ordinário, Vereadores, Procurador do Conselho, repartindo-se entre eles com justa proporção as terras adjacentes; e isto debaixo da pena de que aqueles, que no termo competente, que se lhes assinar nos Editais que se fixarem para este efeito, não aparecerem para se congregarem e reduzir à sociedade civil nas Povoações acima declarada (sic), serão tratados como Salteadores de Caminhos, e inimigos comuns, e como tais punidos com as severidades das Leis; excetuando-se contudo primeiramente os Roceiros, que com criados, Escravos, e Fábrica de pitania em observância da ordem de vinte e quatro de novembro de mil

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lavoura vivem nas suas Fazendas sujeitos a serem infectados daqueles infames, e perniciosos vadios: Em segundo lugar os Rancheiros, que nas Estradas públicas se acham estabelecidos com seus Ranchos para a hospitalidade e comodidade dos Viandantes, em benefício do Comércio e da comunicação das gentes: Em terceiro lugar as Bandeiras, ou Tropas, que em Corpo, ou sociedade louvável vão aos Sertões congregados em boa união, para neles fazerem novos Descobrimentos: Sou servido outrossim que os mesmos Roceiros, Rancheiros e Tropas de Bandeira tenham toda a autoridade necessária para prenderem, e remeterem às cadeias públicas das comarcas que tiverem mais vizinhas, todos os homens, que se acharem dispersos, ou seja nos ditos chamados Sítios Volantes, sem estabelecimento permanente, e sólido, ou seja nos Caminhos, e Matos, remetendo com eles autuados os lugares, Estado e circunstâncias, em que estiverem ao tempo, em que forem encontrados...127 Esta carta ilustra a intolerância oficial para com a mobilidade não-controlada de indivíduos e grupos de indivíduos que não se ajustavam adequadamente à ordem social. A itinerância representava, pois, uma ameaça, e devia ser reduzida à fixação no seio da Sociedade Civil. Mais uma vez, o que se nota é um medo difuso ante o incontrolável, o desenquadrado, o que foge à política da normalização. Somada a isto, havia a incapacidade crescente de admitir elementos não-produtivos – ou que se inseriam esporadicamente na estrutura produtiva. A solução para este “peso inútil da terra” era a concessão de terras a serem agriculturadas pelos vadios que, assim, se metamorfoseavam em elementos úteis. Caso eles não se conformassem com esta medida, a repressão faria seu serviço. Note-se ainda neste documento a necessidade de alertar para a utilidade dos roceiros, rancheiros e tropas de bandeiras, que não deviam ser confundidos com “homens tão infames e tão perniciosos” como os vadios. Esta ressalva sugere uma grande fluidez da camada livre pobre, onde era frequente não se diferenciarem claramente os elementos: vadios, facinorosos, rancheiros e pequenos lavradores setecentos e trinta e quatro e da carta régia de 22 de julho de 1766 – 25-

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não apresentavam, portanto, características próprias suficientemente definidas para marcarem o seu lugar na sociedade. Havia que tomar precauções para não confundir a parte sã da sociedade com a sua face corrompida – o que, mais uma vez, remete à reversibilidade constante do bem-classificado no desclassificado, do útil ao oneroso. Em 1769 se instruíram os capitães-mores e comandantes dos distritos quanto ao procedimento que deviam adotar contra os vadios e facinorosos, que uma vez presos, seriam inquiridos conforme uma fórmula fixa. Nesta, deveria constar o dia, mês e ano em que se verificara a prisão, o nome e cor do indiciado, o seu local de moradia, o nome do indivíduo que efetuara a prisão e o de seu superior. Seguia-se a orientação de um questionário composto pôr três itens: “1º Item: Se o autuado vive com senhor, ou amo, ou se tem ofício ou outro mister em que trabalhe, ou ganhe a sua vida, ou se anda negociando algum negócio seu ou alheio, que o obrigue a residir neste arraial, e há quantos dias chegou a ele e se tem moléstia que o impossibilite de trabalhar. 2º Item: Se o autuado é ladrão, matador, revoltoso e escandaloso. 3º Item: Se o autuado vive em arraial, ou em sítio despovoado não tendo nele roça com fábrica de lavoura, ou rancho para a hospitalidade dos viandantes, e se anda vagabundo assistindo em sítios volantes”.128 Seguiam-se outras dez instruções que orientavam os capitães-mores e comandantes no sentido de reconhecer o ônus efetivo do indivíduo que estava sendo preso e a sua periculosidade para o bem comum. Para tal, não se deveriam inquirir como testemunhas pessoas que fossem inimigas dos autuados, pois estas poderiam faltar IV-1769, APM , SC , cód. 163, fls. 49.

129 , Ibid. Em 1783, o tenente destacado na Vila do Príncipe, Liberato José Cordeiro, escrevia a D. Rodrigo José de Menezes que, apesar das “ordens repetidas para prender vadios e facinorosos, o juiz ordinário Manuel Caetano da Silva publicava que soltaria, por não deverem ser presos, quanto não tivessem culpa formada e não consentiria que entrassem na cadeia senão os presos da Justiça”. – Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 238. Além destas discussões entre autoridades,

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com a verdade e fazer passar por vadios elementos bem inseridos na Ordem. Os comandantes deveriam agir movidos “do zelo de extirpação dos vadios”, e não por “paixões particulares”, como se tinha notícia de que vinha acontecendo; este delito era gravíssimo por oprimir inocentes, e os seus autores seriam considerados infratores maiores que os próprios vadios, podendo até merecer a expulsão do corpo militar.129 Havia também que se proceder com extremo cuidado no sentido de não formar autos contra “pessoas estabelecidas nos arraiais, nem contra aqueles que foram bem reputados”.130 Os procedimentos dos autuados – mesmo quando “públicos amancebados” – só interessariam e só deveriam ser arguidos caso acarretassem prejuízo ao bem comum ou alteração do sossego dos povos, pois o objeto da Instrução não eram as ações particulares de cada um, enquanto não ofendessem ao público.131 Os autores de mortes e roubos deveriam ser presos, mas os que incorressem em outras infrações só o seriam quando surpreendidos em flagrante delito: “esperar para matar, desafios, ferimentos graves, e ainda leves, sendo feitos de noite, ou outros maiores....”. 132 Caso os autores de injúrias havia os “abusos, excessos, e até despotismos que os capitães de distritos praticaram capturando naqueles não os facinorosos para serem remetidos imediatamente às cabeças das comarcas, o que era muito de lhes louvar, mas até todos os que infelizmente incorriam na sua desgraça e que contra tais queriam derramar todo o fel do seu ódio”... Sobre uma representação do capitão-mor de Barbacena e providências relativas à modificação do uniforme militar . 11-6-1805, em: RAPM , XI , 1906, p. 281.

130 , Instruções pelas quais se devem regular. .., fls.50. 131 , Ibid. 132 , Ibid, fls. 50 V. 133 , Ibid. 134 , Ibid, fls. 51. 135 , “...para que reprima aos ociosos, e vadios, fazendo que todos cuidem em empregar-se nos seus ofícios, para que vivendo em paz, não me venham representações...” Para o capitão-mor Manuel Antunes (Ribeiro?)”, em: APM , SC , cód. 199, fls. 6 V-7. O governo do conde de Valadares foi um momento em que a política

ou de ferimentos fossem “pessoas bem morigeradas, que vivem com sossego, e que propósito (sic) fizeram os tais ferimentos, não as poderão prender os comandantes, porque todas estas providencias se encaminham à extirpação dos vadios e facinorosos, e não à vexação dos homens bons, que por caso acidental delinquiram”.133 Por fim, a Instrução reiterava a necessidade de se tomar o devido cuidado para não se proceder equivocadamente com os que se achavam bem situados na ordem social: “Devem os comandantes fazer que de noite não andem vadios fazendo distúrbios pelos arraiais dos seus distritos, porém não devem impedir que andem de noite aquelas pessoas, que vão a negócios precisos nem os criados ou escravos, que vão a alguma parte por ordem de seus amos e senhores nem aquelas pessoas, que andam viajando, porque da prisão, ou rendição destas se pode seguir gravíssimo prejuízo na demora das contas, e da entrega, e encomendas, que levarem, ou recados a que forem mandados”.134 O que transparece nesta Instrução é a preocupação em circunscrever os homens que não trabalham ou que cometiam infrações sérias, com o roubo – crime contra a propriedade e, portanto, gravíssimo – e a morte – privação da vida humana. Mas, mesmo antes nestes dois casos extremos, havia que se levar em conta a condição do infrator, atentando-se cuidadosamente para a sua utilidade dentro do sistema. Assim, mesmo quando cometessem crimes, os “homens bem morigerados” que pagavam seus impostos e possuíam lavras ou estabelecimentos próprios, não poderiam, de forma alguma, receber o tratamento que se reservava aos desocupados ou aos trabalhadores intermitentes, elementos onerosos à Coroa sobretudo adotada antes os vadios tomaram dimensões consideráveis. Segundo Teixeira Coelho, o conde acreditava que o procedimento em relação aos vadios deveria ser melhor estudado. É de seu governo, como se viu, que data a Instrução acima transcrita. Com base na prisão e no recrutamento, formou-se uma tropa de pedestres para conter os assaltos dos índios nos presídios, sobretudo no de Cuieté. A existência dessa tropa foi aprovada por ordem de Erário dirigida à Junta da Fazenda e datada de 18 de novembro de 1773. Teixeira Coelho, ob.cit., p. 479. 136 , Frades e estrangeiros foram expulsos entre outras, pela ordem de 13 de maio

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num período em que já era franca a decadência. “Perturbadores da ordem”, “pessoas ociosas que cometem suas travessuras”, os vadios deveriam ser, pois, reprimidos e obrigados ao trabalho.135 As atribuições administrativas dos governantes atingiram no século XVIII mineiro uma extensão considerável, sempre marcadas pela violência. Foi comum expulsar indivíduos da capitania e até mesmo para outras colônias, como Benguela e Angola. Com frequência, frades estrangeiros e ourives tiveram igual sorte.136 Os desertores foram asperamente perseguidos, e a abertura de caminhos passou a ser severamente controlada, prendendo-se os indivíduos que agiam nesse sentido.137 Apesar de ter sido generalizada durante todo o período, a repressão variou de caráter. Extremamente violenta no primeiro momento, quando cumpria normalizar as populações a ferro e fogo, encontrou em Assumar e na sua luta contra negros, sediciosos e potentados um governante que a exprimiu admiravelmente. Nas décadas seguintes, D. Lourenço de Almeida e André de Mello e Castro ficaram marcados na memória dos habitantes do Distrito Diamantino por terem sido os primeiros a legislarem sobre os diamantes e proibirem a mineração do ouro, expulsando a arraia-miúda da circunscrição. de 1722. Coleção sumária das próprias leis ..., em: RAPM , XVI , p. 461. 137 , “Porquanto me consta que sem ordem de S. Majestade, nem minha, se tem principiado a abrir caminho pela Jeruoca para o Rio de Janeiro, ordenado ao sargento-mor Manuel Rois Pereira faça toda a diligencia por si, capitães-do-mato e mais gente necessária para prender as pessoas que constar andam na dita abertura, e os remeterá presos à minha ordem à cadeia desta Vila, dando-me conta com destinação da parte que cada um tiver neste delito”. Ordem do capitão-general” . 17-I-1743, em: APM , SC , cód. 69, fls. 35. 138 , Cf. Maxwel, op.cit., p.120 e sgs. 139 , É o caso de Diogo de Vasconcellos, que ele diz: “... mas a verdade é que abateu os poderosos, exaltou os humildes e conteve o país na melhor ordem, entregando a seu sucessor o governo respeitado e a lei acima das paixões”. História Média..., p. 198. 140 , Dando-se o desconto devido à clara simpática que o liberal Diogo de Vascon-

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Gomes Freire foi o paladino da capitação e o arregimentado dos povos, que enviava para as guerras do Sul; além disso, investiu vigorosamente contra os quilombos que proliferaram na sua gestão. Os governos de Luís Diogo, Valladares, D. Antonio de Noronha e D. Rodrigo José de Menezes destacaram-se dos demais pela presença marcante que ai tiveram os desclassificados. É desta época que data a preocupação plenamente configurada com os vadios, o ônus que representavam e as diversas possibilidades de serem utilizados, atenuando assim os efeitos da decadência. Com suas considerações sobre o exercício do governo e da justiça na capitania, D. Rodrigo nos deixou um retrato bastante diferente do que ficou com Assumar: a época era outra, e, mais do que nunca, havia que misturar o agro com o doce, disfarçar a firmeza do mando sob aparência da temperança e da concórdia. Cunha Menezes ocupou, neste contexto, um lugar à parte. Tanto as Cartas Chilenas como o que sobre ele se escreveu fazem pensar em uma curiosa política populista que aproveitava os naturais da terra, os mulatos desraçados e desclassificados que tanto horrorizaram em espirito estamental e conservador como o de Gonzaga. O Fanfarrão Minésio apoiou-se neles para militarizar a capitania e fazer frente aos oligarcas que afastara do poder, sobretudo os que se achavam envolvidos no contrabando.138 Ficou odiado pelos povos, como odiados ficaram Assumar e, segundo alguns depoimentos, Valladares.139 Mas os “povos” que se odiaram não foram os pobres mestiços miseráveis, nem os índios confinados, nem os negros cativos: foram os potentados, que viram nos governantes mais autoritários ferrenhos opositores de suas pretensões autonomistas. É evidente que esses governos não serviram aos pobres, pois a tal não se destinam os governos absolutos; o que parece certo, entretanto, é cellos votava ao tirânico Assumar, são interessantes as suas considerações acerca deste governante: “Mesmo sem praticar ato algum notório de tirania. Já passava por tirano, só porque não admitia nem dissimulava a influência perniciosa dos Ministros e funcionários relapsos; e admira que, sendo toda a sua política dirigida para livrar o povo em geral de seus opressores, chamando à ordem os potentados e os pequenos déspotas, a tanto se inimizasse desde o princípio de seu governo: fato

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que a marca despótica que deles se registrou deveu-se mais ao fato de terem colocado o poder da Coroa acima dos interesses locais do que aos desmandos que cometeram contra mazombos e negros.140 C , O fiscalismo , A rede de tributos com que Portugal envolveu o Brasil foi de extrema importância para a sua fazenda: assim, os dízimos, os direitos de entradas, os direitos de passagens, o subsídio voluntário e o subsídio literário.141 Nenhum deles entretanto teve a dimensão atingida pelas diferentes formas com que o Estado arrecadou ouro e diamantes. Desde os primeiros tempos, a mineração foi rigorosamente disciplinada por um órgão criado a fim de supervisionar a arrecadação dos tributos: a Intendência das Minas, dirique bem demonstra o valor específico, que têm os grandes. Satisfeitos esses, poderá qualquer governo passar por liberal e amado ainda que oprima os pequenos; eis que no conter e coagir a prepotência daqueles é que está a tirania”. Em: História 162

Antiga..., p. 318-9. É preciso não esquecer que, sendo Pascoal da Silva Guimarães – mineiro milionário – o cabeça do motim de 1720, o supliciado foi o pequeno artesão Filipe dos Santos. 141 , Os dízimos, arrematados inicialmente no Rio, passaram para as Minas em 1714; pertenciam ao rei, Grão-Mestre de Ordem de Cristo. Os direitos de entradas remontam ao tempo de D. Brás Baltazar, e foram introduzidos para ajudar o quinto. Os direitos de passagens eram cotas exigidas das pessoas que transitavam por alguns rios da capitania, e foram estabelecidos a partir de 1711. O subsídio voluntário, renovado constantemente pelos mais diversos motivos, foi inicialmente estabelecido por ocasião do terremoto de 1755. O subsídio literário passou a vigorar a partir de 1773, e visava custear a subsistência dos professores régios da capitania; era cobrado sobre a aguardente da cana e o gado, entre outros gêneros. O recolhimento dos débitos era geralmente feito por contratadores, que uma vez satisfeitas as necessidades da Coroa, recolhiam o excedente para si. 142 , Para sistema de impostos a tributação das Minas, ver Pandiá Calógeras, As minas do Brasil e sua legislação, Rio, 1904-05, 3 vols. O assunto é tratado resumidamente por Caio Prado Jr., História econômica do Brasil, cap. A mineração e a ocupação do centro-sul ; Boxer, A idade do ouro do Brasil, cap. Vila Rica de Ouro Preto.

143 , Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1952, p. 57. Referin-

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gida por um superintendente e que, com independência em relação ao governo da capitania, subordinava-se diretamente a Lisboa: a ela deviam ser imediatamente comunicadas as descobertas de jazidas. A tributação do ouro se verificou de início sob a forma de cobrança por bateias. Depois, surgiu a capitação, que recaía sobre qualquer escravo empregado nos trabalhos auríferos. Por fim, instituíram-se as Casas de Fundição, onde se recolhia, fundia, se reduzia a barras e se quintava todo o ouro produzido. De lá, deduzido o quinto, era devolvido aos proprietários. O ouro que circulasse em pó, pepitas ou barras não quintadas era proibido, e punido todo aquele que o detivesse. Nas Minas, a Fundição vigorou de 1725 a 1735; interrompida até 1751 pelo sistema de capitação, voltou então a funcionar, sendo o sistema de quintos definitivamente restabelecido até o final do período.142 Comentando o fiscalismo, Joaquim Felício dos Santos dizia que “a sorte dos povos era indiferente ao Governo, quando se tratava dos interesses da fazenda”. E acrescentava: “Devia-se deixar ao povo os únicos meios de subsistência: o mais se lhe tomava a bem da metrópole”.143 De fato, os mineiros foram massacrados pelos tributos enquanto houve ouro para extrair da terra. Desde a primeira adotada, todas as formas de arrecadação foram injustas; a de bateias onerava as lavras pobres com numerosos escravos e favorecia as ricas onde trabalhava um menor número de cativos: não incidia, portanto, sobre o produto, mas sobre a mão-de-obra. Mas foi a capitação que mais revoltas do-se aos detalhes e minúcias do sistema fiscal, diz o autor: “... pôs-se em execução tudo o que o gênio migalheiro do despotismo podia inventar...” – ob.cit., p. 73. 144 , Para Diogo de Vasconcellos, a origem das revoltas ocorridas na década de 1730 no sertão do São Francisco deve ser buscada neste sistema: “Taxando os negros e mulatos forros, e não somente os escravos, tornou-se um vexame insuportável e deu azo a práticas extravagantes. Os brancos não pagavam a taxa, e como por graciosa mercê de S. Majestade os índios equiparavam-se aos brancos queriam isentar-se; mas os mamelucos, filhos de índios e brancos, foram havidos por mu-

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provocou. Neste sistema, os mineiros cujos escravos tivessem sorte na mineração pagavam sobre cada escravo a mesma quantia que pagavam os mineiros cujos escravos pouco ou nada ganhavam, e que constituíam a maioria da população. Os negros, mulatos e mestiços livres que não possuíam escravos deveriam pagar a taxa sobre si mesmos. 144 As lojas de comércio pagavam capitação mais elevada, e do imposto só ficavam isentas as crianças menores de quatorze anos e os escravos que trabalhassem para oficiais, ministros régios e eclesiásticos.145 Todo escravo deveria ser matriculado, ou seja, ter o seu nome oficialmente registrado; fosse ou não extraído ouro, o imposto seria pago por cativo – per capita. Contra a capitação se levantaram as câmaras mineiras em representações dirigidas à Coroa. O imposto, diziam, era cobrado “sem que daí se extraia outra coisa mais que prantos, clamores e ruínas populares”, não resultando qualquer proveito à Real Fazenda.146 Respeitosos, os vassalos não contestavam o direito real de cobrar tributos, pedindo apenas uma reformulação, pois achava-se o “povo

latos e caíram na taxa (…). A massa do povo, quase toda de mestiços, paupérrima, exasperou-se”. História Média, p. 96-7. 145 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v. I , p. 62. Mawe, ob. cit., nota à p.176. 146 , Impostos na capitania mineira – clamores e súplicas das câmaras em nome do povo, em: RAPM , II , p. 287-309. Representação datada de Vila Rica,

5-VII-1711, p. 287. 147 , ... por todo Direito divino e humano, reconhecemos que se deve tributo ao V. Majestade, o qual consiste na contribuição dos povos em reconhecimento do Senhorio do Seu Monarca de quem depende toda sua conservação... Vila Nova da Rainha, 1-VIII-1742, em: RAPM , II , p.288.

148 , Representação da Vila de São José, 30-VIII-1744, RAPM , II , p.294. 149 , Representação de São João del Rei, 17-X-1744, em: RAPM , II . A câmara de Sabará aborda os mesmos temas, com pequena variação: “Os cegos que vivem de esmolas pagam de um tal, ou qual escravo, que guia sua cegueira, o que, por grande pobreza da terra se lhe faz muito penoso”. Sabará, 17-X-1744, p. 302. E sobre as prostitutas: “Inumeráveis mulheres pretas e pardas são a capitação por suas pessoas por

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deste continente reduzido à última miséria no modo ou forma com que se acha estabelecido (sic) a capitação (…) pois sente maior gravame o pobre, que o rico...”. 147 Com o avançar do período, crescia a dificuldade em pagar o imposto; o ouro rareava, e muita mulher forra era levada à prostituição: “Que a tantas calamidades se seguem prantos, e lamentos (com naturais do outro sexo) de tantas mulheres forras, pardas e negras crioulas, e adventícias, que protestando nas Intendências sua pobreza, e necessidade, confessam no mesmo tempo o seu pecado, o ilícito meio com que dizem foram precisadas a adquirir aquele ouro; outras com mais lágrimas que palavras dão alguma pequena peça de ouro do seu pobre adorno”.148 Os senhores se viam impossibilitados de sustentar seus escravos, que famintos e nus assaltavam as roças e os caminhos. As câmaras se queixavam da extensão que o tributo alcançara, quando em princípio deveria ser pago apenas pelos mineiros: “... pagam quintos o negro, negra, mulato e mulata forros que não têm escravos com que tirem ouro; pagam quintos os escravos doentes, posto que lhes dure a queixa um, ou dois anos, pagam os fugidos, porque importa mais a justificação do que o tributo, e também pagam todos os escravos, que se ocupam no serviço econômico das famílias, sem darem a seus senhores utilidade, até o escravo do miserável cego mendicante paga, e também as meretrizes querem fazer da capitação necessidade para as ofensas de Deus”.149 A generalidade do tributo obrigava, assim, a ir “contra a lei de Deus a mesma lei”, o que deveria dizem as câmaras, levar as autoridades não terem algum escravo, é certo, vivendo estas de ofensas de Deus, necessariamente a sua contribuição há de sair do pecado.” Ibid. 15o , Representação de Vila Nova Rainha, 10-X-1744, p.304. 151 , Teixeira Coelho, ob. cit., p. 451. 152 , A expressão é utilizada por Boxer em The Portuguese Seaborne..., cap. Merchants, monopolists, and smugglers , p. 337.

153 , Cf. Maxwell, ob.cit., p. 188 Boxer, A Idade do ouro..., diz: “Grande número de arraia-miúda foi apanhado, mas ninguém ousava apresentar testemunho contra as pessoas poderosas que estavam contrabandeando em larga escala, e que, quase sem-

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a refletirem sobre a violência do tributo.150 Empobrecidos por “multiplicadas extorsões” e reduzidos a um estado de extrema pobreza, os vassalos de Sua Majestade se lançaram frequentemente no contrabando.151 Este foi, durante todo o período em que se extraiu ouro, a “maior dor de cabeça fiscal” da Coroa. 152 Para combatê-lo, esta empreendeu uma luta desesperada contra os caminhos clandestinos que então proliferavam, contra as casas de cunhagem falsa, contra os extraviadores de ouro em pó. Muito dos fraudadores foram homens importantes que tiveram seus atos acobertados pela própria administração colonial; 153 outros, a maioria, eram os miseráveis que o sistema econômico, a justiça iníqua e o fisco extorsivo lançaram nas fímbrias da sociedade. Dentre estes – pequenos faiscadores furtivos e mineiros clandestinos –, houve os que, com seus conhecimentos, acabaram prestando serviços ao Estado, para ele descobrindo minas de ouro e de diamantes.154 Eventualmente agraciados com a clemencia, foram, na maior parte das pre, trabalhavam de acordo com os funcionários do governo, que deviam obrigá-los a acatar a lei”, p. 219. 154 , Cf. Mawe, ob.cit., p. 244-5. Entre outras, o viajante narra a história de descoberta do diamante do Rio Abaeté, encontrado “por três homens condenados ao banimento por crimes capitais” e que, com isso, conseguiram a absolvição, p. 145-6. Eschwege contesta o caráter criminoso que Mawe imputara a esses homens. Cf., ob.cit., p.1 59. 155 , “Carta do conde de Valladares ao Morgado de Mateus, sobre extravio de diamantes”. – 1-VIII-1771, em: DI , 1895, p. 275. Diz Joaquim Felício dos Santos: “Era essa política do tempo. Muitas vezes o governo baixava-se a transigir com os criminosos, que galardoava e premiava, quando daí podia resultar interesses a bem do fisco”. Ob.cit., p.58. 156 , “...terá pena de vida, e traidor ao Príncipe Nosso Senhor qualquer pessoa de qualquer qualidade, ou condição que seja que levar ouro em pó fora desta vila sem quintar...” – Regimento das terras minerais de 27 de abril de 1680 , em: RIHGB , LXIV, p. 51.

157 , Carta régia de 11-II-1719, em: RIHGB , VI , p.207. 158 , Termo que fazem Manuel José de Freitas e Manuel Carvalho da

vezes, tratados como “terríveis e abomináveis delinquentes a quem cumpria prender, macerar, banir.155 Desde os primeiros anos da mineração, foram tidos como traidores do Príncipe a quem cabia tirar a própria vida.156 Mais tarde, o rei determinou que, além do confisco de seus bens e do ouro que tivesse consigo, o extraviador de ouro em pó ou em barra seria degredado para a Índia por período de 10 anos.157 Muitas vezes, uma simples suspeita bastava para atirar o indivíduo na desgraça. Assim aconteceu a Manuel José de Freitas e Manuel Carvalho da Cunha, que “por alguma suspeita de que procuravam ou ocultavam diamantes no Distrito Diamantino aonde foram presos, o que não se pôde verificar ou legalizar de modo que lhes resulte culpa para maior procedimento”. Foram soltos após algum tempo, sendo despejados dos territórios e se comprometendo a não entrar mais nos “matos e sertões devolutos com o pretexto de se apossarem de terras sem licença competente”.158 Às tentativas de refrear o contrabando deveu-se muito da flutuação do sistema tributário. Como já se viu no capítulo 1, há quem diga que o contrabando correspondeu mais a um subterfúgio do que à realidade. Teixeira Coelho abraçou esta posição: para ele, a extrema penúria dos mineiros era o maior óbice ao contrabando, que, quando verificava, dizia respeito a quantias ínfimas.159 O desembargador apresentava ainda uma engenhosa explicação para o uso de ouro em pó, que, de certa forma, era por ele defendido a miséria em que vivia a maior parte dos mineiros e o fato da população ser composta basicamente por faiscadores que extraíam diariamenCunha de despejo e inibição na forma abaixo declarada . 9-II-1795, em: APM , SC , cód. 89, fls. 93.

159 , Teixeira Coelho, ob.cit, p.499. 160 , Mafalda Zamella, O abastecimento da capitania de Minas Gerais, p. 165. 16 1 , Joaquim Felício dos Santos é da mesma opinião: “... em geral não era o mineiro quem exercia o contrabando: gente pobre, sempre perseguida pelos credores, não podia acumular grande quantidade de ouro em pó que fizesse conta mandar, sem pagar o quinto, às praças marítimas. Quando o mineiro extraía uma oitava, quase sempre acontecia que oitenta eram para pagar as despesas da produção, e vinte para

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te apenas alguns vinténs de ouro justificavam o emprego do ouro em pó como moeda: Essa gente miserável, quando encerrava o dia de trabalho, passava pelas vendas para adquirir algo necessário ao sustento cotidiano. Jamais chegava a juntar uma quantia de ouro em pó suficiente para levar à Casa de Fundição e transformá-la em moeda em barra”.160 Daí a insistência das populações na utilização do ouro em pó.161 Através de Mato Grosso e Goiás, nessa época de fronteiras esfumaçadas, o ouro e os diamantes eram trocados por prata espanhola, a região sendo particularmente acolhedora para “contrabandistas e libertinos”.162 Neste tipo de transação, os ingleses tiveram, ao que tudo indica, um papel importante.163 Disseminado por toda a colônia e especialmente dirigido, no século XVIII , para as Minas, foi entretanto no Distrito Diamantino que o Fisco mostrou sua face mais cruel e violenta. Demarcado e cercado a partir de 1734, o território diamantífero foi o exemplo mais o quinto: nada lhe ficava de reserva para tentá-lo ao contrabando”. ob.cit., p. 126. 162 , Os diamantes e o ouro eram conduzidos por “Cuiabá Mato Grosso Índias de Espanhóis pelo troco da imensa prata que por aquelas partes se franqueia pelos contrabandistas e libertinos”. Carta da câmara de Tamanduá :..., em: RAPM , II , p. 378.

163 , Ver Maxwel, Pombal, and the nationalization of the Luso-Brazilian economy, em : HAHR , XLVIII , n.4, 1968, p. 608-31.

164 , Sobre o Distrito Diamantino, disse Martius: “Única na História, esta ideia de isolar um território no qual todas as condições de vida civil de seus habitantes ficassem sujeitas à exploração de um bem da Coroa”, segundo Caio Prado Jr., Formação..., p. 182. 165 , “Administração diamantina...”, in: RAPM , II , p. 149. 166 , Eschwege, ob.cit., p. 148. 167 , Administração diamantina , p. 150. “Ninguém podia julgar-se seguro em sua casa. O senhor via com desconfiança no escravo um inimigo oculto que denunciando-o obtinha a liberdade e partilhava seus bens com a fazenda real. A devassa geral, que se conservava sempre aberta, era como uma teia imensa, infernal, sustentada pelas delações misteriosas, que se urdia nas trevas, para envolver as vítimas,

vivo da violência alcançada pela máquina administrativa colonial, da iniquidade da sua Justiça, da arbitrariedade de suas medidas.164 O seu governo se dirigia diretamente a Lisboa, independendo do capitão-general das Minas, com quem entrava frequentemente em atrito, e a quem respondia apenas no plano militar. Frequentes nas outras partes da capitania, os abusos atingiram ali limites nunca vistos: “eis aqui as tristes consequências e a fácil abusão, que só pode fazer de amplas jurisdições cometidas a indivíduos para as irem exercer tão longe do trono: sujeitos pequenos, e iguais ao pó da terra diante de V. Majestade, longe dela se fazem arrogantes, e insolentes despostas...”.165 Violento ao extremo – lei “mais digna de brilhar no Império Turco do que em um Estado cristão” 166 – o Regimento dos Diamantes provocava também a desagregação das relações sociais, instaurando o pânico e o hábito da delação entre os habitantes. Estes, em 1799, pediam à rainha que lhes restituísse “a paz, o riso, a alegria, e o amor à comunicação, pois entre nós presentemente reina a desconfiança uns dos outros; os parentes se receiam dos parentes, os amigos dos amigos, e que vivemos como é próprio, que vivia um povo, onde não existes regras certas de justiça, onde habita a adulação, e onde uma só palavra faz a ruína de uma família inteira”.167 Arrancados de suas terras, impedidos de delas extraírem qualquer riqueza, os habitantes da Demarcação encaminharam várias queixas às autoridades, mostrando-lhes como ficavam deslocados e sem emprego num lugar onde só havia olhos para diamantes. Seque muitas vezes faziam a calúnia, a vingança particular, o interesse e a ambição dos agentes do fisco”. J. F. Santos, ob.cit., p. 142. 168 , Administração diamantina ..., p.145. “Como a mineração do ouro, que era o principal recurso dos habitantes da demarcação, fora quase completamente proibida, resultou abundar o número de escravos e operários, que ficaram desocupados: a consequência foi a miséria de muitos. Era o pauperismo, que se procurava por todos os meios estabelecer no solo mais rico do Brasil”. Joaquim Felício dos Santos, ob.cit., p. 179. 169 , Ibid, p. 161. “Hoje, o Intendente determina a expulsão de um infeliz na sua sala, no seu passeio, no meio dos seus deleites, e regozijos, e no mesmo instante é

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ria justo, perguntavam, que, “cobertos de misérias e necessidades”, pisassem “um chão rico, cuja riqueza a terra cobre, e a constitui inútil para os seus moradores”? 168 Afetados ao máximo pelo arbítrio, deixaram formuladas com clareza as causas que provocavam a sua desclassificação, pedindo ao Príncipe Regente que suspendesse a pena de banimento e morte civil infligida a inúmeros dentre eles, atentando para o despovoamento que vinha sofrendo a região e para a “miséria, e desgraça extrema de numerosas famílias errantes, foragidas, e enfim banidas por crimes que o ódio tem armado, a quem o desterro, e degredo equivale a todos os horrores da morte”; pedia que restituísse “cidadãos úteis ao Estado, maridos às esposas desamparadas, pais a filhos mendigos, e enfim a serenidade e a paz a um povo atormentado e oprimido...”, insinuando que os banidos da demarcação caíam com frequência na mais completa miséria.169 Os homens livres pobres –“casta de gente toda forra”, conforme dizia D. Lourenço de Almeida170– foram perseguidos pelas suspeitas constantes de mineração clandestina de diamantes, preocupação essa que as inúmeras leis e bandos refletem admiravelmente. Assim, Manuel da Silva, morador no Arraial de Congonhas do arrancado do interior da sua casa, dentre os braços da esposa, dos filhos, ou do pai de cima daquela terra, que pisou nascendo, é arrastado a uma prisão e daí, depois de saciado o Intendente com os dias de prisão, que lhe parece é conduzido manietado à casa do Escrivão dos Diamantes, onde ele mesmo firma com seu próprio punho a sentença do seu desterro”. Administração diamantina ... p.146. 170 , Documentos relativos ao descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro Frio copiados e conferidos por Augusto de Lima Em: RAPM , VII , 1902, p. 280.

