Deficiência em questão: para uma crise da normalidade
 9788581280578

Table of contents :
Introdução
Marcia Moraes · Luiza Teles Mascarenhas
Fernando Fontes · Bruno Sena Martins
Deficiência e a biomedicina: o corpo e as lutas pelo sentido
Bruno Sena Martins
Investigação emancipatória da deficiência em Portugal: desafios e reflexões
Bruno Sena Martins · Fernando Fontes
Pedro Hespanha · Aleksandra Berg
PesquisarCOM outros: diferenças, silêncios e composições de mundos com
pessoas com deficiência visual
Carolina Sarzeda Reis Couto · Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce Juliana
Pires Cecchetti Vaz · Keyte da Silva Pestana
Larissa Ribeiro Mignon · Lia Paiva Paula
Lucas Nogueira Calvet Corrêa · Maíra de Macedo França
Marcia Moraes · Thais Amorim Silva
Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo · Ana Claudia Monteiro
A mobilidade humana como prática coletiva
Andreia Santos de Carvalho · Bárbara Gonçalves dos Santos
Maudeth Py Braga
Deficiências, dificuldades e diferenças: critérios e direções para mediar a
Escola
Nira Kaufman
Desafios e invenções tecidas entre formações de professores e inclusão nas
escolas públicas regulares brasileirasLuiza Teles Mascarenhas · Marcia Moraes
Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres:
uma análise de documentos oficiais sobre violências contra mulheres com
deficiência
Anahi Guedes de Mello
Deficiência e violência em Portugal: do preconceito ao crime de ódio
Fernando Fontes
O paradoxo da deficiência: a guetização do visual
Lennard Davis
Sobre os autores e autoras

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CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ) Tel: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected] Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão e preparação de textos: Ana Cristina de Paula e André Cardoso Projeto gráfico, capa e editoração: Estúdio Arteônica Imagem da capa: Katia Politzer, Série Diversidade . Vidro soprado. Cip-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional Dos Editores De Livros, Rj D358 Deficiência em questão [recurso eletrônico] : para uma crise da normalidade / organização Marcia Moraes … [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2017. recurso digital ; 1 MB Formato: ebook Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-057-8 (recurso eletrônico) 1. Psicologia social. 2. Integração social. 3. Livros eleterônicos. I. Moraes, Marcia. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. 1a. edição - 2018

Introdução Marcia Moraes · Luiza Teles Mascarenhas Fernando Fontes · Bruno Sena Martins Deficiência e a biomedicina: o corpo e as lutas pelo sentido Bruno Sena Martins Investigação emancipatória da deficiência em Portugal: desafios e reflexões Bruno Sena Martins · Fernando Fontes Pedro Hespanha · Aleksandra Berg PesquisarCOM outros: diferenças, silêncios e composições de mundos com pessoas com deficiência visual Carolina Sarzeda Reis Couto · Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce Juliana Pires Cecchetti Vaz · Keyte da Silva Pestana Larissa Ribeiro Mignon · Lia Paiva Paula Lucas Nogueira Calvet Corrêa · Maíra de Macedo França Marcia Moraes · Thais Amorim Silva Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo · Ana Claudia Monteiro A mobilidade humana como prática coletiva Andreia Santos de Carvalho · Bárbara Gonçalves dos Santos Maudeth Py Braga Deficiências, dificuldades e diferenças: critérios e direções para mediar a Escola Nira Kaufman Desafios e invenções tecidas entre formações de professores e inclusão nas escolas públicas regulares brasileiras

Luiza Teles Mascarenhas · Marcia Moraes Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres: uma análise de documentos oficiais sobre violências contra mulheres com deficiência Anahi Guedes de Mello Deficiência e violência em Portugal: do preconceito ao crime de ódio Fernando Fontes O paradoxo da deficiência: a guetização do visual Lennard Davis Sobre os autores e autoras

Marcia Moraes Luiza Teles Mascarenhas Fernando Fontes Bruno Sena Martins A realidade das pessoas com deficiência tem sido dominada muitas vezes, no Brasil e em Portugal, por uma perspectiva reabilitacional e individualizada. Historicamente, a deficiência foi definida e consolidada por referência às supostas normalidades e incapacidades do corpo (DAVIS, 1995; GARLANDTHOMSON, 1996, 1997; WINZER, 1997; BARNES, 2000; BARNES et al., 2000), constituindo-se, em consequência, no seio de lógicas favoráveis à medicalização e à despolitização da experiência. Dada a permeabilidade dos sensos comuns aos discursos que naturalizam a inferioridade das pessoas com deficiência, a emergência e consolidação de um questionamento cultural e sociopolítico da normalidade, capaz de confrontar as condições estruturais que impedem efetivos horizontes de inclusão social, é tanto um desafio epistemológico como político. A leitura de que a deficiência é uma construção cultural e política com poucos séculos substancia uma perspectiva crítica relativamente nova dentro das ciências humanas e sociais, sendo igualmente recente o entendimento da deficiência enquanto uma forma particular de opressão

social. Nas últimas quatro décadas, estas análises críticas foram florescendo na academia, sobretudo no âmbito dos Disability Studies (Estudos da Deficiência), um campo de estudos que foi crescendo lado a lado com os movimentos sociais de pessoas com deficiência a partir do final dos anos 1960, início dos anos 1970 (OLIVER, 1996; BARNES et al. 2002; HANH, 2002; THOMAS, 2002), especialmente nos países de língua inglesa no Reino Unido e nos Estados Unidos. Esta nova área do saber acumulou um amplo reportório sobre barreiras culturais, psicológicas e físicas impeditivas da participação das pessoas com deficiência na vida em sociedade. A recusa da medicalização da deficiência e da secundarização da vontade das pessoas com deficiência face às suas próprias vidas, longe de negar o papel da medicina e da reabilitação nas vidas das pessoas com deficiência, vem afirmar o seu lugar num processo mais vasto de inclusão e transformação social. Falamos de um processo em que as pessoas com deficiência reclamam um papel decisivo que se opõe, entre outras coisas, a políticas sociais de viés caritativo ou paliativo, desenhadas apenas para mitigar as implicações individuais da deficiência e de uma concepção do corpo da pessoa com deficiência como “uma máquina avariada” (HUGHES e PATERSON, 1997: 329). Contrariamente a outros contextos em que os “Estudos da Deficiência” se têm configurado como o “braço intelectual” do movimento de pessoas com deficiência, em Portugal e no Brasil esta área de reflexão é ainda embrionária e desarticulada do ativismo. Em conjugação com as condições objetivas de exclusão das pessoas com deficiência em Portugal (MARTINS, 2007; FONTES, 2009; VEIGA, 2007; PORTUGAL et al., 2010), a fragilidade dos canais comunicantes entre academia e movimentos sociais de deficiência tem limitado a politização da questão da deficiência e, crucialmente, tem inibido a construção de políticas de identidade com impacto mobilizador e visibilidade pública. No Brasil, no entanto, o tema da deficiência vem ocupando cada vez mais espaço na academia. Há estudos em diversas áreas baseados nos referenciais dos Estudos sobre Deficiência , em conjugação com inflexões feministas (GAVERIO, 2015; MELLO E NUERNBERG, 2013; DINIZ, 2007, 2003). Por outro lado, ainda é bastante reduzido o número de pessoas com deficiência no ensino superior brasileiro, assim como são reduzidas as disciplinas e os projetos que pautem discussões neste âmbito, embora existam, no Brasil, políticas de educação inclusiva e de ações afirmativas para ingresso de pessoas com deficiência no ensino superior. A presente publicação resulta da articulação entre projetos realizados no Brasil e em Portugal, levados adiante por pesquisadores e pesquisadoras que integram essa coletânea. Em função dessa articulação Brasil / Portugal, uma decisão tomada pelos organizadores e organizadoras desse volume merece ser partilhada com os leitores e leitoras: trata-se da questão do uso da língua portuguesa. Brasil e Portugal são países falantes desse idioma, porém com acentos e tradições distintas tanto no que diz respeito ao português falado quanto no escrito. Optamos por deixar no presente texto as marcas de cada uso da língua portuguesa, seja na vertente lusitana, seja na brasileira. Dessa forma os leitores e leitoras poderão se aperceber das

variações linguísticas do português que tomamos como modulações positivas e interessantes da nossa língua, ao mesmo tempo comum e diversa. A despeito, no entanto, da modulação linguística, o que se faz presente como fio condutor dos trabalhos que se reúnem nesse volume é o questionamento político, cultural e social da deficiência, na esteira dos Estudos sobre Deficiência. A contribuição da academia portuguesa para este livro está intimamente ligada ao trabalho que vem sendo dinamizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, instituição que tem acolhido vários projetos de pesquisa na área dos estudos da deficiência. Os projetos desenvolvidos neste centro têm-se mobilizado para um questionamento cultural e sociopolítico da questão da deficiência em Portugal. No Brasil, sublinhamos a contribuição do grupo de pesquisa Entre_redes, especialmente em sua linha de pesquisa Laboratório PesquisarCOM, cujos trabalhos têm se orientado para os estudos sobre deficiência em suas interfaces com a Psicologia. As investigações realizadas pelo grupo, na graduação e na pós-graduação, têm se notabilizado por propor formas de conhecer e intervir no campo da deficiência que sejam situadas, localizadas e que, por esse viés, coloquem em xeque concepções desencarnadas de corpo e subjetividade. O grupo vem implementando discussões tanto metodológicas quanto ético-políticas no campo dos estudos sobre a deficiência, investindo em um modo de conhecer cujo registro é o fazerCOM o outro a pesquisa, e não SOBRE o outro. Assim, os trabalhos não são sobre a deficiência, mas com as pessoas com deficiência. A aposta é a de investir em narrativas locais e situadas a fim de colocar em xeque narrativas hegemônicas sobre a deficiência que mais não fazem do que reinstalar violentas opressões às experiências da deficiência. Assim, articulando esses campos de pesquisa que se levaram a cabo em Portugal e no Brasil, nesta obra apresentamos contribuições nacionais e internacionais, ao longo de nove capítulos. As contribuições brasileiras encontram-se em cinco capítulos, cujas autorias e coautorias envolvem os nomes de Carolina Sarzeda Reis Couto, Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce, Juliana Pires Cecchetti Vaz, Keyte da Silva Pestana, Larissa Ribeiro Mignon, Lia Paiva Paula, Lucas Nogueira Calvet Corrêa, Maíra de Macedo França, Marcia Moraes, Thais Amorim Silva, Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo; Maudeth Py, Andreia Santos de Carvalho, Bárbara Gonçalves dos Santos; Nira Kaufman; Luiza Teles Mascarenhas e Anahi Guedes de Mello. Nesses capítulos, as autoras e o autor realizam reflexões relacionadas ao tema da deficiência em diversos campos de intervenção no contexto brasileiro. As contribuições internacionais, por sua vez, encontram-se nos demais capítulos e referem-se tanto ao contexto português, a partir das contribuições de Bruno Sena Martins, Fernando Fontes, Pedro Hespanha e Aleksandra Berg, quanto ao norte-americano, representado pelo artigo de Lennard Davis. No primeiro capítulo, “Deficiência e a biomedicina: o corpo e as lutas pelo sentido”, Bruno Sena Martins reflete sobre o modo como a deficiência nasce no seio das formas de objetificação dos corpos inauguradas pela ciência

moderna, num movimento de materialização da diferença próximo daquilo a que Foucault designa de “práticas de separação”. Nesta análise, ganha particular relevância o lugar da norma enquanto princípio regulador da vida social, muito por culpa do seu papel estruturante no edifício biomédico. Bruno Sena Martins analisa como as “práticas de separação” foram crescentemente contrapostas por políticas de identidade, no seio das quais se afirmou uma fratura epistemológica, na cultura ocidental, sobre o significado da deficiência. No segundo capítulo, “Investigação emancipatória da deficiência em Portugal: desafios e reflexões”, Bruno Sena Martins, Fernando Fontes, Pedro Hespanha e Aleksandra Berg analisam a relevância e pertinência dos “Estudos da Deficiência” na realidade portuguesa. Este texto parte de duas principais constatações. Em primeiro lugar, a constatação de que, não obstante o interesse das ciências sociais nas questões de exclusão e desigualdade, a questão da deficiência, enquanto eixo central de reflexão, permanece ausente em muitos contextos acadêmicos. Em segundo lugar, a constatação de que a emergência dos “Estudos da Deficiência” deve muito aos contextos em que o ativismo das pessoas com deficiência fez relevar as condições estruturais que oprimem e negligenciam as experiências da deficiência. Nesse sentido, tendo em conta as especificidades do ambiente sociopolítico português, os autores pulsam o desafio para uma maior relevância da questão da deficiência na academia portuguesa e do engajamento da investigação com um paradigma ético e político em prol dos direitos das pessoas com deficiência. No terceiro capítulo, “PesquisarCOM outros: diferenças, silêncios e composições de mundos com pessoas com deficiência visual”, é discutida uma situação que se passa no campo de pesquisa e que inaugura uma interessante discussão sobre o fazerCOM o outro a intervenção de pesquisa. Que sentidos pode assumir a direção de pesquisarCOM as pessoas com deficiência visual e não SOBRE a deficiência visual? O que se propõe nesse capítulo é a afirmação radical de que o fazer COM a pesquisa envolve riscos, hesitações e diferenciações entre as questões que interessam aos pesquisadores e pesquisadoras e aquelas que são construídas no encontro com as pessoas com deficiência visual. Trata-se, em última instância, de tomar as pessoas com deficiência não como alvos das pesquisas, mas como experts. No quarto capítulo, “A mobilidade humana como prática coletiva”, Andreia Santos de Carvalho, Bárbara Gonçalves dos Santos e Maudeth Py Braga, entendem a mobilidade como experiência ao considerarem que todos nós interferimos no espaço ao nos deslocarmos. Nesse sentido, as autoras defendem que os deslocamentos não são somente de ordem geográfica, são práticas de espaço. Neste artigo, elas discutem e defendem a seguinte posição: a ação de mover-se no espaço pode ser uma ação de transformação de si e da cidade. As autoras afirmam ainda que a deficiência traz para o sujeito uma transformação no modo de vida e no que tange à mobilidade, ela é construída porque a cegueira impõe uma nova forma de se relacionar com o espaço em que se habita, sendo uma experiência com o próprio corpo. As questões trabalhadas neste artigo se baseiam no percurso e percalços de uma das autoras em sua experiência de reorientação de mobilidade, após ter

ficado cega quando jovem, numa situação de violência urbana na região metropolitana do Rio de Janeiro. O quinto capítulo, intitulado “Deficiências, dificuldades e diferenças: critérios e direções para mediar a escola”, é assinado por Nira Kaufman e visa discutir os sentidos da prática de mediação escolar a partir da análise de situações de inclusão descritas pela autora, como base em experiências vividas no encontro com crianças em situação de inclusão. Problematizando a questão do uso do diagnóstico na prática da inclusão escolar, o texto oferece direções para lidar com a mediação, afastando-se radicalmente de qualquer perspectiva medicalizante da deficiência e da diferença no espaço escolar. Na medida em que oferece direções de trabalho para a mediação, a autora propõe noções bastante interessantes para a lida com a diferença no ambiente educacional. Ao discutir, por exemplo, a ineficácia do diagnóstico como operador pragmático no ambiente escolar, a autora afirma que importa seguir o que são as dificuldades de cada criança no processo de aprendizagem. Tomar as dificuldades como fio condutor da prática de mediação – e não os diagnósticos – é abrir-se ao encontro, o que se passa na relação com a diferença, e não em categorias biomédicas. No conjunto do artigo, os leitores e leitoras seguirão as pistas que a autora oferta para o trabalho da mediação, e serão, por certo, convocados e convocadas a pensar em outras pistas que afirmem a diferença como singularidade. No sexto capítulo, “Desafios e invenções tecidas entre formações de professores e inclusão escolar nas escolas públicas regulares brasileiras”, Luiza Teles Mascarenhas e Marcia Moraes discutem o tema da inclusão escolar de pessoas com deficiência no contexto brasileiro. Tomando como ponto de partida uma publicação recente (MASCARENHAS, 2016), o artigo mostra as tensões presentes neste campo. Se por um lado, houve avanços na legislação brasileira que trata desta temática, por outro, ainda se faz urgente o combate à desqualificação das diferenças presentes em muitas práticas. Uma ferramenta importante para tal combate está no questionamento das fronteiras entre incluídos e excluídos, produzidas historicamente, além da aposta no processo de inclusão escolar como um processo de transformação dos sujeitos envolvidos. Neste viés, as autoras também colocam em análise temas que atravessam a inclusão escolar, tais como: o “mito da competência docente”, a “medicalização da vida escolar”, além da formação inicial e continuada de professores que muitas vezes acontece na perspectiva da “racionalidade técnica”. No sétimo capítulo, “Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres: uma análise de documentos oficiais sobre violências contra mulheres com deficiência”, Anahi Guedes de Mello parte da análise de documentos oficiais relativamente recentes e de domínio público que versam sobre políticas de enfrentamento às violências contra mulheres no Brasil, em particular do Estado de Minas Gerais, no sentido de apontar e refletir sobre como “gênero” e “deficiência” aparecem ou são percebidos nos discursos. No país, as violências contra pessoas com deficiência se mantêm, muitas vezes, na esfera privada, não sendo percebidas como uma questão de direitos humanos. A situação se agrava ao considerarmos as violências praticadas contra mulheres com deficiência, pois a deficiência é recorrentemente tratada fora de um contexto de interseção com a categoria

de gênero. A partir dos documentos analisados pela autora é possível percebermos, de um lado, o quanto as políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência possuem pouco ou inexistente enfoque no recorte de gênero, ao passo que as políticas voltadas à violência contra a mulher não fazem menção explícita à deficiência. A partir do conceito de “transversalidade” a autora aponta para a relevância de uma aproximação entre a perspectiva da deficiência, dos direitos humanos e das políticas de gênero. No oitavo, “Deficiência e violência em Portugal: do preconceito ao crime de ódio”, Fernando Fontes analisa o fenômeno da violência sobre pessoas com deficiência na sua relação com o atual contexto de crise econômica e políticas de austeridade. Esta forma de violência tem sido crescentemente visibilizada e debatida enquanto realidade, até aqui invisibilizada, que afeta grupos sociais historicamente discriminados. Na primeira parte do texto, Fernando Fontes procede a uma caracterização do fenômeno, identificando o perfil das vítimas, principais tipos de crime e perfil do abusador. Na segunda parte, enquadra as medidas de proteção jurídica das pessoas com deficiência em Portugal, expondo os limites das concepções de deficiência veiculadas pelo legislador. Na última parte, exploram-se as vantagens e desvantagens do reconhecimento do crime de ódio, enquanto forma específica de violência, com base na deficiência em Portugal. No nono e último capítulo, “O paradoxo da deficiência: a guetização do visual”, Lennard Davis explora as relações entre arte e deficiência. Em causa está o paradoxo na arte produzida por artistas com deficiência ou que têm por tema a deficiência, aquilo a que o autor designa por “paradoxo da deficiência”. Por um lado, essa arte é alvo de “guetização”, numa circunscrição das suas leituras e alcance dentro do tema da deficiência, por outro lado, quando essa arte atinge um estatuto a que chamaríamos de universal, é como se a questão da deficiência fosse inteiramente erradicada, apagando-se a deficiência do artista ou o interesse da obra para a temática das culturas e políticas da deficiência. Esta obra opera, assim, para a consolidação dos estudos da deficiência, especialmente em língua portuguesa. O que perpassa todos os estudos aqui apresentados é a afirmação da deficiência como uma questão política e social que concerne a todos nós. O compromisso firmado é o de colocarmos em xeque qualquer concepção de deficiência que seja desencarnada, pautada tão somente pelo modelo biomédico, desconsiderando-se as singularidades das experiências da deficiência, ou a forma como a deficiência tem sido marcada social, cultural e politicamente como questão individual. Cada vez mais, no Brasil e em Portugal, as pessoas com deficiência assumem o lugar de protagonistas nas lutas pelas defesas de seus direitos e questionam o lugar de “objetos”, muitas vezes imposto por estudos e intervenções nas ciências da saúde, humanas e sociais. Na academia, embora ainda tenhamos um número muito reduzido de pessoas com deficiência, seguimos lutando junto com elas, tanto por uma maior presença deste grupo nas universidades quanto por uma maior inserção da questão da deficiência no espaço acadêmico. Nele defendemos, tanto no Brasil quanto em Portugal, que as relações de pesquisa e de ensino

sejam pautadas por perspectivas mais inclusivas no sentido de questionarmos os padrões normativos que nos constituíram. Para tanto, é fundamental o exercício da escuta. Escutar as pistas que desafiam os lugares dados, que questionam os privilégios, que colocam em pauta outros referenciais de estudo e de pesquisa, outras maneiras de se relacionar, de utilizar uma língua, outros modos de subjetivação. O desafio está aceito e o trabalho apenas começando. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNES, Colin (2000). “The Social Model of Disability: A Sociological Phenomenon Ignored by Sociologists?” In: SHAKESPEARE, Tom (org.). The Disability Reader. Social Science Perspectives . London: Continuum, p.65-78. BARNES, Colin; MERCER, Geof (2002). “ The Politics of Disability and the Struggle for Change ”. In: BARTON, Len (org.). Disability Politics and the Struggle for Change . London: David Fulton, p.11-23. BARNES, Colin; MERCER, Geof; BARTON, Len (2002). “Disability, the Academy and the Inclusive Society”. In: BARNES, Colin; Geof Mercer; Len Barton (orgs.). Disability Studies Today . Cambridge: Polity Press, p.250-260. BARNES, Colin; MERCER, Geof; SHAKESPEARE, Tom (orgs.) (2000). Exploring Disability. A Sociological Introduction . Cambridge: Polity Press. DAVIS, Lennard (1995). Enforcing Normalcy: Disability, Deafness, and the Body . London: Verso. DINIZ, D. (2007). O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense. __ (2003). “Modelo social da deficiência: a crítica feminista”. Série Anis , v. 28, p.1-8. FONTES, Fernando (2009). “Pessoas com deficiência e políticas sociais em Portugal: da caridade à cidadania social”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 86, p.7393. Versão eletrónica disponível em: < http:// rccs.revues.org/233 >. Acesso em: 11/09/2017. GARLAND-THOMSON, Rosemarie (org.) (1996). Freakery: Cultural Spectacles of the Extraordinary Body . New York: New York University Press. __ (org.) (1997). Extraordinary Bodies: Figuring Physical Disability in American Culture and Literature . New York: Columbia University Press. GAVERIO, M. A. (2015). “Querem Chupar seu cotoco? Deficiência, Sexualidade e Possíveis Transações Corporais”. Anais – XIII Semana de Ciências Sociais da UFSCar . v. 1. p.238-251. HAHN, Harlan (2002). “Academic Debates and Political Advocacy: the US Disability Movement”. In: BARNES, Colin; OLIVER, Michael; BARTON, Len (orgs.). Disability Studies Today . Cambridge: Polity Press, p.162-189.

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Deficiência e a biomedicina: o corpo e as lutas pelo sentido Bruno Sena Martins No presente capítulo, analisa-se como o conceito de deficiência é imanente ao projeto epistemológico da modernidade ocidental. Em particular, procura-

se evidenciar o quanto a noção de deficiência, firmada sobre um espectro particular de corpos, deve ser entendida como um produto subsidiário de um discurso biomédico, numa leitura que se coloca na esteira do nexo de conhecimentos e saberes que Michel Foucault designou de “biopoder”. Finalmente, dá-se atenção ao modo como as consequências da objetificação moderna das deficiências foram politicamente debatidas a partir dos anos 1960, de tal modo que se pode falar no surgimento de uma fratura epistemológica na cultura ocidental no que diz respeito ao significado da deficiência. Deficiência e biomedicina Se se percorrerem os autores que no âmbito das ciências sociais conferiram atenção analítica ao tema do corpo, ora colocando-o no centro das suas preocupações, ora tratando-o de um modo mais indireto e difuso, erigem-se contribuições tão distintas com as de Durkheim, Marcel Mauss, Norbert Elias, Pierre Bourdieu ou Mary Douglas. Como assinala Bryan Turner, em Regulating Bodies (1992), uma obra onde se exploram demoradamente os usos do corpo na história da teoria social, estas abordagens comungam um enquadramento estruturalista que investe sobretudo em analisar o modo como as práticas e as técnicas corporais são culturalmente moldadas e os termos em que os corpos são inscritos de significado no seio dos sistemas culturais. De fato, é para uma tal sensibilidade crítica que enviam construções teóricas como as “técnicas do corpo” (MAUSS), o “habitus” (BOURDIEU), a noção do corpo como capital simbólico (BOURDIEU), ou o seu reconhecimento enquanto símbolo natural (DOUGLAS). Grosso modo, está-se perante leituras que se enquadram na recursividade entre o corpo físico e o corpo social a que se refere Mary Douglas: “O corpo social condiciona o modo como o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais por que é conhecido, suporta uma visão particular da sociedade” (1973: 93). É esta coimplicação do corpo físico e do corpo social que a tentativa de compreensão da deficiência me convoca a analisar. O lugar do corpo na crítica social das últimas décadas, particularmente no feminismo e no póscolonialismo, viria a ficar irremediavelmente marcado pela centralidade que este tema recebeu na obra de Michel Foucault como locus privilegiado de atuação das formas de poder que a modernidade consagrou. A genealogia moderna de Foucault sustenta uma visão historicista, congruente com o fechamento de sentido e com a assunção dos limites que assistem às “condições de possibilidade” para um dado contexto. Nessa perspectiva histórica, a achada singularidade do poder moderno emerge ligada a uma inédita proliferação de saberes que sustentam e são sustentados pelas relações de poder: Em vez de se partir de uma repressão geralmente admitida e de uma ignorância conforme ao que se procura saber, há que partir destes mecanismos positivos, produtores de saber, multiplicadores de discursos, indutores de prazer e geradores de poder, segui-los nas suas condições de aparecimento e de funcionamento e procurar ver como se distribuem relativamente a eles as parcelas de interdição e de ocultação que lhes estão ligadas. (FOUCAULT, 1994: 77)

Assim, o que interessa é aceder ao caráter produtivo das configurações epistêmicas que subjazem à deficiência. É esta vocação epistemológica, criativa, a que Michel Foucault se refere na consagração do “poder disciplinar da modernidade”. Foucault advoga que a modernidade inaugura uma sociedade disciplinar que apresenta como diacrítica fundamental a singularidade do poder que lhe é coevo. Assim, a ideia defendida de uma sociedade disciplinar moderna envia para um idioma crítico que se nutre da identificação de uma nova economia do poder que surge nas sociedades industriais modernas, uma gramática das relações que não mais opera pelo peso da negação que transporta, mas se funda, ao invés, nos efeitos positivos que engendra, na sua capacidade de emanar saberes e fazer proliferar discursos, produzindo realidade. De fato, a assunção da deficiência enquanto uma das narrativas persuasivas da modernidade liga-se à espessura epistemológica que a modernidade gerou, mas também às condições de impossibilidade criadas por poderes cuja vigência escapa largamente à ordem da repressão. Na verdade, o distanciamento de Foucault em relação a uma concepção tradicional do poder enquanto mecanismo essencialmente negativo e repressivo constitui uma evolução no seu próprio pensamento, que se tornaria mais claramente expressa a partir de Surveiller et Punir (1975), como o próprio autor o assume (cf. FOUCAULT, 1980: 183-185). De fato, embora em Folie et Déraison (1961) e Surveiller et Punir (1975) a análise de Foucault surja ligada ao que de excludente e repressivo existe nas instituições que acolhem o louco e o criminoso, respectivamente, dever-se-á responder pela negativa à questão que o próprio autor coloca: “a mecânica do poder, e em particular a que funciona numa sociedade como a nossa, será efectivamente, no essencial, da ordem da repressão?” (FOUCAULT, 1994: 16). Portanto, é central perceber em que medida o nascimento de discursos e saberes que procuram atuar sobre o louco e o criminoso, transformando-os, se liga à lógica que preside às relações de poder na sociedade moderna. É essa semelhança que Foucault (1975) sugere quando fala de um movimento a partir das disciplinas normalizadoras empreendidas em instituições fechadas para a caracterização da sociedade como um todo, uma “sociedade carcerária”, uma sociedade disciplinadora e que busca a supressão do desvio pela normalização. É bem esta pulsão normalizadora presente no tecido social a par com a proliferação de conhecimentos que fica inequivocamente expressa na sua História da Sexualidade (1994). Portanto, a irmandade possível entre a identificação da loucura e a objetificação da deficiência resultará de uma analogia nas condições do seu nascimento, ou da sua individualização epistemológica à luz de uma economia de podersaber distintamente moderna. Uma economia singular e prolixa, de onde radica toda uma parafernália de práticas heterogêneas, “práticas de separação” onde a doença é distinguida da saúde, do crime, a loucura da sanidade, a ociosidade da incapacidade, etc. (FOUCAULT, 2003).

A definição da deficiência enquanto idioma cultural eminentemente moderno liga-se, pois, a uma valorização do corpo como objeto de saberes e como elemento nas relações de poder ocorrida a partir do século XVII (FOUCAULT, 1994: 110). Interessa, portanto, analisar o papel que viria a ser desempenhado pela emergência de um paradigma biomédico na nossa sociedade. Conforme afirma Foucault, a medicina constituiu-se com uma armadura científica sólida – desde logo por comparação com a psiquiatria –, mas que se encontra, não obstante, igualmente imbuída nas estruturas sociais (1980: 109), forjando-se no seu discurso uma inédita relação entre o biológico e o político (1994: 144). Assim, o dispositivo biomédico é passível de ser interpretado como uma expressão particular da tecnologia do poder moderno constituída pelo conhecimento científico. Na verdade, a importância fulcral que Foucault confere ao corpo e ao conhecimento médico não é senão manifestação da centralidade que o autor atribui às formas de poder e aos enquadramentos de normalidade que acompanham o estabelecimento dos saberes da biomedicina, forma particularmente totalitária da etnociência ocidental. O alcance dos valores emanados do paradigma biomédico fica também expresso na sua apetência para “produzir” realidade. Surge, portanto, uma configuração de poder cuja mais alta função não é matar, mas, antes, investir a vida de ponta a ponta (FOUCAULT, 1994: 142). A articulação dos fenômenos da vida com a autoridade política assume duas formas distintas, embora relacionadas. Uma tem início no século XVII e diz respeito às estratégias, disciplinas e concepções que consagram o corpo como máquina, visando a sua utilidade, aproveitamento econômico e integração em sistemas de controle. Estamos face a uma “anátomo-política do corpo humano” que visa a produção de “corpos dóceis” (FOUCAULT, 1980: 172, 1994: 142). A outra forma da relação entre o poder e a vida tem início no século XVIII e centrou-se num conjunto de “controles reguladores” do “corpo-espécie”: a saúde, a longevidade, a natalidade, a mortalidade, etc. Elementos em torno dos quais se erigem as “biopolíticas da população”, em que o enfoque conferido às incidências e variáveis da vida se articulam com o fato de a “população” ter surgido no final do século XVIII como uma questão econômica e política cujo conhecimento é essencial para a governação (FOUCAULT, 1980: 166-182, 1994: 29; ROSE, 1994: 54-55). É a esta recente aparição da vida (FOUCAULT, 2002: 210), sob a égide de uma autoridade médica e política em que ela própria ganha os seus contornos, que Foucault chamaria de “biopoder” (1994: 142). O lugar da norma enquanto princípio regulador da vida social surge como característica central do poder disciplinar, muito por culpa do seu papel estruturante do edifício biomédico. Aliás, a este propósito, Foucault não poderia ser mais afirmativo: “Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (1994: 146). De fato, um aspecto que permeia a consolidação do paradigma biomédico em todas as suas instâncias é a absoluta centralidade constitutiva do conceito de norma enquanto princípio regulador de discursos e práticas. Ao colocar os imperativos normativos enquanto centro do conhecimento nas ciências da vida, Foucault reflete a influência da obra desenvolvida por Georges

Canguilhem, de que releva o livro Le Normal et le Patologique (1984). Georges Canguilhem inquire acerca da disseminação de uma distinção entre o normal e o patológico desde o surgimento dos termos em meados do século XVIII até à sua inculcação como dogma científico no século XIX. Canguilhem faz notar que, não sendo o anormal o patológico, o patológico emerge decisivamente como anormalidade. Em particular, Georges Canguilhem analisa como a aceitação da diferenciação entre o normal e o patológico surge como produto da sua coimplicação ontológica com os territórios da biologia e da medicina. Ademais, Canguilhem observa a confluência entre as práticas curativas da medicina e um idioma que as configura no confronto com a patologia na busca da reinstauração da normalidade. É no mesmo sentido de Georges Canguilhem que Claudine Herzlich (1991) vem defender que a emergência da medicina se deve à criação da ideia de norma alterada. Na verdade, desde o século XVIII, a história dos corpos jamais se libertaria da consagração do modelo biomédico do corpo enquanto norma reguladora das práticas discursivas da medicina. Uma transformação nas configurações dos corpos cujo decisivo ponto de viragem Nicholas Mirzoeff localiza no século XVIII: “Na segunda metade do século XVIII, a ciência médica começou a sustentar-se numa distinção entre os estados normais do corpo e as suas patologias, isto é, as suas doenças e anormalidades” (1995: 45). Verifica-se, portanto, uma radical transformação das constelações de sentido dos corpos, que assim deixam de estar ligados a uma concepção relativista do corpo, que nos acompanhou até ao século XVIII (MIRZOEFF, 1995), para passarem a ser infundidos de sentido por relação a uma plataforma cujo referencial central é a noção biomédica de norma corporal, uma regra natural. É na matriz fundada por estes valores estruturantes do biopoder moderno, que Foucault denunciou, que a deficiência é vinculada à ideia de patologia. Patologia e desvio Certamente que a natureza incurável da maioria das formas de deficiência as subtrai à mesma efetividade que a ação médica detém para a doença física ou mental ou, pelo menos, à relevância que os processos de busca do estado normal de saúde detêm na definição das patologias como condições marcadas pelo signo do desvio (HERZLICH, 1991: 195). Aliás, conforme assinala pertinentemente Henri-Jacques Striker (1999: 104), a fatal incurabilidade que se associava à deficiência constituiu um dos fatores que contribuiu para a sua caracterização enquanto tal, isto por oposição à doença enquanto desvio temporário e, portanto, socialmente aceito (HERZLICH, 1991: 202). No entanto, isto não impede a persuasão de que a demarcação do estatuto simbólico das pessoas com deficiência se constitui como um inegável produto do paradigma biomédico. Embora o exercício da medicina enquanto prática curativa pouco interviesse nos corpos descritos como deficientes, são os seus modelos e discursos que, até hoje, suportam a conceitualização e informam respostas sociais dominantes à deficiência.

Assim, o processo que conduziu ao desenvolvimento de uma percepção social individualizada das pessoas com deficiência, a par com o surgimento de práticas e instituições específicas para as atender na especificidade da sua condição, encontra-se inerentemente ligado às formas nascentes de objetificação corporal, processo implicado com o fato de o conhecimento das características e variáveis da população – do corpo social – se ter tornado um elemento indispensável para a organização da sociedade. É por referência a estes dados que se pode ler o surgimento no século XVIII, particularmente na segunda metade, de todo um conjunto de instituições que não mais se dedicam à pobreza de um modo indiscriminado, mas antes se estruturam para acolher a especificidade das diferenças identificadas e criadas no crivo da razão moderna. Temos, pois, a produção de grelhas de análise crescentemente minuciosas e fracionadas que são, no fundo, distribuições operadas em torno da norma. A questão é que a deficiência, enquanto construção moderna, carrega um intento matricial de superação daquilo mesmo que lhe parece ser característico. Falo da imanência social da norma enquanto valor e dos imperativos normativos implantados. Pode dizer-se, portanto, que há um intento normalizador que se impõe como consequência da nomeação de uma condição por referência à normalidade de que está excluída: “O conceito de normalidade fecha a distância entre o ‘é’ e o ‘deve ser’. No nosso conceito de normalidade estão incluídas duas ideias: preservação e melhoria” (KLEINMAN, DAS E LOCK, 1997: xix). Lennard Davis (1995) elabora, num mesmo fôlego, uma análise histórica do surgimento do conceito de deficiência e uma crítica à “hegemonia da normalidade” que se estabeleceu nas sociedades modernas, uma hegemonia sublinhada por momentos tão marcantes como os extermínios perpetrados pelo regime nazi. Numa primeira instância, Davis dedica-se a uma pesquisa etimológica em que se apoia a persuasão de que as palavras para designar norma, normal, normalidade e média só surgem nas línguas europeias nos meados do século XVIII. Em particular, Davis faz notar que o étimo normal só entra na língua inglesa com um sentido próximo de padrão em 1840, referindo antes dessa data configurações geométricas (1995: 94). Estes dados suportam a ideia que esses conceitos, que se tornaram estruturantes das mais diversas facetas da vida social, constituem, na verdade, uma invenção com menos de dois séculos. Na gênese dos imperativos normativos, Davis atribui enfoque privilegiado ao lugar conferido à norma no desenvolvimento da estatística. Afirma Davis que a gênese da estatística remete para um campo de saberes muito próximo daquilo a que poderíamos chamar de “aritmética política”. Esta estatística nascente constituía, acima de tudo, uma sede de saberes através da qual o Estado elaborava informações acerca das características da população − tornadas pertinentes no decurso do século XVIII, como acima referimos − e cujo desenvolvimento veio a ter implicações na consolidação e disseminação das teorias eugênicas (DAVIS, 1995: 26-30). Particular relevância é dada por Lennard Davis à contribuição do estatístico francês Adolphe Quetelet ¹ (1796-1847), atenção que se justifica quer pelo fato de as suas elaborações terem constituído uma das primeiras e mais importantes contribuições para a afirmação da norma como imperativo, quer pelo caráter ilustrativo das ideias por si desenvolvidas. Foi Adolphe Quetelet quem, apropriando-se da “lei do erro”,

desenvolvida na astronomia para estimar a posição das estrelas por relação às observações realizadas, sugeriu que esta poderia igualmente ser aplicada para as distribuições das características humanas, como a altura e o peso. Assim investido, o estatístico viria a desenvolver o conceito crucial de “l ´homme moyen” (“o homem médio”), elaboração onde se reitera uma combinação das características físicas e morais aritmeticamente inferidas como médias para um determinado contexto, ou seja, a articulação do “l ´homme moyen physique ” e do “l´homme moyen morale” (DAVIS, 1995: 26, 28). Na realidade, a ideia de l´homme moyen physique e l´homme moyen moral que Quetelet desenvolveu foi celebrada como uma espécie de ideal, em que se supunha estar sintetizado o que de melhor tem a espécie humana. Porém, Davis nota como esta configuração de ideal é bem distinta da que prevaleceu na Grécia antiga, em que a ideia do corpo ideal associado aos deuses se erigia como um valor superior que à partida não estava ao alcance dos homens mortais. Já os valores permeados pela noção de norma consagram formações idílicas, é certo, mas que se estabelecem como percursos a serem percorridos, utopias normalizantes a serem perseguidas pelo engenho e pelo progresso humano: “a média torna-se então, paradoxalmente, uma espécie de ideal, uma posição votada a ser desejada” (DAVIS, 1995: 25). O subtexto desta utopia normalizante, pernicioso, diria, reside na asserção de que o seu desígnio passa, incontornavelmente, pela supressão das formas desviantes e pela eliminação dos defeitos como forma de aperfeiçoamento humano ( ibidem : 27-28). O entendimento pelo qual Lennard Davis contrapõe a construção da deficiência com a noção de “hegemonia da normalidade” revela ser particularmente instigante por evidenciar como a criação de uma alteridade, fundada no conceito de deficiência, esteve, desde cedo, decisivamente imbricada com a sua subalternização. Ademais, a noção de “hegemonia da normalidade” – de que as concepções eugênicas são uma expressão limite, pese embora o fato de estarem disseminadas por todo o mundo ocidental, que culminou no extermínio perpetrado por Hitler – vinga em captar aquela que é a expressão insidiosa da desqualificação das formas do vivo identificadas como desviantes: “A hegemonia da normalidade é tão efetiva, tal como outras práticas hegemônicas, graças à sua invisibilidade” (DAVIS, 1995: 170). Porém, a leitura de Lennard Davis mostra carecer de alguma complexidade quando o autor, analisando as formas de estigmatização a que as pessoas com deficiência são contemporaneamente sujeitas pelos meios de comunicação, constata que “o corpo ‘normal’ existe sempre numa relação dialética com o corpo deficiente” (DAVIS, 1995: 157). De fato, embora o inverso se verifique – a saber, a já referida constituição da deficiência por oposição à efetividade da norma, a cuja gênese histórica nos vimos referindo –, a hegemonia de uma normalidade corporal terá que ser entendida por referência a uma pluralidade de desqualificações dos corpos e dos seus usos, elaborações culturais onde os discursos da biomedicina assumem papel central. Assim, penso que a constituição dos imperativos de normalidade terá que ser entendida por relação a um conjunto de topografias de desvio, de que a deficiência é parte. Aportamos assim na ideia, particularmente cara

às perspectivas feministas sobre a deficiência, ² de que a desqualificação da pessoa com deficiência está, de algum modo, ligada à opressão cultural do corpo real de toda a gente (WENDELL, 1996, 1997). Regressamos, igualmente, à ampla latitude das elaborações normativas investidas sobre os corpos, a que a persuasão da emergência de um biopoder nos havia conduzido. Corpos e contingência Ernesto Laclau (1996) reflete sobre o fechamento e contingência que marcam a emergência do pensamento moderno. O autor tira as consequências da persuasão de que todo e qualquer projeto emancipatório se encontra imerso numa historicidade particular. Daqui vem a decorrer uma tensão nunca resolvida entre a ambição universalista e totalizante da ideia de emancipação – num sentido que tem tanto de um ideário abstrato como de necessidade política de se afirmar uma radical fundação – e a precariedade sócio-histórica que resulta da contingência das lutas, oposições e exclusões que sempre estruturam as narrativas emancipatórias. Fortemente fundado na elaboração antagônica de que todo o conhecimento que se investe em apresentar novos valores para fundar os contextos da vida social, Laclau advoga que os agentes sociais terão que reconhecer a sua finitude concreta, assumindo que ninguém pode aspirar a ser a verdadeira consciência do mundo. No entanto, para o autor, esta asserção, longe de ser paralisante, deverá definir um perpétuo horizonte democrático capaz de reconhecer as exclusões pelas quais vivemos, mesmo que num itinerário progressista. Conforme enuncia Judith Butler, trata-se de reconhecer “as exclusões pelas quais procedemos” (1993: 53). Só esta consciência das exclusões produzidas no decurso de um qualquer itinerário pode permitir a efetiva consciência democrática de uma incompletude; o que significa também a reatualização da contingência que assistiu à própria gênese das formações discursivas fundadoras de uma logia que se afirma progressista. No entanto, perante a exclusão que sempre acompanha qualquer formulação de democracia, parece erigir-se uma tênue linha de demarcação entre a asserção de um fatalismo e o perpétuo desejo da sua negação. É neste sentido que Ernesto Laclau (1996) defende ser necessário distinguir entre a impossibilidade ontológica de não fechamento das formulações acerca da vida social e um posicionamento ético de abertura à heterogeneidade do outro. É este firmamento ético que permitirá distinguir formações sóciohistóricas vocacionadas para reconhecer a sua contingência. Laclau refere que os filósofos do Iluminismo foram consequentes ao pretenderem fundar uma sociedade presidida pela razão, pois definiram e identificaram como irracionalidade tudo aquilo que os precedia ou estava fora de um tal novo projeto. Na verdade, é sobretudo por oposição aos valores dominantes do mundo medieval que se erige o tesouro da racionalidade moderna, tido como achado tão precioso que deveria ser feito património da humanidade em todos os lugares. Assim, o triunfo da razão que se proclama não vê chegar o seu estreitamento apenas pela articulação com o sistema econômico que se tornaria dominante − o capitalismo industrial −, mas por um constrangimento já definido na oposição excludente para com as diversas formas de irracionalidade.

Concretizando esta ideia mais geral acerca da emancipação, assinalamos o caráter contingente e oposicional da emergência da razão moderna, marcado singularmente pela menor prevalência das interpretações metafísicas em favor das lógicas “desencantadas” da razão moderna. A demarcação em relação às hermenêuticas metafísicas, profusamente disseminadas no período pré-moderno, favoreceu o privilégio de conhecimentos marcados pela vanguarda da racionalidade científica, numa exclusão de outras formas de racionalidade que haveriam de perdurar, com particular ênfase na exclusão da reflexividade vivencial das pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência foram historicamente submetidas às construções modernas que as definiram como menos pessoas – porque viventes em corpos patológicos, disfuncionais e anormais. Em consequência, foram confrontadas com um apagamento sistemático das suas vozes e das suas reflexividades em favor dos discursos da biomedicina ou da autoridade dos profissionais da reabilitação. É contra a naturalização da inferioridade e contra a trivialização do silenciamento que haveriam de emergir lutas sociais em nome da deficiência. As políticas da contranormalidade Como referimos, a concepção de deficiência que começa a ser desenhada no século XVIII, que nasceu e se consolidou alojada nas próprias estruturas culturais, sociais e econômicas em que assentam as sociedades modernas, viria a subsistir incólume até ao final da década de 1960, altura em que pela primeira vez foi seriamente denunciada a cumplicidade entre a noção de deficiência hegemonicamente estabelecida, as formas vigentes de organização social e as experiências de profunda marginalização então vividas pelas pessoas descritas pelo idioma da deficiência.

No entanto, hoje é possível distinguir uma concepção hegemônica de deficiência de uma concepção contra-hegemônica. É interessante notar que, ao mesmo tempo que é possível consagrar a violência simbólica e vivencial que as representações modernas infundiram na experiência da deficiência, remetendo-nos para um tempo longo que assinala como as diferentes condições físicas se nutriram da experiência, é possível aceder a um tempo curto. Falo de uma temporalidade que nos reporta à década de 1970, a partir da qual é possível ler em que medida nas diferentes sociedades, nas diferentes nações, os valores hegemônicos constituídos sobre as pessoas com deficiência foram desestabilizados como forma de negar o seu impacto excludente nas vidas das pessoas a que, utilizando a linguagem hegemônica, chamamos pessoas deficientes ou pessoas com deficiência. Na realidade, numa perspectiva radicalmente instigante, mais do que um conjunto de atributos objetivamente identificáveis ou definíveis, a opressão social será, porventura, a única coisa que as pessoas com deficiência têm em comum (WENDEL, 1997: 264). Portanto, ciente do perigo de universalizar uma diferença que assenta numa demarcação contingente, definida historicamente, ao referir-me à deficiência em termos mais generalistas, viso contemplar elementos comuns da subalternização das pessoas com deficiência. Aqueles mesmos que foram, e vêm sendo, identificados no próprio processo histórico da emergência de movimentos políticos em torno da deficiência. O surgimento, nos finais da década de 1960, dos movimentos estudantis e das lutas pelos direitos civis constituiu uma profunda reestruturação das práticas e valores democráticos até então vigentes. Por um lado, foi aí achada a falência das formas tradicionais de participação política assentes na representatividade partidária e na equação minimalista do exercício da cidadania ao voto. Isto num quadro em que as lutas de classe sindicalmente organizadas se estabeleciam como uma poderosa exterioridade à luta político-partidária, sendo, no entanto, congruentes com uma ortodoxia emancipatória em que se entronizava um sujeito privilegiado da transformação histórica. Por outro lado, o surgimento de tais reivindicações veio tornar clara a tensão oposicional entre a noção moderna liberal de cidadania e a subjetividade individual (SANTOS, 1999: 204-208). Denunciase aí como a universalização dos sujeitos operada pela noção da cidadania, sintetizada no princípio da igualdade de todos perante a lei, dilui a diferença que reside na subjetividade dos indivíduos, nas suas narrativas pessoais, nas suas reflexividades, nas suas orientações sexuais, nos seus sexos, nas identidades adscritas à diferença dos seus corpos, etc. Portanto, a gênese de uma profusão de organizações insurgentes e reivindicativas nas décadas de 1970 e 1980, sociologicamente definidas pela designação de “novos movimentos sociais”, remete para a dissensão que as lutas dos anos 1960 estabeleceram em relação aos poderes estabelecidos, e em relação ao modo como estes eram contrapostos no idioma dos direitos e da cidadania. Os novos movimentos sociais surgem então como uma pletora de coalescências políticas estabelecidas à margem dos campos ortodoxos de luta política, fundando-se numa afirmação solidária de identidades em que o pessoal se torna político. Deste modo, surgiu toda uma constelação de lutas sociais que se vem dirigir às diversas formas de opressão que marcam as vidas dos sujeitos, colocando-se na arena política as relações de poder que

estão presentes na vida quotidiana, para além das fronteiras entre público e privado, e nas representações culturais. Por esta via, deu-se um alargamento do panorama democrático e um aprofundamento da própria ideia de democracia, cunhada pela articulação de formas de contestação cujos propósitos indicam, não raras vezes, a necessidade de uma reconfiguração radical das traves econômicas e socioculturais em que se fundou a vida moderna. A aparição de toda uma miríade de organizações e movimentos sociais assentes em solidariedades políticas que visavam as causas mais diversas veio criar um espaço inédito de enunciação para a experiência reiterada de exclusão e despossessão vivida pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 1970, um pouco por todo o mundo ocidental, viriam a criar-se e a reformular-se estruturas organizativas que estabeleceram como propósito central a visibilização das múltiplas formas de opressão a que estão sujeitas as pessoas com deficiência. Objetivo a que se juntou a necessidade de uma transformação social passível de reverter as lógicas propiciadoras dessa mesma opressão. Identifica-se, pois, uma convergência entre os novos movimentos sociais e políticos que se desenvolveram nas décadas de 1960 e 1970 e a articulação de vozes de contestação pelas pessoas com deficiência. Na minha leitura, a afinidade que ligou as pessoas com deficiência a esse advento sociopolítico reside fundamentalmente no fato de se ter estabelecido uma leitura crítica da sociedade vocacionada a desvelar as múltiplas faces da opressão. Uma leitura que reconhece, ademais, em que medida o exercício da opressão se dá muitas vezes de forma insidiosa, inculcando-se de tal modo no corpo social que não é passível de ser apreendido pelas lógicas da violência e da coerção per se . O corpo físico e o corpo social A articulação dos percursos emancipatórios das pessoas com deficiência com outras propostas de transformação social viria também a advir do fato de o corpo se ter tornado num locus privilegiado das lutas pelo significado. Tendo sido aí amplamente denunciado o papel central que os valores embutidos nos corpos ocupam na legitimação da desigualdade social e das relações de dominação. Em particular, as pessoas com deficiência encontraram nos discursos antirracistas e feministas uma assunção fundamental do lugar incontornável ocupado pelos discursos opressivos reificados nos corpos e nas suas diferenças. Estabeleceu-se, pois, um quadro discursivo que permitiu às pessoas definidas como deficientes contestar as concepções essencialistas que a um tempo ancoram a deficiência na incapacidade e a estabelecem como um indicador suficiente de marginalidade social. Ainda que a entrada em palco da insurgência ativa das pessoas com deficiência nos envie para a senda dos novos movimentos sociais, creio ser necessário que reconheçamos o caráter singular dos desafios que se colocaram, e colocam, às pessoas com deficiência para a enunciação das condições de opressão a que as sociedades modernas as votaram. Num primeiro momento, emerge a difícil valorização da diferença que consigna a identidade das pessoas com deficiência. A criação de solidariedades identitárias entre grupos marginalizados que se reconheceram alvo de

formas similares de desqualificação, e o consequente engendrar de um percurso emancipatório, dependeu fortemente da criação de novas plataformas de inteligibilidade – novas configurações culturais em que os atributos distintivos catalisadores das lutas contra-hegemônicas e / ou minoritárias pudessem ser requalificados, libertando-se do ônus da inferioridade. Honi Haber, num ensejo propositivo, sintetiza bem este imperativo: os grupos social e politicamente marginalizados precisam de continuar a construir a sua voz e a lutar pelo poder. Mas para fazer isso os indivíduos e os grupos têm que aprender primeiro a valorizar as suas diferenças. Isto deve acontecer antes das estratégias e demandas políticas poderem ser formuladas (ou talvez ambos aconteçam simultaneamente). Para valorizar as diferenças temos que aprender a reconhecer as diferentes identidades que existem não apenas na sociedade amplamente considerada, mas também em cada um de nós. (HABER, 1994: 125) Assim, a valorização de diferenças opera como um duplo significante político. Diretamente, pelo confronto que estabelece com a desqualificação produzida e reiterada pelas concepções dominantes. Mais indiretamente, pela capacitação dos sujeitos que assim se tornam capazes de estabelecer lealdades em torno da afirmação positiva de um atributo diferencial. Na verdade, é para este segundo aspecto que bell hooks se dirige quando afirma a “autoestima como uma radical agenda política” (1995: 119). A questão que se torna premente para uma avaliação dos desafios que se colocam à articulação política a partir da deficiência, e em contraponto com outras formas de assunção identitária, é o caráter infinitamente mais problemático da valorização e celebração da diferença que está na base dos esquemas classificatórios das deficiências. As configurações materiais que identificamos como deficiência pertencem ao mundo fenomenológico, existem frequentemente como “realidade” tangível intrínseca na forma como os corpos experimentam e apreendem o mundo de que são parte. O fato de alguém não ver, não ter uma perna ou ter uma lesão na medula não é completamente redutível ao caráter contingente ou discursivo das apreensões culturais num dado contexto de crenças. Estamos, pois, perante a tal relação quiasmática entre a linguagem e a materialidade de que falava Judith Butler (1993: 69). Portanto, ao abordarmos as configurações físicas que nos surgem sob o conceito de deficiência, importa considerar que estamos perante condições que, muitas vezes, implicam ou estão associadas a experiências de privação e sofrimento físico que não são inteiramente explicáveis pelo reconhecimento das marginalizações e agonismos urdidos pelas relações de opressão social. No fundo, confrontamo-nos com os limites de um proverbial nominalismo que contempla os corpos como meros produtos da linguagem. Ao recusarmos o corpo como mera construção onde se reificam os significados culturais e as relações de poder, elaboramos um quadro em que se colocou ao centro a “relação quiasmática” entre a linguagem e a materialidade, substanciada na ideia de que é impossível negar a materialidade do corpo:

Seguramente, os corpos vivem e morrem, comem e dormem, sentem dor, prazer, suportam doença e violência; e esses fatos, pode-se proclamar ceticamente, não podem ser desmobilizados como mera construção. (BUTLER, 1993: xi) Mas, ao mesmo tempo, alegamos que aquilo que essa materialidade “é” está sempre fora dela, no sentido em que qualquer noção daquilo que seja a materialidade pura do corpo nos é sempre dada por um esquema de inteligibilidade particular. Portanto, os valores culturais que se debatem em torno do corpo não o inventam, mas antes participam na sua “materialização” , a prática de criação e reiteração pela qual a matéria do corpo adquire sentido (BUTLER, 1993: 14-15). O interessante diálogo que Butler realiza entre as leituras pósestruturalistas do corpo e a assunção da sua materialidade fracassa, contudo, na exploração de um questionamento passível de transgredir o estudo das representações para aceder a elementos mais fenomenológicos da experiência corpórea dos sujeitos. No fundo, ao negligenciar a dimensão a que Maurice Merleau-Ponty se refere quando fala do corpo como “veículo do ser no mundo” (1999), Judith Butler atém-se ao conforto das leituras discursivas do corpo. E, embora as interrogações da autora se confrontem com as incompletudes das críticas textuais ao corpo, propondo inclusive interessantes formas de se pensarem os percursos pelos quais os corpos se tornam culturalmente tangíveis, as preocupações de Judith Butler preservam a sua complexa crítica na esteira de Michel Foucault. É verdade que as hermenêuticas discursivas dos lugares dos corpos e das suas diferenças se mostraram capitais, tanto para se pensarem as contingências da apreensão cultural da condição das pessoas cegas como para se acolher a reconfiguração radical trazida pela modernidade dos significados associados a uma tal condição. Penso, no entanto, que se tornam evidentes as virtualidades das perspectivas discursivas pósestruturalistas na mesma medida em que as suas incompletudes ganham contornos. Algo que Terence Turner sintetiza de modo sonante quando afirma que “o corpo de Foucault não tem carne” (1994: 36). Estamos, pois, face a realidades que fogem às apreensões discursivas e onde o corpo vivido assoma com incontornável vigor. Vergílio Ferreira, discutindo a tese de Michel Foucault acerca da recente invenção do homem como centro de saberes, fazia notar que o homem sempre esteve lá, “apenas não precisou de o saber” (2002: 43). Substanciando esta ideia, o autor continua com uma interessante analogia: “como se não dá conta de um órgão antes dele nos doer. (…). Não pensamos no nosso corpo enquanto temos saúde. Mas a doença não o inventa” ( ibidem ). Como bem expressa esta alusão, tal como a doença, há eventos que nos alertam para a centralidade do corpo, mas esses eventos não criam por si a centralidade do corpo, uma vez que ele é um dado incontornável da existência. Esses eventos trazem, isso sim, a consciência do caráter incorporado da existência. É exatamente esta a tese fundamental que Drew Leder sustenta em The Absent Body (1990). Este autor, partindo de uma evidente orientação fenomenológica, procura confrontar o paradoxo da

ausência corpórea. Um tal paradoxo parte da ideia de que os nossos corpos, sendo eles uma presença inescapável na nossa vida, tendem a preservar-se num estado de latência ou invisibilidade na quase totalidade das nossas existências e das nossas ações quotidianas. Portanto, durante a maior parte do tempo e na maioria dos sujeitos, o corpo tende a não ser trazido à consciência, permanecendo numa espécie de presença não notada e não tematizada. Como mostra Leder (1990), esta ausência do corpo da consciência do sujeito é apenas suspensa em situações muito particulares: no escrutínio dos olhares de outros, no confronto com a própria imagem corporal, numa digestão ruidosa, na necessidade de urinar, na fome, na doença, na dor, etc. Isto é, o corpo é feito saliente nas experiências que tornam o corpo irrevogavelmente presente e que promovem aquilo que o autor designa por “acrescida consciência do corpo” (LEDER, 1990: 85). Nos termos em que aqui a pretendo abordar, a questão da deficiência surge frequentemente associada àquilo que Leder designa por “ dys-appearance ”. Um conceito que refere uma das vias por que o corpo aparece à consciência. Esta formulação é explicada do seguinte modo: “tenho utilizado o termo ‘dys-appearance’ para me referir à tematização do corpo que acompanha a disfunção e estados problemáticos” (LEDER, 1990: 86). Assim “dysappearance” – cujo sufixo dys o autor extrai do grego para dizer “mal” – nomeia o acréscimo de consciência do corpo por via de uma irregularidade, de uma perda ou de um excesso no seu funcionamento. Ao confrontarmo-nos com estas dimensões da experiência, tantas vezes associadas à nomeação de uma deficiência, deparamo-nos com a negligência da experiência incorporada nas ciências sociais. As dificuldades que as ciências sociais têm tido para abraçar o corpo, neste sentido mais vivencial, poderão ser entendidas, em larga medida, por referência ao modo como este insiste em transgredir a fronteira entre a cultura humana e a natureza enquanto domínios adscritos, respectivamente, às humanidades e às ciências. Mas esta negligência prende-se também com o fato de a crítica social das últimas décadas se ter desenvolvido sob a dolorosa memória das formas de objetificação e essencialização dos corpos, e da naturalização da opressão, da violência e do extermínio ocorrida no seio de determinados regimes sociopolíticos. Por esta razão, podemos reconhecer que existe um ímpeto na teoria social das últimas décadas para negar o lugar “excessivo” que a ênfase no corpo natural e na afirmação do caráter intrínseco das suas diferenças ocupou na legitimação de regimes totalitários e de hierarquias várias. Sobre isto mesmo fala Anne Harrington (1997: 200) quando insere o surgimento de conceitos-chave no pós-modernismo e no pensamento contemporâneo (como “desconstrução” e “logocentrismo”), que se investem largamente em contrapor os regimes de significado essencialistas, num “protesto” contra o uso que os argumentos biológicos tiveram no nazismo. Portanto a “somatofobia” na teoria social, que já Judith Butler referia, não é separável de um desejo de não voltar atrás em relação às construções essencialistas que tiveram o seu apogeu no nazismo. Esta é uma dimensão histórica que faz supor que o aparecimento do corpo como um importante objeto analítico nas teorias sociais ocorreu a par de um impulso estratégico antiessencialista que veio corroborar em parte a já esmiuçada propensão das ciências sociais para a negligência de um corpo dito natural, o corpo

como condição ontológica da existência. Exatamente nesse sentido, Frederic Jameson (1994), num claro registo de contracorrente, proporciona uma leitura que se dirige para o ensejo que assiste ao antiessencialismo, por ele percebido como um produto de um intento de negação das construções fascistas e das formas de solidariedade por elas criadas. Partindo de François Lyotard, para quem todos os desejos e posições políticas são libidinalmente iguais, Jameson defende que o antiessencialismo corresponde a um desejo, a uma estratégia e a uma pulsão libidinal que se opõe a discursos fascistas, racistas e patriarcais. Assim sendo, segundo o autor, a natureza aparece como o grande inimigo do pensamento antiessencialista: “desfazer-se dos últimos remanescentes da natureza e do natural é certamente o sonho e aspiração secreta de todo o pensamento pós-moderno, contemporâneo ou pós-contemporâneo” (JAMESON, 1994: 46). Penso que as relações para que Anne Harrington e Frederic Jameson apontam têm uma pertinência que não deverá ser negligenciada. No entanto, creio que a identificação deste “desejo antiessencialista”, embora se mostre fundamental para que possamos historicizar as abordagens epistemológicas na teoria e na crítica social, deverá reter a memória trágica que paira sobre as hermenêuticas sociais fundadas na persecução daquilo que de natural há nos corpos. Temos, pois, uma história cautelar sobre a assunção das consequências sociais no modo como nos dirigimos ao corpo quando procuramos aceder a elementos que aparentemente se subtraem às elaborações sociais de sentido. Ou seja, importa reconhecer que as diferenças que estão na base das classificações de deficiência muitas vezes comportam perdas, sofrimentos físicos ou sentimentos de privação ao nível da experiência incorporada, cuja mobilização para a luta política enfrenta o acrescido desafio daquilo a que poderíamos chamar a celebração da identidade. Sendo possível e desejável uma valorização das pessoas com deficiência, das suas capacidades, dos seus intentos vivenciais e das suas propostas de transformação social, a pouco desafiante celebração da diferença implicada por uma deficiência constitui uma especificidade político-identitária que importa relevar. O cerne da questão é que afirmações contra-hegemônicas que procuram valorizar a diferença, tais como Black is Beautiful ou Glad to be Gay , denotam uma positividade que as aparta radicalmente das pessoas com deficiência. Não é expectável que se celebrem do mesmo modo as diferenças que estão na base da catalogação identitária de quem é percebido enquanto deficiente, sobretudo quando muitas destas diferenças se ligam a sofrimentos físicos e privações fenomenológicas. É exatamente pela presença fenomenológica e vivencial das diferenças frequentemente ligadas à ideia de deficiência que se torna mais ardilosa uma desnaturalização (ou des-somatização) das hierarquias sociais e econômicas vigentes nas vidas das pessoas com deficiência. Um outro elemento que singulariza os desafios que se estabeleceram, e estabelecem, nos movimentos políticos de pessoas com deficiência é sem dúvida o modo como a opressão social das pessoas com deficiência tende a ser escamoteada por uma atitude condescendente e paternalista por parte dos poderes e da sociedade num sentido mais amplo. Indo ao encontro desta preocupação, bell hooks (1995) produz uma reflexão que creio ser

particularmente estimulante para se pensarem as aporias políticas que residem no nexo entre a invisibilização da opressão social e a perpetuação de um status quo . Refletindo sobre a luta das mulheres e homens negros nos Estados Unidos da América, bell hooks (1995) expressa aquilo que parece assomar como uma nostalgia paradoxal em relação ao período que antecedeu as lutas pelos direitos civis na década de 1960. A assunção de uma tal quase-nostalgia por parte da autora deriva do fato de, perante a continuada vigência da “supremacia branca” nas vidas das pessoas afroamericanas, a sua capacidade resistente e militante ter sido francamente elidida no período que se seguiu à contestação pelos direitos civis. Embora reconheça as conquistas que advieram desse período de efervescência social, bell hooks atenta sobretudo para o modo como a partir daí se terá dado, fundamentalmente, uma transformação na natureza da opressão exercida sobre a população negra. A autora assinala em particular o fato de o racismo ter continuado a operar nas relações de poder a par da sua negação na arena social, tornando-se imperioso contemplar em que medida a subalternização dos afro-americanos pela “supremacia branca” surge esmaecida pelos discursos em que a integração social dos negros é celebrada como uma inequívoca conquista dos direitos civis. O que essa leitura traz de instigante é a ideia de que a articulação de resistências depende tanto de condições efetivas de opressão como da visibilidade que, num dado contexto sócio-histórico, é possível conferir a essa mesma opressão. Ganha assim saliência aquilo que Martine Xiberras (1993: 16) identifica como sendo uma das mais perniciosas formas de opressão: a compaixão. Ou seja, um conjunto de valores e procedimentos que se dirigem de forma paternalista às pessoas com deficiência e que assumem o infortúnio e a inferioridade como dados de partida, que devem ser minorados na medida do possível. Identificam-se, assim, como entraves que demarcam a articulação de um movimento social em torno da deficiência, a ideia de uma diferença que resiste a ser celebrada e o protagonismo de práticas e discursos que, articulados com a invocação da benevolência e da compaixão, obscurecem a violência da opressão. No fundo, identificam-se as barreiras para se traduzir a vivência das pessoas com deficiência para uma linguagem reivindicativa de direitos. As particularidades colocadas às pessoas com deficiência em relação aos restantes movimentos sociais identitários que proliferaram a partir da década de 1960 definem um itinerário que procuro compreender melhor, em dois sentidos: como luta partilhada com outros grupos sociais contra os imperativos de uma normatividade hegemônica que se estabeleceu na modernidade ocidental (sexista, racista e opressora das pessoas com deficiência); e como luta particular a partir de corpos cuja naturalização como deficientes impõe a superação de um nexo singular entre subalternidade e exclusão. Conclusão É para um questionamento das formas da naturalização / somatização das hierarquias sociais que Boaventura de Sousa Santos (2002) aponta no seio de uma crítica mais ampla da racionalidade moderna. O autor identifica como elemento central da sua perplexidade a vigência na modernidade de

uma razão, por si designada de indolente, que apresenta como característica central uma contração do presente e uma ampliação do futuro. Ou seja, identifica-se a vigência de um regime de razão que num mesmo momento adia o futuro, tornando longínquas as expectativas do agora, e contrai o presente, estreitando-o pelo desconhecimento e pela desqualificação da inesgotável experiência social existente no mundo. Estabelece-se neste quadro um nexo de impossibilidades em que a tendencial depuração hegemônica, e consequente empobrecimento dos conhecimentos e experiências tidos como válidos no presente, espelha o estreitamento e / ou adiamento de expectativas de transformação com que se encara o “por-vir”. Assim, segundo Boaventura de Sousa Santos, uma das formas características centrais da razão indolente reside na sua vocação metonímica; e é exatamente a operacionalidade dessa razão metonímica que me interessa convocar para o seio da presente análise. Um dos traços centrais de uma tal racionalidade é uma obsessão pela totalidade e pela ordem, numa lógica em que o todo assume primordialidade perante as partes que o compõem: A forma mais acabada de totalidade para a razão metonímica é a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, a simetria com a hierarquia. A simetria entre as partes é sempre uma relação horizontal que oculta uma relação vertical (…) todas as dicotomias sufragadas pela razão metonímica contêm uma hierarquia. (SANTOS, 2002: 242) A linha desta reflexão desde logo reporta, pelas ressonâncias que oferece, para a relação entre normalidade e deficiência, uma dicotomia moderna cuja simetria e horizontalidade tenho vindo a negar com base na ideia da hegemonia da normalidade. Mas, dado que a implicação central associada à vigência de uma razão metonímica é o desperdício da experiência que por ela não pode ser valorizada ou reconhecida, a sua identificação remete para a centralidade que se confere às condições históricas pelas quais as pessoas descritas como deficientes veem negada a sua reflexividade e intervenção social. Ou seja, está-se perante as condições de produção de não existência a que alude Santos: “Há produção de não existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível”. (2002: 246). Das lógicas que estão identificadas por Boaventura de Sousa Santos como traves sustentadoras do estreitamento solipsista de que padece a razão moderna – e que estão diretamente implicadas na produção de não existência –, duas delas assomam com particular vigor na linha argumentativa que aqui venho desenvolvendo. A primeira, como refere Santos, relaciona-se com “uma monocultura do saber e do rigor do saber” (2002: 247). Aqui, a produção de não existência decorre sobretudo do modo como a ciência moderna se estabeleceu como único critério de verdade, numa monocultura que opera quer pela desqualificação de outras discursividades, quer pelas discursividades que se tornam impensáveis à luz dos constrangimentos constitutivos gerados no prestígio desse mesmo saber. Este aspecto reenvia para a medida em que as formas modernas de objetificação da cegueira foram imbricadas numa noção de real, construída por saberes periciais, pouco conciliáveis com o surgimento e valorização de outras perspectivas. No fundo, outras

realidades em cuja criação a autoria, experiência e reflexividade das pessoas com deficiência pudesse participar. A segunda lógica de produção de não existência assinalada por Boaventura de Sousa Santos, e cuja construção se mostra valiosa para este contexto, é a lógica da classificação social. Esta funda-se numa “monocultura da naturalização das diferenças” cujo aporte central é a “distribuição das populações por categorias que naturalizam as diferenças” (2002: 247). Está-se, pois, perante a urgência de reconhecer a voz emanada de experiências que vêm sendo longamente silenciadas e que, por isso, muito acrescentam à criatividade que deverá assistir à criação de novos contextos de sociabilidade. Reclama-se, pois, a centralidade de histórias subjugadas, o desagrilhoamento de corpos marcados num fatalismo socialmente engendrado e propõe-se um itinerário necessariamente questionador dos alicerces naturalizadores da diferença (racistas, patriarcais e normalizantes) da modernidade em que nos situamos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASH, Adrienne; FINE, Michelle (1997). “Nurturance, Sexuality, and Women with Disabilities”. In: DAVIS, Lennard (org.). The Disability Studies Reader . London: Routledge. BUTLER, Judith (1993). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex . New York: Routledge. CANGUILHEM, Georges (1984). Le normal et le pathologique . Paris: PUF. DAVIS, Lennard (1995). Enforcing Normalcy: Disability, Deafness and the Body . London: Verso. DOUGLAS, Mary (1973). Natural Symbols: Explorations in Cosmology . Harmondsworth, Middlesex (UK): Penguin. FERREIRA, Vergílio (2002). “Questionação a Foucault e a algum estruturalismo”. In: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas . Lisboa: Edições 70. FOUCAULT, Michel (1961). Folie et déraison: Histoire de la folie a l’Age Classique . Paris: Plon. __ (1975). Surveiller et punir: Naissance de la prison . Paris: Gallimard. __ (1980). Power / Knowledge: Selected Interviews and Other Writtings . New York: Harvester Wheatsheaf. __ (1994 [1976]). História da sexualidade I: A vontade de saber . Lisboa: Relógio d’Água. __ (2002). As palavras e as coisas . Lisboa: Edições 70.

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Investigação emancipatória da deficiência em Portugal: desafios e reflexões Bruno Sena Martins · Fernando Fontes

Pedro Hespanha · Aleksandra Berg Introdução As pessoas com deficiência constituem um dos grupos social e economicamente mais excluídos, como a sua sobrerrepresentação entre as camadas mais pobres da população permite perceber (COLERIDGE, 1993; BERESFORD, 1996; TURMUSANI, 2002). Para esta realidade, muito tem contribuído a invisibilidade social das pessoas com deficiência, numa lógica em que invisibilidade e exclusão recursivamente se perpetuam. Esta omissão é largamente reproduzida pelas ciências sociais, cujo investimento analítico pouco tem considerado a deficiência enquanto uma das linhas mais decisivas na produção e perpetuação de desigualdades nas sociedades modernas ocidentais (BARNES, 1997; FINKELSTEIN, 1999; DAVIS, 2002). Este “corpo silencioso” de que Robert Murphy (1990) fala, para dar conta do fenômeno de invisibilidade estrutural das pessoas com deficiência, é particularmente contundente na descrição da realidade social portuguesa. Em países como os Estados Unidos da América e o Reino Unido este retrato foi alterado, ao longo das últimas décadas, com a emergência no início dos anos 1970 de movimentos sociais de pessoas com deficiência e com a consequente politização da questão da deficiência (OLIVER, 1996; BARNES e MERCER, 2002; HANH, 2002; THOMAS, 2002). Nestes contextos, a politização da deficiência foi acompanhada pela emergência na academia dos estudos da deficiência ( Disability Studies ), uma área de investigação matricialmente assente num compromisso político com a denúncia da opressão social das pessoas e na aspiração de uma sociedade mais inclusiva. Neste capítulo, procura-se pulsar as possibilidades e desafios para a constituição em Portugal de um paradigma de investigação emancipatória na deficiência. Na primeira parte apresenta-se uma breve revisão dos diferentes modelos utilizados para conceitualizar a deficiência, bem como dos principais paradigmas de investigação que lhes são correlatos. Na segunda parte defendemos a centralidade e relevância de um paradigma de investigação emancipatória nas leituras acadêmicas da realidade da deficiência. Explanam-se ainda alguns dos princípios que deverão definir as práticas da investigação emancipatória na área da deficiência. Na terceira e última parte refletimos sobre os desafios, teóricos e metodológicos, que as especificidades da sociedade portuguesa colocam à realização de uma investigação emancipatória nesta área. Deficiência: modelos e abordagens A análise da deficiência enquanto questão social é um fenômeno recente. Na verdade, constituída pela biomedicina moderna ocidental como uma forma particular de patologia (STRIKER, 1999; MARTINS, 2006), a deficiência tem sido reduzida às “inconformidades” do corpo individual e a uma concepção fatalista de “tragédia pessoal” (OLIVER, 1990). Desse modo, os constrangimentos e barreiras que as pessoas com deficiência enfrentam no seu dia-a-dia tendem a ser naturalizados enquanto produto das suas supostas limitações funcionais. Estamos perante uma das lógicas de produção de não existência da razão moderna, nos termos em que Boaventura Sousa Santos (2002) a define, particularmente a lógica da

classificação social. Esta funda-se numa “monocultura da naturalização das diferenças” cujo mecanismo central é a “distribuição das populações por categorias que naturalizam as diferenças” ( ibidem : 247). A exclusão e silenciamento perpetrados por esta via imbricam-se decisivamente com a vocação da epistemologia moderna para o reducionismo biológico (GOOD, 1994). O modelo médico ou individual de deficiência, indisputado até à emergência dos movimentos sociais de pessoas com deficiência (CAMPBELL e OLIVER, 1996), ratificou uma construção das pessoas com deficiência enquanto sujeitos passivos, dependentes de cuidados. O fato de a deficiência ter sido definida como objeto médico, respeitante ao corpo individual, foi um fator decisivo para que se tivessem privilegiado respostas resolutamente centradas no indivíduo no seio de uma “abordagem reabilitacional” (STRIKER, 1999). As respostas informadas por esta abordagem sempre se basearam na ideia de que as decisões sobre a vida das pessoas com deficiência deveriam estar a cargo dos profissionais, as vanguardas do saber. Tal relação de autoridade fundou uma desqualificação das perspectivas das pessoas com deficiência, perspectivas em que os limites e desigualdades impostos pela ordem social tendem a ocupar um lugar central. A crescente contestação ao modelo médico de deficiência levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a publicar, em 1980, a International Classification of Functioning, Impairments Disabilities and Handicaps (ICIDH) (OMS, 1980). No entanto, a perspectiva adotada por esta classificação, que nas suas definições centrais (deficiências, incapacidades e desvantagens) consagrou de forma tangencial os “fatores sociais e culturais”, mostrou-se incapaz de abandonar uma perspectiva particularmente individualista da deficiência (BARNES e MERCER, 2003; BARNES, MERCER e SHAKESPEARE, 2000), ancorada numa “hegemonia da normalidade” (DAVIS, 1995). Denunciando os limites do modelo individual ou médico para reconhecer o contexto sociopolítico da deficiência, desenvolveu-se no contexto britânico uma proposta que se lhe opôs, e que ficaria conhecida por modelo social da deficiência. O modelo social de deficiência vem propor uma reconceitualização da deficiência ( disability ) como uma forma de opressão social (UPIAS, 1976), encetando, assim, uma nova perspectiva paradigmática que se mostrou fortemente mobilizadora da insurgência política das pessoas com deficiência. A assunção de que os problemas implicados pela deficiência se prendem com as estruturas sociais e não com as funcionalidades do corpo teve igualmente importantes implicações em termos de capacitação identitária, na medida em que permitiu às pessoas com deficiência uma renovada leitura da sua posição social contra os valores que as desqualificavam enquanto menos pessoas, irremediavelmente apartadas das atividades centrais da vida social (GIBBS, 2004). De fato, como afirma bell hooks noutro contexto, devemos perceber a “autoestima como uma radical agenda política” (HOOKS, 1995: 119). Mais recentemente, o avolumar de críticas ao reducionismo médico do ICIDH e a necessidade emergente de compaginar o modelo médico e o modelo social levou à emergência de um novo modelo da deficiência,

apelidado de biopsicossocial. Este modelo substancia-se na nova Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (ICIDH-2 ou CIF) publicada pela OMS (2001), onde a OMS reconhece a deficiência como resultado da interação entre funções do corpo, estruturas do corpo, atividades e participação, e fatores ambientais. Não obstante as alterações introduzidas, a CIF continua a ser fortemente criticada pelos defensores do modelo social. Entre as diferentes críticas é de assinalar a acusação de que a CIF continua a centrar-se nas consequências das condições médicas, perspectivando os aspectos sociais da deficiência apenas por referência aos fatores ambientais da deficiência (BARNES, MERCER e SHAKESPEARE, 2000; PFEIFFER, 2000). Longe de ser irrelevante, a forma como perspectivamos a deficiência é essencial na forma como definimos os problemas e delineamos as soluções. Se isto é primordial na área das políticas sociais (OLIVER e SAPEY, 1999; HESPANHA, 2008; FONTES, 2009), também o é na área da investigação científica, em que as diferentes concepções significam diferentes posicionamentos ante o reconhecimento e valorização da voz das pessoas com deficiência. Um bom exemplo desta relação deu-se na disputa que opôs os habitantes de um lar residencial – Le Court Cheshire Home – na Inglaterra nos anos 1960 e os investigadores do Tavistock Institut. A demanda dos residentes daquele lar residencial por um maior controle sobre as suas vidas levou-os a convidar o Tavistock Institut para conduzir uma investigação sobre as condições de vida dos utentes do centro, na esperança de que os resultados apoiassem as suas reivindicações ante a administração do lar (BARNES, MERCER e SHAKESPEARE, 2000; MERCER, 2002). Os investigadores concluíram que, não obstante muitas das reivindicações dos utentes do lar serem justas, eram, todavia, inexequíveis porque exigiam demasiadas transformações do status quo ; recomendaram, portanto, que se retomasse a prática profissional tradicional ( ibidem ). Para os residentes da instituição, as conclusões dos investigadores constituíram uma traição, tendo sido mesmo acusados de parasitismo (HUNT, 1981), na medida em que se limitaram a cuidar “apenas dos seus interesses profissionais e acadêmicos fazendo com que os residentes se sentissem explorados, abusados e traídos” (MERCER: 2002: 229). Este episódio, marcante na história das pessoas com deficiência e na história dos estudos da deficiência, exemplifica claramente o esgotamento de um paradigma científico e o aflorar de um novo paradigma. Este incidente demonstrou a ineficácia de um paradigma científico positivista, que defende a ideia de uma ciência exata, supostamente objetiva, neutral e distanciada, tal como perfilhado pelos investigadores do Tavistock Institut. Demonstrou, igualmente, a necessidade de uma ciência crítica, politicamente ancorada e capaz de produzir mudança positiva na vida das pessoas com deficiência, na sociedade e na própria forma de fazer ciência. A esta nova forma de fazer investigação na área da deficiência, seguindo de perto a formulação que ganhou alargado reconhecimento no contexto britânico (cf. MERCER, 2002), poderíamos chamar “Investigação Emancipatória da Deficiência ¹ (OLIVER, 1992). Estudos da deficiência e emancipação social

O termo “Investigação Emancipatória da Deficiência” foi cunhado por Michael Oliver em 1992 (cf. OLIVER, 1992). Esta visão crítica da investigação na área da deficiência emerge na década de 1960. Em termos gerais, a investigação emancipatória pode ser definida como “a capacitação das pessoas com deficiência através da transformação das condições materiais e sociais de produção da investigação” (BARNES, 2003: 6). Deste ponto de vista, a investigação emancipatória, articulada com a afirmação do modelo social da deficiência, significa também um reconhecimento por parte da academia dos termos em que a produção científica tem sido cúmplice – por ação ou omissão – com quadros sociais opressores das pessoas com deficiência (OLIVER, 1997; MERCER, 2002). Reconhecido que é o lugar que os corpos e as suas diferenças ocupam nos discursos legitimadores das relações de opressão, como locus de algumas das mais fundamentais formas de desigualdade e de controle social na sociedade contemporânea (TURNER, 1994: 28), é ainda mais significativo o parco investimento crítico da investigação acadêmica em torno da deficiência. É exatamente contra a sanção das estruturas excludentes da sociedade que a investigação emancipatória se deverá erigir. Nas palavras de Colin Barnes, a Investigação Emancipatória dedica-se à sistemática desmistificação de estruturas e dos processos que criam a deficiência, bem como do estabelecimento de um “diálogo viável” entre a comunidade científica e as pessoas com deficiência, de modo a potenciar a sua emancipação. A concretização deste objetivo implica que os investigadores aprendam a colocar os seus conhecimentos e capacidades ao serviço das pessoas com deficiência. (BARNES, 1992: 122) ² Trata-se, portanto, de um reposicionamento do investigador e de uma redefinição dos papéis dos diferentes intervenientes no processo de investigação científica. Tal redefinição implica o abandono de uma visão positivista da objetividade científica e da crença na criação de um saber livre de valores, construído a partir de métodos transversais às diferentes ciências e onde o investigador assume uma posição privilegiada de poder e de neutralidade face ao processo de investigação. Pelo contrário, este novo modelo de investigação defende a necessidade de um compromisso político entre o investigador e os sujeitos investigados, capaz de questionar o postulado positivista da existência de “leis naturais” reguladoras da realidade social e revelador das relações de opressão social existentes (BARNES, 2003). Estamos perante a assunção de que a neutralidade axiológica do investigador é insustentável, o que, como Boaventura de Sousa Santos defende, não implica que se abandonem as prerrogativas de busca de objetividade: As ciências sociais críticas têm, pois, de refundar uma das reivindicações originais da teoria crítica moderna: a distinção entre objectividade e neutralidade. A objectividade decorre da aplicação rigorosa e honesta dos métodos de investigação que nos permitem fazer análises que não se reduzem à reprodução antecipada das preferências ideológicas daqueles que a levam a cabo. A objectividade decorre ainda da aplicação sistemática de métodos que permitam identificar os pressupostos, os preconceitos, os valores e os interesses que subjazem à investigação científica supostamente desprovida deles. (SANTOS, 1999: 207, itálico no original)

Na perspectiva que preconizamos, a recusa da neutralidade nos estudos da deficiência substancia-se num compromisso com a elisão das estruturas que marginalizam e silenciam as experiências das pessoas com deficiência. A objetividade traduz-se numa leitura que, sendo crítica da “hegemonia da normalidade” (DAVIS, 1995), assume esse mesmo lugar de enunciação; não se escusa a pensar criticamente as agendas das organizações de pessoas com deficiência; não reduz a experiência das pessoas com deficiência às dimensões passíveis de serem transformadas pelos fatores políticos e socioculturais. Têm sido feitas várias tentativas para sintetizar os princípios essenciais da investigação emancipatória na área da deficiência (STONE e PRIESTLEY, 1996; OLIVER, 1997; MERCER, 2002; BARNES, 2003). Uma leitura dos diferentes ensejos permite-nos salientar quatro princípios essenciais que devem nortear a investigação emancipatória nesta área: a adoção do modelo social enquanto ferramenta teórica e enquanto perspectiva crítica privilegiada através da qual se apreende a realidade das pessoas com deficiência; o desenvolvimento de uma ciência politicamente empenhada e comprometida com as lutas das pessoas com deficiência; a responsabilização do investigador face aos sujeitos da investigação – as pessoas com deficiência e as suas organizações; e, finalmente, a utilização de metodologias de investigação suficientemente adaptáveis de modo a captar a complexidade do real e a valorizar a voz das pessoas com deficiência. Metodologias A adoção do modelo social como estrutura conceitual para o desenvolvimento de uma investigação emancipatória significa, desde logo, questionar a medicalização e o silenciamento das experiências das pessoas com deficiência em favor de uma visibilização das estruturas de opressão social. Esta abordagem incita o investigador a centrar a sua análise na discriminação associada à deficiência ( disabilism ) e na sociedade onde essa discriminação e opressão têm lugar. Esta perspectiva está intimamente relacionada com a escolha de métodos e de técnicas de análise de dados. A investigação emancipatória exige uma profunda reflexão sobre a participação das pessoas com deficiência na definição e execução da pesquisa, sobre os métodos a utilizar e sobre o modo como os resultados poderão contribuir para a transformação social. Entre os diferentes tipos de metodologias de investigação, o estudo qualitativo ganhou uma importância particular no que diz respeito à investigação emancipatória por oferecer mais possibilidades de criação de um espaço de partilha de poder entre o investigador e o investigado, em oposição à dualidade sujeito / objeto. Entre as diferentes técnicas de recolha de dados de cariz qualitativo, as entrevistas semiestruturadas, conquanto impliquem uma discussão e validação por parte dos entrevistados, foram a técnica que mais se evidenciou. Tal fica a dever-se ao fato de esta técnica de recolha de dados restituir às pessoas com deficiência o poder sobre as suas palavras e a possibilidade de eliminar ou alterar as suas declarações iniciais. Todavia, e apesar de a investigação emancipatória ter sido associada durante muito tempo à utilização de dados e metodologias qualitativas, atualmente parece gerar-se um consenso em torno da utilização de uma

multiplicidade de tipos de dados, de metodologias de investigação e de técnicas de análise de dados (ABBERLEY, 1992; OLIVER, 1997; BARNES, 2003). Assim, não obstante esta ênfase na utilização de metodologias qualitativas como única forma capaz de captar esta riqueza, Colin Barnes (2003) e Paul Abberley (1992) salientam a importância da utilização de uma multiplicidade de metodologias – qualitativas e quantitativas – como forma de captar as diferentes faces da opressão e da exclusão social a que estão sujeitas as pessoas com deficiência. Michael Oliver (1992: 123) defende, todavia, o alcance limitado desta preocupação metodológica, afirmando que o compromisso do investigador é mais decisivo do que as metodologias e técnicas utilizadas. A investigação emancipatória pressupõe assim que a investigação se baseie na existência de uma interação, de base regular, entre a comunidade científica, as pessoas com deficiência e as organizações que as representam. Michael Oliver (2002) nota ainda que esta proximidade necessita ser aprofundada através da criação de uma nova linguagem capaz de anular a distinção entre investigadores e investigados, bem como através da criação de novas ferramentas de investigação, capazes de coletivizar as experiências individuais (OLIVER, 2002: 4). A alteração das relações sociais e materiais de produção científica (Oliver, 1997) constitui assim o grande desafio para os investigadores. No contexto de uma ciência crítica, estes, enquanto agentes de mudança social, terão que ter abertura para se deixarem tocar e transformar pelo processo de investigação (Oliver, 1992). Só desta forma será possível envolver o movimento de pessoas com deficiência no processo de investigação, partilhando e devolvendo-lhe o controle sobre o mesmo. A participação transformadora das pessoas com deficiência constitui assim uma condição para a investigação emancipatória, devendo estender-se às diferentes fases do processo de investigação, desde o delineamento do projeto até a redação e apresentação das conclusões. Investigação emancipatória em Portugal Contrariamente à realidade de outros países, onde os Estudos da Deficiência são um campo de investigação florescente, em Portugal estes são quase inexistentes. Consequentemente, não se encontra em Portugal um corpus crítico homólogo ao das numerosas investigações que há muito denunciam a opressão e discriminação de pessoas com deficiência em países como o Reino Unido (e.g. OLIVER, 1990; BARNES, 1991; OLIVER e BARNES, 1998; DRAKE, 1999; BARTON, 2001) e os Estados Unidos da América (e.g. DEJONG, 1981; HAHN, 1986, 2002; LONGMORE e UMANSKY, 2001; KRIEGER, 2003). Além do mais, a disseminação do modelo social de deficiência e do Movimento pela Vida Independente (DEJONG, 1981; COLERIDGE, 1993), centrais nestes países no processo de politização da questão da deficiência, é muito embrionária tanto na mobilização política de pessoas com deficiência como no meio acadêmico nacional (MARTINS, 2007; FONTES, 2011a). Este alheamento epistemológico é sintomático da tenacidade com que as concepções médicas da deficiência assumem um caráter hegemônico que se vem perpetuando no contexto português, a despeito das transformações ocorridas noutras realidades sociopolíticas. Na

realidade portuguesa, o estudo da deficiência tem-se restringido aos campos da psicologia, medicina e ciências da educação, campos onde o modelo médico tem sido dominante. Em Portugal, disciplinas como a sociologia e a antropologia, muito ligadas aos estudos da deficiência noutros países, só muito recentemente direcionaram a sua atenção para esta área de estudo. Alegamos que tal situação se deve às condições históricas, culturais, políticas e econômicas de um país do sul da Europa e que as mesmas colocam desafios singulares ao desenvolvimento da Investigação Emancipatória da Deficiência em Portugal. A ditadura que entre 1928 e 1974 se estabeleceu em Portugal teve um grande impacto em todas as esferas da sociedade portuguesa, incluindo nas vidas de pessoas com deficiência. O controle sobre a sociedade civil impediu qualquer atividade política e o desenvolvimento de movimentos sociais até 1974. Apesar da existência de organizações de pessoas com deficiência desde os anos 1920 e 1930, nenhuma delas estava politicamente envolvida na questão da deficiência (FONTES, 2011b). Em vez disso, dedicavam-se a ações de caridade, atuavam fora dos espaços públicos, nomeadamente em grupos de desporto ou espaços de encontro para pessoas cegas ou surdas. O cenário começou a mudar com a criação da Associação Portuguesa de Deficientes, em 1972, e da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ³ em 1974. Até então a ditadura teve um impacto direto nas relações entre a sociedade civil e as estruturas do Estado. De fato, as reminiscências do tempo ditatorial estão bem refletidas no modo autoritário como o Estado se relaciona com as organizações de pessoas com deficiência. Apesar da formação de várias instituições públicas desde o restabelecimento da democracia, nomeadamente a Comissão Permanente de Reabilitação (atual Instituto Nacional para a Reabilitação) e o Conselho Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, as pessoas com deficiência têm permanecido apartadas dos processos de tomada de decisão que afetam as suas próprias vidas. A fragilização da participação política das pessoas com deficiência deve tanto à parca democratização das relações entre Estado e as organizações representativas, em virtude de uma inércia sociopolítica marcada pelo autoritarismo, como à vulnerabilidade econômica que pouco liberta as organizações e as pessoas com deficiência para uma ação política mais consequente. Também neste aspecto particular se faz sentir a herança da ditadura. A supressão da ideia de Estado Social – com a assunção por parte do Estado de um papel secundário na provisão de proteção social – e a afirmação de uma lógica assistencialista, na qual a deficiência se erigia sobretudo como uma questão da caridade, estabeleceu uma lógica paternalista que ainda hoje se sobrepõe ao reconhecimento da autonomia política e econômica enquanto direito que enriquece o espaço democrático. Como afirma Boaventura de Sousa Santos, o Estado português, quando comparado com o dos países centrais, nunca foi um verdadeiro EstadoProvidência. Este fato liga-se historicamente à sua emergência tardia (após o fim do Estado Novo, quando noutros países ele emergiu após a Segunda Guerra Mundial), exatamente quando este modelo entrava em crise nos contextos da sua criação. Assim, o que existe em Portugal é um “semiEstado-Providência” ou um “quasi-Estado-Providência” (SANTOS, 1993: 20),

algo que é possível avaliar no sentido técnico nas despesas investidas, mas igualmente pelo fato de a administração pública ainda não ter interiorizado a segurança social como um direito, continuando em alguns aspetos a considerar que se trata de um favor concedido pelo Estado, tal e qual como se pensava durante o regime do Estado Novo. (SANTOS, 1993: 45) Perpetuando muitas das lógicas anteriores à democracia, a exclusão social, somada ao baixo nível de apoios, relegou as pessoas com deficiência ao cuidado familiar, naturalizando a sua imagem como pessoas dependentes e incapazes de gerir as suas vidas e afastando-as das arenas da vida social onde as suas vozes poderiam ser consideradas. Comparando com outros países europeus, o nível de proteção atingido pelo Estado-Providência português situa-se abaixo da média europeia (GOUGH, 1996), colocando os grupos já economicamente desfavorecidos, como é o caso das pessoas com deficiência, abaixo do limiar de pobreza (HESPANHA, 2001). Um estudo recente (PORTUGAL et al., 2010) demonstra precisamente os custos acrescidos da deficiência na sociedade portuguesa. Considerando os custos de oportunidade (educação, emprego, etc.) e os custos acrescidos para fazer face às barreiras de uma sociedade organizada de forma não inclusiva, foi possível calcular o custo de vida adicional para os agregados familiares com pessoas com deficiência, em Portugal, entre os 4103 € e os 25 300 € por ano (PORTUGAL et al., 2010). Este quadro não deixa de ter um impacto fortíssimo na natureza das organizações e na das pessoas com deficiência. Devido às condições de vida precárias da maioria das pessoas com deficiência em Portugal, as organizações representativas centralizaram desde o início os seus esforços na melhoria das condições de vida deste grupo social. Como resultado, foi criada uma agenda orientada para a eliminação das barreiras físicas e para o acesso e manutenção de benefícios sociais com o objetivo de minorar os custos da exclusão. Em consequência, as organizações de pessoas com deficiência acabaram por investir a maior parte dos seus esforços no fornecimento de serviços, funcionando como uma extensão do EstadoProvidência. Desta forma, os recursos humanos e materiais disponíveis nas organizações pouco se dirigem para o campo da luta política ou para um projeto mais amplo de transformação social. A realidade portuguesa reflete, assim, o reduzido empenho do Estado e a falta de capacidade da sociedade civil para transformar as condições de desigualdade social a que as pessoas com deficiência estão sujeitas; essa dupla fragilidade traduz-se, desde logo, na sistemática inconsequência das transformações legislativas. O primeiro desafio colocado à Investigação Emancipatória da Deficiência surge, precisamente, da necessidade de apropriação de conceitos científicos e posições epistemológicas vindos de realidades diferentes. Se pensarmos que a Investigação Emancipatória da Deficiência se desenvolveu, nos anos 1970, a partir do fervilhar do ativismo político, confrontamo-nos com uma fortíssima disjunção: uma disjunção em termos da permeabilidade social a uma cultura política afirmativa dos direitos das pessoas com deficiência e em termos de uma corrente acadêmica nascida das manifestações nas ruas

circunvizinhas. Portanto, surge a questão: ao pugnarmos por uma Investigação Emancipatória da Deficiência, será que não corremos o perigo de transplantar valores e ideias sem cuidarmos da distância para com o lugar onde estes germinaram? Tal questão, defendemos, pode ser traduzida no dilema colocado por Sandra Harding (2000) quando esta reavalia as ambições universalistas e totalitárias da ciência moderna. Por um lado, a autora defende um posicionamento relativista que se opõe às pretensões universalistas da ciência moderna, afirmando que certos valores e ideias perdem a sua eficácia fora da realidade em que foram criadas. Esta crítica tem implicações políticas e epistemológicas: “O ideal universalista, em particular, é científica e politicamente disfuncional” (HARDING, 2000: 124). Politicamente, esta avaliação opõe-se à arrogância ocidental perante outras formas de saber, considerados pré-modernos ou não-científicos; a este respeito as formações discursivas que foram impostas por via do colonialismo constituem uma evidência preeminente deste universalismo da modernidade ocidental. As implicações políticas são também evidentes nos jogos de poder que, “criando realidade”, conferem validade a umas formações discursivas, desqualificando outras. Epistemologicamente, as críticas sublinham que certos saberes não têm aplicação, validade ou utilidade fora dos contextos em que emergiram. Segundo a autora, reconhecer este limite em determinadas ideias ou num conjunto de ideias não é afirmar a sua inerente fragilidade ou falsidade. O que se reconhece é o valor contextual de alguns conceitos e o fato de a sua importância no enquadramento temporal, espacial e cultural correr o risco de se perder noutros contextos. Esta crítica mostra ter especial validade em relação a estudos que procuram compreender a realidade das pessoas com deficiência em realidades culturais cujos entendimentos da deficiência são fundados em valores pouco marcados pela modernidade ocidental. Nesses contextos cabe compreender o lugar da deficiência por relação com as cosmovisões que pensam as diferenças que na modernidade ocidental aprendemos a chamar deficiências. Só uma tal perspectiva pode acalentar o ensejo de aceder ao inextrincável vínculo entre a ontologia de uma “deficiência” e as elaborações epistemológicas, sustentadas pelos diversos grupos sociais, acerca da sua causalidade e significado (INGSTAD e WHYTE, 1995; MARTINS, 2013). Ademais, as críticas epistemológicas apontam os perigos envolvidos quando a diversidade cognitiva é desperdiçada em nome de ideais universais. “A busca de ideais universais limita a diversidade cognitiva que é e sempre foi uma fonte importante de crescimento do saber.” (HARDING, 2000:134). Por outro lado, Harding afirma que a crítica dos ideais universalistas, sendo importante, não deverá impedir de apreciar os pontos fortes próprios a essas ideias particulares e de avaliar a sua utilidade em contextos diferentes. Desde que uma atenção cautelar aos jogos de poder que se esgrimem seja considerada, as virtudes de uma ideia, a despeito da sua origem, deverão ser testadas na sua capacidade de codificar os ideais democráticos. Estamos perante a apologia de um pragmatismo que, como defende Boaventura de Sousa, anula hierarquias prévias em favor das hierarquias definidas por práticas concretas:

A ecologia de saberes assenta na ideia pragmática de que é necessária uma reavaliação das intervenções e relações concretas na sociedade e na natureza que os diferentes conhecimentos proporcionam. Centra-se, pois, nas relações entre saberes, nas hierarquias que se geram entre eles, uma vez que nenhuma prática concreta seria possível sem estas hierarquias. (SANTOS, 2007: 28) Neste sentido, poderíamos dizer que a valorização da Investigação Emancipatória em Portugal constitui um teste aos méritos desta ética de pesquisa, num contexto cujo clima para um envolvimento político na investigação no campo dos estudos da deficiência está muito distante do fervor político que engendrou o seu aparecimento. Acreditamos, todavia, que existem abordagens da deficiência com maior e menor potencial emancipatório e que o modelo social da deficiência perfila a primeira opção, sobretudo ao assinalar as limitações do modelo médico enquanto matriz da opressão social a que as pessoas com deficiência têm sido sujeitas. Cremos, pois, que a adoção do modelo social, enquanto instrumento heurístico, poderá revelar as barreiras sociais e atitudinais responsáveis pela opressão e exclusão das pessoas com deficiência. Por outro lado, os usos do modelo social deverão ser capazes de aprofundar as reais implicações do conceito de direitos humanos, bem para além do aparente consenso criado em torno da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. ⁴ O segundo desafio reside na possibilidade de partilhar o planejamento e execução da pesquisa com as pessoas com deficiência. Ora, se noutros contextos esta partilha significava um engajamento com uma linguagem de direitos e com uma politização da deficiência, num território amplamente dominado pela hegemonia da perspectiva médica e reabilitacional, uma maior participação das organizações de pessoas com deficiência nem sempre significará um maior envolvimento com agendas de transformação social. Tal não significa consentir que a investigação se encerre numa “torre de marfim”. A resolução deste desafio passa por um processo mútuo de aprendizagem e adaptação entre a academia e os movimentos de pessoas com deficiência, de forma a criar sinergias transformadoras das relações sociais de produção científica e da realidade social dessas pessoas. Um terceiro desafio reside nos usos da linguagem no que diz respeito à designação das “pessoas com deficiência”. No contexto dos movimentos de pessoas com deficiência falantes de inglês, a ressignificação da deficiência fez-se também por um uso contra-hegemônico da expressão comum para a designação das “pessoas com deficiência”: disabled people . Neste caso, a reconfiguração do conceito de disability para a afirmação de uma opressão vigente tornou-se particularmente eficaz na medida em que recorre a uma sutileza linguística em que a designação usada para identificar as “pessoas com deficiência”, disabled people , é apropriada como a própria afirmação da situação de opressão social. Ou seja, as disabled people , contra qualquer naturalização de uma identidade assente em características imanentes às diferenças corpóreas, são ali entendidas como as pessoas “deficientizadas” ( disabled ) pelos valores e formas de organização presentes na sociedade: “Disabled people are therefore an oppressed group in society” ⁵ (UPIAS e Disability Alliance , 1976). Portanto, a partir das perspectivas desenvolvidas nos Princípios Fundamentais da Deficiência da UPIAS ( Union of the

Physically Impaired Against Segregation ) e da Disability Alliance , a noção hegemônica de deficiência é disputada por uma outra, em que as implicações da deficiência não dependem dos corpos e suas diferenças (conforme modernamente definidas), mas das relações sociais que lhes dão sentido. Ora, as designações empregues em língua portuguesa, mesmo que investidas de uma desnaturalização da deficiência, invariavelmente reproduzem, ainda que mitigando, a noção hegemônica que naturaliza a deficiência enquanto atributo individual. A utilização contingente de termos como “pessoas com deficiência”, “deficientes”, “pessoas portadoras de deficiência”, é disso mesmo um reflexo. Se noutros contextos a politização da deficiência procura reinventar o sentido das palavras, na língua portuguesa o desafio passa, porventura, por reinventar as palavras que historicamente designam pessoas a que a modernidade nos ensinou a chamar deficientes. Um quarto desafio tem origem na própria academia e nas instituições de financiamento de investigação em Portugal. Não obstante este não constituir um problema unicamente nacional, também aqui ele se sente de uma forma acentuada. A centralização do saber nas universidades e os tempos definidos para a construção desse saber não se coadunam, na grande maioria das vezes, com a realidade do movimento associativo das pessoas com deficiência. É, pois, necessária uma maior abertura das universidades e das instituições financiadoras a formas alternativas de saber e à participação dos sujeitos desse saber alternativo, permitindo tempos de discussão mais alargados e privilegiando uma articulação desses saberes. Só desta forma será possível alterar as relações sociais de produção científica pressupostas pelo modelo social da deficiência, permitindo uma participação igualitária de acadêmicos e pessoas com deficiência no desenhar dos projetos de investigação, tanto na análise dos dados como na formulação de conclusões. Este desafio só poderá ser ultrapassado através da inclusão de mecanismos de participação das pessoas com deficiência em todos os projetos de investigação nesta área. Conclusão Pensamos que os desafios aqui enumerados obrigam a uma abordagem tentativa em que a reconfiguração da deficiência como uma questão de opressão social deve ser acompanhada por uma atenção às reflexões e histórias de vida particulares das pessoas com deficiência, bem como aos contextos em que as suas representações da experiência da deficiência tomaram forma. Por outro lado, numa lógica de horizontalidade, o processo de investigação deve ser entendido como uma coaprendizagem entre academia e pessoas com deficiência: as narrativas de deficiência em Portugal ensinam-nos sobre os desafios situados com que as pessoas e as organizações se confrontam; as experiências e a literatura que noutros contextos vêm reclamando uma radical politização da deficiência instigamnos a fugir aos constrangimentos do “lugar” em que nos situamos. Precisamos por isso perceber os limites de uma abordagem reabilitacional e caminhar para um modelo mais social da deficiência, ou seja, importa que as respostas sociais à deficiência atentem no fato de que vivemos num regime profundamente opressivo no que diz respeito às pessoas com deficiência.

Há, portanto, um caminho de transformação social mais ampla que tem que nutrir e ser nutrido por uma desestabilização das representações dominantes da deficiência e por uma vitalidade democrática. Só essa vitalidade, que carece de uma capacitação financeira das organizações de pessoas com deficiência, permitirá que a imagem pública da deficiência tenha cada vez mais que ver com uma lógica identitária onde se afirmem capacidades ante a reivindicação da superação de barreiras, em vez da linguagem compassiva ante a mão assistencialista. É verdade que algumas ideias viajam bem, mostrando a persistência e a capacidade de se tornarem úteis em tempos e espaços diferentes do contexto da sua criação. Devemos analisar quais são as ideias que viajam bem e para onde. (HARDING, 2000: 136) De acordo com o pensamento de Harding (2000), sugerimos ao longo deste capítulo que a Investigação Emancipatória da Deficiência poderá “viajar bem” para a realidade da academia portuguesa, assim que se reconheçam as especificidades que caracterizam a realidade social de destino. Nesse sentido, há que ter em conta: a ausência de uma comunidade científica sedimentada na área de estudos da deficiência; a vulnerabilidade econômica e a marginalização social que inibem a participação social das pessoas com deficiência; o lastro autoritário de um Estado que afasta as organizações de pessoas com deficiência das decisões que lhes dizem respeito; as fragilidades do Estado-Providência português que, frequentemente, levam a que as organizações de pessoas com deficiência esgotem os seus recursos na prestação de serviços. A resolução dos quatro desafios identificados à implementação de uma investigação emancipatória na área da deficiência passa, precisamente, por esta maior autonomização das pessoas com deficiência e das suas organizações face a fenômenos de discriminação econômica, social e política. Cabe perceber como se perpetuam fatores de opressão de uma significativa minoria na sociedade portuguesa que se encontra impedida de participar ativamente naquilo que lhe diz respeito e, logo, nos saberes que na academia têm sido produzidos sobre as suas vidas sob pretexto, muitas vezes, de uma suposta objetividade do saber científico. Trata-se, assim, não só de construir saberes sobre a realidade das pessoas com deficiência em Portugal, mas também de produzir conhecimentos que contribuam para uma transformação social emancipatória e que exprimam o compromisso das ciências sociais na criação de uma sociedade inclusiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBERLEY, Paul (1992). “Counting Us Out: A Discussion of the OPCS Disability Surveys”, Disability, Handicap and Society , 7(2), 139-155. BARNES, Colin (1991). Disabled People in Britain and Discrimination – A Case for Anti-Discrimination Legislation . London: Hurst & Company / BCODP.

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PesquisarCOM outros: diferenças, silêncios e composições de mundos com pessoas com deficiência visual Carolina Sarzeda Reis Couto · Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce · Juliana Pires Cecchetti Vaz · Keyte da Silva Pestana · Larissa Ribeiro Mignon · Lia Paiva Paula · Lucas Nogueira Calvet Corrêa · Maíra de Macedo França · Marcia Moraes · Thais Amorim Silva · Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo ¹ Ana Claudia Lima Monteiro

A Cena Chego sozinha. Entro na sala, nervosa com esse primeiro dia de Oficina ² e começo a arrumar o espaço para receber os participantes. Ainda faltava cerca de uma hora para o início da oficina, mas esse acidente foi proposital. Queria um momento dedicado à criação de um corpo e de coragem. Coloquei uma música, meus fones de ouvido e me sentei em um dos colchões repassando mentalmente o planejamento (…) aos poucos, as meninas (da pesquisa) foram chegando. (…) Repassamos o planejamento que, para essa oficina, era de apresentação (dos participantes uns aos outros), (através de) um jogo (em que articularíamos os nomes de cada um a sons, que cada um escolheria como seu). Fizemos uma apresentação inicial de nossa proposta, falamos da pesquisa, do nosso percurso em outra instituição e da aposta de que o trabalho ali seria feito COM eles, isto é, contaríamos efetivamente COM eles para irmos organizando as oficinas, delimitando, em parceria, o que seria trabalhado em cada um dos nossos encontros . Depois dessa primeira rodada de apresentação, explicamos que para essa primeira oficina pretendíamos que cada um fizesse um som com seu corpo, para no final compormos uma orquestra com esses sons, um som do grupo. Nos colocamos todos em roda e de pé e antes de cada um escolher o seu som, nós, pesquisadoras, começamos a fazer vários sons como exemplos: palmas, sons com a boca, bater em alguma parte do corpo e assim por diante. No momento de escolha de um som individual, a pessoa dizia seu nome também. O grupo então deveria repetir o nome da pessoa e fazer o som escolhido. Este seria um modo de irmos nos conhecendo, lembrando dos nossos nomes. Os participantes escolhiam seus sons, geralmente dizendo mais do que seus nomes, contavam também pequenas histórias sobre o por quê do som escolhido. Todos os participantes colocaram-se muito dispostos a compor esse momento. Fluímos! Os sons fluíram! Fluíram ritmos! Revitalizei-me do desconforto das apresentações iniciais. Senti que, naquele momento, todos investiram seus corpos a estarem, de fato, presentes . Estávamos no momento em que cada um colocaria na roda o seu som para que todos o repetissem. Comecei. Eu fiz meu som, Mario ³ fez o som dele, Sr. Sérgio fez o dele, era algum ritmo com a voz que nos deixou um pouco perdidos para repetir. Chegada a vez da Carla, ela, sem qualquer hesitação, começou a cantar um louvor ao mesmo tempo que batia pés e mãos. “Meu Deus, te louvo com meus pés e te louvo com minhas mãos.” Isso me incomodou tremendamente. Já havíamos passado por situação parecida com a Carla que tomara o momento final de uma outra oficina, no semestre anterior, para evangelizar com Salmos. Mas o meu incômodo era tamanho que não consegui dizer nada. Nem ecoar seu som, o que todos fizeram algumas repetidas vezes, nem dar contorno àquilo que chegava. Silenciei. Percebi que algumas pessoas do resto do grupo partilhavam desse incômodo e também silenciavam. As repetições cessaram. A vez era da próxima. A senhora ao lado de Carla, então, tomou a vez e começou seu som: outro louvor. Todos repetiam. Eu buscava com os olhos as meninas, aflita, perguntando em silêncio o que fazer. Não conseguia dizer nada. A próxima tomou a vez e mais um louvor. A esse ponto, já me desesperava. Me perguntava qual era a diferença desse momento para um culto religioso ou

algo do gênero. Não via alguma. Não sabia ainda de que natureza era o incômodo, mas sua existência era inequívoca! Um elefante na sala! Quando a vez passou, finalmente, para a quarta das senhoras, que desde o início se dispuseram ao encontro, meio empoleiradas na parede, sem entrar na roda, ela disse: “ah, eu não me preparei”, ao que respondemos que não havia preparação necessária, qualquer som o corpo era suficiente! Ela nos respondeu lamentosa “ah, mas é que disseram tantas coisas bonitas, né? Eu sei um monte de coisa, mas agora não consigo me lembrar de nenhum versículo”. Ela lembrou, afinal. E mais uma vez reverberou, na sala, uma adoração ao deus cristão . Não sei se falei nesse momento ou depois, que evitássemos as palavras nos nossos sons, já que o objetivo era montar uma orquestra com nossos sons e que essas palavras se atropelariam e não seriam harmônicas juntos. Daí, finalmente, seguiram outros sons. Assobios, estalos… A oficina terminou desmantelada, com pessoas muito apressadas com seus horários e justificando que teriam que sair naquele momento. A finalização não pareceu importante. A conta gotas, as atenções se dispersaram, até o grupo ter sido completamente desfeito. Cada um a cargo de seus pertences e sua saída . Esse incômodo durou uma semana inteira. Fiquei engasgada com uma série de questões. A primeira que me veio foi a questão política daquilo que aconteceu. A deficiência já é permeada frequentemente por esse endereçamento ao divino. Isso, ao que me parece, é um agente hegemônico quando discutimos. Parte do que me incomodou foi dar tamanha força a essa versão da deficiência. A dúvida da quarta senhora sobre o seu preparo foi a ilustração disso: ela tinha seu corpo todo a dispor. Tinha uma gama infinita de sons possíveis. E, mesmo assim, sentia-se despreparada em participar . Quando conversei, em um primeiro momento, com as outras pesquisadoras sobre esse incômodo, elas falaram que a gente também tinha que acolher o que vem dos participantes das oficinas. Ao que fiquei pensando: acolher é silenciar? Acolher é fazer coro a algo com que não se concorda? Estar COM é se abster? Quais são os limites entre arranjar um dispositivo em que a coordenação não tenha um lugar privilegiado e desinteressante e arranjar um dispositivo em que nós não possamos aparecer? Ao silenciar, o que estamos fazendo? Me parece que na tentativa de dissolver um lugar de coordenação que manda e desmanda, buscamos fazer o inverso na crença de que isso solucionasse nosso problema de pesquisa. De dada maneira, silenciar reitera nosso lugar de coordenação na medida em que nos afasta do problema que é compor o coletivo. Nos eximimos de nosso lugar na composição pensando que isso é estar COM. Mas estar COM requer presença, em diversos graus e modalidades, mas presença. Eu não estive presente naquele dia. Não como parte do coletivo. A cada nova rodada de louvor, eu, calada, me questionava de novo e de novo: falar? Calar? Sair? Entrar? E, na escrita, as questões continuam reverberando num incômodo que não passou, apenas se escondeu . (Notas do Diário de Campo, Pesquisa Perceber sem Ver, abril de 2016). Introdução

No curso dos últimos anos temos feito pesquisas com pessoas cegas e com baixa visão, a fim de investigar de que modo e em que arranjos se desenham as fronteiras que separam corpos eficientes e corpos deficientes, as fronteiras que separam eficiência e deficiência (MORAES, SIMBINE, LOPES ET AL, 2016; MORAES, 2010, 2011) ⁴ . A direção ética e política da pesquisa afirma-se num fazerCOM o outro a investigação, isto é, COM as pessoas cegas e com baixa visão. É COM e não sobre (MORAES, 2010). A preposição aí faz toda a diferença no curso que o trabalho vai tomando e será decisiva para a discussão que apresentaremos neste texto. Em uma publicação recente, Latour (2013) toma a preposição como uma conexão que se articula com o tipo de conexão em rede. O autor resgata, inicialmente, a preposição no sentido gramatical do termo, isto é, gramaticalmente a preposição faz uma conexão, uma ligação. Para tratar desse ponto, Bruno Latour retoma James: Tomo emprestada de William James esta expressão. Com efeito, afirma James, não existe no mundo uma esfera do “com”, do “depois”, do “entre”, como se há um terreno das cadeiras, do calor, dos tapetes ou dos gatos. E, no entanto, cada uma dessas preposições participa de maneira decisiva na compreensão do que segue, pois oferece o tipo de relação necessária para captar a experiência do mundo. (LATOUR, 2013: 68, tradução nossa) ⁵ . E segue adiante dizendo que, quando vamos a uma livraria e folheamos um livro, faz toda a diferença o fato de que um livro venha com uma marca onde se lê: ficção, memórias, biografia. Cada marca dessa, segundo Latour, engancha o leitor num certo tipo de relação, sem, no entanto, dizer absolutamente nada do que virá a seguir. Tais modos de enganchar os leitores, são para Latour, como preposições. As preposições não são nem a origem, nem a fonte, nem o princípio, nem a potência e, no entanto, tampouco são redutíveis aos percursos mesmos. Elas não são o fundamento de nada e no entanto tudo depende delas. (LATOUR, 2013: 69, tradução nossa) ⁶ . As preposições indicam um sentido e estabelecem uma certa tonalidade da relação. “Cada preposição define, portanto, uma maneira de fazer sentido que irá diferir dos outros” (LATOUR, 2013: 244). O sentido de fazerCOM o outro a investigação carrega alguma coisa dessa dimensão de que fala Latour: é um modo de enganchar-se que nada diz sobre o que virá, mas que de algum modo, estabelece uma direção. Assim, se nos interessa investigar como e em que arranjos se tecem as fronteiras entre eficiência e deficiência, entre corpos eficientes e corpos deficientes, é COM as pessoas cegas e em cenários locais que seguimos a feitura dessas fronteiras, sempre provisórias, porosas, marcadas antes por embates, tensões e heterogeneidades mais do que por formas constituídas e dadas na partida. O problema que embasa este artigo se inaugura para nós no momento da reunião da equipe de pesquisa, quando lemos em grupo e em voz alta o diário de campo que abre o presente texto. O diário narra o retorno de nosso trabalho após o recesso de fim de ano – uma oficina de experimentação corporal com os usuários de uma instituição de reabilitação de pessoas cegas e com baixa visão vinculada ao Sistema Único de Saúde, o SUS ⁷ .

As perguntas expressas no diário ecoaram no grupo de pesquisa. FazerCOM o outro a pesquisa implica exatamente no quê? Por que tamanho desconforto experimentado no encontro com as pessoas que se dispuseram a estar no grupo? A invocação ao deus cristão, de algum modo, era uma liga do grupo de pessoas cegas. A pesquisadora, no entanto, silencia, não se vincula a esse deus. É o desconforto que marca o lugar em que ela se encontra. O grupo dava um rumo àquele encontro, articulando nome e som ao nome de deus, de um certo deus. O COM de que falamos antes, como preposição a indicar um modo de ligação, não antecipava que o vínculo que ali se estabeleceria seria um vínculo religioso. A pesquisadora é afetada pela intensidade do encontro, no sentido mesmo que Favret-Saada confere ao afeto, isto é, “ocupar tal lugar [afeta], quer dizer, mobiliza ou modifica [seu] estoque de imagens, sem contudo [instruíla] sobre o [estoque de imagens] dos (…) parceiros” (FAVRET-SAADA, 2005: 159). Não se trata, é certo, nem de passividade, nem de neutralidade, nem de empatia ⁸ , isto é, o colocar-se no lugar do outro. A pesquisadora permaneceu no encontro em silêncio, em revoluções, como diz Favret-Saada (2005), com o seu próprio estoque de imagens em choque. Com outras palavras, era a vinculação da pesquisadora a uma ancestralidade ⁹ que se via mobilizada pela invocação ao deus cristão. Nosso grupo de pesquisa tem se constituído em meio a ações que nos levam a compor uma memória coletiva, ancestral. Enquanto pesquisadoras, temos nos engajado nas ações em prol dos direitos inalienáveis da mulher ao seu próprio corpo e a suas escolhas. Os movimentos que ocuparam – e ocupam – as ruas e redes sociais contam conosco e, dia após dia, nos contam sobre nós mesmas. “Meu primeiro assédio”, “meu amigo secreto” ¹⁰ , a luta pelo fim da cultura do estupro, o direito ao aborto entre outras ações coletivas, nos engajam enquanto mulheres pesquisadoras. Nessas ações coletivas, refazemos nosso passado, tecemos laços e nos situamos politicamente no presente. Esse percurso, que chamamos com Despret e Stengers (2011) de fabulação de uma ancestralidade, vai de encontro ao discurso religioso na justa medida em que este discurso, não raras vezes, se mistura com o campo das políticas públicas, dos debates legislativos, propondo ações contrárias ao que tomamos como referência no campo dos direitos humanos, em especial, dos direitos das mulheres. Muitos dos debates políticos que se tecem em nosso país tem sido realizados, perigosamente, em meio a fundamentalismos religiosos opressores, violentos e silenciadores porque borram as necessárias fronteiras entre o que são as orientações espirituais privadas e o domínio das políticas públicas. Tais embates têm efeitos em nossas posições epistemológicas e políticas de resistência levando-nos a afirmar, reiteradamente, a laicidade do estado brasileiro. O desconforto das pesquisadoras, nomeado na escrita do diário de campo, relaciona-se com o percurso dessa ancestralidade. O que fazer se no encontro com os pesquisados a direção do trabalho se tece de modo imprevisível e, principalmente, nas antípodas do que temos como nosso estoque de imagens e de posições políticas?

A essa pergunta, Favret-Saada (2005) responde afirmando que nesses momentos (…) se for capaz de dizer-me que a comunicação (…) está precisamente se dando, assim, desse modo insuportável e incompreensível, então estou direcionada para uma variedade particular de experiência humana – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por ela estou afetada. (FAVRET-SAADA, 2005: 160) A leitura desse diário de campo no grupo de pesquisa fez reverberar o desconforto, produzindo ecos ao silêncio vivenciado pelas pesquisadoras. O dispositivo de pesquisa teria se tornado um culto religioso, a despeito do que eram as nossas questões e proposições iniciais? Descartar o encontro ou resumi-lo a um culto não seria jogar fora o bebê com a água de banho? Porque, afinal, as pessoas ali estavam, se dispuseram ao encontro – ao modo do que lhes era pertinente – e associavam um nome a um som. Na reunião da equipe de pesquisa aquele mal-entendido, vivido como insuportável, ganhava outros contornos. Seria ele promissor (DESPRET, 1999), no sentido de que abriria outros possíveis? Ficamos com o problema. Porém, mais do que o tomar como um problema circunscrito ao nosso grupo de pesquisa, optamos por afirmá-lo como uma questão ético-política de pesquisa, apresentando-o em um evento organizado pelo Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em junho do ano de 2016. Na ocasião, uma das autoras deste artigo, palestrante no evento, cujo tema era “A dimensão política da pesquisa: possibilidades de transformação do presente”, apresentou uma versão preliminar do presente texto, o que fez ressoar em outras bandas e com outros parceiros as questões que nos inquietavam. Fazer silêncio X silenciar Após a leitura do texto no evento, Rodrigo Lages ¹¹ , professor da UFRGS, nos interpela: “Você disse que a oficina se transformou num culto religioso. Mas eu me pergunto: a proposição que a pesquisa fez àquele grupo não era uma proposição culta ?” Rodrigo Lages nos faz redesenhar o problema que nos inquietava. Não seríamos também nós, pesquisadoras, que produzimos silenciamento no encontro com o grupo? Será que não estávamos nós, pesquisadoras engajadas no fazerCOM o outro a pesquisa, nesse momento ocupando o lugar de pesquisadoras cultas, a desconsiderar o que são as marcas dos outros com quem pesquisamos? Fazer com o outro a pesquisa não nos garante na partida o sentido que a preposição COM assume nessa relação, ainda que essa seja a nossa ética de pesquisa não escapamos das traiçoeiras capturas do olho de deus (HARAWAY, 1995). Segundo Haraway (1995), fazer pesquisa é um ato político de tecer fronteiras com os outros, na contramão de uma certa política de pesquisa que se caracteriza, segundo a autora, pelo olhar de sobrevoo, pelo distanciamento: conhecimento que parte de lugar nenhum e fala sobre ninguém. Se, seguindo as pistas de Haraway (1995), afirmamos que o conhecimento é prática situada, a pergunta insiste: com que elementos se compõe essa prática? A angústia que vivemos sinaliza que há algo a se pensar. O impasse do quase culto faz surgir o próprio dispositivo ¹² enquanto matéria-prima na oficina. O

incômodo evidencia as suas linhas de construção e torna palpável o (f)ato de seu arranjo. Na falha do dispositivo é que podemos pensar sobre sua construção. É ele, então, que nos relembra de nosso lugar de pesquisa. É ele que constrange a ilusão de homogeneidade do grupo e nos convoca a nos debruçarmos sobre nossos lugares. Se calamos, em constrangimento de nossas vozes, é porque levamos na bagagem ao campo algum entendimento de que a prática científica, e nossa atuação enquanto pesquisadoras, é uma prática silenciadora em potencial. Com que ouvidos e palavras a ciência compõe o seu corpo? Decerto, não nos furtamos da dimensão que fabrica e carrega a bagagem levada ao campo – nossos corpos de pesquisadoras. Constituímos saberes sobre o corpo, advindos de nossas próprias experiências corporais e articulados às leituras norteadoras de chãos possíveis. O embate vem corporificado na ancestralidade de nossas peles, contornado por nossas próprias expectativas, reacendidas e ativadas nos encontros com os participantes da oficina. Os sons invocando o deus cristão não estavam inclusos em nossa proposição inicial. Não estavam inscritos nos poros sonoro-afetivos das pesquisadoras. Como manejar com esse embate? É preciso escutá-lo com as pausas, os silêncios e as sensações. Estamos cientes de que a COMposição do dispositivo de pesquisa, tal como é efetuado muitas vezes, pode organizar os(as) participantes em jogos silenciadores em que o sujeito pesquisador estuda sobre o seu objeto pesquisado em uma prática colonizadora. O pesquisador investe seu corpo como vetor uníssono de saber, reificando os lugares inábeis e movimentos desarticulados. Nesse arranjo, a escuta se forja em meio a dados estéreis, rostos vazios e corpos solitários. Retiram-se as rugas, os ouvidos e os sons dissonantes das cenas. Se, por ora, nos calamos, rastreamos tensionar as marcas invisibilizadas numa prática científica tecida com corpos solitários. O calar vem porque estamos avisadas dos perigos de nosso lugar. Tentando evitar os possíveis silenciamentos, fazemos silêncio. O silêncio evoca o embate entre mundos heterogêneos. E há uma positividade nesse silêncio: a de deixar refluir o problema, a de grifar as tensões. Porque há sempre um par ao silêncio, o audível. Fazer silêncio é, ao mesmo tempo, aumentar o volume de algo que está sendo dito. Assim, o que é aqui narrado é o encontro entre duas práticas, muitas vezes silenciadoras, em disputa: a religiosa e a científica. Há disposto um jogo de forças entre essas duas práticas que se performa na oficina. O constrangimento surge justamente nesse ponto: quando uma prática disputa a hegemonia com a outra. O silêncio nos ensina. É preciso fazer silêncio, às vezes, para que não se produza um silenciamento. Para que se arranje o dispositivo de pesquisa de maneira não silenciadora, uma alternância de silêncios é precisa. Fazer silêncio é, assim, permitir o refluxo do que emerge enquanto problema. Fazer silêncio é, em última instância, ficar com o problema. Por outro lado, o silenciar, tanto na posição de silenciador como na de silenciado, é apaziguamento. Silenciar é apagar os problemas, as tensões, as disputas, os relevos, os descompassos.

Se fizemos silêncio foi também para ouvir o que a experiência trazia. Nas oficinas que seguiram, apostamos nas falas encarnadas, atiçadas pelas memórias de experiências vividas na pele. Compusemos COM o grupo, que no curso do tempo, foi nos dando dicas preciosas para que seguíssemos adiante num processo de sensibilização do corpo, estando atentas ao que as sensações nos causavam e partilhando as histórias que emergiam. Fomos construindo, coletivamente, um manejo, um certo modo de articulação com o grupo. O deus cristão seria invocado outras vezes, ele era sem dúvida parte da ancestralidade que formava aquele grupo. Um outro lugar para a fala surgir O que se passou é que a invocação a deus, ainda que se repetisse, não impediu que outras – e potentes – conexões fossem se desenhando. Nos encontros posteriores, articulados ao fazerCOM, as pessoas cegas e com baixa visão nos deram uma direção de trabalho precisa e potente. O que seria feito naquele espaço seria uma oficina de sensorialidades. Não pelo que faltava àquelas pessoas – a visão, mas antes, pelo que elas tinham e queriam aguçar: olfato, paladar, audição, tato, percepção do próprio corpo. As oficinas que se seguiram foram orientadas por essa direção que resultou do primeiro e perturbador encontro que, no entanto, mobilizou um dos sentidos extremamente relevantes àqueles que cegam: a audição. De algum modo, ainda que não tivéssemos percebido isso à época, o primeiro encontro com o grupo foi já, ele também, uma sensibilização do corpo. Mobilizando os sentidos, as oficinas se constituíram em espaços de experimentações e de movimento das fronteiras entre eficiência e deficiência. Porque o que se fazia nos encontros seguintes era um exercício com corpos vivos, sensíveis e sencientes. Experimentamos uma sequência de encontros onde cheiros foram articulados com memórias, com imagens, com Alice Ruiz: “Lembra o tempo / em que você sentia / e sentir / era a forma / mais sábia de saber / E você nem sabia? ¹³ ”. Sons foram entoados com Bethânia declamando que música é perfume ¹⁴ . Uma oficina que articulava paladar, odores, histórias foi levada adiante com a mobilização do grupo que, organizando-se durante os dias entre um encontro e outro, levou comidas para serem provadas, cheiradas, narradas, conforme as mais diversas especificidades dos corpos ali presentes, com diabetes, alergias e mais uma infinidade de diferenças e singularidades. No entanto, ao final de uma oficina, Mariana nos diz que sente falta de um momento para a conversa naquele espaço, ainda que seja para falar sobre coisas que não se relacionem com a oficina. Decidimos seguir essa pista, mas não como algo externo àquela experiência. A fala, nas oficinas, claramente não some por completo. Ela se faz necessária para dizer de um incômodo, para dar pistas de por onde seguimos, para partilhar as histórias vividas e recordadas no encontro, para as trocas que às vezes não se bastam no movimento. As falas religiosas – presentes nas experiências de cada um – tampouco se ausentam. E quando surgem, continuam nos fazendo hesitar (SIMBINE, LOPES, ALVES et al, 2016). Sérgio, quando chegou, esticou a mão pra mim, que a segurei, e então ele me puxou para um abraço e nos cumprimentamos, ele disse “Deus te

abençoe, minha filha”. Eu fiquei em silêncio, mas quase disse “amém”. Hesitei em falar qualquer coisa que fortalecesse o surgimento de questões religiosas naquele espaço. De qualquer maneira, o carinho daquele momento dispensava palavras (Notas do Diário de Campo, Pesquisa Perceber sem Ver, junho de 2016). Quais limites devem ser criados nas nossas relações de pesquisa? O encontro com Sérgio nos faz tatear outros limites possíveis, não prédefinidos em quaisquer manuais de laicidade do estado / pesquisa. A fala que ia surgindo agora, era uma outra fala – encarnada, cheia de histórias, de vida. Pelos fios de memória, aos poucos o grupo cria vínculos e confiança. A partir destas experimentações nossa proposição se mistura com as deles e ganha sentido nos corpos. Essa experiência nos lembrou da nossa vulnerabilidade, da nossa fissura habitável enquanto pesquisadoras e, na medida em que fomos manejando os impasses da pesquisa, um modo de estar COM começara a se fiar – entre distâncias e proximidades, o contorno entre “nós” e “elas(es)” se entrelaçava. O nosso silêncio também se fez potente por esse viés, permitia que ela(es) aparecessem, surgissem, interviessem. E assim o grupo foi sendo costurado, descosturado, costurado de novo. A cada semana tínhamos mais um retalho para acrescentarmos a nossa colcha. deus não está morto Depois entregamos aos participantes os diferentes objetos. Em seguida, pedimos que um de cada vez fizesse o seu som e, em seguida, comentarmos se aquilo nos lembrasse de alguma coisa. Alguém iria começar uma história, contar, aos cochichos, para quem estivesse do seu lado, esta última pessoa passaria o cochicho para a seguinte, acrescentado à história algo de seu, e assim por diante. Quando chegou no último participante, Luis Guilherme, ele disse “tinha uma mulher na praia, e o marido dela estava com câncer e ela pediu para outra mulher rezar por ele.” Quando perguntamos mais sobre a história, a Mariana tomou a palavra e disse que a história era a realidade de uma companheira nas nossas oficinas, a Carla. Seu marido está com câncer, e a Mariana aproveitou o momento para partilhar com o grupo essa situação e pedir orações . Por algum tempo, deixamos as frases relacionadas às fés, às orações circularem, até que o Sérgio começou a propor que rezássemos juntos ali. Eu estava prestes a falar, quando a Lari, parceira do grupo de pesquisa, tomou a palavra dizendo que respeitava a fé de todos ali, mas que aquele espaço era laico, nosso país é laico, e que aquele não era o lugar apropriado para que se fizessem as orações, já que não sabíamos nem se todos ali acreditavam em Deus. “É, cada um que se sinta tocado, reze na sua casa” disse a Mariana, marcando que não era a intenção dela que rezassem ali, era que toda(os) nós soubéssemos do marido da Carla, que todo(as) nós nos tocássemos com a situação de vida pela qual passava uma participante do grupo (Notas do Diário de Campo, Pesquisa Perceber sem Ver, junho de 2016). Elaborar a questão, pensá-la em equipe à exaustão, não propõe um protocolo a ser seguido. A pergunta retorna. Retorna modulada, com novos

agentes e forças e não há garantias inscritas em nossos repertórios de imagens. Não há inocência: nem nossa nem delas(es). O que está em jogo é manter viva a tensão, sustentar o problema no espaço entre . Nem defender a religião, nem rechaçá-la: ser afetado no encontro com o outro, eis o cerne. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COUTINHO, E. (2008). Encontros: Eduardo Coutinho . Organização Felipe Bragança. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial. DESPRET, V. (2004). “The body we care for: Figures of anthropo-zoogenesis”. Body and Society , 10, 111–34. __ (1999) Ces émotions que nous fabriquent . Paris: Lês empecheurs de penser en rond. DESPRET, V. e STENGERS, I. (2011). Les faiseuses d’histoires. Ce que les femmes font à la pensée . Paris: La Découverte / Les Empêcheurs de penser en rond. FAVRET-SAADA, J. (2005). “Ser afetado” (tradução de Paula de Siqueira Lopes). Cadernos de Campo , n. 13, p.155-161. HARAWAY, D. (1995) “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu / Unicamp, p.7-41. LATOUR, B. (2013) Investigación sobre los modos de existencia. Una antropologia de los modernos . Buenos Aires: Paidós. MELLO, A. G. de. (2016). “Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC”. Ciência & Saúde Coletiva , 21 (10), 3265-3276. MORAES, M. (2010). “PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual”. In: MORAES, M.; KASTRUP, V. (2010) Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual . Rio de Janeiro: NAU Editora. __ (2011). “Pesquisar: verbo ou substantivo? Narrativas de ver e não ver”. Pesquisas e Práticas Psicossociais , v. 6, p.174-181. MORAES, M; SIMBINE, A. J.; Lopes, B. P. S.; Couto, C. S. R.; Trebisacce, D. C. R.; Chaves, G. F.; Vaz, J. P. C.; Mignon, L. R.; Paula, L. P.; Garcia, L. A.; Oliveira, R. P.; Silva, T. A. (2016). “PesquisarCOM: efeitos de uma oficina de experimentação corporal com pessoas cegas e com baixa visão”. Pesquisas e Práticas Psicossociais , v. 11, p.147-160. RUIZ, A. (s/d) Lembra? Versão eletrônica disponível em: < http:// www.avozdapoesia.com.br/obrasler.php?obraid=712>. Acesso em: 18/09/2017. SIMBINE, A. J.; Lopes, B. P. S.; Alves, C. A.; Chaves, G. F.; Conti, J.; Vaz, J. P. C.; Mignon, L. R.; Paula, L. P.; Savelli, L. G.; Garcia, L. A.; Moraes, M.;

Oliveira, R. P.; Silva, T. A.; Cavalcanti, T. (2016). “Você jura pelos seus olhos? Hesitações que (des)equilibram um dispositivo de pesquisa”. In: FERREIRA, M. S.; MORAES, M. (org.). Políticas de Pesquisa em Psicologia Social . Rio de Janeiro: Editora Nova Aliança. 1 As/os autora/es são membros da equipe do Projeto de Pesquisa Perceber sem Ver. Os nomes foram listados em ordem alfabética do primeiro nome. 2 Oficina de Experimentação Corporal oferecida a pessoas cegas e com baixa visão, em processo de reabilitação, vinculadas a um Centro de Atendimento em Reabilitação do Sistema Único de Saúde/Ministério da Saúde, na cidade de Niterói / Rio de Janeiro / Brasil. A Oficina integra o conjunto de atividades da Pesquisa Perceber sem Ver, coordenada pela professora Marcia Moraes. 3 Os nomes dos participantes das Oficinas são fictícios. 4 Em nossas pesquisas temos discutido a questão da deficiência nos perguntando onde e em que arranjos sociomateriais se desenham as fronteiras entre eficiência e deficiência (MORAES, 2010). Fronteiras porosas, móveis, articuladas politicamente. Consideramos relevante sublinhar que não tomamos eficiência e deficiência como dois polos opostos, mas como modos de ordenar corpos, modos de fazer existir corpos que podem se tecer em gradações, nas quais cada um de nós se constitui com graus distintos de eficiências e deficiências. Mello (2016) salienta, com astúcia, que o que se opõe à deficiência é o capacitismo, preconceito que marca socialmente certos corpos como mais capazes do que outros. 5 No original: “Tomo prestada de William James esta expresion. En efecto, afirma James, no existe en el mundo una esfera del “con”, del “despues”, del “entre”, como si existe un terreno de las sillas, del calor, de los felpudos o de los gatos. Y, sin embargo, cada una de estas preposiciones participa de rnanera decisiva en la comprension de lo que sigue, pues ofrece el tipo de relation necesaria para captar la experiencia del mundo”. 6 No original: “Las preposiciones no son ni el origen, ni la fuente, ni el principio, ni la potencia y, sin embargo, tampoco son reducibles a los recorridos mismos. Ellas no son el fundamento de nada y sin embargo todo depende de ellas”. 7 No Brasil a reabilitação das pessoas com deficiência foi integrada ao SUS, o Sistema Único de Saúde. Em 2013 a legislação brasileira integrou às ações do SUS os Centros Especializados de Reabilitação (CER), com habilitações distintas para as práticas de reabilitação e para as deficiências. Há, no entanto, outras modalidades de instituições de atendimento à deficiência no Brasil, muitas das quais filantrópicas. 8 Neste ponto concordamos com Despret (2004) quando a autora sinaliza que o encontro com o outro na pesquisa não se faz por meio da empatia, isto é, da assunção de um afeto de que podemos “nos colocar no lugar do outro”. Antes, o que se trata de construir é uma relação de sintonia, um refinamento do encontro nas diferenças. Na mesma direção, o cineasta Eduardo Coutinho (2008), cujo trabalho fílmico é permeado por entrevistas, por

encontros com alteridades, sinaliza que nas relações com os outros, a diferença é um trunfo. 9 Tomamos o termo ancestralidade no sentido que lhe conferem Despret e Stengers (2011): uma memória ancestral no sentido de que é fabulada, construída e que, ao mesmo tempo, convoca a não cedermos inocentemente ao consenso. A ancestralidade assim desenhada nos situa e só faz sentido na imanência do encontro. 10 “Meu primeiro assédio”, “meu amigo secreto” foram movimentos que tomaram as redes sociais no ano de 2015. No primeiro caso, as mulheres partilharam em suas redes relatos de situações de assédio enfrentadas no cotidiano de suas vidas. Já no segundo caso, os relatos envolviam situações de machismo e opressão que atravessam as relações diárias das mulheres. Tanto um quanto outro movimento visavam fomentar laços, partilhas de experiências e, ao mesmo tempo, publicizar as formas cotidianas de opressão às mulheres, não raras vezes invisibilizadas. 11 Registramos nossos agradecimentos aos colegas do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: pela acolhida, pela relevância do evento, pela parceria nas discussões que propusemos. Agradecemos em especial à Rodrigo Lages, professor do curso de Educação da UFRGS, pelas questões levantadas durante o evento. Sem as interpelações de Rodrigo não teríamos levado adiante as questões que embasam esse texto. 12 Definimos dispositivo de pesquisa como um arranjo heterogêneo de elementos, um amálgama que reúne humanos e não humanos e que ativa a todos que nele se articulam. Um dispositivo de pesquisa é, conforme Despret (2004), performativo, isto é, faz existir realidades não dadas previamente. 13 Alice Ruiz. Lembra? Versão eletrônica disponível em: < http:// www.avozdapoesia.com.br/obrasler.php?obraid=712>. Acesso em: 24/09/2017. 14 Versão eletrônica disponível em: < https://www.youtube.com/watch? v=hgB6T8sZKoE>. Acesso em: 24/09/2017.

A mobilidade humana como prática coletiva ¹ Andreia Santos de Carvalho

Bárbara Gonçalves dos Santos Maudeth Py Braga Introdução: encontros e reencontros Neste trabalho, concebemos a mobilidade como experiência, ou seja, o modo como vemos e recortamos o mundo depende de um conjunto de forças socioculturais incluindo nossas ações cotidianas. Entender a mobilidade como experiência é considerar que interferimos no espaço ao nos deslocarmos. Propomos pensar a experiência humana no movimento, considerando a mobilidade como algo inerente a nosso ser no mundo. A circulação humana constitui modos de viver e de subjetivar. Nossos corpos constroem espaços que, simultaneamente, constituem nossos modos de existir e ocupar. As noções de mobilidade e movimento não estão necessariamente atreladas ao físico e material, mas dizem respeito, principalmente, a toda uma dinâmica de nossos vínculos e relações com o mundo. Nesse sentido, os deslocamentos não são somente de ordem geográfica, são práticas de espaço, ou seja, o espaço é lugar praticado tal como assinalado por Certeau (1994). O andar é, segundo o autor, um ato enunciativo, é o que transforma a rua (lugar) em espaço. Aposta nas criações expressas nos usos e práticas cotidianas. Há uma riqueza no cotidiano que é sua inventividade nos modos de uso, nos modos de fazer e que em algumas circunstâncias se constituem como modos de resistência. Tal como assinala o autor: “a ordem é exercida por uma arte, ou seja, ao mesmo tempo exercida e burlada.” O caminhar na cidade é uma prática concreta porque é movimento, é ação, configuração de espaço. É possível dizer que a existência é espacial reconhecendo a conjugalidade espaço-tempo e experiências espaciais distintas. A ação de mover-se no espaço pode ser uma ação de transformação de si e da cidade. A partir dos modos como nos locomovemos, construímos diferentes formas de experienciar o espaço. Nesse sentido, podemos pensar inspirados por Duarte & Cohen (2004: 5), que a apreensão dos espaços possibilita o desenvolvimento de afetos nos lugares: Assim, pode-se compreender que, para que uma pessoa com dificuldade de locomoção possa criar experiências afetivas nos espaços e se identificar com a cidade em que habita é preciso que ela seja capaz de se introduzir em seus espaços com seu corpo e seus sentidos, e que estes lhe permitam que sua experiência espacial se concretize de forma satisfatória. Ao considerarmos que a percepção do espaço se dá por experiências individuais e coletivas, na medida em que é através do deslocamento em interação com o ambiente que o sujeito constrói as representações e os significados para esse espaço, optamos por abordar a questão da mobilidade a partir da relação que o sujeito estabelece com o espaço que habita, circula e convive. Pensamos a mobilidade urbana não apenas como “condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”, conforme é definida pela Lei n° 12.587/2012 (Lei da Mobilidade Urbana) ² , mas como uma experiência que é, ao mesmo tempo, singular e coletiva de perceber o mundo e se inserir nele.