171 , Termo que fazem Manuel da Silva e Alexandre Leitão na forma abaixo declarada . 20-IV-1795, em: APM , SC , cód. 89, fls. 97 V-98 V.

172 , Ver, a respeito: Bando de 9-I-1732, Sobre despejo e confisco nos terrenos diamantinos , em: Documentos relativos ..., p. 275-6; Bando de D. Louren-

ço de Almeida a respeito dos negros forros e vagabundos, s.d., em: RAPM , VII , p. 336-7; Ordens sobre negras de taboleiros, mestiços e escravos, in: APM, SC, cód. 50, fls. 38 V-39; Bando de Gomes Freire de 22-V-1745, em: APM , SC , cód. 69, fls. 47-47 V.

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Campo, e Alexandre Teixeira Leitão, da Vila do Tamanduá, ambos crioulos e presos por terem entrado no território diamantino do Indaiá. Recolhidos à cadeia de vila Rica, foram designados para servir no presídio do Cuieté, devendo antes assinar um termo em que se comprometiam a “não entrarem mais em tempo algum em nenhum dos territórios diamantinos que se acham vedados...”.171 Mais do que nas outras comarcas, foram também numerosas no Distrito Diamantino as leis contra negras de taboleiros e vendas próximas às lavras, tidas como locais suspeitos onde se efetuavam transações ilícitas com pedras.172 Esquadrinhando córregos ocultos e serranias desoladas, patrulhando os caminhos e as lavagens de diamantes com seus famosos dragões, o Fisco se fazia odiado e se preocupava apenas com a extração. A Coroa tinha suas razões para proibir a mineração do ouro, para decretar o banimento e a morte civil de qualquer suspeito, para perseguir incansavelmente os traficantes. E o monarca, “antes ele quererá ver o distrito diamantino despovoado de seus moradores do que tornarem estes às suas passadas traficâncias de diamantes...”. 173 Assim, se preciso fosse, a Coroa faria do Tijuco uma terra de ninguém, pais estranho em que os principais protagonistas não eram os homens, mas as pedras preciosas. Situação anormal, houve quem a denunciasse com desespero: “Qual foi o meu crime? Tirar diamantes da terra. Mas quem foi que ai os escondeu, senão Deus, para nós com nosso trabalho irmos procurá-los? Que direito, portanto, há para se nos proibir a mineração? Deus criou os quatro elementos para gozo dos homens: o ar que 173 , Segundo Joaquim Felício do Santos, ob.cit., p.92. 174 , Carta escrita em São João del Rei a 15-II-1796 por um indivíduo despejado, que se dirigia a um seu irmão residente no Tijuco. Segundo Joaquim Felício dos Santos, p. 266. 175 , A devassa da devassa, p. 89. 176 , É preciso não esquecer que houve nas Minas um tipo muito peculiar de potentado: o mestiço enriquecido de que Afonso Arinos e Eduardo Frieiro nos dão uma ideia romantizada em O mestre de campo e Mameluco Boaventura, respecti-

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respiramos, a água que bebemos, o fogo que nos aquece, e a terra para dela tirarmos todo o proveito, já cavando-lhe as entranhas para extrairmos os minerais e pedras preciosas, já cultivando-a para alimentarmo-nos, já caçando nas suas matas e campos. Sou proscrito e criminoso por ter querido gozar dos benefícios concedidos pela Providência...”. 174

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3. OLIGARCAS E POTENTADOS , Extremamente forte em muitos pontos da colônia, o papel desempenhado pelos potentados e pelos oligarcas foi, nas Minas, tênue. A presença marcante do Estado, os olhos vigilantes do fisco, as violências da justiça colocaram, de certa forma, os poderosos num respeitoso segundo plano. Na História ficaram os nomes de Manuel Nunes Viana, Pascoal da Silva Guimarães, Domingos Rodrigues do Prado, Francisco Amaral Gurgel, Maria da Cruz, todos eles pertencendo ao momento que antecedeu a instalação dos aparelhos de poder, ou, sendo seus contemporâneos, habitando o sertão longínquo onde raramente chegavam os homens do governo. É verdade que participaram dos levantes havidos nas primeiras décadas da história mineira: a guerra dos emboabas, o levante de Pitangui, o de Vila Rica, o do sertão do São Francisco. Com eles, a Coroa não transigiu, se bem que nunca lhes tenha dado a pena máxima que reservava aos bastardos, forros e carijós. SE muito conservaram suas fazendas, o seu prestígio só foi tolerado até o ponto em que podia ser absorvido pelo Poder Central: nunca além. Como era de praxe no Brasil, estes poderosos tiveram sua polícia pessoal, composta de elementos socialmente desclassificados. Algumas vezes, chegaram a exercer a justiça e a violência paralelamente ao governo; mesmo aí, compuseram harmoniosamente a rede de poder que envolvia as Minas, perseguindo negros fugidos e vamente. 177 , Cf. Bando de Gomes Freire – Tijuco, 22-V-1745, in: APM, SC, cód. 69, fls. 4747V; “Edital que foi a todos os capitães-mores, ouvidores, comandantes pagos dos

os matando por conta própria. Os únicos casos de oposição frontal ao sistema disseram respeito à arrecadação dos tributos, e o mais famoso deles foi o de 1789. Então, já no final do período, os poderosos compunham uma verdadeira oligarquia, perfeitamente inserida na estrutura de poder até o governo de Cunha Menezes: Alvarenga Peixoto era um fazendeiro importante, como o era Álvares Maciel; Gonzaga era o Ouvidor todo-poderoso de Vila Rica; Cláudio Manuel da Costa, secretário de vários governadores, era o intelectual oficial da capitania, respeitadíssimo; Rolim pertencia a uma destacada família do Tijuco que, segundo Maxwell, andava às voltas com contrabando de diamantes. 175 O próprio arrematante dos contratos, o milionário João Rodrigues de Macedo, estava envolvido na sedição. Tratava-se portanto de um grupo poderoso que só discordara da estrutura de poder quando se vira afastado de seus privilégios e onerado pela taxação, com a qual a situação financeira de vários deles não podia arcar. A crise em que já entrava o sistema colonial é que tornou grave o conflito. Não se pode, assim, falar de confronto radical entre potentados e governo, senão em alguns casos esporádicos e que, como já foi dito, fizeram a fama de déspotas de alguns governadores. Região pontilhada por arraiais e vilas, as Minas não propiciaram a emergência de figuras clássicas de potentados, como foram, entre outros, os do sertão baiano do São Francisco.176 Esta situação peculiar à zona mineradora teve seus desdobramentos. Em primeiro lugar, uma dependência maior da população ante o Estado, pois não há poder que intermedeie esta relação. Além disso, a fragilidade dos laços paternalistas, que se fizeram fortes em outros pontos da colônia. Aqui, o Estado é o Pai-Patrão todo-poderoso, o desta (comarca?) e mais guardas dos registros”, 20-IX-1767, in: APM, SC, cód. 50, fls. 126V; Aristides de Araújo Maia, op.cit., p. 42; José Joaquim da Rocha, op. Cit., p. 507. 178 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.211.

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defensor e o algoz que dispõe livremente da sorte da arraia-miúda. Mais presentes do que em qualquer outra parte da colônia, as superestruturas de poder tiveram importância extrema no processo de consolidação do domínio metropolitano nas Minas. Zona de destaque para o Estado absolutista português, foi envolvida por uma verdadeira rede de que faziam parte o aparelho administrativo, a justiça, o fisco. Estes, para melhor cumprirem seu papel, contaram com o apoio da camada dominante: os camaristas amedrontados ante a ameaça constante dos escravos fugidos, dos mineiros expulsos das lavras de diamante, dos vadios maltrapilhos e esfomeados. Serviram-se do Pânico difuso que assolou com frequência os “homens bons”, e com violência e arbitrariedade superaram os eventuais danos provocados pelas incursões de quilombolas, pelos crimes e desordens dos desclassificados. Monstro tentacular, introjetou a repressão, semeou o hábito de delatar, criou informantes. Muito desclassificado pereceu entre suas engrenagens, e outros tantos aí se engendraram. E esta foi a contradição máxima que acompanhou o Poder enquanto agiu sobre as Minas: instrumento pacificador, muitas vezes fomentou a revolta; elemento de normalização, criou com frequência situações absurdamente anormais, como no caso da Demarcação Diamantina; visando, na teoria, a paz e o sossego dos povos, proporcionou uma situação estável apenas para a camada dominante, deixando os povos – na acepção verdadeira da palavra – entregues à justiça, à iniquidade, à violência, originárias muitas vezes de seus próprios aparelhos Assim sendo, a administração serviu, em primeiro lugar, à Metrópole, e depois, na medida em que havia consonância de interesses, aos homens bons. A justiça supliciou com a pena máxima a população negra e mestiça, os naturais da terra que criavam a riqueza ilusória que se dissolvia no além-mar. O fisco, instrumento máximo da extorsão, recaiu com mais peso sobre os que não tinham voz para protestar. Estes, os danados da terra, os desclassificados que morriam de fome numa terra onde tanta riqueza era gerada, foram o inimigo interno que cumpria enquadrar, normalizar, cercear. Quando a si-

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tuação econômica piorava, quando os rendimentos do ouro e do diamante caíam, quando os mecanismos do poder se acirravam para tentar extrair mais lucro, as autoridades só enxergavam o lado oneroso de sua existência: eram no dizer de Gomes Freire as “pessoas avulsas que só serviam para fraudar a Real Fazenda”, eram os desertores inclinados à vida ociosa “e só de peso para o país por que transitam”, era a “gente ociosa que só servia para consumir víveres e contrabandear”, eram os vadios sem exercício que, como tais, mostravam-se perniciosos ao Estado.177 E aí, tornando-se intoleráveis, a repressão incidia mais violentamente sobre eles na forma da pena de morte, das sucessivas ordens de prisão, das Instruções que norteavam a sua captura, das tropas formadas para defender os presídios – medidas mais frequentes no momento em que a derrocada econômica foi mais sensível. Mas, repentinamente, o elemento oneroso da véspera podia se metamorfosear no sertanista corajoso e atrevido, bom para povoar lugares longínquos infestados de índios, para descobrir veeiros perdidos nas distâncias, para rechaçar o castelhano belicoso que pressionava a fronteira. No momento em que acirraram as tensões entre as metrópoles europeias, intensificando-se a disputa pelas possessões coloniais, a questão hispano-portuguesa da colônia do Sacramento fez com que os indivíduos onerosos se tornassem úteis. Servindo mais para “alimpar” a capitania das Minas do que “para socorrer a outra”, os desclassificados foram recrutados aos magotes, aos magotes despejados sobre o Sul. “São interessantes estes governos absolutos”, comentaria, ante essa política oscilatória, um historiador liberal, “na paz a pátria pertencia só aos nobres brancos, mas na guerra serviam-lhe todas as cores!”.178 Assim, quando o ônus se fazia sentir mais intensamente, a resposta era a repressão pura e simples, as execuções sumárias, o banimento e as prisões. Quando havia entretanto uma possibilidade do Estado tirar partido dos desclassificados, a utilidade mostrava a sua face. Envolvidos pelas redes da violência e do arbítrio, os desclassificados eram os protagonistas miseráveis de um jogo que se desenrolava além de seu alcance.

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, OS PROTAGONISTAS DA MISÉRIA Ora pois, louco chefe, vai seguindo A tua pretensão: trabalha, e força Por fazer imortal a tua fama; Levanta um edifício em tudo grande; Um soberbo edifício, que desperte A dura emulação na própria Roma Em cima das janelas e das portas Põe sábias inscrições, põe grandes bustos; Que eu lhes porei por baixo, os tristes nomes Dos pobres inocentes, que gemeram Ao peso dos grilhões; porei os ossos Daqueles, que os seus dias acabaram Sem Cristo, e sem remédios no trabalho. E nós, indigno chefe, e nós veremos, A quais destes padrões não gasta o tempo. Cartas Chilenas.

1. ASPECTOS GER AIS DA POPULAÇÃO

, Citada exaustivamente pelos estudiosos da história mineira, a

tabela de população referente ao ano de 1776 acusa a existência de 70.769 brancos, 82 mil pardos e 167 mil pretos, somando 319.769 indivíduos.1 Convertidos em porcentagens, estes números significam 22,09% de brancos, 25,67% de pardos e 52,22% de negros, ou seja, uma população onde mestiços e negros passavam 77,9%. A flagrante superioridade numérica da população de cor seria característica da capitania mineira durante todo o século XVIII . Já nos primeiros anos de sua história, “a massa branca era comparativamente diminuta”, os escravos somando 27.909 em 1716 e 35.094 1 , População da província de Minas Gerais , em: RAPM , IV, p.294-6; Eschwege, Pluto Brasiliensis, v. II , p. 455; José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 511. Os historiadores que tratam da história mineira utilizam invariavelmente essa tabela.

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indivíduos em 1718.2 Entre 1735 e 1749, a população de cor permaneceria estável, declinando ligeiramente a partir de 1740.3 Em 1742, a escravaria representava pouco mais de 70% num total de 266.868 habitantes.4 Em 1786, às vésperas da Inconfidência, os homens brancos somavam 65.664 almas, enquanto os pardos chegavam a 100.685 e os escravos atingiam a cifra de 196.498. O total dessas três categorias era de 362.847, a soma dos pardos e pretos ultrapassando 80% do total.5 Essa proporção não se alteraria significativamente nos primeiros anos do século XIX : para 1808, Spix & Martius falam de 433.049 habitantes, sendo 106.684 brancos – ou 24,63% –, 145.393 mulatos – ou 33, 57% – e 180.072 negros – ou 41,58% –; portanto, 75,15% de mestiços e negros.6 Tomando-se como base o censo de 1776, todas as comarcas da capitania de Minas apresentavam grande superioridade numérica de mestiços e negros. Exceto para a comarca do Rio das Mortes, onde aparecia mais numerosa, a população branca era sempre insignificante quando confrontada com o número de negros, e, não raro, ultrapassava-a também o contingente de homens pardos, como no caso da comarca de Sabará. Assim sendo, não é de admirar que, em meados do século XIX , o viajante Burton encontrasse em Minas Gerais uma cidade de cinco mil habitantes onde apenas duas famílias eram de puro sangue europeu: se no litoral fora possível aos colonos casarem suas filhas com indivíduos de origem europeia, “nas capitanias do interior o mulatismo tornara-se um 'mal necessário' 2 , Diogo de Vasconcellos, História antiga de Minas Gerais, p. 323. Eduardo Frieiro fala de 35 mil cativos para 1719. O diabo na livraria do cônego – Como era Gonzaga? – E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1929, p. 234. 3 , Mauricio Goulart. A escravidão no Brasil – das origens à extinção do tráfico, 3ª ed., São Paulo 1975, p. 68-9. 4 , Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica – Formação e desenvolvimento – Residências, São Paulo, 1977, p. 35. 5 , População da província de Minas Gerais , p. 294. 6 , Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, trad., Rio de Janeiro, 1938, 3 vol., v. II , p. 322.

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(mulatism became a necessary evil)”.7 Fica pois evidente que a grande maioria dos párias e desclassificados era constituída de mestiços e negros forros e fugidos, o que se reflete muitas vezes nos comentários preconceituosos das fontes: “É a vila de Pitangui aonde ainda há alguma sombra da forma antiga de Minas, por ser muito povoada de pés rapados, caribocas e mulatos, que são os executores das insolências”.8 Ao falar da utilidade dos vadios, o desembargador Teixeira Coelho confirmava a composição racial dessa gente: “Eles, à exceção de um pequeno número de brancos, são todos mulatos, cabras, mestiços, negros e forros...”.9 Os alforriados se multiplicaram com o avançar do século: em 1739 correspondiam a 1,2% do total da escravaria, aumentando para 35% em 1786 e atingindo a casa dos 41% em 1808.10 O forro recém-egresso do cativeiro engrossaria frequentemente as fileiras dos desclassificados sociais, e a respeito deles a camada dominante se expressava com desdém e pouco caso: “... os pretos forros, filhos do País, chamados crioulos, que não são também boa fazenda...”.11 Esses indivíduos eram, em geral, filhos de uniões ilícitas, o que não chegava a constituir marca discriminatória ou uma peculiaridade em face da camada dominante. “Os casamentos, e mais ainda as mancebias de proprietários com mulheres pretas, e multas têm feito mais de três partes do povo de gente liberta, sem criação, sem meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca opinião de que a gente forra não deve trabalhar”, continuava o autor da Informação da Capitania de Minas Gerais.12 Dificultados por uma série de obstáculos de ordem econômica – o alto custo do sacramento – e reli7 , Segundo Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala, 9ª ed., Rio de Janeiro, 1958, p. 428. 8 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 459. 9 , Teixeira Coelho, ob.cit., p. 479. 10 , W. Cano, ob.cit., p. 102. 11 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Gerais (1805), em: RAPM , II , 1897, p. 677.

12 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob. cit., p.674. 13 , Segundo Iraci Del Nero da Costa, Vila Rica: População (1719-1862), tese de

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giosa – as limitações impostas pela Igreja –, os casamentos não se efetuariam na sua forma legítima, os indigentes sendo, “por assim dizer, arrastados pela falta de recursos a viver de modo irregular”.13 A Igreja autorizava casamentos precoces e tornava as coisas mais simples para os melhor situados socialmente, fazendo com que o matrimônio se tornasse um ideal atingível apenas para alguns.14 A consequência natural dessa ordem de coisas foi o alto índice de crianças bastardas: 60% das nascidas entre 1759 e 1763; 90% das que nasceram entre 1719 e 1723 – quando a sociedade ainda se achava bastante indefinida – e entre 1734 e 1738. Até 1788, o aumento do tráfico teve influência sobre o maior número de bastardos verificado nesses anos.15 Pode-se então imaginar o vasto contingente dos mestiços originados por uniões ilícitas que aumentavam o número dos socialmente desclassificados nas Minas. Assim sendo, a família da gente livre pobre estruturou-se independente dos laços matrimoniais. E, revelação surpreendente, uma pesquisa sobre a população setecentista de Vila Rica acusa a enorme importância das mulheres como cabeças das famílias, ou seja, como chefes da casa.16 De todos os fogos arrolados, 45% eram dirigidos por mulheres, sendo que em 83,1% destes casos, elas nunca haviam se casado. Estava longe o tempo em que faltavam mulheres nas Minas: a partir da metade do século, tornaram-se numerosas – o que encorajou a promiscuidade e criou condições para a predominância de fogos femininos.17 Estas mulheres eram, na sua grande maioria, negras e mestiças pobres, o que pode ser verificado no fato de pouquíssimas – 5,2% – dentre elas serem chamadas em Vila Rica, de senhoras ou donas.18 mestrado apresenta à FEA/USP, São Paulo, 1977. 14 , Cf. Donald Ramos, Mariage and the family in colonial Vila Rica , em: HAHR , v. IV, maio de 1975, p. 212-3.

15 , Iraci del Nero da Costa, ob.cit., Batismos inocentes , passim. 16 , Donald Ramos, ob.cit., p. 200-25, passim. 17 , Uso essa expressão para designar o que Ramos chama de “Matrifocal”. 18 , Donald Ramos, ob.cit., p. 218-20. 19 , Segundo Julita Scarano, ob.cit., p. 116.

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A gente livre pobre que descambou com frequência para a desclassificação social foi, pois, no século XVIII , predominantemente negra e mestiça, bastarda e oriunda de casas dirigidas por mulheres sozinhas. Franja da sociedade organizada, apresentava uma mescla curiosa de crime e trabalho, liberdade e cativeiro, norma e infração. 2. A FLUIDEZ DA CAMADA A

) Modo de vida ) A extrema pobreza foi uma das principais

marcas desta camada, a qual, em 1799, o bispo de Mariana se referia da seguinte forma: “Famílias pobres impossibilitados (sic) de homens pardos, pretos libertos, nascidos na miséria; criados na indigência, e sem a menor subsistência...”.19 Se, de modo geral, a instabilidade não permitiu que se construíssem boas casas nem para os melhor aquinhoados pela fortuna, pode-se imaginar o que seriam as habitações dos homens pobres, cafuas miseráveis espalhadas pelas encostas dos morros ou dependuradas sobre despenhadeiros, cobertas com capim e folhas de palmeiras, e tendo por piso o solo de terra esburacada.20 As fontes eram raras, e muita gente morava a mais de uma milha de distância de uma delas.21 Nas vilas, a gente pobre se fixava nas zonas periféricas, embora não haja pesquisa suficiente acerca dos tombamentos para que esta afirmação possa ser feita sem cuidados.22 O mobiliário era modestíssimo, quase inexistente, havendo referências a casas

20 , Cf. Boxer, A idade de ouro do Brasil, p. 72; Spix & Marcius, ob.cit., v. II , p. 10; Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Folhetins inacabados, introdução e organização de Alexandre Eulálio, São Paulo, 1978, passim; Requerimento de uns nomeados despejados da lavra da Chapada de Serro Frio..., em: APM , SC , cód. 186, fls. 22-22 V: “... e também suas casas fixadas

que são cobertas de capim se estão apodrecendo por falta de morada, e vivem com maior desarrancho que inda não se viu...”. 21 , Mawe, Viagens ao interior do Brasil..., p. 106. 22 , Cf. Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 84. 23 , ... e que sabe pelo ver que na dita casa não há mais que uma cama...”, em:

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onde havia apenas uma cama para acomodar vários moradores durante o sono.23 No que diz respeito à alimentação, não parece despropositada a tese de Gilberto Freyre de que era esta camada social a pior alimentada da colônia.24 Os viajantes se estenderam sobre o aspecto débil que tinha, população “ deploravelmente raquítica e pobre” cujo olhar doentio “pode ser atribuído à sua alimentação miserável...”.25 Atravessando a capitania numa época de decadência, o inglês Mawe, especialmente sensível ao problema, deixou retratada uma situação-limite de penúria, que não devia entretanto diferir muito da enfrentada pelas populações pobres no século anterior: Parei para me refrescar em uma das melhores das poucas miseráveis casas da estrada. Havia na porta um gato semimorto de fome; a visão deste pobre animal fez-me pressentir o que me aguardava nessa moradia, cuja 182

aparência levou-me a pensar não existir ai comida nem para ratos. Contemplava aquela imagem de miséria e da fome, quando surgiu à porta uma pobre mulher descarnada. Pedi-lhe um copo d'água, que ela me deu. Enquanto bebia, pediu-me esmola; seu aspecto exprimia já o que sua língua articulava. Dei-lhe uma pequena porção de mantimentos que meus soldados tinham, assim com uma pequena moeda.26

AEAM , Devassas, 1733, fls. 111. Segundo uma autoridade, os pequenos e mo-

destos mineiros expulsos da lavra da chapada eram moradores que “bem se acomodam em um jirau de varas do mato”, não necessitando pois de mobília. Requerimento de uns nomeados. .., fls. 22V.

24 , “E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente é que tem agido, aproveitando-se de sua fraqueza de gente mal alimentada, a anemia palúdica, o beribéri, as verminoses, a sífilis, a bouba.” Casa Grande & Senzala, p. 46-7. 25 , Mawe, ob.cit., p. 120. 26 , Ibid., p. 211. 27 , Ibid., p.201-2.

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Quando cozinhavam, diz o viajante que os soldados deviam estar alertas para impedir que algum vagabundo esfaimado os roubasse, o grosso da população tendo, nesta região, o milho e a água como alimentos básicos.27 Todas essas considerações dizem respeito ao Distrito Diamantino; para Mawe, o Tijuco seria dos locais mais pobres que jamais vira: “Cento e cinquenta desses infelizes vinham todas a semanas receber a farinha que o Intendente lhes dava. São absolutamente desocupados, porque não há agricultura nem manufaturas para lhes dar trabalho...”.28 De fato, somando-se a violência inaudita do fisco a essas causas estruturais, ter-se-ão os motivos que provocavam tanta miséria na população do Distrito. Abundavam as mulheres paupérrimas, o que também faz pensar nos maridos banidos e explica a alta taxa de prostituição que lá se verificava.29 A vestimenta dos homens pobres era a mais precária que se possa imaginar. Há notícia de um pai extremamente pobre que, dirigindo-se à Câmara, pedia uma pequena soma para ser usada como dote de usa filha, “tão pobre e miserável (que) não tinha roupas para aparecer (em público) ou outras necessidades para seu uso pessoal”.30 Por outro lado, o fato de uma mulher possuir roupas era luxo e ostentação suficientes para constar das devassas e a incriminar como mal-procedida.31 Em Vila Rica, a escrava do sacristão Diogo Pereira causava escândalo por andar “bem tratada com saias de camelão e chinelas”, como se fosse senhora.32 O vestuário era simples e grosseiro até para os mais abonados, como seria o caso de Jerônimo Pinto de Mendonça, capitão-do-mato fictício que Joaquim Felício 28 , ibid, p.221. 29 , AEAM , Devassas – 1756-57, onde se nota a grande incidência de meretrício em Conceição do Mato Dentro. 30 , Segundo Donald Ramos, ob. cit., p. 215. 31 , “... Narcisa Ribeira parda, moradora sua vizinha sendo sã não costuma ouvir missa (…). Ao mesmo tempo que tem vestidos, e está rindo e folgando.” Em: AEAM , Devassas, 1748-1749, fls. 54 V. 32 , AEAM , Devassas, 1733, fls. 108. 33 , Joaquim Felício dos Santos, O capitão Mendonça , em: Folhetins inacaba-

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dos Santos descreve da seguinte forma: “... seu traje ordinário consistia em jaqueta de couro de veado, calças de tré, camisa de chita ou riscado, chapéu de sola; de calçado, alparcatas”.33 O garimpeiro João Costa vestiria um traje usual para os homens de vida dura e arriscada: “... grande chapéu de imbé de longas abas (…); vestia um largo sortu de pano grosso azul, que descia-lhe até os joelhos, calçava botas brancas que cobriam-lhe o resto das pernas”.34 Muitos seriam os que andavam esfarrapados e seminus. Por isso, o Auto de Vereação que determinava o que devia ser feito por ocasião dos funerais de D. João V considerava complacentemente o luto dos pobres: …por sermos cientes da muita pobreza que há no país, que porém possibilitados, não podem cumprir com a fatura dos ditos lutos geralmente, havemos por bem provendo de remédio, haver por satisfeitas as pessoas pobres, aquelas que geralmente vivem da agência de seu trabalho, e costumam andar de capote ou sem ele, haver-lhe por satisfeito o cumprimento do dito luto com trazerem nos chapéus em mostras de sentimentos um fumo ou insígnia preta, pendente para fora do dito chapéu...35

Conforme dizia em 1789 a Câmara de Mariana: “Em duas palavras, os pobres são mais que os ricos, e uma família numerosa, que só tem o dia, e noite para manter-se carece de esmola para se vestir”.36

dos, p. 63. 34 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Folhetins inacabados, p. 80. 35 , Funerais de D. João V – Auto de Vereação , 16,17,19-XII-1750, em: RAPM , IX , 1904, p. 365.

36 , Quintos do ouro , em: RAPM , III , p. 72. Os pedidos de desobriga – licença especial para não assistir à missa, sobretudo nos dias santos – eram devidos geralmente à falta de recursos para vestir adequadamente a família a fim de que esta pudesse assistir à missa. Cf. AEAM , Devassas, 1756-1757, fls. 84 V. 37 , Fernando Henrique Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de janeiro,

Morando mal, comendo pessimamente e vestindo pior ainda, os homens livres pobres viviam costeando a desclassificação, constantemente empurrados para ela pelo sistema econômico e pelas violentas superestruturas de poder. Na sociedade colonial escravista, apresentavam traços específicos, sem entretanto se constituírem em elementos isolados de um sistema. Imbricavam-se numa formação social cujos parâmetros básicos eram ditados pelo escravismo, e mantinham com ela uma relação contraditória de incorporação e exclusão. Tomados frequentemente como elementos avulsos, desarticulados, os desclassificados realmente não o deixaram de ser, tendo-se em vista uma sociedade fortemente estratificada nos extremos. A posse da terra conferia ao senhor de engenho e de lavras um caráter quase de nobreza, dando-lhes os sinais distintivos do status e da honra – a que vinha se somar o repúdio às atividades manuais. Proprietários, exploravam compulsoriamente a força de trabalho dos escravos africanos sobre que se assentava o sistema; mercadores, eram peças fundamentais do processo de acumulação que se verificava na Europa. Assim, os traços estamentais que caracterizavam a formação social da colônia e tornavam nítidos os contornos das camadas senhorial e escrava foram sendo paulatinamente alterados pelas relações de produção. Esta sociedade híbrida de estamentos e classes só podia ser compreendida se referida ao mundo da produção. “Demônios bifrontes”, os produtores coloniais “eram, de modo específico, uma classe definida no modo colonial de produção capitalista que continha alguns atributos derivados do caráter capitalista mercantil da organização econômica em que se inseriam e outros derivados do caráter escravista ou “encomendero” das relações sociais de produção sobre que se baseava a empresa colonial”.37 Os elementos que não se definiam, quer num extremo, quer noutro, achavam-se desarticulados dentro desta formação social; entretanto, seus caracteres específicos só podiam ser esclarecidos à luz do escravismo, que os engendrava. 1975, cap. Classe sociais e História: considerações metodológicas , p. 111. 38 , O episódio dos irmãos Leme é um caso em que a infração equipara poderosos

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Brancos, pretos, mestiços, homens livres ou escravos fugidos, esses indivíduos aproximavam-se uns dos outros mais do que se tem dito, apesar de não chegarem a configurar o que se chamaria consciência de grupo. Entretanto, em muitos casos apresentaram certa coesão que, mesmo sendo espontânea, deve ser levada em conta. Camada social extremamente fluida, esta fluidez se verificava, entretanto, antes para baixo do que para cima, e mais no meio do que nos extremos: senhores escravos eram bem definidos na hierarquia social, e as eventuais indefinições que os afetavam só surgiam no momento da infração – também está mais possível de nivelar os de baixo (escravos e forros) do que os de cima: os empresários coloniais impunes e intocáveis na maior parte das vezes.38 Independente dessas eventuais infrações niveladoras, os grupos que maiores proximidades apresentaram foram pois o dos escravos e o dos forros. Isto se faz notar na ocorrência de casamentos entre forros e cativos, estes sendo, muitas vezes, escravos dos primeiros. É o caso do enlace de “Garcia Pedroso preto forro com Maria da Costa, também preta sua escrava”, celebrado a 15 de novembro de 1744, em Vila Rica. Do mesmo teor foi a união de “Tomás de Freitas preto da nação Mina escravo do contraente, Ana de jesus, com a dita Ana de Jesus preta forra da nação Guiné”, verificado a 9 de janeiro de 1745, na mesma vila.39 Particularmente elucidativos são os diversos requerimentos e petições que os forros recém-egressos do cativeiro dirigiam ao governador, acusando o desrespeito dos senhores ante a sua nova condição, e atestando a indiferenciação existente entre o forro e o cativo. O escravo recém-liberto e novamente escravizado seria um tipo peculiar de desclassificado social, situado a cavaleiro de dois mundos e desclassificados. Cf. c.3 deste trabalho. 39 , Segundo Iraci del Nero da Costa, As populações das Minas Gerais no século XVIII: um estudo de demografia histórica , em: Boletim da FEA/USP,

São Paulo, 1978. As considerações sobre os casamentos entre forros e cativos também foram tomadas do autor. Ver p. 22. 40 , Cópia de uma petição de Maria Angola, escrava que foi de Manuel

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– o mundo do cativeiro e o mundo da liberdade – e não pertencendo a nenhum. Tomado por cativo, o recém-alforriado se sabia livre e despejava provar a todo custo sua nova condição, procurando fazer com que os outros reconhecessem a liberdade que, apesar de lhe pertencer de direito, acabava, muitas vezes, existindo apenas para ele, subjetivamente. O não-reconhecimento desta liberdade e o emprego da coerção, que explorava como uma escrava uma força de trabalho liberta, eram procedimentos encaixados nas vastas redes do poder que se abatiam sobre os desclassificados. Assim, em 1764, Maria Angola – “pobre negra do Gentio da Guiné que não tem que gastar, nem quem por ela seja” – dirigiu uma petição ao capitão-general pedindo que lhe restituísse “a sua liberdade tão bem fundamentada” que, “com violência notória”, vinha sendo desrespeitada, a ponto da suplicante ser encarcerada em São João del Rei. É certo, argumentava Maria Angola, “que a liberdade, uma vez adquirida, não retrocede”, mas nada podia a pobre negra ante a força dos poderosos que a haviam metido na cadeia – motivo pelo qual pedia proteção ao governante, que ordenou sua soltura a 15 de dezembro de 1764.40 No mesmo ano, Leonor, seus filhos José, Manuel e Severina e seus netos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, todos “de geração carijó”, requereram ao governador dizendo que, em função das leis de 1755, deveriam ser considerados “libertos e isentos de escravidão em que se achavam os ditos carijós”, que Domingos de Oliveira continuava conservando sob seu poder como se ainda fossem escravos. Estando ciente de que transgredia a lei, o tal Domingos de Oliveira colocara os índios sob guarda por ocasião da visita do governador à freguesia, impedindo-os assim de protestarem em seu direito à liberdade. O governador ordenou que se fizessem averiguações junto a várias autoridades e pessoas idôneas, todas elas concordando quanto à Pinto, morador em São João del Rei e despacho que na mesma deferiu o Ilmo. E Exmo. Sr. General”. São João del Rei, 13-IX-1764. Em: APM , SC , cód. 59,

fls. 84-84 V. 41 , “Requerimento que a S. Exa. Fez Leonor, e seus filhos, José Manuel e Severina