Apresentamos a análise de uma experiência de reorientação e mobilidade, numa situação de cegueira adquirida, com o intuito de convidar o leitor a pensar na multiplicidade de formas outras de apreender e experienciar os espaços. Foi num contexto de entrevista de uma ação extensionista ³ que nos reuniu num Centro de Reabilitação na região metropolitana do Rio ⁴ . A encomenda de apresentação de trabalho num evento científico colocou o instigante desafio de uma produção que deslocou lugares como “entrevistador / entrevistado” e nos colocou na condição de autoras. O que nos leva a pensar: Que contornos ganha o dispositivo entrevista no contexto dessa intervenção? A respeito, recorremos a uma bonita passagem, que consta no livro Encontros, de Eduardo Coutinho, em que é abordada a relação de Consuelo Lins ⁵ com os entrevistados: De fato, algo se constrói entre a palavra e a escuta que não pertence ao entrevistado, nem ao entrevistador. É um contar em que o real se transforma num componente de uma espécie de fabulação, onde os personagens formulam algumas idéias, fabulam, se inventam, e assim como nós aprendemos sobre eles, eles também aprendem sobre suas próprias vidas. É um processo onde há um curto-circuito no ato de falar. (COUTINHO, 2008: 66). Foi com muita alegria que os encontros e reencontros dessa produção ocorreram, não sem os tensionamentos que atravessam a produção acadêmica, sobremaneira no que tange a questão do tempo. Afinal como disse Rene Lourau (1993): a encomenda acadêmica encomenda o olhar. Mesmo contando com um percurso de dez anos de projeto, foi a primeira vez que a escrita de um trabalho se deu com quem se pesquisa. E isso fez toda a diferença nessa produção, em que foram adotados três eixos norteadores para o desenvolvimento de sua discussão: 1) obstáculos e barreiras; 2) estratégias e táticas; 3) mediação e prática coletiva. Tais eixos são acompanhados pelas seguintes questões: Quais são os impasses na mobilidade urbana? Que estratégias e táticas são utilizadas por pessoas com deficiência em seus deslocamentos? Como as mediações as ajudam na resolução de problemas? Com quais situações de constrangimento as pessoas com deficiência se deparam nos deslocamentos? 1. Obstáculos e barreiras O deslocamento de uma pessoa com deficiência visual não é desprovido de inúmeros obstáculos. Em seu caminhar pelo espaço urbano se depara com diversas irregularidades nas ruas e calçadas, ausência de sinalizações específicas e / ou adaptações inadequadas que, geralmente, transformam-se em verdadeiras armadilhas. Além disso, há de se considerar em seu percurso o contato com outras pessoas que, muitas vezes, acabam por dificultar ainda mais esse deslocamento em função do desconhecimento que possuem acerca das possibilidades e necessidades da pessoa com deficiência.

Apesar de presenciarmos nas últimas décadas o surgimento de políticas de mobilidade e acessibilidade voltadas para as pessoas com deficiência, o espaço urbano ainda é planejado e organizado a partir dos referenciais de uma pessoa que não possui dificuldade de locomoção, seja ela causada por uma deficiência física e / ou sensorial, seja pela própria idade. Segundo Duarte & Cohen (2004: 2), geralmente, os estudos que subsidiam os projetos arquitetônicos de adaptação ou readequação dos espaços públicos se limitam a pensar a acessibilidade física de pessoas com deficiência e deste modo, não é raro que a construção de rampas nas esquinas e de uma determinada percentagem de vagas para estacionamento de veículos adaptados às pessoas com deficiência física sejam considerados como “suficientes” para taxar o projeto urbano de “projeto inclusivo”. A percepção e a experiência de todos os usuários, no entanto, nem sempre é levada em consideração nestes momentos. Em se tratando da deficiência visual podemos dizer que, do mesmo modo, o piso tátil não é garantia de mobilidade urbana, haja vista exemplos de pisos táteis que conduzem o cego na direção de pilastras, canteiros e postes, mas não os alertam para a entrada de prédios públicos ou condomínios privados e, ainda, para as mudanças de direção. Nesse caso, a denúncia na mídia e a consequente modificação dessa situação foi feita e relatada na entrevista realizada, o que marca a posição de que a deficiência envolve luta. Nesse sentido, consideramos fundamental a coparticipação dos usuários nas ações de planejamento, conjugando técnica e experiência. Reportando-nos aos estudos de Santos (1998: 63) ao abordar o papel da técnica na sociedade e em cada um dos lugares geográficos que a constitui, compartilhamos a ideia de que “(…) qualquer forma de atividade humana, não é consequência exclusivamente da estrutura material, nem do arranjo físico de objetos” e, deste modo, pensamos que a mobilidade urbana não diz respeito, simplesmente, às adaptações arquitetônicas impostas por leis e orientadas por um conjunto de técnicas. Ela é, sobretudo, uma construção histórica, cultural e afetiva onde as próprias técnicas utilizadas para sua implementação precisam ser tomadas em sua dimensão social e histórica ” . Não se trata, todavia, de prescindir da técnica, pois como também afirma Santos (1998: 64-5): Ora, tanto o espaço global, como cada lugar, são realidades estruturais. As estruturas, além do movimento que as impele para as mudanças, dispõem de arranjo material e organização funcional, uma forma de ser e uma de existir. Dessa forma, tanto as técnicas que auxiliam o deficiente visual a se orientar e locomover no espaço urbano quanto as normas técnicas de acessibilidade são importantes, mas não são suficientes na medida em que, muitas vezes, elas são tomadas a priori e isoladamente. Se tomamos as técnicas como dados explicativos do espaço, tal como afirma Santos (1998), podemos pensar como os modos e as relações de produção explicam a sociedade e seus lugares geográficos. Sabemos que a cidade foi e ainda é planejada em função da produção e do mercado. Suas formas

espaciais e o tempo engendrado nos modos de viver na / da cidade são cada vez mais esquadrinhados pelo modo de produção capitalista. Soma-se a isso as transformações e modernizações em função dos avanços da ciência e da tecnologia as quais as cidades tendem a se subordinar. Na cidade, as formas novas, criadas para responder a necessidades renovadas, tornam-se mais exclusivas, mais rígidas materialmente e funcionalmente, tanto do ponto de vista de sua construção quanto de sua localização. (SANTOS, 1998: 74). Ao considerarmos que a cidade é planejada segundo as exigências dos modos de produção e do mercado, é pertinente analisar a forma como foi construída a relação das pessoas com deficiência com os modos de produção em períodos históricos distintos. Seguindo a pesquisa realizada por Carvalho (2009: 33) salientamos que desde o período em que dominava o modo de produção escravista “(…) a perfeição física, sensorial e mental deveria ser uma condição indispensável”. O escravo que adquirisse uma deficiência era colocado na condição de pedinte ou atuava em espetáculos, sendo considerado como uma criatura bizarra. No final da Antiguidade foi iniciado o processo de institucionalização que consistia em recolher deficientes, pessoas com alguma doença incurável, idosos e pobres. Este processo foi ampliado em épocas posteriores. No sistema feudal, por exemplo, a pessoa com deficiência que não estivesse integrada na economia familiar, por não apresentar um rendimento satisfatório na execução de sua atividade produtiva, era confinada em hospitais e asilos, retirada do convívio social. O modo de produção capitalista, por sua vez, foi marcado pela expansão do mercado e, inicialmente, pela manufatura, além da acumulação de capital e do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. A posterior mecanização do processo de produção deu origem à Revolução Industrial em que a máquina ditava o ritmo de trabalho e, neste contexto, a institucionalização das pessoas com deficiência se mantinha fortemente com o viés econômico. Haja vista os gastos com a população institucionalizada havia um interesse de que essas pessoas se tornassem, de algum modo, produtivas, um corpo útil. A partir desse momento, a institucionalização passa a ser pautada nas perspectivas assistencial e pedagógica. Desta forma, o autor afirma: Com a criação das instituições de ensino especializado para cegos e surdos, a sociedade burguesa buscou resolver dois problemas: retirar esses “desajustados” do convívio social e fazê-los minimamente produtivos para torná-los úteis ao capitalismo. (SILVEIRA BUENO, 1993 apud CARVALHO, 2009: 74) A ciência, a tecnologia e a informação avançam e alcançam grande relevo na vida contemporânea. Santos (1998) assinala que a arquitetura urbana e a construção técnico-científica e informacional do meio ambiente, características da contemporaneidade, sustentam uma racionalidade do agir social fundamentada na obtenção do lucro e onde o Estado é chamado para adequar o meio ambiente às exigências do mercado. Acrescenta ele:

Mas a cidade como um todo resiste à difusão dessa racionalidade triunfante graças, exatamente, ao meio ambiente construído, que é um retrato da diversidade das classes sociais, das diferenças de renda e dos modelos culturais. À cidade informada e às vias de transporte e comunicação, aos espaços inteligentes que sustentam as atividades exigentes de infraestruturas e sequiosas de rápida mobilização, opõe-se a maior parte da aglomeração onde os tempos são lentos, adaptados às infraestruturas incompletas ou herdadas do passado, os espaços opacos que, também, aparecem como zonas de resistência. (SANTOS, 1998: 79). A aceleração e o tempo padronizado exigem cada vez mais corpos obedientes a esse fluxo. Mas ainda há, como mencionado acima, na cidade que abriga infraestrutura de rápida mobilidade, aquilo que resiste, uma boa parte da população – em que se destacam as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida – que, com seus tempos lentos e desiguais, (sobre)vive e é ignorada pelo planejamento urbano. Isto posto, como pensar ritmos temporais diversos? Como as ações em acessibilidade podem considerar tempos desiguais? A relação entre o tempo e o espaço, bem como a energia, o esforço dispendido para a locomoção das pessoas com deficiência visual, que muitas vezes interfere de forma determinante na percepção desse espaço, precisam ser considerados. Sua mobilidade depende das condições que o ambiente oferece para o seu deslocamento, assim como o tempo é sentido e medido em razão das dificuldades que elas encontram no caminho, fazendo com que sua percepção do espaço seja, também, determinada pelo tempo gasto para identificar os obstáculos, situar-se em relação aos mesmos e contorná-los. “O tempo está implícito em todos os lugares, nas ideias de movimento, esforço, liberdade, objetivo e acessibilidade”. (TUAN, 1983, apud DUARTE & COHEN, 2004: 4) É possível então dizer que a mobilidade é, também, uma ação subjetiva em que as noções de perto ou longe, por exemplo, não são medidas pela distância entre os lugares ou pelo tempo estimado para percorrê-la, mas pelas dificuldades encontradas nesse trajeto em situações diversas. Há de se considerar também, a dimensão afetiva inerente à circulação na cidade. Portanto, como prescindir da experiência humana na implementação de uma política pública de mobilidade urbana? 1. Estratégias e táticas Questões relativas às estratégias e táticas utilizadas por pessoas com deficiência em seus deslocamentos são respondidas a partir do relato de uma pessoa que perdeu a visão aos 22 anos de idade. Por esta razão, foi preciso reestruturar seu modo de vida para estar / existir e interagir de outra forma nesse universo onde continuava (e continua) predominando a imagem, a aparência, o visual. Os relatos, segundo Certeau (1984: 200) transformam os lugares em espaços, na medida em que possibilitam a produção de narrativas capazes de cartografar vivências e afetos. “Todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço.” Do micro (sua casa) ao macro universo (as ruas, a cidade), a estratégia adotada na ocasião da perda da visão – e que, posteriormente, revelou-se

primordial – foi, primeiramente, descobrir (ou redescobrir) a dimensão e o movimento de seu próprio corpo em um dado espaço através do trabalho de orientação e mobilidade em sua residência. A mediação de um profissional para orientar tanto na adequação possível da residência quanto no deslocamento dentro dela; o aprender a utilizar seus recursos / equipamentos e a construção de estratégias para transpor os obstáculos encontrados nesse espaço (ex.: móveis e objetos ao seu redor) foram fundamentais para que essa pessoa (entrevistada / autora) adquirisse algumas condições básicas e anteriores à locomoção e ao acesso aos equipamentos / serviços urbanos. A experimentação de outras percepções e sensações, tais como: orientar-se no espaço pelo som, identificar um objeto pelo tato, perceber as diferentes estruturas do chão por onde caminha, buscar referenciais para se situar em um lugar, além de desenvolver a capacidade de atenção foram algumas dessas condições. Ao analisar o conceito de cotidiano na Terapia Ocupacional, Galheigo (2003) ressalta a relação entre o sujeito e a História, levantando uma importante questão, a de ressignificar o cotidiano antes de iniciar o “treinamento das atividades da vida diária”. Além disto, ressalta a importância do compartilhamento das representações que cada sujeito faz da realidade social. A leitura do trabalho desta autora nos permitiu constatar que o deslocamento na própria residência foi uma estratégia de grande importância na medida em que possibilitou que a pessoa (entrevistada / autora) revisse sua vida cotidiana e, até mesmo, atribuísse outros sentidos para seu cotidiano. Quanto ao deslocamento, cabe destacar a estratégia de definir pontos de referência que podem ser fixos ou móveis, assim como podem ser distintos para cada sujeito. Em um mundo em que as percepções, sensações, aprendizagens e as relações se dão sob a primazia da visão, parece difícil pensar como uma pessoa cega pode se deslocar pela cidade. A distinção entre cidade e urbano, proposta por Santos (1988: 69) coaduna com nossa proposta de pensar a mobilidade como experiência, partindo do micro para o macro: Na realidade, há duas coisas que estão sendo confundidas gratuita e alegremente, isto é, a cidade e o urbano. O urbano é frequentemente o abstrato, o geral, o externo. A cidade é o particular, o concreto, o interno. Não há que confundir. Por isso, na realidade, há histórias do urbano e histórias da cidade. O ato de se deslocar possui certa concretude, isto é, para se localizar na cidade é necessário estabelecer alguns referenciais que servirão para indicar o local onde a pessoa com deficiência visual se encontra. Um comércio, o número de ruas atravessadas, de curvas e quebra-molas percebidos quando se está em um veículo; um odor específico, o som, a voz e o vento e, até mesmo, um obstáculo no caminho são exemplos de pontos de referência e orientação. Desse modo, entendemos que é com uma multiplicidade de agentes: pedestres, ventos, sons, bengalas, cão-guia, motoristas de ônibus etc., que os deslocamentos se efetuam. E a condição do

que é referência num dia pode mudar em outro. Os marcadores se movimentam no viver nas cidades e nas cidades no viver. 1. Mediação e prática coletiva Pensar a mobilidade urbana e projetos arquitetônicos no que tange às pessoas com deficiência nos remete, primeiramente, à questão de lhes assegurar os seus direitos como sujeitos e cidadãos capazes de estar e atuar na sociedade de forma autônoma e independente, sendo-lhes propiciadas as condições necessárias para isto. Contudo, cabe ressaltar que, como falamos em espaço vivido, as condições dadas não são garantia de acessibilidade e de apropriação dos lugares, mas dependem também de uma ação que se dá no coletivo. Trata-se de um tema bastante amplo e complexo que abrange diversos aspectos e envolve vários agentes humanos e não-humanos. Se por um lado afirmamos que as adaptações não garantem o acesso e a autonomia das pessoas com deficiência em suas atividades cotidianas, sejam elas pessoais ou profissionais; por outro lado, não se pode ignorar que as mesmas se constituem como condições mínimas para que essas pessoas possam viver com dignidade e qualidade de vida, usufruindo de seus direitos dentro da perspectiva dos Direitos Humanos. Deste modo, os obstáculos e as barreiras que as impedem ou dificultam devem ser identificados e eliminados. A acessibilidade, por sua vez, deve ser compreendida no sentido da promoção dos Direitos Humanos, proporcionando recursos e meios para que as pessoas com deficiência tenham acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à cultura, à informação e comunicação, ao lazer e à vida comunitária em igualdade de oportunidade com as demais pessoas. Nesse sentido, mobilidade e acessibilidade requerem intervenção. Introduzimos, então, a questão da mediação como ato de intervir em busca da solução de problemas e, se abordamos o espaço na dimensão do físico e do vivido, a mediação também engloba duas vertentes que se entrelaçam: a técnica e a humana. Em relação à primeira, destacamos a tecnologia assistiva, outrora conhecida como “ajuda técnica”. Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. (BRASIL, 2009: 13) Independentemente da deficiência, a mobilidade é algo que diz respeito a todos os cidadãos, contribuindo, por exemplo, para a acessibilidade universal, a equidade no acesso ao transporte público coletivo e no uso do espaço público, assim como a segurança nos deslocamentos, conforme prevê a Política Nacional de Mobilidade Urbana. ⁶

A mobilidade urbana requer não somente projetos arquitetônicos, mas também e, na maioria dos casos, mudanças em edificações já construídas, em vias públicas, logradouros e no sistema de transporte. Então, cabe questionar: que implicações essas mudanças podem trazer para o cotidiano das pessoas? Em se tratando de adaptações para as pessoas com deficiência, têm essas adaptações algum significado para as demais pessoas que circulam pela cidade? Pessoas com deficiência ou não coabitam e convivem no mesmo espaço: a cidade. Nesse convívio observamos, também, a solidariedade na forma de mediação de problemas, como sinalizar para o ônibus e avisar ao cego de sua chegada ao ponto; ajudar a atravessar a rua; informar sobre algum obstáculo no caminho etc. Contudo, cabe interrogarmos sobre o significado dessa mediação para ambas as partes. Se por um lado a mediação pode ser determinante na solução de uma situação-problema, por outro ela pode causar constrangimentos, seja para a pessoa com deficiência ao ser colocada na condição de incapaz de resolver uma situação, seja para a pessoa que tenta fazer a mediação e a mesma é indelicadamente recusada. Há ainda uma terceira situação de constrangimento, em que a pessoa com deficiência solicita a mediação e esta é ignorada. A cidade pode ser um espaço de trocas entre as pessoas na medida em que as atividades que nela se desenvolvem podem promover a socialização e a cooperação, apesar do individualismo que reina em nossa sociedade atual. A mobilidade urbana, por sua vez, deve favorecer esses aspectos da vida cotidiana, promovendo a inclusão social de todos os cidadãos, segundo a perspectiva de que a mobilidade urbana se faz pelo compartilhamento das experiências humanas, o que é condição fundamental para qualquer proposta dita inclusiva. A cidade é o lugar em que o Mundo se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos homens a diferença. Por isso, a cidade é o lugar da educação e da reeducação. Quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado. (SANTOS, 1998: 83) Considerações finais: relatos de espaço e políticas de lugares Na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam metaphorai . Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” – um ônibus ou um trem. Os relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaço. (CERTEAU, 1994: 199)

A cidade é palco de tempos rápidos e lentos, tempos estes medidos pela relação do sujeito com o espaço onde circula e que é, muitas vezes, marcada pela dificuldade de mobilidade. Vemos que a existência de tempos desiguais precisa ser considerada pelas políticas de mobilidade. A partir da experiência da deficiência, que permitiu a reestruturação de um modo de existir na urbe, problematizamos para que(m) e por quem o espaço urbano é construído. Sendo assim, indagamos: que cidade temos, que cidade almejamos, mas sobretudo, que cidade fazemos? E esse fazer se dá a partir de quais composições, de quais feituras de espaço? É possível dizer que a experiência de adquirir mobilidade, primeiramente, na residência (microuniverso) possibilitou, a partir das orientações técnicas e, fundamentalmente, com o acolhimento e apoio de uma profissional, ressignificar aquele espaço e se situar no mesmo de outra forma. Desse modo, foi possível criar as bases para conquistar a mobilidade urbana (macrouniverso) em um momento posterior, onde são necessárias trocas e inter-relações para que a mesma não se reduza a uma ação mecânica de adaptações arquitetônicas impostas por leis. Ela é, sobretudo, uma construção histórica, cultural e afetiva que implica numa multiplicidade de agentes, sendo, portanto, um desafio diário, uma prática coletiva. No contexto deste trabalho, a mediação remete a um lugar atribuído, ou seja, a posição de mediador ocupada por um profissional. Mas também, a mediação é demandada espontaneamente em diversos encontros em que a ideia de lugar não necessariamente remete a um lugar social ocupado por um agente humano, pois aqui é entendido como uma configuração circunstancial de posições. Dessa forma, podemos afirmar que tanto o acesso quanto o uso das chamadas tecnologias assistivas como mediadoras, são marcados por particularidades, uma vez que não se trata de uma técnica fria, ela é incorporada, encarnada. Falamos de uma corporeidade que se constitui com próteses, órteses e / ou meios auxiliares de locomoção. No entanto, o acesso às tecnologias assistivas é restrito, porque caro. A deficiência é apropriada a uma lógica produtiva e de consumo, tornando-se um segmento de mercado. Além disso, é importante destacar as variações de tempo na apropriação de cada sujeito em relação ao uso dessas tecnologias. Sublinhamos que as pessoas com deficiência não eram reconhecidas como possuidoras de capacidade produtiva de modo a ocupar um lugar numa rede de trabalho formal. Desde o início da história da humanidade elas eram segregadas e discriminadas; assujeitadas aos cuidados do Estado e do saber médico, ao trabalho forçado e desqualificado promovido pela institucionalização etc. Portanto, excluídas do cenário econômico e sociopolítico de épocas distintas, as pessoas com deficiência não tinham acesso à vida urbana; sua experiência com a cidade era marginalizada. A inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal e no serviço público ocorreu, somente, a partir do final do século XX. Reportandonos à pesquisa de Rosa (2009) verificamos que apesar da Constituição Brasileira de 1988 estabelecer em seu artigo 37, inciso VIII, que “(…) a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão” ⁷ , as leis que regulamentaram esse direito foram publicadas em 1990 (Lei Federal n.°

8.112) e 1991 (Lei Federal n° 8213). Mesmo com essas Leis, a contratação de pessoas com deficiência era protelada e a consolidação do direito ao trabalho só se deu através do movimento de luta das Pessoas com Deficiência e a publicação do Decreto Federal n° 3298 de 1999 ⁸ que regulamentou a Lei Federal n° 7853/1989. Esta lei dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e na Seção IV, relativa ao Acesso ao trabalho, estabelece o percentual de vagas a serem ocupadas por pessoas com deficiência. Entretanto, cabe a reflexão sobre o que o autor afirma: Esta política de cotas precisa ser compreendida como parte da totalidade das reformas socioeconômicas, políticas e culturais introduzidas com as mudanças que ocorreram na esfera da produção capitalista, notadamente com o que se convencionou chamar de reestruturação produtiva, ou mudanças no mundo do trabalho. (ROSA, 2009: 14) Podemos afirmar que foram essas mudanças que impulsionaram uma revisão do planejamento das cidades de modo a iniciar o processo de integração e, posteriormente, inclusão das pessoas com deficiência, na medida em que começaram a ser vistas com uma capacidade produtiva e como consumidoras. E é nessa relação produção-consumo que a circulação na cidade se dá num nivelamento de bens e pessoas, onde o espaço também é produto e tudo é mercadoria. É a partir de uma nova estruturação do espaço urbano, levando-se em consideração, sobretudo, ao que ele visa, que se institui uma política de mobilidade urbana e de acessibilidade. Contudo, mesmo com os avanços tecnológicos e legislativos ⁹ , os estigmas da deficiência ainda persistem, retroalimentados pelo preconceito e discriminação, produzindo exclusão. É por essa via que entendemos o espaço urbano como direito de todos. É de direito, mas não é de fato. Para ser de fato não se pode prescindir do coletivo como estratégia de luta para o amplo acesso à cidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Versão eletrônica disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 02/08/2014. _. Decreto nº 3298 de 20 de dezembro de 1999 - regulamenta a Lei n o 7.853, de 24 de outubro de 1989. Versão eletrônica disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3298.htm>. Acesso em: 02/08/2014. _. Lei nº 12.587 de 3 de janeiro de 2012 – Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Versão eletrônica disponível em: < https:// www.planalto.gov.br/ccivil03/ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>. Acesso em: 02/08/2014. _. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Versão eletrônica disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil03/ ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 20/10/2016.

_. Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Comitê de Ajudas Técnicas. Tecnologia Assistiva. Brasília: CORDE, 2009. 138 p. CARVALHO, A. R. de (2009). Inclusão social e as pessoas com deficiência: uma análise na perspectiva crítica . 2009, 178 f. Mestrado em Educação – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, PR. CERTEAU, M. (1994). A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. DUARTE, C.; COHEN, R. (2004). “Afeto e Lugar: A Construção de uma Experiência Afetiva por Pessoas com Dificuldade de Locomoção”. In: Anais do Seminário Acessibilidade no Cotidiano . Rio de Janeiro. p.1-8. Versão em CD. COUTINHO, E. (2008). Coleção Encontros: a arte da entrevista . Org.: Felipe Bragança. Rio de Janeiro, RJ: Beco do Azougue. GALHEIGO, S. M. (2003). “O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social”. Revista Terapia Ocupacional . Universidade de São Paulo. São Paulo, v.14, n.3, p.104-9, set/dez. Versão eletrônica disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rto/article/view/ 13924>. Acesso em: 25/05/2015. LOURAU, R. (1993). Análise institucional e práticas de pesquisa . Rio de Janeiro: UERJ. ROSA, E. R. da (2009). O trabalho das pessoas com deficiência e as relações sociais de produção capitalista: uma análise crítica da política de cotas no Brasil . Mestrado em Educação – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, PR. SANTOS, M. (1998). “Técnica, Espaço, Tempo”. In__. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional . 4º edição. São Paulo, SP: Hucitec. p.61-86. _ (1998). “Meio ambiente construído e flexibilidade tropical”. In_. Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional . 4º edição. São Paulo, SP: Hucitec. p.73-80. 1 Capítulo baseado em trabalho apresentado pelas autoras no evento: Conectando Conhecimentos, organizado pelo Instituto Benjamim Constant, Rio de Janeiro, junho de 2015. Relatora: Bárbara Gonçalves dos Santos. 2 Lei nº 12.587 de 2012 – Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Versão eletrônica disponível em: < https:// www.planalto.gov.br/ccivil03/ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm>. Acesso em: 02/08/2014. 3 Projeto de extensão: Reabilitação humana, trabalho e inserção social do Departamento de Psicologia da UFF, cujo objetivo é contribuir para a efetividade de direitos sociais através do compartilhamento de informações

e experiências no campo da deficiência e da reabilitação. Coordenação: Maudeth Py Braga. 4 Entrevista realizada com uma das autoras do trabalho, que em 2014 foi estagiária do setor de Psicopedagogia da Associação Fluminense de Reabilitação – AFR. 5 Consuelo Lins é documentarista e professora da UFRJ. 6 “A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana”. Art. 2 o . 7 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Versão eletrônica disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em: 02/08/2014. 8 Decreto nº 3298 de 20 de dezembro de 1999 - regulamenta a Lei n o 7.853, de 24 de outubro de 1989. Versão eletrônica disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3298.htm>. Acesso em: 02/08/2014. 9 Entrou em vigor em janeiro de 2016 a Lei Brasileira de Inclusão, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Versão eletrônica disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil03/ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 20/10/2016.

Deficiências, dificuldades e diferenças: critérios e direções para mediar na escola Nira Kaufman A Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência de 2006, da qual o Brasil é signatário, entende que “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou

sensorial, os quais, em interação com as diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASÍLIA, 2011: 26). Portanto, a deficiência é produção do encontro entre uma pessoa e as barreiras que ela encontra no contexto social em que está inserida. A partir dessa definição, no âmbito da inclusão escolar, deslocamos o foco individualizado que hoje recai sobre o aluno para focarmos nas relações que se estabelecem dentro da escola e as barreiras que elas produzem. Partindo desse deslocamento, entendemos que é preciso repensar os termos que utilizamos para nos referir aos alunos que estão encontrando, dentro da escola, barreiras no seu processo de escolarização. O termo oficial hoje utilizado no Brasil é “alunos com necessidades educativas especiais” e no cotidiano da escola encontramos, com frequência, o termo “aluno de inclusão”. Ambos os termos produzem efeitos que corroboram para um entendimento da deficiência de forma individualizada e estanque. O primeiro entende que é o aluno que tem necessidades educativas especiais, e coloca em cena a palavra “especial” que é excludente, pois coloca os alunos fora do coletivo, pois são especiais; especiais passa a ser tomado como diferente, “de fora”, que precisa de estratégias específicas. Ao mesmo tempo, implica que os outros alunos não são especiais, ou seja, não são diferentes e não necessitam de estratégias diferenciadas e um olhar atento para seu processo de aprendizagem. Por fim, essa categoria nos parece rígida. Quando um aluno tem necessidades educativas especiais, ele as terá sempre, em qualquer contexto e independente dos encontros que se efetivem no seu ambiente escolar. O segundo termo, “aluno de inclusão”, também incorre na questão do engessamento do aluno em uma categoria onde ele não tem espaço para se movimentar. A professora Cynthia Freller ¹ , em seu artigo “É possível ensinar educadores a incluir?”, utiliza o termo “aluno em situação de inclusão” para falar daquilo que compete ao profissional que atua com esses alunos: movimentar uma situação que o aluno está vivendo. Essa outra forma de se referir aos alunos produz movimento: o aluno não é de inclusão para sempre, ele está em uma situação que demanda trabalho para se modificar; ele é de inclusão naquele contexto, naquela situação, a partir do encontro que está tendo com o outro. Inclusão passa a ser um lugar por onde os alunos passam, é um estado. O aluno pode ser de inclusão na aula de matemática, mas não na aula de ciências já que na aula de ciências foi produzida a proposta acessível para ele e na de matemática não. Ele pode ser de inclusão e deixar de ser e voltar a ser e deixar de ser novamente. Possibilita o movimento. Em segundo lugar, ele abre mão do especial onde só alguns são de inclusão e podem ter um apoio diferenciado. A partir desse termo entendemos que qualquer aluno pode estar sendo de inclusão, ou seja, pode estar passando por uma situação, encontrando uma barreira que precisa de trabalho para se modificar e por isso ocupa o lugar de inclusão. As escolas têm tomado como principal ferramenta de inclusão a presença de um mediador escolar acompanhando os alunos em situação de inclusão. No Rio de Janeiro, o mediador é contratado pelas escolas ou pelas famílias com crianças / adolescentes considerados alunos em situação de inclusão para acompanhá-los no cotidiano escolar. Em sua maioria, essa contratação era

feita a partir de uma demanda da escola. O mediador pode atuar dentro da sala de aula, no recreio, no lanche e em outros espaços, dependendo da demanda que se faz com relação às dificuldades do aluno. Esse trabalho precisa ser construído em parceria com a escola, principalmente com os professores, de forma que se configure uma intervenção conjunta em prol de uma vivência escolar de qualidade para o aluno acompanhado. Não existe um único formato de mediação ou um manual que se possa seguir com todos os alunos. Cada mediação se organiza localmente, no encontro com a escola, com o aluno e sua família. Olhamos para o mediar como uma ação complexa, inspirados por Bruno Latour, que diz o seguinte: “um mediador, apesar de sua aparência simples, pode se revelar complexo e arrastar-nos em muitas direções que modificarão os relatos contraditórios atribuídos a seu papel” (LATOUR, 2012: 65). Então, partindo dessa definição de aluno em situação de inclusão, e tomando como disparador a prática de mediação escolar ² , a partir de quais critérios, conhecimentos, vamos partir no momento de eleger e criar as intervenções com esses alunos? Circulando pelas diferentes escolas, assistimos a predominância de atuações que têm como direcionamento os diagnósticos, síndromes e / ou transtornos atribuídos aos alunos. Nossa aposta é seguir na contramão dessa direção medicalizante ³ de fazer inclusão. Assim, oferecemos algumas pistas para seguirmos em outras direções no esforço de incluir ⁴ . Primeira direção: diferença Em curso sobre inclusão e mediação ⁵ , oferecido por nós em 2015, fizemos duas perguntas aos alunos: Para você, o que é inclusão? Quem é o público alvo da inclusão? Entre as muitas respostas, as palavras aceitar, acolher e respeitar apareceram diversas vezes para se referir à questão da diferença na escola. Nos chamou atenção as frases compostas por essas palavras e seus efeitos na nossa posição em relação às diferenças. Precisamos cuidar das palavras, uma vez que elas têm força e marcam a nossa experiência com as pessoas. Consideramos essas palavras perigosas. Perigosas pois vêm envolvidas por um manto de solidariedade, compreensão, inclusão. Porém, se olharmos mais a fundo para as frases que se constituem por essas palavras, teremos: “inclusão é aceitar a diferença do aluno”, “eu aceito a diferença do outro”, “na inclusão, precisamos respeitar as diferenças do aluno”, “inclusão é respeitar as diferenças”, ou “eu acolho ele mesmo sendo diferente”. Pois bem, só podemos lançar mão dessas frases uma vez que nos colocamos em uma relação distanciada desse outro: “eu aceito o problema do outro já que eu não tenho problemas”, ou “na inclusão, precisamos respeitar as diferenças do aluno, pois não somos diferentes”. Muitas vezes sem perceber, estabelecemos relações com o outro, e nesse caso com o aluno em situação de inclusão, na qual o diferente é ele e, portanto, é ele que precisa se modificar, se adaptar; é ele que foge a uma suposta forma de ser da qual nós, os que não são diferentes, fazemos parte. Em um artigo no jornal El País, Eliane Brum coloca em xeque essa forma de se pensar em relação ao outro,

A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência. Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente” não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto. Quem faz o mundo dar um passo à frente são aqueles que percebem que a experiência de viver se amplia ao conviver com as diferenças. Que veem diversidade e riqueza onde outros veem inferioridade e fracasso. (BRUM, 2016) Só nos valemos dessas frases porque ainda prevalece a ideia de que temos escolha frente à diferença, ou seja, podemos decidir não aceitá-la, não respeitá-la, e etc. E não temos essa opção. A diferença é inerente à vida, é condição da vida. Logo, não nos cabe aceitar ou respeitar, ela está em nós e é prerrogativa da existência. Macedo (2011) nos convoca a conviver com as diferenças a partir de uma lógica da relação, na qual se relacionar significa reunir coisas que não valham por si só, só existem em relação. Ou seja, é a relação com o outro que as define: “Portanto, na relação, quem nos define são também os outros com quem nos relacionamos, pois somos definidos por esse jogo de posições que nos situa uns em relação aos outros, de diversos modos.” (MACEDO, 2011: 03). Nessa lógica as diferenças dizem respeito a todos, nos definem e nos modificam. Manuela, mediadora escolar ⁶ Hoje Manuela nos contou que a escola está exigindo que o aluno que ela acompanha tenha um laudo médico para que seja autorizado o uso de provas orais como forma de avaliação. Ela acha que não faz sentido precisar de laudo já que todos os profissionais da escola reconhecem a dificuldade do menino com a escrita e a leitura, e tem receio do que esse rótulo pode produzir no trabalho com o menino. Por outro lado, ele se beneficiaria muito se puder ter avaliações e atividades diferenciadas na escola. Seu aprendizado está sendo prejudicado pelas limitações das intervenções que podem ser feitas. Não queremos defender o diagnóstico, mas também não podemos abrir mão de modificar alguns funcionamentos da escola para que o aluno possa aprender. (Caderno de campo, 2013) A prática de mediação na qual apostamos não tem como alvo os diagnósticos que marcam a maior parte dos alunos que acompanhamos. Não é a partir das descrições sobre o autismo ou a síndrome de down que planejamos nossas intervenções com os alunos que acompanhamos. Assim como não nos pautamos em uma noção fechada de normalidade na escola, diante da qual teríamos como objetivo adaptar o aluno em situação de inclusão, e que está contida nos laudos que colocam o aluno do lado “errado” do funcionamento escolar. Entretanto, não utilizar laudos e diagnósticos como norteadores do nosso trabalho não significa que não sejam atravessamentos relevantes com os quais temos que lidar. Com alguns alunos acompanhados, o diagnóstico se

tornou um aliado para conseguirmos que a escola autorizasse determinadas modificações no currículo, nas formas de ensinar, funcionar e avaliar. Foi o caso do trabalho de mediação da Manuela. O aluno não sabia escrever, mas entendia os conteúdos da matéria e sabia responder oralmente às questões. Assim solicitou-se a avaliação por meio de prova oral. A permissão para se modificar a forma de avaliação desse aluno foi atrelada à existência de um laudo diagnóstico justificando essa necessidade. Diante dessa determinação, foi necessário nos aliarmos ao diagnóstico para avançarmos nas modificações necessárias que garantissem que o aluno estaria sendo avaliado dentro das suas possibilidades, reduzindo, assim, as barreiras que estavam sendo impostas ao seu aprendizado. Não podemos travar todas as batalhas ao mesmo tempo, precisamos escolher as mais urgentes, as que dariam, naquele momento, mais frutos e beneficiariam o aluno. Santos (2001) nos diz da necessidade de constituirmos uma experiência corporal sensível que, além de agir, seja também capaz de sentir. Para a mediação é importante criamos esse corpo, capaz não só de esbravejar demandas à escola e requerer que tudo se modifique no mesmo instante, mas de se utilizar da sensibilidade no encontro com o outro e com as barreiras que se apresentam cotidianamente. Contudo, a aliança com o laudo diagnóstico se deu apenas no âmbito das nossas relações com a escola e nas resoluções burocráticas da instituição. O novo diagnóstico do aluno não se tornou uma diretriz de trabalho do mediador que o acompanhava. No cotidiano com o aluno, as intervenções pensadas se mantiveram guiadas pelas dificuldades que aquele aluno nos apresentava e pelas composições que íamos fazendo com ele. Segunda direção: dificuldades e habilidades É esperado que os alunos dentro da categoria de inclusão tenham um laudo médico que justifique esse lugar na escola. Carlos e Antonio tinham em comum o fato de não possuírem diagnósticos fechados, e nos colocaram a pensar que nem todo aluno sem diagnóstico não é um aluno em situação de inclusão e, nesse caso, nem todo aluno que possui diagnóstico é um aluno em situação de inclusão. Seria o diagnóstico critério para um aluno estar em situação de inclusão? Seria o laudo médico, ou diagnóstico, o conjunto de informações que nos ajudaria a construir um processo consistente de inclusão para os alunos que acompanhávamos? Concordamos com Senra (2008) quando ele diz que se de fato nos propomos a construir uma educação para todos a partir da perspectiva de cada um, (…) da expressão do sujeito como ponto de partida (…), vamos considerar que de nada nos serve priorizar o diagnóstico médico. (SENRA et al, 2008: 38) Se não iríamos priorizar o diagnóstico médico, quais critérios iríamos eleger? Antonio, aluno em situação de inclusão

Fui chamada para trabalhar com Antonio porque ele tinha dificuldades nos exercícios de sala, não acompanhava os conteúdos da turma. A escola também me apontou que o aluno por vezes atrapalhava a aula batucando ou provocando os colegas, parecia que ele não se conectava com as aulas. Outro ponto forte para a entrada da mediação era a dificuldade de Antonio em fazer amizades, no manejo das relações sociais na escola. Era uma grande preocupação que foi endereçada a mim. Com essas informações sobre o menino, iniciei a mediação. (Memórias, 2010) Em algumas situações, as escolas demandam para a família um laudo diagnóstico para que o aluno possa efetivamente entrar no grupo dos alunos em situação de inclusão e ter um mediador. Em outras situações, a escola decide classificar o aluno como em situação de inclusão e pedir a mediação escolar, e ao longo do processo insiste junto à família pelo laudo a fim de ter um documento que justifique as medidas diferenciadas utilizadas com o aluno. Esse laudo ora vem com um diagnóstico fechado, ora apenas com a indicação de que são necessárias medidas especificas para o aprendizado daquele aluno. Dessa forma, o que há de comum entre os alunos em situação de inclusão não é a presença de laudos ou diagnósticos, e sim barreiras no processo de aprendizado na escola. Essas barreiras produzem dificuldades. Esse foi o processo que se deu com Antonio. No caso dele, o laudo não se fez necessário, a escola compreendia que ele estava com dificuldades que demandavam estratégias de inclusão, entre elas o mediador escolar. O que a escola ofereceu de informações sobre o aluno não foi um diagnóstico, e sim os pontos que vinham desafiando o seu processo de escolarização. Entretanto, a descrição do aluno só comportou as dificuldades dele, e nada foi contado de suas habilidades ou seus interesses. Essa parte foi Antônio mesmo quem contou. Então, os alunos em situação de inclusão são alunos que apresentam alguma dificuldade no decorrer do seu processo de escolarização que extrapola o que seria passível de ser resolvido utilizando os recursos já existentes na escola. Tem sido para essas situações que o mediador escolar está sendo convocado. Carlos, aluno em situação de inclusão Carlos é um adolescente que está no fundamental II. Ele é muito organizado e responsável com seu material. Realiza todas as tarefas com muito empenho. Ele tem dificuldade na compreensão dos conteúdos previstos pela escola, principalmente os que demandam pensamento abstrato, e nas relações com os colegas. Carlos não acompanha os conteúdos previstos na ementa de cada ano para cada disciplina, e por isso não consegue realizar todos os exercícios propostos pelos professores. Carlos gosta muito de futebol, sabe tudo sobre o assunto, e tem dificuldades de mudar de tema buscando sempre introduzir o assunto nas conversas. Nas relações com os colegas, reclama muito das provocações que os meninos fazem com ele e tem dificuldade de entrar nas conversas, entender os assuntos. Já com os professores e os adultos em geral faz vínculo com facilidade, buscando essa parceria em muitos momentos. Respeita as regras colocadas pela escola com

facilidade. Carlos sempre nos mostrou grande desejo por aprender e participar das atividades, o que facilita a implementação das diferentes estratégias. (Caderno de campo, 2015) Deslocando o entendimento das situações de inclusão do diagnóstico para as dificuldades, a preocupação da mediação passa a ser em mapear as dificuldades que cada aluno nos comunica e o contexto em que elas estão inseridas. E junto com isso, quais as habilidades que eles apresentam e que os auxilia na escola. A descrição de Carlos, portanto, busca entender o aluno a partir de suas dificuldades e capacidades sem precisar da preocupação com um diagnóstico que ele poderia receber. Dessa forma, construímos as intervenções pautadas nessas dificuldades que estavam ocorrendo no encontro entre o aluno e as demandas da escola, utilizando também as suas capacidades. Basta que deixemos inscreverem-se as especificidades, mesmo que essas sejam necessidades próprias e diferentes das necessidades dos demais alunos no domínio das aprendizagens curriculares correspondentes à sua idade. Diante dessa singularidade que aí se afirma, consideremos a necessidade e a viabilidade de recursos pedagógicos e metodologias educacionais específicas (…). (SENRA et al, 2008: 38) A mediação com Carlos foi facilitada pelo fato de ele ser muito organizado com seus materiais e mostrar sempre vontade de realizar as tarefas, além da curiosidade para aprender. Por exemplo, foi proposto que Carlos realizasse seus exercícios em sala de aula junto com a turma sem precisar da presença do mediador ao seu lado, ou mesmo na sala de aula. Isso só foi possível porque podia-se contar com a vontade dele em fazer as suas tarefas. E foi o apego às regras que fez possível a ideia de oferecer ao menino um gabarito de suas apostilas para que ele pudesse corrigir o que tinha feito e depois tirar suas dúvidas com o professor e com o mediador. Os profissionais que atuavam com ele sabiam que ele não iria copiar o gabarito. Os exercícios dele eram adaptados com base nessa dificuldade de compreender enunciados abstratos, ou seja, fazia-se com que eles fossem mais concretos. Como sinaliza Albano (2015), o exercício de criar intervenções a partir da vivência com os outros afirma a inclusão como política da diferença (…) coexistência de singularidades, como a construção de um campo comum, que se compartilha com os outros, à sua maneira, com sua própria expressividade. É ser com os outros e não como os outros . (ALBANO, 2015: 44) Portanto, o planejamento da mediação se dá utilizando as dificuldades e as capacidades que nos são comunicadas pelos alunos nos momentos em que estamos juntos. Terceira direção: diversidade, diferenças, dificuldades e o intercâmbio de estratégias