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irregularidade da situação. “A pobre e miserável mulher”, disse o vigário da freguesia, “que com a petição retro recorre a V.Exa., é mui digna, e merecedora de que V. Exa., olhe com piedade e que se compadeça da miséria e da consternação em que se acha, e os seus filhos; porque sendo, como me consta, liberta, e oriunda de ventre livre e de carijós, vive com os seus filhos em um rigoroso cativeiro com o falho pretexto de administrada, e com escandalosa vida e ofensa de Deus de que querendo se apartar, o não conseguiu pelo grilhão do falso cativeiro em que injustamente a constringem...”.41 Ante tais depoimentos, o governador ordenou que uma escolta fosse libertar os carijós. Maria Moreira, nascida de “pais livres por serem carijós de cabelo corredio”, também se achava indevidamente escravizada, e suplicava ao governador que lhe fosse concedida a liberdade de sair da casa de seu senhor para poder tratar de seu requerimento. O governante concordou, advertindo-a de que seria punida caso se afastasse “de viver com a regularidade devida” – advertência que parece querer lembrar à suplicante que seus dissabores e inseguranças de mulher pobre não cessariam com a liberdade.42 A história de Agostinho Pereira, “de nação canarim, filho da cidade de Goa”, é extraordinária, mais parecendo folhetim, e ilustra muito bem o procedimento que se adotava no Império Colonial português – ainda embebido no estatuto de pureza de sangue – para com os povos colonizados, principalmente quando de pele escura. Batizado, filho legítimo de Bartolomeu Pereira e de sua mulher Maria dos Anjos, Agostinho tinha quatorze anos quando foi procurado por Luís da Silva, escrivão da nau “Cananéia”, que lhe propôs com seus filhos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, de geração carijós, com os despachos e informações que houveram, e deferimento de S. Exa. Tudo seu teor é o seguinte:” — dezembro de 1764 — fevereiro de 1765, in: APM, SC, cód. 59. fls. 103-104V. 42 , Petição de Maria Moreira, índia de nação, e despacho de S.Exa . Vila Rica, 21-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 101 V-102. 43 , Petição de Agostinho Pereira, de nação canarim, e despacho

o emprego de criado e uma viagem a Lisboa. Foram os dois parar na Bahia, onde Luís da Silva deixou o canarim em companhia de seu irmão Domingos Vaz, que comboiava negros para as Minas. O canarim se viu novamente viajando, e ao chegar ao Pau de Cheiro surgiram uns calhambolas que mataram o seu patrão e roubaram tudo que levavam. Agostinho Pereira sobreviveu, e juntamente com uns moleques foi conduzido à presença do Juiz dos Ausentes daquela comarca, que o trouxe para as Minas. Venderam-no então como escravo a um Marcos Gonçalves, sem que o canarim se desse conta, pensando que ia como homem livre. Marcos Gonçalves o vendeu ao capitão Leandro Machado Luiz, um e outro sendo moradores no Brumado do Ribeirão de Santa Bárbara. Passou a ser tratado como escravo, “com castigos, como costumam, e como o suplicante no vil estado da escravidão sempre viveu pobre, até de espirito como são os canarins, e nunca achou meio de se reunir pelos meios da Justiça, recorre agora à piedade de V. Exa. Para que pelas chagas de N.S. Jesus Cristo se digne tomá-lo na sua proteção, mandando-o pôr livre, e que lhe paguem suas soldadas desde o tempo do injusto cativeiro”.43 Nada se sabe sobre o desenlace da infeliz aventura do canarim, pois seguem-se averiguações sobre o caso, argumentando-se que o suplicante era escravo numa época em que todos os índios (sic) o eram, a lei contra a sua escravidão sendo recente, e daí por diante. Outra história de desenlace desconhecido é a do pardo João Ramalho Pinto, que Luís Ramalho Botelho mandou prender sob alegação de que era seu escravo. João Ramalho se dizia livre por ter sido sua mãe alforriada um ano e sete meses antes do seu nascimento; tinha vinte e sete anos, e vivia no Distrito do Arraial de Mateus de S. Exa. Nela proferido, 17-X-1765 e 23-XII-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 185 V-186V. Waldemar de Almeida Barbosa alude a documentos existentes no Arquivo

Público Mineiro que atestam a presença de degredados indianos nas Minas; chama a atenção para a devoção, bem difundida nas Minas, a um santo indiano: São Gonçalo Garcia. Cf. História de Minas, v. II , p. 322-3. 44 , Requerimento que a S. Exa. Fez o pardo João Ramalho Pinto, preso

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Leme, com mulher, roça e escravos. Luís Ramalho Botelho contra argumentava dizendo que a origem da dúvida residia na certidão de batismo de João, onde, por “lapso da pena do padre”, estava dito que a mãe do pardo era mulata forra. Na realidade, esta fora escrava sua, como ficava comprovado pela certidão de nascimento de uma outra sua filha, nascida em 1744 e, portanto, depois de João Ramalho.44 Apesar do desfecho não ficar explicito, tudo faz pensar que se tratava de mais um caso de abuso de poder. A parda forra Floriana Maria morava em casa de José Luís Reis, na Guarapiranga. Filha de pais incógnitos, fora exposta na casa do primeiro marido da mulher de José Luís, onde trabalho desde a sua infância no serviço doméstico e na roça, “com foice e enxada na mão como se fosse escrava, sendo de seu nascimento livre e liberta”. Os pseudo-senhores, “por ingratos, ou pouco tementes a Deus, sem agradecimento ao atual benefício que estão recebendo da suplicante, a castigam, maltratam, e metem em ferros com público escândalo”, pelo que Floriano Maria resolveu requerer junto ao governador e suplicar que “a deposite em casa honrada onde se conserve a suplicante em honesta fama até conseguir estado de casada”. Suas súplicas foram ouvidas, e a infeliz parda deve ter passado a viver como agregada em alguma casa, impossibilitada de se manter devido à sua extrema pobreza.45 Em 1772, Suzana Josefa da Trindade e sua filha Isabel da Veiga, ambas crioulas e forras, receberam do governador deferimento fano calabouço litigando sobre sua liberdade com Luís Ramalho Botelho, este ermitão da Sra. Do Terço desta vila e aquele morador de Mateus Leme, 27-II-1770, APM , SC , cód. 186, fls. 6-8 V. Requerimento de Luís Ramalho Monteiro Botelho, parte no requerimento acima de José Ramalho Pinto, com os documentos nele incorporados... 11-1769, em: APM , SC , cód. 186,

fls. 8 V-11. 45 , Requerimento que a S.Exa. Fez Floriana Maia, parda forra assistente em casa de José Luis dos Reis sobre ser liberta como dele consta ,

em: APM , SC , cód.186, fls. 40 V. 46 , Requerimento que a S. Exa. Fez Josefa da Trindade, crioula forra

vorável às suas súplicas. Como tantas outras, tratava-se de uma história de trabalhos forçados e sem pagamento, sendo as suplicantes livres. Estando Isabel em casa de Manuel Pereira, depois falecido, o cônego Francisco Ribeiro e uma D. Quitéria Inácia Barbosa Leite de Campos pediram que lhes cedesse a moça para ir trabalhar em casa de D. Quitéria. O consentimento foi dado, e a tal senhora levou a infeliz crioula para uma roça, “usando dela como sua escrava, açoitando-a, metendo-a em ferros, onde a teve tão martirizada” que a pobre ficou coberta de ferimentos e cicatrizes. Sua mãe conseguiu, por fim, que o capitão do distrito a fosse buscar, “e indo este a achou inda com ferros, tão enferma que a trouxe para a sua casa”, de onde voltou à casa materna. Extremamente pobre, Suzana Josefa gastava mais do que podia com cirurgiões, e resolveu então pedir, através do governante que D. Quitéria pagasse os jornais dos quatro anos em que tivera Isabel consigo.46 Em todos esses casos, a liberdade mostra a face duplamente fictícia que adquire numa sociedade escravista. Por um lado, o forro, miserável no mais das vezes, é facilmente passível de ser reescravizado por indivíduos que, nesse sistema, não chegam a ser excessivamente inescrupulosos. Por outro, uma vez livre, o peso desclassificado da estrutura econômica e das superestruturas de poder o empurram para as fímbrias da sociedade, onde passa a vegetar devido à impossibilidade de colocar sua força de trabalho no mercado. O sistema que o engendrou o deixa, simultaneamente, sem razão de ser. Nessas condições, de que lhe poderá servir a liberdade?47 A fluidez da sociedade pode ser mais uma vez confirmada no caráter que assumiam as relações amorosas e a vida sexual do colono mineiro. As devassas eclesiásticas, empreendidas por sucessivos visitadores que, entre 1721 e o princípio do século XIX , vasculharam meticulosamente a capitania, fornecem o painel de uma sociedade em que as camadas inferiores apresentavam intenso convívio e interpenetração. Assim, Domingos Gonçalves Vieira, natural do arceda cidade de Mariana , 9-VIII-1772, em: APM , SC , cód. 186, fls. 166.

47 , “Mas a liberdade significa unicamente escapar do trabalho compulsório e, no

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bispado de Braga, “homem solteiro que vive de seu trabalho, de idade que deve ser de vinte e oito anos pouco mais ou menos”, levou à mesa da visitação uma denúncia que ouvira da boca de “Maria preta de nação conga escrava de Domingos Francisco morador em Rio Abaixo desta freguesia”, sugerindo o convívio entre o homem livre pobre e a escrava faladeira.48 Um outro exemplo das inter-relações que se verificaram no seio da camada pobre aparece no depoimento de José Duarte Campelo, pardo forro que era roceiro e que recebera em sua casa a preta forra Maria da Silva, casada com o bastardo João Correia de Santa Ana. Estando doente, Maria da Silva não recebeu os sacramentos.49 Há ainda o caso de Domingos Lopes, que vivia concubinato com uma paulista bastarda – “por cujo respeito tem estado muito mal, e esfalfado” –, ambos residindo em casa de Suzana, negra forra e consentidora do concubinato.50 Naqueles tempos, o concubinato não era, em si, um sinal de pobreza ou de inferioridade social: a 1 de fevereiro de 1721, o capitão Paulo Rodrigues Durão comparecia à mesa da visita, onde se registrara a acusação de que vivia em concubinato com “uma mulher desimpedida”, que o visitador ordenou expulsasse de sua casa.51 A referida mulher devia ser a mãe do futuro Frei José de Santa Rita Durão, nascido em 1722, e o capitão era homem de posses e prestígio no arraial do Inficcionado. Já o indiano Jacinto Ribeiro, pintor de trinta e oito anos, tinha “de suas portas adentro” uma escrava chamada Leonor; extremamente pobre, pagou na Mesa três oitavas

mais das vezes, uma condição de vida que é destituída de sentido porque ditada pelas regras de domínio da produção escravocrata (…)”. Lúcio F. Kowarick, A constituição do mercado de mão-de-obra livre no Brasi l – Uma abordagem histórica , mimeo., 1977.

48 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 11 V. 49 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 29. 50 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 35 V. 51 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 34. 52 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 76.

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de ouro para si e para escrava.52 Se no caso de Paulo Durão o matrimônio não era dificultado por empecilhos de ordem econômica, o mesmo não se poderia dizer do modesto pintor da Índia. Filipa, preta mina, consentia que sua filha Tereza, parda e forra, tivesse “tratos ilícitos” com homens; devido à sua extrema pobreza, o próprio visitador a eximiu da pena pecuniária, como que mostrando certa complacência para com o caso.53 O mesmo sucedeu com Antonio Rodrigues, homem extremamente pobre que parecia ignorar o fato de em sua casa entrar e sair João de Almeida Silva, indivíduo que estava de casamento acertado com sua filha Isabel Rodrigues.54 A pobreza sendo empecilho ao casamento, as famílias fechavam os olhos ao concubinato, e a Igreja, às vezes, parecia fazer o mesmo. João da Silva Ferreira, morador no sítio da Boa Vista, vivera por algum tempo com Rosa de tal, dela tendo uma filha; a seguir, contraíra casamento com Maria Gomes, mãe de Rosa, que levou para a casa do novo marido uma outra sua filha, essa de nome Páscoa. João da Silva passou então a arranjar sucessivos noivos para Páscoa, levando-os para a sua casa e servindo de seus préstimos para, depois, desfazer os casamentos.55 A promiscuidade sexual se misturava, aqui, com a exploração de uma força de trabalho disponível no momento. Promiscuidade sexual e pobreza aparecem novamente de mãos dadas no caso de Manuel Lobo Pereira e de sua escrava Juliana. Esta teria dito à testemunha que a denunciou na mesa da visitação “... que o dito seu senhor a chamava para com ele se ir deitar na cama, mas que ela algumas vezes o não fazia em razão de ele não dar o ne53 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 30 V. 54 , Ibid., fls. 31. 55 , “... João da Silva Ferreira costuma ajustar casamentos para a dita sua enteada Páscoa, e trazer logo para casa o sujeito com quem ajusta o casamento para a dita enteada só a fim de que este o ajude a trabalhar na roça, fora de casa...”, em: AEAM , Devassas, 1756-1757, fls. 34. 56 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 41 V.

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cessário para a vestir, e que outras vezes o dito seu senhor a deixava ficar com os passageiros que em sua casa se arranchavam só a fim de com eles se desonestar...” Juliana tinha três filhos de pais desconhecidos, e frequentemente seu senhor a aconselhava que dormisse e se desonestasse “com negros para parir crioulos, e não o faça com brancos...”.56 Em virtude da pobreza de Manuel Lobo, o reverendo pároco intercedeu por ele junto ao visitador, e assim este rancheiro pobre mas perfeitamente amoldado à ética escravista escapou à punição eclesiástica. Relações amorosas e vantagens pecuniárias aparecem também no caso de João Fernandes Quinteiros, que vivia com Quitéria borges e aquietava o seu marido dando-lhe de comer e vestir.57 O pardo forro Luís Pereira, morador nas Congonhas, consentia que suas filhas “usassem mal de si para algumas conveniências que lhes fazem os barregões delas”... Uma delas, de nome Úrsula, “estava por conta” de um “homem do caminho” chamado Domingos Gonçalves Rico, viajante ao que parece bastante turbulento, pois conforme narra a testemunha da denúncia, dera havia ainda pouco tempo uma facada em um homem.58 A outra filha de Luís Pereira estava ajustada para casar com Francisco Soares, também pardo e forro, que frequentava livremente a casa. Assim, o pai consentia que uma e outra estivessem “com seus amigos estando todos misturados”.59 Cristina, preta angola moradora no Morro costumava entregar sua filha Leandra, parda forra, para alguns homens a “deflorarem”, levando-a pessoalmente às suas casas. Indo para este fim procurar a testemunha, esta lhe deu uma esmola e a aconselhou que casasse Leandra, “para o que lhe daria maior esmola, e muita gente concorreria com as suas, e lhe respondeu a dita Cristina que casando a sua filha não ganhava coisa alguma, e que andando naquela vida ganharia doblas (sic)”.60 57 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 162 V. 58 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio, 1734, fls. 106. 59 , Ibid., fls. 104 V-105. 60 , AEAM , Devassas, – 1733, fls. 89-89 V. 61 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 79 e 81 V.

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Dona Vitoriana, mulher de um Luís Pinhão de Matos, tirara toda a família da miséria através do adultério que cometia com o Ouvidor da Comarca, José Pinto Ferreira. Este entrava e saía livremente da casa da amante, que humilhava o pobre marido, trazendo-o “debaixo do pé, dando-lhe pancadas e chamando-lhe cornudo diante de gente”. Satisfeita com o sucesso de seu novo estado Dona Vitoriana passou a alcovitar as filhas, “dizendo que não há cousa como ser mulher dama, que sempre tem duas patacas na algibeira.61 Outro Ouvidor que se encantou com as moças pobres foi o dr. José Telles da Silva. Além de se envolver com Joana Vitória, “mulher pública que pela sua dissolução” já havia sido expulsa da comarca, o magistrado cortejou Isabel da Encarnação, usando como alcoviteira uma negra de nome Antônia de tal, cujo marido estava preso na cadeia. Convidou-a três vezes “para que fosse assistir a uma comédia que na sua casa se fazia de noite”, “tudo a fim de tratar ilicitamente” com Isabel. Chamada à mesa de visita, a moça confirmou as informações, negando entretanto que tivesse atendido aos apelos. Não se sabe se ela acabou cedendo, ou se foi caluniada: mais adiante, na devassa, uma testemunha assegura que, entrando na casa de Isabel, viu-a engomando a roupa do Ouvidor.62 Nesse meio indefinido e fluido, onde a pobreza comum acabava identificando indivíduos que aparentemente não tinham nenhuma ligação uns com os outros, a bigamia foi frequente.63 Abundam os casos de homens que viveram com duas mulheres, e de mulheres que viveram com dois homens, todos felizes e satisfeitos nesse modo coletivo de viver a afetividade. A negra Quitéria, casada, era amásia de Manuel Rodrigues da Costa, “e vivem todos juntos com o marido da mesma negra”.64 Sem 62 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 52 V, 53, 56.

63 , “Os casos de bigamia parece que foram frequentes em regiões como as das minas, de população flutuante, constituindo um problema difícil para os bispos de Mariana, depois de terem sido o maior espantalho de patriarcas severos com filhas moças dentro de casa.” Em: Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 91. 64 , AEAM , Livro de devassas – ano de 1753, fls. 22. 65 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 49.

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coabitar com os dois amigos ao mesmo tempo, Potência Leite, mulher de Manuel Cabral, foi culpada “de andar amigada com dois homens”, um residente na mesma freguesia que ela e outro que fora “pedir hábito de frade à Bahia...”.65 Tereza de Jesus também tratava separadamente com seus dois homens: casada com André de Souza Álvares, morava com o marido e recebia visitas constantes de José Luís Lima, morador na Ponte Nova da Paraopeba que entrava e saía da sua casa “a qualquer hora sem temor de Deus, nem pejo do mundo”. Esporadicamente, o marido consentia que Tereza de Jesus fosse em “companhia do referido para várias jornadas que faz o mesmo”. Indiferente ao juízo que deles faziam os vizinhos e conhecidos, os três acabaram por se arranchar “como sócios neste mesmo sítio, morando todos na mesma casa...”.66 Os homens-bígamos foram ainda mais frequentes. O ferrador João Teixeira de Carvalho, morador em Santo Antonio da Casa Branca, andava amancebado com duas mulatas “que tem de portas adentro, uma sua cativa por nome Rosa, outra forra por nome Joana, as quais ambas têm parido...”.67 Domingos Dias Vidal, morador no Pará-Acima, tinha uma longa história para contar sobre sua bigamia: casado nas partes do Rio das Mortes, fugira de lá com duas irmãs, Filipa e Maria Gonçalves. A esta tratava por cunhada e por mulher a outra. Na verdade, parece que Maria Gonçalves, que era a mais velha, fora a primeira no seu afeto, e nessa época, Filipa andava com o irmão de Domingos. Este acabou se enciumando e ameaçou o irmão de morte, fugindo a seguir com as duas mulheres, excomungado pelo pároco daquela paragem. Além de tudo isso, era fama pública que viviam “em muito mau estado”.68 José Ferreira da Silva, homem solteiro que vivia de seus negócios, tinha dentro de casa duas mulheres brancas reputadas por suas concubinas. Chamado à mesa de visitação, foi admoestado de que “lançasse fora de 66 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 92. 67 , AEAM , Livro de devassas – ano de 1753, fls. 14 V. 68 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 31 e 33 V. 69 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 26-27.

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sua casa as ditas mulheres dentro de três dias peremptórios, e fizesse cessar o escândalo que dava aos católicos...”.69 José Ferreira aceitou a admoestação, prometendo expulsar suas infelizes companheiras. Como, de resto, toda legislação em qualquer parte do mundo, a regulamentação eclesiástica acerca dessas infrações é extremamente flexível em relação às faltas cometidas por indivíduos do sexo masculino. Amasiados tanto os homens quanto as mulheres, eram estas entretanto as “lançadas para fora” das casas em que viviam, as desterradas para os mais diferentes lugares. Antônia Bicuda, da freguesia de São João del Rei, fora culpada em primeiro lapso de concubinato com Amador do Santos; teve pena de dois anos de degredo para a Nova Colônia, enquanto de Amadeu exigiu-se apenas que fosse fazer vida com sua mulher legítima dentro de seis meses!70 Antônia da Luz, mulher parda e forra, culpada em primeiro lapso de concubinato com José Pereira, teve pena de dois anos de degredo para a Nova Colônia: sobre seu companheiro, nem uma palavra foi dita.71 Mesmo sendo “pobre, e miserável”, Marta da Cunha teve de pagar vinte cruzados pelo seu concubinato com circunstâncias de incesto, e ainda recebeu pena de dois anos de degredo para fora da comarca.72 A negra forra Mariana foi desterrada para a colônia do Sacramento por amor de Alexandre Pereira, morador na freguesia de São Jose del Rei. Mas, pelo menos neste caso, o desenlace foi feliz: Mariana conseguiu passar para o Rio de Janeiro, “onde a mandou buscar o tal Alexandre, que passou a viver com ela e separado de sua mulher”.73 A leitura desses casos permite compreender o modo pelo qual o concubinato, uma vez repreendido e reprimido pelas visitas eclesiásticas, lançava as mulheres concubinas na desgraça, deixando-as sem teto e sem raízes, banindo-as para longe dos amados, que, “sen70 , AEAM Devassa – maio 1730 abril 1731, fls. 17 V. 71 , Ibid., fls. 17. 72 , Ibid., fls. 22 V. 73 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 125V-126. 74 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 43.

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tenciados camerariamente”, “admoestados” ou obrigados a pagar uma pena pecuniária, continuavam vivendo em suas casas e gozando de suas liberdades. A promiscuidade em que viviam os homens pobres da mineração gerava situações curiosas. Chamando para depor, um mineiro da região de Braga incriminou Jerônimo Pinto Pais e Brito, morador na Ponte de João Velho e amancebado com Antônia de Moura, mulata forra que dele tivera um filho. Jerônimo Pinto andara igualmente amancebado com a irmã de Antônia, Anastácia Gonçalves. Ambas eram filhas de Luzia de Moura, negra forra, e o mineiro fora informado de todos esses detalhes por Anastácia Gonçalves, que havia sido concubina também dele testemunha, confessando-lhe nessa ocasião que Jerônimo Pinto a havia desonrado antes de andar com sua irmã.74 O incesto era outra consequência da promiscuidade, das casas excessivamente pequenas para os numerosos moradores que nelas conviviam, deitados em poucas camas, repartindo cômodos. Dizia-se em Pitangui que João Pereira da Silva andava com a irmã, dela tendo dois filhos. Seu irmão Pedro Vaz dormia no quarto de suas irmãs, e isto era motivo para que se murmurasse com escândalo.75 Em Baependi, Domingos Luís, bastardo, desonrava suas três filhas.76 Em São José del Rei, a parda forra Maria da Afonsa, mulher viúva que atendia pela alcunha de “a parteira” encontrara seu filho mais velho “tendo ajuntamento carnal com uma sua legítima irmã por nome Maria, também filha da dita Maria parteira”. Todos sabiam das relações que os dois irmãos mantinham, e quando Maria se queixou certa vez das pancadas que lhe dava o irmão, respondeu-lhe a preta forra Maria Rodrigues: “você tem a culpa por lhe dar tanta confiança e deitar-se debaixo dele.” 77

75 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 34. 76 , AEAM , ibid., fls. 206 V. 77 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 141 V e 140-140 V. 78 , Ibid., fls. 7.

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Incesto era então definido da seguinte forma: “Se alguma pessoa cometeu o crime de incesto, tendo ajuntamento com alguma parenta por consanguinidade, ou afinidade em grau proibido, ou compadre com comadre, ou padrinho com afilhada, ou madrinha com afilhado...”.78 Diogo Ferreira, que vivia no Pará-Abaixo concubinato com uma sua sobrinha chamada Maria Barbosa fora excomungado pelo pároco, e enjeitara um filho havido da ligação incestuosa com a moça.79 João da Silva, bastardo solteiro que morava acima do Corgo dos Parentis(sic), deixara a casa da mãe para viver em companhia de sua tia Natália. Não havia na casa cômodos suficientes para que dormissem separados, e assim sendo, Natália se deitava durante a noite em uma rede, com uma sobrinha de seis ou sete anos de idade, e João da Silva “em um jirau à vista um do outro”. Durante algum tempo, tia e sobrinho haviam morado com Antonio de Freitas Soares, que nesta ocasião desconfiou de que existia algo entre os dois, enxotando-os por isso de sua casa. A “razão que teve para deles desconfiar da sobredita matéria fora ouvi-los algumas vezes estar falando entre si palavras lascivas, e desonestas, e o não se querer apartar nunca um do outro de tal sorte que para onde um ia haviam de ir ambos”. João da Silva e sua tia Natália foram presos, “e depois de estarem na cadeia da Vila de São José, fugiram dela”.80 A história do incesto de Estêvão Leme de brito com sua cunhada Margarida Correia, irmã de sua mulher Maria Correia é das mais divertidas. Moradores no Pitangui, viviam, ao que parece, todos juntos em uma “casa mista”. Certo dia, a testemunha da devassa foi à casa de Estêvão com sua mulher, “e entrando no terreno do mesmo donde se descobre a casa, e fogo da mesma, viu ele testemunha ao dito Estêvão Leme estar dando abraços, e ósculos na mesma Margarida Correia...”. Constrangido, o visitante proferiu algumas palavras em voz alta, para ver se os dois enamorados se envergonhavam; estes, entretanto, fecharam a porta do fogo e não se alteraram. 79 , AEAM , Devassas – 1748-1479, fls. 32 V. 80 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 14 V, 16, 17 e 30. 81 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 75-75 V.

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A testemunha e sua mulher dirigiram-se então para a casa, onde estavam os demais familiares, e começaram a perguntar por onde andava Margarida. Esta afinal apareceu, depois de muito tempo, e logo surgiu também o cunhado Estêvão. Uma terceira irmã, de nome Francisca Correia, começou então a descompor a impávida Margarida, “dizendo-lhe que bem podia fazer aquilo mais oculto, e que bem sabia que ali estavam ele testemunha e sua mulher procurando por ela...” Margarida respondeu “que desgraçada era quem andava como ela, porque o dito Estêvão Leme a não quis largar, ao que também respondeu a mulher do mesmo Estêvão Leme que bem sabia quem ele era, porque tanto que pegava em uma pessoa mais a não largava, como ela experimentava; e muito mais a quem cobiçava como era referida sua irmã e cunhada...”. A esta altura, a mulher da testemunha, escandalizadíssima, exclamou “que semelhantes ofensas de Deus se não consentiam”; a sua reprimenda foi logo cortada pela mulher de Estêvão, dizendo esta “que se lhe não consentiam naqueles desaforos, sempre andava triste...”.81 A leitura dos documentos que falam das relações amorosas da população pobre das Minas deixa constantemente entrever o mundo das infrações e dos pequenos crimes. Assim, o bêbado Caetano, pardo a quem a mulher abandonara por amor de outro pardo, este de nome Severino. Os amantes haviam fugido com o auxílio de um irmão da dita mulher, que se chamava Manuel.82 Filipe de Tal era um faiscador casado no Rio São Francisco, onde tinha dois filhos; juntou-se com Josefa, crioula cujo marido se achava preso em Paracatu, e ambos foram morar no sítio da testemunha que mais atarde os incriminaria na mesa da visitação. Em virtude da chegada do visitador à freguesia, o par fugira para os matos de Antonio dos Santo Ferreira.83 Manuel dos Santos Gato, casado na freguesia da

82 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 13 V. 83 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 48 V. 84 , AEAM , Livro de Devassas – 1800, fls. 3 V e 5.

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Guarapiranga, deixou sua mulher e roubou a de Serafim Afonso, levando-a para viver com ele no presídio do Rio Pomba.84 Grande parte da população vivia em concubinato, que era, portanto, uma relação corriqueira e, como tal, aceita. Conforme se viu acima, a própria testemunha que acorria à mesa para incriminar o conhecido acabava confessando que tivera “tratos ilícitos” com a parceira do incriminado. No dizer das testemunhas, os amasiados provocavam o escândalo público, e sobre suas baixezas a população murmurava consternada. O ato sexual, que todos praticavam nas Minas com brancas, pardas, mestiças, carijós, caribocas, forras e escravas era descrito na devassa como “ato pecaminoso”.85 Essa discrepância entre o que se dizia ao visitador e o que se fazia cotidianamente deveu-se, por um lado, ao duplo padrão de moralidade existente numa sociedade escravista e, por outro, ao fato de haver uma intermediação entre a testemunha e o relato que chegou até nós: o escrivão da devassa, que obviamente reproduzia a ideologia oficial, de que a Igreja era um dos principais sustentáculos. Assim, contrariamente ao que diz um historiador – que os testemunhos eram extraídos da “melhor gente” da terra –,86 o que se nota é o nível modesto dos depoentes, talvez escolhidos a dedo pela Igreja que, assim, intimidava mais facilmente e os humildes biscateiros e artesãos, deles extorquindo segredos e confidências. Ocorria pois a interiorização da ideologia oficial e da moralidade empedernida que se opunha à realidade complexa da colônia – as festas, os batuques, os motivos de alegria e de regozijo passando a ser encarados como infrações pecaminosas. Como resultado, fingia-se na mesa da visita uma regularidade de ações que não existia na vida real.

85 , “... por serem eles tão pouco acautelados no seu pecado que entrando ele testemunha haverá coisa de quatro semanas (…) em casa dela dita preta Rosa, a achou e viu no ato pecaminoso na sua cama com o dito Manuel de Lima...”. Em: AEAM , Devassas – 1733, fls.12. 86 , Cf. Carrato. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. c.1. 87 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 77. 88 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 107, 107 V e 108.

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Fernando Lopes de Carvalho, morador na rua Direita da Vila de São João del Rei, foi incriminado não apenas por frequentar de dia e de noite a casa de uma mulata que vivia “sobre si”, mas porque demorava-se na casa da amada “pondo-se ele a tocar viola e ela a cantar porta em alto voz, não só inquietando a vizinhança mas causando escândalo...”.87 Igual consternação causou na festa do Divino Espírito Santo da freguesia de Cachoeira um carro em que iam vários padres seculares moradores na vila de Ouro Preto, “os quais andavam no dito carro tocando violas e entre eles uma negra chamada Vicência cantando vestida de homem...”. Vicência cantava “o Arromba e outras modas da terra”, que uma testemunha reputou de as “mais desonestas” – qualificativo que, ao que tudo indica, não lhes cabia.88 Os padres foram punidos, e um deles, cônego de Angola, foi expulso das Minas. A parda Narcisa Ribeira, que não gostava de ouvir missa, tinha má fama por ter vestidos e andar sempre rindo e folgando.89 Dona de uma venda na Água Limpa, a preta Rosa foi acusada na devassa de consentir “ a sua porta aos domingos e dia santos, danças de negros batuques escravos, com geral escândalo, e inquietações, e perdas assim dos escravos, como de seus senhores...”.90 Os batuques e folguedos dos negros e mestiços foram constantemente punidos pelas autoridades, que nunca os toleraram talvez por ensejarem uma ocasião de ajuntamento e solidariedade grupal através do lazer. As pequenas festas que os negros, mulatos e carijós realizavam nos domingos e dias santos deveriam, no tempo de José Antonio Freire de Andrade, ser dispersadas por rondas de seis homens e um sargento, organizadas expressamente



“A ligeira multa em trajes de homem



Dança o quente lundu, e o vil batuque...”



Cartas Chilenas, carta 6ª, versos 245-246 , p. 148.

89 , AEAM , Devassas – 1748 -1749, fls. 54 V. 90 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 16 V. 91 , Bando de 10-X-1756, in: APM , SC , cód. 50, fls. 72 V-73. 92 , Essas considerações sobre o conflito e sobre a violência devem muito à análise

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com esse intuito. O argumento dado era o de que nasciam “grandes desordens” desses batuques, que frequentemente degringolavam em brigas e ferimentos. É significativo o fato de os tambores deverem ser quebrados pelas rondas, o que de certa forma os equiparava às armas – paus, porretes, facas, navalhas, facões –, que os soldados deveriam apreender.91 B

) O conflito latente ) Portadores de uma especificidade ame-

açadora, constantemente desclassificados por forças alheias à sua vontade, reduzidos à miséria e obrigados a viver na promiscuidade, os homens livres pobres e mestiços foram o inimigo difuso que assombrou as autoridades coloniais e a política da metrópole dentro da sua colônia. Para reduzi-los a uma normalidade estereotipada e ditada de cima, não se pouparam esforços. Seu modo peculiar de vida, suas festas e seus passatempos foram constantemente identificados à infração; esta, por sua vez, teve os seus contornos alargados de tal forma que se tornou difícil dissociar a figura do homem livre pobre e o mundo do crime que lhe era atribuído como “habitar” normal. Espreitados por todos os cantos, esses indivíduos desenvolveram uma forma de vida e de relacionamento que se caracterizou pelo conflito – conflito dentro do próprio grupo, conflito com a sociedade escravista e com seus mecanismos repressores.92 A violência latente no seio da camada se desdobrou numa gama enorme de infrações, das mais insignificantes às mais graves. A documentação permite conhecer a sua natureza, mas nada ou quase nada deixa entrever sobre os seus motivos – ou, pelo menos, não se estende sobre eles. De modo geral, era de noite que as infrações aconteciam.93 Procurando evitá-las – “assaltos, roubos e pendências” efetuados “não só por negros, mas também por alguns homens brancos extravabrilhante de Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens livres na ordem escravocrata, 2ª ed., São Paulo, 1974, c.1, passim. 93 , “A horado crime, como é sabido, soa à meia-noite. A noite realça e faz aparecer a impotência do homem, ela esconde as forças impuras e os malfeitores. A an-

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gantes” – os vereadores e autoridades judiciárias mandaram fazer um sino e o colocaram na casa da Câmara, devendo este tocar “das oito para as nove horas da noite, para depois de tocado saírem rondas pelas ruas desta vila a prender a todas as pessoas que cometeram semelhantes insultos e delitos, e a perturbarem a paz e o sossego público, que se castigarão pelas justiças de El-Rei Nosso Senhor...”.94 Muitos foram os editais neste teor, havendo um que proibia “assobios à noite, que ofendiam aos bons costumes e a Deus”.95 Era, pois, de noite que muitas das tensões se canalizavam para brigas e ferimentos. Jerônimo Francisco da Costa foi baleado na cara um pouco adiante da ponte de Antonio Dias, sendo sua queixa registrada a 30 de julho de 1729; os autores do “maleficio” seriam uns negros e uma escrava chamada Antonila, que lhe haviam roubado alguns pertences.96 Na noite de 23 de julho de 1733, Sebastiana de Jesus, moradora no Ouro Preto, recebera umas facadas, sem que se saiba o motivo.97 A parda Joana de Jesus, moradora na Barra, freguesia de Antonio Dias, recebera um ferimento na noite de dez para onze de maio de 1738.98 Josefa Maria, parda forra que habitava a freguesia de Ouro Branco, fora ferida e baleada na noite de 27 de julho de 1772.99 Uma sua vizinha, a crioula forra Ângela Lopes do Vale, fora ferida e roubada algumas noites antes.100 Na rua da Ponte Seca, gústia metafísica é acompanhada pelo medo ante a violência, o banditismo, o roubo favorecido pelas trevas.” Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 27. 94 , Edital do Senado da Câmara: Vila Rica, 4-V-1729, segundo Feu de Carvalho, Reminiscências de Vila Rica – Sobre a casa da cadeia”, em: RAPM , XIX , 1921,

p. 297-8. 95 , Segundo Feu de Carvalho, p. 298. 96 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 82. 97 , Ibid., fls. 96 V. 98 , Ibid., fls. 114 V. 99 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 88. 100 , Ibid., idem. 101 , Ibid, fls. 108 V. 102 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 82.

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onde o crioulo Julião Pinto tinha casa e uma pequena venda, o forro Silvestre Ramos, também crioulo, recebeu vários ferimentos; isto se passou na noite de 4 de setembro de 1790.101 Quase um mês depois, quando se achava em casa da preta forra Maria Barbosa, o crioulo forro Álvaro Pereira também recebeu vários ferimentos; a vítima morava no Morro do Ouro Fino.102 As feridas que Manuel Francisco Nunes, pardo, provocou em Antonio Luís Brandão Coelho, crioulo e forro como seu agressor são descritas detalhadamente. O delito teve lugar por volta de sete horas da noite de 14 de agosto de 1792, e a mandante do crime foi a mulher de Manuel Francisco. O crioulo recebeu “uma ferida simples no anterior do braço esquerdo que cortou couro e carne sendo a ferida interna do tamanho de meia polegada feita com instrumento cortante”.103 Há várias brigas e ferimentos que, ao que tudo indica, não se passaram nas horas noturnas. Manuel da Silva Barros e José Pereira da Costa, ambos moradores na Soledade, freguesia de Congonhas do Campo, envolveram-se em uma rixa: o primeiro recebeu umas cutiladas, dando, por sua vez, pancadas no adversário.104 Também não foi à noite que Antonio Gomes de Gouveia alvejou o seu vizinho João Pinheiro, ambos pardos, forros e moradores na freguesia da Itatiaia.105 Não há igualmente especificação de horário na devassa que trata das pancadas recebidas em Congonhas do Campo por Rosa Gonçalves, preta forra que veio abortar em razão do acidente.106 Nada se sabe sobre o teor da briga que envolveu a escrava Inácia e Maria Josefa, mulher parda que atendia pela alcunha de “a Gamba”; como consequência, Inácia teve o rosto retalhado, e “a Gamba” saiu culpada por ter ferido a outra com uma navalha.107 103 , Ibid., fls. 112 V. 104 , Ibid., fls. 24. 105 , Ibid., fls. 74. 106 , Ibid., idem, fls. 26. 107 , Ibid., idem, fls. 99. 108 , Termo que assina Lourenço Teixeira cabra forro para não tornar mais ao distrito das Catas Altas, Inficcionado e Bento Roiz, sob as penas

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Lourenço Teixeira, cabra forro, foi preso por dar pancadas no escravo de um tenente- coronel, “sem mais causa que a sua malevolência”. Por este motivo, acabou sendo expulso dos distritos das Catas Altas, Inficcionado e Bento Rodrigues, onde não poderia mais entrar.108 Os conflitos que culminavam em ferimentos podiam ter lugar até dentro da cadeia: em 1746, o pardo forro José da Cunha de Mendonça, o mestiço Manuel Barbosa, o escravo crioulo Luis e um mulato chamado João foram feridos na enxovia dos pretos de Vila Rica por um negro forro de nome João Bonito, que enlouquecera.109 Mas o local privilegiado das contendas era a rua, universo dos imprevistos e das paixões, do engano, da decepção e da malandragem.110 As querelas eram outra forma de exteriorização dos conflitos. Querelava-se a respeito de tudo: terras, pertences, limites, escravos. Estiveram presentes entre os homens pobres, que muitas vezes querelaram com os indivíduos que lhes quiseram roubar cavalos, ou que lhe feriram algum cativo. Foi este o caso de Manuel de Barros Braga, que registrou querela contra um negro forro e capitão-do-mato, de nome Fradique de Souza, por este ter esfaqueado um seu escravo, ferindo-o muito na mão esquerda.111 A preta forra Rosa Maria também requereu querela por causa de uma escrava, em quem Antonio de Almeida, morador na Água Limpa, dera algumas abaixo cominadas , 7-VII-1748, em: APM , SC , cód. 89, fls. 6 V .

109 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 21. Examinando os motivos de prisão nos vinte primeiros anos do século XV, Geremeck conclui que as rixas e acusações de ferimentos ocupam o primeiro lugar: ¾ do conjunto. Isto se deveria à “brutalidade elementar da vida quotidiana”. Les Marginaux Parisiens..., p. 70. 110 , Roberto da Matta empreende uma análise bonita sobre a oposição entre a casa e a rua: “Na rua, então, o mundo tende a ser visto como um universo hobbesiano, onde todos tendem a estar em luta contra todos, até que alguma forma de hierarquização possa surgir e assim ordenar algum tipo de ordem.” Carnavais, malandros e heróis. p. 70 e segs. 111 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 16 V. 112 , Ibid., Idem, fls. 13 V. 113 , Cf. “Termo que assinaram na secretaria deste governo João Gonçalves Lima e

pancadas.112 A tensão partia, assim, de um confronto físico, passando a seguir para o nível legal. As brigas e desentendimentos podiam atingir certa intensidade sem entretanto desembocarem em danos físicos. Quando isto acontecia, os envolvidos na disputa eram chamados pelas autoridades para assinarem termo de bem viver, comprometendo-se a “viverem com muita paz e quietação” mediante castigo.113 As alterações traduziram com frequência a tensão que existia no nível das relações vicinais. A boa vizinhança era uma política respeitada, e os seus violadores não eram vistos com bons olhos. Manuel dos Santos Neves teve de comparecer ante o governador para assinar um termo que determinava o cessamento das “continuadas” desordens com que até o presente insultou os vizinhos do Brumado do Sumidouro”. O desordeiro deveria, a partir de então, “viver com moderação e boa harmonia com os mesmos”.114 As medidas tomadas contra José de Lemos Ribeiro, homem pardo morador no Curral del Rei, onde vivia com sua mulher, foram mais drásticas: preso “por ser revoltoso, e avizinhar mal com os vizinhos”, teve de assinar um termo em que se comprometia a não mais viver “no referido distrito e comarca”.115 A tensão detectada nas relações vicinais refletiu muitas vezes a tentativa de uma das partes em subjugar a outra, escorando-se, para isso, na superioridade econômica e social. Cosme Soares Ferreira e seus irmãos achavam-se em “paz pacífica” havia mais de quinze anos, estabelecidos em roças modestas que trabalhavam com seus braços, “por não terem escravo nem mais coisa alguma que o seu trabalho, a fim de sustentarem suas mulheres e filhos e uma irmã solteira...”. Foi quando Bernardo da Silva Esteves e Manuel Pereira de Freitas, seus vizinhos, começaram a dizer que o sítio dos irmãos Gervásio Gonçalves, por ordem do Ilmo. Sr. Governador desta capitania, em que se obrigam a viver em paz” – 19-VII-1760, em: APM , SC , cód. 89, fls. 24 V. 114 , Termo de bem viver – 10-X-1766, em: APM , SC , cód. 89, fls. 35. 115 , Termo – 15-I-1777, em: APM , SC , cód. 89, fls. 62 V. 116 , Petição de Cosme Soares Ferreira, seus irmãos, moradores no sítio chamado o Mocambo, e deferimento que S.Exa. No dito requerimento

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se encontrava em terras de sua sesmaria. “Sumamente pobres”, os suplicantes pediram ao governante que intercedesse em seu favor, doando-lhes meia légua de terra em quadra extraída de terras devolutas e de “sobras” das sesmarias circunvizinhas.116 A história contada por Antonio Lopes dos Santos é semelhante. Pequeno sitiante na Barra do Bacalhau da freguesia de Guarapiranga, pai de quatro filhos, o suplicante se viu às voltas com o despotismo de Gonçalo Roiz Monteiro e seus sócios, “homens com menos atenção à pobreza, e voluntários” que, apesar da” vastidão dos matos da sesmaria que possui imensidade de madeira de lei”, entraram no sítio de Antonio Lopes “e quanta madeira acharam a cortaram para fazer casas”.117 Os conflitos havidos no universo familiar também foram numerosos, os mais frequentes sendo os que atritavam marido e mulher. Devido às queixas de Rita de Oliveira sobre a “má vida que lhe dava, e várias violências com que ela praticava”, o pardo Miguel Prudente foi preso no distrito de Itaverava.118 Igual tratamento recebeu na cidade Mariana José Bernardes de Oliveira, “por querer que sua mulher o sustentasse com o trabalho ilícito de seu corpo”.119 Menos frequentes são os casos de prisão por desobediência aos pais, como sucedeu a Bernardo da Rocha, crioulo forro “insolente e desobediente a seu pai”.120 Há ainda o episódio curioso de Manuel Inácio da Costa, pardo forro encarcerado devido a uma queixa que dele fez um seu irmão “de desinquieto e mal procedido”.121 deu.” – 12-VII-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 152-152 V.

117 , Requerimento de Antonio Lopes dos Santos, morador na barra do Bacalhau ”— 20-VI-1771, em: APM , SC , cód. 186, fls. 4 V-5.

118 , APM , SC , cód. 145, fls. 122, e Termo de bem viver – 19-XI-1766, APM , SC , cód. 89, fls. 35 V. 119 , APM , SC , cód. 145, fls. 96. 120 , Ibid., Idem, fls. 13 V. 121 , APM , SC , cód. 145, fls. 121. 122 , Ibid., idem, fls. 97. 123 , Ibid., idem, fls. 98.

11. S OL I L Ó QU I DA I N FÂ N C I A

Na tentativa de viverem de biscates e de expedientes, muitos indivíduos infringiam a norma e desencadeavam situações de tensão. Jacinto Rodrigues Seixas foi preso em Mariana “por fazer cartas falsas em nome de várias pessoas, pedindo esmolas”.122 Um pardo forro de nome João Gonçalves da Silva havia furtado um negro, vendendo-o em seguida; foi preso na ocasião em que cobrava o produto de sua venda.123 Clemente da Costa, recusou-se a entregar o cativo negociado, ocultando-o e provocando, assim, a ira do ludibriado, que dele deu queixa, fazendo com que fosse preso.124 A vadiagem flanqueava o mundo dos expedientes, e dela muito já se falou neste trabalho. Tida como infração grave, era quase sempre acompanhada, nos papéis oficiais, de qualificativos desairosos. Assim, José Borges Pinto, homem pardo, e Antônia da Cruz, cabra, presos moradores no arraial do Araçuaí e enviados ao Tijuco, eram “vadios e facinorosos”.125 Antônio de Morais, preso por ordem do governador, é chamado de vadio e perturbador”.126 Para o bastardo Manuel da Siqueira, preso nas Catas Altas da Noruega, a vadiagem aparece associada à truculência, pois era ele dado a distribuir pancadas e provocar vários distúrbios.127 Sem ofício, pedindo esmolas, dando mostras de “mau viver” pela vida licenciosa que sempre levara, provocando o escândalo entre os moradores dos distritos por onde andava, o pardo Pedro José Gomes “foi ordenado não usasse de pedir mais esmolas (…), empregando-se em algum lícito trabalho”.128 A prisão e soltura de inúmeros mestiços – pardos na sua maioria – que transparece na leitura dos assentos e registros de prisão acusa 124 , Ibid., idem, fls. 25. 125 , Para o doutor ouvidor da Vila do Príncipe – 9-V-1769, em: APM , SC , cód.163, fls.51 V. 126 , APM , SC , cód. 145, fls.1. 127 , Ibid, idem, fls. 123. 128 , Termo – 6-IV-1773, em: APM , SC , cód. 89, fls. 59. 129 , Ver sobretudo APM , SC , cód. 145, passim. 130 , APM , SC , cód. 145, fls. 3.

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todo mundo de infrações indefinidas, difíceis de serem classificadas, mas que fazem pensar sobretudo em rixas e desentendimentos provocados por valentões e por indivíduos mal ajustados à ordem social.129 Antonio da Cruz, homem bastardo, foi preso “pela culpa de absoluto e levantado”, tendo tocaiado o cabo do Ouro Fino Francisco de Souza.130 Também bastardo era Gervásio da Silva de Camargo, encarcerado “por absoluto”, por ter dado um tiro no escravo de um soldado por “vir fugido da cidade de São Paulo”.131 Por “uns absolutos que teve com Helena Maria mulher branca”, o pardo forro Antonio Mendes foi recolhido à cadeia, onde permaneceu por cinco dias e assinou um termo de não mais incomodar a sobredita Helena.132 Conduzidos ao calabouço e posteriormente entregues à Justiça, José dos Santos e Felix de Lima Xavier parecem ter sido infratores de maior calibre; o primeiro respondia pela culpa de “adúltero e perturbador da paz”, enquanto o segundo além de “absoluto e perturbador da paz”, tinha contra si um abaixo-assinado dos moradores da Cachoeira, onde também atirara em um clérigo com uma espingarda.133 Desocupado e desordeiro, Raimundo de Abreu foi preso por queixa de Caetano Furtado de Mendonça, que o acusou de “desinquietador de Eugênia Gomes, mulher do sobredito Furtado”; foi-lhe ordenado que “se abstivesse de continuar no mesmo insulto, empregando-se em regular conduta no uso de seu ofício”.134 Pelo seu “mau viver”, Alexandre Correia de Magalhães fora despejado das Minas pelo conde das Galvêas e, posteriormente, por Gomes Freire de Andrada, que acabou lhe suspendendo a pena devido ao fato de um certo Fernando Camello ter dito que o réu era necessário à execução de uma diligência; Alexandre Correia continuou entretanto com “escandalosa vida”, e em um só mês “duas vezes armou 131 , Ibid., idem, fls. 95. 132 , Ibid., idem, fls. 3. 133 , Ibid., idem, respectivamente, fls. 95 e 61. 134 , Termo – 20-II-1776, em: APM , SC , cód. 89, fls. 61-61 V. 135 , Carta de 8-XI-1736, em: RAPM , XVI , 2, p. 376-7. 136 , APM , SC , cód. 145, fls. 13.

uma pistola para atirar a uns homens”. Martinho de Mendonça o mandou então prender, ocasião em que o revoltoso se vangloriou de ter conseguido a suspensão do despejo por meio de um dinheiro que dera Fernando Camello para que este comprasse roupas e intercedesse em seu favor. Acabou sendo preso.135 Acompanhado por dois crioulos, Calixto e Marcelina, o mulato Bento Soares foi preso quando intentava passar a estrada do Registro por fora dele; inicialmente encerrado no calabouço, passou depois para a cadeia.136 Juntamente com José de Faria, homem que vivia de sua agência, os irmãos João Roiz da Silva e José Roiz da Silveira foram detidos e admoestados, obrigando-se a partir de então a viverem “quietos e pacificamente no distrito em que são moradores”, e a “não ofender por modo algum ao preto João Nunes”, por queixa do qual haviam sido presos.137 O cabo de esquadra Gabriel da Silva Sampaio, da Companhia de Ordenanças do distrito de Ituverava fora encarregado da prisão de um pardo chamado Caetano Coelho, que de fato capturou. Quando se preparava para colocar Caetano no tronco, apareceu à porta um tio do preso, pardo também e chamado José Antonio de Santa Rita, que de pistola na mão surripiou o sobrinho e o levou pela rua acima. O cabo de esquadra chegou à porta e começou a gritar: “Aqui de El Rei!” – ao que José Antonio respondeu que mataria quem perto dele chegasse, “e como a vida é amável ninguém se chegou, e logo lhe quebrou as algemas e o levou de garupa e pôs-se em fugida”. José Antonio era tido como revoltoso, andando sempre à noite no seu cavalo e cometendo desmandos.138 Outro tipo de desordem eram os incêndios deliberados e os arrombamentos. Sobre os primeiros, nada se sabe, podendo talvez estarem associados a vinganças pessoais; quanto aos segundos, relacionam-se, na maior parte das vezes, a tentativas de roubos – ten137 , Termo de bem-viver – 11-VI (ou VII ?) - 1764, em: APM , SC , cód. 89, fls. 29. 138 , Petição de Gabriel da Silva Sampaio e despacho. Vila Rica, 25-X-1796, em: APM , SC , cód. 260, fls. 67. 139 , APM , CMOP, cód. 47, respectivamente fls. 98 e 26. 140 , Ibid., idem, fls. 96.

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tativas essas que frequentemente se concretizavam. Gracia Maria da Silva, preta forra que morava no arraial das Congonhas do Campo, e Josefa Maria, parda forra residente no arraial da Itaubira, tiveram suas casas queimadas sem que sobre o fato haja qualquer explicação nas devassas.139 Além de ter sua casa no Córrego Seco arromba, a preta Josefa da Silva recebeu várias pancadas dos infratores.140 O mesmo sucedeu a Narcisa Tereza, parda forra que morava no arraial do Ouro Branco.141 Em outubro de 1776, o preto forro Luís Alves teve sua casa no Capão de Cima arrombada por Manuel dos Santos, crioulo forro que também lhe roubou pertences.142 Moradora no Ouro Preto, a forra Micaela de Matos foi vítima de “assuada e arrombamento de portas” na noite de 29 para 30 de janeiro de 1735.143 Desordeiros fizeram o mesmo na casa de Inês Maia, com o intuito de lhe “fazer mal feito”.144 A preta Ana Maria, assistente em São Gonçalo do Tijuco, freguesia da Cachoeira do Campo, também teve a sua residência arrombada.145 Com exceção de um único caso, todas as pessoas que tiveram casas queimadas ou arrombadas eram mulheres, o que não deixa de ser sugestivo. Isto ocorria não apenas por ser o sexo feminino tido como mais fraco e menos afeito à resistência, mas porque era considerável o número de mulheres sozinhas que encabeçavam fogos.146 Exceto no caso do tio que vai à Casa do Tronco libertar o sobrinho preso pelo cabo de esquadra, todas as infrações examinadas até agora refletem a extrema tensão existente entre os membros da camada livre pobre. Predominam os choques e as relações conflitantes, mas há exemplos de indivíduos levados à transgressão pela 141 , Ibid., idem, fls. 99. 142 , Ibid., idem, fls. 92. 143 , Ibid., idem, fls. 101. 144 , Ibid., idem, fls. 89. 145 , APM , SC , cód. 145, fls. 78. 146 , Cf. Donald Ramos, op. cit., passim. 147 , APM , SC , cód. 145, fls. 104. 148 , Ibid., idem, fls. 98.

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solidariedade com o próximo. Foi o caso de Inácio de Araújo Monteiro, preso a 14 de novembro de 1769 por dar asilo a malfeitores e criminosos.147 José de Mendonça Furtado, pardo forro, permaneceu dez dias na cadeia, no ano de 1766, por ter fornecido cavalos “a uns homens, e auxiliá-los, que vinham de romper e passar pela picada proibida que vem da Paraibuna para Iaruóca”.148 Em 1765, os capitães-do-mato Atanásio Antônio, Francisco da Costa e Ambrósio de tal, todos cabras, tinham recebido a incumbência de prender dois negros e uma crioula que andavam aquilombados, mas, deliberadamente, os deixaram fugir. Foram presos, e quando iam transferidos sob escolta dos pedestres José Coelho e João Pereira da Cruz, estes os puseram em liberdade, desaparecendo os cinco. Todos os capitães-mores comandantes de distritos e todos os oficiais das milícias da capitania foram então alertados para prenderem os infratores, distribuindo-se uma descrição dos delinquentes que fornece informações sobre sua aparência física. Atanásio Antonio era cabra, alto e magro, tendo 30 anos de idade; Francisco da Costa apresentava as mesmas características que o outro capitão-do-mato, sendo entretanto um pouco mais moço, com 25 anos; Ambrósio de tal era cabra, de estatura ordinária, cheio de corpo e com aproximadamente 35 anos; pardo claro, o pedestre José Coelho da Fonseca era oficial de seleiro, cheio de corpo e estatura baixa; pardo também, João Pereira da Cruz era descrito da mesma forma que seu companheiro pedestre.149 Este documento é muito interessante não apenas por apontar a inversão que, nesta camada fluida, podia se verificar a qualquer momento, os agentes da repressão metamorfoseando-se em infratores, mas – coisa rara – por fornecer dados sobre a idade, cor e aparência física dos infratores. Com base em alguns poucos documentos deste tipo, é possível reconstituir precariamente o perfil físico desses protagonistas da miséria. 149 , Portaria geral para serem presos os capitães-do-mato que nela se declaram . Vila Rica, 25-I-1765, em: APM , SC , cód. 118, fls. 83-83 V.

150 , Diogo de Vasconcellos, História média..., p. 117-8 151 , Cópia da guia dos presos que faz menção a portaria supr. Tijuco,

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Dos sediciosos que, no governo de Martinho de Mendonça, fugiram para a Bahia, sabe-se de Antonio Gomes Vitório que “embora tivesse carta da terra, passava por branco, alto, magro, pintado de branco”. Seu irmão, Constantino Gomes Vitório, era mais velho, mais alto, com as costas curvas e as pernas grossas, tendo na Bahia duas irmãs mulheres damas, D. Maria e D. Isabel. De boa estatura, Francisco de Souza era ferreiro, “bem parecido, idade de 30 anos mais ou menos, cabelos ruivos, branco, natural do rio São Francisco de baixo”. O mameluco Antonio Pereira Caminha tinha cabelo corrido, era baixo, com barba, cabelos brancos e um sinal na cara; natural de Sergipe, onde tinha mulher, era ourives e fugira com um frade compadre de Antonio Vitório, cujo nome era Frei José de São Paulo. José de Fonseca, de 25 anos, era alto, com dois dentes de cima podres e quebrados, sendo sua mãe um natural do Rio de Janeiro que matara o marido em Pitangui.150 Dos presos que, em 1765, receberam no Tijuco a pena do degredo, tinha João Pires de Sá “estatura mediana, cara redonda, olhos pardos encovados, barba preta, cabelo corredio” e 35 anos de idade; foi degredado por 10 anos para Angola. De “estatura mais que mediana”, José Antunes tinha pouca barba, cabelos castanhos, curtos, e a cara comprida; contava com 25 anos de idade, e também teve degredo de 10 anos para Angola. “Picado na cara, grosso e refeito, de mediana estatura, já pintado de brancas, e barba fechada”, o preto forro José Teixeira Alves, de nação mina, foi degredado para fora da capitania. Igual sorte teve o forro Jerônimo, mina também, de estatura mediana, sinal na fonte, pouca barba e cabelo já bastante branco. Alto, grosso de corpo, barba fechada, o crioulo forro Antonio Leite e seu filho João – este, imberbe, magro e espigado – também foram expulsos da capitania das Minas.151 Muitos desses infratores, de que se sabe tão pouco, foram remetidos para os presídios distantes.152 Agentes obscuros de infrações 12-II-1965, em: APM , SC , cód. 118, fls. 100-100 V.

152 , Ver APM , SC , cód. 145, fls. 106 V, 107 V, 108, 110 V, 130. Idem para APM , SC , cód. 242, fls. 7 V-8. 153 , Ordem de José Antonio Freire de Andrada – 19-V-1959, em: APM , SC , cód. 50, fls. 78 V.

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muitas vezes indefinidas, engastaram-se numa sociedade fluida que tanto podia aceitá-los como repudiá-los. A larga gama de delitos que cometeram explica muito da natureza fugidia dessa formação social. Mas nem todos os infratores foram obscuros, assim como nem todas as infrações foram indefinidas e difíceis de serem classificadas. Houve um grupo famosos de bandidos, de garimpeiros imortalizados pela tradição romântica, de ciganos e falsários que os dragões das Minas perseguiam sem trégua. E houve os indivíduos que enveredaram por trilhas que, em toda parte, têm-se por escusas: a prostituição, a feitiçaria, a deserção, o mundo dos roubos e dos crimes de morte. Na indefinição geral, foi essa a parte da camada que se apresentou com maior nitidez. 3. INFR ATOR ES E INFR AÇÕES: OS CASOS INDIVIDUAIS A , Desertores , Para melhor compreender a grande ocorrência da deserção, é preciso lembrar o aspecto forçado que, na maior parte das vezes, assumia o recrutamento. Quando juntava gente para perseguir os quilombolas, José Antonio Freire de Andrada enfrentou esse problema, pois as pessoas “se haviam refugiado por casas, fazendas e lavras dos moradores desta capitania para não irem à dita expedição”.153 O corpo de soldados da colônia era composto frequentemente por indivíduos semidesclassificados, dados a toda sorte de arruaças. No tempo de Martinho de Mendonça, eram comuns as queixas apresentadas pelos roceiros dos caminhos contra os soldados das paradas. Segundo narra José Joaquim da Rocha, a criação súbita de muitos regimentos da Cavalaria Auxiliar gerou nas Minas um problema seríssimo, “puxando-se para estes indivíduos, que pela sua pobreza, andavam nus, e descalços, muitos se viram na precisão de pedirem esmolas; e outros, de furtar, para aparecerem com os diferentes uniformes, que lhes foram ordenados, e não experimentaram os rigorosos castigos, que lhes impunham pela fal-

154 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 503. 155 , “Proposta para nomeação, promoção e reforma de oficiais dos corpos , em: Diversos registros da correspondência oficial do governador

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tas”.154 No início do século XIX , quando era governador o visconde de Condeixa, os problemas com os soldados e oficiais continuavam existindo. Ao tratar da reforma dos oficiais de linha com a terça parte de seu soldo, dizia o visconde não estar cometendo nenhuma “injúria, ou injustiça”, dado o pouco préstimo daqueles elementos: [...] o Tenente Ezequiel Rebello de Andrade tem tido sempre uma conduta devassa, tem sido muito irregular no Serviço, além d'outros desmanchos que são bem públicos nesta capitania, tendo só a virtude de ser limpo de mãos; (…) o Alferes Joaquim José de Mesquita é o mais extravagante oficial, que eu conheço; tem chegado a vender seus uniformes, que já lhe tenho mandado desempenhar; continua no mesmo desmancho, e a pretexto de moléstias se esquiva sempre do Serviço; e acha-se a mais d'ano encantoado nesta vila; saindo apenas de noite por não ter meios d'o fazer com decência de dia, e dá com tal exemplo grande escândalo aos seus camaradas [...]155

Logo na entrada da Igrejinha de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, o ex-voto de seu patrono, capitão-mor Lucas Ribeiro de Almeida, deixou registrado o ataque que este recebeu de quatro soldados dragões, que subitamente se lançaram sobre ele.156 São frequentes os casos de soldados que, como Joaquim da Costa Teixeira e o pardo Manuel Pimenta, eram recolhidos ao calabouço por terem cometido desordens em sua ronda, “saltando quintais, roubando-os, tirando D. Pedro Maria de Athayde e Mello , RAPM , XI, 1906, p. 303.

156 , “Nem com as espadas nem com vários tiros que lhe deram foi possível que conseguissem o intento porque a Mão de Deus deu forças ao seu devoto para que de tudo se defendesse, sem receber o menor perigo nem a si nem os escravos que o acompanhavam. Em sinal de agradecimento, mandou fazer esta memória que sucedeu em os 29 de dezembro de 1720” – Segundo Lúcia Machado de Almeida, Passeio a Sabará, 3ª ed., São Paulo, 1964, p. 106. 157 , APM , SC , cód. 145, respectivamente fls. 97 e 121 V. 158 , Para a soltura de José Álvares da Silva – 30-IV-1795, em: APM , SC , cód. 242, fls. 8-8 V.

rótulas das janelas, e fazendo outras coisas semelhantes.157 tendo sido soldado do Regimento de Cavalaria de Vila Rica, José Álvares da Silva foi parar na cadeia, e de lá, remeteram-no para o presídio do Cuieté.158 Devido a essas contingências variadas, verificavam-se então as deserções. Do Cuité desertou o pardo Nicolau Pereira no ano de 1767,159 e, no ano seguinte, com seus trastes e com armas do presídio, o mesmo fizeram com os índios João e Antonio.160 Em 1773, Manuel Barbosa Lima, homem pardo, desertou do presídio do Abre Campo, para onde deveria voltar sob pena de lá ficar como degredado.161 Havia desertores das mais diversas procedências: da praça da colônia, como o cabo de esquadra Antonio Moreira,162 do Regimento de Cavalaria Regular da guarnição das Minas, como os soldados João Pontes, José Francisco Correia e Francisco José Peixoto.163 Mas os que aparecem na documentação em maior número são os que desertavam da Praça do Rio de Janeiro e embarafustavam pela capitania do ouro. No ano de 1767, um grande número deles foi ai preso: em setembro, Miguel Rodrigues, homem branco que foram parar na comarca do Rio das Mortes; em outubro, Manuel da Cunha e Felix Pinto, este encontrado em Capivari; em novembro, os bastardos José de Mesquita, Manuel Martins, João Leme da Silva e os brancos Manuel Fernandes de Oliveira e Antonio Alves da Silva, todos vindos da comarca do Rio das Mortes, que era onde desembocava o caminho do Rio.164 Os governantes paulistas também se queixavam

159 , APM , SC , cód. 145, fls. 133. 160 , Despacho sobre índios fugidos – 22-XII-1768, APM , SC , cód. 103, fls. 124. 161 , Termo – 6-IV-1773, em: APM , SC , cód. 89, fls. 59. 162 , APM , SC , cód. 145, fls. 2 V. 163 , APM , SC , cód. 242, fls. 38 V. 164 , APM , SC , cód. 145, fls. 123, 61 V, 99, 123 V, 99, 2 V. 165 , Cf. Carta do conde de Valadares ao Morgado de Mateus sobre desertores – 24-X-1771, em: DI , XIV, 1895, p. 276; Ibid., 11-XI-1772, p. 278. Carta de Martim Lopes Lobo de Saldanha a D. Rodrigo José de Menezes – sobre

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de soldados que da sua capitania passavam para a das Minas, pedindo providências sobre o assunto.165 O soldado desertor é outro caso típico de inversão, como o dos capitães-do-mato que ficou citado acima: paladinos da ordem e da força, passam para o outro lado, tornando-se infratores. Entretanto, são com frequência reincorporados às milícias, após terem cumprido pena por algum tempo: os toscos corpos militares da colônia não podiam se permitir luxos nesse sentido.166

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B , Padres infratores , Desde os primeiros tempos das Minas, os clérigos foram vistos como “elementos perturbadores e corrosivos”.167 Achavam-se isentos da jurisdição civil, e com frequência meteram-se em negócios ilícitos de contrabando e extravio de ouro. Contra eles se remeteram sucessivas ordens de expulsão: em 1713, 1714, 1721, 1722, 1723, 1725, 1744, 1753.168 Diziam algumas delas que os frades que acorriam às Minas eram “levados de interesses temporais”, não se portando como verdadeiros religiosos;169 viviam com “indecência”, e se fosse preciso recorrer ao braço militar para a passagem de desertores nos Registros – 2-V-1780, em: DI , XLIII , 1903, p.325.