Partimos do pressuposto de que a diferença está na essência da humanidade, na gênese do processo de humanização. É ela que permite a diferenciação entre as experiências e a constituição da subjetividade. Afinal, a condição que nos iguala enquanto sujeitos humanos é o fato de sermos diferentes. O que nos iguala é a diferença. Considerar cada indivíduo permite-nos descobrir, junto com ele, suas capacidades, suas potencialidades de sujeito singular e diferente. (SENRA et al, 2008: 42) A inclusão escolar pressupõe a diferença como parte integrante do cotidiano das salas de aula e dos corredores da escola. A entrada dos alunos em situação de inclusão nas escolas regulares escancara a heterogeneidade como prerrogativa do ser humano, e abre espaço para que possamos pensar uma educação que leve em consideração as diferenças de cada um de seus alunos. No tempo atual, a efetividade da inclusão como política das escolas permite que os alunos com diferenças muito marcadas, que antes ficavam fora, estejam dentro. Essa ação permite, aos que habitam a escola, perceber e se relacionar com os alunos em situação de inclusão e alarga o espaço no qual conseguimos perceber as diferenças de todos os alunos, e mesmo as nossas. Dessa forma, a diferença passa a ser palavra chave nos corredores da escola. Parece estar na moda usar a expressão “somos todos diferentes”, ouvimos isso nas escolas, nos espaços de formação, lemos em artigos. Sim, vamos afirmar que somos todos diferentes e, portanto, somos iguais justamente porque somos diferentes. Como coloca Santos, É preciso afirmar que nas novas lutas se procura o equilíbrio forte, tenso, dinâmico, entre o princípio da igualdade, o princípio da liberdade e o princípio da diferença, e que apesar de vivermos em sociedades muito desiguais, a igualdade não nos basta, queremos ser iguais e queremos ser diferentes. (SANTOS, 2001: 22) No entanto, não podemos usar essa frase para apaziguar as tensões e colocar todas as diferenças no mesmo patamar. Hoje, algumas diferenças não impedem que o aluno consiga aprender e experimentar a escola a partir do formato já dado. Outras diferenças sim. Elas, em muitos momentos, impedem o aluno de se movimentar, de aprender, de se desenvolver. Para a escola, elas representam desafios e colocam em evidência que a forma hegemônica de ensinar não dá conta da diversidade de formas de aprender. Dessa maneira, o encontro entre algumas diferenças e o funcionamento atual da escola produz dificuldades; ou melhor, o funcionamento atual da escola quando encontra com as diferenças de alguns alunos produz dificuldades. Portanto, o que vamos percebendo é que precisamos inverter a lógica de que são os alunos que vão entrar nas salas de aula e precisam funcionar dentro das propostas feitas para um coletivo que teoricamente é igual. Os alunos necessitam de estratégias diferenciadas. A realidade vem nos mostrando que a diversidade é característica central nas salas de aula e que uma única proposta de atividade, uma única forma de apresentar certo conteúdo ou avaliar todos os alunos tem se mostrado cada vez menos eficaz (CAST, 2011). Esses alunos nos obrigam a pensar em outras formas de apresentar

os mesmos conteúdos, repensar as regras, o tempo, o currículo, pois, como nos diz Macedo (2011), esses alunos “utilizam recursos diferentes dos normalmente conhecidos ou utilizados” para aprender. Vamos utilizar a ideia de Beyer (2006) de que os alunos em situação de inclusão são esses que se veem impedidos de aprender quando em contato com os funcionamentos da escola. O trabalho da mediação irá incidir, justamente, sobre essas dificuldades oriundas desse encontro entre a forma de ensinar e funcionar da escola e o aluno em situação de inclusão. E tem como objetivo colocar em cena um fazer diversificado na escola. Carlos Quando comecei a mediar Carlos entendi que ele estava tendo dificuldades semelhantes às de Antonio quando se relacionava com os exercícios propostos pela escola. Ambos tinham dificuldades na compreensão de enunciados abstratos, com metáforas, com muitos comandos juntos e atividades muito longas. As fichas, livros e avaliações que a escola estava oferecendo para eles provocava essas dificuldades, e eles não conseguiam fazer. Carlos, muitas vezes, respondia qualquer coisa apenas para preencher o espaço vazio na folha. Antonio costumava deixar em branco. (Memórias, 2012) Ao longo do tempo, fomos descobrindo que dois alunos com o mesmo diagnóstico nos apresentavam dificuldades muito distintas e, por isso, éramos convocados a pensar em estratégias diferentes em cada situação. Por outro lado, dois alunos com diagnósticos diferentes podiam ter as mesmas dificuldades. E ainda mais, alguns alunos que não tinham diagnósticos também tinham dificuldades semelhantes a alunos com diagnósticos bem definidos. Foi o que percebemos quando aproximamos a mediação de Carlos e a de Antonio. Com este último, os materiais eram adaptados simplificando os enunciados, fazendo relação com questões concretas do seu cotidiano, usando imagens para auxiliar o entendimento de textos e perguntas, e diminuindo a quantidade de exercícios por atividade. Essas estratégias funcionaram para melhorar sua relação com os exercícios. Ele passou a conseguir fazê-los com mais propriedade e menos medo de errar. Na mediação de Carlos foi possível utilizar essas mesmas estratégias de adaptação de material. Inclusive puderam ser usadas como modelo algumas fichas preparadas para Antonio e que precisaram apenas de alguns retoques para aproximá-las da realidade de Carlos, e assim serem usadas com ele. O medo de errar atravessava a relação de aprendizado dos dois meninos, porém produzia reações diferentes em cada um – Antonio deixava em branco e Carlos escrevia qualquer coisa na folha de exercícios e não queria corrigir –, talvez fossem fruto de questões semelhantes: um material que não estava acessível para eles, um material muito difícil, por vezes incompreensível, o que resultava em erros frequentes. David Rodrigues, em uma palestra no TED ⁷ , coloca que a “igualdade de oportunidades não é do lado do que se dá, mas é do lado de que se recebe”. Assim tratar os meninos com igualdade não era oferecer material semelhante ao da turma. Ao contrário, era oferecer materiais com os quais eles pudessem efetivamente trabalhar e

aprender. Diferente dos materiais, aprender sim era uma aposta semelhante à da turma. Ofertar para todos os alunos o mesmo material e as mesmas estratégias de trabalho não significa tratá-los com igualdade, pois sabemos que cada um deles tem condições diferentes para recebê-los. Em várias situações, se apresenta como estratégia disponibilizar materiais diferentes de acordo com as capacidades que cada aluno possui para lidar com eles. Parece-me que o fato de não terem sido levadas em consideração as dificuldades e capacidades de Antonio e Carlos na confecção de seus materiais pode ter provocado, nos dois, uma sensação de fracasso e o medo de errar. Essa combinação, aos poucos, foi diminuindo o vínculo deles com o aprendizado em si. Oferecer um material pensado para eles, que correspondia às suas dificuldades, habilidades e interesses, foi a principal estratégia de trabalho da mediação. Para romper a generalização presente em uma certa relação professoraluno, ou especialista-paciente (…) precisamos buscar os funcionamentos singulares: O que ele sabe? O que faz? O que não faz? (…) Mas consideremos a limitação das perguntas acima, pois qualquer uma delas pode incorrer em uma nova generalização. Pretender quebrar a produção de uma generalização para fazer advir um funcionamento singular não depende de boas perguntas, mas sim de uma atitude de criação de formas de fazer aparecer esses funcionamentos singulares. (MACHADO, 2010, s/p) Dessa forma, o que percebemos é que, quando optamos por compreender os alunos em suas dificuldades e habilidades, as estratégias e materiais construídos para um aluno servem para outro que esteja apresentando a mesma dificuldade. Além disso, abrimos espaço para que as estratégias e ferramentas criadas inicialmente para o aluno em situação de inclusão possam ser utilizadas com alunos fora dessa categoria e, aos poucos, incluir as apostas de diversificação no cotidiano de todos os alunos. Quarta direção: fazer igual e fazer diferente Quando precisamos buscar ir além das limitações? E quando temos que afirmar e compor com a limitação como o que nos constitui? Ou, quando precisamos afirmar que o aluno pode fazer igual a todos os outros e quando ele pode fazer diferente? Nas palavras de Boaventura, “lutar pela diferença quando a igualdade aniquila e lutar pela igualdade quando a diferença insulta”. (Apud CONTI, 2015: 76). Antonio Propus que ele fizesse fotos do making-of das aulas de dança como forma de participação – assim ele fica no grupo e na sala, e presta atenção na dança produzindo algum trabalho. No entanto, a resposta é que o aluno pode sim fazer o que propus, mas que isso não poderá contar como o trabalho dele. Porque a escola acha que o caminho proposto o retira do grupo. O aluno teria que participar das atividades junto com o grupo da dança. Enfim, não está havendo muito espaço para ele fazer diferente. Ele vai tirar as fotos e depois vejo como isso vai ficar.” (Caderno de campo, 2011)

Foi proposto à escola que fosse realizado com Antonio um trabalho diferenciado da turma nas aulas de dança. No primeiro momento, a mediação apenas acompanhou o aluno nas aulas para entender onde estavam as suas dificuldades. Logo se percebeu que era uma aula que demandava muita exposição, dançar na frente da turma era se expor demais para aquele menino; ele mesmo pôde dizer, em algumas ocasiões, que ficava com vergonha, e por isso não queria fazer. Diante dessa descoberta foram pensadas alternativas para que ele pudesse fazer parte daquela aula dentro das possibilidades dele. Antonio gostava de tirar fotos, e a máquina o escondia o suficiente para não ficar com vergonha. Fazendo o making-of ele estava no grupo, acompanhando o que seus colegas estavam realizando e ainda lhe permitia ficar fora do foco de luz. A proposta de diferenciação leva em consideração as possibilidades do aluno e a tentativa é de que ele se mantenha no coletivo. Portanto, “resta-nos interrogar-nos acerca da forma pela qual poderíamos transitar entre o domínio do singular e o domínio do ‘para-todos’” (SENRA et al, 2008: 36). Assim, fazer diferente não significa ficar de fora, excluído do grupo. A inclusão diz respeito justamente a possibilitar que todos os alunos estejam juntos aprendendo e compartilhando experiências. Uma exposição dos momentos de ensaio da turma poderia ser compartilhada com todos, ao mesmo tempo que o Antonio conheceria bem os movimentos da turma, já que os estaria registrando. A produção e as aprendizagens de ambos, de Antonio e da turma, são partilhadas. Theo, mediador escolar Theo me trouxe um problema com relação à prova do livro de língua portuguesa. A prova do livro foi dividida em duas partes, a turma iria fazer em dias diferentes. No primeiro dia, o menino fez prova com a turma, a dele adaptada. No segundo dia, ele não fez, não tinha prova para ele. O aluno ficou excluído dessa atividade, fez um trabalhinho para passar o tempo. Para a escola não havia necessidade dele fazer duas provas, alegava que ele iria ficar cansado, podia ficar fazendo outra coisa nesse momento, separado da turma. Mas ele é aluno da turma, porque não iria fazer igual à turma? (Caderno de campo, 2015) Em outros momentos, fazer inclusão trata-se de manter os procedimentos de rotina e modificar a forma de fazê-los. O menino tinha todas as condições de fazer as provas assim como seus colegas de turma. Como aluno daquela sala, fazia sentido que ele pudesse realizar as mesmas atividades. Assim, se a turma toda estava fazendo prova porque ele não estaria também? Era um aluno que tinha condições de seguir o funcionamento da turma, com adaptações de conteúdos e formatação. Suas provas precisavam ser menores, pois ele levava mais tempo para realizá-las; precisavam utilizar uma linguagem mais concreta e imagens para auxiliar no entendimento dos enunciados; seus conteúdos eram um pouco diferentes da turma, então sua prova também era diferente da prova da turma. Com essas modificações ele podia participar dos momentos de avaliação como qualquer aluno da sala, e dessa forma se sentir pertencendo àquele grupo. Não fazia sentido retirá-lo de sala, ou colocá-lo para fazer uma atividade distinta. Essa estratégia poderia ser utilizada com outros alunos que não conseguiam, por exemplo,

fazer muitas provas, ficavam cansados, ansiosos ou qualquer outra dificuldade. Não era o caso desse aluno. Podemos utilizar a seguinte pergunta: “quando fazer igual e quando fazer diferente?” para balizar nossas ações, pois passamos a compreender que só devemos intervir junto ao aluno quando entendermos que ele não tem condições de realizar a atividade, ou o procedimento, de forma semelhante aos seus colegas. Nessas situações precisávamos ponderar se o melhor caminho é modificar o procedimento, a regra ou atividade, ou mantê-los iguais e criar ferramentas com o aluno para que ele possa realizá-las. o caminho para se chegar até a educação de qualidade para todos será alcançado graças à experiência de cada um, experiência de expressão, inscrição e laço com uma coletividade que seja suscetível a ela. É só experimentando que se pode efetuar a singularidade e sua verificação. (SENRA et al, 2008: 37) Enquanto mediadores corremos o risco de cair na armadilha do “dar conta de tudo” – dar conta das demandas da escola, dos pais, dos terapeutas. Na escola isso se atualiza quando passamos a ficar ao lado do aluno em todos os momentos, quando fazemos de tudo para que nada dê errado, que o aluno faça tudo que é pedido. Sem ponderar se naquela situação ele precisa mesmo de nós, se ele precisa de adaptações, ou se ele pode fazer igual aos demais alunos. Temos que ver ao longo do processo o que precisa ser modificado e o que manter da mesma forma que o proposto para os demais alunos. Passamos então a partir do pressuposto de que a priori o aluno mediado podia fazer tudo igual aos seus colegas, e a diferenciação viria do nosso encontro com ele. Quinta direção (e última): mediar na escola Só existe hoje a necessidade de afirmarmos a inclusão porque ela não existe. Nossas escolas ainda não são inclusivas. Quando alunos em situação de inclusão começam o ocupar o espaço escolar sem que este se transforme para recebê-los, estamos lidando com experiências de integração. Nesse modelo, a diferença é considerada anormalidade. No modelo inclusivo, a diferença é a normalidade. Dessa forma, não se trata de colocar o aluno com dificuldades nas escolas e turmas regulares e “nós” (os que supostamente não tem dificuldades) continuarmos “normais”. A educação inclusiva não significa: colocar os cegos e mutilados dentro da classe e nós continuarmos normais (…). Incluir significa abrir-se para o que o outro é e para o que eu sou ou não sou em relação ao outro. Por isso a educação inclusiva supõe, sobretudo, uma mudança em nós, em nosso trabalho, das estratégias que utilizamos, dos objetos e do modo como organizamos o espaço e tempo na sala de aula. Temos que rever as estratégias de ensinar matemática e língua portuguesa. Temos que rever a grade curricular, os critérios de promoção e de avaliação.” (MACEDO, 2011: 03) Na inclusão não cabe mudar o outro, e sim se disponibilizar para produzir uma mudança em nós. No encontro com o diferente de nós produzimos uma

mudança que cria um modo de fazer comum. As alterações necessárias para inclusão serão fruto do esforço de todos os atores que ocupam o espaço escolar, visando modificar suas engrenagens, um tanto enferrujadas, para criar um espaço onde caiba qualquer pessoa. O aluno em situação de inclusão, diz Beyer (2006), tem características singulares que, no contexto escolar onde estão inseridas, tornam suas aprendizagens mais difíceis, com maiores desafios. Dessa forma, ao invés de marcá-los como alunos deficientes, vamos afirmar que são crianças e adolescentes com condições de aprendizagem diversas. E assim deixamos claro que são alunos com total possibilidade de aprender, e por isso é dever da escola criar condições de ensiná-los. Optar por seguir, na escola, outra direção, afastando-se do diagnóstico como norteador do nosso trabalho não significa, como nos lembra Moysés (2011), negar que existam alunos em sofrimento, com dificuldades no processo de aprender ou de se relacionar, mas nos convoca a pensar em como acolhemos e intervimos junto a eles. No caminho da medicalização, problemas coletivos e desafios institucionais são individualizados no corpo do aluno. Ele se torna o responsável pelos seus próprios fracassos e, portanto, é ele que deve ser acompanhado e adaptado até se aproximar ao máximo dos ditos normais. Assim, não se trata de fingir que o diagnóstico não existe, mas de afirmar uma prática de mediação que não tem nele o caminho privilegiado de trabalho. Ou seja, que não define suas intervenções de acordo com a deficiência ou o transtorno atribuído ao aluno acompanhado. O que interessa na mediação é acompanhar as singularidades de cada aluno a fim de criar estratégias únicas COM ⁸ ele – “(…) um dispositivo de intervenção que se faz com o outro na medida em que é construído em articulação com aquilo que interessa ao outro” (MORAES, 2010: 30). Estratégias e instrumentos que só são possíveis nesse encontro. Para mediar é de suma importância conhecer cada aluno com que se está trabalhando e se deixar conhecer por ele. Assim como o aluno, cada profissional que atua como mediador tem suas singularidades. O encontro entre os dois é que produz o trabalho. Um trabalho único, situado naquele contexto e naquele momento. Apostamos no mediar “como uma força que pode desnaturalizar certas concepções hegemônicas e criar um vínculo, um laço possível ali onde parecia que as coisas estavam dadas, paradas e cristalizadas.” (CONTI, 2015: 6). A mediação oferece outras narrativas sobre o aluno em situação de inclusão que priorizam a dimensão das potencialidades e capacidades, ao mesmo tempo em que identifica as dificuldades como apenas mais um elemento que os constitui. E, a partir dessa perspectiva, nos possibilita o reconhecimento das nossas próprias diferenças, dificuldades e capacidades, assim como a ampliação das nossas capacidades de diálogo, flexibilização e criação. Produz relações mais éticas. A escola se torna um espaço que melhor atende a cada um dos seus alunos em suas formas diversificadas de aprender, pois amplia a sua capacidade e disponibilidade de produzir estratégias diferenciadas que resultam em formas diversificadas de ensinar e de aprender.

Mediação é encontro; mediação é ampliação de conhecimento; mediação é ir ao encontro do repertório cultural e dos interesses do outro; mediação é conectar conteúdos e interesses; mediação é ir além dos conteúdos; mediação é aproximar, refletir experiências e compartilhar; mediação é diálogo, conversação; mediação é provocação; mediação é atitude do professor. Assim mediação (…) é estar entre muitos. (CELESTE, 2012: 544) É essa contaminação do “estar entre muitos” que buscamos produzir na ação de mediar na escola; disseminar indagações, tensionamentos, apostas, desejos, de forma que cada vez mais pessoas possam fazer parte desse coletivo que hoje luta por uma escola inclusiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBANO, P. (2015). Quando o acompanhamento terapêutico encontra a escola: a construção de uma prática intercessora . Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. BEYER, H. O. (2006). Educação inclusiva: ressignificando conceitos e práticas da Educação Especial . INCLUSÃO: Revista da Educação Especial – Secretária de Educação Especial / MEC, Brasília, v. 2, n. 2, p.8-12, julho. CONVENÇÃO Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007). Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: decreto legislativo no 186, de 09 de julho de 2008: decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009. 4a. Ed., rev. e atual. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2011. BRUM, E. (2016). “Sobre aborto, deficiência e limites”. Brasil, El País . Versão eletrônica disponível em: < http://brasil.elpais.com/brasil/ 2016/02/15/opinion/1455540965_851244.html >. Acesso em: 27/02/2016. CAST (2011). Universal Design for Learning Guidelines version 2.0. Wakefield, MA: Author. CELESTE, M. et al. (2012). “Memórias para o Devir: A mediação cultural como provocação e contaminação estéticamediação”. In: V World Congress on Communication and Arts , Guimarães, Portugal. CONTI, J. (2015). Margens Entre Pesquisar e Acompanhar: O que fazemos existir com as histórias que contamos? Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. DISTRITO FEDERAL. Secretária de Estado de Educação do Distrito Federal. Programa Currículo em Movimento da Educação Básica / Educação Especial. Versão eletrônica disponível em: < http://www.sinprodf.org.br/wpcontent/uploads/2014/03/8-educacao-especial.pdf>. Acesso em: 23/09/2014. FRELLER, C. (2010). É possível ensinar educadores a incluir? Revista Estilos da Clínica – USP, São Paulo, n. 15(2), p.326-345.

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professor integrador, professor especialista, estagiário) – e professores em geral. O EMI surgiu como uma forma de desenrolar questionamentos sobre a inclusão de forma coletiva. Nos interessa produzir um espaço que agregue diferentes profissionais que tenham o desejo de discutir as questões do campo da inclusão escolar, bem como construir estratégias e ferramentas para efetivar situações inclusivas na escola abarcando todos aqueles que participam do cenário da inclusão escolar. 3 Medicalização da vida é um “(…) processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. (…) Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. (…) a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas responsabilidades.” (Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Versão eletrônica disponível em: < http://medicalizacao.org.br/ >. Acesso em: 24/09/2017. 4 A inclusão é uma forma de pensar as relações entre as pessoas dentro e fora das instituições. Para que as escolas sejam inclusivas, elas precisam modificar seu funcionamento a fim de atender a cada um dos seus alunos – independentemente de suas dificuldades, origem socioeconômica ou cultural. Como nos sinaliza Machado (2004), “a inclusão não se dá incluindo os corpos das crianças nas classes regulares. A inclusão se dá quando se devolve ao coletivo aquilo que foi individualizado no corpo do sujeito” (MACHADO, 2004: 2). 5 Aberto a qualquer pessoa interessada no tema, mas voltado especialmente para profissionais da escola, o curso intitulado “Mediação e Inclusão: possibilidades de inserção da escola e no mercado de trabalho” foi lecionado por Débora Mascarenhas, Sheina Tabak e eu, com a coordenação da professora Cristina Carvalho. 6 As histórias aqui narradas, em forma de “caderno de campo” ou “memórias”, foram colhidas na minha experiência como mediadora no acompanhamento de dois alunos em situação de inclusão, e nas supervisões coletivas e individuais que fiz como coordenadora do projeto EMI. 7 Versão eletrônica disponível em: < https://www.youtube.com/watch? v=0kDL5kxDg_A>. Acesso em: 24/09/2017. 8 Essa expressão “COM” vem da expressão “PesquisarCOM” cunhada por Moraes (2010) para definir uma forma de fazer pesquisa, bem como uma forma de intervir no contexto em que estamos inseridos – “A expressão ‘PesquisaCOM’ tem a dimensão de um verbo mais do que de um substantivo. (…) O pesquisar com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada, situada. Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica. Que realidades produzimos com nossas pesquisas?” (MORAES, 2010: 41).

Desafios e invenções tecidas entre formações de professores e inclusão escolar nas escolas públicas regulares brasileiras Luiza Teles Mascarenhas

Marcia Moraes Introdução Neste artigo temos como objetivo discutir o tema da inclusão escolar de pessoas com deficiência no contexto brasileiro, apontando alguns desafios vivenciados por educadores e estudantes que participam deste processo. Em todas as escolas encontramos diferenças com relação aos modos de ser, de ensinar, de aprender, de se relacionar, de ser professor e estudante, etc. O encontro destas diferenças gera tensões, mas também muitos aprendizados. Para visibilizar os desafios vivenciados neste processo, baseamo-nos em alguns achados que apresentamos em publicação recente (MASCARENHAS, 2016), na qual pesquisamos a inclusão de estudantes surdos numa escola pública regular brasileira. Veremos, ao longo do texto, que ideais de justiça e igualdade não são necessariamente opostas a práticas discriminatórias e segregativas e que defender a inclusão em um sistema produtor de inúmeras exclusões envolve ações, conexões e aprendizados permanentes. Se por um lado, tivemos avanços na legislação brasileira que trata desta temática, por outro, ainda se faz urgente combatermos a desqualificação das diferenças presente em nossas práticas e em nossas formações. Elegemos levantar algumas questões com relação à formação de professores tomando como análise os cursos de licenciatura (nível superior). Sob os hegemônicos discursos da racionalidade técnica e das competências, nos questionamos: o que é estar preparado para a lida com as diferenças, tão múltiplas e desafiadoras? Partimos do princípio de que o encontro com o conhecimento pressupõe transformação. Não é possível ensinar ou aprender sem contato com os processos de diferenciação que desarrumam o idêntico, o familiar, o já sabido. Assim, ao longo de todo o artigo defenderemos a vida enquanto multiplicidade, chamando atenção para sua potência de abertura ao inesperado, à produção de novos possíveis diante das imprevisibilidades. As políticas de inclusão escolar A escola é atravessada por diferentes forças que participam cotidianamente de sua produção. Nela convivemos, por um lado, com políticas oficiais de inclusão – que obrigam as escolas a receberem todos os estudantes, independentemente de quaisquer características que possam apresentar. Por outro lado, vemos persistirem os discursos desqualificadores geralmente destinados às pessoas com deficiência quando, por exemplo, responsabilizam-se os surdos pelos “problemas da inclusão”, conforme observamos em pesquisa anterior (MASCARENHAS, 2016). Seriam eles que não entenderiam o sentido da escola, além de serem “encostados nas famílias”. A seguir nos dedicaremos a estes embates. Começaremos apresentando alguns dispositivos legais que garantem o direito à inclusão escolar de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades / superdotação. Problematizaremos em seguida os discursos que desqualificam as diferenças, circunscrevendo-as a uma série de faltas.

No Brasil, o Decreto Federal 7611/11 indica que um sistema educacional inclusivo deve funcionar em todos os níveis sem discriminação, baseado na igualdade de oportunidades. Traz como público alvo da educação especial as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades. Dentre suas ações prevê “a implantação de salas de recursos multifuncionais” e “formação continuada de professores, inclusive para o desenvolvimento da educação bilíngue para estudantes surdos ou com deficiência auditiva e do ensino do Braile para estudantes cegos ou com baixa visão”. Em seu Art. 3 faz referência às condições de acesso, participação e aprendizagem no ensino regular, além de garantir apoio especializado de acordo com as necessidades individuais de cada estudante. Pontua também a garantia da transversalidade das ações da educação especial no ensino regular. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por sua vez, entrou em vigor em 2016, reunindo uma série de direitos conquistados pelas pessoas com deficiência nas últimas décadas, dentre eles, o direito à educação. De acordo com este documento, a educação de qualidade é dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade. O poder público deve assegurar o acesso e a permanência das pessoas com deficiência num sistema educacional inclusivo em todas as modalidades de ensino. Dentre os princípios desta política estão o pleno acesso das pessoas com deficiência ao currículo em condições de igualdade. A educação deve trabalhar no sentido de promover a conquista e o exercício da autonomia de todos. Uma das novidades trazidas pelo Estatuto está na proibição de cobrança de pagamento às famílias por qualquer medida relacionada ao atendimento educacional especializado de seus filhos, prática até então comum nas escolas particulares brasileiras. Apesar dos avanços apresentados por estas políticas, também encontramos situações que trazem à tona a existência de práticas e discursos que podem fazer funcionar a exclusão de diversas vidas das escolas e de seus processos educativos. “A escola não tem condições de receber alunos especiais!”; “tenho muitos alunos na turma, mais um especial, e estou sozinho”; “temos muitos alunos aqui que são especiais e não têm diagnósticos” – são frases que escutamos recorrentemente nas escolas. E as justificativas para tais incômodos geralmente estão direcionadas aos alunos: “os alunos não se interessam pela escola”. Aos familiares: “os pais não levam os alunos para o tratamento na saúde”. Ou ainda, aos professores: “ele está desmotivado com a profissão”. Interessante notarmos que esses discursos individualizantes não atingem apenas as pessoas com deficiência, mas todos nós. Uma das consequências desta individualização é a solidão que muitos professores sentem na tarefa de incluir estes estudantes. No livro que publicamos intitulado Encontros entre surdos e ouvintes na escola regular: desafiando fronteiras (MASCARENHAS, 2016), começamos a desenvolver esta questão contando a luta de uma professora de alfabetização na tentativa de incluir uma estudante autista na classe regular. Refletimos que, muitas vezes, o professor que recebe o estudante alvo das políticas de inclusão se encontra na condição de único responsável por esta inclusão. É como se o estudante fosse apenas do professor e não da escola. A inclusão muitas vezes não é encarada como uma questão para a escola, e sim para os

professores que recebem estudantes com necessidades especiais, e para a sala de recursos. Este tema, embora tão em voga, parecia não circular pelos espaços coletivos. Ao receber esta nova aluna a professora não sabia o que fazer. A criança não conseguia permanecer muito tempo dentro da sala de aula. Andava de um lado para o outro, por vezes emitia sons altos e se machucava. Em alguns momentos, a professora precisou deixar sua turma aos cuidados de outras pessoas, inspetores, estagiários do curso normal, etc. Houve dias em que a educadora optou por passear com a aluna pela escola, retirando-a do ambiente de sala de aula nos seus momentos de maior agitação, atitude reprovada pela escola. A ordem desta última era manter a criança dentro de sala de aula, até porque a professora não podia deixar seus outros alunos. A medida tomada logo no início pelo estabelecimento de ensino foi com relação ao período em que a aluna passaria na classe regular: duas horas. A ideia era que este tempo aumentasse progressivamente (MASCARENHAS, 2016: 10). Nesse ponto, há que se destacar o trabalho de Kaufman (2016) cuja intervenção no campo da mediação escolar tem se notabilizado pela aposta na inclusão como questão coletiva, que envolve a comunidade escolar e não apenas o aluno e sua família. Na mesma direção que Kaufman (2016), entendemos que questões como a solidão sentida pelos docentes na tarefa de incluir certos estudantes são produções que colocam em cena um conjunto de fatores que envolvem tanto questões institucionais da escola, quanto questões econômicas, políticas e sociais, todas elas interligadas. Alguns exemplos estão: no modo como as turmas são montadas; na maneira como os professores são lotados em cada turma; na crescente desvalorização da educação e do trabalho docente; na participação cada vez menor do professor nos processos de decisão com relação a material didático, modelo de provas, conteúdo a ser trabalhado, etc. Podemos dizer que estes elementos compõem um campo de forças, ou seja, modos de fazer, modos de ser, de existir, que não devem ser ignorados nas análises sobre a produção da queixa escolar. Como disse Rocha (2012) em evento ¹ , a queixa localizada no estudante é somente “a ponta do iceberg”. Não devemos olhar só para ela. Abaixo há toda uma rede responsável pelo que podemos chamar de produção do fracasso escolar (PATTO, 1993). Ao invés de olhar para a criança como “aluno problema”, o que certamente interfere nas práticas dos profissionais com relação a esta última, pensamos ser mais potente olhar para os mecanismos que reduzem a multiplicidade de ser criança, professor, pai, mãe, a um modelo que deve ser seguido a qualquer custo. Modelo este que pode ser reforçado pelas políticas de inclusão se não atentarmos para os mecanismos que a colocam em funcionamento. Ao pensarmos em incluir certos estudantes nos sistemas educacionais de ensino, é fundamental que questionemos para que incluir, como incluir e quem incluir. Mecanismos de inclusão / exclusão Entendemos inclusão / exclusão como processos históricos, produções que não são naturais ou inocentes. Muitas vezes, enquanto profissionais, caímos nas armadilhas das dicotomias (normal X anormal, certo X errado, inclusão X exclusão, etc.). Portanto é importante que desnaturalizemos certas

concepções que se pretendem universais (como aquela que atribui a deficiência à ideia de incapacidade), e que estejamos atentos aos efeitos que estas produzem nas vidas de estudantes e professores. Pretendemos, neste artigo, colocar em questão todo um projeto político de inclusão baseado em referenciais normativos, onde se reconhece o outro (diferente de mim) para posteriormente desqualificá-lo, seja pelo seu modo de ser, seja pela sua cultura, pelo seu jeito de falar ou de se comunicar, etc. Segundo Veiga-Neto (2005), muitas vezes estamos incluindo alguém para no final das contas, mantê-lo excluído. A aposta aqui é borrarmos as fronteiras entre incluídos e excluídos ao colocá-los como parte de uma mesma rede de poder. Todos estamos incluídos em determinadas ordens discursivas e excluídos de outras. Sawaia (2011) alerta que a exclusão é um processo multifacetado, envolve dimensões materiais, políticas, relacionais, subjetivas, e só pode existir em relação à inclusão, ou seja, como parte constitutiva desta última. Isto quer dizer que a exclusão não possui uma única forma, nem pode ser considerada como “falha do sistema”. É um processo que envolve por inteiro os sujeitos e suas relações com os outros. O autor pensa este processo não como algo que perturba a ordem social, como se esta fosse primeira, mas como produto do funcionamento do sistema. De acordo com suas palavras, A sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no circuito reprodutivo das atividades econômicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e das privações, que se desdobram para fora do econômico (SAWAIA, 2011: 8). Neste sentido, aqueles que a princípio podemos considerar como “os excluídos” não estão à margem da sociedade, não estão fora das relações de poder. Muitos projetos de inclusão não mais almejam do que manter “os excluídos” como parte integrante da sociedade, só que numa condição diferenciada, como vimos. Gentilli (2002) define esta prática como uma segregação pela via da inclusão . De acordo com suas palavras, “esta forma de exclusão significa que determinados indivíduos estão dotados das condições necessárias para conviver com os incluídos, só que em uma condição inferiorizada, subalterna” (p.33). O autor considera que em nossas sociedades fragmentadas, esta forma de excluir torna-se invisível. Nesta operação, inclui-se um número cada vez maior de indivíduos (as pessoas com deficiência, por exemplo) nos processos que visam a manutenção da ordem social (como abrir as portas da escola regular para todos), e esta prática ocorre em nome de uma suposta igualdade de direitos e oportunidades. Assim, os mecanismos de poder estendem suas malhas a um contingente populacional até pouco tempo atrás considerado “à margem”. Nesta mesma concepção crítica, Veiga-Neto (2005) acredita que as políticas de educação inclusiva também incluem para manter a exclusão. As escolas regulares puderam por um longo período histórico rejeitar a matrícula de

crianças e jovens com alguma deficiência ou transtorno, embora a educação seja um direito constitucional em grande parte do mundo ² . Atualmente, apesar de toda a legislação sobre educação inclusiva, as rejeições ainda ocorrem, só que agora de maneiras mais sutis, quando, por exemplo, as escolas orientam os pais a procurarem uma escola que melhor atenda a necessidade de seus filhos, para o bem deles. O argumento é conhecido: muitas escolas falam em “despreparo” para receber estes estudantes e temem que estes fiquem excluídos, esquecidos no fundo da sala ³ . Guhur (2003), baseada nos estudos de Bourdieu (2005), traz uma crítica com relação ao movimento inclusivo pautado pelo ideal de igualdade entre os homens e o direito de todos à educação, ao considerar que nesta inclusão: já estava contida a sua negação, a exclusão, legitimada no decorrer do próprio processo educativo, entre outros fatores por mecanismos de seletividade difusos e sutis, postos em operação ainda no interior da escola (como atribuição de notas e conceitos, avaliação psicodiagnóstica, programas compensatórios, reprovação, etc.), até culminar na explicitação das diferenças individuais via encaminhamento às classes de recurso e / ou ao ensino especial. Fica desvelada, assim, uma das contradições de uma forma de organização social que não se baseia na desigualdade, mas que dela se nutre, apesar do discurso dominante em contrário e da crença no poder libertário e democratizador da educação (GUHUR, 2003: 48). Estamos falando de um sistema de ensino “amplamente aberto a todos e, no entanto, estritamente reservado a alguns” (BOURDIEU, 2005: 223) e de exclusões que muitas vezes são brandas e imperceptíveis, e por isso mesmo possuem um alto grau de legitimação social. A escola é um dos dispositivos ⁴ que busca identificar supostos comportamentos estranhos, na ilusão de que assim saberá o que fazer diante de certas condutas consideradas inadequadas. Trata-se de um amplo processo produzido historicamente que visa encaixar os indivíduos na norma , como nos mostrou Michel Foucault (1996, 2002). Há uma inclusão que interessa, já que aqueles que se encontram à margem representam um perigo ao status quo e a seus dispositivos institucionais. Não é à toa que praticamente ninguém escapa dos diversos discursos especializados e das classificações que estes constantemente produzem. O “excluído” é assim constantemente incluído num “nós” que o exclui, gerando-se assim um sentimento de culpa individual pela exclusão sentida na pele (SAWAIA, 2011). Incluir e excluir são forças que muitas vezes se combinam, gerando como efeito a exclusão de muitas crianças e jovens do acesso a uma educação pública de qualidade. Neste embate de forças que envolvem os processos de inclusão / exclusão, é fundamental entendermos que a educação não existe apenas em um único formato, nem é neutra em relação ao tipo de sociedade que deseja formar. Ela serve a certos propósitos. Então, defender uma educação para todos não basta. Skliar (2000) afirma que “o que devemos analisar é, por uma parte, quais são os argumentos que fundamentam as propostas de inclusão e, por outro lado, qual é a política de significados e representações que se produzem e reproduzem nestas propostas” (SKLIAR, 2000: 14). Tal aposta

vai muito além da universalização da educação básica, ação que levou a educação a lugares e a grupos populacionais até pouco tempo atrás considerados inatingíveis; vai muito além de ensinarmos os estudantes a respeitarem as diferenças; vai muito além também da noção de que “uma escola que ensina bem é uma escola capaz de incluir qualquer um” (VEIGANETO, 2005: 60). Percebemos que nas escolas pesquisadas os discursos giram em torno de uma ideia de igualdade, embora estas reconheçam de certa forma as diferenças. Aqui temos um segundo mote também bastante conhecido: “somos iguais nas diferenças”. Este discurso apareceu diversas vezes na pesquisa citada (MASCARENHAS, 2016). Havia a ideia de que os estudantes surdos, por exemplo, não podem se perceber como diferentes, ou seja, eles não devem sentir um tratamento diferenciado, com relação aos demais, ou seja, “a inclusão deve ser o mais normal possível”. Estas ideias apontam, de certa forma, para os limites apresentados por um modo universal e individualizante de se pensar a educação e as relações que a fazem existir. Através do que expomos acima podemos perceber que muitas das práticas que se dão com a intenção de fazer com que os surdos se sintam aceitos, como parte daquele contexto educacional, podem provocar o apagamento ou a falta de cuidados com relação a suas singularidades. É preciso haver o cuidado para que não se coloque a condição da surdez (ou qualquer diferença) como algo negativo. O sentir-se diferente não equivale necessariamente ao sentir-se subalternizado. Queremos chamar a atenção para o perigo dos discursos que, ao mesmo tempo que pregam a “diversidade” como algo desejável, confundem, em sua maioria, diferença com desigualdade. O mote “educação para todos” tem apontado, a nosso ver, muito mais para um caminho onde todos sejam iguais, todos sejam os mesmos (VEIGA-NETO, 2005). “Em termos práticos isso significa que os surdos, por exemplo, devem ser trazidos para o mundo dos ouvintes, devem adquirir a mesma habilidade que têm os ouvintes” (p.58). Neste sentido, acreditamos que práticas que se dão em nome de certa “igualdade” podem ser muito perversas, produtoras de inúmeras exclusões e normalizações. Vemos aqui um certo modo de entender a inclusão. Nele, parece que a transformação deve ocorrer apenas no estudante com deficiência, para que o mesmo possa viver em sociedade e nas escolas. Estas permaneceriam intactas. No que se refere às pessoas com deficiência temos ainda a ideia que atrela a deficiência ao déficit ou à incapacidade. Baseados no modelo médico da deficiência, o foco das intervenções costuma ser a lesão, a deficiência, a carência. São as tentativas de compensação. De acordo com Moser (apud MORAES, 2010), medidas contra esta norma , as pessoas com deficiência jamais poderão ser entendidas como pessoas competentes e eficientes, ou seja, elas sempre irão falhar sob este referencial. Enquanto a norma for entendida como regra absoluta, como algo que sempre existiu, proliferar-se-á cada vez mais a produção exacerbada de categorias e diagnósticos para todo tipo de comportamento, reduzindo-se assim as diferenças a outro sujeito: “o diferente”; “o esquisito”; “o estranho”. Enquanto a fronteira entre normalidade e anormalidade for preservada para

se avaliar quem tem condições de ser inserido na sociedade e quem não tem, os estudantes ditos “de inclusão” dificilmente escaparão da situação de exclusão e segregação social. É preciso reinventarmos esta fronteira, borrarmos seus limites, conforme adverte Haraway (1985). O fracasso escolar e o mito da incompetência docente Eu não sei qual é a deficiência dela, em que ponto está a falta de audição dela, mas eu acho que se ela pudesse usar um aparelho, eu acho que ela não teria problema nenhum, nenhum. (…) me sinto frustrada, por não ter, por não poder oferecer mais. Por não saber o que é oferecer mais, entendeu? Eu até tento, mas… num é… eu não tenho este conhecimento, esta capacitação ( entrevista feita na escola – novembro de 2012 ). Uma das forças que preservam tal fronteira entre normalidade e anormalidade e que está diretamente relacionada ao tema da inclusão escolar é o “mito da incompetência docente”. Educadores encaminham um número cada vez maior de estudantes para serviços de saúde na esperança de encontrarem diagnósticos e soluções sobre “como lidar com certos alunos”, dentre eles os estudantes com deficiência. Muitos destes encaminhamentos são justificados pelo fato de a maior parte dos estudantes considerados “aluno problema” não terem um laudo médico que indique algum transtorno, distúrbio ou deficiência. Como se encaminhar fosse a única ação possível. Os educadores que encaminham, professores e orientadores educacionais, muitas vezes acreditam que com esta ação fizeram sua parte. Muitos educadores questionam a nós, psicólogos (ou demais especialistas), “como lidar”, ou “o que fazer”, com estudantes que escapam a um certo modelo esperado pelas escolas. Quando pedem ajuda sentem que já esgotaram todas as suas possibilidades, não sabem mais o que fazer e esperam que os ditos “especialistas” saibam como proceder com esses estudantes. Brum (2013) em coluna intitulada O doping das crianças questiona se os educadores não estariam abrindo mão de pensar a aprendizagem em favor do saber médico e de tantas outras especialidades. Um dos efeitos deste processo está no que muitos autores chamam de “medicalização da vida escolar”. Neste processo transformam-se problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. Problemas comuns da vida se tornam transtornos ou distúrbios ⁵ (MOYSÉS, 2008). Os discursos gerados por este processo são recorrentemente reproduzidos pelo senso comum. Uma outra consequência está na proliferação de cursos de graduação e especialização que visam formar especialistas no campo da saúde e educação que supostamente responderiam, por esta via, aos problemas de fracasso escolar. Dentre eles destacamos a especialização em neuropsicopedagogia ⁶ . O efeito de intimidação produzido pelo discurso científico não é novo. Remonta ao tecnicismo na educação, abordagem importada dos Estados Unidos no final da década de 60 e que chegou com a promessa de combater a ineficiência e baixa produtividade na educação brasileira, a partir dos

pressupostos da objetividade, racionalidade e neutralidade. A teoria geral de administração formulada por Frederick W. Taylor chega também à educação, que passa a ser gerida com um pensamento empresarial. Tal orientação trouxe como consequência a adoção acrítica dos pressupostos científicos. A neutralidade e objetividade defendidas por estes últimos implicaram na despolitização das ações pedagógicas (BASTOS, 1998). Acreditamos que a proliferação de especialistas no campo educacional, iniciada na mesma época no Brasil (e que não para de crescer) também contribui para tal despolitização. Nesta lógica empresarial, o professor é visto como mero instrutor que executa instruções vindas dos órgãos gestores e dos especialistas. Os próprios professores aderem a este discurso, acreditando que eles não têm o saber para lidar com as diferenças, mas que outros profissionais teriam este conhecimento, esta formação. Trata-se de um sentimento individual e coletivo que “submete os que ‘não sabem aos donos do saber dito científico” (BASTOS, 1998: 155). Sobre esta questão, Moysés afirma que: Qualquer um é competente para solucionar o problema, menos o professor, na verdade o único profissional com condições reais de transformar sua própria prática pedagógica, em busca do sucesso escolar. Um profissional que está sendo expropriado da competência e área de atuação” (p.156). Muitos estudos na área de ciências humanas (incluindo a psicologia) contribuíram para o mito da incompetência docente. Patto (1993) mostrou o quanto muitos destes estudos denunciavam que a escola era inadequada à criança carente, explicando o fracasso escolar numa perspectiva cultural. Tais pesquisas naturalizavam o “aluno pobre”, o “aluno ideal”, o professor e a escola. O trabalho do professor é assim naturalizado, pois de acordo com estas perspectivas ele estaria supostamente preparado para lidar com um certo tipo de aluno que não o pobre (“aluno ideal”). Responsabiliza-se assim o professor que, devido a uma “má formação”, ou ainda, ao fato de pertencer a uma classe média, não teria sensibilidade para entender os modos de vida dos alunos pobres”. Tal perspectiva esquece que esse desconhecimento não é só dos professores. Ele é geral, existindo, sobretudo, no corpo do conhecimento científico e, logo, nas aulas, nos textos, nas discussões que formaram estes professores, e que formaram nós, psicólogos (PATTO, 1993). Se afirmamos que é urgente colocar estas teses em questão é principalmente porque elas nos formaram enquanto profissionais de educação. Elas constituem nossos olhares sobre estas crianças, sobre estes professores, sobre as dinâmicas escolares, sobre nossas próprias práticas profissionais. Tal questão não é meramente individual. Maria Aparecida Moysés, pediatra e professora da UNICAMP, destaca que muitos dos preconceitos presentes nos discursos dos educadores são reproduzidos por médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, etc. Esta “missão” que os profissionais de educação atribuem aos profissionais de saúde, de uma competência quase mágica para responder às questões relativas ao fracasso escolar, não corresponde às políticas de formação de muitos cursos da área de saúde. Tais profissionais não estão isentos de uma

formação acrítica e a-histórica, fundamentada numa literatura norteamericana e individualizante (MOYSÉS, 2008). A autora traz como exemplo a fala de um médico que atende crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem: ele afirma que teve contato com apenas duas ou três aulas sobre “problemas de saúde do escolar”. Já nos cursos de psicologia são escassas as disciplinas que discutem sobre as múltiplas articulações possíveis entre psicologia e educação. Será que sabemos mais do que os professores? Estaríamos mais preparados? O que é estar preparado para a lida com as diferenças, tão múltiplas e desafiadoras? Partindo destas questões iniciaremos a seguir uma breve reflexão sobre os diversos cursos de capacitação ofertados aos professores com o objetivo de “prepará-los” para a lida com os estudantes que são público-alvo das políticas de inclusão. Os cursos de capacitação: a que(m) servem? No Brasil, os professores que atuam no segundo segmento do ensino fundamental (6 o ao 9 o ano de escolaridade) e no ensino médio precisam ter licenciatura (ensino superior) em suas áreas de atuação. Deste a criação das primeiras universidades no país ⁷ , tivemos muitas Reformas na legislação relacionadas à formação de professores da educação básica. No entanto, um aspecto que nos chama atenção é a permanência do modelo da racionalidade técnica (SHÖN, 1995) nos currículos das licenciaturas. Nesta concepção de formação, os licenciandos aprenderiam um conjunto de disciplinas para que posteriormente pudessem aplicá-las nas escolas. Nesta política de formação, o professor é considerado um técnico que deverá dominar e aplicar os conhecimentos científicos (LAROCCA, 2002). Sob esta lógica, currículos foram construídos de modo que os licenciandos tivessem contato com uma série de disciplinas teóricas para que, posteriormente, pudessem ingressar nos estágios curriculares, nos últimos semestres da graduação. Nesta concepção há uma ideia de que, após estudar bastante teoria, os licenciandos estariam “prontos” para a prática. Sob esta lógica está também a ideia de capacitação. Para além da formação inicial, vemos aumentar a oferta de cursos de capacitação (capacitação em serviço, pós-graduações, cursos breves à distância, etc.). Estes são oferecidos aos professores já formados de modo que eles possam se “capacitar” para uma suposta “melhor” atuação prática. Deste modo, entende-se que a solução para muitos dos problemas da educação estaria no desenvolvimento das competências e habilidades dos professores. Cursos que, muitas vezes, prometem preencher as lacunas deixadas na formação inicial (licenciaturas), porém reproduzem a mesma lógica. Será que capacitar o professor sob este viés seria um caminho interessante para potencializar os processos de inclusão escolar? Será que após estudar muitas teorias e técnicas estaríamos “prontos” para a inclusão?