166 , Entre os anos de 1685 e 1715, quase 50 sobre cada 100 homens enviados às galeras eram, na França, desertores do exército real. Até 1684, os desertores presos e julgados por um conselho de guerra eram condenados à morte, passando, a partir de então, a serem empregados nas galeras, muitos tendo que carregar marcas infamantes: orelhas e narizes cortados, flores-de-lis estampadas nas faces. De nada adiantaram entretanto essas normas repressivas, pois devido ao grande número de guerras, as deserções continuaram se multiplicando. Cf. André Zysberg, Galères et Galériens em France de l'Age Classique aux Lumières”, em: Les Marginaux et les Exclus

dans l'Histoire, p. 369-70. 167 , Diogo de Vasconcellos, História antiga..., p. 301. 168 , Waldemar de Almeida Barbosa, História de Minas, v.2, p. 394. 169 , Ordem de 13-V-1722, em: RAPM , XVI , p. 461. 170 , Ordem sobre expulsão de frades — 1-VII-1753, em: APM , SC , cód.69, fls. III . 171 , “O governo julgava ser muito maior a possibilidade de um membro de ordem religiosa fazer contrabando, pois, possuindo casas em diversos pontos do Brasil e no

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expulsá-los, isso seria feito.170 O clero das Minas era composto basicamente por padres seculares, pois a Coroa via com desconfiança os regulares, negando-lhes licença de permanência no território aurífero.171 Sem se identificarem com os desclassificados propriamente ditos, pode-se entretanto considerar que apresentavam certa tendência a serem assimilados pelo mundo das infrações, e, como disse Geremeck dos frades franceses, constituíram “uma larga plataforma de recrutamento para o mundo do crime”.172 Muitos foram os que se ordenaram para fugir da justiça comum: assim, José Ribeiro Dias, culpado no “levante de Minas” e que, apesar do hábito foi expulso da capitania em 1733.173 Houve alguns frades famosos, como Frei Francisco de Menezes, revoltoso emboaba. O Padre Félix José Soares da Silva, “aventureiro e contrabandista de escol”,174 também fez nome como contraventor: esteve preso por duas vezes, livrando-se com recurso à Coroa.175 Francamente desclassificados foram os obscuros Frei Inácio de Nossa Senhora de Montserrat e Frei Domingos da Porciúncula, que se mancomunaram com os vadios facinorosos João e José da Silva Pereira e com Bernardo João de Souza para infernizarem o irmão deste, Lucas Fernandes de Souza. Apóstatas os dois, estavam “vivendo escandalosamente naqueles sertões, fora de sua religião, e sem licença de seus prelados, entregues a todos os vícios, servindo de total perturbação ao sossego público daqueles moradores”.176 exterior, tinha facilidade de contatos, podendo enviar ouro e diamantes sem grande dificuldade para fora das Gerais e, mesmo, para o estrangeiro.” Julita Scarano, ob.cit., p. 17. 172 , G. Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 178. 173 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, op.cit., v.2, p. 394. Sendo extremamente fácil de conseguir, a tonsura era frequentemente usada pelos criminosos franceses que procurava, assim, escapar aos rigores da lei: “A falsa tonsura é aliás o sinal típico da adesão ao meio criminoso”. Geremeck, ob.cit., p. 131. Ver também p. 155. 174 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 185. 175 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, ob.cit., v.1, p. 211-2. 176 , Cópia de dois requerimentos e despachos de S. Exa. Proferidos ao

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Havia-os bêbedos – como o padre João Gomes, admoestado pela visita que em setembro de 1730 se fez na Vila de S. José del Rei –;177 jogadores e pederastas – como o Padre Felipe da Silveira, que “em uma só noite ganhou uns negros e um cavalo a um João Fernentier”,178 e que, ao mesmo tempo, andava com uns rapazinhos dos quais o maior teria no máximo doze anos –; 179 violentos – como o Padre Bartolomeu, que além de andar “com sua catana à cinta, e pistolas, e chapéu branco”, costumava descompor os homens do púlpito e apontar com o dedo para alguns.180 A esta última categoria pertencia também o Padre Manuel Esteves da Costa, vigário de Baependi. Tinha “mente impudente”, era destemperado e tratava os seus fregueses “sempre coléricos e com mau modo, oferecendo pancadas a muitos”. Confessando-se certa vez a mulher de uma testemunha da devassa, que era roceiro, e “dizendo-lhe esta que não podia ir à missa por ser pobre se irritou ao dito vigário, dizendo à dita sua mulher que ele testemunha não trabalhava por trazer sempre o sentido entre as pernas da dita sua mulher, palavras indignas de um pároco e em semelhante lugar...”. 181 O concubinato foi muito comum entre o clero, e isso se deveu em grande parte ao caráter secular dos padres que aqui estiveram.182 O Frei Luís Coelho, religioso de Nossa Senhora do Carmo do convento de São Paulo, cobiçava Domingas de Tal, mulher casada e tida por mal procedida, e a espreitava amiúde pela gelosia; certa vez, quando alferes Lucas Fernandes de Souza moradores nas Minas Novas – 5-III-

1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 112 V-113. 177 , AEAM , Devassas — maio 1730-abril 1731, fls. 25V. 178 , AEAM, Devassas – 1738, fls. 167 V. 179 , “... acompanhando continuamente com eles admitindo-os em sua casa várias vezes sem serem pessoas capazes de terem negócios políticos com ele, pois sendo três o mais velho terá doze anos – AEAM , Devassas – 1738, fls. 174 V. 180 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 41 V. 181 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 143 V. 182 , Para Boxer o concubinato ocorreu com frequencia em todo o clero latino-americano, os jesuítas tendo sido os que apresentaram padrão de moralidade mais

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saltava uns quintais para ir ter à casa da dita mulher, foi corrido por uns negros. O padre era tido por “mui namorado e lascivo”, e se dizia “que as esmolas que se lhe dão dos santinhos que lança as gasta com mulheres”. 183 Na freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Ariuóca, o Padre Felipe Teixeira Pinto foi culpado em primeiro lapso de andar concubinato com uma escrava preta chamada Ana, e também “por sair a bailar com uma mulatinha que lhe levaram à casa”. 184 O Padre Manuel Serrão namorava Potência Leite, mulher de Manuel Cabra, e ela tinha disso grande orgulho, perguntando a terceiros “se tinha bom gosto em falar com o dito vigário” e se ele “era gentil-homem”. Manuel Cabral consentia passivamente no concubinato, conforme diz uma testemunha que, estando um dia em sua casa, “viu que à vista do mesmo marido estando ela (Potência) em uma rede o Padre Manuel Serrão estava junto dela metendo-lhe as mãos nos peitos...”. 185 Havia ainda todo um rol de padres concubinatos e apóstatas, que vagavam pelos matos cometendo desatinos. O Padre Antonio Soares, havia muitos anos que andava amancebado com a bastarda Maria Pais, com quem tinha filhos; vivia para as partes do Sapucaí, “apartado no mato”, “parecendo mais bruto do que clérigo”.186 O Padre João de matos chegara a Baependi com uma comadre sua, Helena de Tal, e com ela vivera amasiado todos aqueles anos, “como régulo sem hábito nem tonsura, andando em visita com um bacamarte, e terçado à cinta”, “metendo terror a todos e descompondo a muitos”; apesar de tudo isso, e de ir ao arraial nos domingos sem contudo assistir à missa, o colérico Padre Manuel Esteves, que descompusera a pobre mulher do roceiro, o desobrigou da quaresma, dando comunhão a ele e a sua concubina.187 O Padre Antonio Soaalto. Cf. Mary and Misoginy – Women in Iberian Expansion Overseas – 1415-1815 — some facts, fancies and personalities. Londres, 1975, p. 108-9. 183 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 137-137 V 184 , AEAM , Devassas – maio de 1730 - abril 1731, fls. 19. 185 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 45 V e 49-49 V 186 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 148 e 148 V.

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res e o Padre João de Matos acabaram presos e remetidos para o Rio de Janeiro. O Padre Inácio Moreira de Figueiredo constitui um caso à parte. Vivia “escandalosamente pelas capoeiras, inquietando as casas honradas, e famílias delas, com armas defensas”; tinha por amásia uma escrava mulatinha que mantivera por algum tempo oculta no mato, e andava “tão aborrecido e estranhado dos fiéis que lhes puseram a alcunha de Padre Capoeiras”. Era revoltoso e atrevido, descompondo sem temor seu pai, o capitão Luís de Figueiredo, e sua mãe, D. Antônia; tratava-o “com palavras injuriosas e escandalosas, até chegara dizer-lhe que não é seu filho e que é filho da puta, com injúria grande, por ser homem distinto e sua mãe D. Antonio em todo tempo conhecida por matrona de conhecida pureza”. Certa vez, tanto maltratou seu pai que este “se retirou a pé com o capote às costas para casa de seu Reverendo Vigário chorando e queixando-se do dito padre seu filho”. O “Padre Capoeiras” costumava ainda arrombar portas e gavetas de seu pai, e chegou um dia a atirá-lo no chão e pôr o pé no seu pescoço, o pai sendo velho e doente.188 Nascido, pois, em família de posses, este curioso espécimen descambava para a marginalidade, como tantos outros seus companheiros de batina. C

, As vendas e as negras quitandeiras , Já analisadas no capí-

tulo anterior, as negras quitandeiras ou de tabuleiros exerceram não apenas o comércio ambulante como trabalharam muitas vezes nas vendas e lojas de comestíveis que serviam os escravos e os homens livres pobres da mineração. Tanto as negras como as vendas foram objeto de uma luta incessante empreendida pelas autoridades, deste e do outro lado do oceano. Pelo temor que despertavam, devem realmente ter representado papel de destaque na agremiação de indivíduos pobres e desclassificados, estabelecendo vínculos de 187 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 148 e 148 V. 188 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 16 V-17-17 V-18. 189 , “Este 'templo de Anti-Cristo', este Templum diaboli, esta 'nave da Contra

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solidariedade entre eles e ocupando o lugar que, na Europa, foi preenchido pela taverna.189 Foi, entre outras coisas, o seu “local santo” de lazer e de namoro, o espaço onde suas festas e seus batuques se desenrolaram. Por isso a queixa dos moradores “da opressão que continuamente tem pelas repetidas desordens e desgraças sucedidas por causa de muitas vendas”, já que nessas lojas também se brigava e se bebia aguardente. As negras eram tidas como as principais culpadas de tudo quanto era desordem, e por esse motivo ordenava um bando do tempo de D. Lourenço de Almeida que os donos vendessem os gêneros “por sua mão” ou tivessem negros homens que o fizessem, “mas de nenhuma sorte terão negras ou mulatas, ou escravas ou forras, vendendo nos ditos ranchos...”. 190 Havia queixas de que as negras das vendas recolhiam negros para lhes comprarem ocultamente os diamantes que furtavam a seus senhores, o mesmo fazendo com os “muitos homens vagabundos que andam pelos rios e ribeiros e pelos matos fazendo negócios atravessados com os negros” para depois revenderem as pedras a atravessadores que contatavam nas vendas. Houve então determinações procurando impeIgreja' é o lugar da alegria e do não-trabalho, o local santo do lazer e do jogo, e serve, evidentemente, a todas as classes sociais. Para os grupos criminosos, a taverna tem um papel particular. É a casa, a instituição da vida coletiva que substitui o lar, é o local do esquecimento e o lugar da memória... Passar a vida na taverna, de dia e de noite, em boa companhia, jogando dados e baralho, eis o sonho do vagabundo. No nível das mentalidades e da imaginação coletiva, a taverna é o fator capital de estabilização da existência criminosa, pois sanciona a anomia social, forma modelos de cultura e escala original de valores, favorece o estabelecimento de laços internos no seio do meio criminoso e promove sua afirmação — no plano da sociedade e no plano da consciência — enquanto 'anti-sociedade'”. B. Geremeck, “Criminalité, vagabondage, paupérisme: la marginalité à l'aube des temps modernes”, rm: RHMC , XXI , julho-setembro de 1974, p. 344.

190 , “Sobre não haver vendas com negras, nem estas a faiscar no morro das Congonhas do Sabará”, segundo Augusto de Lima, Um munícipio do ouro – Memória Histórica , em: RAPM , VI , 1901, p. 326-8.

191 , Bando de D. Lourenço de Almeida, “Sobre o descobrimento dos diamantes

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dir as vendas dentro das lojas, onde não podiam entrar, de dia ou de noite, nem escravos, nem forros, fossem negros ou mulatos; os negócios só podiam ter lugar do mostrador para fora.191 Mas nada disso parece ter surtido o efeito desejado, e em 1732 o secretário do Governo das Minas, Manuel da Fonseca Azevedo, estendia-se sobre a matéria em representação dirigida a Sua Majestade: Outros moradores, em grande número, têm casas de vendas de comer e beber, onde põem negras suas para convidarem os negros a comprar e, para melhor o conseguir, ganhando os ânimos dos mesmos negros, consentem que tratem com eles luxuriosamente e muitas vezes sucedeu retiraram-se os senhores das casas das vendas, dando os passeios, jogando com outros seus semelhantes, para darem lugar a que as negras fiquem mais desembaraçadas para o uso de seus apetites (…) Quase todas essas negras recolhem nas suas casas, a toda hora do dia ou da noite, não somente ne224

gros mineiros, mas os negros fugidos, e destes ajuntamentos, resulta que, por ocasião de se embebedarem, se matam e se ferem, com grande prejuízo dos seus senhores e do sossego público... (…) Nas mesmas casas têm os negros fugidos a seu asilo porque, escondendo-se nelas, se ocultam a seus senhores e, daí, dispõem as suas fugidas, recolhendo-se também, nas mesmas casas, os furtos que fazem, nos quais as mesmas negras são às vezes conselheiras e participantes. Também nas mesmas casas vêm prover-se do necessário os negros salteadores dos quilombos, tomando notícia das pessoas a quem hão de roubar e as partes por onde lhes convém entrar e sair, o que tudo fazem mais facilmente, achando ajuda e agasalho nestas negras que assistem nas vendas...192

Nos últimos anos da década de quarenta, duas escravas tinham

na Comarca do Serro Frio. Primeiras administrações”, em: RAPM , VII , 1902, p.336-7. Bando de 1-III-1743, em: APM , SC , cód. 50, fls. 38 V-39. 192 , Representação de 20-II-1732, segundo Waldemar A. Barbosa, Negros e quilombos em Minas Gerais, p. 121. 193 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 93 V.

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suas vendas no morro do Batatal na Roça Acima; foram acusadas na mesa da visitação de “meterem em suas casas negros e negras com o capataz vendo (ileg.) cometendo pecados com grande escândalo”. 193 Na sua venda na Água Limpa, da qual vivia, a preta forra Rosa consentia batuques de negros e capitães-do-mato, numa curiosa agremiação de algozes e vítimas unidos pelo lazer.194 Eugênia, negra forra moradora no arraial da Paraúna recolhia em sua casa negras de tabuleiros e negros das faisqueiras, “e a uns e outros consente em sua casa de noite para todas as velhacarias e maganagens...”.195 Pontos de ligação entre o comércio e os quilombos, esconderijo de negros fugidos, locais alegres de batuques e amores, as vendas foram também pontos privilegiados de contrabando. Em 1734, João Cardoso Lima foi causado ante o visitador de consentir em sua casa “muitas velhacarias, recolhendo nela negros ateus incentivando que na casa se use de toda a desonestidade e velhacarias só a fim de lhe comprar pedras com encargo de sua consciência...”. 196 Mais do que em qualquer outro ponto de Minas, as autoridades do Distrito Diamantino se empenharam na luta pela redução das vendas e lojas.197 Mas por todo o território aurífero foram elas encaradas com desconfiança, espaço reservado a uma espécie de “anti-sociedade” como diz Geremeck – que, através da infração e do lazer congregava elementos avulsos para lhes emprestar, mesmo que momentaneamente os traços da coesão social e da solidariedade. D

, Prostituição , As prostitutas foram numerosas em todo o

Império Colonial Português, sobretudo quando, nos primeiros tempos dos núcleos urbanos, a população feminina ainda não se estabilizara em fogos. Boxer fala da escassez de mulheres brancas em 194 , AEAM , Devassas – julho 1762 - dezembro 1769, fls. 15 V. 195 , AEAM , Livro das Devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734 , fls. 102 V. 166 , AEAM , Livro das Devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 71 V.

197 , Cf. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, p. 237. Ver também Fritz Teixeira de Salles, Vila Rica do Pilar, Belo Horizonte, 1965, p. 106. 198 , Boxer, Mary and Misoginy..., c.1, Morocco, West Africa and Atlantic

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Luanda, para onde a Coroa enviou, em 1593, um grupo de 12 “órfãs do rei”, jovens brancas em idade de casamento vindas dos orfanatos de Lisboa e do Porto; cada jovem tinha um dote na forma de postos subalternos na administração para quem se casasse com elas. Não há notícia do emprego desse sistema no Brasil, tendo ele sido particularmente bem-sucedido na Índia.198 Nas Minas, as prostitutas pulularam por todo o período em que durou a atividade aurífera. Muitas para lá se dirigiram nos primeiros tempos, como tantos outros atraídas pelo ouro;199 houve também as que foram obrigadas a dotar este gênero de vida devido às difíceis condições de subsistência que a região oferecia. Os primeiros tempos, quando era grande o afluxo de homens, devem ter sido especialmente propícios para o exercício dessa atividade; mas mesmo depois, quando se estabilizou a proporção entre os sexos, ela continuou sendo intensamente desempenhada. No Tijuco, muitos foram os bandos contra a prostituição, como o famoso e sempre citado de 2 de dezembro de 1733, que falava dos “pecados públicos, que com tanta soltura” corriam “desenfreadamente” no Arraial “pelo grande número de mulheres desonestas” que lá habitavam, “com vida tão dissoluta e escandalosa, que não se contentando de andarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas de escravos, se atrevem irreverentes a entrar na casa de Deus com vestidos ricos e pomposos, e totalmente alheios e impróprios de sua condição...”.200 Já na época de franca decadência, Basílio Teixeira de Saavedra propunha “casas de correção para as mulheres prevaricadoras”.201 Muitos devem ter sido os casos de mulheres sozinhas, mãe solteiras que tinham de Islands”, p. 11-34, passim.

199 , Em 1723, o governador de São Paulo, Rodrigo Cesar de Menezes, proibia a passagem de “algumas mulheres mal procedidas brancas, bastardas, e mulatas forras” para as Minas do Cuiabá, onde causavam grandes perturbações. Cf. Regimento de um bando sobre não passarem mulheres ao novo descobrimento das minas do Cuiabá – 27-VII-1723, em: DI , XII , 1901, p. 111.

200 , Apud Xavier da Veiga, ob.cit., v. IV, p. 290; Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 68. 201 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação..., p. 678.

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sustentar os filhos e a casa com o produto do seu trabalho, exercendo esporadicamente a prostituição para completarem a receita doméstica; assim sendo, a pureza feminina se cristalizaria em ideal inatingível: “Mulheres brancas, puras, não há; a Mãe de Deus não só simboliza a mulher desejada e perfeita, como sem dúvida, seria a figura mais ouvida pelo Filho-Deus. A grande maioria das ermidas a têm como orago, através de suas inúmeras invocações: Nossa Senhora da Piedade, da Conceição, dos Anjos, das Mercês, da Misericórdia, das Dores”.202 Como é sabido, e abundantemente confirmado pela documentação, foi comum viverem os senhores da prostituição de suas escravas. Manuel das Silva, morador no Campestre, freguesia de Itaubira, era “público e escandaloso consentidor” de que suas escravas fossem mal procedidas e se dessem a homens; com as atividades de uma delas, chegava a angariar semanalmente uma oitava e meia, e costumava dizer que gostaria imensamente “que os negros se lhe convertessem em negras, porque lhe rendiam mais os jornais” (...)203 Maria Franca, casada com Cristóvão da Silva Guimarães e moradora no distrito da Capela de Santa Rita permitia que suas escravas Joana Grande, Joana Pequena, uma outra por alcunha o Foguete e Veronica, carijó, fossem à casa de vários homens, lá passando dias e noite seguidos, quando então as mandava buscar. Se as escravas não lhe entregassem o jornal, Maria Franca “as manda que vão ganhar pelo melhor modo que puderem”; fruto harmonioso de uma sociedade escravista, a tal senhora se indignou quando os vizinhos ensaiaram uma queixa sobre o mau procedimento de suas escravas, dizendo “que muito favor lhe fizera em lhe trazer carne para eles se regalarem”, pois viera de São José del Rei com suas escravas “para fartar os moradores de Rio Abaixo, que estavam famintos...”. Com toda a desenvoltura, Maria Franca costumava perguntar às suas escravas com quem dormiam, “e quais eram os que melhor lhe 202 , Sylvio de Vasconcellos, Mineiridade, p. 144. 203 , AEAM , Livro das Devassas – ano de 1735, fls. 35 V. 204 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 80 V, 81 V, 93, 95 V, 96-96 V.

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pagavam”. 204 Muito frequente também era “alcovitar mulheres para homens”, como corria fama de que fazia a parda forra Adriana Barbosa, levando recados de homens para mulheres e, algumas vezes, “dando-lhes a sua própria cama para as suas torpezas”.205 De certa forma, alcoviteiros eram os pais e mães e consentiam na prostituição de suas filhas, incentivando-as muitas vezes, como a negra Cristina de que já se falou acima. Tendo-se em vista o tipo de sociedade desenvolvida nas Minas, torna-se difícil estabelecer os limites da prostituição, palavra usada com frequência para designar um tipo de estrutura assentada na predominância dos fogos encabeçados por mulheres, que muitas das autoridades – inclusive as da Igreja – consideravam imoral. A visita eclesiástica tivera, nesse sentido, um papel “normalizador” que correu paralelo ao do Estado, tentando erradicar as relações extraconjugais sem alterar os pré-requisitos para o casamento.206 O grande número de mulheres indiciadas nas devassas sob designação de “mal procedidas” e as constantes insinuações de que viviam da prostituição confirmam o aspecto extremamente rígido da ótica eclesiástica, incapaz de captar a especificidade dessa formação social; por outro lado, nem tudo foi mistificação pura e simples: esses documentos retratam, de uma forma ou de outra, a fluidez das relações sociais, notadamente a da camada pobre e livre das Minas. Muitas dessas mulheres prostitutas ou semiprostituidas eram casadas, como Paula Perpétua, parda forra casada com Francisco da Cunha e tida por “mulher meretriz”, o marido se acomodando à situação “por ser homem pobre, velho, e temer os impulsos da referida”.207 Também parda e forra, Gertrudes era casada mas vivia ausente de seu marido, sendo “mulher desenvolta” “que se costuma dar à desonestidade com quaisquer pessoas que a procuram”.208 205 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 9 V-10. 206 , Cf. Donald Ramos, ob.cit., p. 224-5. 207 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 7 V; Livro de Devassas – ano de 1753, fls. 21 V. 208 , Ibid., idem, fls. 9-9 V.78

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Eusébia Álvares estava separada de seu marido, o oficial de carpinteiro e mulato Eusébio porque este vivia bêbado; portava-se “meretrizmente estando pronta para ofender a Deus com qualquer pessoa”.209 Situação mais complexa era a de Simão Lopes da Silva, sua mulher Branca Saldanha e sua filha Páscoa: Branca teria abandonado o marido porque este tinha “cópula incestuosa” com a filha, que também foi se foi de casa e passou a “viver meretriz”. Entretanto, dizia-se que, mancomunadas, a mãe e a filha tinham levantado falso testemunho contra o pai e o marido “para viverem à sua vontade meretricidamente”.210 Antônia Curraleira morava sozinha e era prostituta publicamente conhecida, como o eram também as mulatas Ascença e Antonia, moradoras no Arraial da Feira.211 Preta forra, Maria da Silva foi acusada de ser meretriz por mais de uma testemunha, apesar de haver quem duvidasse, dizendo que à sua casa iam homens apenas para comprar o sabão que ela vendia para viver.212 Algumas meretrizes moravam na roça, como Ana da Cunha e suas filhas Rita e Maria Fernanda, assistentes na fazenda de um Manuel Gonçalves Chaves, que acabou sendo chamado pelo visitador e admoestado por consentir “desonestidades” em suas terras.213 Em Vila Rica, outras iam à igreja buscar fregueses, como Inácia da Silva, parda forra, e as mulheres que com ela moravam; nos dias de missa, ficavam chamando os homens da porta, e estes escapavam pela sacristia para irem ter com elas.214 Houve as que conviveram de muito perto com o mundo nebuloso do crime, para onde podiam escorregar através de infrações muitas 209 , Ibid., idem, fls. 14. 210 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 18. 211 , AEAM , Livro de Devassas – ano de 1753, fls. 23. 212 , “... a qual não se vê dar escândalo algum, porém tem ouvido dizer que ela é mal procedida, e inda que ele testemunha vê lá entrar muitos homens, sempre julgou que iriam lá a comprar-lhe sabão, que é o negócio de que vive.” — Ibid., fls. 27. 213 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 27 V. 214 , AEAM , Devassas — 1733 — outubro-dezembro, fls. 62V. 215 , AEAM , Devassas — 1748-1749, fls. 43V.

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vezes pequenas. A paulista Josefa Maria de Almeida vivia bêbada.215 Ana Maria da Silva, mulher parda, foi recolhida à cadeia por envolvimento na morte de um José Marques; devido a “sua má vida, e horríveis procedimentos”, seria despejada de Vila Rica dentro de 24 horas para ir viver com moderação junto de sua mãe, comprometendo-se a não causar perturbações, “e menos usar de batuques, nem de outros divertimentos ilícitos” sob pena de ser degredada para fora da capitania.216 Expulsa da comarca do Rio das Velhas foi Maria Parda, que morava na freguesia dos Raposos e vivia escandalosamente inquietando o povo do arraial.217 Numa sociedade iníqua e desigual, essas mulheres tiveram de deixar de lado os pruridos morais para poderem sobreviver. Nada tinha muita importância ante a violência do cotidiano, como fica claro na fala desaforada de Maria da Costa, que, brigando com uma mulher, disse-lhe que se era “capaz de dar uma bofetada em Nossa Senhora do Pilar”, com muito mais facilidade esbofetearia a sua contendora, finalizando que “se ela era mulher pecadora, que por ela tinha sido Santa Maria Madalena...”.218 As casas de prostituição – ou casas de alcouce – foram numerosas, exercendo função semelhante às vendas e lojas de comer e beber, com as quais às vezes se confundiam. Na casa que tinha a mulata Catarina, na Lavagem do Batatal, homens e mulheres se encontravam, entrando e saindo a qualquer hora do dia e da noite, e nela fazendo “galhofas”.219 Na casa do pardo Custódio, em São João del Rei, também havia, além do amor ilícito, os batuques que os vizinhos estavam acostumados a ouvir todas as noites.220 A casa pública de Maria Crioula, negra forra também conhecida por “a Lavadeira” era frequentada por negros, soldados, e capitães-do-mato.221 216 , Termo de bem viver — 6-I-1772, in: APM, SC, cód. 89, fls. 51-51V. 217 , Termo, s.d., in: APM, SC, cód. 163, fls. 52V-53. 218 , AEAM , Devassas – 1747-1748, fls. 31V-32. 219 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 32V. 220 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 11V. 221 , AEAM , Devassas – 1748-1794, fls. 18-18V. 222 , AEAM , Devassas – 1733 – outubro-dezembro, fls. 71 V.

13 .O A RC A IC O E O MODE R N O : H I S T ÓR I A DE U M A A M I Z A DE

Igualmente heterogênea era a freguesia da crioula forra Francisca, que morava na Queimada de Vila Rica e lá consentia “não só a negros, como também a brancos, como são uns que andam vendendo pelas portas fazendas”.222 No Tijuco, Rosa Pereira da Costa, mulher parda, dava casa de alcouce para uma infinidade de pessoas, “em forma que nela se ajuntam todas as noites quase todas as mulheres damas que há neste arraial e quantidade de homens de toda qualidade, e na dita casa estão todas as noites até fora de horas conversando e tratando uns com os outros descompostamente”, “fazendo saraus e galhofas”.223 No caminho do Padre Faria, num local chamado Piçarrão, o preto forro José dava casa de alcouce apenas a negros e negras.224 Josefa Maria de Souza tinha no Ouro Branco, em Vila Rica, um misto de estalagem e casa de prostituição. Abrigava “toda a casta de passageiros”, cozinhando para eles e também lhes prestando outros serviços; era infamada de servir “aos hóspedes, em atos torpes e lascivos, por si e sua filha Jacinta, e por Rosa mulher bastarda que tinha em sua casa, e lhe tirava contas do que davam por seus atos ilícitos, e quando os hóspedes eram muitos e eram necessárias mais mulheres as convocava deste arraial, e também de outras partes, vinham assistir à sua casa, para o mesmo torpe lucro”.225 A estalagem era o seu modo de vida, mas a prostituição aparecia como oportunidade de aumentar os rendimentos. E , Feitiçaria , Se na Europa o momento áureo da feitiçaria foi o século XVI ,226 a feitiçaria foi o seu agente privilegiado. Tida como

223 , AEAM , Livro de Devassas – Comarca do Serro do Frio – 17348, fls. 73 V, 74 V e 75. 224 , AEAM , Devassas – 1733 – outubro-dezembro, fls. 71 V. 225 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 67 V-68, 69, 70, 71. 226 , Cf. Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, c.III , item Sur les Chemins du Ciel, de la Terre et de l'Enfer, passim.

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mais pérfida do que o homem, a mulher apresentaria sempre uma quantidade menor de fé ( foemina = Fe e minus, ou seja, fé de menos).227 É curioso constatar, nas Minas do século XVIII , a grande incidência de feiticeiros homens – mais numerosos talvez do que as mulheres. Isto se deve em grande a parte à sua extração social, homens pobres que eram, negros forros e, algumas vezes, escravos: ora, nas culturas primitivas, africanas e indígenas, a magia é desempenhada sobretudo pelos homens. Houve mulheres feiticeiras, como a negra forra Luzia Lopes, que chegou a ser chicoteada por suas práticas escusas em Conceição do Mato Dentro.228 Moradora no córrego do Brumado, a parda Timótea Nogueira havia sido anteriormente agregada na fazenda do capitão José Antonio das Neves, que a lançou fora por feitiçaria; dizia esta mulher que era capaz de fazer vir o demônio à sua presença todas as vezes que quisesse, sabendo certos segredos “para facilitar as mulheres aos homens para terem entre si cópula”.229 Prostituição e feitiçaria confundiam-se algumas vezes.230 Publicamente conhecida como meretriz, Custódia era também “infama227 , Jean Gouglet, Um Portrait des Sorcières au xv Siècle”, em Allard et al., Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, p. 137. Jean Delumeau fala do sentimento contraditório, misto de veneração e de medo, que os homens têm em relação às mulheres através dos séculos; o medo de mulher seria característico às sociedades patriarcais. Cf. Jean Delumeau, La peur em Occident – XIV-XVIII siècles, Paris, 1798, c.10, Les Agents de Satan – III – La Femme , p. 305-45. Thomas S. Szasz, ao tratar do Malleus Maleficarum – obra medieval sobre feitiçaria –, diz tratar-se de “uma espécie de teoria científico-religiosa da superioridade masculina, justificando — e, na realidade, exigindo – a perseguição das mulheres como membros de uma classe inferior, pecadora e perigosa de indivíduos” – A fabricação da loucura, Rio de Janeiro, 1976, p.36. 228 , AEAM , Livro de Devassas – janeiro 1767-1777, fls. 32-32 V. 229 , Ibid., idem, fls. 67V. 230 , Para se assegurarem da constância dos amantes, as prostitutas não hesitam em usar “filtros de amor”, sortilégios vários e chegam até a fazer apelo ao diabo. Cf.

da de feiticeira”; certa ocasião, quando a mulher de uma das testemunhas que a incriminaram achava-se “doente de partos”, “sucedeu ir-se enterrar o sangue do dito parto”, achando-se a tal Custódia na função do enterro, “e que para isso pedido ansiosamente”. Tempos depois foi encontrado um embrulho de uma seda ou tafetá semelhante ao da roupa de Custódia, contendo “um pouco de sangue do mesmo parto com unhas, cabelos, ossos e um espinho de (ileg.) caxeiro, donde se originara a suspeita de ser a dita Custódia a que fez a dita embrulhada”.231A prostituta Arcângela, moradora do Tijuco, era acusada de ter feito pacto com o diabo “de lhe dar os filhos que parisse para por este meio ter fortuna por cuja razão lhe chamam a mulher do diabo”. Essa desconfiança adveio, ao que tudo indica, de uns acidentes uterinos ocorridos com a mulher em casa de terceiros, quando se cogitou que tivesse tomado algo “para ter fortuna”. O médico que a acudiu disse “ter desconfiado, pelas expressões e gestos de Arcângela, que com elas e passava algo de sobrenatural, mas acabou vendo que eram folhetos uterinos”. Houve testemunhas que protestaram contra a suspeita de feitiçaria, afirmando ser Arcângela “uma pobre moça que não tem nada de seu”.232 As acusações de feitiçaria contra homens são inúmeras. Um escravo de Bernardo Pereira Brasil curava “fingidamente com enganos, mostrando tirava (sic) ossos e outras drogas dos corpos daqueles a quem curava, chupando-os com a boca, e dizendo que por este modo tirava os feitiços”;233 como pena, foram-lhe impostos 60 açoites a serem dados por seu amo na principal rua do arraial.234 Próximo às Congonhas do Campo vivia o negro Domingos Caldeireiro,

Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 252. 231 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 17-17 V. 232 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 84, 87, 88, 88 V-89, 75. 233 , Ibid., idem, fls. 97. 234 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 47. 235 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 49.

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diversas vezes culpado e preso “por fazer curas com feitiçarias”, permitindo também em sua casa ajuntamento de negros, danças e batuques.235 “O Careta era um negro cujo antigo dono morrera, e que costumava ser visto nas imediações da Vila do Príncipe “com uma panela fervendo sem fogo”, donde considerarem-no feiticeiro.236 Amancebado com Francisca Correia, preta forra, vivia um escravo cujo nome não é citado e que costumava adorar em sua casa ao “deus de sua terra”, corporificando numa panela que ficava pendurada no teto; serviam-lhe guisados, pedindo-lhe depois licença para os comer, e ao seu redor faziam também “suas festas e calunduras”. O negro tirava brasas do fogo com a boca, deitando-as depois na água a fim de lavar uma crioulinha que com ele morava, e para evitar castigos de seu senhor costumava untar o corpo com o suco de um pau do mato.237 Muito frequentador das prostitutas era o mulato forro Antonio Julião, mestre sapateiro morador no arraial da Roça Grande e que vivia separado de sua mulher; usava de feitiçarias para ser querido das meretrizes, e “no Sabará ia o dito mulambo juntar-se de noite com mas mulatas damas no sítio da Forca, e ai usava com elas de feitiçarias para lhe adquirir fortunas”.238 Na Vila do Príncipe costumava aparecer um escravo chamado José, que punha no chão um prato d'água e fincava ao seu lado uma faca de ponta; fazia a seguir umas perguntas “às quais respondia de junto do prato uma vozinha a modo de chiar de morcego, que ele, testemunha não entendia, porém que o tal negro dizia que aquela dita voz queria dizer a moléstia ou achaque que cada qual tinha”; a testemunha, incrédula, achou que estes artifícios destinavam-se unicamente a angariar fundos para o negro, mas nem por isso deixou de falar dele como feiticeiro ao vigário visitador.239 O preto Inácio, de nação mina e morador no Piçarrão, era casado tinha família e vivia de 236 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 7 V. 237 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 96-97. 238 , AEAM , Livro de devassas – janeiro 1767-1777, fls.47. 239 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 52-52 V. 240 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls.106.

14 . PR E FÁC IO A T E M P O DE C L I M A

fazer curas com raízes, viajando de um lado para outro mentado em seu cavalo; fora já preso por superstições e feitiçarias.240 A história de Paulo Gil, pardo forro, apresenta francos traços de feitiçaria. Dizia-se que tinha pacto com o demônio, havendo provocado a morte de várias pessoas. Andou certa vez amancebado com uma escrava de nome Rita, e na ocasião a dona desta foi contra o romance. Paulo Gil ameaçou a senhora, que a partir de então começou a definhar, experimentando “tanto dano na sua saúde, que está (ileg.) a morrer, e da mesma sorte a referida escrava experimentou tanto dano da saúde que de repente se viu cheia de malefícios.”, que só foram curados à custa de exorcismos dos sacerdotes católicos. Paulo Gil jactou-se então de que faria todo o dano que pudesse à família dos senhores de Rita, assim como à escrava. Murmurava-se ainda que o pardo costumava pedir a alguns negros “o seu próprio sangue para com ele escrever cartas ao demônio, prometendo-lhes forças agigantadas e outras coisas mais”. Um desses rapazes, o pardo forro João Batista, que contava com 20 anos, deixou registrado na mesa da visita o seguinte depoimento: […] estando ele testemunha em casa de Antonio Rodrigues donde estava também Paulo Gil aí lhe disse o dito Paulo Gil (…) se queria ter mandinga para ninguém poder com ele (…), e neste lhe mostrou um pedaço de pedra de cor parda que lhe disse era pedra de Ara, a qual quis moer para lhe dar (…) a beber, o que ele testemunha não quis consentir, e apartando-se do dito Paulo Gil o mesmo Paulo Gil foi seguindo ele (…) persuadindo-o sempre a que quisesse ter a dita mandinga, em cujas persuasões continuou o tempo de 8 dias, do que ele testemunha sempre repugnou, até que em uma noite levou a ele testemunha a um caminho de encruzilhadas, e deixando-o (…) no referido sítio lhe disse que o esperasse aí um pouco de tempo que ele logo vinha, e com efeito ele testemunha ficou (…) e passado um instante chegou o dito Paulo Gil com 7 ou 8 figuras negras todas de forma humana, e apenas chegou disse a ele (…) estas formais palavras – aqui estão 241 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 50-51 e 52. As reticências substituem as expressões “ele testemunha” ou “testemunha”, que, excessivamente repetidas, atrapa-

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os nossos amigos – o que vendo ele testemunha e ouvindo entrou a tremer, e a experimentar os cabelos arrepiados, e com o dito temor disse (…) ao dito Paulo Gil que esperasse que ele (…) logo vinha, e com efeito se retirou cheio de pavor para sua casa, e depois topando-se com o mesmo Paulo Gil este com ele pelejara, dizendo que lhe fizera boa em lhe faltar, persistindo sempre em o persuadir que tivesse a dita mandinga, até que passados mais alguns dias o mesmo Paulo Gil, andando a dormir ele testemunha o feriu em uma parte de um quadril com cuja dor acordando ele (…), e achando-se ferido, lhe perguntou porque razão ele o ferira, ao que ele dito Paulo Gil respondera, que era para dar o sangue àqueles amigos que ele tinha visto aquela noite, por cujo motivo lhe prometia (…) que havia de ter forças que ninguém havia de poder com ele (…), ao que ele (…) respondeu que não queria tais amigos; e logo (…) viu levantar um redemoinho no vento de tal forma que tudo levava comigo, de que ficou ele (…) tão cheio de medo que entrou a chamar por Santa Ana, e desde então até agora não quis ter mais comércio com o dito Paulo Gil […] 241

Excetuando-se este caso, onde surge com força o sobrenatural e os pactos demoníacos, a tônica dos outros episódios de feitiçaria é a cura e o misticismo de raízes africanas. O que transparece em todos eles é uma certa dificuldade de integração ao meio social por parte dos indivíduos que exercem essas práticas. Havia, por um lado, o repúdio da sociedade negros em sua grande maioria, esses indivíduos traziam na cor da pele a presença de um mundo secreto e desconhecido, de que a feitiçaria era um dos ecos ameaçadores. O africano podia ser escravo dócil e serviçal; mas por detrás dessa aparência inofensiva escondia-se o protagonista da rebelião e da revolta, o representante misterioso e traiçoeiro de uma humanidade diferente e perigosa, o feiticeiro que subvertia o mundo ordenado dos brancos e instaurava o caos. Por outro lado, existia uma defasagem entre práticas mágicas calha a leitura. 242 , “... as atitudes mentais tradicionais envolvem a propriedade privada de meios de defesa que a sociedade capitalista apenas reforçou e continuou”. Geremeck, Cri-

racterísticas de uma cultura primitiva e o seu novo meio sociocultural. Agente da circunscrição do mal tacitamente reconhecido e aceito por seus semelhantes, o feiticeiro perdia, na colônia portuguesa, a sua função original. É claro que muitas formas de seu saber foram preservadas, e a elas muita gente recorreu. Mas, fora do seu círculo, longe daqueles que, como ele, ainda preservavam essa forma de saber, a feiticeira e o feiticeiro foram vistos como desclassificados. F ,Roubos , Como atividade mais regular e organizada, o roubo parece requerer a ação coletiva: é então que se torna especialmente perigoso e ameaçador para a propriedade; entretanto, como recurso individual e intermitente, não alcançou grande destaque entre as práticas criminosas, e a documentação não se atém a ele de modo especial – situação bastante diferente da encontrada na Europa, onde, desde Idade Média, era enorme o rigor da justiça ante o furto.242 Na camada fluida que foi a dos homens pobres, acabava se tornando um expediente a mais, de que tanto o soldado como o vadio, tanto o capitão-do-mato como o quilombola, tanto o pequeno artesão como o roceiro pobre podia lançar mão esporadicamente. As casas ofereciam então pouca segurança, e os ladrões entravam nelas sem maiores dificuldades – conforme se viu pela frequência dos casos de arrombamento. Para isso, bastava forçar as rótulas, as portas, ou, como diz um bando do tempo de Assumar, arruinar as paredes com socavões.243 Os pequenos roubos permearam portanto toda a camada dos homens livres pobres. Manuel Pinto Biscaia registrou querela contra Fulano de Campos por este lhe ter furtado um pouco de milho.244 Antonio Gomes, morador no Padre Faria, foi acusado de roubar minalité, vagabondage, paupérisme .., p.342-3.

243 , “Ordem de Assumar aos capitães-do-mato para prenderem todo negro que for encontrado na vila ou fora dela depois das 9 horas da noite” – 15-I-1718, em: APM , SC , cód. 11, fls. 210 V.

244 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27. 245 , Ibid., idem, fls. 102.

umas pistolas a João Roiz na noite de 28 de março de 1735.245 No caminho da serra do Tapanhoacanga, roubaram a João Cerqueira da Costa a importante soma de 532 oitavas, além de papéis e roupas.246 Na casa de José Gomes, morador na Chapada, entraram uns homens com máscaras e lenços na cara, levando vários objetos de ouro lavrado.247 O furto de gado e de cavalos aparece como uma atividade mais organizada, exercida por indivíduos isolados ou por pequenos grupos. Mateus de Moura Pinto, pardo forro, e Antonio da Encarnação foram ladrões de cavalos que acabaram na cadeia.248 Além de andar desavergonhadamente com a amásia crioula encarapitada nas ancas de seu cavalo, além de promover na casa dela “batuques de danças proibidas e desonestas”, Dionísio Gonçalves de Barros furtava os seus cavalos dos pastos, vivendo de os trocar e “de comer gado alheio”. Sabendo disso, muitas vezes os oficiais da justiça tentaram prendê-lo, mas sempre sem sucesso devido à turbulência do ladrão, que era temerário a ponto de ouvir missa com esporas e de arremeter contra o padre capelão, que, certa vez, o quisera admoestar e acabara levando “muita pancada na porta da sacristia”.249 Donos de um pequeno pouso na freguesia de Itaverava, Manuel Pacheco e Antônia Lopes tinham um filho chamado José, que vivia com uma escrava da casa, Loureça. Antônia Lopes, mulher “de má consciência” mandava no marido e criava os bastardinhos do filho, instruindo-os na prática do furto e do gado, a que se dedicava também José. Certa vez, mataram duas vacas de propriedade do juiz vintenário, conduzindo a carne dentro de um carro, coberta por ramos de árvore. A fama dessa família sinistra começou a ser celebrada até em pasquins anônimos, e muitos viandantes deixaram de se arranchar 246 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27. 247 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 106 V. 248 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 120, APM , SC , cód. 145, fls. 1. 249 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 87 V. 250 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 87 V. 251 , Ibid., idem, fls. 14, 15 V e 16.

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em seu pouso.25o Bento Luís e Inácia, parda quartada, viviam amancebados por ser ele casado no Rio de Janeiro, e jaziam “adormecidos na excomunhão”; tinham filhos, e eram todos conhecidos publicamente como ladrões de cavalos.251 A publicidade de todas essas infrações não chegava entretanto a colocar os seus fautores fora do convívio da sociedade. G , Mortes , Muitas das tensões manifestadas pelas arruaças, pelas rixas e pelos ferimentos podiam degringolar em morte. De repente, numa manhã de janeiro, aparecia no campo de São José o corpo de uma menina parda de nome ignorado, enquanto surgia boiando o cadáver de um afogado na cachoeira da roça do capitão-mor Henrique Lopes.252 E, pelos anos afora, mês após mês, divisavam-se cadáveres pelas serranias mineiras assim que as brumas matinais começavam a subir: amarrado a um esteio, no alto do Caquende, o preto Angola Antonio do Rosário; atirado na borda de um rio, junto à ponta do Rodeio da Itatiaia, um homem branco que ficou sem nome; no fundo de um poço natural, no rio da Barra do Ouro Preto, Manuel de Oliveira Guimaraes; enforcado na Cachoeira, outro branco que permaneceu incógnito através dos séculos.253 Alguns ficavam ocultos em capoeiras, como os que se encontra no caminho das lavras novas da ponte da Olaria de Baixo “e se conheceu ser um de pessoa branca e três de negros”.254 Nesses casos, o reconhecimento do corpo se tornava difícil, e nem a cor do infeliz podia ser definida com segurança.255 Houve os que foram descobertos quando já ia avançada a sua decomposição, e esse foi o caso de um corpo “ao parecer branco” que se achou numa roça que beirava 252 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 82 V; APM , CMOP, cód. 29, fls. 106 V.

253 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 21; APM , CMOP, cód. 19, fls. 115; APM , CMOP, cód. 47, fls. 14; APM , CMOP, cód. 19, fls. 106. 254 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 96. 255 , “Tem devassa da morte de um homem que não pode averiguar se era branco, ou não, achado na serra”. – 10-IV-1737, em: APM , CMOP, cód.19, fls. 111. 256 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 61 V. 257 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 101 V; APM , CMOP, cód. 19, fls. 102.

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a estrada de Itaverava, “em cujos ossos, caveira e mais roupas se fez corpo de delito em 21 de fevereiro de 1762”. 256 Muitos encontraram a morte dentro das vilas e dos arraiais: numa noite de janeiro, o crioulo forro Antonio Afonso caiu sem vida na rua das Cabeças, em Vila Rica, onde, no beco da cadeia, foi morta uma mulata desconhecida. 257 Em certas ocasiões, um só conflito liquidava vários homens, como ocorreu aos forros Francisco Batista, crioulo, e João Batista, cabra, que morreram juntos com um negro quilombola em uma briga que, na paragem chamadas as Cruzes, envolveu ainda outros negros fugidos.258 Mas havia também os casos de vários homens dando cabo de um, e isto sucedeu na devassa que se fez da morte de Ângelo Pereira, da qual saíram culpados quatro indivíduos.259 Muitas dessas mortes ocorridas nas vilas e seus arredores ficaram sem punição, pois nunca se soube quem as provocou. Outras tiveram as culpas apuradas. Assim, sabe-se que o autor da morte de Manuel Pereira dos Santos, crioulo forro, foi o mulato João Guedes;260 que a mão que esfaqueou Roque de Tal na barriga, por baixo da costela esquerda e com “uma faca flamenga muito velha e ruim”, foi a de seu irmão Manuel de Tal, que contava onze anos, um a mais do que a vítima.261 De causa de algumas dessas mortes ficaram registradas descrições detalhadas. Um pardo encontrado no morro dos Ramos, em Vila Rica, apresentava vários ferimentos profundos na cabeça, na perna e no pé.262 O crioulo Manuel, morto nas imediações do Tijuco, levara “uma estocada por cima da teta esquerda, do tamanho de uma polegada, de que lançava muito sangue, e mostrava ser feita 258 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 114. 259 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 91 V. 260 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 104. 261 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 112. 262 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 111 V-112. 263 , Ibid., idem, fls. 112. 264 , Ibid., idem, fls. 112V.

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com instrumento furante”, além de ter também uma cutilada na mão esquerda.263 Antonio Fernandes de Azevedo, viandante do caminho, foi achado morto “com 14 feridas da barriga até os peitos, que mostravam serem feitas com instrumentos de ferro, faca ou coisa semelhante, e nas costas um rombo de tiro de bala que passou aos peitos sem chumbo algum, e na mão direita oito feridas, e na esquerda sete, que todas pareciam terem sido feitas com o mesmo instrumento, e ponta de faca”.264 Por detrás de muitos desses crimes estavam motivos passionais. Casada com José Francisco, homem branco, Rosa matou o marido auxiliada por dois negros, mas a devassa mostrou a participação de outros dois indivíduos: Francisco da Costa Lima, primo de Rosa, e um mulato de alcunha “o Pernambuco”. 265 Ana de São José, mulata, por antonomásia “a mulata do porto”, matou com veneno o seu marido, Antonio da Silva Costa.266 Em 1736, Maria Pedrosa foi autora de um crime passional no Serro do Frio, assassinando o marido e jogando seu corpo num rio, para depois, em trajos de homem, fugir com um mulato para a freguesia de Curral del Rei. EM seguida, alcançou a capitania do Rio de Janeiro, onde, em Inhomirim, ficou assistindo em casa de Manuel Francisco, cangalheiro com quem ia se casar.267 Havia os assassínios que permaneciam envoltos em mistério, e a leitura atenta dos documentos que os narram faz pensar em histórias escusas de abusos de poder. O escrivão da vara de São João del Rei havia sido incumbido da penhora dos bens de Matias Ferreira, podendo prendê-lo se preciso fosse. Acompanhado de outro oficial e de alguns soldados, dirigiu-se para a casa do indivíduo, cercando-a. Saiu então da casa o sogro de Matias, empunhando uma faca e 265 , APM , CMOP, cód. 145, fls. 109 V. 266 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 86. 267 , Carta de Gomes Freire a Martinho de Mendonça – 8-XI-1736, em: RAPM , XVI , 2, p. 376-7.

268 , “Requerimento que a S.Exa., fez João Batista Pereira, escrivão da vara do Meirinho da Ouvidoria da Vila de São João del Rei” – 4-VI-1772, em: APM , SC , cód. 186, fls. 156.

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ameaçando resistência. Intimado a se render, fugiu, saltando por cima de um córrego de modo tão desastrado que caiu sobre a faca e morreu. Essa foi a história que o escrivão contou, mas houve quem a narrasse de modo diferente – segundo ele, “pessoas suas inimigas e mal afeitas”, que o desejavam incriminar. O que se sabe é que o escrivão passou um mau bocado, procurando provar sua inocência. Os documentos não dizem se o conseguiu.268 Igualmente escusa é a história da morte de Antonio Garrafa, preto crioulo que o soldado José Alves da Silva assassinou no arraial do Tijuco. A ronda militar andava pelas ruas na noite de 15 de julho; deveria ser onze horas ou meia-noite quando os soldados ouviram tocar batuques em casa de José Batista (ou Roberto) Rolim, “e supondo seria algum ajuntamento de salteadores de cargos diamantinos, aos quais vulgarmente se chamam garimpeiros, entraram a longe (sic) das ditas casas...”. Delas saiu espantado o negro Garrafa, e sobre ele disparou o soldado José Álvares, provocando sua morte imediata. Ouviram-se várias testemunhas, e não ficou provada a resistência que, no dizer do assassino, lhe fizera o Garrafa. O auto do corpo de delito igualmente negou que o crioulo tivesse enfrentado o soldado, “pois mostra que o falecido recebeu o tiro da espádua esquerda até o pescoço, e em ação mais natural de quem foge do que quem comete e resiste”.269 Alguns criminosos passavam de uma capitania para outra, e os governantes trocavam cartas e deliberavam sobre as diligências a

269 , Cartas e devassa da morte de Antonio Antunes, crioulo forro, por alcunha o Garrafa – APM , SC , cód. 223, fls. 37-39. O dono da casa em que se achava o Garrafa – e que aparece na devassa ora como José Batista Rolim, ora como capitão José Roberto Rolim – era suspeito de contrabando de diamantes. Talvez pertencesse à família do padre Rolim, bastante envolvida com esta prática. Cf. Maxwell, ob.cit., p. 145. 270 , “Carta do conde de Valadares ao Morgado de Mateus” – 18-II-1770, em: DI , XIV, 1895, p. 270-1. Ver também as outras cartas da correspondência entre Valadares

e o Morgado de Mateus, no mesmo volume; “Para todos os oficiais dos registros so-

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serem feitas para a sua prisão. Não sabemos qual o crime de Manuel da Costa Jardim – “réu delinquente em homicídio horroroso” –, mas por dois anos – de 1768 a 1770 – ele foi assunto de várias cartas que entre si trocaram o conde de Valadares e o Morgado de Mateus, capitães-generais de Minas e de São Paulo. Valadares pedia “cautela e segredo” na sua captura, e enviava ao colega de administração um memorial contendo os sinais do réu. Natural da freguesia de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira do Campo, era filho de mulher parda e homem branco, sendo considerado pardo ou mulato; tinha “uma costura na cabeça”, o cabelo preso, a fisionomia carrancuda e sinistra, o porte espigado e um “dente adiante quebrado, ou podre”. Nesses dois anos, dois indivíduos foram presos por engano. Afinal, o governador de Minas conseguiu localizá-lo: “Agora eu tenho a certeza, e notícia, que ele se acha no Convento dos Capuchos dessa cidade (São Paulo) por recomendação de um sacerdote desta capitania a um religioso, cunhado de um médico, aqui assistente; servindo no convento de hortelão, ou cousa semelhante”.270 Caso curioso é o de Inácio Alves de Queiroga: assassinara um ourives e seu escravo, roubando-lhe quarenta mil cruzados; depois disso, recolhera-se para os confins do Itambé de Dentro, lá ficando acastelado numa construção fortificada que, a 27 de setembro de 1736, o sargento-mor Romão Gamacho invadiu com o objetivo de o prender. Ao delinquente não adiantaram “os cães de fila, armas, seteiras da casa, e artifícios de pólvora, que dizem tinha, e se lhe acharem uns em forma de morteiros, com pedras e metralha formados de tamarasses cingidos de couros e fortificados com cordas e outros para fazer voar quem lhe assaltasse a porta...”.271 bre haver recomendado segunda vez a prisão do Jardim”, em: APM , SC , cód. 163, fls. 46-46 V; “Circular aos capitães-mores para que seja preso o mulato Manuel Gomes (sic) Jardim onde for achado ou encontrado nas jurisdições de cada um deles com o memorial incluso”, em: APM , SC , cód. 163, fls. 20 V-21. 271 , Cartas de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 8-XI-1736, RAPM , 2, p. 376-7. 272 , “Para o alferes Francisco José de Aguilar que se acha em Paracatu e igual-

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, Falsários e extraviadores , Dentre todas as categorias de in-

fratores, talvez seja esta a mais difícil de definir socialmente. Havia extraviadores modestos e os havia graúdos, conforme vem sendo dito no curso deste trabalho com bastante frequência. Os limites do extravio são igualmente difíceis de precisar, pois nunca se sabe se sua dimensão era real ou fantasiosamente aumentada pelas autoridades e pelos rigores desvairados do fisco. Muitos faiscadores miúdos foram acusados de extravios, muitas negras forras tiveram suas lojas colocadas sob suspeita. Por toda parte, o Estado via pessoas “com grandes astúcias e malícias” que procuravam fraudar a Real Fazenda. Dizia um documento oficial que os moradores recolhiam e ocultavam em suas casas os extraviadores, “os quais são brancos, pretos, mulatos, estes se confundem com escravos e pessoas domésticas dos mesmos moradores, e pelos matos vizinhos também se fazem extravios”. Os descaminhadores eram capazes de lançar mão dos mais complicados estratagemas, daí a necessidade de agir com vigilância e atenção, revistando as pessoas que iam pelas estradas, “examinando os trastes que traz com toda miudeza, advertindo que entre outras indústrias que a sua má inclinação lhe advertem, são levar o ouro na barriga dos cavalos, e entre as suas ferraduras, nos bornais da sela e seu cochim, nas coronhas das armas, nos saltos e solas (…) das botas, ou sapatos, e em outras muitas semelhantes partes”.272 Várias foram as acusações que se fizeram de moeda falsa, como a que recaiu sobre João Teixeira Soto Maior, Inácio Alves, ourives, e Domingos dos Santos, um deles conseguindo fugir da cadeia em que haviam todos sido encarcerados.273 Em 1731 foi descoberta a famosa quadrilha dos falsários que atuava na serra da Paraopeba, mente para o alferes José Gonçalves Lima, que se acha em Jacuí” – carta do conde de Valadares – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5. 273 , “Provisão régia sobre a prisão de vários indivíduos, acusados do crime de moeda falsa nas Minas” – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5. 274 , Cf. Boxer, A idade de ouro..., p. 220; Carta régia sobre a prisão de vá-

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dirigida por Inácio de Souza Ferreira e contando com protetores influentes, entre os quais se dizia achar o próprio secretário de D. Lourenço de Almeida e um irmão do rei, o Infante D. Francisco. Tinham boas instalações e contavam com mais de 30 escravos negros bem armados.274 Em 1731, um grande grupo de extraviadores havia passado ao largo do Registro do Rio Paraibuna, para tal servindo-se de uma picada oculta no mato. Foi mandada em seu encalço uma patrulha de vinte soldados e mais doze negros cedidos por um habitante da região, e sobre eles dispararam os infratores assim que os viram. A patrulha bateu “vergonhosamente” em retirada, largando três armas em poder daqueles, que eram uns quarenta negros. Os infratores tinham mais de quarenta arroubas de ouro, além de “cousa de 15 armas, entre clavinas, e pistolas”. Nada fica dito sobre o desenlace do episódio”.275 Uma vez presos, o destino dos extraviadores e falsários podia ser a cadeia do Limoeiro em Lisboa, para onde se deliberou que fosse mandado o extraviador de diamantes Antonio Trintão Barbosa.276 Mas podia ser também o degredo, como ocorreu a seis do falsários detidos no Serro, que o governo da capitania enviou para a Ilha de Santa Catarina.277 No desterro, muitos, renitentes, voltavam para as Minas: “Manuel Mendes, que V.Exa., mandou para a Colônia por falsário, tornou para sua casa onde vive muito contente, e sabendo rios indivíduos acusados de moeda falsa nas Minas – 12-VIII-1732, em: DI , XLIX , 1929, p. 253-5.

275 , “Provisão régia sobre um grande descaminho do ouro nos quintos, mandando abrir devassa, a afim de serem punidos os culpados.” – 23-II-1731, em: DI , XLIX , 1929, p. 224-6. 276 , Carta de Joaquim Manuel Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Menezes – 28-IV-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 27 V. 277 , “Para Matias Coelho de Souza Mestre de Campo Governador do Rio” – 5-IV1743, em: APM , SC , cód. 84, fls. 17-17 V. 278 , “Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade (…) para o sr. Martinho de Mendonça...” – Carta de 8-XI-1736, em: RAPM , XVI , 2, 1911, p. 376-7. 279 , Cf. “Lista de pessoas envolvidas no tráfico de diamantes”, Tijuco, 7-XII-1752

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que eu tinha dado ordem para se prenderem todos os que remetidos por ordem de V. Exa., em leva voltaram às Minas, recorreu dizendo voltara com despacho de V.Exa., que deixara no Registro”. Evidentemente, não havia despacho nenhum, e o novo destino de Manuel Mendes parece ter sido um dos presídios do sertão.278 Muitos eram os que o governo tomava por envolvidos no tráfico, e que nem sempre o exerceram: andantes do caminho, vendeiros, carpinteiros, administradores do contrato, feitores, pretas forras sem ocupação especificada.279 A sua procedência social podia ser diversa, mas a punição, quando vinha, acabava irmanando-os na desgraça comum: e assim agia o Fisco como mecanismo desclassificador. Como muitos outros casos de infração examinados até agora, nem sempre o extravio e a falsificação de ouro foram exercidos por elementos avulsos. Houve solidariedade a uni-los, como no caso da quadrilha da Paraopeba. Talvez se pudesse dizer que descaminhadores, falsários e contrabandistas representam uma forma mista, em que o aspecto grupal se manifestou com certa constância. Mas foram os bandidos das estradas, os garimpeiros e os ciganos – além, evidentemente dos quilombolas – as categorias infratoras que maior espírito de grupo apresentaram. 4. INFR ATOR ES E INFR AÇÕES:ASPECTOS DE GRUPO A , Cigano , Como ocorre ainda hoje, o simples fato de ser cigano era motivo de desconfiança, conforme transparece numa formulação que, em 1737, fazia Martinho de Mendonça: “Pelo que toca a ciganos, as queixas que há são só por serem ciganos, sem que se aponte culpa individual”.280 Indivíduos estranhos, de procedência desconhecida, pele morena, cabelos longos e barbas hirsutas, o que mais inquietava neles era o fato de andarem sempre juntos, em grue 10-I-1753, em: APM , SC , cód. 69, fls. 103-104. 280 , “Das cartas do Exmo.sr. Gomes Freire de Andrade... para o sr. Martinho de Mendonça...”, 12-III-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 399. 281 , “A devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder dos ciganos João Manuel e outros, no sitio dos crioulos” – 25-IX-1800, em: APM , CMOP, cód. 47, fls. 128. 282 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27 V.

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pos, “aos magotes”. Eram tidos por inveterados ladrões das estradas, sempre às voltas com o roubo de cavalos.281 Apresentavam acentuada solidariedade de grupo, pois tinham a uni-los, mais do que tudo, a identidade cultural e a “nacionalidade” comum. Brigavam entre si, muitas vezes se baleavam – em 1738, o cigano Fernando deu querela de seu compatriota João Batista e de outros companheiros que haviam atirado em seu filho João –,282 e foram frequentadores assíduos das cadeias mineiras.283 Não hesitaram em se misturar com outros grupos de colonos, e em 1755 consta que andavam “vadiando e furtando bestas junto com mulatos, carijós e gente da terra”. Muitas ciganas viveram com os homens pobres e mesmo com os mais bem situados socialmente, como a que Isidoro Coelho de Figueiredo conservava ciumentamente reclusa em sua casa.285 O sertão foi palco de várias de suas tropelias. Já no tempo do conde das Galvêas, andava para os lados do rio São Francisco uma expedição para prender os ciganos que cometiam roubos, vagando em quadrilha com mamelucos e ladrões.286 Seu número aumentou bastante quando o vice-rei ordenou que fossem despejados da Bahia, ocasião em que entraram na capitania das Minas; mas Martinho de Mendonça não julgou oportuno persegui-los, optando por deixá-los em paz e punir apenas os que cometessem delitos: “... por ora me parece acertado, castigando aos que cometerem algum insulto, não intender (sic) com os mais porque não suceda juntaram-se em alguma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas consequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos os dragões deste presídio”. O governador interino dizia ainda que, 283 , Cf. APM , SC , cód. 145, fls. 15 V e fls. 108. 284 , Carta de 15-IX-1755, APM , SC , cód. 69, fls. 144. 285 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 38-38 V. 286 , Cartas de Martinho de Mendonça a Gomes Freire — 11-VIII-1736, 26-IX1736, em: RAPM , XVI , 2, p. 351 e 381. 287 , Carta de 13-I-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 394. 288 , Carta de 13-II-1737, ibid., p. 273. 289 , Carta de 18-VII-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 446.

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caso Bobadela achasse que podiam ser úteis no rio da Prata, para lá seriam enviados.287 Outro local para onde se expediam ciganos infratores era Angola.288 Com o intuito de prender alguns para com eles fazer uma leva de eventuais soldados, Martinho de Mendonça acabou decidindo organizar uma expedição e atacá-los. Essa diligência foi realizada sem segredo, e resultou em fracasso. Querendo aproveitar a ocasião em que um destacamento interrompera sua marcha devido às febres do sertão, o governante ordenou que agissem contra os ciganos: “... tendo notícia que se achavam em um rancho 26 ciganos contando os filhos e escravos, e dizendo-lhe que estes publicavam haviam de resistir, juntou de Paisanos oitenta e tantas pessoas armadas” e caíram sobre os ciganos. Estes de fato apresentaram resistência, matando um dragão e ferindo outro, mas perderam dois homens e uma criança de peito. Os dragões conseguiram deter dois rapazes e várias mulheres, e o episódio foi considerado “uma desgraça”. Nada mais se sabe do fato, a não ser que os ciganos presos arrombaram a cadeia de Vila Rica e fugiram para Sabará.290 Não era raro ocorrerem choques entre ciganos e tropas do governo. Em 1773, os ciganos haviam tirado “violentamente das mãos dos pedestres” um rapaz de treze ou quatorze anos de idade que ia ser preso por ter furtado um cavalo nas proximidades de Congonhas.291 Alguns parece terem mantido boa inteligência com certos comandantes de destacamentos, como o grupo de João Galvão, que recebia apoio do comandante de Ouro Branco, pois “tendo-o podido prender em muitas ocasiões”, não o fizera.292

290 , Carta de 20-VIII-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 448. 291 , “Para o comandante do Rio das Pedras” – Vila Rica, 2-III-1773, em: APM , SC , cód. 199, fls. 12-12V. 292 , “Para o capitão-mor José Alves Maciel” – Vila Rica, 4-VIII-1777, em: APM , SC , cód. 215, fls. 95-95 V.

293 , “Requerimento feito a S.Exa. Em nome de João Marques da Silva, Alcaide da

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Contra os ciganos pesou também a suspeita de extraviadores de ouro e diamantes. O alcaide da Vila do Príncipe dirigiu requerimento ao governador falando deste assunto; segurando ele, os ciganos valiam-se “de caminhos, picadas e atalhos não seguidos a fim de pactuarem nos bosques e paragens solitárias os seus ilícitos negócios, permitindo-lhes aquela acautelada comunicação inaveriguáveis os delitos...”. Eram olhados com receio e desconfiança por serem “pessoas volantes, sem domicílio”, “pessoas inúteis” que estavam sempre cometendo furtos e intimidando as populações dos pequenos arraiais, “em que não têm forças para reparo do temor que se lhes infunde de os verem armados, sujeitando-se por ele a tudo o que eles querem”; assim, obrigados pelo receio, os habitantes abriam-lhes seus paióis e lhes cediam seus cavalos. Nos ciganos, o que mais incomodava era a itinerância, o “prejudicial e ambulativo giro”, o “repreensível ócio” em que viviam. Deveriam pois ser punidos, deixando-se em paz apenas os que decidissem “viver do B

, Bandidos , Nos caminhos difíceis e perigosos daqueles tem-

pos, era comum morrer gente assassinada por bandidos ou pelos próprios companheiros de viagem, “que suprimiam os respectivos sócios para não dividirem o ouro apurado nas negociações”.294 Em 1792, um certo Joaquim José de Castro mandou matar o arrematante da passagem da Barra do Sapucaí com o rio Grande; refugiou-se depois a três léguas dali, fazendo um séquito de matadores que passaram a assustar os viandantes que comerciavam pela região, “horrorizando e atemorizando os moradores”. Tomaram-se providências para a prisão do grupo, necessária “tanto para o sossego público como para serviço de Deus e de S. Majestade”. 295 Vila do Príncipe do Serro Frio. Contra Ciganos – e despacho que sobre ele deferiu o sr. General, tudo do teor seguinte...” – 22-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 99 V-101. 294 , Mafalda Zemella, ob.cit., p. 150. 295 , Carta do Juiz Ordinário João Coelho Duarte ao governador – 21-10-1782, em: APM , SC , cód. 223, fls. 22 V-23.

296 , Diogo de Vasconcellos, História média..., p. 245.