Não apostamos neste caminho. Como dissemos, inclusão escolar é processo permanente e nunca estaremos prontos. Rocha (2008) apresenta numa palestra uma importante reflexão sobre esta questão: “Formação como capacitação”, estamos falando de uma ideia de formação como desenvolvimento de habilidades, de competência técnica e pedagógica (…) ou ainda de um discurso de especialistas, de alguém que tem de antemão a prescrição que deve ser a formação e vai de algum modo aplicar a fórmula no outro. Tal concepção de formação pressupõe certos saberes, certas apostas políticas, como, por exemplo, a ilusão de que com um planejamento podemos ter o controle de tudo, como se desvios não acontecessem. Outra pressuposição é com relação à suposta alienação dos educadores, como se estes não tivessem consciência política e não inventassem cotidianamente seu trabalho e sua própria história (ROCHA, 2008). Para que serve a capacitação? Ela se dá sob que princípios, a partir de quais compromissos políticos? O que significa dizer que o bom professor deve estar preparado para as demandas das escolas existentes? Estas são algumas das questões levantadas pela autora, que de maneira nenhuma podem passar despercebidas. A demanda por capacitação não é óbvia e nem neutra, ela serve a certos interesses. Uma vez que temos muitos cursos de capacitação disponíveis, devemos nos questionar que políticas de formação desejamos. Estas reflexões são fundamentais para escaparmos aos dualismos, e às perspectivas abstratas de escola, onde o profissional é tido como descontextualizado ao ser avaliado na sua competência / incompetência (ROCHA, 2008). Tais práticas se constituem como dispositivos de controle ao prescreverem uma definição em si do que seja competência, sucesso, eficácia, etc. Estes conceitos são políticos e hierárquicos. É preciso colocálos em discussão nas práticas de formação. Nossa aposta é que a formação se constitui entre o saber e o fazer, jamais podendo ser reduzida ao prescrito, ao conjunto de técnicas elaboradas por alguém em certo lugar ⁸ . O conhecimento vai se produzir ou a formação vai se produzir exatamente entre esse saber e o fazer com o outro, ou seja, formação é um terreno polêmico que coloca em discussão o saber e o fazer. É um território tensionado que ganha força entre hierarquias, silêncios e intervenções (ROCHA, 2008: 189). A priori não saberemos mesmo “como lidar” com certos estudantes ou com certas situações. As regras que possamos por ventura aprender nos dirão muito pouco sobre esta lida. Com cada estudante e a cada nova situação percebemos que temos muito a aprender. Por mais que estudemos todas as técnicas sobre como educar o cego ou o surdo, por exemplo, cada cego e cada surdo possui suas singularidades. Além da técnica, é preciso algo mais. Na escola onde realizamos a pesquisa de mestrado, presenciamos a orientação de uma professora ouvinte a um estudante surdo durante uma prova. Este apresentava dificuldade em responder duas questões, então solicitou ajuda da professora. Ela não sabia se comunicar na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), nem o estudante oralizava. Diante deste não

saber, eles criaram um caminho para se comunicarem. Nas palavras desta professora: você vê que a gente conversa do nosso jeito… eu vou à carteira mesmo com o lápis, depois peço para ele limpar, vou ao quadro, escrevo na apostila e marco. E ele vai se situando, e respondendo. Naquela hora eu orientei duas questões que ele estava dizendo que não sabia, mas eu dizia a ele que ele sabia. Fui construindo perguntas e até que ele, raciocinando, chegou à resposta. Não posso exigir dele a mesma palavra que eu coloquei na aula de um dia tal. Isso eu não posso exigir dele. Mas posso esperar dele raciocínio dentro daquela lógica. E aí vejo que ele raciocina. (…) até pelo olhar dele você vê que está sintonizado. Pelo gestual do rosto dele. Pela expressão facial dele, você vê quando ele está discordando, concordando, perdido… ele “diz” isso. (…) aprendi nestes desafios diários. E acho que isso é mais importante do que ficar aprendendo técnicas de comunicação para lidar com essa situação. Porque… é uma linguagem que requer expressão facial, gestualidade, escrita, mas é uma linguagem que tem uma base só: afetiva. Ele entende que você quer se comunicar com ele. E que isso não é barreira para você se aproximar dele. Eu acho isso fundamental na relação (Entrevista com professora - MASCARENHAS, 2016). Aprendemos com esta professora e com este estudante surdo que nos processos de inclusão muito mais importante é a abertura para as diferenças, a disponibilidade para as transformações que podem existir a partir dos encontros, como formas de enfrentamento às problemáticas que se apresentam (MASCARENHAS, 2016; KAUFMAN, 2016). Afirmamos com Silva (2000) que “educar significa introduzir a cunha da diferença em um mundo que sem ela se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo parado, um mundo morto” (p.9). A experimentação é assim essencial para o processo de conhecer. Não existe aquisição de conhecimento sem transformação, sem contato com os processos de diferenciação que desarrumam o idêntico, o familiar, o já sabido. Por certo que nesta afirmação não estamos sós. Alves (2016) e Kaufman (2016) seguem na mesma direção: por mais que clamemos por manuais, por capacitações – necessários, sem dúvida e insuficientes, sem dúvida também – o encontro com a diferença exige experimentações, invenções, processos de aprendizagem que ativam a todos. Conforme salienta Alves (2016), experimentações nesses casos não têm o sentido de ações iniciais, como se em algum momento pudéssemos ultrapassar esse estágio rumo ao encontro de alguma ação consolidada. Experimentação, ao contrário, como central, como manejo no encontro com a diferença: sempre experimental. Em suas pesquisas, tanto Kaufman (2016) quanto Alves (2016) indicam a potência e a força de que se considere que no campo da inclusão o experimental não é uma etapa menor a ser vencida. Antes, é constitutiva. Inclusão em rede Para além dos cursos de capacitação ou especialização defendemos que o processo de inclusão deve ser de todos: da escola, da família, da comunidade (que inclui os serviços públicos de saúde, assistência social, etc.). Como vimos, vivemos numa sociedade produtora de desigualdades e a inclusão não

é um estado que alcançaremos algum dia, mas um processo, uma luta cotidiana que não deve cessar. Não existe, de antemão, uma igualdade de todos perante a lei. Antes o contrário, ela [a igualdade] está sempre por ser reivindicada, reclamada, construída e conquistada, a cada circunstância (daí o recurso ao princípio de equidade), por intermédio de ações políticas concretas. (GADELHA, 2012: 96) A inclusão escolar deve então ser pensada como um trabalho em rede. Redes que busquem parcerias entre estes serviços e que integre o trabalho de diferentes profissionais. Não só o professor, não só o médico, não só o psicólogo ou o assistente social. Para pensarmos e discutirmos as políticas de inclusão propomos partir não do plano individual, que tanto busca por culpados quando algo escapa do rol dos comportamentos e atitudes esperadas pela escola, mas partir do plano coletivo . Isto implica o contato com a multiplicidade, com os múltiplos modos de fazer educação e de estar na escola, com o compartilhar saberes, experiências, dúvidas, anseios, inseguranças. Trata-se de transpor as paredes das salas de aulas que separam estudantes e educadores; de colocar em questão as cobranças excessivas direcionadas a cada professor por resultados, até porque estes últimos não dependem apenas da boa vontade e da competência deste profissional. Fortalecer o coletivo escolar é lutar contra a lógica das competições que valoriza certos modos de fazer e enfraquece outros; que não escuta seus profissionais e que os faz pensar que suas dificuldades com determinada turma, por exemplo, são pessoais e devem ser resolvidas fora da escola. É lutar também contra a lógica que individualiza o grupo, como se este fosse resultado de uma soma de indivíduos, como se os grupos portassem uma essência, um modo de funcionar independente daqueles que dele fazem parte. A partir da noção de coletivo , podemos pensar o grupo não como um modo de os indivíduos se organizarem, mas como algo que produz novos acontecimentos. O que não se dá sem embates, já que o coletivo não busca a padronização dos comportamentos, o equilíbrio, o consenso, o enrijecimento dos acordos produzidos, já que estes são provisórios. Concordamos com Passos e Barros (2009) quando os autores postulam uma “experiência coletiva em que qualquer um nela se engaja ou em que estamos engajados pelo que em nós é impessoal” (p.168). Nesta perspectiva, os autores pensam o conceito de comum , de modo bem diferente do sentido usual. Aqui comum não é homogêneo, não é aquilo que está de acordo com determinada regra ou modo de ser. Comum é abertura à variação da vida. Assim, podemos pensar as tantas situações de “alunos problema” que encontramos na escola como casos onde cada um deles é menos unidade, individualidade, menos regra geral que homogeneíza os casos e mais o um-expressão, índice de qualquer outro caso, aberto, portanto, a muitos num continuum de intensidades que compreende diferenças. (p.169) Esta concepção também é uma força que visa colocar em análise a solidão sentida por muitos educadores que se sentem “órfãos” na tarefa de ensinar

seus estudantes (tenham estes deficiência ou não). Receber pessoas com deficiência nas turmas regulares parece intensificar este sentimento, já que como vimos, são raros os professores e estudantes da rede pública que contam com profissionais de apoio em sala de aula regular (mediadores, facilitadores, intérpretes ou instrutores de Libras, etc.). Coletivizar estes sentimentos, assim como as estratégias de enfrentamento às problemáticas que cotidianamente atravessam a escola torna-se algo urgente. Assim, talvez a demanda tão grande por respostas de especialistas seja minimizada, já que muitas das perguntas apresentadas pelos educadores colocam em questão a educação pública que tem sido oferecida hoje a milhares de estudantes, inclusive às pessoas com deficiência. Coloca em questão as condições de trabalho destes profissionais, o grande número de estudantes por turma, a desvalorização salarial, a perda da autonomia pedagógica, o adoecimento docente, etc. Conclusão Como vimos, um dos grandes desafios da inclusão escolar ainda está em combatermos a desqualificação das diferenças, sobretudo em nós. Nossos olhares para as vidas que de algum modo escapam ao que convencionou-se chamar de “norma” são muitas vezes estereotipados e trazem baixas expectativas pedagógicas. Tal desqualificação atinge pessoas com e sem deficiência. Com relação a todas elas, é importante defendermos que a luta pela igualdade de direitos não deve implicar a anulação das diferenças. No entanto, isto não é tão simples. Defender a igualdade de direitos, por um lado, e afirmar as diferenças como inerentes à vida, por outro, é um desafio permanente, permeado de calorosos embates. É preciso tomarmos cuidado com as armadilhas presentes em muitos discursos de igualdade baseados em teses universalistas, especialmente quando estas reconhecem e abraçam as diferenças visando o enquadramento de diversas formas de vida aos padrões vigentes, como vimos. Com estas precauções, podemos afirmar que a educação é direitos de todos. E que a conquista deste direito por parte de pessoas que foram historicamente excluídas das escolas não deve significar a homogeneização das formas de vida. Dito isto, um caminho para lutarmos contra as exclusões que se dão no interior da escola está em, primeiramente, estranharmos o fato de as práticas dirigidas a muitos estudantes ditos “de inclusão” ocorrerem na maior parte das vezes a partir daquilo que lhes falta. Será que não poderíamos realizar intervenções direcionadas a estes últimos que não estejam focadas nestas marcas? Defendemos que os cursos de formação de professores necessitam trazer para seus currículos discussões como esta. Nosso olhar estereotipado para as deficiências, por exemplo, não se refere a problemas individuais, mas foi produzido ao longo de nossa formação (inclusive acadêmica). É importante a produção de outros olhares para as diferenças. Estas são inerentes à vida e como tal atravessa todos nós. Estamos constantemente produzindo diferenças. Quando estas são individualizadas e se tornam “o diferente” acabam ganhando um corpo - “aluno que não aprende” e,

consequentemente um traço negativo é produzido. Nossa proposta é que libertemos as diferenças das amarras das categorias. Diferenças não se definem pelo que outro sujeito é ou deixa de ser em relação à norma. A potência da diferença está exatamente na impossibilidade de sua definição. Pensar em processos de diferenciação significa abrirmos mão de pensar o “outro” (enquanto diferente) para vislumbrarmos a ideia de outrem , como uma “imposição para mim de que não há um único mundo – meu mundo – mas diversos mundos possíveis”. (GALLO, 149). Nesta direção, outrem é a condição de possibilidade da vida, na medida em que o mundo de cada um de nós não existe sem essa diferença radical. Num mundo povoado de possibilidades, outrem abala solos firmes. Introduz espanto onde há calmaria; tranquilidade onde há movimentos instáveis. Faz com que conheçamos ainda mais naquelas circunstâncias em que achávamos que de tudo já sabíamos, mostrando que as possibilidades são infinitas e que sem curiosidade e sem novas descobertas a vida ganha contornos tristes. Diferenças que tentam mostrar para nós que educação não se faz sem parcerias, sem risos, sem lutas, sem dúvidas, sem resistências. A partir destas análises e reflexões, pensamos na inclusão escolar (se é que ainda podemos chamar assim) como uma transformação da educação, o que implica a transformação daqueles que dela fazem parte de alguma forma. A inclusão escolar não deve ser vista como mera técnica ou projeto de escola, mas sim como uma mudança de paradigma, que atravessa modos de ver, de estar, de sentir, de aprender, de ensinar. Para tanto, se faz necessário apurarmos nossa sensibilidade em relação às diferenças, de modo a comprometermo-nos com o desenvolvimento dos estudantes, não partindo daquilo que lhes falta, mas potencializando o caráter peculiar de cada um deles no seu processo de ser e de aprender. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, C. A. E se experimentássemos mais? Um manual não técnico de acessibilidade em espaços culturais . Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense, 2016. ANDRADE, R. B. Políticas inclusivas no chão da escola: usinagens e rebeldias no front-da-batalha . Dissertação de Mestrado em Psicologia Institucional. Universidade Federal do Espírito Santo, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, Brasília, DF/2007. Versão eletrônica disponível em: < http://peei.mec.gov.br/arquivos/politicanacionaleducacao_especial.pdf >. Acesso em: 18/09/2017. _. Decreto no. 7611. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF, 2011. Versão eletrônica disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Ato2011-2014/2011/Decreto/ D7611.htm>. Acesso em: 18/09/2017. BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação . 7a. edição, Petrópolis: Vozes, 2005.

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Hiperatividade (TDAH), Transtorno Global de Desenvolvimento, Transtorno Desafiador Opositor, dentre outros. Para mais informações sobre o DSM V conferir o artigo da jornalista BRUM – Acordei doente mental – publicado na revista Época. 6 Tal especialização ocorre por meio de cursos de pós-graduação lato sensu. Estes existem no Brasil pelo menos desde 2008. Nos últimos anos vimos crescer o número de cursos voltados a esta área e atualmente eles existem na modalidade presencial, semipresencial e à distância, e são ofertados em diferentes regiões do Brasil, tendo especial força no sul do país e em São Paulo. No entanto, no contexto das escolas públicas municipais onde atuamos no Rio de Janeiro, tal área do conhecimento possui menos força e os educadores recorrem mais aos neurologistas que atuam nos serviços públicos de saúde ou nas instituições particulares conveniadas com as Prefeituras. 7 Os primeiros cursos de formação de professores de nível superior do Brasil foram criados com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. As primeiras universidades a oferecerem estes cursos foram: a Universidade de São Paulo (USP) em 1934, e logo em seguida, a Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935 no Rio de Janeiro. 8 Tal aposta nos acompanha em nossa atual pesquisa de doutorado intitulada: Formação de professores em análise: transversalizando psicologia e educação .

Gênero nas políticas da deficiência, deficiência nas políticas para mulheres: uma análise de documentos oficiais sobre violências contra mulheres com deficiência ¹ Anahi Guedes de Mello

Introdução Os dados da Organização Mundial de Saúde revelam que há no mundo mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência (WHO, 2012). Destas, cerca de 45 milhões e 600 mil vivem no Brasil (IBGE, 2010). O mesmo Censo Demográfico de 2010 do IBGE mostra que o percentual da população feminina com pelo menos uma das deficiências investigadas ² é superior ao da população masculina: 26,5% contra 21,2%. Em relação à raça / etnia, o maior percentual de pessoas com pelo menos uma das deficiências investigadas se encontra na população que se declarou “preta” (3.884.965 pessoas) ou “amarela” (569.838 pessoas), ambas com 27,1%, enquanto que a população indígena possui o menor percentual, de 20,1% (165.148 pessoas). Quando analisamos o percentual de raça / etnia em termos de gênero, novamente constatamos um percentual superior da população feminina em relação à população masculina em todas as raças / etnias: na população que se declarou “branca” temos 25,7% de mulheres com deficiência (McD) contra 21,0% de homens com deficiência (HcD); na população “preta” há 30,9% de McD contra 23,5% de HcD; na população “amarela”, 29,4% de McD contra 24,3% de HcD; na população “parda”, 26,6% de McD contra 21,0% de HcD; e, finalmente, a população indígena apresenta 21,8% de McD contra 18,4% de HcD. A maior diferença percentual está entre as mulheres e os homens de “cor preta”; a menor, entre as mulheres e os homens indígenas. A prevalência feminina da população com deficiência pode ser explicada pelo fato delas apresentarem maior expectativa de vida, tendo maior propensão a adquirir deficiências e doenças características do envelhecimento. Todos esses indicadores são significativos para efeitos de formulação e execução de políticas públicas para mulheres com deficiência, uma vez que aponta para a maior presença feminina entre a população com deficiência. Porém, é importante destacar que há diversos fatores pessoais em jogo, mostrando diferenças entre as pessoas com deficiência que vão além da deficiência, do gênero e da raça / etnia representadas nos percentuais, tais como a idade, o status socioeconômico, a sexualidade e a herança cultural, uma vez que todas elas contribuem para ditar as preferências e respostas pessoais de cada pessoa com deficiência em relação às suas necessidades e escolhas (WHO, 2012: 8). Em uma pesquisa envolvendo as percepções da opinião pública em relação aos direitos humanos das pessoas com deficiência no Brasil, Debora Diniz e Lívia Barbosa (2010: 211) afirmam que “embora as pessoas reconheçam a discriminação existente contra indivíduos com deficiência, não a traduzem sob a forma de violência ou maus-tratos”. Prosseguem as autoras alertando que “em uma lista com oito tipos de violência, apenas 5% das pessoas responderam que a violência contra pessoas com deficiência deveria ser combatida em primeiro lugar”. Essas autoras lançaram mão de duas hipóteses para explicar esse resultado: “ou esse fenômeno inexiste na vida cotidiana das pessoas deficientes e de suas cuidadoras, ou a subnotificação impõe uma regra perversa de silêncio. O fato é que inexistem dados sobre a magnitude da violência contra deficientes no Brasil” (DINIZ; BARBOSA, loc . cit .). Sustentam que uma possível explicação para a pouca relevância dada a pesquisas sobre esse tema no Brasil se deve ao fato do debate público e

midiático da agenda da deficiência se concentrar nas necessidades de saúde, transporte e trabalho. Para as autoras, as violências contra pessoas com deficiência se mantêm na esfera privada, não sendo percebidas como uma questão de direitos humanos. E os poucos estudos localizados apontam a violência doméstica como o tipo mais frequente de violência praticada contra esse segmento. Neste trabalho, parto da análise de documentos oficiais relativamente recentes e de domínio público que versem sobre políticas de enfrentamento às violências contra mulheres no Brasil, em particular do Estado de Minas Gerais, no sentido de apontar e refletir sobre como “gênero” e “deficiência” aparecem ou são percebidos nos discursos. Documentos oficiais são todos aqueles produzidos e recebidos, em qualquer formato e suporte, pelos órgãos dos três poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), inclusive os da administração pública indireta da União, dos Estados, municípios e do Distrito Federal. A abordagem segue a premissa da análise de conteúdo de Bardin (1977), porquanto se refere a “um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (BARDIN, 1977: 38). Rover (2012: 23), apoiando-se em Badin, define genericamente a análise de conteúdo como um “procedimento de interpretação de conteúdos discursivos, sejam eles documentais ou a partir de entrevistas”, podendo ser divididos em dois tipos: a análise de discurso e a análise de documentos: A análise de conteúdo do discurso tem a especificidade de trabalhar com unidades linguísticas superiores à frase: os enunciados. A análise de documentos busca dar ao texto uma forma mais conveniente para o interesse científico e representar de outro modo a informação contida no documento. Em ambos os casos ocorrem procedimentos de transformação, os quais são mais evidentes na análise documental, já que esta trabalha com produtos bem definidos (os documentos) para fazer a tradução. (ROVER, 2012: 25-26) A perspectiva da análise de documentos considera ainda aqueles documentos oficiais que “representam” a política, a narrativa que lhe dá suporte (…) [com textos políticos cuja] narrativa caracteriza-se pelo populismo, senso comum e apelo à razão política. Cumpre lembrar que os textos representam a política, mas não são [necessariamente] a política. Essa representação pode adquirir várias formas: textos oficiais e documentos políticos. (SHIROMA, CAMPOS; GARCIA, 2005: 434) A escolha em focar a análise no Estado de Minas Gerais foi estratégica porque na capital mineira de Belo Horizonte existe uma delegacia específica de atendimento à pessoa com deficiência, doravante denominada Delegacia Especializada de Atendimento ao Idoso e ao Deficiente ³ de Belo Horizonte (DEADI / BH), onde durante o ano de 2012 realizei parte de minha pesquisa de campo de mestrado em Antropologia Social. Para início de debate, no próximo tópico trago algumas reflexões gerais e elementos conceituais sobre a perspectiva da “transversalidade” nas políticas para mulheres com deficiência.

Deficiência e feminismo: primeiros apontamentos sobre a “transversalidade” nas políticas para mulheres com deficiência Ao questionar as razões da exclusão da dimensão da deficiência por parte do feminismo, María López González (2007, 2008) aponta ao menos três temas em que a questão da deficiência, em particular das mulheres com deficiência, põe-se em confronto com a epistemologia feminista, explicando a ausência de estudos sobre as mulheres com deficiência nas análises teóricas, ações e pautas feministas: o primeiro é a imagem social da deficiência em contraste com o modelo de mulher presente na perspectiva feminista, para quem “durante muito tempo também o feminismo tem mantido os estereótipos sociais da deficiência como limitação individual, inferioridade, debilidade e incapacidade” (LÓPEZ GONZÁLEZ, 2008: 22). Sobre essa afirmativa, na mesma direção Ellen Samuels (2002) argumenta que as feministas não deficientes de fato procuram se distanciar do corpo deficiente em suas perspectivas de análises teóricas, a fim de “provar que o corpo feminino não é doente ou deformado”. Prossegue Samuels ao afirmar que Rosemarie Garland-Thomson (1997) também lamenta que “mesmo as feministas hoje invocam imagens negativas da deficiência para descrever a opressão das mulheres; por exemplo, Jane Flax afirma que as mulheres são ‘mutiladas e deformadas’ pela ideologia e práticas sexistas” (…). (SAMUELS, 2002: 66) O segundo diz respeito ao desacordo em torno de questões bioéticas relativas à liberdade reprodutiva e à prevenção de deficiências, em que eu destacaria o aborto seletivo como um exemplo expressivo desse embate moral entre feministas com deficiência e feministas sem deficiência, o que é corroborado por Anahi Mello e Adriano Nuernberg (2012): No que concerne à autonomia reprodutiva da mulher, podemos identificar um ponto de tensão entre os Estudos sobre Deficiência e os Estudos Feministas e de Gênero: o aborto seletivo de fetos com má-formação e / ou alterações cromossômicas. Segundo Adrienne Asch, uma das mais expressivas teóricas da bioética feminista dos Estudos sobre Deficiência, o aborto seletivo representa uma afronta à dignidade e à integridade moral das pessoas com deficiência, devendo ser revistos os critérios biomédicos dos diagnósticos pré-natais nesse caso. Para essa autora, as modernas técnicas de diagnóstico [e de prevenção] de anomalias fetais devem levar em consideração os pressupostos do modelo social da deficiência, através de uma “intensificação das políticas de bem-estar para as pessoas com deficiência” que deveriam pautar sobre as escolhas do casal. (MELLO; NUERNBERG, 2012: 645-646) Por fim, o terceiro discute a atenção à pessoa com deficiência em situação de dependência na comunidade, no sentido de desconstruir a crítica feminista à naturalização do cuidado como uma atividade hegemonicamente feminina, deslocando o tema do cuidado para além do gênero, isto é, o cuidado deve ser compreendido como um princípio ético e moral da própria condição humana, que se revela na dependência do outro desde o nascimento até a morte. Nesse sentido, para muitas pessoas com deficiência, “a garantia do cuidado é um direito fundamental para a

manutenção da vida e a conquista da dignidade humana”, o que “nos obriga, assim, a pensar o cuidado como uma responsabilidade do Estado e da sociedade” ( ibidem , p.642). Prossegue López González afirmando que apesar dessas divergências, em muitos sentidos os estudos caminham “em orientações confluentes por parte das duas correntes de análise teórica e ativismo político implicadas: feminismo e movimento da deficiência” (LÓPEZ GONZÁLEZ, 2007: 142). Para essa autora, é justamente o fato de existirem pessoas que participam como acadêmicas e ativistas em ambas as correntes e movimentos e, portanto, veem-se implicadas pessoalmente ora como mulheres ora como pessoas com deficiência nesses debates, o que impulsiona o desenvolvimento de novos enfoques de investigação e novas interpretações sobre a complexa e multifacetada realidade das mulheres com deficiência. A publicação, em 2012, do artigo “Gênero e Deficiência: interseções e perspectivas” (MELLO; NUERNBERG, 2012) se constituiu na primeira tentativa definitiva de dar visibilidade, em língua portuguesa, ao tema da deficiência em uma das mais prestigiadas revistas acadêmicas do campo dos feminismos e relações de gênero no Brasil, a REF – Revista Estudos Feministas . Nosso objetivo principal com esse texto era apontar as interfaces conceituais entre os campos dos Estudos Feministas e de Gênero e os Estudos sobre Deficiência, identificando neles alguns eixos de articulação em comum. Queríamos, sobretudo, despertar o interesse não somente do feminismo acadêmico brasileiro para a importância da inserção da categoria deficiência em seus estudos, pesquisas, produções intelectuais e engajamentos políticos, mas também contribuir para o campo de ação das políticas públicas para mulheres com deficiência, fornecendo subsídios teóricos para a incorporação do enfoque de gênero ( gender mainstreaming ) na formulação e gestão das “políticas da deficiência”, e vice-versa. No marco das políticas públicas, o modelo e a estratégia para a busca da igualdade e da luta contra a discriminação muitas vezes é conhecida pelo conceito de mainstreaming , traduzido como “transversalidade”. Felipe Fernandes (2011), apoiando-se no trabalho de Lourdes Bandeira (2005), sugere que esse conceito remete ao movimento feminista que reivindicou, em conferências internacionais (México-1975 e Beijing-1995), que o “recorte” de gênero perpassasse todas as políticas dos Estados-nacionais e não apenas fossem implementadas “políticas específicas” [para mulheres]. (FERNANDES, 2011: 142) De fato, gender mainstreaming é uma expressão anglo-saxã alcunhada durante a IV Conferência Mundial das Mulheres em Beijing, em 1995, e traduzida como “transversalidade de gênero” (BANDEIRA, 2005: 10). Segundo Lourdes Bandeira, Por transversalidade de gênero nas políticas públicas entende-se a ideia de elaborar uma matriz que permita orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização dos agentes públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas esferas do governo. Esta transversalidade garantiria uma

ação integrada e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e, consequentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres. (BANDEIRA, 2005: 5) Em situações que envolvam “políticas específicas” para mulheres, temos as “políticas de gênero”, que abarcam um conjunto de políticas públicas voltadas para a promoção da equidade de gênero, podendo ela abarcar todas as interseções possíveis. Nos termos de Maria Salet Novellino (2004: 10), são “políticas públicas sensíveis às questões de gênero. Políticas de gênero têm como objetivo contribuir para o empoderamento das mulheres e para a erradicação da desigualdade de poder entre mulheres e homens”. Cabe ressaltar que há uma diferença entre “políticas para mulheres” e “políticas de gênero”: enquanto estas consideram a diversidade dos processos de socialização entre homens e mulheres, aquelas têm no feminino a centralidade da reprodução social, não dando importância aos significados que se estabelecem nas relações entre os dois sexos (BANDEIRA, 2005). Desse modo, a centralidade posta na mulher-família reafirma a visão essencialista de que a reprodução e a sexualidade causam a diferença de gênero de modo simples e inevitável. As políticas para as mulheres não são excludentes das políticas de gênero, embora tenham uma perspectiva restrita, pontual, de menor abrangência, atendendo a demandas das mulheres, mas sem instaurar uma possibilidade de ruptura com as visões tradicionais do feminino. Em longo prazo as políticas para as mulheres devem se transformar em política de gênero. A consolidação de uma perspectiva relacional e crítica pode vir a fundamentar a formulação de políticas públicas de gênero. (BANDEIRA, 2005: 8-9) Sem dúvida, a incorporação do princípio da transversalidade (FARAH, 2004; BANDEIRA, 2005) tem sido um grande desafio para o campo de ação das políticas públicas no Brasil. Primeiro, porque a perspectiva da transversalidade considera um enfoque múltiplo ou interseccional da discriminação, por entender que as experiências de opressão de um determinado grupo social, como as mulheres e as pessoas com deficiência, podem resultar como de fato resultam da interação de vários fatores ou componentes sociais, o que nem sempre se constata na prática. É o que se vê, por exemplo, no caso das mulheres e meninas com deficiência, quando se percebe um inexistente ou pouco enfoque de gênero nas políticas da deficiência, e vice-versa. No caso das pessoas com deficiência a discriminação pode ser distinta ou múltipla quando se é mulher ou homem, da zona rural ou da cidade, negro(a) ou branco(a), pobre ou de maior poder aquisitivo, homossexual ou heterossexual, possuir esta ou aquela deficiência, dentre outros. São componentes ou categorias sociais que, unidas, produzem uma forma de discriminação específica. Segundo, porque a incorporação da transversalidade exige uma capacidade metodológica de operar relações que sejam implicadamente interseccionais e não meramente aditivas, isto é, deve-se evitar analisar categorias identitárias como um “somatório de opressões sociais”, em que a diferença é reduzida à desigualdade, como se ambas fossem sinônimos. Essa perspectiva aditiva das “opressões sociais” baseada nas “metáforas aritméticas” corresponde à

vertente sistêmica / estrutural da abordagem interseccional (Cf. HENNING, 2015: 113). Esse cuidado analítico implica a aposta da interseccionalidade a partir de uma perspectiva desnaturalizante e não essencialista, própria da vertente construcionista (PLATERO, 2012; HENNING, 2015) da abordagem interseccional, ao atentar para o entrelaçamento daqueles [marcadores sociais de diferença] que se mostram relevantes contextualmente, ou seja, partindo de análises atentas às diferenças que fazem diferença em termos específicos, históricos, localizados e, obviamente, políticos. (HENNING, 2015: 111) Essa linha teórica considera, portanto, que há “distinções entre categorias de diferenciação e sistemas de discriminação, entre diferença e desigualdade” (PISCITELLI, 2008: 268). Ainda, Fernandes (2011: 49) considera que o gênero, a raça e a sexualidade foram durante o governo Lula, nos anos 2000, o eixo central das políticas sociais. Para esse autor, O Estado de Lula pode ser entendido, sob a ótica da agenda anti-homofobia no MEC, como aquele que faz uma leitura “ativista / militante” (e, portanto, não formalista) do Orçamento da União, posta a cabo pela “transversalidade” dos “eixos de opressão” (raça, gênero e orientação sexual) nas políticas públicas do seu “núcleo social”. (FERNANDES, 2011: 141) Os sites de órgãos do Poder Executivo Federal relativos a políticas públicas para “grupos minoritários” (POGREBINSCHI, 2012) do governo petista de Dilma Rousseff se destacava na implantação de uma nova forma de se produzir políticas públicas no Brasil, a partir da interseção de sete eixos ou categorias, conforme abaixo: Tipo de marcador de diferença e seu respectivo órgão governamental responsável pela gestão da política pública na área No entanto, faz-se necessário levar em consideração que a “interseccionalidade” (ou pela perspectiva da “transversalidade”) é uma forma recente e complexa de fazer política pública para “grupos minoritários” (BANDEIRA, 2005; SILVA, 2009), de modo que, por exemplo, a relação entre as temáticas mulher e deficiência esteve, até o momento da deposição, em 31 de agosto de 2016, da Presidenta Dilma Vana Rousseff por um golpe de estado parlamentar, em processo de construção nas duas secretarias que tratavam destes segmentos específicos. Para Viviane Petinelli (2011: 242), essas políticas sociais são majoritariamente intersetoriais e transversais porque “têm como finalidade a redistribuição de benefícios sociais de modo a diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico”. Prossegue a autora afirmando que diferentemente das políticas econômicas que são geralmente setoriais e voltadas para os grupos econômicos específicos, as políticas sociais “demandam maior esforço político e menor estrutura administrativa, maior coordenação entre as instituições públicas e mais recursos orçamentários”, sobretudo não gerando retornos financeiros para o governo e para o país. Nesse sentido, garantir o enfoque de gênero nas políticas da

deficiência não significa apenas defender a não discriminação interseccional em razão de deficiência e gênero, mas trazer outra perspectiva de ação às “políticas de igualdade”. Violências contra mulheres com deficiência em documentos oficiais nacionais Segundo dados apresentados no VII Relatório Brasileiro da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (BRASIL, 2011), o Sistema de Vigilância de Violência Doméstica e / ou Outras Violências registrou, entre 2006 e 2007, “9.038 casos de violência, dos quais 2.316 (25,6%) ocorreram entre homens e 6.722 (74,44%) entre mulheres” ( ibidem , p.24). Desse universo total de casos registrados, foi notificada “a presença de algum tipo de deficiência (física, mental, visual, auditiva, outras deficiências / síndromes) em 6,5% de todos os atendimentos, com distribuição semelhante entre os sexos” ( ibidem , p.25). A meu ver, esse número corrobora a afirmação de Diniz e Barbosa (2010) sobre a realidade silenciosa das violências perpetradas contra pessoas com deficiência, em que pouco ou nada sabemos sobre as configurações das relações de gênero e poder nesse contexto. Em um levantamento de informações feito no site do Ministério da Saúde (MS), constatei que esses dados são provenientes da “Ficha de Notificação / Investigação Individual, Violência Doméstica, Sexual e / ou Outras Violências” do Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN (Fig. 1 abaixo). Essa ficha contém um campo específico para a notificação de violência doméstica, violência sexual e / ou outras violências. Dentre outros vários itens, existe um campo chamado de “Dados da Pessoa Atendida”, em que as questões 34 e 35 se referem à deficiência (a questão 34 pergunta se a pessoa atendida “possui algum tipo de deficiência / transtorno”, com três respostas possíveis a riscar – sim, não ou ignorado; a questão 35, “se sim, qual tipo de deficiência / transtorno”), o que permite a possibilidade de fornecer estatísticas correlacionando deficiência com outras variáveis, tais como gênero e “violência”, muito embora nesse relatório a análise tenha sido pouco explorada, talvez pelo seu caráter de notificação sigilosa ¹² .

Figura 1: A “Ficha de Notificação / Investigação Individual, Violência Doméstica, Sexual e / ou Outras Violências” contém as questões 34 e 35 referentes à deficiência. O mesmo relatório, ao reportar a reduzida presença das mulheres nos espaços de poder, notadamente nos partidos políticos, parlamentos e governos, traz como uma das justificativas para essa falta de representação feminina “o pouco tempo dedicado à ação política pelas mulheres, em grande parte pela sobrecarga de responsabilidades, pelo acúmulo das tarefas domésticas e com os cuidados com as(os) filhas(os) e com familiares

doentes, com deficiência e idosos, além dos dedicados à vida laboral” (BRASIL, 2011: 34). A menção à tarefa do cuidado como uma representação hegemonicamente associada ao gênero feminino, portanto, ela mesma uma expressão das relações de gênero, muitas vezes denota aquilo que Rifiotis (2007: 138) chama de “desafio ético da minoridade” ao se referir à pessoa idosa na sociedade atual, denunciando sua situação de “mais um objeto de assistência do que um sujeito social”. É, sobretudo, interessante notar as conexões entre deficiência e envelhecimento ao longo do artigo desse autor, pois o mesmo tratamento é dirigido às pessoas com deficiência, ao negarlhes seu lugar de sujeito (Cf. MARQUES, 1998; MARTINS, 2004). Se não houver acordo entre as partes envolvidas no cuidado às pessoas com deficiência e pessoas idosas, bem como “políticas do cuidado” adequadas a familiares cuidadoras (KITTAY, 1999; NUSSBAUM, 2007; TRABUT e WEBER, 2012) especialmente no que concerne ao “uso do tempo” para as tarefas do cuidado, as relações de cuidado podem se traduzir em relações assimétricas de poder, gerando violências e outras formas de exclusão social. Desde esta perspectiva, apesar da linha tênue de abjeção entre o envelhecimento e a deficiência, em muitas situações parece “mais aceitável” que um corpo idoso possa “habitar o mundo” (BUTLER, 2003) do que o corpo deficiente, porquanto as pessoas “são incapazes de distinguir as circunstâncias que resultam da violência contra mulheres com deficiência, por causa da falsa percepção de que as circunstâncias são “inerentes” à deficiência” (INWWD, 2010: 10) ¹³ . No relatório final ¹⁴ de 1.049 páginas da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher (CPMIVCM) ¹⁵ , publicado em julho de 2013, a CPMIVCM reconheceu a invisibilidade da violência contra mulheres com deficiência, apontando para a ausência de “políticas públicas específicas” para este segmento (p.64). A CPMIVCM sustenta sua argumentação com base também na fala da professora Miriam Grossi em audiência pública convocada pela referida comissão e realizada no dia 10 de abril de 2012 em auditório do Senado Federal, com o objetivo de ouvir as representantes ¹⁶ da academia sobre a questão da sistematização de dados e o monitoramento da Lei Maria da Penha (LMP), ao destacar que: O índice de violências contra mulheres com deficiência é muito maior do que contra homens com deficiência, mostrando que, no tocante a essas transversalidades de gênero, quando há outra situação de subalternidade, de estigma, como é a deficiência, as mulheres são duplamente violentadas. (BRASIL, 2013: 64) Em várias partes do relatório há recomendações a diversos órgãos do poder público de Estados e do Distrito Federal no sentido de se considerar a transversalidade de gênero, raça / etnia, de orientação sexual, de deficiência e de idade nas políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. À Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), por exemplo, o relatório sugere que “elaborem e divulguem regularmente dados estatísticos sobre a violência contra as mulheres, desagregando os critérios de raça / etnia, orientação sexual, geracional, deficiência e outras especificidades, com o objetivo de fomentar a elaboração de políticas públicas específicas” (BRASIL, 2013: 1043).

Existe uma conexão entre as desigualdades culturais e históricas e as diferenças de tratamento entre mulheres e homens em várias sociedades, mas essas condições custaram a mudar ou estão mudando muito lentamente para as mulheres com deficiência, razão pela qual se pleiteou fortemente que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) incluísse um artigo específico sobre elas. O Art. 6, intitulado “Mulheres com Deficiência”, inclui dois itens: [o primeiro diz que] os Estados Partes reconhecem que as mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas à discriminação múltipla e, portanto, deverão assegurar a elas o pleno e igual desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; [o segundo menciona que] os Estados Parte deverão tomar todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento, avanço e empoderamento das mulheres, a fim de garantirlhes o exercício e desfrute dos direitos humanos e liberdades fundamentais estabelecidos na presente Convenção. Ao longo deste documento também há sete vezes a menção ao gênero. Essa importante inclusão fez com que os governos reconhecessem a importância da situação das meninas e mulheres com deficiência, das perspectivas de gênero e da igualdade entre as mulheres e os homens com deficiência e entre as mulheres e os homens sem deficiência. Outro artigo importante da CDPD é o Art. 16, que trata da “Prevenção contra a exploração, a violência e o abuso”, em que destaco o item 2, ao impor ao Estado a proteção não só às pessoas com deficiência, mas também a seus familiares e cuidadoras: Os Estados Partes também tomarão todas as medidas apropriadas para prevenir todas as formas de exploração, violência e abuso, assegurando, entre outras coisas, formas apropriadas de atendimento e apoio que levem em conta o gênero e a idade das pessoas com deficiência e de seus familiares e atendentes , inclusive mediante a provisão de informação e educação sobre a maneira de evitar, reconhecer e denunciar casos de exploração, violência e abuso. Os Estados Partes assegurarão que os serviços de proteção levem em conta a idade, o gênero e a deficiência das pessoas. [grifos meus] Do ponto de vista antropológico, as violências contra pessoas com deficiência não podem ser dissociadas dos marcadores de gênero, idade e deficiência, uma vez que todas essas três categorias estão imbricadas na noção de dependência, do mesmo modo como ocorre com as pessoas idosas. Guita Debert e Amanda Oliveira (2009) apontam para a existência de três esferas ou domínios nos quais se pratica a violência contra pessoas idosas (e que eu ampliaria também para pessoas com deficiência): nos domínios privados , com a participação de familiares e cuidadoras dentro dos lares domésticos; nos domínios semipúblicos , quando as violências ocorrem em espaços institucionais como as clínicas, asilos, hospitais, centros de reabilitação etc.; e nos domínios públicos , através das formas de discriminação à pessoa idosa e à pessoa com deficiência praticadas pelos serviços públicos oferecidos à população em geral, o que inclui os agentes estatais.

Outro importante tratado internacional de proteção e garantia de direitos às mulheres que destaca o recorte da deficiência é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher , conhecida como Convenção de Belém do Pará , ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 e promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. O Art. 9 dessa Convenção sugere que: Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados Partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável à violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos. Também será considerada violência à mulher gestante, deficiente [grifo meu], menor, idosa ou em situação socioeconômica desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade. (BRASIL, 1996) Nesse sentido, a Convenção de Belém do Pará reconhece expressamente a vulnerabilidade também das mulheres com deficiência a todas as formas de violência, o que não ocorre nem é o objetivo da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Por esta ser um documento mais genérico que aquela, é extensiva a todas as mulheres, sem distinção de qualquer natureza. Juntas, estas duas convenções internacionais foram o marco legal que fundamentaram e impulsionaram a criação e promulgação da Lei nº 11.340 / 2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), que visa a proteger especificamente mulheres de relações de violência na esfera doméstica e familiar. Considerada a primeira lei federal de impacto significativo dirigida à prevenção, enfrentamento e combate a todas as formas de violência contra mulheres, a LMP enfatiza, no título VII das disposições finais, a maior vulnerabilidade das mulheres com deficiência a situações de violência ao prever um aumento da pena em um terço para os agressores e agressoras que praticarem crimes de violência contra elas: “§ 11º Na hipótese do § 9 o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência [grifo meu]”. Alguns dos dilemas e desafios da aplicação do Art. 6 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência têm relação com a aplicabilidade da Lei Maria da Penha nos casos de violência contra mulheres com deficiência: 1) a deficiência é recorrentemente tratada de forma isolada, isto é, fora de um contexto de interseção com a categoria de gênero, o que contribui para que haja dificuldades no atendimento prestado a esse público específico no espaço das delegacias especializadas no atendimento à mulher; 2) as mulheres com deficiência têm dificuldades de acessar os serviços de denúncia e de assistência às mulheres em situação de violência devido à falta de acessibilidade; 3) as violências contra as mulheres com deficiência revelaram a possibilidade de analisar a violência contra este segmento específico de mulheres a partir da dimensão do cuidado, considerando também a problematização dos efeitos potencializadores do duplo estigma, de gênero e de deficiência; e 4) a existência de uma feminização da violência no contexto da produção social da deficiência. Violências contra pessoas com deficiência em documentos oficiais de Minas Gerais (2012-2013)

No Estado de Minas Gerais, as pessoas com deficiência representam 22,6% da população mineira, sendo que a maior incidência é de mulheres ¹⁷ . Segundo o relatório final da Comissão Especial da Violência contra a Mulher da Assembleia Legislativa de Minas Gerais – CEVCM / ALMG (MINAS, 2012b: 24), publicada em agosto de 2012, “o quadro é consistente com os dados que descrevem a situação nacional” e que, de acordo com a Ouvidoria da Subsecretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, “Minas Gerais ocupa o 3º lugar entre os registros de casos de violência contra a mulher, com 23.430 casos verificados no primeiro semestre de 2011”. Quanto ao ranking da violência contra a mulher resultante em feminicídio no Brasil, o documento “Mapa da Violência 2012” (WAISELFISZ, 2012) mostra que o estado mineiro ocupa a 20ª colocação, com a taxa de 4,1 homicídios a cada 100 mil mulheres, com Belo Horizonte como a 13ª capital mais violenta do país, apresentando taxa de 6,2 homicídios a cada 100 mil habitantes. No relatório da CEVCM / ALMG há uma única menção a mulheres com deficiência, que se encontra na página 87, quando a representante do Conselho Estadual da Mulher de Minas Gerais, ela própria mulher com deficiência física e usuária de cadeira de rodas, chama “a atenção para o fato de existirem várias denúncias de violência contra mulheres com deficiência”. Entretanto, segundo constatei no relatório final da CPMIVCM, nas diligências feitas por esta Comissão Parlamentar Mista aos serviços públicos que compõem a rede de atendimento a mulheres em situação de violência, o Estado de Minas Gerais, ao contrário de outros Estados, não apresentou qualquer dado sobre violências contra mulheres com deficiência, nem nas seções de “pendências” e de “recomendações”.

Em matéria de legislação estadual a regulamentar a produção e divulgação de dados sobre violências contra mulheres, cito a Lei nº 15.218/2004, que cria a “Notificação Compulsória de Violência contra a Mulher”, a ser feita por estabelecimento público ou privado de saúde que presta serviços de atendimento à mulher em situação de violência; e a mais recente Lei nº 20.016/2012, que dispõe sobre o registro e a divulgação de dados sobre violência contra a mulher no Estado de Minas Gerais. A primeira especifica a obrigatoriedade de a notificação compulsória conter, por exemplo, informações sociais como idade e etnia da mulher, bem como uma “descrição detalhada dos sintomas e das lesões” e de um “relato da situação social, familiar, econômica e cultural, com identificação de possíveis conflitos interpessoais” (Art. 4º, itens IV e V, respectivamente); a segunda obriga outras instâncias do Poder Público ao registro e publicização dos dados sobre violência contra a mulher em Minas Gerais, além daqueles da “Notificação Compulsória de Violência contra a Mulher” prevista na primeira, em que novamente destaco a obrigatoriedade de informações sobre a “raça ou etnia da vítima” (Art. 2ª, § 1º, item IV) e “as consequências do ato de violência” (Art. 2ª, § 1º, item VI). Não há qualquer menção explícita ao recorte de deficiência em ambas as leis, mas destaco que categorias como “lesões”, “consequências da violência”, bem como a possibilidade de dados relativos ao perfil socioeconômico e cultural da mulher em situação de violência podem sugerir informações sobre “deficiência”. Isso porque violências que resultam em lesões corporais graves ou gravíssimas ¹⁸ podem produzir deficiências, respectivamente temporárias ou permanentes, contribuindo para aumentar o contingente de novas pessoas com deficiência no Brasil ¹⁹ . Uma importante fonte de dados sobre violências contra pessoas com deficiência se obtém através da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE) de Minas Gerais. O Estado de Minas Gerais conta com um serviço telefônico para recebimento de denúncias de violações de direitos humanos, o Disque Direitos Humanos (0800-031-1119) ²⁰ . Esse serviço telefônico funciona com ligação gratuita e sigilosa e tem o objetivo de receber, encaminhar e monitorar denúncias de violação de direitos não somente de mulheres, mas também de pessoas com deficiência e idosas, crianças e adolescentes, LGBT, bem como de crimes de racismo e contra o meio ambiente, dentre outros. Segundo informações contidas no site da Sedese ²¹ , o número de denúncias de crimes cometidos contra pessoas com deficiência registrou um aumento de 81,3% de janeiro a agosto de 2013, em relação ao mesmo período de 2012. As denúncias aumentaram de 75 casos nos oito primeiros meses de 2012 para 136 em igual período de 2013, ultrapassando o total de 129 casos registrados de 2012. Nas palavras de Ana Lúcia de Oliveira, até então coordenadora da Coordenadoria Especial de Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência (CAADE) de Minas Gerais, “na maioria das vezes, os maus-tratos acontecem pelos próprios familiares, que trancam essas pessoas em casa, além de não prestarem os cuidados básicos ²² que necessitam. Isso acaba contribuindo para excluí-las da sociedade” ²³ . Três conclusões se depreendem desses dados sobre violências contra pessoas com deficiência de Minas Gerais: a primeira é a ausência do recorte de gênero (destes 136 casos de agressões contra pessoas com deficiência, quantas são mulheres ou poderiam se enquadrar como “violência contra a mulher”?); a segunda é que em se tratando de violências contra mulheres

com deficiência, essa dissociação entre “violência contra a mulher” e “violência contra pessoas com deficiência” sugere que há, nos termos de Ellen Samuels (2002), uma correspondência direta ou uma equação entre duas realidades diferentes de existência social e corporal (ser mulher e pessoa com deficiência), ou seja, a violência contra mulheres com deficiência não é somente um conjunto da violência de gênero que atinge as mulheres em maior proporção, mas uma categoria interseccional da violência baseada em gênero e deficiência. Essa observação implica, portanto, no fato de que há “violências sexistas” e “violências capacitistas” contra mulheres com deficiência. Por outro lado, essa correspondência ou equação entre gênero e deficiência pode nos trazer algumas dificuldades adicionais, quando faz com que algumas formas de violência contra mulheres com deficiência não sejam vistas como violência de gênero (INWWD, 2010). A terceira conclusão parte do acionamento da categoria cuidado na fala da coordenadora da CAADE, sugerindo, mais uma vez, a necessidade de se analisar as violências contra mulheres com deficiência a partir do contexto das relações de cuidado. A Delegacia Especializada de Atendimento ao Idoso e ao Deficiente de Belo Horizonte A Delegacia Especializada de Atendimento ao Idoso e ao Deficiente de Belo Horizonte (DEADI / BH) é a primeira delegacia desse gênero no país e o atendimento ao público funciona todos os dias, das oito horas e trinta minutos às dezoito horas e trinta minutos. Segundo informações contidas no livro do “Fórum Técnico Segurança Pública: drogas, criminalidade e violência”, a DEADI exerce atividades de polícia investigativa nas infrações penais praticadas contra o idoso e contra a pessoa com deficiência, sempre se baseando no Estatuto do Idoso e na lei específica dos crimes praticados contra a pessoa com deficiência”, com atuação “na lavratura de TCOs [Termos Circunstanciados de Ocorrência] afetos à Lei 9.099/1995 ²⁴ e nos inquéritos policiais remetidos à Justiça Comum.” Assinala, ainda, que “de janeiro a julho de 2010 foram instaurados 94 inquéritos policiais e elaborados 416 TCOs. (MINAS GERAIS, 2012a: 306) A competência legal e o funcionamento da DEADI estão pautados pelo Art. 18, contido na Subseção VI (que reporta à Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e ao Idoso), Seção III (do Departamento de Investigação, Orientação e Proteção à Família) e Capítulo VI da Resolução nº 7.196, de 29 de dezembro de 2009, que “dispõe sobre as unidades policiais civis, de âmbito territorial e atuação especializada, que integram a estrutura orgânica da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, e dá outras providências”. O Art. 18 lista uma série de infrações penais que deverão ser objetos do exercício de polícia e de investigação criminal no âmbito da DEADI, a saber: “vias de fato”, “lesão corporal”, “maus tratos”, “constrangimento ilegal”, “ameaça”, “dano”, “apropriação indébita”, “abuso de incapazes”, “abandono material” e “supressão de documento”, todos tipificados com base em distintos artigos do Código Penal. No entanto, o parágrafo primeiro da referida Resolução sugere que a aplicação de todo o disposto no caput do Art. 18 somente ocorrerá em caso de infração penal

cometida contra a pessoa idosa de idade igual ou superior a sessenta anos e contra a pessoa com deficiência “quando houver entre os envolvidos relação de parentesco , conforme definida nos arts. 1.591 a 1.595 e §§ do Código Civil, e ainda, quando o sujeito ativo tiver o idoso ou o portador de deficiência sob sua guarda ou vigilância [grifos meus]”. Abrange também a apuração de infrações penais previstas nos termos dos Artigos 95 a 108 do Capítulo II (Dos Crimes em Espécie) do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e do Art. 8 da Lei nº 7853/1989 ²⁵ . No entanto, observei que na prática a DEADI limita seu campo de atuação para o Art. 18 dessa Resolução. Dessa forma, ao sugerir a obrigatoriedade de parentesco e de tutela ou curatela ²⁶ entre a “vítima” idosa ou com deficiência e seu suposto “agressor” ou “agressora”, a referida Resolução não considera susceptíveis de investigação as infrações penais nas situações de violência contra pessoas idosas e pessoas com deficiência fora de suas redes de parentesco. Por exemplo, não contempla as violências contra os dois segmentos perpetradas por pessoas com as quais não têm vínculo de parentesco, como as(os) atendentes pessoais, as(os) cuidadoras(es) formais e informais contratadas(os) para os cuidados em domicílio e outros provedores de serviços de saúde, bem como agentes estatais e pessoas desconhecidas que eventualmente podem violentá-las, o que é corroborado por Guita Debert e Amanda Oliveira (2009), anteriormente citadas. Destaco também que em várias passagens desta Resolução, a pessoa com deficiência é citada ora como “portador de necessidades especiais”, ora como “portador de deficiência”, o que sugere que a Chefia da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais não acompanhou os avanços jurídicos feitos na área dos direitos das pessoas com deficiência nos últimos anos e anterior à data de 2009. Sobretudo, não incorporou em seus dispositivos legais os preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Do lado das atribuições da Delegacia Especializada de Crimes contra a Mulher (DECCM), constantes na mesma Resolução, destaco pontualmente que o parágrafo segundo do Art. 16 opina que “o disposto neste artigo incidirá quando a vítima for do sexo feminino, com idade igual ou superior a 18 (dezoito) anos, salvo se pessoa idosa e / ou portadora de necessidades especiais ” [grifos meus]. Isso me faz pensar sobre os limites da aplicação da Lei Maria da Penha quando a mulher corporifica outro sujeito político, pessoa com deficiência ou pessoa idosa, sobretudo se considerarmos que a LMP prevê um aumento da pena em um terço para os agressores e agressoras que praticarem crimes de violência contra mulheres com deficiência. Considerações finais Com frequência as perspectivas de não discriminação por gênero e deficiência não se cruzam, devido ao fato da abordagem da não discriminação ser normalmente feita a partir da análise de um único fator de discriminação (ou gênero ou deficiência, por exemplo), raramente combinando as várias discriminações que, juntas, podem conduzir a uma desigualdade estrutural. A análise dos documentos que apresentei neste trabalho aponta para a relevância de aproximar a perspectiva da deficiência dos direitos humanos e das políticas de gênero, assim como confirma uma tendência para a feminização do fenômeno da deficiência em muitos

aspectos, mas não podemos afirmar o mesmo no que tange às violências contra mulheres com deficiência, uma vez que existe o problema da subnotificação, de maneira que os dados percentuais das violências contra mulheres com deficiência apresentados no VII Relatório Brasileiro da CEDAW não representam a realidade. Uma das questões apontadas de modo breve neste trabalho se refere às imbricações que “gênero”, “deficiência” e “violência” têm com a categoria cuidado (MELLO, 2016). Compreendendo o cuidado como dádiva nos termos de Marcel Mauss (2003), porquanto parte das relações obrigatórias de troca, é fácil perceber que o mundo é uma expressão de um “contínuo do cuidado”. Porque o cuidado rege o funcionamento de sociedades humanas alicerçadas no princípio da interdependência ou, em outros termos, pode-se concluir que a interdependência é um princípio ético que rege o funcionamento de sociedades humanas alicerçadas em relações de troca não só na forma de dar e receber presentes, mas também em cuidar e ser cuidado. É por isso que a “quebra da dádiva” do cuidado pode desencadear violências, porquanto cuidar é evitar violências. No caso das pessoas com deficiência expostas a violências nesse tipo de contexto, sua vulnerabilidade aumenta de modo mais contundente através da incorporação de categorias como gênero, raça / etnia, classe, orientação sexual, idade ou geração, região e religião, dentre outras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA, L. (2005). Avançar na transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas . Brasília: Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL; Secretária de Políticas para Mulheres – SPM. BARDIN, L. (1997). Análise de conteúdo . Lisboa, Portugal: Edições 70. BRASIL Presidência da República. Decreto nº 1.973, 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Diário Oficial da União , Brasília-DF, 2 ago. 1996, seção 1, p. 14471-14472. Versão eletrônica disponível em: < http:// www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1996/decreto-1973-1agosto-1996-435655-publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em: 30/09/2016. _ (2011). VII Relatório Brasileiro da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher . Brasília: Secretaria de Políticas para Mulheres. _ (2013). Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher . Brasília: Senado Federal. BUTLER, J. (2003). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. DINIZ, D.; BARBOSA, L. (2010). “Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos no Brasil”. In .: VENTURI, G. (org.). Direitos Humanos: percepções da opinião pública – análises de pesquisa nacional. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos.

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9 Com foco na formulação e gestão de políticas públicas para crianças e adolescentes de 0 a 14 anos e para jovens de 15 a 29 anos, com duas secretarias específicas vinculadas à SDH: a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA), com site em < http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/programas> , e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), por meio do site < http:// www.juventude.gov.br>. Acesso em: 25/08/2015. 10 Com foco na formulação e gestão de políticas públicas para pessoas idosas, por meio da Coordenação Geral dos Direitos do Idoso, com site institucional em: < http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-idosa>. Acesso em: 25/08/2015. 11 Com foco, dentre outros, na formulação e gestão de políticas públicas para mulheres rurais e os povos e comunidades tradicionais “enquanto beneficiários das políticas voltadas para o meio rural”. Site institucional em: < http://www.mda.gov.br/>. Acesso em: 25/08/2015. 12 Em uma das sessões da Comissão Especial da Violência contra a Mulher da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, uma informante, gestora estadual da pasta de saúde, afirmou que se trata de uma notificação sigilosa, de modo que “não há cruzamento das informações do Sinan com outros bancos de dados, nem são repassadas a outros serviços ou Secretarias.” Essa afirmativa por parte da gestora provocou vários questionamentos do público ali presente sobre o sigilo desses dados, considerados cruciais para um planejamento mais efetivo de políticas públicas de combate e enfrentamento à violência contra a mulher. Os dados do Sinan para a variável “deficiência” foram publicizados pela primeira vez recentemente, na matéria “Deficientes são vítimas de 1 em cada 10 estupros registrados no país”, publicada na Folha de São Paulo em 19 de setembro de 2017 e disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/ 2017/09/1917303-deficientes-sao-vitimas-de-1-em-cada-10-estuprosregistrados-no-pais.shtml >. Acesso em: 21/10/2017. 13 A versão traduzida deste documento para o português é de 2011, cuja referência é: INWWD (The International Network of Women with Disabilities / “Rede Internacional de Mulheres com Deficiência”). Arquivos ‘Barbara Faye Waxman Fiduccia’ sobre Mulheres e Meninas com Deficiência Tradução: Romeu Kazumi Sassaki. Centro para Estudos de Políticas sobre Mulheres, mar. 2011. 14 Versão eletrônica disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/ handle/id/496481 >. Acesso em: 21/10/2017. 15 A CPMIVCM foi criada por meio do Requerimento nº 4 de 2011-CN, “com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência”, tendo como presidenta a Deputada Federal Jô Moraes (PCdoB/MG) e como relatora a Senadora Ana Rita Esgario (PT/ES).

16 Além da Profa. Dra. Miriam Pillar Grossi (UFSC), também foram ouvidas a Profa. Dra. Cecilia Maria Bacellar Sardenberg (UFBA) e a Profa. Dra. Wânia Pasinato (USP), todas especialistas em violência contra a mulher. 17 O Censo Demográfico 2010 do IBGE não fornece o percentual da população com deficiência feminina por Estado brasileiro. 18 No Direito Penal brasileiro, a deficiência “aparece” no tipo penal “lesão corporal gravíssima”, porquanto “permanente”, ou seja, implica em impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Já o tipo penal “lesão corporal grave” diz respeito aos impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais que se dão temporariamente. 19 Na página 434 do relatório da CPMIVCM há a menção a uma mulher indígena que se tornou paraplégica devido à violência de gênero decorrente de agressões físicas impetradas por seu marido durante 16 anos. 20 No caso da violência contra a mulher, esse serviço telefônico se intensificou até o ano de 2010 por meio da campanha “Fala Mulher”, ao receber denúncias de forma sigilosa por meio desse mesmo número. 21 Site oficial da Sedese é < http://www.social.mg.gov.br>. Acesso em: 25/08/2015. 22 É importante destacar que a minha abordagem de cuidado se distancia do senso comum que o associa à superproteção que, como sabemos, é um fator que pode promover a vulnerabilidade à violência. Desse modo, o cuidado como o abordo aqui é uma proposta ética, uma categoria emprestada da teoria da justiça (Cf. KITTAY, 1999). 23 As informações dos dados estão disponíveis em: < http:// www.social.mg.gov.br/component/gmg/story/2496-disque-registra-aumentode-81-3-nos-crimes-contra-pessoas-com-deficiencia>. Acesso em: 20/09/2016. 24 Lei que dispõe sobre o funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e dá outras providências. 25 Essa lei “dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências.” Seu Art. 8 define crimes contra a pessoa com deficiência, com punição de reclusão de um a quatro anos e multa para quem cometer infrações relacionadas à discriminação por motivo de deficiência nos ambientes ou situações de trabalho ou emprego, acesso à educação e atendimento médico-hospitalar e ambulatorial. 26 A curatela se refere aos casos em que se aplicam, mediante ordem de autoridade jurídica, a interdição de sujeitos que já alcançaram a maioridade legal. Já a tutela reporta à interdição jurídica de sujeitos menores de idade,

cujos pais sejam falecidos ou que tenham perdido o pátrio poder de seus filhos e filhas. Nesse caso o tutor ou tutora deve ser um adulto, podendo ser qualquer parente ou pessoa próxima da criança ou adolescente.

Deficiência e violência em Portugal: do preconceito ao crime de ódio

Fernando Fontes O aumento da esperança média de vida, os avanços da medicina e o envelhecimento populacional nas sociedades ocidentais transformaram cada ser humano numa potencial pessoa com deficiência. A não consideração da deficiência e a ausência de ações no sentido de combater a opressão e a exclusão enfrentadas pelas pessoas com deficiência tem no presente, e terá certamente no futuro, um elevado custo para as nossas vidas. Esta situação é tanto mais gravosa quando situações de vulnerabilidade social e econômica se transformam em situações de vulnerabilidade física e psicológica face a fenômenos de violência. O presente capítulo considera o fenômeno da violência contra pessoas com deficiência em Portugal. Para tal, propõe-se uma análise do “crime de ódio deficientizador” ¹ (CHAKRABORTI e GARLAND, 2009; ROULSTONE, THOMAS e BALDERSTON, 2011), ancorado na concepção de violência enquanto forma de opressão (YOUNG, 1990). Por “crime de ódio deficientizador” entende-se uma ofensa criminal socialmente percepcionada como sendo motivada pelo preconceito face a pessoas com deficiência, incluindo as seguintes formas de violência física, verbal ou simbólica: abuso sexual, ameaça, assédio, intimidação, roubo, vandalismo, violação, tortura e assassinato. Na primeira parte, apresenta-se um enquadramento histórico e conceitual da noção de crime de ódio. Na segunda parte, faz-se uma contextualização do fenômeno de exclusão econômica e social das pessoas com deficiência na sociedade portuguesa, procurando ancorar nestas formas de exclusão e opressão o fenômeno da violência contra pessoas com deficiência. Na terceira parte, caracteriza-se o fenômeno de violência contra pessoas com deficiência em Portugal. Na quarta parte, examinam-se as disposições legais atualmente existentes em Portugal com vista à proteção das pessoas com deficiência, assinalando áreas de intervenção e imagens das pessoas com deficiência privilegiadas pelo legislador. Nesta última parte, avalia-se, ainda, a efetividade das leis de proteção vigentes em Portugal e exploram-se as potencialidades de um reconhecimento legal do crime de ódio sobre pessoas com deficiência. Violência e crimes de ódio: clarificações histórico-conceituais Como bem refere Hall (2005), as ofensas a que se referem os crimes de ódio nada têm de novo, a novidade advém unicamente do interesse da sociedade nas motivações que subjazem à escolha da vítima, nomeadamente o ódio ou preconceito. De acordo com Gerstenfeld (2004) o crime de ódio refere-se à perseguição de alguém percepcionado como não fazendo parte do grupo. Para este autor, o aspecto fundamental deste tipo de crime é o ataque à identidade da vítima mais do que a motivação por ódio. Para Perry (2001), os crimes de ódio correspondem a “crimes recado” ( message crimes ), i.e., crimes destinados a passar uma mensagem ameaçadora, não só para a vítima, mas para todo o grupo ou comunidade a que pertence; são, portanto, mensagens intimidatórias. A vítima é selecionada por aquilo que representa. A autora vai ainda mais longe (PERRY, 2009), ao afirmar que estes crimes são sintomáticos de processos sociais mais profundos de afirmação de poder por parte de determinados grupos sociais. Esta forma de violência emerge

como uma forma de manter atitudes e valores sociais hegemônicos e a própria desigualdade social existente, como uma forma de relembrar constantemente a posição social de cada um. Mais recentemente, Walters (2011) oferece-nos uma visão mais interessante, do ponto de vista dos crimes de ódio deficientizadores, ao defender que o preconceito do abusador face à vítima é a chave para reconhecer um crime de ódio. Historicamente, a noção de crime de ódio sofreu também um longo processo de maturação. Na verdade, em países como os Estados Unidos da América (EUA), a preocupação com este tipo de crime resultante do ódio e preconceito face ao outro é mesmo anterior à emergência da noção de crime de ódio em meados da década de 1980 (GERSTENFELD, 2004; HALL, 2005). O final da Guerra Civil dos EUA, a emergência do Ku Klux Klan e o ceticismo do estado federal norte-americano e dos diferentes estados face ao respeito dos direitos civis de todos os cidadãos independentemente da sua cor leva à aprovação do Civil Rights Act (GERSTENFELD, 2004). Este documento legal, aprovado pelo Congresso Americano em 1871, veio permitir ao estado federal processar qualquer pessoa que impeça outra do gozo dos seus direitos civis. O aumento da mobilização política em torno de incidentes de cariz racista e antissemita no final da década de 1970 e a ineficácia da legislação estatal e federal nos EUA levam a Anti-Defamation League , uma organização criada em 1913 para combater o antissemitismo, ² a preparar um regulamento – Model Ethnic Intimidation Statute – e a pressionar a sua aprovação por parte dos governos estaduais americanos (JENESS e GRATTET, 2001; GERNSTENFELD, 2004). Este documento apresenta um conjunto de disposições que preveem um aumento das penas a aplicar a toda a atividade criminal baseada no ódio, entre os diferentes grupos de atributos protegidos contavam-se inicialmente a raça, cor, religião, origem nacional e orientação sexual. Este estatuto modelo prevê ainda a recolha de dados referentes à aplicação da lei sobre crimes de ódio e a formação adequada das forças policiais. Nos EUA, este processo levou à aprovação de legislação sobre crimes de ódio, ao agravamento das penas de crimes de ódio e à obrigatoriedade do Departamento de Justiça de compilar dados sobre a aplicação da legislação de crimes de ódio em nível federal a partir de 1990 (GERNSTENFELD, 2004; HALL, 2005; BLEICH, 2008). A aprovação do Mathew Shepard Act pelo Congresso dos EUA, em 2009, veio alargar a legislação federal de crimes de ódio para incluir também crimes cometidos com base no gênero, orientação sexual, identidade de gênero e deficiência da vítima. Isto não significa, todavia, uma uniformidade entre os diferentes estados. Não obstante a generalização de legislação estadual sobre crimes de ódio, continua a persistir uma grande disparidade no que se refere à definição de crime de ódio e das categorias protegidas (HALL, 2005; BLEICH, 2008). Na Europa, apesar da longa história de crimes de ódio face a determinados grupos, para além de uma emergência mais tardia, o conceito de crime de ódio tem tido uma grande dificuldade de penetração e afirmação. Fatores como a centralidade do conceito de Direitos Humanos na Europa, a tendência para a inscrição de qualquer legislação sobre antidiscriminação e crimes de ódio nesta grande narrativa dos Direitos Humanos (GARLAND e

CHAKRABORTI, 2012) e o próprio historial da criação e desenvolvimento deste conceito e seus instrumentos ao nível europeu têm subalternizado e criado dúvidas quanto à utilização do conceito de crimes de ódio. A primeira utilização oficial por parte de um órgão europeu do conceito de crimes de ódio ocorreu numa Reunião do Conselho Ministerial da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) realizada em Maastricht, em 2003, e a primeira decisão oficial do Conselho Ministerial desta instituição relativa ao problema dos crimes de ódio data de 2009 (ODIHR, 2010). Este organismo define, assim, o crime de ódio como resultado de dois fatores: o crime tem de constituir uma ofensa criminal e tem de envolver a perseguição deliberada de uma pessoa resultante da sua pertença a determinado grupo face ao qual o abusador possui alguma forma de preconceito (ODIHR, 2010). O Conselho da Europa propôs uma definição alternativa de “ódio”, entendido como uma intensa antipatia ou inimizade. Como referem Garland e Chakraborti (2012), a definição do Conselho da Europa em nada ajudou ao desenvolvimento desta noção, em função da visão extremamente reducionista da noção de crime de ódio advogada, entendida aqui como algo muito forte. O reconhecimento e a legislação sobre crimes de ódio na Europa continuam, assim, muito restritos e pouco desenvolvidos (GARLAND e CHAKRABORTI, 2012). A realidade dos diferentes países europeus apresenta-se muito díspar e marcada pela história de cada país (GOODEY, 2008; GARLAND e CHAKRABORTI, 2012). Em geral, assiste-se à ausência de uma definição legal do conceito de crime de ódio, substituída por uma listagem de características da pessoa que a tornam vulnerável a ser vítima de um crime de ódio, e a privilegiar manifestações específicas de crimes de ódio em consonância com o passado histórico de cada país (GOODEY, 2008). Como referem Garland e Chakraborti (2012), a diferença existente entre os diferentes países europeus não se reduz à legislação existente em cada país, estendendo-se também aos crimes abrangidos e / ou grupos protegidos. Um inquérito realizado pela OSCE aos seus 47 países-membros revelou que: 19 países indicam a proteção da questão da etnicidade / nacionalidade na respectiva legislação nacional de, lato senso, “crimes de ódio”; 17 países indicam a raça; 13 referem incluir a religião; o mesmo número indica a criminalização do incitamento ao ódio com base na orientação sexual; apenas 11 indicam a existência de legislação específica sobre motivação homofóbica do crime como fator de agravamento; e ainda mais residual, emergindo em apenas 7 países, surge a questão da deficiência (ODIHR, 2010 apud GARLAND e CHAKRABORTI, 2012: 45). Não é, assim, pois de estranhar o privilegiar de determinadas categorias ou manifestações de crimes de ódio em detrimento de outras nos diferentes países europeus. Se no Reino Unido, em França e em Portugal o “crime de ódio” emerge sobretudo associado ao combate ao racismo, em países como a Alemanha e a Áustria este surge majoritariamente associado ao extremismo político de direita e ao antissemitismo (HALL, 2005; BLEICH, 2008; GOODEY, 2008). Nesse sentido, o caso do Reino Unido apresenta-se paradigmático. Não obstante este ser o país europeu onde a noção de crime de ódio registou um maior desenvolvimento institucional e acadêmico, o Reino Unido continua sem qualquer legislação específica sobre crimes de ódio. O país criou desde

cedo um vasto quadro legal de proibição à discriminação com base na cor, raça, etnia ou origem nacional ( Race Relations Act – 1965, 1968 e 1976), com base na religião ( Racial Relations Act – 2006) ou proibindo o incitamento ao ódio homofóbico ( Criminal Justice and Immigration Act – 2008) (HALL, 2005), mas, apesar da emergência do debate sobre crimes de ódio na década de 1990, em resultado do assassínio racista de Stephen Lawrence em Londres, em 1993, e dos ataques bombistas de cariz racista perpetrados também em Londres por David Copeland em 1999 (GARLAND e CHAKRABORTI, 2012), o país continua sem qualquer legislação de crimes de ódio. A diferença entre o Reino Unido e os países da Europa continental advém do reconhecimento institucional garantido a esta forma de crime, com a criação de várias instituições ao nível local, regional e nacional de apoio às vítimas e o reconhecimento por parte dos serviços policiais desta forma distinta de crime. Assim, desde 2000 que as forças policiais em Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte consideram a existência do crime de ódio para fins de registo e investigação criminal (ACPO, 2000 apud HALL, 2005). Problemas com a definição inicial de crime de ódio levaram à sua redefinição em 2005 de forma a clarificar o conceito (HALL, 2005). De acordo com a definição atual, tal como proposto pela Associação dos Chefes de Polícia ³ (ACPO) e seguida pelas forças policiais, por crime de ódio deve entender-se “qualquer incidente de ódio, que constitui uma infração penal, percebida pela vítima ou qualquer outra pessoa como sendo motivado por preconceito ou ódio” ⁴ (ACPO, 2005 apud HALL, 2005: 8). Tal como acontece na grande maioria dos países europeus, em Portugal não existe qualquer reconhecimento legal da noção de “crime de ódio”. Não obstante os trágicos acontecimentos de 1989 e 1995, que culminaram com os assassinatos de José Carvalho, líder do Partido Socialista Revolucionário (PSR), e de Alcindo Monteiro, jovem de origem cabo-verdiana, por motivos políticos e racistas, respectivamente, a lei portuguesa não reconhece o “crime de ódio” e Portugal é dos poucos países europeus a não recolher estatísticas referentes à ocorrência de crimes de ódio (GARLAND e CHAKRABORTI, 2012). Como se irá analisar mais adiante, o artigo 240.º do Código Penal (CP) continua a ser o principal instrumento de defesa face aos crimes cometidos com base na “raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (Artigo 240.º do CP), embora o legislador opte pela não utilização da noção de crime de ódio. Antes disso, urge contextualizar o fenômeno da exclusão econômica e social das pessoas com deficiência na sociedade portuguesa, e perceber de que forma é que estas formas de exclusão e opressão se articulam com o fenômeno da violência e crimes de ódio contra pessoas com deficiência. Deficiência e exclusão social O aumento das desigualdades sociais apresenta-se como um dos grandes desafios ao desenvolvimento neste novo milénio. A atual crise econômica da zona europeia iniciada em 2007 / 2008 constitui uma ameaça acrescida para os grupos mais vulneráveis. Tal como diferentes estudos têm revelado, existe uma forte ligação entre deficiência, pobreza e exclusão social (COLERIDGE, 1993; STONE, 2001). As pessoas com deficiência estão sobrerrepresentadas entre os grupos mais

pobres e mais excluídos socialmente, não só nos países menos desenvolvidos, mas também nos países economicamente mais desenvolvidos (BERESFORD, 1996; ZAIDI e BURCHARD, 2002; SHELDON, 2005, 2009). O estatuto socioeconômico das pessoas com deficiência, não resulta, todavia, de uma incapacidade das pessoas com deficiência para integrarem a sociedade ou o mercado de trabalho, mas, sim, da conjugação da ação do modo de produção capitalista (FINKELSTEIN, 1980; GLEESON, 1997; OLIVER, 1990; RUSSELL, 2002), com a operação de um conjunto de barreiras ambientais, culturais e psicológicas deficientizadoras. A emancipação das pessoas com deficiência só será possível através da substituição do modo de produção capitalista por um modo de produção mais igualitário, da eliminação destas barreiras e de uma efetivação da transversalidade da deficiência nas diferentes políticas governativas. No caso específico de Portugal, os relatórios, estudos e estatísticas recentes são reveladores da manutenção de uma flagrante situação de exclusão social das pessoas com deficiência e de uma inépcia legal e governativa na garantia e efetivação dos direitos das pessoas com deficiência (FONTES, 2009, 2014; MARTINS 2007; VEIGA, 2007; PORTUGAL et al., 2010, 2014; PINTO e TEIXEIRA, 2012). No que diz respeito à qualificação acadêmica, não obstante a inexistência de dados apurados nos censos de 2011, os censos de 2001 apontavam para a existência de baixos níveis de escolarização das pessoas com deficiência, reveladores das limitações na operacionalização da escola inclusiva. Tal como apurado nessa altura, a taxa de analfabetismo das pessoas com deficiência era de 37% face aos 26,4% apresentados pela população em geral, ficando-se a grande maioria pelo primeiro ciclo do ensino básico (GONÇALVES, 2003: 78). Ao nível das acessibilidades, os dados apurados pelos censos de 2011 dão conta, mais uma vez, deste quadro excludente e opressor das pessoas com deficiência. Os referidos dados também permitem concluir que o parque habitacional em Portugal é majoritariamente inacessível a deficientes motores. Os dados apurados pelos censos de 2011 relativamente à acessibilidade dos edifícios habitacionais para o caso da população com dificuldade em andar ou subir escadas são bastante elucidativos. Do total de 275 930 pessoas com dificuldades em andar ou subir escadas a viverem em edifícios habitacionais com três ou mais alojamentos, 60% (167 266) vivem em edifícios sem elevador e 61% vivem em edifícios com a entrada inacessível à circulação em cadeira de rodas (INE, 2012: 456). A falta de apoio na eliminação das barreiras físicas no domicílio apresenta-se, assim, como um fator impeditivo da participação das pessoas com deficiência na vida familiar e da comunidade e como um fator potenciador da criação de uma dependência na execução de tarefas básicas diárias. No que se refere à situação face ao trabalho e emprego, segundo dados dos censos de 2011, a taxa de atividade das pessoas com 15 ou mais anos com pelo menos uma dificuldade é de 22,07% face a 47,56% para a população portuguesa em geral. Situação idêntica se verifica ao nível da taxa de desemprego, que se cifrava, quando da realização dos censos de 2011, nos 13,18% para a população em geral e nos 19,19% para as pessoas com 15 ou

mais anos com pelo menos uma dificuldade. Estes dados são ainda mais problemáticos, mesmo tendo em consideração a atenuação produzida pelo fator idade, quando revelam que a grande maioria desta população inativa está reformada (79,73%), não obstante apenas 6,66% terem sido considerados incapazes para o trabalho pelas autoridades e de apenas 1,79% serem estudantes. Se se analisar o principal meio de vida desta população, verifica-se uma grande dependência face às prestações sociais do Estado comparativamente ao trabalho. Do total de pessoas com 15 ou mais anos com pelo menos uma dificuldade, 65,84% tem a reforma ou uma pensão como principal forma de sustento, sendo que os rendimentos do trabalho assumem centralidade para apenas 17,39% (INE, 2012). Este quadro de dependência familiar e estatal é tanto mais premente quando sabemos a grande pressão econômica exercida sobre as famílias portuguesas no atual contexto de crise econômica, os baixos níveis de proteção e de redistribuição social alcançados pelo Estado-Providência português (HESPANHA, 2001), que se situam abaixo da média europeia (GOUGH, 1996), e os custos acrescidos de se viver com uma deficiência numa sociedade deficientizadora como é o caso de Portugal. Um estudo recente realizado em Portugal, considerando os custos de oportunidade (educação, emprego, etc.) e os custos acrescidos para fazer face às barreiras de uma sociedade organizada de forma não inclusiva, demonstra precisamente que o custo de vida adicional para os agregados familiares com pessoas com deficiência se cifra entre os 4103 euros e os 25 300 euros por ano (PORTUGAL et al., 2010, 2014). Este cenário de exclusão e de dependência das pessoas com deficiência na sociedade portuguesa é propiciador não só de uma naturalização da sua imagem como dependentes e incapazes de gerirem as suas vidas, de um silenciar das suas vozes nas diferentes esferas da vida social e familiar, da sua exposição a fenômenos de violência e de crimes de ódio, mas também da construção da sua vulnerabilidade. Violência direcionada para pessoas com deficiência em Portugal Comparativamente à população em geral, as pessoas com deficiência apresentam um maior risco e uma maior incidência de fenômenos de violência (ONU, 2006; QUARMBY, 2008; ROULSTONE et al., 2011; UE, 2011), com especial destaque para as mulheres e pessoas com dificuldades de aprendizagem, em meio familiar e / ou institucional (BELEZA, 2003; OPM, 2009; INR, 2010). No entanto, no contexto nacional, apesar do recente investimento em programas de prevenção da violência (FERREIRA et al., 2007; CIG, 2008), registra-se uma ausência de investigação e intervenção no campo dos crimes de ódio (INR, 2010). Acresce a inexistência de dados que permitam conhecer a acumulação de fatores de discriminação, condicionando uma análise interseccional da violência direcionada a pessoas com deficiência (OPM, 2009) e o fato de Portugal continuar a ser um dos poucos países europeus a não compilar dados sobre crimes de ódio (GARLAND e CHAKRABORTI, 2012), como atrás se assinalou. Os dados sobre violência contra pessoas com deficiência em Portugal são extremamente escassos. Em 2013, era do conhecimento público que havia

992 crianças e jovens com deficiência a serem acompanhados pela Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco (1,4% do total de casos acompanhados por esta entidade) (CNPCJR, 2014: 97). Tal como o relatório especifica, a grande maioria destas crianças e jovens estava a ser acompanhada devido a cinco grandes problemáticas: Negligência; Exposição a comportamentos que possam comprometer o bemestar e desenvolvimento da criança; Situações de perigo em que esteja em causa o Direito à Educação, a Criança / Jovem assume comportamentos que afectam o seu bem-estar e os Mau trato físico [sic]. (CNPCJR, 2014: 169) Os relatórios anuais de segurança interna também não apresentam muitos dados sobre esta realidade em Portugal, apenas os relatórios referentes aos anos 2006, 2007 e 2008 indicam o número de pessoas detidas por abuso sexual de pessoas incapazes de resistência, isto é, pessoas com deficiência, grávidas e crianças: 11, 7 e 2 pessoas respectivamente. De assinalar o tratamento das pessoas com deficiência como “particularmente indefesas” e incapazes de resistência, equiparadas a crianças e a mulheres grávidas. Este entendimento das pessoas com deficiência tem dominado a mentalidade das autoridades nacionais e do legislador, contribuindo desta forma para uma menorização e infantilização das pessoas com deficiência em Portugal, como se irá analisar em maior detalhe na próxima seção. Uma análise efetuada aos artigos do jornal Correio da Manhã entre os anos de 2006 e 2012 pode ajudar a desvendar um pouco a realidade deste tipo de crimes na sociedade portuguesa. Tal como foi possível verificar, neste período de sete anos foram identificados 129 casos de violência contra pessoas com deficiência em Portugal, que vão desde a violação, o abuso sexual, a agressão física e o roubo até a escravização, a fraude e a prostituição. No que respeita ao perfil das vítimas, os dados compilados evidenciam uma preponderância de vítimas do sexo feminino, de idades jovens, com dificuldades de aprendizagem. Assim, 70% das vítimas são mulheres e, destas, 37% têm idades inferiores a 20 anos. Pelo contrário, os abusadores são majoritariamente homens (90%) e metade deles (50%) com idades compreendidas entre os 30 e os 60 anos. Uma análise da familiaridade dos abusadores face às vítimas demonstra que a grande maioria dos abusadores (75%) são conhecidos das vítimas, quer por viverem na mesma comunidade / instituição ou por serem vizinhos, sendo bastante significativo o número de abusadores que são membros da família das vítimas (36%). Este último aspecto vem corroborar o questionamento da ideia de que os crimes de ódio são perpetrados majoritariamente por estranhos (MASON, 2005; IGANSKI, 2008; MASON-BISH, 2010). Uma análise pelo tipo de crime mais preponderante revela que a violação e o abuso sexual contabilizam 50% dos crimes cometidos (32% e 18%, respectivamente), a agressão física atinge 18% dos crimes identificados, seguida do rapto e do homicídio, ambos com 4%. De assinalar a identificação de sete crimes de homicídio de pessoas com deficiência com contornos de crime de ódio deficientizador. Não obstante a elevada incidência dos crimes de violação, abuso sexual e agressão física para homens (48%) e mulheres

(78%) com deficiência, uma análise comparativa de gênero por tipo de crime demonstra que as mulheres constituem as principais vítimas deste tipo de crimes, indicando também uma sobrerrepresentação de vítimas masculinas em crimes de escravização, maus-tratos, ameaça verbal e roubo. Tal observação é corroborada por relatórios internacionais que estimam que as mulheres com deficiência apresentam uma probabilidade três vezes superior à dos homens de serem vítimas de abuso físico e sexual (Michelle Bachelet, ex-Diretora Executiva da ONU Mulheres). Os dados apurados também são indicativos do caráter continuado da vitimização das pessoas com deficiência. Assim, cerca de 48% dos crimes prolongam-se ao longo de meses ou mesmo anos, sendo ainda mais gravoso no caso das mulheres e raparigas com deficiência vítimas de violação, abuso sexual e agressão física. Não obstante a falta de representatividade dos dados recolhidos, uma vez que se trata apenas de casos denunciados às autoridades e que conseguiram atrair a atenção dos meios de comunicação pelo seu valor noticioso, estes poderão ser utilizados como um barômetro desta realidade em nível nacional. A grande maioria destes crimes continua a ser, pelo perfil traçado, silenciada pelos meios de comunicação, pela sociedade, pelas vítimas e pelas suas famílias, em resultado do seu não reconhecimento e consequente falta de consideração, e devido a relações de poder existentes e / ou a noções de vergonha. O sistema legal português na proteção face a crimes deficientizadores O principal documento de proteção das pessoas com deficiência em Portugal é o Art.º 71.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Tal como define este artigo: 1. Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados. 2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores. 3. O Estado apoia as organizações de cidadãos portadores de deficiência. A CRP representa, portanto, o ponto de viragem para as pessoas com deficiência em Portugal, perspectivadas como cidadãs, e o início da responsabilização do Estado por todos os seus cidadãos. A ausência de legislação específica impediu, todavia, a eliminação de uma ideologia menorizadora das pessoas com deficiência, sedimentada ao longo dos tempos e que impactou em toda a legislação posterior.

Resultando parcialmente de processos mais amplos de modernização e europeização da sociedade portuguesa, mas também de inquietações manifestadas pelas organizações de pessoas com deficiência (FONTES, 2011), em 2006 foi publicada a lei antidiscriminação das pessoas com deficiência em Portugal (Lei 46/2006, de 28/08/2006). O impacto desta lei tem sido, todavia, limitado, como revelam os relatórios anuais apresentados pelo INR (INR, 2013, 2014). Entre 2007 e 2012, a média anual de queixas apresentadas cifrou-se nas 82, com um máximo de 131 queixas no ano de 2012 e um mínimo de 47 no ano de 2009 (INR, 2013). Em 2013 foi atingido em Portugal um número recorde de queixas (366) por discriminação com base na deficiência (INR, 2014). Não obstante o fato de o aumento acentuado do número de queixas no último relatório do INR vir acompanhado de uma maior diversificação dos setores de incidência das queixas, só os próximos anos permitirão verificar o caráter conjuntural ou estrutural dos dados apurados recentemente. Fatores como a concentração até muito recentemente das queixas apresentadas na área das acessibilidades (INR, 2013) e a elevada percentagem de pessoas com deficiência que num estudo de 2007 revelaram nunca se terem sentido discriminadas na sociedade portuguesa (entre 92% e 97%) (CRPG / ISCTE, 2007: 96) parecem reveladores não só de um desconhecimento das pessoas com deficiência face aos seus direitos, mas também de uma fraca politização das pessoas com deficiência em Portugal. Por outro lado, o caráter inconsequente da grande maioria das queixas apresentadas, para além de poder constituir um fator desmotivador à apresentação de novas queixas e à reivindicação de direitos por parte das pessoas com deficiência, parece também evidenciar uma distância entre a lei formal e a prática social, aspecto revelador das insuficiências, inconsistências e risco de “captura” (KRIEGER, 2003) desta lei. Finalmente, trata-se de uma legislação de natureza mais reativa que proativa. Na verdade, a lei antidiscriminação apenas define as práticas que devem ser consideradas discriminatórias, as compensações devidas aos queixosos e as penalizações dos infratores, o papel das organizações de pessoas com deficiência e o papel do INR na monitorização da aplicação da lei. Todavia, continua a faltar a definição do que se entende por deficiência, a implementação de medidas proativas de promoção de práticas não discriminatórias, bem como de mecanismos de monitorização das barreiras à participação das pessoas com deficiência (ROULSTONE e WARREN, 2006). O Código Penal Português (CPP) constitui uma terceira fonte de proteção das pessoas com deficiência face a fenômenos de violência de natureza diversa. Na sua seção sobre crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, o artigo 240.º define aquilo que podemos considerar, lato senso, uma disposição de crimes de ódio, sem nunca referir este termo, definindo os campos com base nos quais a discriminação deve ser definida e a respectiva penalização. A atual formulação deste artigo, tal como resulta da Lei Orgânica n.º 1/2015, de 8 de janeiro, identifica e pune os crimes cometidos com base nos seguintes fatores: “raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (Artigo 240.º do Código Penal). Esta enunciação resulta, contudo, de alterações e acréscimos ao longo dos tempos. A punição do genocídio e da discriminação de “uma comunidade ou um grupo nacional, étnico, racial, religioso ou social” já se encontrava prevista no artigo 189.º do Código Penal de 1982,

sendo reforçada no CP de 1995, que desdobra o artigo anterior nos artigos 239.º e 249.º, reiterando a formulação de 1982. A revisão do CP de 1998 (Lei n.º 65/98, de 2 de setembro) acrescentou a “origem nacional” à “origem étnica” na lista de fatores motivadores do crime. Em 2007, foi dado um novo passo na atualização desta disposição ao introduzir o sexo e a orientação sexual (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro) e, em 2013, foi acrescentada a identidade de gênero (Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro). Como este capítulo revela, a deficiência encontra-se ainda ausente dos crimes resultantes de fenômenos de discriminação previstos no CPP. A proteção oferecida às pessoas com deficiência no âmbito do CPP baseia-se na ideia de vulnerabilidade, incluindo a referência a esta condição de vulnerabilidade no seu articulado para justificar uma maior perversidade ou gravidade dos atos praticados e agravar as penas a aplicar. Isto é visível, por exemplo, no artigo 132.º do Código Penal, que contempla o “homicídio qualificado”, em que se refere: 2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) c) Praticar o fato contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; (…) f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de gênero da vítima; Como resulta do artigo anterior, a deficiência da vítima, tal como acontece com o grupo racial, religioso, político, a origem étnica ou nacional, o sexo, a orientação sexual ou a identidade de gênero, emerge como uma das condições reveladoras da especial perversidade do criminoso. A diferença da deficiência face às restantes condições suscetíveis de produzirem um agravamento da pena aplicável advém da sua natureza diferencial aos olhos do legislador. Assim, contrariamente às restantes condições aqui enunciadas, a deficiência emerge não como uma condição particularmente exposta ao ódio ou ao preconceito face às pessoas com deficiência, mas, sim, como uma forma de vulnerabilidade, retratando as pessoas com deficiência como vulneráveis e indefesas, equiparáveis a crianças, idosos, mulheres grávidas ou pessoas doentes. Esta mesma lógica é reproduzida de forma clara noutros artigos do CPP, nomeadamente no artigo 145.º (Ofensa à integridade física qualificada), no artigo 152.º (violência doméstica), no artigo 155.º (agravação dos crimes de ameaça e coação previstos nos artigos 153.º e 154.º, respectivamente), no artigo 158.º (sequestro), no artigo 161.º (rapto) e no artigo 218.º (burla qualificada). Esta concepção emerge ainda de forma velada nos artigos 160.º (Tráfico de pessoas), 165.º (Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência), 169.º (Lenocínio) e 175.º (Lenocínio de menores). Aqui, o legislador considera como agravante da pena prevista para cada um dos casos enunciados

situações de “incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima”, sem que haja uma referência explícita à deficiência. Não questionando o agravamento das penas previsto para crimes exercidos sobre pessoas com deficiência, urge, todavia, alertar para a necessidade de reconhecimento do preconceito e do ódio que enforma muitas destas agressões, violações e abusos sofridos pelas pessoas com deficiência. Tal como acontece no caso inglês, onde a lei constrói os crimes de ódio de uma forma distinta dos crimes direcionados a pessoas consideradas vulneráveis (ROULSTONE et al., 2011: 352), também em Portugal a lei funciona com noções estereotipadas de ódio e vulnerabilidade. A legislação portuguesa apresenta assim uma abordagem diferente para os crimes cometidos com base na origem étnica, cor da pele ou raça, origem nacional, religião, gênero, orientação sexual e para os crimes cometidos com base na deficiência. Se, no primeiro caso, o legislador difunde a mensagem que quaisquer formas de violência baseadas nesses aspectos são fortemente censuráveis pela sociedade, no caso da violência contra pessoas com deficiência, o Estado usa uma visão normalista, que se baseia na ideia de “normal” para desvalorizar a deficiência e representar as pessoas com deficiência como vulneráveis e “fracas”, e desta forma culpando-as também pela sua própria vitimização e aumentando o estigma associado à deficiência. Se, no primeiro caso, parece tratar-se de um problema social e coletivo a necessitar de solução, no caso da deficiência, parece tratar-se de um problema individual a necessitar de medidas de proteção individualizadas. Em suma, a ausência de uma visão social da deficiência por parte do legislador impediu o reconhecimento do preconceito e do ódio face à deficiência e às pessoas com deficiência como fator motivador de muitos dos crimes cometidos contra as pessoas com deficiência. Urge, assim, reconhecer que a maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência identificada pelo quadro legal português resulta de ideias preconcebidas sobre a deficiência. Importa, desta forma, reconhecer a importância dos processos culturais e dos discursos na criação da deficiência, entendida como uma forma de opressão. A discriminação e opressão das pessoas com deficiência nas sociedades modernas é um fenômeno multifacetado com diferentes dimensões, em que se inclui o preconceito face à deficiência. O preconceito face à deficiência, longe de ser um fenômeno isolado, apresenta-se como um traço dominante das nossas sociedades, só assim é possível entender as condições objetivas de existência da grande maioria das pessoas com deficiência, marcadas por fenômenos de pobreza, isolamento social, não consideração das suas necessidades e dos seus direitos, e não reconhecimento das suas competências. Estes fenômenos, que se consubstanciam em situações de opressão nas mais variadas esferas da vida pública e privada das pessoas com deficiência, e que nos permitem conceitualizar a deficiência como uma forma de opressão social, têm na sua base a ideia da pessoa com deficiência como um ser menos válido, porventura menos humano e, portanto, com menos direitos face às pessoas sem deficiência, consideradas normais neste modelo de entendimento dicotômico do que seja a natureza humana. Todos estes preconceitos têm, assim, complexos fenômenos de alterização da pessoa com deficiência na sua base, que permitem a sua desqualificação e desumanização, em que a

corporalidade das pessoas com deficiência ⁵ emerge como a face visível da diferença, e o diferente é rejeitado e desqualificado à categoria de subhumano. Conforme argumenta Shakespeare (1997), o preconceito não existe apenas nas relações interpessoais, mas está implícito também nas representações culturais, na linguagem e na socialização. Em suma, a lei portuguesa denota, pois, a ausência de uma articulação efetiva com uma dimensão política e um reconhecimento histórico que perceba a opressão das pessoas com deficiência dentro do mesmo quadro paradigmático que naturaliza a deficiência, individualiza as experiências dos sujeitos percepcionados como deficientes, e que faz equivaler a ideia de deficiência a uma vulnerabilidade tida como dada, no fundo, a uma vitimização prévia à própria violência que agride. O não reconhecimento do preconceito e do ódio como estando a montante de muita da violência sobre as pessoas com deficiência e a porosidade do sistema legal português face a concepções socialmente dominantes da deficiência faz com que o nosso sistema de justiça criminal continue a falhar àqueles e aquelas que, supostamente, deveria proteger. Em primeiro lugar, uma análise das sentenças e extratos de sentenças a que tive acesso nesta área revela que, por exemplo, é muito difícil a uma pessoa com deficiência provar que foi vítima de abuso sexual ou violação caso não existam provas médicas de penetração e / ou outras testemunhas sem deficiência. Na verdade, as vítimas com deficiência são frequentemente consideradas testemunhas não credíveis, o que faz com que os abusadores acabem sem qualquer punição ou punidos por abusos isolados e não pelo abuso continuado das vítimas. Em segundo lugar, existe uma dupla penalização das pessoas com deficiência. Por um lado, por parte dos juízes, que fazem avaliações pouco sensíveis da vulnerabilidade das vítimas face aos agressores, sem consideração pelas relações de poder ou de dependência econômica existentes. Por outro lado, esta penalização é produzida pelos serviços sociais, que frequentemente promovem medidas de intervenção que, enveredando pela institucionalização da vítima como forma de afastamento face aos agressores, acabam por ditar o seu afastamento da comunidade. O quadro legal português cria, desta forma, uma hierarquia entre fatores de discriminação que, para além de ser injusta, ao favorecer determinados grupos em detrimento de outros, não protege as pessoas com deficiência face ao preconceito. Tendo em conta as palavras de Neil Chakraborti face à mudança operada no contexto britânico – “a emergência do discurso dos crimes de ódio facilitou a mudança das atitudes políticas e culturais face ao preconceito relativamente a uma diversidade de minorias étnicas” (2011: 4) –, bem como o impacto da violência sobre as pessoas com deficiência em Portugal e a falta de eficácia jurídica na proteção das pessoas com deficiência no dia-a-dia, urge proceder a uma desconstrução das ideias dominantes sobre ódio e vulnerabilidade de forma a reconhecer legalmente os crimes de ódio sobre pessoas com deficiência ou deficientizadores como uma materialização da discriminação social.