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Esses grupos de bandidos e salteadores dos caminhos foram numerosos nas Minas, mas nenhum assumiu as proporções da famosa quadrilha da Mantiqueira, descoberta no tempo de D. Rodrigo José de Menezes. Atuava numa região coberta por florestas e brenhas, por onde “se estendia a estrada do Rio em solidões até a Paraíba do Sul, interrompidas apenas por casas de rancheiros de espaço a espaço, servindo aos viajantes”. 296 Apesar de ermo, esse caminho nunca sofrera atentados graves, os rancheiros devendo fornecer animais frescos para as tropas reais, que transportavam enormes quantidades de ouro. A quadrilha da Mantiqueira foi talvez a única organização criminosa de vulto havida em Minas Gerais. Inicialmente, atacou apenas contrabandistas de ouro e diamantes, “gente cuja falta não se fazia sentir a não ser pelos cúmplices, e estes não caíam na facilidade de acusá-la, visto o rigor da lei, que os igualava no crime”. 297 Entretanto, quando começaram a desaparecer pessoas importantes, os bandidos se fizeram notar, dando origem a uma série de boatos sobre o bando. Divididos em duas turmas, residiam em dois lugares diferentes: Barroso e Ressaca. Os da primeira localidade espreitavam os viandantes que pareciam trazer grandes quantidades de ouro e que vinham de Goiás; os que ficavam a postos na segunda, vigiavam os que vinham do Tijuco ou do Serro. Possuíam um sistema de avisos, e uma vez feito o alerta, partiam para o alto da serra e lá aguardavam a passagem das vítimas. A quadrilha se compunha “de ciganos e de alguns mestiços carijós, sob a direção de um homem branco de barbas compridas, que se apurou ser Joaquim de Oliveira, por alcunha 'Montanha'”. 298 Demorou algum tempo para ser descoberta, tendo, nesse período, cometido várias mortes.

297 , Ibid., idem, p. 247. 298 , Ibid., idem. p. 248. 299 , Do ouvidor da comarca do Rio das Velhas, José Caetano Cesar Manitt i – 28-IV-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 26V-27.

300 , De Luís Ferreira de Araújo e Azevedo a R. Rodrigo José de Mene-

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Em setembro de 1782, desapareceu um importante morador do Tijuco que ia ao Rio tratar de negócios; José Antonio de Andrade, conhecido também como “o Assucreira”. Em abril de 1783, foi descoberto o cadáver de Antonio Sanhudo de Araújo, negociante de fazendas. Procedeu-se então ao interrogatório de várias testemunhas, mas muito pouco se apurou sobre a natureza e procedência dos criminosos. Começava a correr o boato de que os matadores eram “membros de uma infame quadrilha, que há longos tempos infesta os caminhos ermos, e vizinhos à serra da Mantiqueira”.299 O cigano João Galvão era membro importante do bando; antes de conseguir pôr as mãos nele, os soldados do governo prenderam alguns membros de sua família e vários ciganos a ele associados. Detiveram também Joana Pinheira, “irmã de Miguel Pinheiro, a qual era cônsul dos Galvões, e de Joaquim Montanha, fugidos”.300 Miguel Pinheiro de Rezende era outro membro do bando; caboclo, foi preso pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, e confessou “que Joaquim Montanha era o chefe maior e mais culpado da quadrilha, tendo dirigido em pessoa todos os assaltos da Serra, e que estava oculto em uma ilha tapada de mato...” 301 Francisco Botelho, um papudo casado com Francisca de Oliveira, cabocla como o marido, era cúmplice dos malefícios, e sabia do esconderijo de Montanha: este achava-se oculto com o auxílio do pai e da mãe, que lhe forneciam tudo o que era necessário. Os componentes da quadrilha acabaram sendo presos e sentenciados. Alguns foram remetidos para o Rio de Janeiro, por ordem do vice-rei; 302 de outros, ainda havia sinais no tempo em que governava a capitania o visconde de Barbacena, quando andavam pelas vilas de Mogimirim e de Mogiguaçu.303 zes – 9-V-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 27V-28V.

301 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 253. 302 , Ordem de 25-VIII-1784, in: APM , SC , cód. 242, fls. 30-30V; “Carta de Luis da Cunha Menezes a Tomás Antonio Gonzaga” – 16-VIII-1784, in: APM , SC , cód. 240, fls. 28-28V. 303 , “Para o visconde de Barbacena” – carta de Bernardo José de Lorena – 15-V-

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Manuel Henriques, o “Mão-de-Luva”, foi um curioso bandido do tempo da mineração. Diz a lenda que era mutilado e tinha a mão esquerda de couro. Explorava ouro clandestinamente, e também assaltava comboios. Estabeleceu-se numa região afastada – que algumas fontes dizem ser Cantagalo, mas que Diogo de Vasconcellos afirma ser Macacu –;304 constituindo uma verdadeira povoação de homens facinorosos e semidesclassificados, onde havia cerca de duzentas casas. Luís da Cunha Menezes mandou uma carta enganosa a essa gente, dizendo ter chegado a hora de legalizar a mineração naqueles ribeiros e que, com esse intuito, o governo enviaria emissários que procederiam à repartição das terras. Em março de 1784, Mão-de-Luva se opôs tenazmente à entrada dos homens do governo, no que foi seguido e apoiado por todos os moradores do lugar. Mas o régulo acabou se intimidando, pois “estava idoso e padecia de formigueiro nos pés e de uma chaga no nariz”.305 Dirigiu-se a Vila Rica e pediu perdão de suas faltas ao capitão-general; logrado, foi preso junto com sua gente e sentenciado no juízo da Intendência-Geral do ouro de Vila Rica. O que transparece nesse episódio é, mais uma vez, a utilização momentânea dos facinorosos, que se fixaram no sertão remoto e lá estabeleceram um povoado. Entretanto, à medida que o bandido foi se fortalecendo e se transformando em régulo, o governo passou a suportá-lo mal, tendo por fim que eliminá-lo: falou-se então de “povoar-se aquele inculto sertão por vassalos úteis e industriosos, 1790, em: DI , XLV, 1924, p. 240. 304 , Mawe, ob.cit., p. 139-41; Ofício do vice-rei Luis de Vasconcellos e Souza com cópia da relação instrutiva e circunstanciada para ser entregue a seu sucessor – 20-VIII-1789, em: RIHGB , IV, 1842, p. 24-5. Diogo de

Vasconcellos, ob. cit., p. 260-4. 305 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 262. 306, “Ofício do vice-rei Luís de Vasconcellos...”, p. 24-5. 307 , Vieira Couto, Memória sobre as Minas da capitania de Minas Gerais. Suas descrições, ensaios e domicílios próprios. À maneira de itinerário.

(1801), em: RAPM , X , 1905, p. 64, nota 4.

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reprimir-se a continuação dos extravios e contrabandos, e repartirem-se as terras minerais por pessoas que, empregando-se naqueles trabalhos, pudesse aproveitar-se deles em utilidade do Estado...”. Para tal, formaram-se destacamentos nos pontos que se constituíam em boca de sertão, e as tropas começaram a “embaraçar os extravios, prender os culpados e evitar toda a entrada e comunicação”. 306 Já não havia mais lugar para “Mão-de-Luva”. C , Garimpeiros , “Nome com que se apelida neste país aos que mineram furtivamente as terras diamantinas, e que assim são chamados por viverem e andarem escondidos pelas grimpas das serras” – eis como, na sua “Memória” de 1801, Vieira Couto definia o garimpeiro.307 O grupo dos garimpeiros foi um dos mais solidários de que se teve notícia no período colonial. Gerados pelo processo de desclassificação que o fiscalismo desvairado – “o gênio migalheiro do despotismo” – tornou particularmente intenso na demarcação diamantina, eles existiram em vários pontos da capitania, para onde muitos fugiram dando origem a novos descobertos.308 Alguns haviam sido expulsos do Distrito, outros se viram impedidos de faiscar de vido às leis restritivas que se fizeram a esse respeito. Não se confundiam com o bandido, apresentando uma espécie de código próprio de conduta, pautado na lealdade; limitavam-se a trabalhar em terras vedadas, e esse era seu único crime, pois respeitavam “a vida, os 308 , Cf. Aires da Mata Machado, Arraial do Tijuco – Cidade Diamantina, 2ª ed., São Paulo, s.d., p. 86-7. Sobre o processo desclassificador que originava o garimpeiro, diz J. Felício dos Santos: “Resultou que por não terem onde trabalhar, para evitarem a miséria, muitos se embrenharam pelas serras, e foram correr a vida arriscada e aventureira do garimpo, apesar dos rigores das penas a que se sujeitavam.” – Memórias..., p. 186. 309 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 99. 310 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Alexandre Eulálio, Folhetins inacabados, p. 68. 311 , “A caça que se dava ao garimpeiro era cruel, desapiedada, encarniçada: eram

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direitos, a propriedade de seus concidadãos”.309 Quando trabalhavam sós, chamavam-se faiscadores, mas quase sempre andavam em grupo sob o comando de um chefe por eles escolhido e que assumia o título de capitão.310 No seu encalço havia sempre esquadras de pedestres que giravam permanentemente pelas terras diamantinas, retornando ao Tijuco no final de cada mês. Apesar de tanta vigilância, os garimpeiros conseguiam se esquivar e viver nas brenhas e nos córregos ocultos que só eles conheciam.311 Especialmente atingidos pelos rigores do fisco e pelo mau funcionamento da estrutura econômica, o garimpeiro era, em geral, um homem pobre. Vieira Couto deixou descrição do grupo de Isidoro, “capitão” famosíssimo, onde fica clara a composição social desses bandos: “Esta gente compunha um magote de 60 para 70 pessoas, mui bem matizado de diferentes cores, quais as de brancos, mulatos, cabras, pretos, tudo gente ínfima e de costumes tais, como pedia seu péssimo e infeliz gênero de vida”.312 O garimpeiro e o quilombola se entenderam bem: “... um e outro fora da lei, ainda que por motivos diversos, não tardou se encontrasperseguidos e se procurava exterminá-los como a animais ferozes. As partidas do rei disseminadas por todo o Distrito, patrulhavam os córregos, os campos, as serras, os montes, sem cessar dia e noite, rendendo-se, renovando-se; se encontravam o garimpeiro desprevenido, sua captura devia ser feita a todo o transe. Quanto ainda os campos diamantinos alvejam com os ossos de nossos infelizes patrícios, testemunhando a bárbara tirania, que sobre nós pesou outrora!” — Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 99. Mais adiante, diz este historiador: “... a maior parte das vezes arrastavam-se seus cadáveres e lançavam-se nos rios mais próximos, quando não se deixavam insepultos no campo para servirem de pasto aos animais.” – p.107. Muitos acabavam sendo devorados pelos corvos, pois a população temia sepultá-los e, com isso, ser suspeita de cumplicidade. 312 , Vieira Couto, ob.cit., p. 95. 313 , Aires da Matta Machado, O negro e o garimpo em Minas Gerais, p. 14. 314 , Aires da Matta Machado, ob.cit., p.14. 315 , Cf. Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 209-11. 316 , Ibid., idem, p.220-1.

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sem solidários, buscando a subsistência nas minerações furtivas”.313 O “capangueiro” ou comerciante de capanga foi outro elemento que se vinculou solidariamente ao garimpeiro, comprando-lhe o produto que extraía das faisqueiras e, por meio de avisos, protegendo-o das tropas de dragões que patrulhavam o Distrito.314 De um modo geral, houve relacionamento estreito entre os garimpeiros e os agentes do contrabando. 315 Os “cachaceiros” ou vendedores de cachaça foram muitas vezes acusados de cumplicidade com os garimpeiros; dizia-se que o seu “aparente modo de vida” consistia em conduzir cachaça para os arraiais, mas na realidade ocupar-se-iam do contrabando. Muitos intendentes foram suspeitos de manter entendimentos ocultos com os garimpeiros. Conta-se de João Fernandes de Oliveira que certa noite recebera a visita de um “indivíduo desconhecido, e que estiveram em conferência secreta até bem tarde; ninguém soube o que trataram, mas suspeitou-se ser um chefe oculto de garimpeiros, que lhe oferecera seus serviços e de seus companheiros”.317Felisberto Caldeira Brant foi sempre muito tolerante com o garimpo, e no tempo do Intendente Câmara, Isidoro foi chamado a participar de uma expedição que, dirigida pelo cientista Vieira Couto, empenhou-se em novos descobertos na região da Nova Lorena Diamantina. Dessa empresa participaram ainda o Intendente do Ouro de Sabará e um sargento-mor com 30 soldados; o grupo de garimpeiros juntou-se a eles nas proximidades de Pitangui, e isto ocorreu em 1800.318 Momentaneamente aproveitado pelo Poder, Isidoro seria suplicado nove anos depois. A memória coletiva parece ter registrado com simpatia e solidariedade a figura do garimpeiro. Dele, o romântico Joaquim Felício 317 , J.F. Santos, ob.cit., p. 166-7. 318 , Vieira Couto, ob.cit., p.95 e sgs. 319 , “Nunca o garimpeiro agredia as tropas reais, mas, quando acometido, sabia defender-se com coragem, e quase sempre as rechaçava, se o combate se tratava em igual número e condição, porque combatia para salvar a vida e a liberdade quando vitorioso, voltava pacífico para o trabalho e não procurava tirar proveito da vitória;

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dos Santos fez um herói popular em constante luta pela liberdade.319 Com base em depoimentos de pessoas idosas e em documentos que depois dele se perderam, o historiador do Tijuco traçou um painel impressionante do que teria sido a luta desses homens que viveram acuados e morreram violentamente. Acreditando no valor das narrativas coletadas e procurando, a partir de casos individuais, lançar luz sobre a dinâmica social, é interessante examinar um pouco mais atentamente as histórias de três desses heróis – histórias que, mesmo se fantasiadas, são da maior importância, pois representam a cristalização mítica, simbólica, de uma realidade dolorosa.320 João Costa foi um garimpeiro que atuou na região dos diamantes entre 1781 e 1787. A primeira notícia que se tem de sua atividade e quando vencido e prisioneiro, no meio dos maiores sofrimentos, por que o faziam passar, não traía seus companheiros e nem confessava os cúmplices, que poderia 256

comprometer”. – Memórias..., p.99. 320 , Geremeck propõe o inter-relacionamento do estudo da ação de grupo e o das biografias individuais. Este é, para ele, particularmente importante: “... para conhecer essa coletividade, não podemos nos apoiar em nenhuma abordagem global; somos obrigados a abrir um caminho através de uma multiplicidade de casos isolados.” – Les Marginaux Parisiens..., p. 74 e 142-3. Sobre o papel da memória e dos heróis, diz Hobsbawn: “Após determinado decurso de gerações, a memória do indivíduo mistura-se com o quadro coletivo dos heróis legendários do passado, o homem com o mito e simbolismo ritual, de modo que o herói que por acaso sobreviva além dessa faixa, como Robin Hood, não pode mais ser substituído no contexto da história real”. – E.J. Hobsbawm, Bandidos, trad., Rio de Janeiro, 1975, p. 130. E mais adiante: “Pois os bandidos pertencem à história recordada, em contraposição à história oficial dos livros. Fazem parte da história que é menos um registro de fatos e daqueles que os realizaram, quando do símbolo dos fatos teoricamente controláveis, mas na prática descontrolados, que moldam o mundo dos pobres: de reis justos e de homens que levam justiça ao povo.” – p. 135. 321 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p.200. 322 , Ibid. 323 , Ibid. 324 , “De que servia a disciplina da infantaria, se tinha de bater-se com inimigos

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refere-se às explorações da Serra de Santo Antonio do Itacambiruçu, onde trabalhou com seus homens após ter batido e expulsado as forças destacadas para guardar o local. Ante os reforços que foram depois enviados para a Serra, João Costa se retirou momentaneamente para Sabará, voltando acompanhado de vários mineiros que andavam com dificuldades de subsistência devido à escassez do ouro naquele lugar. Chegaram tropas reais para expulsá-los, mas foram vergonhosamente batidas em um encontro decisivo que se deu no Campo Belo. O intendente dos diamantes recorreu então ao governador da capitania, D. Rodrigo José de Menezes, que acorreu pessoalmente à Demarcação para lutar contra João Costa e seus homens. “Em fins de janeiro de 1782”, conta Joaquim Felício dos Santos, “aqui chegou acompanhado de duzentos soldados bem municiados, para reunir-se com as tropas dos dragões e pedestres da Extração, e depois com as forças destacadas na Serra; não se esqueceu da artilharia; trazia dois pesados canhões de grosso calibre. Diz a tradição que o belicoso governador não falava senão de sua expedição; e pelos importantes preparativos, que ordenava, e minuciosas providências, que dava, se conhecia estar seriamente persuadido da grandeza da campanha que ia empreender”.321 No dia em que partiu o capitão-general, houve missa, sermão e bênção: “era como se tivessem de ir guerrear mouros ou hereges”.322 Preparado como se fosse enfrentar inimigos ferozes, continua o cronista do Tijuco, o exército “marchava para matar nossos irmãos, pobres párias do tempo, muitos dos quais levados à miséria, vítimas do despotismo dos mandões da metrópole, iam procurar um meio de vida no que se qualificara crime horrendo: o garimpo!”323 O imponente exército passou momentos difíceis no Itacambiruçu, e D. Rodrigo chegou a desanimar; os garimpeiros nunca apareciam em campo aberto, andando sempre ocultos pelas brenhas e pelos penedos, aparecendo de repente, matando alguns soldados invencíveis, porque nunca se apresentavam em campo, ocultos, embrenhados nos matos, nas serras, nas furnas, ou disseminados pelas planícies, vivendo debaixo das lapas ou em pequenos colmados construídos em um momento, sem estabelecimen-

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e desaparecendo mais que depressa, numa tática típica de guerrilha.324 Depois de algum tempo, entretanto, o governador e suas forças conseguiram surpreender os homens de João Costa, matando e ferindo muitos deles: a Serra voltou a ser território da Intendência, e os garimpeiros se dispersaram. O valente João Costa, entretanto, não desanimou: reapareceu no Itacambiruçu em 1784, voltando a enfrentar as tropas reais e vencendo-as. Tornou-se então senhor incontestado dos campos diamantíferos da Serra, o que era reconhecido por um funcionário da Intendência que, em 1786, escrevia à Junta a seguinte carta: “Os únicos senhores deste lugar são os garimpeiros. Eles fazem o que querem, e têm-se apoderado dos córregos diamantinos em grande multidão à muita força de armas, e estão tão desaforados, que até vão as povoações buscar mantimentos e traficam publicamente”.325 O garimpeiro e seus homens ainda tiveram alguns encontros violentos com as tropas oficiais, depois do que, mesmo quando derrotados, acabavam voltando às explorações da Serra. Mas uma certa Margarida Felicidade, amante de João Costa, traiu o companheiro e denunciou seu esconderijo às tropas do governo. Tendo sido ferido, Tinoco, um dos garimpeiros, originário de Minas Novas, preferiu se matar a cair nas mãos dos soldados, cravando no peito uma espada curta. Mas o chefe famoso do bando foi preso e levado ao Tijuco, que parou para vê-lo entrar no arraial: “Logo que correu a notícia de que estava a chegar, as praias do Rio Grande cobriram-se de curiosos, outros mais sôfregos subiram até os Campos dos Cristais: o arraial ficou despovoado. Era tal a fama de João to fixo, inimigos que conheciam todos os recantos, os esconderijos, as mais insignificantes trilhas do terreno?” —J. F. Dos Santos, ob.cit., p.201. 325 , Carta do caixa administrador-geral da Intendência, apud J.F. Dos Santos, ob.cit., p. 202. 326 , J. F. Dos Santos, ob.cit., p.205. 327 , Apud J.F. Dos Santos, ob.cit., p. 205 328 , A João Costa, J.F. Dos Santos dedicou um folhetim romanceado, onde aparece novamente a ideia do garimpeiro como indivíduo em luta pela liberdade. Em

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Costa, por suas proezas, bravura, ousadia e coragem, que cada um imaginava ir ver um Golias, um gigante da fábula, um ente extraordinário, sobrenatural. Mas, como sempre acontece em casos semelhantes, a figura de João Costa não correspondeu à sua nomeada”.326 O termo de prisão, hábito e tonsura que se lavrou dizia o seguinte: Aos 18 dias do mês de abril de 1787, neste arraial do Tijuco e tronco dele, onde eu escrivão adiante nomeado fui vindo, e sendo aí achei preso no dito tronco a João Costa Pereira, homem branco, forro (sic), que se achava vestido com camisa e veste branca, calções e meias encarnadas, ao qual fiz as perguntas seguintes: donde era natural, quem eram seus pais, que idade tinha, se era solteiro ou casado, ou se professo em alguma religião: – e por ele me foi respondido que era natural das Gerais, que não conhecia seus pais, que tinha trinta e três anos de idade, que era solteiro e não era professo em religião alguma. E fazendo-lhe eu escrivão abaixar a cabeça, lhe não vi sinal algum, por onde tivesse ordens, que o isentassem da jurisdição real. O qual preso é de estatura baixa e grossa, cabelo amarrado, cara redonda, olhos pardos, pouca barba e falto de dentes na frente.327

Nada mais se sabe de concreto sobre o garimpeiro da Serra, que talvez tenha fugido da cadeia e voltado à vida arriscada e aventurosa que tivera até então. Tudo indica que a memória popular fixou sua imagem com carinho, romantizando-a e cultivando-a como a de um herói.328 Tendo sido contemporâneo de João Costa, com quem chegou mesmo a garimpar, José Basílio de Souza era cabra, de estatura média, uma passagem, o herói expõe seu modo de vida a outra personagem: “Será para outros um triste viver andar sempre proscrito, foragido, perseguido, exposto à morte a cada momento, não tendo um abrigo certo, dormindo ao relento ou disputando os covis às feras, hoje na abundância, amanhã sofrendo o frio, a fome, a sede... mas para mim não: — encontro prazer nesta vida. Aqui ao menos respiro o ar da liberdade. Um dia havemos de ser livres; e enquanto não chega esse dia, não queres que eu estenda o braço aos meus irmãos, que vejo sofrendo?” — Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Alexandre Eulálio, ob.cit., p. 82-3.

329 , J. F. Dos Santos, Memórias..., p.214.

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cabelos crespos, musculatura reforçada, “olhos pretos e expressivos, semblante alegre, boa dentadura”.329 Por não ter oficio definido, foi despejado para fora do Distrito Diamantino em 1775, voltando algum tempo depois com licença de residir no Tijuco; entretanto, como continuasse a viver sem ofício e fosse suspeito de contrabando, teve novamente de assinar termo de despejo. Desta vez, a sua volta foi clandestina, passando José Basílio a atuar como garimpeiro. Prenderam-no em 1780, mas conseguiu fugir e passou a minerar por toda parte, sempre acompanhado de um pequeno grupo de seis a dez garimpeiros e perseguido sem trégua pelas forças de Extração. Preso mais uma vez após um violento encontro com soldados no Córrego da Guinada, o garimpeiro foi condenado a trabalhar dez anos como galé nos serviços da Extração, e começou a cumprir a sentença nos serviços da Passagem do Jequitinhonha. “Os galés durante o dia trabalhavam soltos debaixo da vigilância de uma forte guarda; à noite dormiam dois a dois, presos dejungidos com uma corrente de ferro fechada ao pescoço por uma grossa argola”.330 A vigilância era grande, mas José Basílio conseguiu manter correspondência com pessoas do Tijuco que o protegiam e que acabaram lhe enviando limas, verruma e faca, e assim possibilitaram sua fuga. Evadiu-se com um companheiro, e ainda presos uma o outro pelo pescoço, atiraram-se nadando no Jequitinhonha. Logo acorreram os guardas, e conseguiram balear o amigo de José Basílio, que afundou levando consigo o “capitão”; às custas de muito esforço, este limou a corrente e voltou à tona. Refugiou-se em casa de um parente ferreiro que morava na Serra na barra do Rio Manso, fazendo com o ferro da corrente os instrumentos de que necessitava para voltar à garimpagem. Por mais seis anos, foi o terror das tropas da Extração; 330 , Ibid., p.215. 331 , Cf. J. F. Dos santos, ob.cit., p.214-20. O autor monta a sua narrativa com base no último processo instaurado contra José Basílio, que se encontrava em sua posse. 332 , Vieira, Couto, op.cit., p.95. 333 , sidoro teve de abandonar o pessoal da expedição para tratar de negócios, e

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mas em 1791, gravemente ferido, caiu de novo em poder dos dragões e respondeu a um minucioso interrogatório, conseguindo omitir todos os nomes e pessoas que com ele se haviam envolvido em contrabando e na aquisição de diamantes. Imputaram-se lhe outros crimes, como o de roubo e o de assassinato, mas conseguiu se eximir dessas culpas e foi condenado, como extraviador de diamantes, a dez anos de degredo para Angola. Nesta altura dos acontecimentos, perde-se a sua pista, e o mais provável é que realmente tenha ido cumprir pena na África.331 Isidoro foi talvez o mais famoso garimpeiro das Minas. Trabalhou na mineração furtiva dos diamantes desde os últimos anos do século XVIII até 1809, quando, na intendência de Manuel Ferreira da Câmara, foi barbaramente assassinado. Era pardo, e fora escravo de um certo Frei Rangel, de quem a Fazenda Real o confiscara por ser acusado de contrabando. Isidoro foi então condenado a trabalhar como galé no serviço da Extração, e como acontecera a José Basílio, conseguiu fugir. Parece ter aí começado a sua atividade de garimpeiro: outros cativos se uniram a ele, que se tornou o chefe de uma tropa de aproximadamente 50 garimpeiros escravos. O tal do Frei Rangel era minerador, e Isidoro crescera na intimidade das técnicas e segredos da exploração do ouro e dos diamantes. Isso fez dele um grande especialista em terras diamantíferas e em lavras; conhecia os serviços mais fáceis, mas não os revelava a ninguém. Mantinha contatos permanentes com pessoas importantes do Tijuco; a quem vendia os diamantes que extraía; protegido por muitos figurões, circulava com desenvoltura pelos arraiais, e apesar das recompensas prometidas pela sua captura, a população fingia não dar conta de sua presença. Isidoro era alto, corpulento, e dele Vieira Couto deixou uma descrição detalhada: “O capitão Isidoro era, a cuja voz e aceno se movia todo este rancho (de garimpeiros), homem pardo, maior de cinquenta anos, de muito poucas palavras, e estas muito atenciosas, deixou seu filho como substituto: “Este filho, Bento se chamava, era o avesso de seu pai, abundante em palavras, falando sempre rijo, e nada fino de engenho, e arteiro

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macias e corteses; mas de gênio retrincado e sagaz, e a cujos dotes deveu ele a prerrogativa de sempre dominar sobre grandes enxames de tal gente”. 332 Conforme ficou dito acima, participou de uma expedição oficial de reconhecimento da Nova Lorena Diamantina, chefiada por Vieira Couto.333 O Intendente Câmara foi incansável na perseguição de Isidoro, espalhando patrulhas por todo o Distrito. Depois de anos de resistência, foi traído por um companheiro, entrando preso no Tijuco em junho de 1809. Começou então um verdadeiro martírio em que as torturas e o interrogatório se intercalavam; a narração desse suplício correu por muito tempo impressa em um folheto intitulado Proclamação ou aviso ao povo do Tijuco por Manuel Ferreira da Câmara Bitancourt – Refutada por um morador do mesmo município. É o testemunho de um adversário, e apesar da sua parcialidade, vale a pena transcrevê-lo: Entrou este miserável numa tarde em Tijuco, montado em um cavalo, cercado de Pedestres e Povo, com três tiros de espingarda, e alguns golpes de facão; vinha tão curvado, que quase tocava com a cabeça na sela. No outro dia foi perguntado, para que V. S., de gosto se pôs muito bizarro e ufano vestido na sua Beca, precedido de Escrivães, Meirinhos, e seus Leitores negros. Perguntava-se com empenho a quem vendia diamantes; esperava-se uma grande lista de nomes, e principalmente de duas ou três pessoas! como ele (…) O descobridor Bento conservava-se em todo este tempo que trabalhavam lançado pelo comprido debaixo de umas verçudas ramalhadas, sem lhe dar cuidado que se verificassem ou não as riquezas que prometera, cantando desentoadissimamente a largas goelas suas cantigas namoradas, coisas que lhe davam mais em que cuidar que o cumprimento de suas promessas.” – Vieira Couto, ob. cit., p. 102 e 104. 334 , Segundo Aires da Matta Machado Filho, Arraial do Tijuco – Cidade Diamantina, p. 87-8. 335 , J. F. Dos Santos, Memórias.., p. 320. Sobre Isidoro, ver p.317-22. 336 , Cf. Roger Chartier, La Monarchie d'Argot entre le Mythe et

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Depois de quase duas horas de perguntas, nada se pôde alcançar do infeliz, sempre indiferente tanto aos ameaços, como às promessas. Assim mesmo todo conspurcado de sangue negro e coalhado, com costelas quebradas, é atado a uma escada que se mandou pôr fronteira às janelas, donde V. S, presenciava, e administrava os açoites. Que novo e inesperado fenômeno o vem então afligir! O açoitado não lisonjeia os ouvidos de V. S., com seus gritos e com seus gemidos. Clama então V.S, aos pedestres que puxem pelos bacalhaus, estes sobem e descem alternativamente com presteza e força; rasgam-se as carnes, o sangue salpica a terra, e não obstante o desgraçado não geme! Suspeita V.S, que não haja aqui alguma causa oculta, que faça que o padecente não sinta; chega-se V.S, mesmo ao lugar do patíbulo, pega e meneia os bacalhaus, e acha que as pernas eram brandas (e na verdade o estavam por muito banhadas em sangue) e encomenda outros para o dia seguinte. Ah! Meu Câmara, como envileceste nesse dia as graves vestes de Têmis, e as confundiste com a jaqueta de carrasco! E ousas dar-te o nome de Pai do Povo! 334

“No seguinte dia não houve justiça, porque os bacalhaus não estavam ainda prontos. Ao terceiro foi segunda vez chamado; e foi com altas e desentoadas vozes entre os açoites. O coitado então se lhe lançou aos pés rogando que lhe perdoasse, que estava mais para morrer, que para sofrer tormentos: foi repelido a pontapés. Eu o vi sair para o terreiro soçobrado sobre quatro Pedestres, podendo apenas mover os pés; o rosto desfigurado, a cabeça caída a uma banda, e recostada sobre os ombros de um dos pedestres. Então maldisse e odiei todo o gênero humano, como uma raça capaz de produzir feras! No meio dos açoites desfaleceu, e um pedestre gritou que era morto. Foi ao mesmo tempo chamado Médico, e Confessor; tocavam os sinos a viático, e à Santa Unção: foi aos poucos tornando a si; e felizmente para V.S., não morreu daquela vez; porém passado pouco tempo, e na mesma prisão acabou. E é isto ser Pai do Povo?

Isidoro foi venerado como santo por muito tempo. Nele se corporifica, mais uma vez, a luta pela liberdade: “Perguntado se tinha l'Histoire , em: Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p. 175-311;

ibid., “les élites et les gueux. Quelques représentations”, em: RHMC , XXI , julho-

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extraído diamantes nas lavras impedidas? – Respondeu que os diamantes eram de Deus, e só dele; e por isso não cometera crime em extraí-los”.335 Na formação social complexa característica de nosso período colonial, os desclassificados corresponderam a uma categoria mais abrangente do que aquela que serviu para designar os marginais em outras sociedades que também atravessavam o momento de gestação do capitalismo. Na Europa, esses elementos se agruparam muitas vezes em verdadeiras anti-sociedades, adotando uma forma específica de expressão: assim, as monarquias argóticas, que com seus reis e seus jargões constituíam uma forma alternativa à sociedade que impelira os desclassificados para as suas margens.336 A identificação da “franja inferior” tornava-se pois mais fácil e mais precisa nessas sociedades, e não foi difícil segregá-la – o que se fez desde cedo com as workhouses e, posteriormente, com o “Grande Fechamento”. No Brasil, essa segregação não seria feita com facilidade. Por isso, este capítulo não se ateve apenas aos desclassificados sociais, aos indivíduos que a estrutura escravista de produção colonial colocava nas fímbrias do sistema, e que a superestrutura violenta continuava excluindo: procurou ser também um retrato da camada fluida dos homens livres pobres em que se engastavam os desclassificados. Engendrados por processos que se achavam em permanente movimento de constituição, os desclassificados se inseriam numa sociedade especifica que o escravismo coloria e que comportava uma larga faixa de gente dificilmente definível: uma camada social onde os papéis dos indivíduos eram transitórios e flutuantes, onde os homens livres pobres entravam e saíam da desclassificação, convivendo estreitamente com escravos, com quilombolas, com arte-setembro de 1974, p. 376-88. 337 , Endosso aqui a análise de Maria Sylvia de Carvalho Franco: “... sua dimensão de homens chega-lhe, assim, estritamente com subjetividade. Através dessa pura e direta apreensão de si mesmo como pessoa, vinda da irrealização de seus atributos humanos na criação de um mundo exterior, define-se o caráter irredutível das ten-

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sãos modestos, com roceiros pobres, com mineradores miseráveis. Havia muitas características comuns entre eles: a cor da pele – negra, parda, vermelha, acobreada, branca às vezes –, o nascimento bastardo, a insegurança do cotidiano, o pânico permanente ante a Justiça atenta e rígida, a itinerância, os concubinatos, as infrações que cometiam e que acabavam por igualá-los e colocá-los como opositores do Poder e da Ordem constituída. Essas afinidades criavam solidariedades temporárias, podendo mesmo propiciar formas intermitentes e curiosas de consciência de grupo: as que afloravam nas vendas, nas tavernas, nas casas de alcouce, nos batuques, nos entendimentos entre contrabandistas e quilombolas. Mas eram muitos os fatores que agiam em sentido contrário, desmantelando as solidariedades e dissolvendo a consciência, e assim, ante as pressões oficiais, o desclassificado partia no encalço do desclassificado para reprimi-lo; o vadio recrutado à força exterminava os quilombolas; o homem pobre impotente ante a rede do poder denunciava o seu igual: o garimpeiro entregava o seu chefe aos dragões da Extração; o forro esfaqueava o pardo nas tavernas e nos becos. A violência assumia a forma de uma resistência possível, mas pulverizada pela fata de coesão do grupo social, que se lançava em lutas pessoais de extermínio.337 As tensões constantes criavam situações de confronto, traduzidas nas arruaças, nas assuadas, nas desordens, nos arrombamentos, nos incêndios, nos ferimentos, nos roubos, nas mortes. O conflito latente acentuava assim a fluidez da camada e bloqueava a possibilidade de uma tomada – mesmo parcial – de consciência: de relance, momentaneamente, o inimigo comum era vislumbrado, mas não se uniam forças para enfrentá-lo, e a pobreza partilhada sões geradas. A visão de si mesmo e do adversário como homens integrais impede que as desavenças sejam conduzidas para lutas parciais, mas faz com que tendam a transformar-se em lutas de extermínio”. Homens livres na ordem escravocrata, p. 59. 338 , “Por si só a pobreza só podia engendrar laços passageiros, correspondendo à partilha de uma adversidade comum. (…) A pobreza não é suficiente para constituir uma classe; pode criar grupos, mas consciência de classe, é dificil detectá-la até entre os Ciompi”. Mollat, ob. cit., p. 271. Divirjo fundamentalmente da concepção de

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por todos não bastava para identificar os elementos avulsos que integravam a camada dos homens livres pobres.338 Numa sociedade de extremos bem definidos – a camada senhorial e a camada escrava –, os homens livres pobres constantemente desclassificados foram protagonistas miseráveis de uma triste aventura. A heterogeneidade e a fluidez da camada que os envolveu, a violência dos mecanismos que os rejeitaram e os incorporaram quando conveio, tolho-lhes a possibilidade de construir uma percepção consciente da própria miséria. Esse eterno ser e não-ser impediu que se enxergassem e compreendessem suas virtualidades; ao mesmo tempo, propiciou que outros construíssem um juízo sólido a seu respeito; foi assim que a camada dominante, mais bem articulada, pôde tecer a sua ideologia da vadiagem.

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classe abraçada pelo autor, mas considero a citação elucidativa para o problema da formação da consciência de grupo. 339 , A respeito da “turba” (the mob), diz Christopher Hill: “O que importa aos nossos objetivos é a existência de uma vasta população que, na sua maioria, vive próxima à linha da pobreza – podendo até situar-se abaixo dela –, pouco influenciada por ideologias políticas ou religiosas, mas constituindo-se em material acabado para integrar o que, nos fins do século XVII , começou a ser chamado de “a turba”. (…) Mas a turba é basicamente não-politica: poderia em 1647 ter sido usada por presbiterianos contra o exército; em 1660, pelos realistas; pelos homens do rei e da Igreja na época de rainha Ana”. The World Turned Upside Down, p. 41.

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CONCLUSAO

, A IDEOLOGIA DA VADIAGEM

Nesta terra não há povo, e por isso não há quem sirva ao Estado:



exceto muito pouco mulatos que usam seus ofícios,



todos mais são Senhores ou escravos



que servem aqueles Senhores...



Carta do Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras.

1. AS METAMOR FOSES DO ÔNUS E DA UTILIDADE , O processo

de formação do capitalismo gerou, de um e de outro lado do Atlântico, multidões de desclassificados sociais. Lá, vegetaram nas fímbrias do sistema até que “a inteligência do capitalismo nascente” 1 os encerrasse em estabelecimentos especiais e, logo depois, passasse a ter neles um exército de reserva para o proletariado. Aqui, criados e deixados sem razão de ser, foram sistematicamente taxados de vadios e inaptos ao trabalho, avolumando-se durante os séculos e constituindo, na época da abolição, uma massa considerável de mão-de-obra inaproveitada.2 Conforme ficou dito no capítulo 2 deste trabalho, os documentos europeus se referiram com frequência ao caráter de inutilidade que revestia a camada dos desclassificados: seriam, assim, “inúteis ao mundo”, ou, na formação do jurista de Lyon, “o peso inútil da terra”. Necessitando com premência de braços para suas plantations, as colônias absorveram um grande número desses elementos indesejados, e, “ergástulo de delinquentes”, exerceram a função que caberia, a seguir, ao “grande fechamento”. Foi assim que a inutilidade dos 1 , A expressão é utilizada por Marcel Bataillon ao comentar a De subvencione pauperum, de Juan Luis Vives. Cf. Jean Villar, Le picarisme espagnol: de l'interférence des marginalités à leur sublimation esthétique , em: Les

Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, p. 29-77; ver sobretudo p. 49 2 , Cf. Robert Conrad, The destruction of Brazilian Slavery – 1850-1888, Berkeley, 1972, cap. 3, The Crisis of Labour , p. 30-46.

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vadios, ladrões, vagabundos e criminosos dos centros hegemônicos pôde, pela primeira vez, se transformar em utilidade, filtrada pela válvula de escape do Sistema Colonial. As Minas foram o espaço privilegiado da desclassificação social nos tempos coloniais, e isto se deveu tanto ao rápido afluxo populacional que lá se verificou como caráter especifico da exploração aurífera. Nas lavras, os homens livres foram mais numerosos que em outros pontos da colônia, e, por mais paradoxal que possa parecer, entre eles se dividiu a extrema pobreza da economia mineradora – como se viu no capitulo 1, democrática na miséria que soube distribuir entre um maior número de indivíduos. Triturados por uma exploração econômica predatória e imprevidente, esmagados pelo peso enorme do fiscalismo, perseguidos por uma política normalizadora que os desejava enquadrar a todo custo, os desclassificados proliferaram nas montanhas mineiras como em viveiro; essa pujança extrema foi vista de duas maneiras opostas: como utilidade e como ônus. A percepção de sua utilidade se assentava na ideia de que, onerosos em “todas as nações civilizadas”, os vadios seriam úteis na região das Minas, onde havia demanda considerável de mão-de-obra alternativa à escrava e que servisse para reprimir quilombos, vigiar os índios do sertão, agriculturar terras longínquas cobertas ainda por florestas virgens, descobrir novos regatos auríferos e veios escondidos nas profundezas, desempenhar enfim tarefas de que o cativo não podia se desincumbir. Aliás, desde os fins do século XVII as Minas vinham funcionando como “ergástulo interno” de delinquentes, drenando os desclassificados incômodos das capitanias vizinhas, agasalhando os desertores dos portos costeiros e os criminosos temíveis que haviam cometido delitos em outras paragens. Entretanto, se por um lado o sistema colonial e o escravismo emprestavam nova face aos desclassificados, tornando-os aproveitáveis e até úteis, a sua característica de “peso inútil da terra” não se perdera de todo, e voltava esporadicamente a aflorar nas considerações drásticas das autoridades, que neles não viam senão uma gente inútil e onerosa ao Estado, boa apenas para consumir viveres

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e criar confusões. Dizia Martinho de Mello e Castro ao Visconde de Barbacena “que os habitantes que fazem a riqueza dos Estados são os úteis e laboriosos, e não os ociosos e vadios, que são a ruína dos mesmos. Estados”.3 Os mestiços pobres da colônia levavam uma vida desregrada e constituíam uma humanidade estranha e desconhecida que ameaçava ininterruptamente a segurança dos “homens bons”, dos administradores coloniais e, em última instância, da Metrópole. Estava criado o impasse: os escravos, numerosíssimos, era a classe laboriosa, mas desconheciam a virtude; os libertos, em número considerável, eram perniciosos ao Estado; os brancos, esses eram os “vassalos úteis da capitania; mas desgraçadamente em menor número”.4 Havia pois que vigiar sem repouso esses indivíduos, e enviá-los para longe sempre que fosse necessário. E era na defesa das fronteiras que essa gente onerosa – fronteira viva da sociedade – adquiria novamente o seu caráter de utilidade: longe da parte sã do corpo social, deixava de contaminá-lo e de pesar sobre ele com os custos de sua reprodução, ao mesmo tempo em que defendia uma colônia que lhe era madrasta. Útil enquanto vivo, o desclassificado continuava sendo-o depois da morte, quando não mais apresentava motivo de preocupação para uma sociedade que vivia no constante dilema de metamorfosear o ônus da vadiagem em utilidade: e os desclassificados morreram em quantidade, abandonados que foram à fome, às febres do sertão, às flechas dos índios, às balas dos castelhanos. A nítida predominância da utilidade sobre o ônus constituiu um traço específico dos nossos tempos coloniais, e a diferenciou ante o processo de desclassificação verificado na Europa Moderno. Nas Minas, uma e outra característica se alternaram em função da intensidade com que lá atuaram os aparelhos de poder: em épocas de 3 , Instrução para o Visconde de Barbacena, Luís Antonio Furtado de Mendonça, governador e capitão-general da capitania de Minas Gerai s

(1788), in: RIHGB , VI , p.18. 4 , Descobrimento de Minas Gerais – Relação circunstanciada”, RIHGB , XXIX , tomo 1, p. 108-9.

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fúria normalizadora e fiscalista, o ônus cresceu sobre a utilidade; quando se fez presente a premência de adotar medidas que incrementassem a agricultura e possibilitassem novos descobertos, a utilidade recobriu o ônus. O balancez dessa política que ora via no desclassificado um inimigo em potencial, ora um auxiliar valioso, teve consequências funestas para a formação de uma consciência de grupo entre esses elementos. Se o sentimento latente e impreciso de que o sistema produtivo o rejeitava podia se configurar para o desclassificado, a sua revolta explodia em conflitos que o opunham ao seu semelhante, em arruaças inconsequentes que podiam acabar lhe tirando a vida; o limite de sua insatisfação ante aquela ordem injusta era o banditismo das estradas e das montanhas, o garimpo aventureiro, o roubo e o assassinato incipientemente organizados. Mas logo essa consciência rudimentar se dissolvia ante a ideia de que também ele pertencia ao sistema: era o capanga do potentado, o matador de vadio e quilombola, o descobridor de ouro. A ideia de que o vadio podia ser útil era, assim, extremamente eficaz: propiciava o aproveitamento de mão-de-obra barata e ainda bloqueava a eventual construção de uma consciência grupal. Criava-se assim um círculo vicioso: o sentimento de estranheza ante um sistema que não o abrigava tolhia no desclassificado a possibilidade de se identificar com o seu semelhante, e o lançava na violência; esta, por sua vez, opunha-o a seu semelhante, e impedia o crescimento da consciência de grupo. O mesmo mecanismo se verificava quando as atividades repressivas incorporavam o desclassificado: perseguindo e matando o seu igual, o algoz se identificava com a camada dominante e experimentava um sentimento de estranheza ante o seu companheiro de miséria: assim, a possibilidade de se transformar em carrasco do seu semelhante subentendia o congelamento da consciência de grupo. A consequência dessa ordem de coisas foi uma camada fluida e inconsistente, que abrigou desclassificados e homens livres pobres. Entre ela e a sociedade escravista tomada no seu conjunto, estabeleceu-se uma relação assentada na dialética da igualdade e da dife-

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rença. A infração nivelava homens livre pobres e escravos fugidos na medida em que um e outro eram inimigos da ordem e da segurança; mas havia um fosso enorme entre eles: uns eram donos de si, e outros eram propriedade alheia — o que não impedia que, momentaneamente, fossem identificados, como acontecia toda vez que o forro ou o liberto eram reescravizados. Enquanto seres livres, os homens pobres desprovidos de consciência de grupo procuraram, a cada momento, estabelecer liames com a camada dominante, buscando traçar as fronteiras que os separavam dos cativos — daí o forro dono de escravos, daí o liberto que não carregava peso; entretanto, múltiplas situações acabavam atirando esses homens livres ao encontro dos cativos: nas tavernas, no garimpo, nos roubos, acabavam por se irmanar, igualados na transgressão. Por outro lado, os homens livres proprietários de bens e de escravos ajudaram a recriar e a lembrar, a cada momento, a diferença que os separava dos homens livres pobres, expropriados: se não havia possibilidade de equiparação entre proprietários e escravos, já que um era livre e o outro cativo, já que um possuía o outro, o escravismo se encarregava de apagar as semelhanças que porventura se estabelecessem entre os institucionalmente livres: substituiu-se a pecha da escravidão pela da vadiagem. Desta forma, a camada dominante buscava sua identidade e consolidação de sua dominância, procurando sublinhar as diferenças entre si e os dominados num sentido lato. Mais ainda: acentuava a diferença entre os dominados, quebrando novamente a possibilidade de conscientização, ressaltando a indolência, a inércia, a inaptidão do homem livre ao trabalho. Desta forma, legitimava e justificava a cada passo a existência do regime compulsório de trabalho. Muitos pontos comuns uniam pois os escravos – laboriosos, mas desprovidos de virtude – os forros – perniciosos ao Estado pela intermitência de suas atividades –, os homens livres pobres. Eram parte de um mesmo todo: a camada fluida e inconsistente que, apesar de formas esporádicas de solidariedade, nunca se enxergou como um grupo coeso. A fluidez que chegava a nivelar até mesmo os homens livres e os

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cativos era, entretanto, característica a esta franja inferior da sociedade; ela não abarcava os melhores situados na escala social, aqueles cuja posição ante o processo produtivo era mais nítida e definida: os proprietários das lavras e das terras, os grandes comerciantes coloniais. Para eles, a sociedade estava rigidamente hierarquizada, e as características estamentais apagavam de imediato as indefinições que eventualmente surgissem. Entretanto, numa sociedade escravista, a continuidade da dominação desta camada assentava-se na preservação do regime compulsório de trabalho – a escravidão negra –, no exercício da violência e da repressão – de que se encarregavam os aparelhos do poder – e na construção de uma visão de mundo que justificasse, a cada passo, o escravismo. A construção dessa visão de mundo foi a contrapartida da falta de consciência do homem livre pobre, a ideologia da vadiagem sendo um de seus principais pontos de apoio. 272

, Á perplexidade do homem livre pobre e constantemente desclassificado, a camada dominante opôs um corpo bastante organizado de formulações, cujas raízes lançam seus frutos ainda hoje, pois foram incorporadas e reelaboradas pela nossa tradição autoritária. Em síntese, a camada dos homens pobres era tida como uma outra humanidade, inviável pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele. Habitantes de uma terra rica e farta, esses homens nada faziam para dela conseguir frutos: preferiam viver de expedientes e de esmolas, descurando do futuro, repudiando as formas permanentes da atividade econômica e abraçando um modo de vida itinerante e imprevidente. Eram, pois, integrantes de “quase uma nova natureza fora do comum”, “despidos daquela bem regulada ambição que faz florescer os Estados e impede os homens ao trabalho e às indústrias”.5 A in2. A HUMANIDADE INVIÁVEL

5 , Marechal José Arouche de Toledo Rendon, Reflexões sobre o estado em que se acha a agricultura na capitania de São Paulo (1788), em: DI , XLIV,

1915, p. 196.

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dolência e a preguiça – transcendentes por todo o Brasil6 – grassavam entre a gente livre pobre, “gente degenerada de costumes”.7 Para conter esses homens “incapazes de educação e de seus princípios”,8 o recurso à força era a única alternativa possível, já que constituíam o lado interno do perigo que podia pôr a perder a colônia: “...uns povos compostos de tão más gentes, em um país tão extenso, fazendo-se independentes, que era muito arriscado a poderem algum dia dar trabalho de maior consequência..”.9 No discurso dos “homens bons” – cujos interesses, aliás, eram em muitos pontos concomitantes –, configurava-se com nitidez a concepção de que os homens livres eram vadios e inaptos ao trabalho. Isso não impedia que se recorresse a eles com frequência, empregando-os nas tarefas que o escravo não podia preencher; entretanto, no mundo das ideologias, o ônus que representavam aparecia como predominante, recobrindo a utilidade empiricamente constatável e escamoteando-a. Essa valorização do ônus remetia novamente à ideia de que eram inúteis ao mundo, de que constituíam o peso inútil da terra: de nada serviam, e portanto era como se não existissem para o mundo do trabalho. Prestavam, entretanto, para justificar a escravidão: para lembrar, a cada instante, que o recurso à mão-de-obra escrava era imprescindível ao funcionamento da colônia.10 6 , Cf. Instruções de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vasconcellos e Souza, acerca do governo do Brasil , RIHGB , XXV, 1862.

7 , “... que eles ou seus pais foram escravos, (…) servindo de peso ao Estado, pois vivem ou do furto ou da esmola, gente de cor chamada...” – Vieira Couto, “considerações sobre as duas classes...” em: RIHGB , XXV, 1862, p. 421. 8 , Regra geral: a força é feita para homens incapazes de educação e de seus princípios . – Descobrimento de Minas Gerais — Relação circunstanciada , em: RIHGB, XXIX , 1, p. 108.

9 , Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luís de Vasconcellos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado – 19-VI-1779, RIHGB , IV, p. 458.

10 , “De um lado, pois, o trabalho escravo, superexplorado, que constitui o ali-

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O fato de os homens pobres serem apresentados como humanidade inviável tinha ainda outra virtude para a ideologia da camada dominante: justificava a repressão violenta que exerciam os aparelhos do poder, sem a qual o regime compulsório de trabalho era uma ameaça grande demais. Desta forma, os desclassificados se constituíam em peça imprescindível na ideologia de sustentação do sistema escravista. Mineralogista e empresário, Eschwege foi particularmente sensível ao impasse que se colocava para a camada dominante em face dos problemas apresentados pela exploração de uma força de trabalho barata. “É quase impossível, pois, no Brasil”, dizia ele, “fazer prosperar uma indústria, quando se depende do concurso dos homens livres”.11 “O fato incontestável”, afirmava mais adiante, “é que a atual geração de homens livres jamais se submeterá ao trabalho rude, feito até agora pelos escravos”.12 Os forros não podiam ser considerado mercado potencial de mão-de-obra: “Pelos traços característicos dessa raça de cor, mas livre, percebe-se que enquanto não for a mesma educada convenientemente, a fim de que aprenda a conhecer o verdadeiro valor do homem, não lhe será fácil, no próximo século, executar serviços até então a cargo dos escravos”.13 cerce do processo produtivo. De outro, uma massa de homens livres, sem sentido produtivo, que tendo a posse raramente a propriedade da terra não se transforma em mercadoria para o capital. Tal processo reforça o regime escravo, como reforça também, em consequência, a situação da imensa maioria, que, sem passar pela 'escola do trabalho', se transforma numa população que, no mais das vezes adquire as características de lumpen. Semelhante situação, originada pela propriedade escravocrata, só poderia solidificar a percepção senhorial que encara a mão-de-obra livre como a encarnação de uma corja inútil que prefere o vício, a vagabundagem ou o crime à disciplina do trabalho nas fazendas”. Lucio Kowarick, A constituição do mercado de mão-de-obra livre no Brasil..., parte III , p. 27. Essa análise diz respeito ao fim do Império. 11 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.II , p.422. 12 , Eschwege, ob. cit., v. II , p. 448. 13 , Ibid., p. 423.

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Cumpria, pois, impedir a abolição do tráfico e rejeitar a “intromissão inglesa” nesse assunto, procurando substituir gradativamente a mão-de-obra escrava pelo colonato europeu; qualquer procedimento contrário poderia ser fatal: “Todas as empresas tropeçarão em obstáculos invencíveis, assim que o tráfico de africanos for extinto. Assim, todos os setores da indústria brasileira sofrerão as funestas consequências dessa medida”.14 Como justificava da escravidão, poucas formulações seriam tão convincentes quanto a de Eschwege. O mundo das ideologias não é unicamente o espelho da “má consciência” da camada dominante; pode até vir a sê-lo, mas o que importa de modo primordial é o fato de desvelar, quando lido com atenção, os mecanismos profundos que se acham em curso na infraestrutura. A justificação do escravismo nos seus diferentes níveis e a desqualificação do homem livre pobre enquanto mão-de-obra e ser humano não correspondeu a uma política consciente e deliberada dos administradores, dos senhores de engenhos e de lavras, dos grandes comerciantes: ela foi uma necessidade profunda que se moldou simultaneamente ao desenvolvimento do processo de exploração colonial – de que fez parte a mineração. Condicionada, pois, pelos movimentos que se achavam em curso na estrutura da sociedade e que os aparelhos de poder regulavam vigilantemente, a ideologia da vadiagem ganhou vida própria através dos tempos. Incapaz de captar a especificidade de uma formação social que se apresentava definida nos extremos, rigidamente hierarquizada na sua porção superior e fluida na camada que avizinhava com os cativos, reteve a imagem mais nítida dos senhores e dos escravos e jogou fora a camada intermediária. Como sequela fatal, muitas análises sociológicas e históricas privilegiaram a porção bem classificada – a dos senhores e a dos escravos – e se abstiveram de tratar a parte difícil de classificar: a dos desclassificados.15 Conhecidas já no tempo do Morgado de Mateus, mas popularizada na expressão 14 , Ibid., p. 423-4. 15 , Para citar apenas alguns autores, essa tendência acha-se presente no profundo desencanto de Silvio Romero, Joaquim Nabuco e Monteiro Lobato para com o home

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de Couty, surgiu uma definição mágica: “O Brasil não tem povo”. Pois caberia chamar de povo a “quase inútil população de caboclos e brancarrões, mais valiosa como material clínico do que como força econômica”?16 Fechava-se, assim, o circuito: a liberdade pouco valia para o indivíduo pobre que o mundo da produção e os aparelhos de poder esmagavam sem trégua, e no entanto ele era homem livre numa sociedade escravista. Aproveitando de modo intermitente mas regular pelo Estado e pelos homens bons, a sua utilidade real e empiricamente detectável era revestida por um ônus que o deixava sem razão de ser. A formulação dessa inutilidade justificava o sistema escravista, e o atributo da vadiagem passava a englobar toda uma camada social, desclassificando-a: no meio fluido dos homens livres pobres, todos passavam a ser vadios para a ótica dominante. Vadios e inúteis, era como se não existissem, como se o país não tivesse povo – pois, cativo, o escravo não era cidadão. E assim, inexistindo ou sendo identificado à animalidade, o homem livre pobre permaneceu esquecido através do século.

livre pobre – o Jeca Tatu apático e amarelo. Lembre-se sobretudo do “amorfismo social” de Oliveira Viaanna. 16, Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, v.I, p. 47.

Aldair / aqui tb precisamos das editoras PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

FONTES E BIBLIOGRAFIA I. FONTES 1. Fontes Manuscritas 1.1 AEAM Devassas — 1721-1735. Devassas — 1727-1787. Devassas — maio de 1730-abril de 1731 Devassas — 1733 Livro de Devassas — Comarca do Serro do Frio — 1734 Devassas — 1738. Devassas — 1747-1748. Devassas — 1748-1749. Livro de Devassas — ano de 1753. Devassas — 1756-1757. Devassas — julho de 1762-dezembro de 1769. Devassas — 1763-1764. Livro de Devassas — janeiro de 1767-1777. Livro de Devassas — 1800. 1.2. APM, SC cód.1, Registro de alvarás, regimentos, cartas e ordens régias, cartas patentes, provisões, confirmações de cartas patentes, sesmarias e doações (1702-1740) cód.4, Registro de alvarás, ordens, cartas régias e ofícios dos Governadores ao Rei (1709-1722). cód.9, Registro de cartas, ordens, despachos, instruções, bandos, cartas patentes, provisões e sesmarias (1713-1717). cód.11, Registro de cartas do Governador a diversas autoridades, ordens, instruções e bandos (1713-1721). cód.18, Originais de cartas e ordens régias (1720-1763). cód.50, Registro de portarias, regimentos, ordens, bandos, editais, instruções, cartas e assentos (1735-1776). cód.59, Registro de petições e despachos (1736-1766). cód.69, Registro de ordens, editais, nombramentos, portarias, instruções, bandos, petições, informações, despachos e termos (1738-1755). cód.84, Registro de cartas do Governador ao Vice-Rei e mais autorida-

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des da capitania (1734-1749). cód.89, Termos de fiança e obrigação (1745-1797). cód.103, Registro de termos, petições e despachos (1752-1771). cód.118, Registro de ordens, portarias, editais, instruções, cartas e atestados (1755-1766). cód.145, Lançamento de prisões (1764-1772). cód.163, Registro de cartas, ordens, circulares e instruções do Governador a diversas autoridades da capitania (1768-1770). cód.186, Registro de petições, informações e despachos (1771-1787). cód.199, Registro de cartas do governador concernentes à repressão de quilombos (1773). cód.215, Registro de cartas, ordens e circulares do governador a diversas autoridades da capitania e cartas destas ao mesmo (1776-1778). cód.223, Registro de cartas das câmaras, juízes e outras autoridades da capitania dirigidas ao Governador (1780). 278

cód.240, Registro de cartas do Governador às Câmaras, juízes e outras autoridades da capitania (1783-1788). cód.242, Registro de portarias do Governador, ordens suas de soltura de prisão (1783-1797). cód.260, Registro de petições e despachos (1788-1797). 1.3 APM, CMOP. Cód.19, Termos de distribuição de querelas e devassas (1724-1726). cód.47, Termos de distribuição de devassas, querelas, com procedências de listas das devassas anteriores (1741-1809). 2. FONTES IMPRESSAS 2. 1. Correspondência Administrativa e Legislação. 2.1.1. DH “Carta que escreveu ao Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar o Excelentíssimo Senhor Vasco Fernandes Cesar de Menezes, Vice-Rei e Capitão-General de Mar e Terra deste Estado” — 17-XI-1720, v.LXXI, 1946, p.106. 2.1.2 DI “Carta de D. Álvaro da Silveira de Albuquerque ao governador geral do Estado do Brasil sobre socorros para o Rio de Janeiro e para a colônia do Sacramento e sobre o rush para as Minas” — 5-V-1704, LI, 1930.

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“Carta da rainha ao governador da Praça de Santos” — 27-IX-1704, XVI, 1895, p.37-8. “Carta do rei a Antonio de Albuquerque” — 25-II-1711, XIV, 1895, p.267-8. “Carta régia estabelecendo providências a fim de se evitar a deserção de soldados da guarnição do Rio de Janeiro para as Minas” — 28-III-1711, XLIX, 1929, p.20-2. “Documentação sobre os irmãos Leme” (1723), XII, 1901, p.78-9, 87-98, 98-110, 118. “Regimento de um bando sobre não passarem mulheres ao novo descobrimento das Minas do Cuiabá” — 27-VII-1723, XII, 1901, p.111. “Carta do governador do Rio de Janeiro ao capitão Francisco Mendes Galvão sobre a tentativa de deserção para as Minas de muitos indivíduos recém-chegados do reino...” — 25-X-1730, XLIX, 1929. “Provisão régia sobre um grande descaminho do ouro dos quintos, mandando abrir devassa, a fim de serem punidos os culpados” — 23-II1731, XLIX, 1929, p.224-6. “Carta régia de 24-II-1731”, XIV, 1895, p.251-2. “Carta régia sobre a prisão de vários indivíduos acusados de moeda falsa nas Minas” — 12-VIII-1732, XLIX, 1929, p.253-5. “Provisão régia sobre a prisão de vários indivíduos, acusados do crime de moeda falsa nas Minas “— 9-III-1733, XLIX, 1929, p.263-4. Carta de 13-VIII-1765, LXXII, 1952, p.71. “Carta do Morgado de Mateus ao conde de Oeiras” — 21-IX-1765, LXXII, 1952, p.94-5. Carta de 9-IV-1766, XIV, 1895, p.177. “Correspondência entre José Luís Abrantes, conde de Valadares, e Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Mateus” (1769-1772), XIV, 1895. “Dando notícia do movimento dos espanhóis no sul e pedindo auxílio de alguma força” — 18-I-1773, XXXV, 1901, p.37. Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha — 26-XI-1775, XVII, 1895, p.44-5. “Ofício sobre a partida de Minas Gerais para São Paulo de um corpo de 4000 homens” — 2-VIII-1777, XXVIII, 1898, p.344. “Carta de Martim Lopes Lobo de Saldanha a D. Rodrigo José de Mene-

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zes — sobre a passagem de desertores nos registros” — 2-V-1780, XLIII, 1903. “Para o visconde de Barbacena” — 15-V-1790, XLV, 1924, p.240. Cartas — XLII, 1903. Cartas — XVII, 1895. 2.1.3. RAPM “A justiça na capitania de Minas Gerais — Correspondência do governador D. Rodrigo José de Menezes com o ministro Martinho de Mello e Castro...”, IV, 1899, p.3-82. “Administração diamantina — Traslado dos autos de inquirição que mandou S. Exa., proceder sobre as condutas do Intendente dos diamantes João Inácio do Amaral Silveira e do Fiscal João da Cunha Soto Maior, assim como sobre a importante administração, que lhe está encarregada” — v.II, 1897, 1, p.329-43 e 2, p.141-85. Carta — Comarca de Tamanduá acerca dos limites de Minas Gerais com 280

Goiás — 20-VII-1793, v.II, 1897, p.373. “Cartas de Assumar ao rei de Portugal” — v.III, 1898, p.251-2 e 263-6. “Cartas patentes” — v.IV, 1899, p.101-28. “Coleção sumária das próprias leis, cartas régias, avisos e ordens...”, v.XVI, 1, 1911, p.331-474. “Consulta da capitania de Minas”, v.XVI, v.1, p.235-306. “Correspondência do conde da Palma — 1810-1814”, v.XX, 1924, p.353-411. “Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade (…) para o sr. Martinho de Mendonça de Pina e de Proença...”, v.XVI, 2, p.239-460. “Diversos registros da correspondência oficial do governador D. Pedro Maria de Ataíde e Mello” — v.XI, 1906. “Documentação referente a Minas Gerais existente nos arquivos portugueses” — v.XXVI, 1975, p.121-303. “Documentos relativos ao descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro do Frio copiados e conferidos por Augusto de Lima”, v.VII, 1902, p.263-355. “Funerais de D.João V — auto de vereação” — 16,17,19-XII-1750, v.IX, 1904, p.359-65. “Impostos da capitania mineira — clamores e súplicas das câmaras em nome do povo” — v.II, 1897, p.287-309.

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“Informação da Câmara de S.Bento do Tamanduá sobre divisões entre esta e a capitania de Goiás” — v.XI, 1906, p.429-30. “Junta de justiça para a execução e imposição da pena de morte aos negros, bastardos, mulatos e carijós” — IX, 1904, p.347-8. “Motins no sertão e outras ocorrências em Minas Gerais” — correspondência entre Martinho de Mendonça de Pina e de Proença e Gomes Freire de Andrade — v.I, 1896, p.649-72. “Nomeação de Antonio de Albuquerque”, v.XI, 1906, p.684-6. “Para a Mesa do Desembaraço do Paço” — 21-III-1812, v.XVIII, 1913, p.499. “Ponderações sobre a Junta da Fazenda sobre os meios de se ressarcir o prejuízo da Real Fazenda com a arrecadação do quinto do ouro” — v.VI, 1901, p.153-73. “Quintos do ouro” — v.III, 1898, p.65-75. “Sobre a navegação do rio Doce” — v.XI, 1906, p.298-302. “Sobre o descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro do Frio. Primeiras administrações”, v.VII, 1902, p.251-63. “Sobre uma representação do capitão-mor de Barbacena e providências relativas à modificação do uniforme militar” — 11-VI-1805, v.XI,1906, p.281. “Traslados e exertos de alguns escritos com relação à empresa de Agostinho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com algumas observações e anotações” — v.II, 1897, p.531. “Terras Minerais — Relação das ordens sobre terras minerais que, por cópia, foi enviada ao Conselho Geral da Província de Minas Gerais” — v.I, 1896, p.673-734. “Violências de um governador” (1774), v.VI, 1901, p.185-8. 2.1.4. RIHGB Carta régia de 11-II-1719, v.VI, p.207. “Regimento de terras minerais de 27 de abril de 1680”, V.LXIV, p.51. 2.1.5. RIHGMG “Quilombos em Minas Gerais” — correspondência entre várias autoridades — v.VI, 1959. 2.1.6. RSPHAN “Diário da jornada que fez o Exmo. sr. D. Pedro desde o Rio de Janeiro até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, no ano de 1717”, v.III.

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2.2 INSTRUÇÕES, REGIMENTOS E RELATÓRIOS DE GOVERNANTES COLONIAIS 2.2.1. RAPM “Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais e maios de remediá-lo” (1780), v.II, 1897, p.311-27. “Instrução e norma que deu o Ilmo. E Exmo. sr. Conde de Bobadella e seu irmão o preclaríssimo sr. José Antonio Freire de Andrada para o governo de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu irmão, quando passou ao sul” (1752) — v.IV, 1899, p.727-35. “Regimento ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença” (1733) — v.III, 1898, p.85-8. 2.2.2. RIHGB “Instrução de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vasconcellos e Souza acerca do governo do Brasil” (1779), v.XXV, 1862. 282

“Ofício do vice-rei Luís de Vasconcellos e Souza com cópia da relação instrutiva e circunstanciada para ser entregue a seu sucessor” — 20-VIII1789, v.IV, 1842. “Relatório do Marquês de Lavradio” (1779), v.IV, p.409. 2.3 MEMÓRIAS, INSTRUÇÕES, INFORMAÇÕES COELHO, J.J. Teixeira. “Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais” (1780), RAPM, v.VIII, p.3. COUTO, J. Vieira. “Memória sobre a capitania de Minas Gerais, seu território, clima etc.” (1799), RIHGB, v.XI, 1848, p.289. ———. “Memória sobre as Minas da capitania de Minas Gerais, Suas descrições, ensaios e domicílios próprios. À maneira de itinerário”. (1801), RAPM, X, 1905, p.57. ———. “Considerações sobre as duas classes mais importantes de povoadores da capitania de Minas Gerais, como são as de mineiros e agricultores, e a maneira de as animar — RIHGB, v.XXV, 1862, p.421-9. ———. “Descobrimento de Minas Gerais — relação circunstanciada”, RIHGB, v.XXIX, 1, p.5. LEME, Antonio Pires da Silva Pontes. “Memória sobre a utilidade pública em se extrair o ouro das Minas e os motivos dos poucos e interesses que fazem os particulares que mineram igualmente no Brasil” — RAPM,

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