Conclusão Como foi possível verificar ao longo deste capítulo, apesar dos avanços verificados em Portugal após 1974, com o restabelecimento da democracia e estabelecimento de direitos civis, políticos e sociais, a discriminação das pessoas com deficiência continua a ser uma realidade na sociedade portuguesa, colocando as pessoas com deficiência numa situação de grande dependência e vulnerabilidade face às suas famílias e comunidades. A violência contra as pessoas com deficiência, não obstante a sua invisibilidade e invisibilização social, constitui um problema incontornável em Portugal. Este fenômeno assume na sociedade portuguesa diferentes facetas que, na grande maioria dos casos, emergem de forma interligada e justaposta, e que vão desde a violência social e econômica resultante de um Estado-Providência incapaz de proporcionar vidas condignas às pessoas com deficiência, a um mercado de trabalho que as torna dispensáveis, a um ambiente construído que restringe a sua atividade e liberdade de movimento, até à violência física, psicológica e sexual que se alimenta de ideias menorizadoras e deficientizadoras das pessoas com deficiência. A proteção das pessoas com deficiência diante destes fenômenos de violência física, psicológica e sexual, alicerçados no ódio e preconceito face às pessoas com deficiência, baseia-se apenas na ideia de vulnerabilidade. A inclusão desta condição de vulnerabilidade emerge como o requisito necessário para o aumento das penas a aplicar sobre aqueles e aquelas que exerçam alguma forma de violência sobre as pessoas com deficiência, negligenciando o preconceito e o ódio que, muitas vezes, subjaz e a esse tipo de fenômenos, tal como acontece no caso da violência contra pessoas de outro grupo racial, religioso, político, de origem étnica ou nacional diferenciada, de sexo, orientação sexual ou a identidade de gênero diferente. Assim, a deficiência apresenta aos olhos do legislador uma natureza diferencial das diferentes formas de discriminação social legalmente reconhecidas. A análise aqui apresentada do Código Penal português é bastante reveladora em reação a isso. Em primeiro lugar, a proteção oferecida por este documento legal às pessoas com deficiência face a fenômenos de violência alicerça-se na ideia das pessoas com deficiência como vulneráveis ao crime e à violência em vez de se estruturar em torno da ideia de que as pessoas com deficiência são vulneráveis ao risco de serem vitimizadas devido à sua menorização e a ideias pré-concebidas de deficiência. Em segundo lugar, assinala-se a presença de uma visão normalizadora, que tem por base um conceito abstrato e uniformizador de cidadania. Finalmente, este documento angular de proteção de todos os cidadãos nacionais apresenta o fenômeno de violência sobre pessoas com deficiência como um problema individual que necessita de medidas de proteção individualizadas. Urge, pois, desconstruir ideias preconcebidas de ódio e de vulnerabilidade, reconhecer os crimes de ódio na área da deficiência como uma forma de discriminação social e depurar o sistema legal existente de alguns dos preconceitos socialmente dominantes sobre a deficiência e as pessoas com deficiência.

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O paradoxo da deficiência: a guetização do visual Lennard J. Davis O conceito de gueto é um algoritmo complexo sobre a exclusão e a inclusão. O gueto original, em Veneza, foi concebido tanto para separar como para

proteger a população judaica. Os muros eram permeáveis, uma vez que os portões estavam abertos durante o dia e fechados à noite. Assim, havia pontos positivos e negativos sobre estar num gueto. Os movimentos por vezes eram restringidos, mas também se estava protegido de ataques. Além disso, também era possível que uma cultura e um modo de vida minoritário pudessem prosperar no interior de um Estado soberano dominante e poderoso. Mais tarde, nos guetos da Europa Oriental e da Alemanha, a permeabilidade do gueto podia ser alterada. Durante os pogrons, as portas podiam ser fechadas para proteger os judeus, mas durante o Natal e a Páscoa as portas podiam ser fechadas do exterior para impedir os judeus de circular fora do gueto. Por isso, é importante refletir sobre o conceito de guetização, tanto enquanto protetor como punitivo, permitindo a existência de um estado de exceção numa parte de um Estado soberano. Ao refletir sobre a deficiência, e parafraseando Robert Frost, é bastante importante o que está intramuros e o que está extramuros – e quem é que abre ou fecha os portões. Se pensarmos na arte produzida por pessoas com deficiência, verificamos que está a ser guetizada de um modo muito particular. Muito poucas pessoas no público em geral têm noção da deficiência como tema de arte e menos ainda são as que sabem que determinados artistas são pessoas com deficiência, graças à segregação (como se houvesse muros) dos artistas com deficiência em relação à cena artística em geral. Alguém como Chuck Close, por exemplo, é conhecido quer como artista, quer como pessoa com deficiência, mas ninguém pensa na sua arte como “arte deficiente”. O seu site não faz nenhuma menção à sua deficiência. ¹ Nos EUA, nos círculos da deficiência e / ou da surdez, as obras de Riva Lehrer, de Sunny Taylor, ou de Joe Grigely são bem conhecidas; no entanto, fora destes círculos, seus trabalhos ainda não conseguiram chegar ao público em nível nacional ou internacional. Os artistas com deficiência estão presos num paradoxo. Tudo bem que os artistas com deficiência criem arte – afinal, há algum grupo que não deva criar arte? –, mas se criarem arte que seja estritamente sobre a deficiência, não vão atrair a grande maioria das pessoas “normais”. Devido à sua especificidade, a sua arte será vista como tendo falta de universalidade. No entanto, se sua arte não lidar de forma óbvia com a deficiência, a sua condição de pessoas com deficiência vai parecer irrelevante. Por exemplo, a obra de Beethoven não é vista como “música surda”, ² embora seja um fato conhecido que Beethoven acabou por ficar surdo. Ninguém analisa a sua música posterior à surdez em termos do que é que a música tem a dizer sobre a sua condição de pessoa surda. Da mesma forma, a obra de Close, considerada como universal, não é analisada por ter sido feita por um paraplégico. Parece que, quanto mais conhecido (logo, mais universal) se torna o trabalho de artistas com deficiência, menos a deficiência é tida em conta no reconhecimento do valor do trabalho. Evelyn Glennie, que, sendo surda, toca bateria, faz os possíveis por minimizar a sua surdez e, uma vez que tocou nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, muitas pessoas nem sequer têm noção de que ela é surda.

A situação é um pouco semelhante à de artistas negros ou de determinadas nacionalidades ou etnias. Espera-se de um artista que se considera ter uma “identidade” reconhecível que pinte a partir da experiência do seu grupo, ou seja, a partir do gueto. É claro que, ao contrário do que sucede quando se tem a identidade de pessoa com deficiência, os membros de muitas das identidades minoritárias tradicionais são agora valorizados pelo mundo da cultura em geral. Assim, espera-se dos artistas aborígenes que pintem sobre temas aborígenes usando um estilo aborígene – e, se não o fizerem, quão vendável é a sua arte? Um artista afro-americano que não pinte sobre temas do grupo a que pertence, ou que não use a paleta de cores que se espera que use, provavelmente tem poucas hipóteses de singrar no mundo da arte. Se Close fosse um artista aborígene, será que o seu trabalho seria tão apreciado e vendido com a mesma facilidade? Ninguém se refere à pintura de Close como arte anglo-saxônica. Normalmente não se pensa em Camille Pissarro como um artista judeu. Quando se é um artista e o trabalho se torna universalmente reconhecido, então a sua identidade particular torna-se menos importante. Outra maneira de dizer isto é que, se parecer que a criação é feita a partir do gueto, o trabalho tem de estar associado a esse local imaterial. Mas, se se sair do gueto, o trabalho passa a estar ligado a um espaço diferente. Pretendo começar a definir estes espaços alternativos. Se o gueto representa um estado de exceção na área mais ampla da soberania, têm de existir espaços paralelos. Um deles é o condomínio fechado, que é um tipo de gueto, mas que, em vez de trancar pessoas lá dentro, bloqueia o acesso a pessoas de fora. Pode considerar-se o mundo da arte internacional ou Hollywood como uma espécie de gueto ao contrário – o condomínio fechado. Ao pensar em espaços, talvez seja de acrescentar a ideia de espaços comuns. Não sendo públicos (ou seja, pertencentes ao Estado) nem privados (pertencentes a indivíduos ou empresas), os espaços comuns (quer materiais, quer imateriais) representam, numa espécie de diagrama de Venn, a interseção entre a esfera privada e a pública. E há espaços a que chamamos “públicos”, como os centros comerciais e alguns parques, que, de fato, são privados e estão fora da esfera da liberdade de expressão, entre outras. Hardt e Negri consideram a ideia do bem comum como “resultados da produção social que são necessários para a interação social e para aumentar a produção, como saberes, linguagens, códigos, informações, afetos, etc.” (HARDT e NEGRI, 2009: viii). Ao pensar através da questão do gueto, temos de entender que espaço representa o gueto e a que outras formas de espaço imaterial se opõe. Tomemos, por exemplo, o espaço público (mas não comunal) de Trafalgar Square, local em que foi exibida a estátua Alison Lapper Pregnant (2005). A estátua pode ser pensada como uma importante obra de arte produzida por alguém com deficiência, mas não podemos esquecer que o artista que a produziu, Marc Quinn, não é, ele próprio, uma pessoa com deficiência. Também nos é dito, de acordo com o site de Quinn, para pensar em Lapper como “uma mulher que nasceu sem braços”, enquanto o site de Lapper a descreve como uma “artista britânica”. A omissão da artista com deficiência e a sua substituição pelo objeto deficiente é uma elisão reveladora. O mundo da arte está fascinado pela deficiência – muitas vezes considerada como deformidade ou algo grotesco –, mas apenas como tema e geralmente vista

de fora para dentro. A experiência vivida de uma pessoa com deficiência transformada em arte é, na mente popular, relegada para questões em torno da reabilitação e da forma de lidar com a deficiência, não como um assunto digno da grande arte ( Le déjeuner sur l’herbe , 1862-1863, de Édouard Manet, teria sido muito mais escandaloso se fosse com homens cegos e uma mulher nua, grávida e com deficiência – é difícil imaginar que viesse a superar a sua notoriedade inicial para se tornar grande arte). As proporções heroicas de Alison Lapper Pregnant podem muito bem ser vistas como uma declaração oportuna sobre a passagem da deficiência do abjeto para o ideal, mas o trabalho também destaca o forte contraste cultural entre a figura monumental idealizada e o corpo feminino anormal – nu, grávido e deficiente. Por outras palavras, pode perguntar-se se o formato heroico do mármore monumental foi feito para idealizar a deficiência ou para contrastar as proporções e qualidades não convencionais do objeto considerado. Ambas as interpretações – tornar a deficiência heroica ou problematizar o tornar a deficiência heroica – são defensáveis, mas o que fica é que a estátua só faz sentido num mundo em que a deficiência está nas margens. Caso contrário, a estátua seria entendida da mesma forma que a estátua do almirante Nelson em Trafalgar Square é normalmente considerada. Ninguém para dizer da estátua de Nelson: “Olha, um branco maneta, zarolho e doente crônico!” Isto apesar do fato de a estátua do herói realmente mostrar que falta um braço a Nelson (embora esta característica não seja facilmente perceptível para um observador no chão). O fato é que a estátua que representa Alison Lapper é famosa enquanto o trabalho artístico dela não é, e muitas das reportagens sobre ela acabam por ser histórias que retratam o lado humano e não o seu talento como artista. O trabalho de Quinn é visto como universal enquanto o de Lapper aparece num site para artistas que usam os pés e a boca para pintar. Outra questão que desempenha um papel de destaque no paradoxo da deficiência é que a arte e a deficiência têm uma forte ligação na área da terapia ocupacional. Geralmente, o fato de uma pessoa com deficiência produzir arte pode ser encarado como Terapia Ocupacional, enquanto no mundo da arte produzida por pessoas com deficiência isso é considerado de forma séria. Mas uma característica que resulta desta associação à Terapia Ocupacional é que não há praticamente qualquer avaliação crítica da arte produzida por pessoas com deficiência. Aaron Williamson escreve: É como se a crítica fosse proibida e, mesmo em excelentes revistas como a Disability Arts on-line , é difícil encontrar uma crítica negativa ou até mesmo uma crítica construtiva “negativa”. Assim, a arte produzida por pessoas com deficiência enquanto tradição pode estar em perigo de estagnação por ser totalmente acrítica em relação a si mesma. (WILLIAMSON, 2011: s.p.) Na verdade, considero que a ausência de uma matriz de atividades críticas se deve à associação à Terapia Ocupacional, mas também ao paradoxo de que a arte específica da deficiência só pode ser arte específica da deficiência se estiver associada à identidade específica da deficiência. Como uma arte identitária não é só guetizada ipso facto, mas tem também uma responsabilidade ou uma obrigação de ser celebrativa em relação à

deficiência. Novamente, trata-se de uma questão de quem é que controla os portões do gueto. Pode-se argumentar que a arte produzida por pessoas com deficiência está a ser mantida dentro dos limites de um gueto por causa da mensagem implícita de que não se critica esta arte, por isso, ela não faz parte dos espaços comuns, sendo antes a produção de um subconjunto específico institucionalizado – no sentido mais amplo – de artistas que criam arte sobre si próprios ou por causa da sua experiência. É óbvio que há artistas que conseguem sair da órbita da Terapia Ocupacional. É o caso de Judith Scott – embora tenha permanecido numa instituição toda a sua vida e a sua arte seja o resultado direto da sua Terapia Ocupacional. É também o caso de Adolf Wölfli – cujo trabalho é um subproduto do seu internamento num hospital psiquiátrico no início do século XX. O seu trabalho tornou-se bastante colecionável e influente à medida que a arte “primitiva” foi sendo incorporada na arte dominante. Em ambos os casos, os portões das instituições foram abertos, a partir do exterior, por várias razões relacionadas com a curiosidade e o voyeurismo, e a arte foi universalizada no espaço público de propriedade privada. Gostaria agora de desviar o foco da arte tridimensional e gráfica para o cinema e a televisão. As representações de pessoas com deficiência ocorrem regularmente nos meios cinematográficos. Neste sentido, a deficiência representa uma propriedade comum (se se pode designar algo deste modo) nos espaços comuns imateriais. A deficiência circula nestes espaços comuns imateriais como um conjunto de imagens, atitudes linguísticas e pensamento / sentimento “coletivo” e, no entanto, as próprias pessoas com deficiência não circulam e ocupam os espaços comuns da mesma forma que as suas imagos ocupam. As imagens parecem preencher várias funções, enquanto o indivíduo está quase sempre marcado como diferente e, desse modo, é mantido no gueto. A sua diferença, na lógica da narrativa fílmica, raramente é explorada na sua complexidade vivida e é frequentemente enquadrada como uma metáfora para um desafio que precisa ser superado, uma necessidade que precisa ser atendida, uma solução para um desejo de realização e plenitude. Neste sentido, a deficiência torna-se heroica no cinema tanto quanto na escultura que representa Lapper. Por isso, a ideia da deficiência como um desafio universaliza e desloca a experiência vivida mais banal de uma pessoa com deficiência. Como parte desse deslocamento, a personagem fílmica com deficiência torna-se agora um substituto para qualquer pessoa e para a forma como cada pessoa pode lidar com a exigência da condição humana. Assim, tal como Lapper se tornou um ponto nodal para as questões sobre quem pode ou deve ser representado de forma heroica, também as personagens com deficiência nos filmes levantam questões ao público comum sobre o que significa ser humano e não sobre o que é ser uma pessoa com deficiência. Paradoxalmente, portanto, a tentativa cinematográfica de fechar o gueto onde vivem as imagens da deficiência acaba por recriar o gueto de outra forma ao trazer essas imagens para o centro do ecrã. O que está então a ser colocado agora em quarentena no gueto não é o fato objetivo da deficiência, mas sim a experiência vivida de ser uma pessoa com deficiência numa cultura incapacitante. Deste modo, a pessoa com deficiência enquanto pessoa que vive a sua vida subjetivamente é relegada para a área fechada do

gueto originário, enquanto a parte objetiva da deficiência – a parte que se traduz para o desafio universal – emerge a partir dos limites dos muros do gueto e torna-se parte do espaço público (isto é, do espaço público neoliberal de propriedade privada). Os espectadores de cinema não ganham a experiência subjetiva da deficiência: o que recebem é um modelo no qual podem mapear as suas próprias crenças de pessoas sem deficiência. Esta guetização em termos fílmicos é particularmente notável na convenção de ter atores sem deficiência a interpretar personagens com deficiência. ³ Embora seja verdade que existem alguns atores conhecidos com deficiência, como Peter Dinklage, Mat Fraser e a ímpar Marlee Maitlin – tradicionalmente têm sido escolhidos atores sem deficiência para desempenhar a maioria dos principais papéis de personagens com deficiência. De forma louvável, a BBC tem estado na vanguarda da utilização de atores com deficiência e compilou uma lista de nomes. No entanto, um olhar rápido pelos seus escassos currículos é bastante eloquente. As únicas exceções dignas de nota são as pessoas de baixa estatura, que parece terem um mercado para os filmes de fantasia e de aventuras: elfos, anões e afins. Na verdade, quando falei com Fraser sobre este assunto, ele confirmou a escassez de trabalhos de ator, declarando: Agora estou numa novela irlandesa durante seis semanas, a fazer de deficiente, é claro, mas que inclui um caso amoroso, além de ser uma das personagens principais. Uma estreia em termos de deficiência. Mas, sim, tem razão, além de Cast Offs , ⁴ nunca há praticamente nada para deficientes, sobretudo em papéis principais. A verdade é que, nos filmes sobre deficiência, a maior parte das vezes os protagonistas não são atores com deficiência. De fato, quando se é uma grande estrela e se quer tentar ganhar um Óscar, o melhor é interpretar uma pessoa com deficiência. Filmes notáveis deste tipo encheram o grande ecrã: de O Milagre de Ann Sullivan (1962), com Patty Duke no papel de Helen Keller, a Rain Man (1988), com Dustin Hoffman como Raymond Babbit; de O Meu Pé Esquerdo (1989), com Daniel Day Lewis a interpretar Christy Brown, a Nascido a 4 de Julho (1989), com Tom Cruise como Ron Kovic, e, mais recentemente, Seis Sessões (2012), com John Hawkes como Mark O’Brien. Curiosamente, Ben Lewin, ele próprio com pós-pólio, contratou um ator sem deficiência para desempenhar o papel de Mark O’Brien, que tinha poliomielite. Hawkes afirma que Lewin não conseguia encontrar um ator com deficiência que o conseguisse fazer, mas eu pergunto-me se foi esse o caso. Em primeiro lugar, um filme como este precisa mesmo de uma estrela para se conseguir vender. Em segundo lugar, os jovens com deficiência sabem que a carreira de ator é ainda mais arriscada para eles do que para os atores sem deficiência. O universo de atores com deficiência continuará a ser escasso enquanto a mensagem continuar a ser tão óbvia: os filmes que abordam a deficiência de uma forma central continuarão a ser feitos como veículos para a consolidação do estatuto de estrelas de atores sem deficiência Nos EUA, é difícil encontrar personagens com deficiência no cinema e na televisão. De acordo com um artigo publicado no The Hollywood Reporter , de um total de 600 personagens em programas de televisão norte-

americanos numa determinada temporada, só 12 terão uma deficiência. E, destes 12 papéis, os atores sem deficiência irão desempenhar a maioria deles. Por isso, o resultado final é que, de 600 personagens que aparecem regularmente na televisão nos EUA, só dois serão interpretados por atores com deficiência. Na sua maioria, os papéis secundários nos filmes serão desempenhados por pessoas sem deficiência. O melhor amigo do protagonista, a mãe, o pai e os irmãos serão sempre concebidos como neutros, isto é, normais e sem deficiência. A razão de assim ser tem algo a ver com a lógica da narrativa visual e também com o legado da eugenia e da hegemonia atual da discriminação ou do preconceito contra as pessoas com deficiência. Para fazer um filme sobre a deficiência, cada parte da história tem que estar relacionada com a deficiência, tal como a pintura aborígene tem que ter temas e cenários aborígenes. Os muros para o gueto não podem ser abordados com leveza e, se aparecerem judeus na rua, eles têm que ser “judeus”. Neste sentido, o filme tem de estar obcecado pelas pessoas com deficiência – caso contrário seria rotulado apenas como mais um filme no universo dos filmes. Se o olho móvel da câmara desviar o seu foco das pessoas com deficiência, a deficiência tem de desaparecer ou então irá criar interferência na narrativa. Pense-se em algo como a gravidez. É bastante normal ver uma mulher grávida na rua, mas se se decidir que uma das personagens de um programa de televisão deve aparecer grávida, é necessário fornecer todos os dados que justifiquem essa gravidez. É por isso que as mães numa narrativa sobre crianças nunca estão grávidas, a menos que a gravidez faça parte do enredo, ao passo que na vida real as mães podem estar grávidas ou não em função de uma série de fatores aleatórios. Passa-se o mesmo com a deficiência: se, num filme, a mãe de uma criança tem uma deficiência e o filme não é sobre a deficiência, então a deficiência vai desviar a atenção do público, que se irá perguntar por que razão a deficiência entrou no espaço comum. O público irá perguntar-se por que razão se está a interferir com a “normalidade” do filme – por que razão os limites que o público conhece e entende estão a ser quebrados. Isto acontece porque a deficiência – com o seu sentido binário: deficiente ou sem deficiência – faz parte, inevitavelmente, de um sistema de significação que ajuda a criar, de fato, um falso espaço comum em virtude da criação de um espaço de exclusão em vez de inclusão. A deficiência não pode apenas ser, tem que significar algo, tem que definir um espaço imaterial. Num sentido relacionado, a deficiência é alegórica. Não pode ser sobre si própria, tem que contar uma história sobre outra coisa e ter uma verdade moral. Parafraseando uma citação apócrifa de Sigmund Freud, às vezes, uma perna amputada é apenas uma perna amputada. ⁵ Mas, no mundo da narrativa dos meios de comunicação, uma perna amputada nunca é apenas isso. Deve ser um traço de caráter, uma metáfora, e deve encaixar num ponto do enredo ou servir de “revelação” para outra personagem que não a tenha visto, ou para a personagem principal que descobre coisas novas sobre si própria no processo de vencer a deficiência. É claro que possuir uma perna funcional nunca é alegórico, não precisa de interpretação e é basicamente um significante de grau zero sem um referente.

Por isso, quando um ator interpreta o papel de pessoa com deficiência, ele ou ela entra automaticamente num mundo de signos e significados que engloba a atitude da sociedade neoliberal em relação à deficiência. Este sistema de sinais e significados é, em grande parte, uma projeção da fantasia e da experiência adquirida sobre deficiência das pessoas sem deficiência. Edward Said ilustrou este ponto no seu livro Orientalism (1978), em que salienta que o “fato” do Outro é na verdade a fantasia da pessoa que olha o Outro. O argumento de Said era que o Oriente tinha sido tornado na fantasia projetada do Ocidente. Assim, ao ler obras orientalistas, aprende-se mais sobre o Ocidente do que sobre o Médio Oriente. Tendo em conta esta posição ideológica, pode bem ser que apenas um ator sem deficiência possa de fato retratar essa visão distorcida e tendenciosa da deficiência que faz parte dos filmes típicos de Hollywood, assim como só alguém como Rodolfo Valentino poderia retratar um sheik num filme mudo: ele era a personificação perfeita do mitema ocidental sobre a sexualidade oriental. Nesse sentido, só Dustin Hoffman poderia encarnar a ideologia da pessoa autista que proliferava na época em que Rain Man foi realizado. Um ator autista provavelmente não conseguiria. Paradoxalmente, se fosse um ator com deficiência a desempenhar o papel, então o filme poderia parecer menos do espaço comum e mais da particularidade da experiência individual. Poderia parecer mais um documentário e menos uma obra de ficção. É claro que um ator sem deficiência tem de se transformar a si mesmo, quer mentalmente, quer fisicamente, a fim de retratar uma pessoa com deficiência. O público está treinado para gostar dessa capacidade de transformação, e essas transformações estão, sem dúvida, profundamente enraizadas nas nossas ideias de teatralidade. Estamos habituados à ideia de que os atores se transformam a si próprios com versatilidade através da maquiagem, da preparação mental e, atualmente, também com a ajuda da computação gráfica. Admiramos as horas de trabalho cosmético e protésico necessárias para transformar pessoas como Brad Pitt em personagens como o protagonista idoso no filme O Estranho Caso de Benjamin Button (2008). Curiosamente, John Hawkes defende-se agora por representar um ator com deficiência, o que me parece ser um progresso, afirmando que: Há os que vão ser militantes, que vão fazer alarido – e têm todo o direito a isso. Eu fiz o meu melhor, e espero tocar as pessoas, não só a comunidade das pessoas com deficiência, mas também outras pessoas. Afinal de contas, somos todos seres humanos e é esse o ponto de partida do filme. (ZAKARIN, 2012) Mas o mais interessante é ele afirmar que: corri o risco de vir a ter problemas permanentes de saúde e nas costas para desempenhar a personagem de O’Brien de forma convincente, tendo recorrido a acessórios e a posturas dolorosas para conseguir representar a fragilidade e o estado contorcido da personagem. (ZAKARIN, 2012) Então, afinal acabou por se tornar deficiente por ter desempenhado o papel de O’Brien?

No entanto, estamos menos dispostos a aceitar – e é aqui que entra a complexidade – quando os atores se transformam a si próprios para passar de um grupo identitário para outro. Isto é particularmente flagrante quando o ator é membro de um grupo dominante e interpreta uma personagem de um grupo oprimido. Assim, por exemplo, a prática de pintar a cara de negro no teatro e no cinema era amplamente apreciada pelas plateias brancas dominantes até a questão da desigualdade racial se ter tornado muito mais controversa na década de 1930. Apesar de atores famosos como Al Jolson, Mickey Rooney, Judy Garland e Bing Crosby terem recorrido a esta prática, esta desapareceu completamente das obras dramáticas nas décadas de 1950 e 1960. Do mesmo modo, ainda que tenha continuado a haver atores brancos a interpretar asiáticos, indígenas norte-americanos e outras minorias étnicas na segunda metade do século XX, essa prática já é rara. Na verdade, é quase universalmente reconhecido que, no que respeita à maioria dos grupos raciais, os atores que pertencem à tradição desses grupos são preferidos em relação aos atores exteriores a essa tradição. Atualmente já não se toleraria que fosse Alec Guinness a interpretar o professor brâmane Godbole em A Passagem para a Índia (1984), ainda que seja aceitável a interpretação de Morgan Freeman do papel de Nelson Mandela no filme Invictus (2009), realizado por Clint Eastwood, embora os atores sulafricanos tenham criticado os poucos papéis que lhes foram atribuídos. Clint Eastwood, quando realizou Million Dollar Baby (2004), foi duramente criticado pelos ativistas da causa da deficiência pela sua visão pessimista da vida de uma mulher com deficiência, mas poucos o criticaram por não ter escolhido uma atriz com deficiência para o papel principal. A razão para isso é óbvia: a personagem central, Maggie Fitzgerald, interpretada por Hilary Swank, teve que evoluir ao longo do filme de uma atleta fisicamente intacta para uma pessoa tetraplégica. A capacidade da atriz e do diretor residiu em representar uma transformação que não teve em si qualquer elemento de escolha (exceto, é claro, a opção de acabar com a própria vida). Com frequência, ao que parece, um conceito central neste tipo de filmes é que a pessoa com deficiência é uma pessoa sem opções. No entanto, ainda que a personagem com deficiência não tenha opções, o público vai saber sempre que o ator sem deficiência tem bastantes opções. Na verdade, para voltar à questão da transformação do ator sem deficiência numa personagem com deficiência, que muitas vezes é o tema da publicidade do filme, o ponto importante para o público é que o ator não tem deficiência, enquanto a prestidigitação das imagens geradas por computador (CGI), a maquilhagem e as próteses fazem parte da magia do cinema. O público pode ficar descansado que, ainda que possa parecer ter deficiência, a personagem central não é realmente uma pessoa com deficiência e, na realidade, é um ator sem deficiência que desempenha o papel. Este ato de ver é uma forma de faz-de-conta; quando chegou a hora de Swank atravessar o palco e aceitar o Óscar, ela não o fez numa cadeira de rodas. O sistema atual de estrelato torna difícil que os atores com deficiência o integrem, como já se referiu a propósito de Seis Sessões (2012). As estrelas são por definição peças intercambiáveis de um sistema de produção que produz lucro. Gostamos de pensar no cinema e na televisão como “arte”, mas o seu estatuto como arte tem por base a sua capacidade para produzir

lucro ao atrair o maior conjunto de nichos de público. No nosso sistema atual, os meios de comunicação são instrumentos financeiros do mesmo tipo dos derivados ou dos títulos garantidos por créditos hipotecários. A transformação e a escolha através do consumismo são dois princípios básicos do sistema neoliberal, que promove a individualidade e a autorrrealização com base em escolhas de estilo de vida. Fazem parte de forma profunda da mitologia do capitalismo neoliberal, que destaca que as compras podem criar estilos de vida, em vez de ser ao contrário (que era a marca distintiva da versão anterior do capitalismo). No estilo anterior do capitalismo, ter um estilo de vida rico permitia que se tivesse capacidade para efetuar compras como a de um Cadillac. Agora, a compra de um iPad é possível a qualquer pessoa com um cartão de crédito e essa compra permite que se entre num estilo de vida de nicho, assim como a compra de um café Starbucks permite entrar num mundo que aparentemente se escolheu. Por isso, o ator “normal” corporiza essa mitologia de um corpo capaz de mudar, enquanto o ator com deficiência é visto como um lembrete desagradável de que nem sempre a transformação é possível, a não ser de forma limitada, e de que essa escolha não é operativa. Por outras palavras, o ator sem deficiência pode ser parte do espaço público de propriedade privada, um acréscimo para o instrumento financeiro a que chamamos filme, mas o ator com deficiência como imagem difundida nunca foi uma parte desse espaço comum de imagens em circulação. Um ator com deficiência, no sistema de signos e significados que faz com que os filmes tenham sentido, representa o peso esmagador do destino e da resignação, a incapacidade de aquisição para criar estilos de vida de nicho idealizados. Se a deficiência representa, no imaginário popular, um destino trágico em que a escolha é erradicada, mas que ao mesmo tempo oferece uma perspectiva assustadora e desfigurada para o público – que só consegue imaginar-se transformado numa pessoa com deficiência através de uma guinada brusca de um carro na autoestrada, uma doença grave ou de uma disfunção do corpo ou da mente –, então o papel dos meios de comunicação visuais têm sido historicamente o de lhe proporcionar conforto, mostrando que os muros do gueto podem ser fechados a partir do exterior pela “comunidade”. O conforto vem do cenário triunfante em que a personagem principal com deficiência supera as limitações da deficiência para se tornar, por exemplo, líder do movimento antiguerra ou um famoso escritor cego e surdo ou um qualquer outro profissional realizado. O conforto também vem de se ver essa pessoa aceite com todas as suas limitações pelos amigos e familiares, pela pessoa amada e pelo público em geral – o que inclui o público que está a assistir, que aprende a ver essa pessoa como “humana”. Mas o maior conforto vem de se saber que a personagem está a ser interpretada por uma pessoa normal. O medo da fragmentação e destruição do ego é compensado pela noção de que “é só um filme”. O efeito desta lógica é que a deficiência não é apenas guetizada em termos de conteúdo, mas que é também guetizada literalmente como local que só emprega um tipo particular de trabalhador. O que se poderia chamar “o paradoxo da deficiência” – de que a deficiência é o tema do filme, sem que na verdade haja uma pessoa com deficiência no filme – também é trabalhado da forma que se poderia esperar no filme

Avatar (2009). Jake Sully, interpretado por Sam Worthington, um ator sem deficiência, é um fuzileiro naval que fica paraplégico numa guerra. No filme, vemos um grande plano decisivo das suas pernas atrofiadas. Esta cena é em certo sentido a “cena-chave” que confirma ao público que esta personagem é realmente paraplégica embora o ator obviamente não o seja. Mas parte do frisson visual de ver aquelas pernas atrofiadas é saber que este é um entre muitos outros efeitos especiais que não têm nenhuma relação com a realidade do verdadeiro corpo do ator. Na verdade, o filme não é sobre outra coisa que não seja a transformação, uma vez que Jake se torna um avatar azul extraordinário através do milagre do ADN, da biotecnologia e, claro, das imagens geradas por computador (CGI) e dos efeitos 3D. O realismo dos efeitos 3D garante o realismo da parte do filme com os atores reais, o que também “garante” a deficiência da personagem. Essa deficiência desaparece no filme sempre que Jake entra no seu avatar, e, dada a lógica do filme, o mundo irreal do avatar acaba por se tornar mais real do que a parte do filme com o ator real. Nas florestas de Pandora, Jake está em harmonia com a natureza, capaz de executar proezas físicas e de usar a sua mobilidade super-humana. Por isso, o pacto com o público – a “resolução” do paradoxo da deficiência – implica uma personagem com deficiência cuja deficiência permanece no final do filme, recusando inclusivamente a oferta do vilão de lhe devolver as pernas através de tratamentos médicos dispendiosos, mas em que essa personagem ainda se pode transformar para se tornar alguém sem deficiência. E, como é óbvio, Sam Worthington, o ator que interpretou Jake, entrou pelos seus próprios pés na cerimónia de entrega dos Globos de Ouro. Toda a gente terá a certeza de que afinal o filme é apenas um filme. E a deficiência, ao fim e ao cabo, é apenas um tropo, um evento significante, um estado de ser alegórico. O que tenho tentado dizer é que a deficiência irá permanecer no seu próprio gueto enquanto estivermos presos no “paradoxo da deficiência”. O paradoxo, em termos de arte em geral, afirma que uma obra de arte nunca pode ser excelente se não for universal; e qualquer trabalho de um artista com deficiência – ou sobre ele – que se concentrar na deficiência nunca será universal. Se se tornar universal, então deixará de ser encarado como arte produzida por alguém com deficiência e o artista deixará de ser visto como pessoa com deficiência. O corolário inverso deste paradoxo é que, no cinema, a deficiência é sempre considerada como universal – como um tropo sobre a superação de um desafio – e por isso nunca pode mostrar a experiência subjetiva de viver com uma deficiência (o que, se fosse mostrado, faria o filme passar do nível do universal para o do particular da reabilitação, adaptação e gestão). O paradoxo da deficiência no cinema continua com a seleção do elenco. O paradoxo produz-se pelo fato de, para que uma plateia acredite realmente na deficiência retratada no ecrã, o ator não poder ser deficiente. A transformação do ator normal numa personagem com deficiência faz parte da transubstanciação exigida para que a deficiência possa aparecer de forma cinematográfica e teatral. Todas estas “regras” governam a forma como o paradoxo da deficiência funciona para guetizar a deficiência na arte e na cultura. Assim sendo, o que é que vamos fazer em relação a isso? O primeiro passo é revelar o paradoxo à medida que ele opera. A exemplo da psicanálise, talvez a verbalização e a tomada de consciência do mecanismo de defesa venham acabar por eliminar

o sintoma. À medida que nos vamos tornando conscientes das convenções da marginalização e exclusão, é de esperar que essas “verdades” invisíveis e intuídas venham a ser postas no caixote do lixo das ideologias passadas. Embora a prática de pintar a cara de negro seja agora impensável, temos que nos lembrar de que já passou por entretenimento – as pessoas brancas na altura apreciavam a transformação de Jolson ou de Fred Astaire numa personagem negra –, apesar de hoje em dia tal prática nos deixar perplexos, se não mesmo chocados. Por isso, há de chegar o dia em que o nosso apreço pelas contorções físicas e problemas da fala de Daniel Day-Lewis em O Meu Pé Esquerdo ou pelos tiques verbais e físicos de Dustin Hoffman em Rain Man seja encarado como um vestígio de uma época do passado em que dominava a discriminação ou o preconceito contra as pessoas com deficiência e a deficiência era um objeto subalternizado da fantasia cultural e ideológica. Por outras palavras, havemos de vir a considerar representações destas como pastiche e farsa em vez de as considerarmos como “autênticas” e grandes representações dramáticas. Ao defender a seleção do elenco com base em critérios de autenticidade, além de defender a desguetização da arte, gostaria de chamar a atenção para um problema. Em todos e quaisquer casos de retratos incorretos de pessoas com deficiência ou da situação injusta que este tipo de seleção do elenco apresenta para atores com deficiência (ou, noutros contextos, artistas, etc.), o protesto surge como “exigência” ou como “pedido”. Ou seja, estamos a pedir a Hollywood, aos diretores, estúdios, galerias, museus e afins para que nos “ouçam”, para que “aceitem” as nossas posições e as nossas exigências. Nestes casos, estamos numa posição de súplica, pedindo a uma elite dominante, ou mesmo a representantes da soberania ou das empresas, etc., que nos conceda o nosso desejo. Isto é por definição uma subjetividade subalterna e que, no caso, parece inevitável uma vez que o espaço público é propriedade privada. Ao discutir isto, gostaria de voltar à geografia do poder que tenho vindo a descrever. A natureza do gueto depende bastante de quem construiu os muros e de quem tem as chaves dos portões. Da mesma forma, se o nosso sentido de espaços comuns é o espaço público controlado de forma privada, então estamos numa posição de súplica subalterna. Se, por outro lado, pensamos menos no público e mais nos espaços comuns, então podemos começar a entrar num espaço que é mutuamente controlado (ou aberto). Roberto Esposito (2009) notou a existência de uma reciprocidade na origem da palavra comum e que vem da noção de munis, que é a dádiva que é dada para que possa haver uma dádiva recíproca. Para ele, a comunidade está alicerçada nesta noção de obrigação e de dever mútuo. Nesse sentido, é menos comunal e mais uma reciprocidade forçada. Mas será que essa reciprocidade poderia ser usada de uma forma que pudesse proporcionar um intercâmbio entre os artistas com deficiência e os autênticos espaços comuns? O cinema, e a arte, tal como está atualmente, se prestarmos atenção à noção de Marx das “verdadeiras relações” das pessoas, é uma forma de assumir o controle econômico sobre as imagens, linguagens e ideias comunais. Como Hardt e Negri assinalam, o capital “cria, investe e explora a vida social (…) ordenando a vida de acordo com as hierarquias de valor econômico” (2009: ix). Assim, o pressuposto é que a dádiva da deficiência não iria criar qualquer valor de troca, mas antes dependência e cuidados, a obrigação suprema sem o verniz do benefício econômico. A deficiência não ganha

dinheiro; retira dinheiro dos espaços comuns de propriedade privada. Em consonância com este conjunto de ideias, o que os espaços comuns de propriedade privada fazem é criar subjetividade e apropriar-se dessa subjetividade. Assim, é um erro pedir para que a arte seja aceite, a Arte em si é a dádiva que não cria uma obrigação recíproca. Para voltar a Kant, a arte parece propositada, mas sem propósito. A arte parece ser um objeto que pode ser comprado e vendido, mas também resiste a essa ideia. Claro que é possível comprar a Mona Lisa, mas alguma vez se consegue comprar a Mona Lisa? O duplo sentido de “sem preço” – significando de grande valor e também sem valor monetário – contém este duplo sentido da arte. E a deficiência também tem essa dupla conotação em relação ao valor – é de “grande valor” na venda de um filme porque pode tornar o filme “valioso”, mas o ator com deficiência “não tem valor monetário” porque não acrescenta qualquer maisvalia ao filme. Enquanto aceitarmos o sistema que cria estas imagens e afetos como parte do espaço público de propriedade privada, perdemos a oportunidade de explorar a relação não recíproca no que Giorgio Agamben chama de “a comunidade que vem” que pode existir numa nova base dos espaços comuns. Assim, os novos espaços comuns teriam por base a reciprocidade da dádiva, sendo que as dádivas que temos em mente são as que são “inestimáveis” e “sem valor monetário” – a dádiva e o imago não fiduciários, o ator ou artista que troca visões e formas de variação corporal por outras dádivas idênticas no espaço comum, que dá a dádiva de si no sentido mais amplo, despojado das limitações impostas pelo nexo monetário e pelas ideologias corpóreas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ESPOSITO, Roberto (2009). Communitas: The Origin and Destiny of Community . Stanford, CA: Stanford University Press. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio (2009). Commonwealth . Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press. SAID, Edward W. (1978). Orientalism . New York: Pantheon Books. WILLIAMSON, Aaron (2011). “In the Ghetto? A Polemic in Place of an Editorial”, Paralell Lines . Versão eletrônica disponível em: < http:// www.parallellinesjournal.com/article-in-the-ghetto.html>. Acesso em: 14/12/2014. ZAKARIN, Jordan (2012). “John Hawkes: Hopeful, but Ready for Backlash and (Maybe) Permanent Back Pain”, The Hollywood Reporter . Versão eletrônica disponível em: < http://www.hollywoodreporter.com/news/johnhawkes-sessions-star-hopeful-381513>. Acesso em: 14/12/2014. 1 < http://chuckclose.coe.uh.edu/life/index.html >. Acesso em: 25/08/2015. 2 No original, “ Deaf music” [N. T.].

3 Quero salientar que a minha discussão se baseia no fato de eu me referir aos programas de televisão dominantes e aos filmes de Hollywood. Há um conjunto pequeno, mas crescente de filmes realizados e protagonizados por pessoas com deficiência. Estes filmes são cada vez mais mostrados em festivais de cinema de deficiência e também noutros locais, e contradizem as tendências que descrevo neste capítulo. Atualmente, no entanto, a falta de audiências e de notoriedade que estes filmes têm em termos gerais serve para apoiar o meu argumento. 4 Trata-se de uma série, filmada como se de um documentário se tratasse, exibida no Channel Four , no Reino Unido, em que seis pessoas com deficiência são enviadas para uma ilha remota para participar num reality show fictício [N. T.]. 5 Atribui-se a Freud, de forma generalizada, mas incorreta, o seguinte comentário em relação aos símbolos fálicos: “Às vezes um charuto é apenas um charuto”.

Aleksandra Berg Mestre em Antropologia de Saúde pela Universidade de Varsóvia. Em 2002-2004 obteve bolsa de pesquisa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia na Universidade Aberta para o projeto “Vivências de saúde e Bem-Estar”. Entre 2004-2005 coordenou o pojeto Capital Futuro “Tradition and Modernity – Healthy ways of life among Portuguese youth”, financiado pela Comissão Europeia, com o apoio da Quercus. Entre 2011-2014 foi pesquisadora no projeto “Da lesão vertebro-medular à inclusão social: a deficiência enquanto desafio pessoal e socio-político”. Ana Claudia Lima Monteiro Professora de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutora em Filosofia pela PUC-SP. Pesquisa a relação entre subjetividade e corpo, entre corpo e afecção, Estudos da deficiência, Estudos CTS, produção de subjetividade, psicologia e instituições. Anahi Guedes de Mello

Antropóloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisadora vinculada ao Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), do Departamento de Antropologia da UFSC, e ao Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED), do Departamento de Psicologia da mesma universidade. É também pesquisadora associada da Anis – Instituto de Bioética, com sede em Brasília. Andreia Santos de Carvalho Psicóloga, Psicopedagoga. Mestre em Clínica e Pesquisa em Psicanálise / UERJ. Email de contato: [email protected]. Bárbara Gonçalves dos Santos Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Email de contato: [email protected]. Bruno Sena Martins Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Atualmente, desempenha no CES as funções de Vice-presidente Conselho Científico e de Co-coordenador no Programa de extensão acadêmica “O Ces vai à Escola.” É ainda Co-coordenador do Programa de Doutoramento “Human Rights in Contemporary Societies.” É docente no Programa de Doutoramento “Pós-colonialismos e cidadania global.” Entre 2013 e 2016, foi Co-coordenador do Núcleo “Democracia, Cidadania e Direito” (DECIDe). É Licenciado em antropologia e doutorado em sociologia. Os seus temas de interesse preferenciais são o corpo, a deficiência, os direitos humanos e o colonialismo. Carolina Sarzeda Reis Couto Graduanda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica. Email de contato: [email protected]. Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce Graduanda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica. Bolsa Faperj. Email de contato: [email protected]. Fernando Fontes Doutorado em Sociologia e Políticas Sociais pela Universidade de Leeds, Reino Unido, com a tese: “Social Citizenship and Collective Action: The case of the Portuguese Disabled People’s Movement”. Mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra com a dissertação: “Deficiência na Infância:

políticas e representações sociais em Portugal” (2006). Investigador do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra onde desenvolve atualmente o projeto “Decide - Deficiência e autodeterminação: o desafio da ‘vida independente’ em Portugal”. Juliana Pires Cecchetti Vaz Graduanda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Extensão, UFF / Pro-reitoria de extensão. Email de contato: [email protected]. Keyte da Silva Pestana Graduanda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora de iniciação científica. Bolsa Cnpq. Email de contato: [email protected]. Larissa Ribeiro Mignon Graduanda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Extensão, UFF / Pro-reitoria de extensão. Email de contato: [email protected]. Lennard Davis Professor de Deficiência e Desenvolvimento Humano na Universidade de Illinois, Chicago. Autor de numerosas publicações em editoras e revistas científicas na área da deficiência, ciência, história e cultura. Diretor do projeto Biocultures, um grupo de reflexão sobre interseccionalidade das questões da medicina, cultura, deficiência, biotecnologia e biosfera. Lia Paiva Paula Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Mestranda em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes. Email de contato: [email protected]. Lucas Nogueira Calvet Corrêa Graduando em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Extensão, UFF / Pro-reitoria de extensão. Email de contato: [email protected]. Luiza Teles Mascarenhas

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Foi professora substituta da disciplina Psicologia da Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 2014 e 2015. Atua, desde 2012, como psicóloga escolar pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura do município de Itaguaí-RJ. Tem dedicado seus estudos às seguintes temáticas: formação de professores, ensino de psicologia nas licenciaturas, inclusão escolar e psicologia escolar. Maíra de Macedo França Graduada em Psicologia pela Universidade Salgado de Oliveira. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Email de contato: [email protected]. Marcia Moraes É professora titular no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), com atuação na graduação e na pós-graduação strito sensu na mesma instituição. Coordena a pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão”, realizada no Departamento de Psicologia da UFF em parceria com Instituições de atendimento à pessoa com deficiência nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, Brasil. Coordena o grupo de pesquisa Entre_redes, bem como o Laboratório PesquisarCOM vinculado à Psicologia / UFF / Niterói. Seus interesses de pesquisa versam sobre as interfaces entre psicologia, estudos sobre deficiência, feminismos e estudos de ciência, tecnologia e sociedade. Recebe financiamento de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) / Edital Cientista do Nosso Estado e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) / Bolsa de Produtividade em Pesquisa. Maudeth Py Braga Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Email de contato: [email protected]. Nira Kaufman Psicóloga, graduada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense e Especialista em Educação Especial / inclusiva, pela AVM Faculdade Integrada; membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e coordenadora do projeto Encontro de Mediação e Inclusão (EMI); atua como psicóloga clínica e orientadora educacional. Thais Amorim Silva Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre

pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Email de contato: [email protected]. Pedro Hespanha Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e membro fundador do Centro de Estudos Sociais, é doutorado em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Tem investigado e publicado nas áreas dos estudos rurais, políticas sociais, sociologia da medicina, pobreza e exclusão social. Coordena o Grupo de Estudos sobre Economia Solidária. Rafael Bordallo de Figueiredo Raposo Graduando em Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe da pesquisa “Perceber sem Ver: corpo e subjetividade entre pessoas cegas e com baixa visão” / Departamento de Psicologia / Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Extensão, UFF / Pró-reitoria de extensão. Email de contato: [email protected].